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REVISTA VOLUME 6 NÚMERO 3

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REVISTA

VOLUME 6 NÚMERO 3

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EXPEDIENTERevista

quadrimestral

interdisciplinar

voltada para a

publicação de

artigos científicos

que contemplem as

seguintes áreas:

1. Estado, Trabalho,

Sociedade e

Território;

2. Meio Ambiente,

Estratégias de

Apropriação e

Conflitos;

3. Política, Cultura

e Conhecimento;

4. Educação,

Política e

Cidadania.

EDITOR CHEFE

EDITOR JUNIOR

EDITORAÇÃO E LAYOUT

Prof. Dr. Geraldo Marcio Timóteo

Msc. Teófilo Augusto da Silva

Msc. Teófilo Augusto da Silva

Demian Sousa Costa e Silva

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EDITORIAL

A revista Agenda Social vem buscando aprimorar sua maneira de interagir com os

sujeitos que produzem a ciência em nosso país. Para isso, temos buscado adequar nossa

proposta editorial ao pensamento científico que propugna a necessidade de praticarmos a

interdisciplinaridade, que, conscientemente, estimule e proporcione um espaço em que o

pensamento social possa manifestar-se de maneira ampla, interpretando a realidade com

vistas à superação das condições degradantes da existência humana, que assume tanto a

figura da pobreza extrema, quanto da opulência das elites econômicas.

É com o propósito de continuar sendo um veículo adequado para a publicização das

discussões prementes em nossa sociedade que a Agenda Social tem buscado, com êxito, a

integração de novos programas interdisciplinares que considerem ser positiva sua cooperação

para esse esforço editorial. Assim, podemos anunciar que a Revista Agenda Social passa

agora a ser resultado da parceria interinstitucional dos Programas de Pós Graduação em

Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF),

do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal

do ABC (UFABC), do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e

Cooperação Internacional da Universidade Nacional de Brasília (UNB) e do Programa

de Pós-graduação em Desenho: Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade, da

Universidade Estadual de Feira de Santana-BA (UEFS).

Essa unidade significa, na prática, que os quatro programas passam a corresponsabilizar-

se pela publicação dos trabalhos que nos confiam os colaboradores. Para isso, estamos

hoje preparados para darmos celeridade à apreciação dos trabalhos recebidos e esperamos

consolidar a confiança já depositada em nós nesses seis anos de existência da Revista

Agenda Social, no árduo e gratificante projeto de disseminar os resultados acadêmicos que

interessam à comunidade científica, nacional e internacional.

Prof. Dr. Geraldo TimoteoEditor-Chefe

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Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

DESENVOLVIMENTO HUMANO E EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: A ARTICULAÇÃO ENTRE INTERATIVIDADE E INTERAÇÃO

HUMAN DEVELOPMENT AND DISTANCE EDUCATION: A RELATIONSHIP BETWEEN INTERACTIVE AND INTERACTION

Este texto relata os resultados de pesquisa sobre a articulação entre interatividade e interação – duas dimensões da educação a distância – entendida como impulso importante para o desenvolvimento da integralidade humana de alunos. Investiga essa articulação no contexto de priorização da transmissão de conteúdos no processo educativo dessa modalidade de ensino, em comparação com a operacionalização de valores. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas. A articulação entre interatividade e interação envolve a autonomia, a consciência crítica, o relacionamento entre docentes e discentes e entre estes, bem como os valores e o compartilhamento de visões de mundo. No entanto, existem lacunas a preencher nas estratégias de formação de professores e na complementaridade entre as disciplinas ministradas. Aparentemente, a educação a distância se encontra enlaçada pelas contradições de uma escola detentora do monopólio de credenciais, realizadora do ideal modernista da escola para todos, nem tão desejada como o fora no passado quando a educação era privilegio.

RES

UM

O

This paper reports research results on the articulation between interactivity and interaction – two dimensions of distance education – which is understood as important impetus for the development of human integrality of students. It investigates this articulation within the context of prioritizing of the transmission of contents into the educational process of this modality of education, compared with the operationalization of values. Data were collected through semi-structured interviews. The articulation between interactivity and interaction involves the autonomy, the critical consciousness, the relationship between teachers and students, and among students, sharing values and worldviews. However, there are gaps to fill regarding the strategies of teacher training and the complementarity between the subjects taught. Apparently, the distance education is ensnared by the contradictions of the school which is: owner of the monopoly of credentials; performer of the modernist ideal of the school for everyone; institution which not is as desired today as it had been in the past when education was a privilege.

ABS

TRA

CT

PALAVRAS-CHAVES educação a distância; desenvolvimento humano; interatividade; interação, racionalidade.

KEY-WORDS Distance Education; Human Development; Interactivity; interaction; rationality.

Ivar César Oliveira de Vasconcelos 1

1 Doutorando em Educação pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected] Trabalho apresentado na 4th International Conference of Education, Research and Innovation, realizada na cidade de Madri, de 14 a 16 de novembro de 2011. O texto original encontra-se publicado no Livro de Atas, p. 2296-2305.

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INTRODUÇÃO

O problema e o objetivo da pesquisa

A grande disponibilidade de meios científicos e tecnológicos e a falta de nitidez dos valores

caracterizam a contemporaneidade, com prioridade para a tecnologia em detrimento do ser humano. Em

decorrência, desencadeiam-se graves problemas sociais como a violência, o desrespeito a direitos básicos

e a xenofobia. No âmbito da educação – chamada a envolver-se na solução desses problemas – as novas

tecnologias da informação e comunicação (TIC) abrem portas à educação a distância (EAD) com recursos

favoráveis a essa tarefa.

À utilização desses recursos alia-se o cumprimento do papel sociocultural da educação, atualizado

com o tempo e pautado em modos de pensar e organizar o discurso a respeito do mundo e da humanidade.

Desse modo, além da visão de mundo, ao efetivar-se, a EAD parte da concepção de ser humano – buscando

por não reduzi-lo à razão, à fé ou à emoção. O indivíduo não existe sozinho com ele mesmo ou com a

natureza, mas afirma-se na relação significativa mantida com o entorno, onde estão os outros. Ao ocupar

um lugar específico, em coletividade, ele supre necessidades elementares e concretiza sonhos. Sendo ser

sociocultural, não vem ao mundo só, não cresce nem se educa sozinho.

Nessa dinâmica, a EAD intenta conectar os aspectos informativos e formativos da educação,

considerando não apenas a imensa circulação de dados, aspectos cognitivos e objetivos presentes no

processo educacional, como também as crenças, os comportamentos e os valores. Os primeiros destes

aspectos têm a ver com interatividade e os segundos com interação, duas dimensões dessa modalidade

de ensino. Interatividade se refere a conteúdos adquiridos por intermédio de recursos tecnológicos, como

o computador, e interação às trocas e influências entre as pessoas nas falas, gestos, recados e discussões,

em torno principalmente de alunos e professor (conf. THOMPSON, 1998, referente à interação mediada).

A conexão entre as duas dimensões contribui para a integralidade humana, envolvendo não somente o

conhecimento, mas, sobretudo, o lado axiológico do processo educacional.

Essa conexão ocorre simultaneamente à constante inserção de novas tecnologias na prática didático-

pedagógica da EAD, contribuindo para criar tipos de comunicação com os quais os discursos obedecem

às lógicas de rede e não mais às lógicas lineares. Se, por um lado, esta inserção alarga potencialmente o

já diversificado domínio da interatividade nas TIC, por outro, amplia ações focadas na interação – com

diferencial na produção de conhecimentos ao desenvolver valores. Tal dinâmica se coaduna com horizontes

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relacionados ao objetivo de centralizar a aprendizagem no educando. No entanto, predomina ainda a

pura transmissão de conteúdos, num processo de racionalização do fazer educativo, incompatível com a

potencialização de interações que, em se desdobrando, contribui para atingir o objetivo de desenvolver

plenamente o indivíduo.

Com base nestas considerações, foi realizada pesquisa visando a analisar a articulação entre

interatividade e interação, a partir da identificação de alguns aspectos do processo educacional, tendo-a

como fundamental para a prática didático-pedagógica capaz de contribuir para o atingimento daquele

objetivo.

A EAD e o papel sociocultural da educação

Apesar de ser uma modalidade de ensino com mediação didático-pedagógica efetivada por meio

de atividades praticadas em lugares e tempos diferentes (BRASIL, 1996; 2005), a EAD não prescinde

da interação entre as pessoas envolvidas com a sua operacionalização. Tecnologia e ser humano,

respectivamente, situam-se no horizonte da interatividade e da interação. Embora seja difícil separar estas

categorias, no cotidiano é possível delimitá-las. Para Castro (2009), enquanto na primeira ocorre procura

por informações e intercâmbio entre elas, na segunda ocorre imediato retorno e intercâmbio de mensagens

socioafetivas. Desse modo, ao lado da enorme gama de serviços fornecida por intermédio de interfaces

padronizadas, envolvendo textos, áudios, vídeos, imagens gráficas e em especial as redes de computadores,

estão as pessoas direta ou indiretamente vinculadas ao processo educativo.

Estas pessoas interagem, trocam impressões e têm objetivos individuais, atuando em contextos

diferenciados em relação ao âmbito da sala de aula, com tecnologias específicas. São as videoconferências,

correios eletrônicos, canais de voz ou outras tecnologias. Ao modificar a interação entre professor e aluno,

a EAD pode fortalecer o papel sociocultural da educação.

Como as estratégias de formação para o trabalho não podem mais ser rígidas, com foco exclusivo

na aquisição de competências e habilidades favoráveis à execução de atividades específicas (TAVARES,

1996), torna-se crucial preparar o indivíduo para lidar com um quadro de ocupações cada vez mais

dinâmico. É imprescindível possibilitar a construção de estruturas visando à conquista da autonomia,

capacidade para inovar e criticar. Para Machado (2004), a bifurcação fundamental do universo do trabalho

em seguidores de rotinas e analistas simbólicos – como propusera Reich (1994) – ainda não se tornou

preocupação da escola, ainda com prioridade na capacitação para ocupações específicas. Segundo ele, os

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cursos de graduação são incipientes ao preparar os indivíduos na perspectiva de reduzir os currículos à

transmissão de conteúdos, sem a preocupação em prepará-los melhor em áreas como psicologia, filosofia

e sociologia. No caso da EAD, a formação para o exercício de funções profissionais ocorre no contexto da

vinculação entre os serviços fornecidos por interfaces padronizadas e aspectos humanos.

Noutra perspectiva, cabe à educação contribuir para o desenvolvimento de valores, no tempo

contemporâneo caracterizado por uma pluralidade moral. Não havendo modelo ideal de pessoa, autores

concebem os direitos declarados fundamentais em 1948 como um conjunto de princípios universais com

força suficiente para orientar as éticas individual e coletiva. Esta perspectiva universalista se sustenta na

noção de cidadania, servindo para dar coerência aos valores e aglutinar propostas de uma educação voltada

para concretizá-los.

Mesmo considerando esta perspectiva generalista, a maioria dos problemas éticos não é solucionada,

como destaca Marchesi (2008). Dentre eles, situa-se a diferença entre os princípios transmitidos pela

sociedade (competição, individualismo, violência etc.) e os exigidos por ela à ação da escola (lealdade,

igualdade, paz, solidariedade etc.), constituindo-se, talvez, na maior contradição. A educação preocupada

com fatores axiológicos envolve três enfoques complementares. Educa-se: para a cidadania (foco no

presente, na aquisição de competências cognitivas, comunicação e ética); sobre cidadania (ênfase em

aspectos morais e cívicos a partir de reflexões) e por meio da cidadania (exercício do civismo, participação,

respeito mútuo e tolerância).

Desse modo, formar para o trabalho e contribuir para desenvolver valores atualizam a gênese

humana, multidimensional, para lá da aquisição de conhecimentos acadêmicos. Na EAD esta atualização

conecta-se com a capacidade de o processo educacional articular interatividade e interação – uma ampliação

do universo de saberes e princípios, resultando na conquista da autonomia, na maior consciência crítica e

no compartilhamento de visões de mundo.

Fundamentando a articulação interatividade-interação

A EAD contribui para a integralidade humana por basear-se não somente em mecanismos de

suporte compatíveis com a velocidade das informações, mas também por fundamentar-se na interligação

entre perspectivas e conceitos relacionados à formação humana. Tal dinâmica ocorre com aprendizagens

significativas em clima favorável à convivência entre educandos e educadores. Em primeiro lugar, prima

por uma ecologia dos saberes, expressão utilizada por Santos (2004; 2007) para se referir à pluralidade

de conhecimentos e à ênfase no diálogo entre o saber científico e o humanístico. Conforme o autor, essa

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epistemologia proporciona a comparação entre o conhecimento científico e os demais tipos, rebalanceando

a conexão entre ciências naturais e práticas sociais, desequilibrada desde a primeira Modernidade.

Este desequilíbrio teria impedido o cumprimento das promessas modernas de liberdade, igualdade e

solidariedade, frustrando expectativas ainda vivas em populações do planeta inteiro. Desse modo, ao situar

a ciência como parte de uma ecologia mais ampla e realizar a tradução intercultural entre conceitos, essa

maneira de produzir conhecimentos proporcionaria a abertura necessária para restabelecer o equilíbrio

entre as ciências da natureza e as antropossociais – as pessoas se humanizariam a partir do conhecimento

capaz de reunir a ciência e os valores num novo paradigma.

Em segundo lugar, fundamenta-se na construção da mentalidade favorável ao saber viver num

mundo plural, globalizado e de várias culturas, traduzida na capacidade de aprender a ser, a conviver,

a participar e a habitar em tempos de diversidade moral (MARIA PUIG, 2007). Desse modo, mobiliza-

se no sentido de desenvolver integralmente os discentes, pois se ensina para a vida na perspectiva da

relação mantida por eles com o mundo e entre si. Para Martín García (2010), ajudá-los a aprender a viver

constitui o principal objetivo da educação para valores – possibilita a eles escolher e adotar modos de vida

sustentáveis. Refere-se, portanto, ao fazer humano no vínculo inteligente estabelecido no grupo aqui e

agora e projetando o futuro.

Por último, baseia-se na ideia de construção do ser e do fazer moral valendo-se tanto do emocional

como do racional. Como afirma Gomes et al. (2008), a educação enriquece a capacidade de ação e

reflexão, seja quando o indivíduo aprende sozinho ou quando está no ambiente coletivo. Para os autores,

educar significa conectar o sentir, o pensar e o agir; quer dizer, “acima de tudo, a integração entre razão

e emoção; é o resgate dos sentimentos visando à restauração da incerteza humana e paradoxalmente da

multidimensionalidade do ser” (p. 45).

Portanto, contribuir para o desenvolvimento pleno por meio do ambiente virtual de aprendizagem

implica considerar não somente os mecanismos de suporte, seja no nível institucional, seja na atuação

didático-pedagógica do educador. Em seu papel, seja como conteudista, autor, coordenador de aprendizagem,

tutor e instrutor, o educador da EAD exerce função pedagógica nas áreas do social, do administrativo e da

técnica, como sublinha Gonzalez (2009). Ele conduz, instiga, orienta, simula e auxilia na aprendizagem,

de maneira diferente do ambiente presencial, de acordo com Moore e Kearsley (2008). Desse modo,

articulam-se interatividade e interação na complexa tessitura composta por elementos internos e externos

ao processo educacional.

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METODOLOGIA DA PESQUISA

Os dados foram gerados a partir de entrevistas semiestruturadas, com duração média de 40 minutos,

realizadas com dois professores atuantes em EAD por cinco anos, com mestrado em educação e em políticas

públicas e gestão educacional. Como em pesquisas qualitativas o universo analisado não se constitui

dos participantes em si, mas de representações, conhecimentos, práticas, comportamentos e atitudes

(DESLANDES, 2009), a quantidade de participantes foi suficiente para gerar os dados. Sem a pretensão

de generalizar os resultados para populações mais amplas, não se buscou obter amostras representativas,

mas explorar e descrever o objeto de pesquisa para gerar novas perspectivas de investigação (SAMPIERI;

COLLADO; LUCIO, 2006).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao tencionar a interconexão entre aspectos cognitivos e axiológicos, o processo educacional

equilibra conhecimento teórico e desenvolvimento, interpenetrando aspectos informativos e formativos,

com base no entrelaçamento de perspectivas e conceitos como mencionado anteriormente. Em relação à

EAD, a articulação entre interatividade e interação se constitui em ponto chave. Considerando isto, foram

identificadas cinco características do processo educativo (separadas no discurso dos participantes, mas

não na prática), analisadas com o intuito de inferir as contribuições da EAD.

As três primeiras características foram consciência crítica, relacionamento e valores, as quais

se referem, respectivamente, aos aspectos cognitivos, emocionais e axiológicos. Duas outras foram a

autonomia e o compartilhamento de visões de mundo, finalísticas do processo, conexas, respectivamente,

com a individualidade do aluno e com a coletividade onde ele se insere. As descrições a seguir possibilitam

percorrer trajetória de análise, na articulação entre interatividade e interação, iniciada no plano individual

e finalizada no social. Desse modo, configura-se a interligação entre essas características, emblemática

quanto à complexidade da EAD (ver Fig. 1).

Para haver mais consciência crítica, um dos professores entrevistados incentiva a reflexão a

respeito das atividades praticadas e a projeção como futuros professores (são graduandos do curso de

Licenciatura em Pedagogia). Para ele, isto favorece a transferência de saberes. Para o outro entrevistado,

o aluno deveria se perceber como protagonista de seu aprendizado e como alguém dependente de seu

grupo de convivência. A consciência crítica seria construída por meio de discussões, compartilhamento de

informações e ideias e responsabilização, com coordenação do professor, seja em seminários, encontros

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presenciais ou levantamento de questões. Essas falas evidenciaram a ideia freireana a respeito do

ato educativo, supondo a situação humana como um problema sobre o qual pode e deve incidir o ato

cognoscente. Desse modo, o indivíduo aprofunda a tomada de consciência da realidade (FREIRE, 2011),

propulsora da educação (VIEIRA PINTO, 2007).

Autonomia

Fig. 1 – Características do processo educacional analisadas com o objetivo de identificar a articulação entre interatividade e interação.

Desenvolvimento humano no plano individual

Desenvolvimento humano no plano social

Consciência crítica

Valores

Compartilhamento de visões de mundo

Interatividade e interação

Relacionamentos

Para os participantes, o relacionamento entre professor e alunos e entre estes, poderia ser melhor

se o fórum de discussão e o chat fossem utilizados com mais frequência. Por meio dessas ferramentas

as ideias seriam trocadas. Para um dos entrevistados, os cursos a distância são promovidos basicamente

por intermédio do cumprimento de demandas: “as tarefas são registradas em ambientes específicos, mas

a mediação restringe-se ao âmbito das discussões entre professor e alunos nos fóruns. Deveríamos fugir

um pouco de seu uso e do chat e aplicar ferramentas e mecanismos de interatividade”. Com efeito, como

a comunicação mediada por novas tecnologias alteraram significativamente o modo como pessoas se

organizam, bem como a maneira de evidenciar suas identidades, encontram-se abertas novas alternativas

de interação. Desse modo, os modelos de estruturação de cursos na EAD permitem construir a informação

desejada enquanto se almeja adquirir conhecimentos.

Confiança, lealdade, respeito, responsabilidade, cumprimento de prazos, disciplina e autonomia

foram valores mencionados pelos professores. De acordo com eles, atitudes simples como uma ligação

telefônica para o aluno em situação de conflito ou com dificuldade de aprender contribuem para

aumentar a confiança e a lealdade. Estas opiniões remetem para os tipos de conteúdos, conforme os

Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), onde os conceituais envolvem fatos e princípios e

os procedimentais e atitudinais envolvem a abordagem de valores, normas e atitudes. Interconectar esses

conteúdos faz parte da prática didático-pedagógica, cabendo ao professor aproveitar as diferenças com as

quais se depara em seu fazer pedagógico.

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Sendo orientador de monografia final de cursos da EAD, um dos professores entrevistados declarou

preocupar-se com a autonomia – aproveita dificuldades de aprendizagem e introduz tarefas com pistas

para a solução de questões do conteúdo ministrado: “às vezes, os alunos nem sabem por onde começar a

monografia e como são obrigados a definir o tema, recortar e delimitar os assuntos, eu os oriento a definirem

os títulos dos capítulos”. Para o outro entrevistado, a autonomia poderia ser incentivada com estudos de

temas selecionados por professores e debatidos em fóruns conduzidos por alunos. O compartilhamento de

responsabilidades seria algo importante: “então o professor deixa de ser apenas o mediador e descentraliza

responsabilidades; tarefas pedagógicas descentralizadas geram maior autonomia”. A participação do

discente está na capacidade de se perceber como um ser intervindo no mundo (FREIRE, 2011). Dessa

maneira, para além da colocação em prática de conhecimentos adquiridos, forma-se o indivíduo para

observar e analisar as diversas realidades. Para agir com autonomia, em contextos criados e recriados

permanentemente por ele e educador.

Finalmente, a proposta educativa preocupada com o desenvolvimento pleno considera a imagem

particular de mundo elaborada por alunos e professores e observa também o compartilhamento dessa

imagem. Nesta perspectiva, não o chat, mas o fórum de discussão apareceu como instrumento adequado

ao compartilhamento de visões de mundo. As discussões ocorridas nestes meios de interação poderiam

ajudar a refletir a respeito de soluções de problemas práticos: “a gente costuma abrir o fórum do cafezinho,

um espaço aberto para mediação e intercomunicação”. Com efeito, passa a haver diálogo a respeito

da relevância do questionamento e da criatividade. Cria-se a razão aberta acolhedora dos fragmentos

da realidade, receptora do ser humano em sua plenitude (MORIN, 2008). A razão aberta considera o

trágico, o sublime, o irrisório, o amor, a dor e o humor como fontes de conhecimento e de verdade e não

meramente divertimento. Desse modo, o processo educacional cuja base se constitui na razão aberta conta

com professores competentes, capazes de entusiasmar não somente para o aprendizado, mas de ampliar

conhecimentos, zelando pelo afetivo e pela capacidade de compartilhar visões de mundo.

CONCLUSÃO

A EAD efetivamente preocupada com o desenvolvimento do indivíduo não atua apenas com o apoio ao

aluno no acesso a ferramentas tecnológicas, mas age a partir da clara definição dos objetivos educacionais

implicados. A formação e o perfil específicos do educador da EAD exigem mudança de olhar quanto ao

currículo e ao papel da educação e do professor, bem como quanto à revisão de leis educacionais. Por

ter atuação diferente em relação à da sala de aula, ele articula conteúdos conceituais, procedimentais e

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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atitudinais na relação existente entre interatividade e interação. O educador compreende sua complexa

tarefa.

Assim, à formação docente e ao perfil do profissional agregam-se outros aspectos, construindo um

complexo de iniciativas e ações a caracterizar a EAD em sua tarefa de contribuir para formar o indivíduo

integral. A educação, como a vida, exige a integração do pensar, sentir e agir, verbos conjugados todo

o tempo pela pessoa, pelo trabalhador e pelo cidadão. Embora paradoxal, por se utilizar de argumento,

pode-se afirmar: somente a racionalidade não atende ao requerido pela Pós-Modernidade. Sem cumprir

a promessa de emancipação, a escola ainda reproduz, disseminando a transmissão do capital econômico

e cultural como originária do mérito e dos dons individuais. Como lembram Gomes, Vasconcelos e

Lima (2012), a escola como instituição racionalizadora da Modernidade (TOURAINE, 1997) possui três

contradições pelas quais a EAD se encontra enlaçada: a escola mantém o monopólio das credenciais,

mas perdeu o monopólio do conhecimento científico e tecnológico; em muitos países, ela atingiu o ideal

modernista da escola para todos, mas convive com diversos problemas advindos com o ingresso de novas

populações; a escola, desejada por muitos quando a educação era privilégio, constitui-se em lugar de

revolta para parte das populações sem capital cultural (BOURDIEU; PASSSERON, 1970) nela presentes.

Como desvencilhar a EAD dessas contradições se se quer contribuir para uma educação capaz de contribuir

para a integração entre pensar, sentir e agir?

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PALAVRAS-CHAVES Escola de Chicago, pragmatismo, interacionismo simbólico, indivíduo e sociedade

KEY-WORDS Chicago School, pragmatism, simbolic interactionism, individual and society

INDIVÍDUO E SOCIEDADE NO PENSAMENTO SOCIAL DA ESCOLA DE CHICAGO

THE INDIVIDUAL AND THE SOCIETY IN CHICAGO SCHOOL SOCIAL THOUGHT

1Fernando Farias Valentin 2Ana Keila Mosca Pinezi

1 Sociólogo. Mestrando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC).2 Profa. Dra. Coordenadora do Mestrado em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC).

O presente artigo procura analisar a contribuição da escola sociológica de Chicago para a redefinição dos conceitos de indivíduo e sociedade, através da reelaboração das clássicas visões da sociedade proposta pelos funcionalistas e estruturalistas. Examinando a influência do pragmatismo sobre a ação dos indivíduos, e identificando a trajetória do pensamento social da escola na primeira e na segunda geração de pesquisadores, o artigo conclui que o desenvolvimento do interacionismo simbólico foi decisivo para a formulação de um pensamento social que conseguiu unir, isto é, fez interagir indivíduo e sociedade, sem sobrepujar um ou outro.

RES

UM

O

This paper analyzes the contribution of sociological Chicago School to redefine the concepts of individual and society, through the reworking of the classic visions of society proposed by functionalists and structuralists. Examining the influence of pragmatism on the actions of individuals, and identifying the trajectory of social thought of the school on the first and second generation of researchers, the article concludes that development of symbolic interactionism was decisive for formulation of a social thinking that managed to unite individual and society with equal importance.A

BSTR

AC

T

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INTRODUÇÃO

Na história da teoria social contemporânea, a Escola de Chicago pode ser considerada um marco,

pois conseguiu ultrapassar amplamente os clássicos paradigmas funcionalista e estruturalista concebidos

pelos pensadores europeus, e, em boa medida, até mesmo, o culturalismo3 norte-americano.

Nascida sob a égide do pragmatismo, ela inaugurou um novo campo na pesquisa sociológica focado

nos estudos dos fenômenos urbanos e nas noções de cultura urbana e ecologia humana. Porém, não se

limitou a ser exclusivamente um novo modo de fazer pesquisa, apesar de sua grande contribuição em

termos de métodos e abordagens sobre os objetos de análise. Foi muito mais além, dedicando um lugar

significativo ao estudo das formas como os indivíduos elaboram e interagem com os grupos sociais aos

quais pertencem, e como criam sua identidade social.

Em termos metodológicos, a Escola de Chicago deixou um importante legado ao realizar a crítica

radical da fenomenologia sociológica, isto é, do objetivismo da ciência racional-funcionalista, e pela

seminal contribuição na formulação do interacionismo simbólico e da etnometodologia que viriam a se

tornar duas importantes correntes sociológicas de caráter compreensivo após os anos 1960.

Este artigo tem como eixo central apresentar as principais contribuições da Escola de Chicago

para o entendimento da clássica dicotomia sociológica: indivíduo e sociedade. Para tanto, o texto a seguir

está dividido quatro partes. Na primeira seção, será discutido o papel central que a filosofia pragmática

possui no pensamento social norte-americano e na formação da escola de Chicago. Na segunda seção,

discutiremos a práxis da escola em termos do olhar, dos métodos e da escolha dos objetos de pesquisa. A

terceira seção é dedicada a apresentar um dos principais frutos teóricos da segunda geração da escola: o

interacionismo simbólico e a mudança na concepção de ação. Na parte final do trabalho são apresentadas

as conclusões que procuram demonstrar a relevância da construção teórico-metodológica empreendida

pela escola para uma melhor compreensão da dicotomia entre indivíduo e sociedade, bem como apontar o

legado e as contribuições desse pensamento para a teoria social.

Pragmatismo e teoria social

3 A universidade de Columbia é muitas vezes designada como o lar intelectual do culturalismo que se desenvolveu nos Estados Unidos a partir dos anos 1930. Essa abordagem sociológica recebeu influências da antropologia cultural anglo-saxã e da psicanálise freudiana. (LALLEMENT, M. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2008, p.75-78.

O pragmatismo cumpre duas funções(....). Em primeiro lugar, desembaraçar-nos ativamente de todas as idéias pouco claras. Em segundo lugar, deve apoiar, e tornar distintas, idéias em si, claras, mas de apreensão mais ou menos difícil;e, em particular, assumir sua atitude satisfatória em relação ao elemento da terceiridade. (PEIRCE,C. Escritos coligidos. In: Os pensadores, vol. XXXVI. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.64).

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O pragmatismo não foi a primeira corrente filosófica a se implantar nos Estados Unidos da

América. No entanto, segundo Wall (2007), foi verdadeiramente uma escola americana de pensamento.

Surgido nos primeiros anos de 1870 e formado por um grupo de rapazes de Cambridge, Massachussets,

interessados em discutir filosofia que se auto-intitulavam como pertencentes ao “Clube Metafísico”, o

pensamento pragmático teve como principais expoentes os pensadores Willian James e Charles Sanders

Peirce.

O primeiro texto que expõe claramente as idéias do pragmatismo é de 1878, de autoria de Charles

Peirce, intitulado “How to make our ideas clear”. Nele o autor apresenta a definição do que seria uma

idéia clara:

Para Peirce (1878), o fundamental da doutrina pragmatista é a relação que ela desenha entre a

teoria e a prática. Isto é, ela se constitui somente em um critério de significação que afirma ser o significado

de algo, ou de um conceito, nada mais, do que a soma total das conseqüências práticas concebíveis. Por

esse raciocínio, conceitos que não tenham conseqüências práticas concebíveis não têm significado. O

ponto central da reflexão de Peirce sobre o significado dos conceitos foi fortemente influenciado pela

definição de crença de Alexander Bain, que afirmava ser esta hábito de ação. Bain propunha que nos

afastássemos da concepção de que as crenças são puramente intelectuais e passássemos a tomá-las como

sendo oriundas de nossas vontades e tendências para agir (NASCIMENTO, 2011).

Peirce concebia a filosofia mais como um método auxiliar na compreensão dos problemas

científicos e filosóficos, do que como uma teoria da verdade. Sua teorização sobre o pragmatismo surge

como um esforço para vencer as contendas metafísicas, e tentar adotar medidas práticas que consigam

efetivamente captar a concepção total de um objeto.

Outro nome de destaque no pragmatismo foi o de Willian James. Em 26 de agosto de 1898,

James proferiu uma conferência na União Filosófica da Universidade de Berkeley e utilizou a palavra

pragmatismo pela primeira vez de modo impresso. Nessa ocasião, James apresentou uma interpretação

A clear idea is defined as one which is so apprehended that it will be recognized wherever it is met with, and so that no other will be mistaken for it. If it fails of this clearness, it is said to be obscure. This is rather a neat bit of philosophical terminology; yet, since it is clearness that they were defining, I wish the logicians had made their definition a little more plain. Never to fail to recognize an idea, and under no circumstances to mistake another for it, let it come in how recondite a form it may, would indeed imply such prodigious force and clearness of intellect as is seldom met with in this world. On the other hand, merely to have such an acquaintance with the idea as to have become familiar with it, and to have lost all hesitancy in recognizing it in ordinary cases, hardly seems to deserve the name of clearness of apprehension, since after all it only amounts to a subjective feeling of mastery which may be entirely mistaken. I take it, however, that when the logicians speak of “clearness,” they mean nothing more than such a familiarity with an idea, since they regard the quality as but a small merit, which needs to be supplemented by another, which they call distinctness. (PEIRCE, C. 1878, p. 286-302)

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das idéias de Peirce dizendo:

A concepção de Peirce sobre o pragmatismo foi expandida por James com a introdução da noção

dos efeitos que um objeto pode envolver. Isto é, na idéia original de Peirce o significado ou a idéia que

temos de um objeto é produto dos efeitos que julgamos ter esse objeto. Willian James adicionou nesses

efeitos as sensações que devemos esperar e as reações que devemos preparar a partir do objeto. Em outras

palavras, o pragmatismo para James está interessado nos efeitos diretos, práticos e particulares de um

objeto ou idéia. Ele reivindica uma filosofia que não somente exercite os poderes da abstração intelectual,

mas que faça conexões com o mundo real. O método pragmático seria, então, uma atitude, uma orientação.

A atitude de olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das “categorias”, da supostas necessidades e

de procurar pelas últimas coisas, ou seja, seus frutos, as suas conseqüências, os fatos (JAMES, 1985).

Na opinião de Hans Boas (1999), o pragmatismo é uma filosofia da ação, mas que não chegou a

desenvolver um modelo da ação como fez Talcott Parsons4. Boas procurou desenvolver o conceito de

ação com vistas a superar a dualidade cartesiana. Isso levou a uma compreensão da intencionalidade e da

sociabilidade de modo diferente do proposto pelos utilitaristas5, em que a ordem social é orientada pela

concepção do controle social em termos de auto-regulação e solução de problemas.

A relação e a influência entre o pragmatismo e a teoria social, especificamente no caso da Sociologia,

segundo Boas, se deu com John Dewey e George Herbert Mead. Num primeiro estágio, o pragmatismo

assumiu contornos de uma psicologia funcionalista. Buscava-se interpretar os processos e operações

psíquicas em termos de sua eficácia para a solução dos problemas encontrados pelas pessoas no dia-a-dia,

isto é, em sua conduta. Um documento típico dessa visão foi produzido por John Dewey e intitulado de

“The Reflex Arc Concept in Psychology”, de 1896, no qual o autor criticava a concepção de uma psicologia

causal que buscava estabelecer vínculos determinísticos entre estímulos ambientais e relações orgânicas.

Esse modelo para Dewey opunha a totalidade da ação e as doutrinas que reduziam a ação a uma conduta

determinada pelo meio. Ele acreditava que qualquer ideia, valor e instituição social tinham origem nas

circunstâncias práticas da vida humana. As crenças, vistas em seus respectivos contextos, deveriam ser

Para atingir a clareza perfeita em nossos pensamentos de um objeto [...] precisamos somente considerar quais efeitos de uma espécie concebivelmente prática o objeto pode envolver - quais sensações devemos esperar dele, e quais reações devemos preparar. Nessa concepção desses efeitos, então, é para nós o todo de nossa concepção do objeto, na medida em que essa concepção tem alguma significância positiva. (JAMES, 1898 apud Wall, 2007, p. 52)

4 Para maiores detalhes vide PARSONS, T. A estrutura da ação social. Petrópolis: Vozes, 2010.5 O princípio da utilidade foi sistematizado por Jeremy Benthan (1748-1832) e John Stuart Mil (1806-1873). Uma das principais exposições sobre a filosofia utilitarista pode ser encontrada em BENTHAM, J. “Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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testadas quanto à contribuição que poderiam dar para o bem comum e pessoal (PALMER, 2005).

Esse mesmo entendimento foi gradativamente compartilhado por Herbert Mead. Em meados de

1910, Mead havia escrito um livro de ensaios que mostrava a evolução de seu pensamento de um modelo

biológico, individual e funcionalista, para uma concepção mais social e racional, de ligação entre os

indivíduos e os grupos. Por razões desconhecidas, essa obra nunca chegou a ser completada. No entanto,

juntamente com os trabalhos “Play, School, and Society” e “The individual and the Social Self” elas

marcaram a passagem de uma concepção psicológica, individual e emocional da pessoa em sociedade,

com ênfase na infância, para outra, em que o sujeito é explicado como produto das interações sociais e

de significados humanamente gerados (SCOTT, 2008). Em “Mind, Self and Society”, Mead apresenta

um modelo de origem do eu e do outro, no qual a sociedade e o “eu” seriam mutuamente dependentes

e dinâmicos. A mente, a consciência, a inteligência e a capacidade de assumir o papel do outro também

surgiram desse processo.

É importante frisar que o pragmatismo é um método de se fazer filosofia e não uma teoria filosófica.

Nasce com o objetivo de mostrar que muitos termos filosóficos não tinham significado e que muitos

problemas filosóficos eram gerados por falta de clareza terminológica. Como críticas imputam a ele certa

redução do conceito de ação a um modo muito instrumentalista, a ideia de que a consciência se encontra

orientada para o momento presente e a um alto grau de generalidade do modelo não permitindo a distinção

entre agente e objeto.

Vejamos na próxima seção como a Escola de Chicago trabalha com as influências do pensamento

pragmático, e qual a repercussão, a importância e o papel dele nos métodos, estudos e nas teorias sociais

desenvolvidas.

A práxis da Escola de Chicago

No período compreendido entre os anos de 1912 e 1922, o Departamento de Sociologia da

Universidade de Chicago foi caracterizado, segundo Mário Eufrásio (2008), por uma série de propostas

de pesquisas, por um conjunto de linhas de interesse, de orientações teóricas e linhas de investigação que

se concentraram nos estudos da sociologia urbana e do imigrante, nas relações raciais e no problema das

populações negras nos Estados Unidos. Os pesquisadores desse departamento e suas produções entraram

posteriormente para o rol das tradições sociológicas, como os criadores da “Escola de Chicago”, termo

cunhado por Luther Bernard somente nos 1930 (COULON, 1995).

Em termos práticos, a preocupação dos pais fundadores da escola sociológica de Chicago estava

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em “emphasized sciense and the importance of understanding social problems in terms of the process and

forces that produce them” (BULMER, 1984, p.89).

Durante 37 anos, trabalharam juntos profissionais que estavam interessados pelos temas e assuntos

da sociedade moderna e contemporânea, além das sociedades tribais e tradicionais. Grande parte dessa

preocupação adveio da influência do pensamento social alemão de Georg Simmel que destacou que os

conteúdos da vida humana guardam estreita relação com a vida social, e que a realidade não pode ser

apreendida em sua imediaticidade (FRANÇA, 2006). No fundo, Simmel buscava um conceito de sociedade

que não a reduzisse a um mero agregado de indivíduos, mas que também não a tornasse uma entidade

transcendente em relação aos sujeitos. A identificação da sociedade e das relações recíprocas conduz ao

estudo das relações sociais pelas quais os indivíduos e os grupos sociais de um determinado território se

comprometem entre si (RIUTORT, 2008). Essa noção será exaustivamente explorada pelos pesquisadores

da Escola de Chicago.

As condições da sociedade americana do início da década de 1890, na opinião de Hans Boas, fizeram

com que o pragmatismo fosse transformado em sociologia. A rápida industrialização da nação, os elevados

contingentes de imigrantes que lá chegavam mudaram a estrutura de classe da sociedade americana. Até

a Primeira Guerra Mundial, o pensamento social nos Estados Unidos esteve voltado para o estudo dos

“problemas sociais”, estes entendidos como: caridade pública, recuperação de pessoas “desencaminhadas”,

questões ligadas à economia doméstica, delinquência, falta de moradias. Posteriormente, os pesquisadores

norte-americanos focaram-se nas investigações sobre o crescimento das camadas populares marginalizadas

e nos aspectos patológicos da sociedade, que o ideário religioso protestante via apenas sob o prisma das

condições de saúde físicas e mentais e de probidade moral. Essa trajetória levou a introduzir, nos estudos

sociológicos nos Estados Unidos, uma disciplina voltada para a ação e a reforma social, e a consolidar os

múltiplos ferramentais utilizados pela Escola de Chicago para realizar seus trabalhos de campo.

O departamento de Sociologia criado por Albion Small, em 1982, em Chicago, permaneceu na

atmosfera intelectual do século XIX por quase duas décadas. Apesar do departamento também congregar

1 Destino da viagem formado por um conjunto de atrativos (município, estado ou país) designado como o destino dos turistas, ou onde estes são recepcionados.

Ao se realizar-se progressivamente, a sociedade indica sempre que os indivíduos estão ligados por influências e determinações recíprocas. E consequentemente, ela é alguma coisa de funcional, algo que os indivíduos ao mesmo tempo fazem e sofrem. Contudo, devido a sua característica fundamental, não se deveria falar em sociedade, mas sim de socialização. A “sociedade”, neste caso, seria apenas o nome dado a um conjunto de indivíduos, ligados entre si por ações recíprocas [...] (SIMMEL,1918 apud RIUTORT, 2008, p. 353).

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6 Em 1925 Park inaugura o campo da sociologia urbana com a publicação da obra “The city: suggestions for the study of human nature in urban environment”7 Vide PIERSON, Donald. Teoria e pesquisa em sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1965.

antropólogos, por lá passaram poucos deles. Os mais conhecidos foram Ralph Linton, Fay Cooper-Cole,

Edward Sapir e Robert Redfield (EUFRÁSIO, 1995). No entanto, o modo antropológico de fazer pesquisa

parece ter deixado importantes marcas nas gerações iniciais de Chicago. Em 1929, com a criação do

novo prédio que reunia os departamentos de ciências sociais foi criado um departamento de antropologia

autônomo. O desejo fundamental de Small era criar uma sociologia acadêmica mais sensível às questões

de natureza social e moral, e de fazer de Chicago o primeiro departamento de Sociologia do mundo de alto

padrão em graduação e pós-graduação.

A vontade de construir uma Sociologia própria nos Estados Unidos, diferentemente das teorizações

européias, muito mais focada nos trabalhos empíricos do que na construção de grandes teorias é, na opinião

de Howard Becker, um dos grandes méritos da escola de Chicago. Isso fez de Chicago uma escola de

atividade, um local onde, independentemente de todos compartilharem as mesmas ideias, o que de fato

importava era que todos trabalhavam juntos (BECKER, 1996).

Os trabalhos de pesquisa encontraram em Robert Erza Park o estímulo inicial6. Assim que chegou

a Chicago, Park escreveu um texto apontando que a cidade poderia ser um grande laboratório de pesquisa

social. Logo em seguida, passou a buscar estudantes interessados em sair a campo. Park influenciou pelo

menos duas gerações de estudantes de Chicago. Seu método de pesquisa não era predominantemente

qualitativo ou quantitativo. Seu ecletismo no modo de fazer pesquisa se materializou na concepção de que o

espaço físico, material, refletia o espaço social. Esse pensamento, essa metáfora, levou ao desenvolvimento

da noção de ecologia humana7. Valendo-se do modelo de Charles Darwin de seleção natural, ele resolve

elaborar a hipótese segundo a qual o meio no qual os indivíduos e grupos evoluem exerce influência sobre

seu comportamento.

Em campo, Park e seus alunos procuravam entender como os diferentes grupos sociais se espalhavam pela

cidade, como se adaptavam as condições sociais existentes e como coexistiam uns com os outros em mesmos

espaços. Em última instância, Park e seus alunos nos trabalhos de campo procuraram descrever a posição

particular dos indivíduos e dos grupos na sociedade. Os resultados dos levantamentos eram sumarizados

em mapas que mostravam as áreas e regiões da cidade de Chicago habitadas pelas diferentes populações

de imigrantes, suas atividades econômicas, e áreas de conflito. Porções do território onde determinadas

populações se separavam das outras foram caracterizadas por Park como regiões morais.

Em paralelo aos estudos empíricos de Park, Willian Isaac Thomas foi outro importante expoente

que se dedicou mais aos trabalhos teóricos. Seu pensamento foi influenciado pelas idéias de John Dewey,

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de George Herbert Mead e por Charles Horton Cooley, que notadamente assinalaram o papel exercido

pelos grupos primários na formação da identidade social. Thomas desenvolve a noção de desorganização

social para se referir à ruptura da influência das regras de comportamento entre os membros de um grupo.

A desorganização social marca um período de desligamento progressivo do grupo primário, sem que ainda

se possa falar em transição para outro grupo.

A definição de situação talvez seja o mais importante conceito formulado por William Thomas. O

chamado “teorema de Thomas”8 diz respeito à definição da situação e é definido por ele como a fase de

exame e de deliberação que precede uma conduta autodeterminada. Thomas está preocupado com a maneira

pela qual o indivíduo, a partir de uma visão da realidade, é levado a mudar seu comportamento, e quais as

conseqüências disso. Essa interrogação de natureza teórica levantada por Thomas diz respeito às crenças

individuais e coletivas no âmbito das quais os indivíduos estão inseridos e sobre o papel que estas podem

produzir sobre a própria realidade. Essa noção acaba ensejando uma etapa vital da vida em sociedade uma

vez que coloca nas mãos do indivíduo a escolha por linhas de ações a serem seguidas. Esse “cálculo” é feito

com base nas múltiplas possibilidades existentes.

Dentre os inúmeros expoentes da Escola de Chicago, Park e Thomas foram os representantes da

primeira geração que definiram e moldaram os contornos, o modus operandis de investigação social, e grande

parte do pensamento social da escola. Com William Thomas, o pensamento social de Chicago ficou marcado

por um caráter cultural manifestado nos hábitos e nos comportamento dos indivíduos. Metodologicamente a

contribuição desse raciocínio foi reconstruir a dinâmica da resposta subjetiva ligada aos problemas da ação.

Com Robert Park, o comportamento coletivo passou a ser o objeto da sociologia e não mais o fato social

como definido por Durkheim. No entanto, a ação individual não foi excluída dos domínios da sociologia.

Conforme a concepção de Park, ela tem de ser vista como algo coletivamente construído em sua orientação.

Nessa visão, fica bastante evidente que a sociedade não se apresenta ao homem como um meio de repressão

e de coerção, ela também possui uma dimensão de libertação do eu de cada um de nós. Isso será mais

facilmente compreendido como a formulação do interacionismo simbólico que veremos a seguir.

Interacionismo simbólico: o fruto da segunda geração de Chicago

O interacionismo simbólico foi teorizado fundamentalmente por Herbert George Blumer e se

inscreveu no ambiente da sociologia norte-americana como uma doutrina oposta a outros paradigmas em

vigor após 1945. Até meados dos anos 1960, os promotores dessa corrente de pensamento foram duramente

criticados por transmitir uma imagem particularmente passiva ou hiperssocializada da ação social (WRONG,

1961).8 Assim designado e popularizado pelo sociólogo americano Robert Merton.

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A relação entre teoria e pesquisa empírica nas ciências sociais tornou-se objeto de grande interesse

para Blumer, indo fortemente de encontro à tradição em voga à época da pesquisa descritiva. Diferentemente

de Park, os estudos de Blumer não tinham uma orientação evolucionista. Ao contrário, ele privilegiava a

inclusão de questões subjetivas nas pesquisas sociológicas. Segundo Blumer (1975), a interpretação que os

indivíduos dão às suas ações está fortemente carregada pelos conteúdos simbólicos da realidade. Qualquer

que seja o ator, um indivíduo, uma família, uma escola, uma igreja, uma empresa, toda ação particular é

formada em função da situação na qual ela se situa. Isto é, a ação é concebida ou construída interpretando a

situação. O ator social deve necessariamente identificar os elementos que deve levar em consideração nesse

processo.

A análise da sociedade nessa perspectiva parte do estudo do comportamento do indivíduo, mas

se distingue do individualismo metodológico9 na medida em que destaca não a busca do interesse, mas

a dimensão cognitiva da ação e os significados que os indivíduos conferem a essa ação. Nesse sentido,

as interpretações da realidade são estreitamente dependentes das situações nas quais os indivíduos estão

imersos, e no modo como interagem uns com os outros. Para Blumer, diferentemente de Parsons, não

existiria eficácia na aplicação das normas sociais fora de determinados contextos concretos, pois sendo

assim, elas não seriam objeto de interpretações por parte dos atores em situação. O ponto central para

os interacionistas simbólicos está na margem de manobra que os indivíduos dispõem (agency) no exato

momento em que estão vivenciando determinada situação.

Surge com o interacionismo simbólico uma nova concepção teórica em sociologia que se afasta

diametralmente do funcionalismo, pois coloca a ação social como algo intrínseco ao indivíduo, e transforma

a interação em objeto da sociologia. A partir de então, o conceito de interação pode dar lugar a análises

de grandeza micro ou macrossociológicas, ainda que, frequentemente, os autores dessa corrente tenham

preferido observar pequenos grupos de indivíduos nessas situações.

Diferentemente dos funcionalistas e estruturalistas que reservavam lugar de destaque ao conceito

de ordem social no estudo da vida em sociedade, para os interacionistas ela é vista como frágil e, em certos

casos, até como precária. A ordem social está assentada agora nas interações entre os indivíduos e no modo

como cada um desempenha seu papel social. Ela é uma espécie de ordem negociada, fruto não da imposição

ou da coerção de fatores externos, mas produto de uma mediação entre sujeitos.

Nos processos de interação entre indivíduos do tipo frente a frente é que a ordem social manifesta

suas implicações por meio dos gestos e contatos costumeiros que realizamos. Na obra “A representação do

9 Vide uma discussão mais elaborada sobre o conceito consulte BOTTOMORE, T. &OUTHWAITE, W. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

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eu na vida cotidiana”, Erving Goffman (1985, p.11-12) irá destacar:

É preciso, então, presumir, que nas interações cotidianas existam formas de se evitar os erros de

interpretação e os defeitos nos papéis. Para isso, é necessário estabelecer regras ou rituais que “enquadrem”

a ação. Estes, por sua vez, se configuram nos ritos de apresentação (saudações, cumprimentos, convites, etc)

que tem por objetivo informar ao outro sobre a intencionalidade de nossa ação. Quando um sujeito interpreta

um papel ele almeja que seus parceiros o levem a sério. Goffman vai mais a fundo dizendo ser necessário

muitas vezes examinar em que medida o próprio ator crê naquele papel que ele está desempenhando. Em

outras palavras, ele está tentando sublinhar que um ator jamais se confunde totalmente com o papel que

desempenha porque ele possui capacidade de reflexão sobre suas ações. Na vida social, em sociedade,

o sujeito está quase que permanentemente em representação. Aqueles que experimentam dificuldades

para desempenhar seu papel correm o risco de ser considerados desviantes da norma e acabarem como

estigmatizados. Esse indivíduo aprende desde cedo a controlar parte significativa da informação sobre sua

própria identidade.

Para Michel Lallement (2008), Goffman pensa as relações entres os indivíduos conforme a pauta

do sagrado e do ritual. O conjunto das relações entre os atores sociais é regulado por ritos e estes organizam

a coerência da ação. A relação social de base, que nada mais é do que a interação, no mundo social, é

bastante vulnerável. No final das contas, a interação é sempre uma aposta de risco, em função do indivíduo

nunca ter realmente certeza de como será interpretado e recepcionado pelo outro. Em termos concretos, os

homens vivem com base em hipóteses.

A ligação entre um evento, uma interação e seu pano de fundo físico e social faz com que o

sentido dos objetos seja elaborado e particularizado pelos contextos em que eles aparecem. Essa idéia se

tornou pelas mãos de Harold Garfinkel um dos preceitos fundamentais da etnometodologia, que busca

enfatizar o caráter ativo racional e cognitivo da conduta humana, e também entender como os agentes

[...] Durante o período em que o indivíduo está na presença imediata dos outros, podem ocorrer poucas coisas que dêem diretamente a estes a informação conclusiva de que precisarão para dirigir inteligentemente sua própria atividade. Muitos fatos decisivos estão além do tempo e do lugar de interação, ou dissimulados nela. Por exemplo, as atividades “verdadeiras” ou “reais”, as crenças, as emoções do indivíduo só podem ser verificadas indiretamente, através de confissões ou do que parece ser um comportamento expressivo involuntário. Igualmente, se o indivíduo oferece a outros um produto ou presta um serviço, eles freqüentemente acharão que durante a interação não haverá tempo nem lugar imediatamente disponível para apreciar o prato no qual a prova pode ser encontrada. Serão forçados a aceitar alguns conhecimentos como sinais convencionais ou naturais de algo não diretamente acessível aos sentidos. Usando palavras de Ichheiser10, o indivíduo terá de agir de tal modo que, com ou sem intenção, expresse a si mesmo, e os outros por sua vez terão de ser de algum modo impressionados por ele.

10 Nota conforme o original. Gustav Ichheiser, “Misunderstanding in Human Relations”, suplemento do The American Journal of Sociology, LV (setembro de 1949), p.6-7.

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sociais compartilham o conhecimento. Nessa concepção, os etnometodólogos se interessam pelas ações

mais corriqueiras da vida cotidiana, pois elas contêm as propriedades de indexicalidade, de reflexividade

e accountability (GARFINKEL, 1967) que conferem o grande dinamismo da vida em sociedade.

Com o interacionismo simbólico, o caráter determinista do sistema social foi superado e foi

reservado um lugar especial para a interação dos membros em sociedade. O indivíduo, antes isolado,

passível de influência por parte das inúmeras instituições sociais, agora, juntamente com outros, interage

e elabora suas ações segundo suas motivações e interesses, e interpreta a realidade ao seu redor.

Considerações finais

Por cerca de 40 anos, até meados de 1930, a escola sociológica de Chicago deteve, em termos teóricos, a

hegemonia absoluta na sociologia americana. Herdeira da história recente da disciplina em terras norte-

americanas, essa escola preconizou por todo esse período um engajamento moral de seus pesquisadores e

de seus estudos, com vistas a ajudar a sociedade a trilhar rumos mais promissores. Indiscutivelmente, essa

é uma característica oriunda da forte influência da doutrina pragmática sobre a forma de se fazer ciência

nos Estados Unidos, que se manifestou claramente nas pesquisas da primeira geração de Chicago na busca

por práticas (métodos, técnicas, recortes metodológicos) que permitissem efetivamente captar a concepção

de um objeto (problema social).

Assumindo muitas vezes contornos funcionalistas, tendo como o centro de suas preocupações as

conseqüências de um dado conjunto de fenômenos empíricos, e não suas causas, o pragmatismo da primeira

geração, que segundo alguns teóricos restringia a totalidade da ação e as condicionava ao meio social, foi

gradativamente reformulado por uma concepção que dava maior ênfase à ligação entre os indivíduos e os

grupos e os modos de interação entre eles. Para esse ramo da sociologia norte-americana, o interacionismo

simbólico, as relações sociais não surgem como determinadas, ao contrário, são abertas e dependentes das

relações entre indivíduo e indivíduo, e entre indivíduo e grupos.

A preocupação pela qual um sujeito a partir de uma determinada visão da realidade, ou de um

modo de interação com esta, muda seu comportamento, passa a ser o cerne da teorização social da segunda

geração da escola. A partir de então, o pensamento sociológico passa a pensar as escolhas individuais

pelas ações a serem empreendidas, e não mais como determinadas ou condicionadas pelo meio social ou

pelas estruturas sociais. O elemento subjetivo é, então, considerado um elemento constitutivo da ação, e a

interpretação das ações é sempre eivada dos conteúdos simbólicos da realidade e subjacentes a ela.

Em termos comparativos, no estruturalismo, as ações conscientes dos indivíduos e grupos

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BECKER, Haword. Conferência a escola de Chicago. In: Mana 2(2), 1996, pp. 177-188.

BLUMER, Herbert. Symbolic interacionismo: perspective and method. Chicago: The University of

Chicago Press, 1975.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

sociais são excluídas da análise e suas próprias proposições explanatórias são concebidas em termos de

causalidades estruturais. O indivíduo desaparece na análise estrutural, embora de forma diferente que na

teoria durkheimiana. O nexo nessa corrente de pensamento está entre a noção de estrutura e a de coerência

social. Não existe uma preocupação com a apreensão imediata do mundo e nem com o processo histórico.

As bases do estruturalismo evidenciam uma espécie de ordem oculta que estrutura nosso inconsciente e

que procura explicar as inter-relações através das quais o significado é produzido dentro de um ambiente

cultural.

No funcionalismo ou na “teoria do consenso”, como alguns o designaram, a sociedade forma um

todo cujas partes desempenham uma função necessária ao equilíbrio de todo o conjunto. Os indivíduos

são uma espécie de produto da estrutura social, estando plenamente inseridos nela e garantindo a ela

solidariedade e estabilidade. Essas duas correntes de pensamento, são, pela Escola de Chicago, criticadas

e uma nova forma de pensar o indivíduo e a sociedade é formulada por seus expoentes.

Em síntese, é possível dizer que a Escola de Chicago foi capaz de dotar a ação humana de

significado ou de dar espaço para análise do sentido da ação humana num contexto social específico.

Mesmo num primeiro momento, em que as pesquisas e estudos continham muitos elementos do

pensamento evolucionista, positivista e determinista dos teóricos europeus, ao escolher a cidade como

um de seus laboratórios privilegiados de estudo, já ficava evidente a intencionalidade dos estudiosos de

Chicago em “significar” ou “pragmatizar” suas ações e pensamentos objetivando promover benefícios à

sociedade. Nesse sentido, a compreensão do sentido da ação na Escola de Chicago e do Interacionismo

simbólico distancia-se da sociologia compreensiva de Weber, que pretende compreender esse sentido

como um dos fundamentos de uma ação tipificada.

Com o acúmulo gerado por inúmeras pesquisas sobre “patologias sociais” e percebendo que explicar

os fenômenos sociais de fora para dentro já não mais fazia sentido, Chicago, por meio do interacionismo

simbólico, deu talvez sua maior contribuição à teoria social. A clássica dicotomia indivíduo e sociedade,

inaugurada pelo pensamento de Durkheim e reforçada pelos funcionalistas das gerações subseqüentes da

sociologia e da antropologia, dava lugar agora à construção de uma microssociologia na qual o papel do

atores sociais e suas relações são os elementos constituintes da sociedade. Em suma, os indivíduos não

sofrem os fatos sociais, ao contrário, não param de produzi-los.

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29

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Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

PALAVRAS-CHAVES Educação do Campo, sustentabilidade e ambiente.

KEY-WORDS Agrarian Education, sustainability, environment.

EDUCAÇÃO DO CAMPO: POR OUTRA SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL

AGRARIAN EDUCATION: BY OTHER ENVIRONMENTAL SUSTAINABILITY

Rodrigo da Costa Caetano 1 Raquel Chaffin Cezario2 David Luiz Mendonça Wigg3

1 Doutor em Geografia, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); E-mail: [email protected]; 2 Bacharel em Ciências Sociais e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais (UENF); E-mail: [email protected]; 3 Técnico em Agroindústria e graduando em Agronomia (UENF) - E-mail: [email protected].

Neste artigo procuramos esclarecer que a educação do campo é uma importante vertente da educação ambiental, entendida como totalidade em termos de escalas e processos, nos quais o homem é parte constituinte. A Educação do Campo é compreendida como um processo político-educativo essencial para o desenvolvimento do campo, espaço de vida de sujeitos excluídos historicamente. A agroecologia é fundamental para dar sustentabilidade à referida educação, pois pretende contribuir com alternativas teórico-conceituais, metodológicas e transdisciplinares para conscientizar a população rural e garantir-lhes os meios para produzir, exercer a cidadania e, dessa forma, participar de um novo projeto de nação.

RES

UM

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In this paper we seek to clarify that Agrarian Education is an important way of environmental education, understood as a totality in terms of scales and processes in which the man is a constituent part. The Agrarian Education is understood as a process political-education essential to the development of the field, living space of excluded subjects historically. Agroecology is fundamental to confer sustainability of education, it aims to contribute with alternatives theoretical and conceptual, methodological and transdisciplinary to conscious the rural population and provide them the means to produce, exercise of citizenship and participate of a new project nation.

ABS

TRA

CT

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31

Introdução

Nas últimas décadas, os debates acerca da sustentabilidade socioambiental brasileira têm marcado

as agendas políticas, do governo federal às prefeituras mais longínquas, com as mais diversas demandas

empresariais e, como contraponto, sociais. Organizações não Governamentais (ONGs), movimentos sociais

organizados, sindicatos, entre tantos agentes, buscam outro ordenamento ambiental, ou mais espaços nos

foros de decisão político-governamentais.

Muitas audiências públicas são organizadas por todo o país para “azeitar” as transformações de

cunho socioambiental, sem, no entanto, esclarecer a abrangência dos impactos decorrentes de grandes

obras, tais como de barragens, portos e complexos industriais para as comunidades mais próximas. À

compreensão da justiça e das compensações ambientais torna-se imprescindível a educação, que por vezes,

de forma equivocada, corrobora com a dissociação entre o ser e o ambiente físico ao trabalhar o “meio

ambiente” como se não fizéssemos parte ou não fôssemos constituintes dele. Parece-nos que, da maneira

aludida, o pleonasmo “meio ambiente” está para além da humanidade, porquanto se lança o olhar de fora,

como algo à distância na paisagem geográfica clássica, ou seja, mantendo distância na percepção e na

apreensão dos fenômenos para com o objeto.

A questão se aprofunda quando pensamos nas especificidades educacionais de cada ambiente

inserido em identidades territoriais próprias, a exemplo da Educação do Campo. Na crise dos paradigmas

ambientais, instaurados na contemporaneidade, os olhares são múltiplos, bem como são diferenciadas as

responsabilidades pelas dinâmicas de exploração dos espaços, e até mesmo as conseqüências dos impactos

ambientais não são compartilhadas por todos com magnitudes equânimes.

A educação ambiental também visa esclarecer o processo de transformação da natureza pelo trabalho

atrelado aos avanços técnicos do modo de produção capitalista, que se desenvolve no espaço geográfico

com dimensões desiguais e excludentes. Nesse sentido, desperta a análise crítica dos educandos, cada qual

no contexto sócioespacial pertinente, sem perder a noção de totalidade dos processos ambientais em seus

vínculos políticos – econômicos e suas interações rurais-urbanas.

Portanto, far-se-á necessária uma educação ambiental comprometida com as condições do meio

local, seguindo uma seqüência menos hierárquica (regional – nacional – mundial) do que propositalmente

intencional, visto que a escala geográfica perpassa limites e incorpora a opção da escolha para dar referências

cotidianas aos alunos, significados ou significâncias aos conteúdos programáticos trabalhados por analogia

à vida.

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32

Independente do viés teórico-metodológico inerente às correntes ambientalistas, a educação que

se propõe ambiental deve posicionar-se frente ao quadro de insustentabilidade ambiental e inquirir sobre

as expectativas e prerrogativas dos estudos socioespaciais, desmitificando o desenvolvimento sustentável

propagado ao questionar para quem este ou aquele projeto serve, enfim, o que a sustentabilidade tem

sustentado senão o próprio sistema capitalista - “globalitarista”, segundo o geógrafo Milton Santos.

A educação ambiental requer uma abordagem sistêmica, pois não se pode estudar a crise do modelo

energético, preconizando as alternativas renováveis, ou tentar compreender a (in)segurança alimentar e a

fome, sem explicar a histórica concentração fundiária que reverbera na excludente estrutura agrária e no

que representa a propriedade (e a luta pela terra) no Brasil.

O meio rural brasileiro, bastante caracterizado pelas relações patrimonialistas e por variadas

manifestações anacrônicas, tem sido ordenado territorialmente privilegiando os segmentos da elite

brasileira em consonância com os interesses do capital internacional, das velhas oligarquias às corporações

em rede do agronegócio na esteira modernização conservadora, em detrimento dos povos do campo e dos

saberes “vernaculares” da terra.

A Educação do Campo foi negligenciada politicamente, uma vez que a educação rural4, fomentada

a partir do governo Vargas, não coloca os sujeitos do campo na situação de protagonistas sociais; os

currículos não traduzem as igualdades de oportunidades e a perspectiva emancipatória, deixando de

contemplar os etos comunitários e a construção dos degraus cívicos a galgar para a conquista plena da

cidadania. Entrementes, a atonia cívica tradicional do meio rural, tão estereotipada em textos, prosas, versos

e alimentada pelo “descaso” político-educacional, contraditoriamente, reverte-se em inconformismo e

reivindicações à medida que o recrudescimento da “desterritorialização” do pequeno produtor (também

referido como camponês) torna a sua inclusão marginal insustentável.

Demandas da Educação do Campo

A Educação do Campo “insurge” das demandas dos movimentos camponeses na construção de

uma política educacional para os assentamentos da Reforma Agrária. Por conta dessa demanda foram

4 Educação rural e Educação do Campo não são palavras sinônimas. A primeira é reprodutora do modelo conservador, no qual a expansão do agronegócio é o principal objetivo. Assim sendo os trabalhadores rurais seguem os intentos do grande capital e enquadram-se no aniquilamento gradual das suas práticas tradicionais. Além disso, ela reflete a precariedade de condições de seu público-alvo, com recursos pedagógicos escassos e estrutura física inadequada ou inexistente. O novo paradigma da Educação do Campo diferencia-se da educação rural por instigar as práticas sociais dos sujeitos do campo, invertendo o processo de imposição curricular urbano-rural, instigando a recriação de saberes e sabores a partir da produção de alimentos e de culturas que constituem a ressignificação do rural e a identidade territorial como espaço da vida.

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33

elaborados o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e a Coordenação Geral de

Educação do Campo. A Educação na Reforma Agrária se refere às políticas educacionais que se dirigem

para o desenvolvimento dos assentamentos rurais e, sob essa perspectiva, ela se constitui como parte da

Educação do Campo, compreendida como um processo político-educativo essencial para o desenvolvimento

do campo.

A especificidade da Educação do Campo se deve ao fato de sua permanente associação com as

questões dos saberes da terra e da identidade territorial na qual se enraíza. Deve-se ter em mente que o

campo é um espaço de produção e reprodução da vida, do trabalho, de novas relações com a natureza, da

produção e da cultura. A Educação do Campo, tal como a Educação Popular5, tem como objetivo fornecer

condições para que o sujeito participe do processo de produção do conhecimento, reja a própria vida, e

edifique os alicerces de um novo projeto de nação.

De acordo com Fernandes (2006), o campo pode ser pensado como território ou como setor da

economia. Pensar o campo como território é compreendê-lo como condição de vida, ou como uma espécie

de espaço geográfico produzido por intermédio das relações sociais, nos movimentos do trabalho, da

transformação da natureza e da artificialidade. O campo está inserido na contemporaneidade como meio

técnico-científico de construção do conhecimento e de produção de mercadorias; portanto, constitui-se

econômico e informacional. A educação não existe fora do território, assim como a cultura, a economia e

as demais dimensões sociais...

Ao se compreender o campo como um território6, a educação precisa ser pensada para o

desenvolvimento dos produtores de origem familiar, sem a lógica da exploração do homem e da

degradação ambiental para o lucro a qualquer custo. Os territórios dos sujeitos do campo7, designados

como camponeses por alguns autores, e do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir de

5 O ímpeto da Educação Popular emerge ao longo da Ditadura Militar (PALUDO, 2001); não por acaso Paulo Freire (2006) a associava com a prática eficaz da liberdade (educação libertadora) a partir da pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987). A educação popular não deve ser confundida com educação do povo (aqui foge do sentido antropológico, ou da ideia de sociedade civil organizada), pois se direciona aos interesses das camadas populares, às suas necessidades enquanto indivíduos elaboradores de sua própria cultura. “Talvez uma característica definidora da Educação Popular seja exatamente essa busca de alternativas a partir de lugares sociais e espaços pedagógicos distintos, que têm em comum a existência de necessidades que levam a querer mudanças na sociedade. É uma prática pedagógica realizada num espaço de possibilidades”. (PEREIRA & ANDRADE, 2008, p. 03).

6 Haesbaert (1997, p. 42), inspirado em grandes autores, elabora uma reflexão-conceituação: “O território envolve sempre, ao mesmo tempo, mas em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos”.

7 Sujeitos do campo e camponeses (campesinato) são polissêmicos; traduzindo: ribeirinhos, caiçaras, quilombolas, seringueiros, entre outros que representam: lógica da resistência ao grande capital; racionalidade mais sustentável, luta pela terra, pequenos (propriedade) agricultores familiares.

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diferentes classes e relações sociais. Enquanto o agronegócio ordena o seu território para a produção de

mercadorias, o campesinato o dispõe para a realização de sua existência. Tal diferença pode ser observada

nas paisagens, visto que a do agronegócio é mais homogênea e a do campesinato é heterogênea, ou seja,

enquanto no agronegócio a monocultura predomina, o ideal do camponês é diversificar as plantações,

tendo como marca principal as pessoas e as culturas. Esses pólos antagônicos fazem com que a educação

possua sentidos distintos, tais quais os propósitos da Educação do Campo versus os da educação rural.

As condições da reprodução social dos sujeitos do campo, aviltadas em função do avanço do

agronegócio, ameaçam a resistência das poucas escolas do campo. Trata-se do “sequestro” das identidades

territoriais por sobreposição ou suplantação de apropriação, uso e controle de espaços produtivos. Por

outro lado, as grandes empresas do agronegócio possuem articulações com as principais universidades e

os institutos de pesquisas públicos e privados, o que acaba lhes garantindo inovações em tecnologias e,

consequentemente, altas produtividades aos mercados, com destaque para o internacional.

A educação, contudo, não pode ser regulada pelo mercado, muito menos no campo brasileiro, onde

os óbices de acessibilidade e oportunidade são maiores. Por isso a Educação do Campo como política

pública é fundamental para o campesinato, desde a formação tecnológica para os processos produtivos,

até a formação nos diversos níveis educacionais – do fundamental ao superior – para o exercício da

cidadania. A Educação do Campo é uma política social que promove o desenvolvimento dos sujeitos em

diversidades-particularidades expressas em territórios organizados por meio do trabalho familiar.

As pesquisas em Educação do Campo devem objetivar uma melhora da qualidade de vida (para

todas as populações tradicionais e para aqueles que têm migrado, recentemente, da cidade para o campo

em busca de outra lógica de sustentabilidade), contribuindo com o desenvolvimento do campo como

espaço de vida, porque não é apenas um lugar onde se planta, se produz, mas, também, é onde pessoas

vivem e constroem a sua história, uma identidade.

É importante conhecer as especificidades do campo (questões referentes ao âmbito rural já

ressignificado pelo e no contato com o urbano) para que os projetos político-pedagógicos e os currículos

para a Educação do Campo possam ir além das técnicas utilizadas no manejo do agro, contemplando as

necessidades reais e mais amplas que os sujeitos do campo enfrentam.

Cabe aqui uma breve consideração a respeito da relação entre ensino técnico para as atividades

agrícolas e a Educação do Campo para a família dos agricultores. De um modo geral, o ensino técnico

se volta mais para um modelo de desenvolvimento agrícola vigente, baseado em pacotes tecnológicos

padronizados, considerados, por muitos, insustentáveis ambientalmente.

Já na Educação do Campo, há o esforço em utilizar o paradigma da produção e dos princípios

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agroecológicos, promovendo o pensando consentâneo à justiça social, à economia solidária e às

sustentabilidades ecológicas, tendo a agricultura familiar como um de seus pilares básicos.

Explica Guterres (2006, p. 92 e 93) que a agroecologia não é condicionada apenas aos aspectos

agronômicos, pois as variáveis sociais e ecológicas ocupam grande relevância para além do que os sistemas

agrários, normalmente, convencionam. A agroecologia - enfoque teórico-metodológico transdisciplinar

- surge com o paradigma ecológico, que por natureza é antitotalitário e pluralista, questionando a

subalternidade de outros saberes, a exemplo do camponês.

Os agricultores, geralmente, poucas vezes buscam técnicas alternativas e específicas para as

suas atividades agrícolas, recebendo uma orientação voltada mais para o agronegócio do que para a

típica agricultura familiar tradicional. Parece que a própria constituição da agronomia (ou engenharia

agronômica), enquanto ciência, ao sistematizar as tecnologias, hierarquizou os conhecimentos, colocando-

se em nível superior às práticas ou saberes “vernaculares” dos sujeitos do campo. O saber válido como

científico ficou restrito à academia, enquanto que o saber prático do campo foi subjugado ao primeiro

como não científico.

Assim, faz-se necessário investir em modelos de agricultura sustentável para a construção de um

desenvolvimento do campo que minimize as desigualdades e os problemas enfrentados pelo campesinato.

Portanto, a produção de pesquisas sobre a correlação entre precarização das condições de vida e (re)

produção dos diferentes sujeitos presentes no espaço rural deve contrapor ao modelo vigente, que

“corrobora” indiretamente com a perda de territórios, identidades e saberes, devido à reorganização

capitalista do espaço agrário, caracterizada pelo avanço das fronteiras agrícolas no Brasil. A Educação

do Campo assume, então, um papel na construção de políticas públicas que sejam capazes de interferir

na perpetuação desse paradigma tão contestado pelos movimentos sociais rurais, que lutam pela Reforma

Agrária.

O protagonismo desses movimentos sociais na Educação do Campo tem provocado o debate acerca

das diferentes matrizes de conhecimento, quer nos níveis de escolarização formal, quer na participação

no processo de elaboração/representação de algumas políticas públicas. Emerge, destarte, a questão das

revisões epistemológicas para o avanço na consolidação do espaço rural como um território de múltiplos

saberes e de (re)produção da vida.

Os conhecimentos práticos e teóricos dos sujeitos do campo, construídos a partir de experiências,

relações sociais, tradições históricas e visões de mundo, precisam ser levados em consideração na Educação

do Campo.

A articulação entre as diferentes áreas do saber ajuda na compreensão dos processos responsáveis

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36

pelas ausências no campo e aponta caminhos necessários à sua superação. O panorama educacional no

campo enseja políticas afirmativas capazes de dirimir as discrepâncias existentes no meio rural.

Conceber essas políticas requer o desafio de unir esforços e saberes interdisciplinares e

transdisciplinares, aproximando as dimensões da realidade dos sujeitos do campo com a ciência, aliadas ao

seu processo político-educacional para valorização da existência social desses sujeitos. É preciso respeitar

as especificidades do território em questão e o tipo de cultura que ali se reproduz para o entendimento das

manifestações de sociabilidade de cada comunidade rural.

As Diretrizes Operacionais da Educação Básica para as Escolas do Campo

Após décadas de existência, o Ministério da Educação (MEC) formalizou uma “atmosfera” para

coordenar as ideias que gravitam em torno de uma política nacional de Educação do Campo (MUNARIM,

2006). Isso só foi possível graças às históricas discussões dos próprios sujeitos do campo, que a cada dia

intensificam as suas reivindicações por esse espaço de protagonismo social.

Ainda hoje, difunde-se a concepção de que quase tudo o que se relaciona ao campo, em analogia ao

rural, traz consigo o estereótipo de atraso, enquanto que a cidade carrega a perspectiva do desenvolvimento

e da (pós)modernidade. Tal fato também dificulta o interesse de grande parte da sociedade em se discutir as

questões do campo e qualquer projeto ou política que o beneficie, como a Reforma Agrária e a Educação do

Campo, que não constituem prioridade nas pautas governamentais e emergem pela pressão de movimentos

e organizações sociais / sindicais.

A criação de uma Coordenação-Geral de Educação do Campo na estrutura do MEC pode ser

vista, entretanto, como um ponto de partida conquistado (uma vitória, ainda que parcial) pelas forças

populares do campo, que lutam por políticas democráticas de educação. É um longo e árduo caminho para

a implementação de políticas educacionais que transformem esse quadro de carência, proporcionando a

acessibilidade e a igualdade de oportunidades.

Um dos primeiros passos na esfera federal ao encontro das demandas dos sujeitos sociais do campo

foi a Resolução CNE/CEB nº 1, de 2002, que instituiu as “Diretrizes Operacionais da Educação Básica

para as Escolas do Campo”, significando a ampliação de um diálogo mais democrático entre o Estado e

as representações da sociedade civil no espaço da política. A citada resolução indica as responsabilidades

dos entes estatais em cumprir o direito à educação no que diz respeito às desigualdades sociais e às

diversidades culturais. (MUNARIN, 2006, p.18).

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O reconhecimento do direito à diferença e a promoção da cidadania estão presentes, norteando

as especificidades da Coordenação-Geral de Educação do Campo. Munarim (2006) descreve três eixos

estratégicos que se cruzam na prática específica da Coordenação-Geral: a construção de uma nova base

epistemológica, a construção de uma esfera pública e a ação do Estado.

O primeiro eixo busca superar a projeção do campo como o atraso da sociedade. Movimentos

e organizações sociais têm criado institutos de pesquisa e estabelecido parcerias para ações concretas

com as universidades públicas, objetivando um desenho que mobilize pessoas e instituições na busca de

definições teóricas, metodológicas e linhas de pesquisa que vinculem as problemáticas da Educação do

Campo, cujo intuito é introduzir na agenda social das instituições governamentais políticas públicas e

projetos voltados para os anseios dos sujeitos do campo.

A esfera pública adquire o sentido de espaço de interação entre Estado e sociedade, aperfeiçoando

a democratização e a participação social consciente e efetiva na construção de políticas públicas por

parte dos sujeitos do campo. Duas atividades da Coordenação-Geral de Educação do Campo podem ser

mencionadas nesse eixo estratégico: O Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPT) e os

grupos executivos estaduais de Educação do Campo, ou fóruns estaduais.

O GPT está constituído no âmbito do MEC, como uma espécie de mediador entre o referido

ministério e a sociedade civil organizada do campo, fazendo-se eficaz na proposição de alternativas e linhas

de ação a serem adotadas. Já os Comitês Estaduais de Educação do Campo são articulações no âmbito

dos estados federados, que podem realizar as suas atividades representativas nas respectivas secretarias de

educação, envolvendo, também, as estruturas municipais de educação.

O terceiro eixo estratégico abordado por Munarim (2006) é a ação do Estado, com eficiência

administrativa, na construção de políticas de Educação do Campo em prol da universalização da Educação

Básica com qualidades técnica e social. Nesse sentido, inscrevem-se como ações indispensáveis na agenda

governamental das políticas sociais para o campo: o financiamento, tendo em vista o histórico déficit de

quantidade e qualidade de ensino em relação à cidade, sem negligenciar a totalidade dialética campo-cidade;

a questão da infraestrutura e da logística, relacionadas às condições adequadas para o funcionamento de

um ambiente educativo e à acessibilidade desse meio aos alunos, professores e demais funcionários.

A questão da formação de educadores não é secundária, pois quando estão identificados com

as particularidades/realidades dos sujeitos do campo, se utilizam de metodologias e abordagens mais

significantes, porquanto muitos dos materiais didáticos produzidos só contemplam a percepção urbana,

conforme observado no trabalho com alguns livros didáticos; lembrando que nem sempre estão disponíveis

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para as escolas no meio rural brasileiro e que poucas vezes apresentam abordagens agroecológicas.

Agroecologia e Educação

A agroecologia, vertente da educação ambiental e paradigma obrigatório da Educação do Campo,

é definida por muitos autores como uma nova proposta sustentável inscrita em uma ciência em construção.

Segundo Caporal (2009, p. 16 e 17):

O conceito acima exposto nos leva a perceber que a agroecologia, devidamente inserida na

educação ambiental, revela o caminho a ser seguido na busca da transição do modelo vigente. A educação

deve estar aliada à troca de experiências, à busca pelo entendimento da dialética entre o homem e a

natureza, à inter e à transdisciplinaridade, à cultura popular, aos instrumentos da observação, da crítica,

da conscientização e da posterior ação, ao contrário do que se pratica no paradigma convencional, onde

os interesses pessoais e financeiros prevalecem sobre os demais.

É fundamental para a promoção do desenvolvimento sustentável a implementação de uma

educação com base na realidade local e que tenha como um dos pilares a agroecologia. A educação aludida

é a Educação do Campo (e no campo), que facilita a interação da escola com as famílias, garantindo a

consciência e os saberes necessários para a formação profissional, social e política, independente da

futura escolha pessoal pela agricultura ou da permanência no campo.

As escolas públicas do meio rural possuem um público alvo oriundo da agricultura familiar;

são pequenos produtores com ricas identidades territoriais que “dispensam” os conceitos adotados pelo

modelo de educação predominantemente urbano. Muitas dessas escolas estão “fechando as portas”,

dificultando ainda mais o acesso e o aprendizado das crianças, jovens e adultos que necessitam de

uma educação de qualidade perto de suas residências, e em consonância com as especificidades locais-

regionais. A transferência dessas pessoas para escolas de outras localidades ou de centros urbanos é

sacrificante, tendo em vista as péssimas condições de transporte e o tempo gasto nos deslocamentos.

O modelo mais propício para fazer acontecer a educação ambiental – agroecológica une as práticas

sociais e produtivas dos agricultores familiares aos eixos temáticos típicos da Educação do Campo

(identidade, cidadania, cultura, sistemas de produção, economia solidária, desenvolvimento sustentável,

entre outros) com a “operacionalidade” da Pedagogia da Alternância que, segundo Calvó (1999, p. 19),

“significa o conjunto dos períodos formativos que se repartem entre o meio sócio-profissional (seja na

A Agroecologia, mais do que simplesmente tratar sobre o manejo ecologicamente responsável dos recursos naturais, constitui-se em um campo do conhecimento científico que, partindo de um enfoque holístico e de uma abordagem sistêmica, pretende contribuir para que as sociedades possam redirecionar o curso alterado da coevolução social e ecológica, nas suas mais diferentes inter-relações e mútua influência.

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própria família ou na empresa) e a escola. Isto sempre dentro de uma interação educativa escola-meio”.

A metodologia da Pedagogia da Alternância (dividida temporalmente em períodos de formação

da práxis: tempo-escola e tempo-comunidade) é praticada, por exemplo, pelas Escolas Famílias Agrícolas

(EFA´s)8, implantadas a partir de 1969 no Espírito Santo, servindo de modelo de Educação do Campo para

todo país por estimularem os jovens ao protagonismo da promoção e do desenvolvimento do meio onde

vivem.

Assim como as EFA´s, as “escolas de agroecologia” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST) reconhecem a alternância, produzem conhecimentos e discutem experiências facilmente

aplicadas à realidade local, fazendo com que os filhos dos assentados da Reforma Agrária permaneçam

estudando, sem deixar de contribuir com suas famílias, colocando em prática os aprendizados adquiridos.

Um diferencial da educação baseada no método da alternância e na agroecologia é a independência relativa,

por parte das famílias dos produtores, de profissionais das universidades que são formados com o enfoque

voltado para a produção em larga escala, muitas das vezes pautando-se no sistema de monocultivo, com

mecanização pesada e utilização de agrotóxicos (pacote tecnológico), desconhecendo a real demanda da

agricultura familiar típica do campesinato.

A agroecologia promove as condições necessárias para a educação dos sujeitos do campo, porque

auspicia a indissociabilidade dos conhecimentos práticos e teóricos, o conhecimento integrado sobre

os processos de produção agrícola, o “utópico” equilíbrio biológico sem a utilização de agrotóxicos e

sementes transgênicas, bem como a conscientização a respeito das diversas consequências de seus usos

quanto à (bio)segurança alimentar e à dependência das multinacionais.

Além dos aspectos já abordados, a agroecologia preconiza menos concentração de terras, maior

oferta de alimentos, melhor distribuição de renda e empregabilidade superior (proporcionalmente por área)

em relação à agricultura convencional, fortalecendo ainda mais as sustentabilidades social, econômica

(viabilidade) e ecológica, ou seja, priorizando o ambiente em sua totalidade.

Como exemplos de Educação do Campo à ascensão do desenvolvimento regional destacam-se as

EFA’s no Espírito Santo, cujas experiências foram compartilhadas por meio de outra grande iniciativa:

a Escolinha Agroecológica em Campos dos Goytacazes - RJ, que existe desde 2005 e é promovida pela

Comissão Pastoral da Terra (CPT - Campos), tendo como parcerias o Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra (MST), a Universidade Federal Fluminense (UFF), o Grupo de Estudos Agroecológicos

Agrocrioulo, composto por alguns alunos da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), e o

movimento sindical.

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A Escolinha Agroecológica possibilita amplas trocas de vivências e opiniões entre agricultores,

professores, estudantes e agentes multiplicadores da sociedade, em busca da difusão da agroecologia nos

seus prismas, exercendo influência à inserção das temáticas ambientais - agroecológicas na região Norte

Fluminense, visto que já participaram dela mais de uma centena de pessoas, majoritariamente assentados

da Reforma Agrária.

Considerações Finais

A Educação do Campo, pautada no “ideal” agroecológico, deve ser realizada por meio de encontros

ampliados entre diversos segmentos da sociedade e em múltiplas escalas. As suas ações são norteadas pela

responsabilidade social e pelo respeito às diferenças entre os sujeitos que compõem o ambiente. Nesse

sentido, não há espaço para as dicotomizações cidade-campo e sociedade-natureza; todos somos partes

imanentes do ambiente, que para melhor ser concebido, percebido e vivido precisa da práxis educativa.

Enfim, a Educação do Campo é compreendida como um processo político-educativo essencial

para o desenvolvimento do campo; e a agroecologia tem contribuições profícuas para que as sociedades

possam redirecionar os seus esforços às questões ecológicas, por outra sustentabilidade ambiental.

CALVÓ, Pedro Puig. Introdução. In: Primeiro Seminário Internacional de Pedagogia – alternância e

desenvolvimento. 2ª Edição. Salvador, União Nacional das Escolas Família Agrícola do Brasil – UNEFAB,

1999. pp. 15-25.

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Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

ESTUDIOS SOBRE RELIGIóN EN EL PERú DEL SIGLO XXVISIóN PANORÁMICA DE LA PRODUCCIóN CIENTÍFICA

SOBRE EL TEMASTUDIES OF RELIGION IN 20TH CENTURY PERU

PANORAMIC VISION OUTLINE SCIENTIFIC PRODUCTION ON THE SUBJECTDario Paulo Barrera Rivera1

1 Universidade Metodista de São Paulo, Pós-graduação em Ciências da Religião, Curso de Ciências Sociais. E-mail: [email protected]

PALAVRAS-CHAVES Estudos de Religião, Peru, Religiões Andinas, Ciências da Religião

O presente artigo se propõe traçar uma visão panorâmica da produção científica sobre o tema religião no Peru ao longo do século XX. Trata-se de um ensaio de síntese dos estudos de religião concentrados nos campos da Antropologia, Sociologia, Etnologia e Historia. Revisão das principais publicações, desde os primeiros autores, que tentaram explicar o papel e/ou a importância das religiões no Peru no século em questão. Analisa-se, numa primeira seção, a produção pioneira dos estudos de religião no final do século XIX, seguida de balanço das publicações no decorrer do século XX dedicando especial atenção às obras de maior impacto acadêmico e contribuição ao conhecimento do tema. Encerra-se o texto com destaque para novas temáticas e perspectivas de estudo da religião nesse país no final do século em estudo. Tenta-se oferecer uma contribuição ao conhecimento da produção científica sobre o tema produzida na região Andina e frequentemente negligenciada pelos estudos de religião no Brasil.

RE

SUM

O

KEY-WORDS Studies of Religion, Peru, Religions of the Andes, Science of Religions.

The present article considers a panoramic vision outline of the scientific production on the religious topic in Peru during the 20th century. It is a summed up essay of the studies of religion concentrated on disciplines related to Anthropology, Sociology, Ethnology and History. A revision of main publications from the first authors that tried to explain the role and/or importance of Peruvian religions during the century being reviewed. In the first part we analyze the pioneer contributions appeared at the end of 19th century. The next part does a revision of 20th century books and articles with special attention to the most important texts according their academic impact. Finally we remark new subjects and recent perspectives in the Studies of Religion in Peru. We try a contribution to know academic production on the subject “religion” developed in Andeans region usually not considered for religious studies in Brazil.

AB

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1 Dejamos por fuera un tema importante que bien cabe dentro de Estudios de Religión como en el campo del Derecho o la Política: los estudios sobre La Inquisición. No los incluimos porque dada la abundancia de trabajos y la extensión del

Introducción

Brasil es un país que se destaca en América Latina por el consistente crecimiento del área

académica de “Ciencias de la religión”. En la última década, se formaron nuevas facultades de graduación

y se formaron o consolidaron nuevos programas de posgraduación en “Ciencias de la religión”. Junto a

los avances se constatan también los vacios (Camurça 2008: 41ss) y las ambigüedades o la autonomía

aún precaria (Uzarski 2005). Un importante vacío que todavía pasa desapercibido para los estudiosos

del área es la rica producción de estudios de religión en los países del área andina. Esa riqueza está

concentrada en los campos del conocimiento de la Historia, la Antropología, la Sociología y la Etnología.

La producción científica sobre el tema en esas áreas del conocimiento se destaca en los estudios sobre

el Perú. Esa producción se extiende, en las últimas dos décadas, a los otros países de la Región Andina,

como Colombia, Ecuador y Bolivia. Este texto se propone mostrar esa riqueza intelectual sobre los

estudios de religión en la región mencionada concentrándose solamente en los estudios sobre el Perú.

Intentamos con esa delimitación aprovechar mejor el espacio disponible y atender más cuidadosamente

la grande producción del tema en ese país.

Evidentemente, otras delimitaciones son necesarias para atender el ambicioso objetivo

propuesto. Aunque es una redundancia, decirlo es inevitable: no hay posibilidad ni intención de ser

exhaustivos. Nos limitamos a lo que consideramos más significativo dado su impacto en los estudios

del área y del tema. Pero eso no nos protege de las omisiones, porque con frecuencia tiene más impacto

lo que más circula o se divulga. No pocos libros han circulado primero como artículos en revistas

especializadas publicadas en inglés o francés. En esos casos sólo incluimos la versión “final” como

libro. Tomamos como criterios metodológicos los siguientes. Incluimos trabajos académicos que han

contribuido al avance del conocimiento científico de la religión en el Perú, cualquiera que sea el tema

específico tratado. No incluimos estudios propiamente teológicos o de historia eclesiástica. La última

delimitación es, necesariamente, cronológica. Lo que sería una “historia de los estudios de religión en

el Perú” comienza a principios del siglo XX y se extiende y crece a lo largo del siglo. Decidimos incluir

sólo los trabajos publicados hasta el año 1999. La razón es que la producción sobre el tema en cuestión

en la última década (2000-2011) ya suma varias decenas y haría imposible un trato mínimo adecuado de

los mismos. Los textos publicados en esa última década sólo serán citados o comentados, rápidamente,

cuando el autor o autora haya publicado una obra dentro del período en estudio y retomado la cuestión

con mayor profundidad e impacto posteriormente. Eso con el objetivo de poder informar parte de la

producción que no está siendo considerada en este trabajo1.

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período merecería un trato aparte. Vale la pena recordar, rápidamente, que la “Santa Inquisición” se instaló poco después de la conquista y tuvo en el Perú uno de sus principales centros. Los estudios más antiguos se remontan al siglo XIX con Anales de la Inquisición de Lima de Ricardo Palma (1863) y a lo largo del siglo XX se han indo complementando y multiplicando. Un trabajo de fines del siglo XX sobre el tema focalizando los extranjeros que fueron víctimas de la inquisición es Jean-Pierre Tardieu, L´Inquisition de Lima et les hérétiques étrangers (XVIe-XVIIe siècles), Paris, L´Harmattan, 1995. Un estudio más reciente busca los orígenes coloniales inquisitoriales del “mundo civilizado”: Irene Silverblatt, Modern Inquisitions. Peru and the Colonial Origins of the Civilized World, Duke, Duke University Press, 2004. El otro tema no abordado aquí, que no debe pasar desapercibido para el lector, es la participación de líderes católicos en los movimientos insurgentes contra la Colonización española desde el siglo XVIII. La Historia no se ha ocupado específicamente del papel de los religiosos en esos movimientos, pero lo ha constatado y documentado. Véase, por ejemplo: Stern Steve (comp) Resistencia, rebelión y conciencia campesina en Los Andes. Siglos XVIII al XX, Lima, Instituto de estudios Peruanos, 1987. También O’Phelan Scarlett, Un Siglo de rebeliones anticoloniales. Perú y Bolivia, 1700-1783, Cusco, Centro de Estudios Rurales Andinos, 1998.

Decidimos considerar ese extenso período, prácticamente todo un siglo, porque este texto tiene

como objetivo principal un análisis sintético con propósitos informativos sobre la rica producción sobre

el tema al otro lado de la Cordillera de los Andes y que pocas veces es tomada en consideración en los

estudios de religión en Brasil. Nuestros comentarios a los textos siguen la secuencia de su publicación

sin quedarnos presos al rigor cronológico. Proponemos una clasificación que sigue la secuencia de las

publicaciones pero no es exactamente cronológica. Cuando hay temas y perspectivas en común optamos

por abordarlas en un mismo ítem.

El “Indigenismo” y la crítica a la Iglesia Católica

‘Durante las últimas décadas del siglo XIX y las primeras del XX un importante grupo de

intelectuales, políticos y escritores desarrolló y divulgó un pensamiento anticlerical que puede ser

considerado precursor del estudio crítico del papel de la religión en la sociedad peruana. En el centro de

ese pensamiento estaba “el problema del indio” maltratado por las élites sociales entre ellas la Iglesia

Católica. Puede decirse, sin duda, que se trataba de un problema nacional, dada la importancia demográfica

y cultural de la población indígena. Ese pensamiento, que luego sería llamado de “Indigenista”, se

caracterizaba por dos elementos. Un discurso laicista y modernista que criticaba la íntima relación entre

la Iglesia Católica y el poder político. Por otro lado, una comprensión paternalista de la realidad del indio

maltratado. No veía en el indio un sujeto capaz de encontrar caminos para superar o vencer la opresión, al

mismo tiempo, económica, política y cultural. Lo consideraba apenas objeto de compasión que había que

defender. De cualquier forma, se trataba de los primeros intentos por comprender las diferencias sociales

y políticas en las que las masas indígenas llevaban la peor parte. Debe recordarse que a inicios del siglo

XIX el Perú, como otras colonias de España, habían conseguido su independencia después de tres siglos

de colonización. En ese largo período, religiones y culturas nativas fueron perseguidas por el colonialista

español y cristiano. La religión oficial del Incanato sucumbió con la conquista española. Culturas y

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2La cuestión del “indigenismo” há sido objeto de muchos otros estúdios a lo largo del siglo XX. Algunos son balances de esa amplia bibliografia como “De los indigenismos en el Perú” (William Rowe in Márgenes, Año XI, n. 16, 1998); otros son análisis del “indigenismo” en la región, es decir, incluyendo otros países andinos, como Brooke Larson, Indígenas, élites y Estado en la formación de las Repúblicas andinas, Lima, PUC – IEP, 2002)

religiones que subsistían al poder Inca sobrevivieron. Grande parte de los estudios de religión en el Perú

tienen que ver con la dinámica entre las tentativas de imponer una religión extraña y las respuestas de

adaptación, asimilación, resistencia (a veces las tres cosas simultáneamente) y revolución de poblaciones

nativas. Los estudios más recientes de la religión en el Perú aún pasan por esa gran cuestión, como

veremos más adelante.

Después de alrededor de 80 años de independencia de la colonización española la población

indígena todavía era tratada como esclava. Al finalizar el siglo XIX, en el intento por construir la

República, las elites políticas e intelectuales se confrontan, “descubren”, se resignan a aceptar, que no

hay forma de pensar el futuro del país sin tomar en cuenta a lo que se convino en llamar “el indio”. La

importancia de lo autóctono se hizo más nítida por causa de la derrota en la guerra con Chile que duró de

1879 a 1883 (Lauer 1997; Larson 2002; Rowe1998). Surge un nacionalismo que no puede dejar de lado

al indio. De manera sintética ese era el clima político y social en que un conjunto de pensadores del Perú

como futuro, al expresar su comprensión del “problema indígena” se refiere también, de manera directa

o indirecta, al lugar de la religión oficial en la construcción del proyecto de nación. Son esos pensadores

y con esas preocupaciones, los que constituirían, un primer intento de crítica de la religión. En la medida

en que sus polémicos escritos colocaban sobre la mesa de debate la modernización de la sociedad y la

secularización del poder político.

Fue llamado de “Indigenismo” ese movimiento intelectual, literario y político, que publicaba sus

ensayos en las últimas décadas del siglo XIX y las primeras del XX, y tenía como tema común “el lugar

del indio en la construcción del estado-nación”. Aunque algunos de los estudios de ese período colocan

el origen del indigenismo ya a mediados del siglo XIX (Kristal 1991; Ossio 1992) es solo en la literatura

de fines de ese siglo que la cuestión “religión” adquiere importancia.2

Debe quedar claro que no tenemos en este período estudios específicos de religión. Lo que tenemos

son ensayos cuyo tema central no es religión. Sin embargo sus autores expresan una comprensión de la

religión y de su lugar en el proceso social. Destacamos apenas dos autores en los cuales la cuestión que

nos interesa se presenta más o menos recurrente: Manuel González Prada (1844-1918) y Clorinda Matto

de Turner (1854-1909). El primero nacido en Lima, la capital. La segunda era nacida en el Cuzco, en

donde residía. Los textos de Gonzáles están reunidos en 7 volúmenes publicados entre 1986 e 1989.

La comprensión sobre la religión de Clorinda Matto la tenemos en sus cuentos y novelas (Aves sin

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nido 1889, Tradiciones cuzqueñas 1955; Índole 1974; Herencia 1895). Ambos escritores representan un

período de auge del Indigenismo peruano.

Gonzáles Prada estuvo en Francia, en donde fue influenciado por ideas anarquistas y por el

pensamiento positivista. Esa marca anarquista está presente en sus ensayos críticos del poder político

y de la Iglesia Católica, y su comprensión de la religión, como veremos, es también diversa y hasta

contradictoria. De manera resumida, Gonzáles entendía que el Perú decimonónico estaba constituido por

una masa de indios serviles y otra de blancos, muchos de ellos descendientes de españoles, “incultos,

degenerados y despilfarradores”. La alternativa al problema nacional estaría en una minoría ilustrada a la

que incitaba a luchar contra la tiranía de los blancos ignorantes y estimulaba a educar a los indios. Para

González la explotación del indio está simbolizada en lo que llamó de “trinidad embrutecedora” compuesta

por el Juez, el Gobernador y el Cura; siendo que no pocas veces el Cura era también Gobernador. El

anticlericalismo de González tenía dos frentes específicos, uno era el comportamiento inmoral de algunos

curas, especialmente en relación al indio explotado y en relación a la mujer, de la que con frecuencia

abusaban y seducían aprovechándose de los espacios religiosos como el confesionario. El otro frente

era la propia Iglesia Católica a la que acusaba de contribuir a la ignorancia y servidumbre de los indios

y a la opresión y atraso de la mujer. Llamaba al catolicismo “amenaza a la civilización” afirmando que

el progreso intelectual y moral de las naciones se podía medir por la dosis de catolicismo eliminado de

sus leyes y costumbres. Al mismo tiempo, mostraba simpatía con el protestantismo, que consideraba

“evoluciona con el espíritu moderno, sin ponerse en contradicción con las verdades científicas”. Por

otro lado, es interesante encontrar en González, un razonamiento explicativo del origen y evolución de

las religiones, que nos parece bastante avanzado para su época. En “Catolicismo y ciencia” dice: “Una

religión germina en el ceno de otra, lucha contra su propia madre, vence y sube al apogeo para en seguida

declinar y ceder el campo a nuevas creencias destinadas a sufrir idéntica suerte” (Obras I: 318)

En la obra de Clorinda Matto se encuentra también la crítica al abuso de los sacerdotes católicos

contra mujeres e indios. El escenario social en donde se desarrolla la trama de la novela de Matto es

la provincia andina, territorio indígena, lugar donde el indio trabaja sin recibir salario, no tiene ningún

tipo de protección y además sufre todo tipo de abusos en manos de los curas. Mujeres son seducidas y

ultrajadas por Curas, y jóvenes se frustran al descubrir que tienen como padre común a un Sacerdote.

Tal como sería de esperar, esta escritora sufrió persecución violenta por parte de autoridades políticas y

religiosas. Fue excomulgada por la Iglesia Católica, su novela Aves sin nido fue colocada en la lista de

libros prohibidos y su imprenta saqueada, teniendo que salir del país.

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Los estudios de religión en las primeras décadas del siglo XX

Los primeros estudios con pretensión académica científica se encuentran recién al inicio del

siglo XX. Eso ha sido un hecho común en varios países de América Latina en general. Religión no era

un tema de interés para la investigación científica. Antes de esa época la religión simplemente no era

estudiada en los espacios académicos. La primera y la última palabra sobre religión la tenía siempre

la Iglesia Católica. Tres estudiosos de la realidad peruana de inicios del siglo XX ocupan lugar de

destaque en la emergencia del estudio de las religiones en el Perú. Nos referimos a Adolph Bandelier

(1840-1914), José Carlos Mariátegui (1894-1930) y a Julio C. Tello (1880-1947). Es justo mencionar

los apuntes etnográficos de Bandelier, arqueólogo y antropólogo de origen suizo en su obra The Island

of Titicaca and Koati (1910). Bandelier fue discípulo de Lewis Morgan y posteriormente profesor de

Columbia University; hizo muchos viajes y excavaciones en la región del lago Titicaca al sur del Perú

en la frontera con Bolivia. En sus notas compara datos arqueológicos, la opinión de los habitantes de

la región y la información de la literatura disponible. Sobre las prácticas religiosas y creencias de esa

región llegó a dos conclusiones interesantes: una que eran anteriores a la llegada de los españoles y que

bajo las prácticas católicas subsistían formas y prácticas religiosas ajenas al catolicismo. Esa hipótesis

sería posteriormente constatada por un sinnúmero de estudios. Ambas constataciones eran un verdadero

desmentido de la evangelización del indio, en una época en la que no se discutía el carácter católico de

ese país.3

Yendo ahora a la obra de Mariátegui, hay que decir que ella se constituye de un conjunto de

ensayos, escritos al calor de la militancia y del pensamiento revolucionario que en las primeras décadas

del siglo XX comenzaba a tomar forma en América Latina. Mariátegui piensa la religión en el Perú en

perspectiva marxista pero nada ortodoxa, llevando en cuenta aspectos históricos, sociológicos y hasta

antropológicos. El texto probablemente más polémico y más conocido de Mariátegui es 7 Ensayos de

interpretación de la realidad peruana, de 1928. Uno de los capítulos es dedicado a “la cuestión religiosa”.

Mariátegui es el primero en analizar científicamente el complejo y hasta entonces poco conocido “mundo

indígena” colocando la religión como elemento indispensable para su explicación. Por la época en que

Mariátegui escribe ya es meritorio el hecho de no limitarse a una explicación reduccionista de la religión,

cosa común en la época especialmente entre los pensadores marxistas. Desde el punto de vista de las

élites políticas y religiosas el indígena era considerado católico, eso a pesar de que ritos y creencias no

3 Bandelier estudió las culturas indígenas en México, Perú y Bolivia. Sus trabajos pioneros fueron de grande inspiración para el desarrollo posterior de la arqueología en esos países. Véase más información de la obra de Bandelier en Estuardo Nuñez “Los Viajeros de tierra adentro 1860-1900”, Journal of Inter-American Studies, v.2, n.1, Janeiro de 1960.

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cristianas habían permanecido y sobrevivido al largo y violento período de evangelización. La pregunta

por el lugar, la importancia y persistencia de formas religiosas nativas preeuropeas se convertía para

Mariátegui en cuestión necesaria para cualquier intento de explicar la realidad peruana. La realidad

mostraba que la evangelización católica no había conseguido erradicar las formas religiosas previas. Para

Mariátegui, el Evangelio era una forma europea de ver el mundo que no tuvo suceso, lo que la Iglesia

Católica consiguió fue apenas superponer el culto católico a los ritos indígenas; así “el paganismo

aborigen subsistió bajo el culto católico” (1928: 163). Además de la superposición católica a los ritos

indígenas, el análisis de Mariátegui supone una religiosidad prehispánica diversa, no homogénea. La

religión oficial del Estado Inca desapareció con la conquista y lo que sobrevivió fueron formas ancestrales

de culto de origen anterior al período Inca.

El análisis de Mariátegui tiene también el mérito de distinguir formas religiosas en función de

sus representantes o practicantes: una religión oficial inca y otras religiones no oficiales, que hoy podrían

llamarse de populares, pero con sentido y raíces profundas en la vida de los indios. De manera diferente,

la religión inca era superficial y se mantenía gracias al poder político; por eso mismo desapareció junto

con el Estado inca. La otra, la religión popular, diversa y extraoficial, Mariátegui llama de animista,

mágica y primitiva; siguiendo la terminología de Frazer en su Rama Dorada. Sin embargo, vale la pena

subrayar que Mariátegui estaba consciente de los límites del animismo como teoría para explicar a

realidad indígena andina:

Mariátegui también analiza la participación de la Iglesia Católica en la Conquista y compara el

catolicismo con el protestantismo, intentando explicar por qué el protestantismo no tendría futuro en esas

tierras. Sorprende verificar que la reflexión marxista de Mariátegui se aproxima mucho, en esta parte, a la

tesis weberiana sobre el papel del protestantismo en el desarrollo del capitalismo. Claro que Mariátegui

no cita a Weber. Apoyándose en Engels afirma que la Reforma protestante atendía a las necesidades de

la burguesía más desarrollada de la época. Considera el protestantismo “levadura espiritual del proceso

capitalista”, y a la Reforma “forjadora de armas morales de la revolución burguesa, que abrió el camino

al capitalismo” (Mariátegui 1928: 171). Pero, según Mariátegui, el protestantismo, forma moderna de

La teoría del animismo nos enseña, que los indios, como otros hombres primitivos, se sentían instintivamente inclinados a atribuir un ánima a las piedras. Esta es, ciertamente, una hipótesis respetable de la ciencia contemporánea. Pero la ciencia mata la leyenda, destruye el símbolo. Y, mientras la ciencia, mediante la clasificación del mito de los “hombres de piedra” como un simple caso de animismo, no nos ayuda a entender eficazmente el Tawantinsuyo, la leyenda o la poesía nos presentan, cuajado en ese símbolo, su sentimiento cósmico.” (“El rostro y el alma del Tawantinsuyo” in Peruanisemos al Perú, Lima, Amauta, 1970. El texto original es de 1925)

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religión, no tendría futuro en América Latina; principalmente por ser ésta una región influenciada por

el pensamiento antiimperialista que veía en las misiones protestantes formas de penetración capitalista

anglosajonas. Mariátegui es un intérprete heterodoxo da teoría marxista y esa característica surge de su

conocimiento y sensibilidad de la importancia del indio en cualquier proyecto de nación en ese país.4

El otro pionero de los estudios de la religión en el Perú es Julio César Tello. Si Mariátegui se

interesó por entender el lugar social de la religión en la cultura andina peruana contemporánea, Tello se

interesó por explicar la conformación de divinidades antiguas cuyos vestigios aún existían. Graduado

inicialmente en medicina, Tello estudió antropología en Harvard University en donde fue alumno de Franz

Boas y posteriormente en la Universidad de Berlín. Realizó investigaciones arqueológicas en diversas

regiones del Perú y se interesó profundamente por la religión de los pueblos prehispánicos. De hecho la

arqueología en el Perú comienza con las investigaciones de Tello. Sus conclusiones sobre las divinidades

antiguas se apoyan fundamentalmente en datos empíricos: iconografías en cerámica, representaciones

arquitectónicas, también en crónicas, relatos de viajeros, mitos y leyendas. Su trabajo fundador, Wiracocha

(1923), se refiere al desarrollo de una de las más importantes divinidades del antiguo Perú: “Wiracocha”.

Valiéndose de un método comparativo, lingüístico y arqueológico, analizó las representaciones religiosas

en diversos lugares y períodos, llegando a la conclusión de que el dios Wiracocha era resultado de un largo

proceso de fusiones y transformaciones anteriores al período Inca. Con esa hipótesis Tello inauguraba

una perspectiva de análisis sobre la constitución de las divinidades antiguas, que sería seguida por otros

investigadores. Tello también ensayó estudios de hechos puntuales, como por ejemplo “Wallallo” (Tello

y Miranda, 1923), en donde describe la existencia de toda una ceremonia ritual durante la limpieza de

acequia en el pueblo de Canta de la sierra limeña. Es cierto que Tello aventuró hipótesis sobre religiones

y divinidades antiguas, pero, con todo eso, sus investigaciones fundaron el estudio científico de la religión

en el Perú. Debemos, al mismo tiempo, subrayar el mérito de proponer hipótesis a partir de la observación

directa de la cultura material.

El pensamiento de Bandelier, Tello y Mariátegui constituye un segundo período en el que el interés

de los intelectuales no es simplemente la crítica de los abusos de la religión oficial sino el conocimiento

de la cultura, y de la religión como parte de ella, de los indios. El pensamiento de los dos primeros lleva

la marca fuerte del funcionalismo y del positivismo.

En el caso de Mariátegui se trata de una perspectiva marxista evolucionista. En el contexto de

una reflexión más amplia sobre el lugar del indio en el proceso de transformación de la sociedad peruana

4 Véase un ensayo sobre la religión en el pensamiento de Mariátegui en Michael Lövy “Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião” in Estudos Avançados, v.19; n. 55, São Paulo, USP, 2005

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desde el Estado Inca cita con frecuencia a Frazer (The Golden Bough). Por eso considera que “el estudio

del sentimiento religioso en la América española tiene que partir de los cultos encontrados por los

conquistadores” (1928: 79).

Desarrollo de los estudios de religión

Hasta aquí hemos diseñado los primeros pasos de los estudios de religión en el Perú. Veamos

ahora su desarrollo que fue paralelo al reconocimiento y legitimidad de diversas disciplinas. El estudio

de la religión en el Perú nace con la Antropología y se desarrolla conforme esa disciplina, junto con la

Etnohistoria, la Etnología y la Arqueología, ganan reconocimiento académico en el país. La década del

40 dará a luz los primeros trabajos dedicados específicamente al estudio de la religión. Es precisamente al

final de esa década que surge el Instituto de Etnología y Arqueología de la Universidad Nacional Mayor

de San Marcos en Lima y que se constituyó en uno de los más importantes espacios de la antropología

peruana. Uno de los fundadores fue Luis Valcárcel cuyos estudios de religión comentaremos enseguida.

Algunos trabajos de singular importancia publicados en las décadas de los 50 y los 70, no hacen más

que confirmar que el salto, cualitativo y cuantitativo, acontecerá solamente a partir de los años 80.

Seguiremos en esta parte una secuencia cronológica según la fecha de publicación, que será quebrada

o cuando un autor(a) haya publicado trabajo más profundo y desarrollado de un mismo tema tratado

por él anteriormente, o cuando un conjunto de trabajos sobre un mismo tema (por ejemplo “religiosidad

popular” o “evangélicos”) tenga elementos teóricos o metodológicos en común que exijan abordarlos en

conjunto.

El tema religioso más estudiado continúa siendo, sin duda alguna, las religiones indígenas andinas.

A lo largo del siglo XX las tendencias teóricas y metodológicas se han ido desarrollando siguiendo la

preferencia o la formación de los investigadores (as). En general las preferencias se ajustan a los énfasis

aprendidos en la formación doctoral. Así, sobre el estudio de las religiones indígenas encontraremos,

inicialmente, perspectivas históricas y políticas sociales; posteriormente con el surgimiento de las

escuelas de antropología y etnología entran en escena perspectivas etnohistóricas e histórico-culturales.

Ya en las décadas del 60 y 70, con la llegada de antropólogos europeos, especialmente franceses, y

el retorno de investigadores peruanos que estudiaron con Levy-Strauss, ganará fuerza la perspectiva

estructuralista. Fuera del estudio de las religiones andinas, las antiguas y las contemporáneas, otros

temas, como religiosidad popular, protestantes, pentecostales y religiones orientales, solo han ocupado

la atención de la investigación científica más recientemente.

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El Catolicismo versus las religiones indígenas (décadas del 40 a los años 50)

En la década de los años cuarenta los estudios de etnohistoria encontraron un campo fértil en las

crónicas escritas ya durante el período de la Colonia. A partir de entonces esa rica fuente de información fue

aprovechada por historiadores y antropólogos hasta los días de hoy. En ese periodo hay que destacar “Ruta

cultural del Perú” de Luis Valcarcel (1945), “Inca Culture at the Time of the Spanish Conquest” de John

Rowe (1946) y “The Quechua in the Colonial World” de George Kubler (1946). Veamos a continuación la

contribución de cada uno de ellos.

En “Ruta Cultural del Perú” Valcárcel dedica un capítulo al impacto de la religión católica en el

indio. Posteriormente, Valcarcel escribió tres volúmenes con el título Historia del Perú Antiguo (1965). En su

segundo volumen Valcarcel dedica bastante espacio a la religión, trabajando hipótesis muy interesantes, que

después serían retomadas por otros investigadores, como las siguientes que a continuación sintetizamos: no

pudiendo rechazar la religión predominante, los indios fingieron aceptarla, pero su corazón siguió adherido

a los viejos dioses. El culto resultante acabó incorporando elementos nativos y el cristianismo terminó

apenas “superpuesto” a la antigua religión. De las reflexiones de Valcarcel para el conocimiento de las

religiones antiguas en el Perú debemos destacar su hipótesis sobre la comprensión que los indios tenían de

la realidad, y que él llamó de “filosofía religiosa del antiguo Perú”. Según esa hipótesis el habitante andino

del antiguo Perú dividía la realidad en tres partes: la región de los dioses (Hana Pacha), la región de los

hombres (Kay Pacha) y la región de los muertos (Ukhu Pacha)5. Por encima de esos tres mundos estaría el

dios creador llamado Wiracocha.

Aprovechando muy bien la información de cronistas, especialmente de Bartolomé Cobo (1964)6

cuyos escritos considera “más confiables” (1946: 14), Rowe, al estudiar la cultura incaica al comienzo de

la Conquista, presenta una visión general de la “religión andina”, y más específicamente los usos políticos

de las creencias por parte del Inca. Divinidades eran consultadas y sacrificios realizados en situaciones

como antes de una guerra. También muestra que la superioridad de la religión Inca era mantenida con

propósitos políticos y de forma paternalista. El Inca no perseguía formas religiosas no oficiales pero exigía

el reconocimiento de su inferioridad correspondiente a su inferioridad política y especialmente militar en

relación al ejército Inca. Utilizando fuentes semejantes Kubler analiza la religión en la época de la Colonia,

5 Las expresiones entre paréntesis están en la lengua Quechua, predominante en las regiones andinas del Perú6 Bartolomé Cobo fue un español, sacerdote jesuíta y escribió diversas crónicas en el Siglo XVII. Posteriormente sus escritos fueron publicados como libro: Historia del Nuevo Mundo. Tomos I y II, Biblioteca de Autores Españoles Tomos XCI y XCII. Madrid. 1964. Los relatos de los cronistas del período colonial fueron y son muy importantes como fuente de información sobre los más diversos temas. Véase, por ejemplo, el trabajo reciente de Ana María Soldi “La vid y el vino en la Costa Central del Perú, siglos XVI y XVII” in Universum, v.21, n.2, 2006. Disponible en: http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=s0718-23762006000200004&script=sci_arttext

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llegando a la conclusión de que la “conversión” de los nativos al catolicismo ya era un hecho en 1660.

Al mismo tiempo Kubler señala como causas del fracaso de la evangelización del indio durante el siglo

XVI la mala organización, la falta de recursos humanos, los disturbios de las guerras civiles y al poder de

resistencia de la religión quechua.

De la década del 50 debemos destacar los siguientes trabajos: Magia en Chucuito de Harry Tschopik

(1968); La Religión en el Antiguo Perú de Rebeca Carrión (1959); y los trabajos de Efrain Morote (1951;

1953; 1955; 1956). El primero nos ha dejada una rica etnografía de las prácticas mágicas aymaras del

altiplano sur andino. Por su parte, siguiendo las huellas de Tello, su maestro, Carrión estudió la religión

en las regiones norte y centro del país, a partir de las representaciones iconográficas en la arquitectura, la

cerámica y los textiles. Confrontó esa información con relatos de cronistas, archivos eclesiásticos sobre

extirpación de idolatrías y la mitología contemporánea de la región. Elaboró una minuciosa presentación

del panteón religioso andino constatando sobrevivencias de culturas muy antiguas y la migración de

creencias y divinidades de las regiones andinas hacia la costa peruana. Morote por su parte ha escrito

numerosos artículos que constituyen una verdadera etnología de la religión andina, y en ellos reflexiona

sobre “el hombre religioso andino”, sus costumbres, su modo de vivir y de pensar. No hay como ocuparse

de cada uno de ellos pero queremos destacar los siguientes: “El Degollador” (1951); “Dios, la Virgen

y los Santos en los relatos populares” (1953); “La Fiesta de San Juan Bautista” (1955) y “Espíritus de

montes” (1956).

Corresponde a esta década también el surgimiento del Departamento de Antropología de la

Universidad del Cusco. Por ser una ciudad ubicada en plena región andina y con estudiantes que hablaban

el Quechua ese centro de estudios facilitó la producción de diversos trabajos etnográficos, algunos de

ellos publicados por la revista Allpanchis que comenzara a circular en 1969. No nos detendremos en esos

trabajos, pero sí cabe mencionar el surgimiento de ese importante centro de estudios antropológicos.

Consolidación del estudio de las religiones andinas: tradición versus modernidad (décadas de los

60 y 70)

En la década del 60 hay que mencionar dos instituciones que comenzaron, en ese período, a

interesarse por el estudio de la religión. El Departamento de antropología de la Universidad de Huamanga

en la región sur central andina y el Departamento de antropología en la Facultad de Ciencias Sociales

de la Universidad Católica en Lima. En ambos espacios se produjeron luego importantes estudios. De

ellos debemos destacar el trabajo de Tom Zuidema The Ceque System of Cusco (1964) que inaugura en

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el Perú una nueva perspectiva de estudios: el estructuralismo. Zuidema busca las bases de la organización

social incaica en los lugares de culto, las creencias, los ritos y los mitos. Su fuente principal es, de nuevo,

las crónicas y especialmente las descripciones de lugares sagrados. Zuidema descubre una disposición

geográfica intencional de los lugares sagrados, determinando líneas imaginarias que convergían en

dirección al Cusco, la capital Incaica. Posteriormente en su obra La civilisation inca au Cuzco (1986)

Zuidema profundiza la perspectiva estructuralista demostrando que solo es posible comprender la vasta

información de los cronistas sobre el parentesco inca, colocándola en el marco amplio de la organización

política y social, de la mitología, del ritual, de su comprensión del tiempo y del espacio. Privilegiando la

información de los cronistas del período colonial sobre el Cusco ese autor reconstruye la integración entre

la mitología y la organización socio-cultural.

En la década de los años 70 se destacan los trabajos de los siguientes autores: Fernando Fuenzalida

(1970), Pierre Duviols (1971), Nathan Wachtel (1971), Juan Manuel Osio (1973), Manuel Marzal (1971;

1977), Franklin Pease (1973) y Maria Rostworowski (1978). El primero de los citados, Fuenzalida, analizó

en La estructura de la comunidad indígena tradicional (1970) los elementos modernizantes presentes en

las comunidades indígenas tradicionales de los Andes Centrales, destacando el papel de la cofradía y del

culto a los santos. La cofradía, institución campesina de origen española, permanecía en el siglo XX como

una extensión de la comunidad indígena y se dedicaba al culto de los santos. En 1971 Marzal publicó

El mundo religioso de Urcos. Ese trabajo retoma la cuestión de la modernización de las comunidades

indígenas. Se trata de un estudio etnográfico del sistema religioso de la provincia de Urcos en el sur andino

cusqueño donde se compara cinco regiones de diferente nivel de modernización, con el objetivo de medir

el nivel del cambio religioso por efecto de la evangelización católica.

Por su parte Pierre Duviols en La lutte contre les religions autocthones dans le Pérou colonial

(1971) nos ha permitido un conocimiento profundo y minucioso sobre la extirpación de idolatrías durante

los siglos XVI y XVII. Duviols demuestra que esas campañas fueron una verdadera inquisición para los

indios, también que ni las campañas de extirpación de idolatrías aliadas a la evangelización consiguieron

suprimir la idolatría, porque los indios no abandonaron sus creencias y en muchos casos, y durante un largo

período, no veían incompatibilidad en practicar ritos nativos y cristianos. El politeísmo ancestral de los

indios habría facilitado esa ambigüedad religiosa. Posteriormente, en 1986, Duviols publica Cultura andina

y represión: Procesos y visitas de idolatrías y hechicerías, Cajatambo, Siglo XVII. Se trata de una antología

de juicios por idolatría en una región serrana de Lima, que permite conocer una serie de ritos prehispánicos

y su sobrevivencia aún a principios del siglo XVII. De otro lado, ofrece también valiosa información sobre

los métodos de evangelización utilizados. A conclusiones semejantes sobre la sobrevivencia religiosa llega

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Nathan Wachtel en su obra La Vision des vaincus: Les indiens du Pérou devant la conquête espagnole

(1971). Wachtel se concentra en los primeros cuarenta años de la dominación española y constata en

ese período una desestructuración de la sociedad andina, desaparecimiento del culto estatal inca pero

supervivencia de religiones antiguas fundadas en cultos locales. Esas formas de culto consiguieron

atravesar los siglos y mantenerse hasta hoy. La evangelización no habría conseguido sus objetivos de

acabar con la idolatría, pero tampoco hubo fusión o síntesis de ambas religiones y sí una yuxtaposición.

La hipótesis de Wachtel es nueva. Diferente de la superposición, él propone la convivencia de ambos

sistemas religiosos, sin producir una nueva religión. Eso, claro está, no significaba que las tradiciones

que sobrevivieron, consideradas en términos generales, no hayan sufrido los efectos destructores de la

dominación española. De hecho hubo deculturación, pero sin una verdadera aculturación. Posteriormente

Wachtel volvió a discutir esa hipótesis estudiando la cultura sobreviviente contemporánea de los indios

Uros del altiplano boliviano en Le retour des ancêstres. Histoire de mémoire régressive (1992). Apoyado

en una extensa e intensa pesquisa de campo Wachtel verifica la sobrevivencia de mitos y ritos preincas y

preaymaras. Los aymaras fueron dominados por los Incas. Los Uros por su vez habían sido dominados por

los Aymaras. Habrían sido así los dominados de los dominados. La cultura Uro sufrió con la dominación

de Aymaras e Incas, pero sobrevivió a ellas. En pleno siglo XX la llegada de nueva tecnología modificará

la relación de los Uros con la naturaleza, lo que facilitará la avanzada evangelizadora, esta vez, de iglesias

evangélicas y pentecostales; sin embargo muchas prácticas religiosas ancestrales no sólo se mantienen

sino que otras, aparentemente perdidas, parecen ganar nuevo vigor al ser reinterpretadas a partir de las

nuevas condiciones sociales y económicas.

En 1973 Ossio publicó Ideología mesiánica del mundo andino, una amplia y cuidadosa antología

cuyo tema común es la importancia del mesianismo en la sociedad andina, tanto en la antigua como en

la contemporánea. Con el término “mesiánico” se trata de caracterizar la “ideología” del mundo andino,

que tendría como centro el principio unitario de la necesaria restauración del orden destruido por la

conquista española. Una continuidad temporal y espacial de la cultura andina se encuentra presente

en un mesianismo latente desde la conquista y la derrota del último Inca. Esa latencia se explica por

el hecho de que, al margen de todo, para el pensamiento andino el concepto de Inca está asociado al

orden. El retorno del Inca significaría, así, en el fondo la recuperación del orden perdido. La importancia

del mito del retorno del Inca para la elaboración de horizontes utópicos o proyectos políticos en toda

la región andina, ha sido demostrada por diversos otros trabajos; por ejemplo los estudios sobre las

insurrecciones andinas del siglo XVIII (Vega 1969; Castro 1973; Salomón 1990; Szeminski 1984 y 1990;

Galindo 1990), o trabajos más recientes sobre las motivaciones del apoyo de comunidades indígenas a

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movimientos políticos militares en el siglo XX (Fernández y Brown 2001). El mismo Juan Ossio retoma

esa cuestión en su libro Los Indios del Perú (1992). En la misma perspectiva debemos mencionar aquí

“Culto a los ancestros y resistencia frente al Estado en Arequipa entre los años 1748 y 1754” (Frank

Salomón 1990). En ese trabajo se estudia un movimiento de resistencia vinculado al culto a los ancestros

y que constituye otra versión de la utopía andina como forma de ideología. El culto a los ancestros

momificados se convirtió en foco de rebelión, pues en el pensamiento andino las momias de los ancestros

representaban la continuidad con ese pasado. El movimiento de resistencia mostraba la vitalidad de un

sistema de creencias capaz de movilizar todo un pueblo.

En El Dios creador andino, Franklin Pease (1973) compara diversos mitos de creación presentes

en relatos de los cronistas con diferentes versiones del mito del “Inkarri”. Como se sabe, ese mito de la

restauración del Estado Inca ha llegado hasta nuestros días. Pease sostiene que hay un ciclo de cambios

en la mitología andina, que comienza con el dios creador Wiracocha. Ese mito se transforma con el

surgimiento del Estado Inca centrado en el Cusco en donde se articula sobre la forma del Inti, nombre

Quechua del sol. Se modifica nuevamente al cambiar la realidad andina como consecuencia de la invasión

europea, dando lugar ahora al Incarri. En cada uno de esos períodos, la consolidación de la nueva forma

del mito del dios creador representa una superación de la reacción ocasional a favor de la afirmación de la

“permanencia del proceso creador”. Por su parte. Alberto Flores Galindo (1988) en una singular síntesis

histórica sobre la relación entre identidad andina y utopía social ha demostrado que la búsqueda por un

nuevo Inca aún continúa en el Perú contemporáneo.

Las obras de Maria Rostworowski han contribuido mucho para el conocimiento del proceso cultural

andino preincaico. Son investigaciones de historia y etnohistoria en las que aparece recurrentemente la

importancia del mito en la cosmovisión y en las relaciones de poder de los pueblos prehispánicos. En

Señoríos indígenas de Lima y Canta (1978) la autora reconstruye, a partir de la valiosa documentación

de las crónicas, la constitución de dominaciones y hegemonías entre pueblos de la sierra y costa limeña.

En las migraciones, guerras y ocupaciones de tierras el mito estuvo siempre presente. Algunas veces las

creencias y sus correspondientes cultos, van de la Costa hacia la Sierra, es el caso del dios Pachacamac,

que llegó a tener importante influencia en la sierra central hasta el siglo XVI. Otras veces van de la Sierra

hacia la Costa; por ejemplo Pariacaca, el poderoso dios de los Yauyos que ocuparan las tierras de la costa

al inicio de la dominación Inca. La dominación política implicaba siempre un sometimiento también de

los dioses de los vencidos. Pero, no pocas veces, los dioses vencidos reaparecían con nuevas fuerzas o se

confundían con divinidades de los vencedores, cuando nuevas relaciones de fuerza o mejores condiciones

de reacomodo cultural se lo permitían. Rostworowski ha demostrado eso en su estudio Pachamamac

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y el Señor de los milagros (1992). Mitos preincaicos de la costa sobrevivieron a la dominación Inca e

incluso pasaron a enriquecer el panteón andino. Posteriormente, gracias a los vacíos de la evangelización,

sobrevivieron fusionándose con dioses cristianos y adquiriendo nuevos adoradores en la población negra

esclava. La procesión del Señor de los Milagros, fiesta religiosa más popular de Lima que venera a un

Cristo negro, es resultado de una ingeniosa simbiosis de mitos indios y negros.

Religión popular y rol político de la religión (décadas de los 80 y 90)

La perspectiva estructuralista para el estudio de las religiones andinas ha sido retomada en la

década de los años 80 por diversos investigadores, entre ellos Alejandro Ortiz en su obra Huarochirí,

cuatrocientos años después (1980). Es un estudio minucioso de mitos andinos en los que el autor descubre

una cosmovisión con jerarquías de divinidades y oposiciones simétricas, que servían para explicar lo

permanente y lo transitorio, el orden que produce sosiego y lo inexplicable que produce inquietud. En

cierto sentido, en ese trabajo, Ortiz retoma el análisis estructural del mito del Inkarrí, ya iniciado en De

Adaneva a Inkarrí (1973). En “Imperfecciones, demonios y héroes andinos” (1986) Ortiz vuelve al estudio

del mito de Inkarrí. Esta vez estudiándolo sobre la forma de “héroe andino” y comparándolo a otros dos

mitos semejantes: “la creación imperfecta” y “el demonio andino”. En ese artículo Ortiz demuestra una vez

más, la solidez, amplitud y antigüedad de una misma matriz mítica: un dios que crea un orden, su sucesor

lo destruye y establece el suyo, y así sucesivamente “pudiendo repetirse tantas veces como la retórica

del mito lo requiera”. Ortiz ha vuelto a ocuparse de la mitología en el Perú en diversos otros trabajos. A

manera de ejemplo podemos mencionar “Símbolos y ritos andinos: un intento de comparación con el área

vecina amazónica” (1985). En ese texto compara la estructura y función de mitos de dos grandes regiones

geográficas y culturalmente diferentes. Mientras en Los Andes se verifica una diversidad de especialistas

de prácticas mágicas, en la región amazónica los diversos quehaceres mágicos suelen concentrarse en una

misma persona, con sus correspondientes implicaciones políticas y sociales.

De las diversas obras que Manuel Marzal publicó en esta década debemos destacar dos libros La

Transformación religiosa peruana (1983) y Los Caminos religiosos de los inmigrantes a la gran Lima

(1988). El primero es una muy buena tentativa de sintetizar el proceso evolutivo de la religión en el Perú

como resultado del contacto entre formas religiosas tan diferentes como las andinas y el cristianismo

español. Apoyándose en datos de archivos peruanos y españoles Marzal estudia en el primer siglo y

medio de colonización, ritos, sistemas de creencias y formas de organización religiosa. Su conclusión

más importante es que la aceptación del cristianismo no aconteció sin una preservación e integración de

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elementos del viejo sistema religioso andino. En ese sincretismo, elementos religiosos nativos permanecieron

con más fuerza en la región sur andina. En el segundo libro el autor analiza lo que sucede, en términos de

las opciones religiosas, con los inmigrantes del interior de país que llegan a la gran ciudad, portando sus

tradiciones culturales y religiosas. La investigación se concentra en un barrio popular de esa ciudad (El

Agustino) y en ella Marzal detecta tres grandes opciones seguidas por los inmigrantes: la “Iglesia cultural”,

la “Iglesia popular” y las “Nuevas iglesias”. La primera está constituida por las prácticas religiosas de la

cultura campesina recreadas en el contexto urbano. La segunda son las Comunidades Eclesiales de Base,

inspiradas en las Conferencias Episcopales de Medellín y Puebla. La tercera la constituyen las múltiples

iglesias evangélicas que en esa década demostraban importante crecimiento.

Dos trabajos, de esta década de los 80, particularmente convulsionada en el Perú, se han ocupado de

constatar la latencia de mitos y creencias prehispánicas, no solamente en ciudades de la región andina sino

también en los grandes centros urbanos como Lima y Chiclayo: Pishtacos, de verdugos a sacaojos (Ansión

1989); Sacaojos: crisis social y fantasmas coloniales (Portocarrero et ali 1991). Antiguas creencias parecen

estar constantemente a la espera de condiciones adecuadas para aflorar y volver a ser referencia para el

accionar inmediato de las masas frente a situaciones agudas de crisis. Al final de los años 80 circulaban

en diversas ciudades insistentes afirmaciones de que “degolladores” y “sacaojos”, personajes míticos de

ancestral origen andino, andaban por las calles aprovechándose de la ingenuidad de las personas. Los

trabajos organizados por Ansión y Portocarrero expresan la vigencia de esas antiguas creencias, tanto en las

regiones de la sierra como en la misma capital urbana.

La religiosidad popular se convirtió en tema de interés para los investigadores de la religión en el Perú

solamente con el rápido crecimiento de las ciudades. Es con el fenómeno de la migración, especialmente

andina hacia la costa, que se toma conciencia de los diversos matices de catolicismo construidos por la

población de los sectores sociales más populares. En 1987 salió a luz La Religión popular en el Perú.

Informe y diagnóstico. Aunque se trata de un trabajo que no surge en los medios académicos y fue auspiciado

por el Instituto de Pastoral Andina, el equipo de investigadores hizo un importante esfuerzo por analizar

el fenómeno con una metodología de las ciencias sociales. Nos parece un buen diagnóstico general con

pretensiones nacionales apoyadas en gran cantidad de información recogida en un período de hasta cinco

años. Hasta donde sabemos en el Perú no se ha hecho otra investigación del mismo alcance.

La década del 90 ha sido muy rica en novedades, de temas y de perspectivas de estudio de la

religión. Comenzamos destacando tres obras sobre el fenómeno del “Taky Onqoy”: El Retorno de las

huacas. Estudios y documentos sobre el Taki Onqoy. Siglo XVI (Millones et ali. 1990); “Del Taqui sagrado

al Masha profano. El simbolismo andino” (Burga 1991); y Los Dioses vencidos. Una lectura antropológica

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del Taki Onqoy (2001). Los trabajos sobre ese fenómeno son numerosos y no habría como incluirlos. Os

tres autores mencionados ya se habían ocupado de la cuestión anteriormente y algunos de ellos desde

mucho antes, como es el caso de Millones (1964); pero, de todas maneras esas tres obras representan

bien el avance de la investigación en cuestión. El “Taqi Onqoy” fue un movimiento de protesta nativista

acontecido en el siglo XVI y extendido en una amplia región de Los Andes sur centrales. Los registros

de los cronistas, y especialmente los dejados por extirpadores de idolatrías, son la fuente de información

principal y dan cuenta tanto de su importancia y extensión como del trabajo que ofreció a los extirpadores

de idolatrías. El movimiento contaba con predicadores y numerosos seguidores y se expresaba en una

suerte de éxtasis colectivo precedido de cantos y danzas. La compilación hecha por Millones (1990)

tiene el mérito de ofrecer, junto a los estudios del fenómeno, un conjunto de fuentes del siglo XVI donde

aparecen registros del fenómeno. Los estudios que componen la compilación en cuestión muestran que

se trataba de una protesta social expresada como expectativa mesiánica; tentativa ritual colectiva de

exorcizar un pasado reciente adverso y caótico, valiéndose para ello de formulas ancestrales preincas.

Siendo así, en la perspectiva del movimiento, no serían los Incas los que guiarían la construcción de

la nueva sociedad. Eso propone que la elaboración y desarrollo del mito del Incarrí sería posterior al

movimiento del Taqui Onqoy. Por su parte Burga (1991) estudia el fenómeno en otras regiones del Perú,

especialmente en la región de la sierra norte de Lima y analiza sus reformulaciones posteriores en las

que habría perdido su carácter sagrado contestatario. El trabajo de Cavero (2001) es resultado de una

extensa investigación que culminó con su tesis de doctorado. En continuidad con los estudios previos

sobre ese fenómeno, Cavero presenta al Taqui Onqoy como un movimiento popular de carácter regional

que procura afirmar una nueva jerarquía frente a la religión estatal Inca y sus remanentes. De otro lado

su estudio es novedoso porque propone comprender el movimiento a la luz de las cosmovisiones y la

religiosidad andina prehispánica y de las etnias involucradas. En esa perspectiva dicho movimiento es

reinterpretado en términos de “enfermedad total y curación cósmica”.

De los estudios de religiosidad popular en esta década consideramos importante, dada su

novedad, “Religión popular y etnicidad. La población indígena de Lima colonial”, de Iris Gareis (1992).

El estudio de la religiosidad popular en el Perú ha privilegiado sus manifestaciones rurales y cuando se ha

ocupado de las regiones urbanas lo ha hecho solo en el período más reciente, que corresponde al grande

crecimiento urbano de las últimas décadas. Gareis estudia las creencias populares de las poblaciones

autóctonas limeñas durante la Colonia. Llevando en cuenta la filiación étnica de los habitantes de Lima

constata una naciente religión popular productora de una nueva identidad. Durante los siglos XVI e

inicios del XVII convivieron en Lima españoles, descendientes de africanos y diversas etnias indígenas,

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produciendo una mutua y paulatina compenetración de diversas tradiciones culturales y religiosas. En la

segunda mitad del siglo XVII, entre los sectores sociales más bajos, ya era difícil separar las tradiciones

culturales de mestizos, mulatos, indios o españoles. La religión popular había servido como elemento

de síntesis de sus respectivas tradiciones. Luis Millones también publica en esta década un conjunto de

estudios sobre religiosidad popular Dioses familiares. Festivales populares en el Perú contemporáneo

(1998). Una representación dramática de la muerte del Inca, celebrada como parte de una fiesta religiosa

en el pueblo de Carhuamayo en la región andina central del Perú, es estudiada como mecanismo de

intercambio de acciones ceremoniales. La fiesta que dura ocho días es realizada en honor de Santa Rosa de

Lima, pero en ella ocupa lugar de destaque esa dramatización, que vuelve a revivir la confrontación entre

el Inca y el Conquistador español. Otras dos fiestas religiosas populares, esta vez de la región litoral norte,

también son estudiadas. La Fiesta de La Purísima de Túcume, cuyo momento culminante es la “danza

de los diablitos”. Túcume es una región famosa por sus curanderos. Imágenes, así consideradas, paganas

o diabólicas por los españoles, reaparecen llenas de colorido durante la fiesta. La otra fiesta estudiada

es la “fiesta de difuntos” en el pueblo de Eten. La fiesta demuestra la importancia de la veneración a

los parientes muertos expresada en medio de un ritual solemne. En ambas fiestas se constata la mezcla

dinámica de ritos y símbolos cristianos y ancestrales andinos.

Un tema poco estudiado en el Perú es el de las relaciones iglesia, sociedad y estado en la

perspectiva de la modernización y la secularización. El tema es tratado en Iglesia y poder en el Perú

contemporáneo. 1821-1919 por Pilar García (s/f). En la formación del Estado-Nación peruano a partir de

la Independencia de España la Iglesia Católica continuó cumpliendo un papel de enorme influencia social

y política. La gran pregunta es cómo se dieron las relaciones entre esa Iglesia y el Estado que, más o menos

modernizante, intentaba asumir funciones hasta entonces delegadas a la Iglesia Católica. La investigación

se apoya en amplio repertorio de fuentes primarias e investigación en archivos. Haciendo contrapunto con

los estudios de la religiosidad andina y los de religiosidad popular urbana, esta investigación analiza la

versión más institucional de la religión católica, y durante el periodo de constitución y consolidación del

Estado. La separación entre lo eclesial institucional y lo secular estatal es apenas un nivel de expresión

de la modernidad. Otro nivel lo constituye la conjunción o distinción de lo sagrado y lo profano. Esta

última cuestión ha sido más discutida en los estudios de religión andina. Un intento por analizar el efecto

desacralizador que en la cosmovisión andita tuvo la imposición del cristianismo durante la Colonia lo

constituye el trabajo de Sabine MacCormack “Ritual, conflicto y comunidad en el Perú colonial temprano”

(1991). En ambos trabajos está en perspectiva la transformación de la religión y de su lugar en la sociedad.

Otra forma de entender la función social y política de la religión, esta vez como sistema último de

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explicaciones o como consenso primordial, que determina formas de participación en el campo político, se

encuentra en el trabajo de Imelda Vega-Centeno Aprismo popular. Cultura, religión y política (1991). Se

trata de un exhaustivo trabajo de investigación e interpretación de la “doctrina” aprista y de la “mística”

elaborada y transmitida por sus líderes desde la fundación del Partido Aprista en la década de los años 30.

El estudio parte del principio de que en toda formación social donde la religión es un elemento esencial de

la cultura, y en el caso del Perú así es, existe dentro de la práctica política un elemento religioso del cual

depende su apropiación por parte de las masas y su supervivencia en el tiempo. La organización interna y

las normas de disciplina del Partido Aprista constituían, así lo demuestra la autora, una verdadera religión

política, poseedora de un misterio en nombre del cual impone reglas, exige fidelidades y sacrificios a

toda prueba, difunde un convencimiento mesiánico y proclama verdades hasta inexplicables. Todo esos,

elementos necesarios para una identificación de la masa creyente. Entre las razones de la eficacia partidaria

en la construcción de ese convencimiento, la autora encuentra un vínculo con las estructuras lógicas del mito

andino. Karen Sanders (1997)7 también se ha ocupado de los elementos religiosos, míticos y mesiánicos,

presentes en el discurso del Partido Aprista; especialmente en su fundador Víctor Raul Haya de la Torre.

La autora encuentra en los discursos del “jefe” del partido elementos constituyentes de todo un “proyecto

de salvación”. Otro trabajo que se ocupa del lugar de la religión en la práctica política es el de Juan Ansión

“Sendero Luminoso: la política como religión” (1990). Desde el final de los años 70 Sendero Luminoso,

uno de los partidos de izquierda, pasó del accionar político al político-militar, iniciando una lucha armada.

El autor estudia los puntos en común con movimientos religiosos fundamentalistas, constatando semejanzas

como jerarquía rígida, fe ciega en la palabra del líder, convencimiento incuestionable en la veracidad de la

doctrina. Sendero Luminoso había incorporado una visión religiosa fundamentalista dentro de un partido

político.

Dos temas han tenido que aguardar la década de los 90 para despertar la curiosidad de la investigación

académica. Me refiero a los protestantismos y a los carismatismos. En este último incluimos las versiones

católicas y protestantes). En efecto, salvo dos excepciones (Marzal 1988 y Bruno-Jofré 1988) el estudio

de protestantes y carismáticos hasta el inicio de los 90 fue atendido solamente a partir de preocupaciones

teológicas y pastorales. El primer trabajo sobre el carismatismo católico es “Los carismáticos y la política

en una parroquia popular de Lima” de José Sánchez (1990). El autor estudia el fenómeno carismático

católico en uno de los barrios más populares de la ciudad de Lima, en relación con las posturas políticas

de sus miembros. Constata las ambigüedades y distorsiones en la construcción de la visión de mundo y las

relaciones del grupo con la institución y las organizaciones populares. El fenómeno carismático católico

7 Véase el capítulo 9: “Víctor Raul Haya de la Torre: la tradición mesiánica”

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ha sido estudiado también por Hernán Cornejo en Cúrame con las manos. En las misas de sanación del

Padre Manuel Rodríguez (1995). El autor ofrece rico material etnográfico sobre el ritual, las características

socio-económicas y los tipos de enfermedades de los sujetos religiosos que participan de las multitudinarias

misas celebradas por el Padre Rodríguez en las principales ciudades del país. Es un intento por explicar

antropológicamente el milagro de la cura, pero la riqueza del trabajo está en el material descriptivo y la

observación de campo.

Aparte de la atención que Marzal (1988) dio a algunos grupos pentecostales en el barrio limeño de

El Agustino, el fenómeno pentecostal en el Perú no había sido estudiado. Una primera aproximación, en

perspectiva antropológica, es el trabajo de Frans Kamsteeg “Pastor y discípulo. El rol de líderes y laicos en

el crecimiento de las iglesias pentecostales en Arequipa” (1991). Es un estudio de una iglesia pentecostal

en un barrio popular de la ciudad de Arequipa, al sur del país. Se apoya en minuciosa observación de los

cultos y en entrevistas a pastores y líderes. Presta especial atención a las tensiones de poder entre pastor

y laicos generadas por la propia doctrina pentecostal de los “dones del Espíritu” que incentiva la tarea de

evangelizar y predicar. Es una interesante hipótesis para explicar la fácil división y diseminación de las

iglesias pentecostales en esa época.

Conclusión: vacíos y novedades temáticas al fin de siglo XX

Uno de los temas nuevos en la última década es la relación entre comunicación y religión. En

la Universidad de Lima se iniciaron varios proyectos de investigación en ese campo, tan actual y tan

innovador gracias a los avances tecnológicos de los medios de comunicación. Un primer resultado de

esas investigaciones se encuentra en Presencia religiosa en las radios limeñas (Gogin 1997). De manera

diferente a otros países de América Latina, como Brasil, en el Perú, y por diversas razones, las iglesias

aún no usan la televisión de manera intensa y extensa. La radio continua siendo el medio más utilizado,

cosa que se corresponde bien con los límites del acceso a la televisión especialmente en las regiones del

interior del país. Gogin estudia los programas religiosos radiales de cuatro iglesias o grupos religiosos:

Iglesia Católica, Iglesia Evangélica, Iglesia Pentecostal Dios es Amor, y Hermandad del Cordero de Dios.

La autora constata que en la “fiebre radial” que se vive en el Perú, los programas religiosos participan con

formas específicas de apropiación de medios y lenguajes. Se trata de un importante diagnóstico de los

programas religiosos radiales que arroja luz sobre las propuestas comunicacionales de los emisores. El

análisis cuantitativo de número de programas, horas de programación y temas religiosos ofrecidos por los

diversos emisores, permite ver la configuración de un dinámico campo de disputas.

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Los autores de “Ser protestante en Túcume” (Millones 1997) es un trabajo etnográfico que se apoya

también en entrevistas, e intenta explicar las razones de la inquebrantable convicción de los evangélicos

en un pequeño poblado de la Sierra Norte del Perú, en donde el catolicismo popular que allí tiene una

larga historia ofrecería particulares dificultades al mensaje de los evangélicos. Aunque los autores llaman,

en el título del trabajo, “protestantes” a las iglesias estudiadas, muy probablemente ninguna de ellas

reivindicaría sus raíces en la Reforma del siglo XVI en Europa. Las iglesias estudiadas son: Asamblea de

Dios el Perú, Iglesia Evangélica del Nombre de Jesús, Iglesia del Nazareno, Asociación de los Testigos de

Jehová y movimiento Misionero Mundial. Los autores encuentran como elemento común, explicador de

la convicción y la militancia de los fieles de esas iglesias, la certeza de haber sido escogidos por Dios.

No podemos cerrar este período sin referirnos a un conjunto de investigaciones, publicadas entre el final

de los años 80 y los años 90, que ensayaron un balance del cristianismo progresista, cristianismo de la

liberación o cristianismo de izquierda. Tenemos dos capítulos de libro: “The Peruvian Church: Change

and Continuity” (Romero 1989) y “Peru: The Leftists Angels” (Pásara 1989). Otra obra sobre el tema es

el libro The Catholic Church and Democracy in Chile and Peru (Fleet and Smith 1997). Antes de nuestros

comentarios de esos textos nos parece importante destacar que la investigación de temas de religión se

ha interesado muy poco en hacer un balance crítico del período de auge de los movimientos populares de

las décadas del 60 y 70 que habría contado con importante protagonismo o participación del cristianismo

progresista. Las referencias constantes a las relaciones entre cristianismo y socialismo en las obras de o

sobre la Teología de la Liberación de esas décadas, que aquí no analizamos por las razones ya explicadas

en la introducción de este texto, evidentemente perdieron importancia en el interés de los investigadores.

La lectura crítica del papel del cristianismo hecha posterior al auge de la Teología de la Liberación y

posterior también al trauma de la guerra desatada por Sendero Luminoso y el Movimiento Revolucionario

Tupac Amaru (desde los primeros años de la década del 80), del primer gobierno de Alan García y del

fujimorismo, nos parece que aún está por hacerse. Las últimas dos décadas del siglo XX fueron de grande

convulsión. Muchos estudios se han ocupado de la cuestión, pero el tema “religión” ha sido objeto de poca

atención. Los textos que a seguir comentamos son un buen intento en esa perspectiva.8

Romero discute en amplia perspectiva el proceso de cambio en la Iglesia Católica en el Perú en los

últimos 30 años a partir de la mitad del siglo XX. Lo hace tomando en cuenta el período de la dictadura

militar, cuyo primer período (1968-1974) tuvo como líder un militar de izquierda, Juan Velazco Alvarado,

8 Hay algunos trabajos que abordan la cuestión en perspectiva más amplia, con poca atención específica al Perú, por ejemplo, Daniel Levine Popular Voices in Latin America Catholicism, Princeton, Princeton University Press, 1992

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65

un segundo período de dictadura de derecha (1974-1978), y el retorno a la democracia liberal con una

nueva Constitución (1978) y la restitución en el poder, vía elecciones, de un gobierno conservador en

1979, año en que Sendero Luminoso, partido de la izquierda radical con orientación maoísta se retira del

escenario político e inicia la “lucha armada”. El análisis de la autora prioriza las relaciones de afinidad

o de tensión entre las acciones y políticas gubernamentales orientadas hacia los sectores populares y la

actitud de la oficialidad de la Iglesia Católica, que ejerció a veces un papel de soporte de importantes

políticas sociales populares, y otras veces, expresó sus tensiones internas que la llevaron a cumplir

un papel menos protagónico de lo que se esperaría en época en que había una grande simpatía entre

movimientos populares, acciones sindicales y reflexión teológica católica progresista.

El trabajo de Pásara se desarrolla en perspectiva semejante a la de Romero centrando su análisis

en lo que llama papel de la “tendencia católica radical”. Su estudio enfatiza el impacto de la Teología de

la Liberación y el papel organizador de las bases católicas lideradas por el más importante pensador de

los orígenes de esa teología, el Padre Gustavo Gutiérrez, en el proceso de cambio de la iglesia hacia una

pastoral comprometida con los pobres y con la construcción de otro modelo de sociedad. El autor no deja

de subrayar que se trata del análisis de un militante del movimiento universitario católico. Hay que decir

también que el texto es resultado de un semestre de dedicación a la investigación del tema desarrollado

en la “University of Notre Dame”. El autor tiene el mérito de detectar evidencias de que el catolicismo

radical fue perdiendo iniciativa para provecho de sectores conservadores de la Iglesia católica.

El libro de Fleet y Smith trata simultáneamente de los dos países Perú y Chile. Aquí nos vamos

a referir solamente a su contribución sobre el Perú. No se trata precisamente de un estudio comparativo

y tres capítulos son dedicados específicamente al caso peruano. Los capítulos se ocupan de una revisión

panorámica de las alianzas históricas entre la jerarquía de la Iglesia Católica con las oligarquías que

controlaron el poder desde la segunda mitad del siglo XIX. Se destacan las tensiones de la Iglesia con

el movimiento intelectual anticlerical de fines del XIX y los embates con el avance de la secularización

de algunas prácticas sociales, como la del divorcio, y con el surgimiento de las organizaciones y el

pensamiento de izquierda a inicios del siglo XX y su posterior impacto en la segunda mitad de ese siglo

con la efervescencia de las organizaciones populares y su sintonía con la Teología de la Liberación. Esta

obra tiene un mérito especial por la riqueza de sus fuentes. Además de las fuentes escritas de primera

mano la investigación realizó un amplio trabajo de campo con numerosas entrevistas a líderes, laicos

y militantes de instituciones católicas, organizaciones de base y estudiantes. Una breve sección de uno

de los capítulos llega a discutir el impacto del discurso crítico de algunos Obispos católicos frente al

repentino giro autoritario de Fujimori que cerró el Congreso y dio inicio a un régimen “antidemocrático”.

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66

Se debe llamar la atención a que los autores trabajan con un concepto de democracia formal, concluyendo

que la Iglesia Católica siempre estuvo, o tuvo entre sus principales líderes, voceros que defendieron la

democracia, es decir, el gobierno legitimado por procesos electorales.

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Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

LE XXE SIECLE ET SON TRAUMATISME SOCIAL: DES TRACES DE MEMOIRE

O SéCULO XXI E SEU TRAUMATISMO SOCIAL : OS TRAÇOS DA MEMóRIA.

Francisco Ramos de Farias 1

1 Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas, professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Memória Social.

PALAVRAS-CHAVES Trauma, Memória, Elaboração, Violência, Criação.

Aborda-se neste artigo o trauma social como uma experiência que afeta o sujeito, os grupos, as comunidades e as nações, remetendo-nos a refletir sobre os limites do suportável que produzem estados de impotência tanto no âmbito do sujeito quanto nos grupos, impedindo-os de construir modos alternativos para a vida. Não obstante, em situações extremas, sujeito e grupos sociais podem não sucumbir construindo vias criativas de elaboração. Esses esforços surgem como mecanismos de memória para a construção de um saber acerca da produção de uma escrita no sentido de elaborar minimamente o trauma. Esta é uma postura ética diante de situações de violência, `as quais o homem é confrontado cotidianamente.

RE

SUM

O

MOTS-CLéS Traumatisme, Mémoire, Élaboration, Violence, Création.

On aborde le traumatisme social comme une expérience qui affecte le sujet, les groupes, les communautés et les nations, remettant en question les limites du supportable et produisant des états d’impuissance du sujet et du groupe pour construire des modes de vie alternatifs. Cependant, même en des situations extrêmes, le sujet ou les groupes sociaux ne succombent pas toujours, car construisant des voies créatives d’élaboration. Ces efforts apparaissent comme des mécanismes de mémoire pour la construction d’un savoir sur la production d’un écrit pour établir le traumatisme. Voici une sorte de position éthique devant des situations de violence à laquelle l’homme est confronté tous les jours.

SUM

é

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70

1. Introduction

Les notions de traumatisme et la violence ont été largement discutées dans le XXe siècle, en raison

de l’existence de carnages sanglants et de la mort qui ont eu lieu dans de différentes parties de la planète.

Avec des discussions sur des sujets aussi complexes une ligne de pensée sur les questions liées à la mémoire

a été érigée, en particulier dans le contexte de productions écrites, les monuments commémoratifs et tant

d’autres formes qui ont été présentés au monde comme des tentatives visant à élaborer l’horreur qui a

marqué, violemment, la vie des gens de différentes ethnies, groupes sociaux, entre autres aspects. Les

débats s’organisent autour d’une question: pourquoi produit-on autant de situations de sens traumatique?

La première réponse que l’on peut penser pour cette question est celle que l’homme est constamment

confronté à des conséquences catastrophiques, assez intense, que ce soit à travers les médias, ou à travers les

cadavres qui sont laissés dans des lieux publics et tous les vestiges des guerres et des souffrances humaines

qui, souvent, frôlent l’ordre de l’impensable, de l’indicible et de l’incommunicable Dans ce contexte,

nous pouvons affirmer que les questions concernant la violence de potentialité traumatique confrontent,

continuellement, l’homme d’aujourd’hui, en renforçant, surtout, l’état de délaissement avec l’exposition,

de plus en plus croissante, à l’insécurité, de ne plus réussir à identifier d’où viennent les menaces qui se

rapportent à lui.

Si nous voulons fermer le concept de traumatisme lié à la violence, nous devons situer les modèles

d’interprétation qui ont des versions polysémiques, même certaines étant contradictoires. Cependant, il

est pertinent de souligner que parmi les diverses interprétations du traumatisme, deux types de violence se

présentent tout d’abord dans la mise en contexte: l’idée de traumatisme de l’enfance expliqué en termes

de vie sexuelle et les conséquences des atrocités qui ont eu lieu principalement dans le berceau du monde

civilisé. Ce second aspect a été remarqué dans les discussions sur le traumatisme, en particulier en ce

qui concerne la littérature de témoignage sur l’Holocauste, l’état de sauvagerie dans lequel les nations,

considérées comme civilisées, ont permis la décimation considérable des peuples, fondées sur des critères

logiques de ségrégation pour mettre en pratique des stratégies d’élimination et d’extermination.

En suivant cette voie on prendra le concept de traumatisme dans un domaine interdisciplinaire,

en essayant de le penser comme un thème central dans de différentes perspectives, mais comme un choc

qui rompt radicalement certaines conditions minimales de survie, en changeant le fonctionnement du

psychisme et des types de liens sociaux par l’imposition d’un effort pénible de grand coût subjectif, lorsque

la production d’une mémoire est possible en tant que voie d’élaboration. Comme objet de cette réflexion,

nous supposons que la situation traumatique fait que l’homme convive continuellement dans une situation

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71

de violence qui a deux faces: l’une traitant de l’outragé, c’est-à-dire de la victime et l’autre qui se réfère à

l’impulsion d’agir, d’immobiliser, dominer et annuler la volonté d’autrui. La conséquence de la violence

qui cause un traumatisme est l’apathie, la perplexité, l’inhibition, la présence de mémoires intrusives et

l’instabilité en général. Toutefois, avant d’analyser ces effets on commencera par les particularités du

traumatisme.

La notion de traumatisme, développée dans le domaine des Sciences physiques à partir des effets

subis par la tension d’un poids ou d’une force sur un corps, a été transportée pour le domaine du savoir

médical avec la connotation d’une injurie ou d’un dommage dû à l’action d’un corps étranger agressif

à un organisme. Cette notion suppose la rupture d’une stabilité fonctionnelle. Cette idée a acquis une

place considérable au moment où il a commencé à figurer comme un concept important dans le domaine

du savoir psychanalytique qui, initialement, a rapporté l’expérience traumatique, dans la condition d’un

fait réel, à une circonstance individuelle qui réduit les possibilités du sujet de gérer sa vie. Plus tard,

le concept subit une reformulation et alors lie l’expérience traumatique, pas plus à l’intensité du fait

produit, mais à la potentialité du souvenir qui maintient dans un état récurrent l’expérience sans aucun

type d’élaboration, tant en termes d’oubli que d’alternatives d’élaboration.

Dans le champ purement individuel, le concept de traumatisme se développe dans le sens des

réflexions sur certains phénomènes sociaux. Ainsi, le concept d’expérience traumatique est utilisé pour

penser aux effets des situations catastrophiques qui décimèrent des milliers de vies durant la première

moitié du XXe siècle. Compte tenu ces événements qui ont compté sur l’apogée du progrès scientifique

et qui se sont produits dans le berceau du monde civilisé, la dimension sociale s’impose comme l’un

des fondements pour expliquer la barbarie qui a eu les conséquences les plus diverses: a) la production

en série de décès en temps records ; b) le développement de stratégies et de tactiques de décimation en

masses à l’aide des découvertes scientifiques ; c) l’exposition au monde de l’industrie de la mort est

justifiée par une logique de pureté, de discipline, d’organisation et d’autres critères ségrégationnistes;

d) l’émergence de la littérature de témoignage de la part de ceux qui ont réussi, durement, à traverser

des situations extrêmes d’expositions à la souffrance et à la dessubjectivation ; e) les productions

cinématographiques dans le monde presque tout entier, entre autres.

Tout cela peut être considéré comme des tentatives d’élaboration de l’impondérable, par des gens

qui ont été exposés à des situations qui dépassent la limite du supportable et qui n’aurait pas d’autres

alternatives pour les éviter, en sus de la mort. En plus de cette situation extrême, comment peut-on

penser à certains phénomènes connus du XXe siècle comme le terrorisme, le génocide, les massacres et

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autres méthodes de carnage communes à des régimes totalitaires? Et encore quelle est la raison pour que

telles pratiques persistent encore dans un contexte de progrès scientifique considérable et d’éclaircissement

de l’homme?

A part ceux qui ont succombé à ces expériences, il y a très peu de témoignages des horreurs subies dans

des situations extrêmes, et encore moins ce sont ceux qui peuvent produire un écrit à laisser comme héritage

des souvenirs, bien que fragmentaires, des circonstances auxquelles ils ont été exposés. Néanmoins, il y a

ceux qui, après une longue période de temps, réussissent par durs exercices de récupération de filigranes de

mémoires à ressortir des situations vécues. Certainement, ces gens le font dans le but d’essayer d’élaborer

leurs expériences vécus et même de comprendre la raison pour laquelle ils ont été objet d’exposition à des

situations extrêmes. Ainsi, il est entendu qu’une expérience traumatique non seulement peut immobiliser

le sujet, en lui imposant le silence à jamais, mais aussi peut répandre en élaborations, même si elles sont

minimales, en termes créatifs de construction d’une mémoire. Ici le cheminement que nous suivons dans

cette réflexion: prendre en compte l’expérience traumatique dans ses effets négatifs et positifs, ainsi que la

construction des représentations comme des solutions minimales qui permettent, au sujet, de s’éloigner de

la terreur causée par le choc résultant d’un traumatisme.

2. L’expérience traumatique et de la violence

Les conditions de vie devant la possibilité de faire continuellement face à la violence qui, à l’heure

actuelle, est produite par de différents moyens, sont constamment remises en question. Néanmoins, vivre

dans l’imminence, presque certaine, de la mort prend ses propres configurations entre deux situations

extrêmes qui sont, pour l’homme: de choisir la mort ou de soumettre docilement, passivement, les rituels

de sacrifice, renonçant à son désir et à sa volonté. D’ailleurs, comme le souligne Todorov (1995, p. 24)

l’homme « choisissant sa propre mort, accomplit un acte de volonté, et par son moyen, on affirme les liens

au genre humain. » Pour cette raison, choisir entre la vie et la mort, quand il est possible, est une alternative

pour préserver la dignité. Mais il y a des circonstances pour lesquelles il n’existe aucune autre possibilité

de choix comme le terrorisme, la torture, les massacres, les lynchages et, probablement, la destruction de

chances de vie dans certaines zones de terres.

Compte tenu de la possibilité de survie, Todorov (2004, p. 16) nous avertit que «lorsque les

événements vécus par le sujet ou par un groupe sont de nature exceptionnelle ou tragique, le droit devient

un devoir: celui de se souvenir et de témoigner. La vie est perdue contre la mort, mais la mémoire gagne

le combat contre le néant.» Ainsi nous pouvons considérer les effets positifs du traumatisme, ou tout au

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73

moins, en termes d’organisation quand la remémoration de l’expérience vécue, qui a laissé un corps

étranger enkysté dans le psychisme, devient une proposition d’élaboration. Pour cela, autant le sujet

individuellement que les communautés témoignent la fixation du traumatisme et aussi la fixation d’une

tendance contraire à la destruction.

Dans cette ligne de raisonnement Brette (2005, p. 70) propose que « la question est celle de

savoir pourquoi les effets du traumatisme seraient plus positifs que négatifs: la réponse dépend, en

même temps, de l’intensité de la charge traumatique et du niveau de maturité ou d’abandon du sujet

au moment de l’impact. » Ces deux conditions sont indissociables au sens d’une expérience ayant la

potentialité d’être traumatique ou non et, par conséquent, déterminer la polarité de ses effets: constructifs

ou destructifs. Pour tenir compte de cette prérogative, la vulnérabilité à un traumatisme dépend, non

seulement de la situation que le sujet est exposé en termes de violence, mais de la conjoncture de ses

arrangements subjectifs pour construire de voies minimales d’élaboration. Pour cette raison, on peut

dire que le choc traumatique est relatif, c’est-à-dire, il est déterminé par la capacité ou non du psychisme

de gérer les intensités d’excitation soulevées par la situation. La même interprétation peut être étendue

à des événements qui se concentrent dans les groupes et dans les communautés, compte tenu bien sûr

les conditions historiques et les héritages culturels disponibles.

En réfléchissant sur ces événements dans le monde d’actuel, on aperçoit que «pour l’homme

moderne l’effusion de sang ne semble pas être autre chose que la destruction” (FROMM, 1979, p.

363). Cela signifie que l’homme vit avec la possibilité d’effusion de sang, pas plus dans des rituels

sacrés et rites d’initiation, malgré sa continuité chez certains peuples, mais dans la destruction pure des

arrangements subjectifs. En ce sens, vivre c’est être en état d’alerte à la violence produite en termes de

l’imminence de l’attaque par un ennemi supposé, l’exposition aux catastrophes naturelles, et surtout la

crainte de l’extinction des conditions minimales de vie sur la planète. À l’heure actuelle, rien n’est plus

menaçant que les conséquences du réchauffement climatique qui produisent des zones sur la terre sans

aucune possibilité de survie. Voici l’héritage qui l’homme de l’ère du progrès laisse aux générations

futures: l’augmentation globale de la violence à tous les niveaux possibles et la précision, en termes

de mise en œuvre des moyens techniques, pour la destruction massive d’une manière irréversible,

totalement hors de contrôle.

Il est intéressant de noter que les expériences traumatiques, aujourd’hui, sont multiples, mais nous

vivons sur un paradoxe: plus on théorise sur les situations énumérées sous la rubrique d’un traumatisme

social, plus ces situations s’accumulent, même si l’on considère les efforts pour les minimiser. Que se

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74

passait-il, donc, vu que dans le sens contraire aux politiques de grandes puissances répandues au nom de

la paix, on y trouve le perfectionnement des stratégies mortifères pour anéantir l’homme et l’humanité?

Il convient de souligner que l’humanité ne doit pas être comprise comme une simple abstraction, mais

comme un ensemble de sujets constitués d’une histoire et qui transmettent leur héritage sous la forme

de la mémoire. Pourquoi alors on ne réussit pas à ériger des barrières pour empêcher la destructivité par

l’homme, de l’homme lui-même et de la planète? Certes, si les choses se déroulent dans ce contexte, tôt

ou tard, nous serons confrontés à notre propre destruction et à la destruction du seul espace que nous

avons pour vivre. Où donc voulons-nous aller, c’est-à-dire, quel monde prévoyons-nous pour l’avenir?

Et encore, nous le laisserons en héritage à nos descendants d’ici à un siècle? Ces évidences affligeantes

ne font pas partie du scénario d’un film de fiction, puisqu’elles s’imposent à l’homme de façon explicite

et directe. Il ne s’agit plus d’un avertissement quant à la possibilité d’avoir des événements possibles,

mais de la signalisation de ces événements dans le temps présent.

Le progrès scientifique et la formation de grandes zones urbaines ont représenté, dans le XXe

siècle, les espoirs pour l’homme d’une vie meilleure. Mais si l’on analyse la vie quotidienne dans

une grande ville, n’importe quand, l’homme est confronté à des rapports de crimes, de corruption,

inondations, incendies, explosions, séismes, tsunamis, exterminations et autres manifestations brutales

d’événements. Ainsi, la modernisation des villes a produit des systèmes assez complexes dans lesquels

la violence a proliféré, de façon inattendu et incontrôlable, à tel point que l’homme de grands centres

urbains n’a pas l’esquive à la possibilité d’être affecté de façon spectaculaire par ces situations qui sont

présentées par les médias au temps réel des événements. Quel serait, donc, le but de la diffusion de ces

nouvelles en un temps record, que de mettre l’homme contemporain dans un état d’apathie dans un

genre de vie monotone? Sans doute, ces situations ont un coût subjectif considérable de laisser de traces

qui sont, rarement, signifiés, soit par son intensité, soit par les dégâts produits de façon irréversible.

On concentrera notre attention pour réfléchir sur l’exposition de l’homme actuel à des situations

qui ont lieu en termes de traumatismes sociaux, telles que la violence urbaine marquée par des assassinats,

par des conflits entre les gangs, par la précarité des conditions de vie due à l’oubli volontaire de l’État

pour certains segments de la population, par le trafic de drogue, la prostitution enfantine, et tant d’autres

modalités. Prenons comme point de départ les meurtres de jeunes vivant dans les rues, les prisonniers

et les membres de la population sans-terre, afin de situer les crimes de sens politiques et économiques

déclenchés dans la lutte continue entre les classes sociales de pouvoir d’achat élevé et les habitants des

zones de faible revenu où vivent les chômeurs, les ambulants et une masse de personnes vivant dans

l’extrême pauvreté, ou même dans la misère. Ces crimes sont interprétés et justifiés pour des raisons

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de tensions sociales que provoquent ces groupes. Il faut donc les contrôler, que ce soit par la prison ou

l’extermination. D’une façon ou d’une autre, cette masse de personnes est ségrégée de façon punitive,

avec la création de celles que l’on appelle des prisons de la misère pour renforcer la sécurité. Mais ces

mesures se concentrent sur ceux qui sont “touchés par de fortes conditions inégales de vie et dépourvus

de tradition démocratique” (WACQUANT, 2001, p. 7).

Ne pourrait-on pas penser que le manque de conditions minimales pour vivre peut conduire à

des situations traumatiques? Et plus loin, étant donné le manque de protection sociale pour les jeunes

des quartiers défavorisés, accablés par le chômage chronique, n’y aurait-il pas de possibilité d’entrevoir

une issue de sortie que celle de retourner au monde de la criminalité? À cet égard, une question persiste:

quelle est la raison qui mène ces jeunes au choix de la violence afin d’assurer les moyens de subsistance?

Cette même question s’étend aux nations qui, pour des raisons économiques, produisent un ennemi

pour justifier des actions destructrices à une grande échelle. Soit dans le domaine de l’individu, soit

dans une sphère de plus grande ampleur, comme l’État, nous sommes confrontés à des situations dont

les effets laissent des traces indélébiles sur l’homme moderne qui ne disposent pas de retranchements

ni de boucliers de protection contre les situations accablantes.

La violence et la cruauté, les principaux artifices dans la production du traumatisme social

sont des manifestations de la destructivité humaine. Lorsque nous sommes dans le domaine de la

violence, nous savons qu’en dépit de ses effets destructeurs, nous pouvons considérer l’expression en

termes de stratégies défensives. Concernant la cruauté, en tant que condition exclusivement humaine,

Nietzsche (2001, p. 154) affirme que «presque tout ce que nous appelons culture supérieure repose sur

la spiritualisation et l’approfondissement de la cruauté, celle-ci est ma théorie, la bête sauvage n’a pas

été morte, elle vit, elle prospère, elle s’est seulement divinisée».

Si la cruauté est présente chez l’homme quel serait, donc, son but? Pourrait-elle être une

puissance qui devrait être canalisée pour produire des biens culturels? Sans aucun doute, l’homme

nourrit cet espoir. Cependant, comme la cruauté se mêle à la violence, il faut comprendre que le côté

indomptable de l’homme, qui va vers la destruction, a une sorte de vertu, et peut apparaître comme

une violation de l’inclinaison à la pratique des actions destructrices. Cette possibilité est assez vague

aujourd’hui, car nous sommes constamment traversés par des situations agressives qui se produisent

lorsque la société ne dispose pas de soutien pour donner une destination à la potentialité destructrice qui

n’est pas la satisfaction par l’utilisation de moyens d’anéantissement subjectif ou de la transformation

radicale de la nature. Ainsi, le note Ceccarelli (2006, p. 119) «l’être humain ne réussi pas à faire barrière

à la violence. La violence serait-elle inévitable dans le destin de l’humanité? » Si l’on pense par ce

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biais, nous pourrions admettre que la possibilité de vivre avec la violence et la cruauté est en soi l’une

des conditions du traumatisme social, surtout, quand certains sujets agissent de façon totalitaire afin

de satisfaire une vanité personnelle ou quand ils s’imprègnent dans la défense de certains principes

ségrégationnistes. Ce sont des circonstances qui ont des conséquences mortelles pour l’homme, telles

que la production de restes d’expériences qui ne sont pas attachés à sa vie de manière à lui apporter

des avantages, étant donné qu’il reste des images récurrentes ancrées dans l’imaginaire qui ombrent et

tourmentent sa vie. Ainsi, nous pouvons pénétrer dans le sombre terrain du traumatisme social, de nos

jours, quand nous énumérons les situations difficiles de la vie causée, non plus par les intempéries de la

nature et les maladies mortelles, mais par l’homme qui accomplit une sentence du dramaturge Plaute,

travaillée par Hobbes (2008), affirmant que l’homme est un loup pour l’homme. Toutefois, il vaut un

avertissement: l’exposition humaine à des situations traumatisantes ne se produit pas seulement de nos

jours. Depuis l’Antiquité, l’homme a été exposé à des traumatismes psychiques. Ainsi, les situations

traumatisantes accompagnent toute l’histoire de l’humanité, elles ne changent qu’en fonction des

stratégies employées pour mettre la vie en danger.

C’est en ce sens que la vie dans les grands centres urbains peut être pensée comme l’exposition

à des limites insupportables de violence, surtout si nous considérons les bandes criminelles, les groupes

d’exterminations, la consommation de substances chimiques. Néanmoins, nous ne devons pas oublier

pas que la principale source de traumatisme social est la sensation de peur vécue face aux situations

de terrorisme, l’expectative d’être atteint par une balle perdue et même être la cible de la haine d’une

personne qui, pour des motifs futiles, n’hésite pas à mettre un terme à la vie d’un homme.

Les sources classiques de traumatismes, telles que les accidents et les catastrophes naturelles,

qui ne sont pas historiquement spécifiques, s’unissent, comme l’a souligné Rouanet (2006, p. 142),

« les guerres de plus grande sophistication technologique et de plus grand pouvoir destructeur que

toutes celles précédentes ; une criminalité qui n’est plus locale et qui est devenue mondiale et un

terrorisme organisé en réseaux, tout en pouvant agir partout dans le monde. » Tout ce décor n’est pas

inconnu à l’homme et comme il connaît les résultats possibles il ne peut plus plaider innocent au sujet

du maniement des artifices techniques que la culture a mis à leur disposition grâce à l’avancement du

progrès scientifique. Face aux puissants engrenages produits pour promouvoir le bien-être, l’homme

se trouve encore impuissant pour amortir le fauve sauvage qui le fait retourner à l’ère primaire. En

principe, par le fait qu’il n’y ait pas de façon pour éviter le malaise propre à sa condition d’être désirant.

C’est là que nous pouvons situer un jalon pour penser à la question de la destructivité et à la sortie par

des moyens sublimatoires.

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Suivant une autre voie, différente de la pensée nietzschéenne, Freud (1976) ne comprend pas que

les impulsions cruelles de l’homme peuvent être versées en biens culturels, étant donné que la culture

serait toujours le résultat de la sublimation de la sexualité, c’est-à-dire, que la cruauté se manifeste

dans le sadisme et l’agressivité, étant l’expression directe de la puissance de destruction. Alors, quelle

serait la solution pour que l’homme retienne ses pulsions destructrices? Notamment il nous faut, afin

de réfléchir sur cette question, utiliser le concept kantien de conscience critique qui ferait intérioriser à

l’homme son agressivité conduite déversée au monde sous forme de culpabilité. Mais il faudrait pour

cela non seulement de la frustration qui déclenche de l’agression, mais aussi, en contrepartie, recevoir

de l’amour. Quand l’amour manque, l’aspect destructeur est projeté sur le monde extérieur. Ainsi, le

sujet est forcé à l’expérience de la douleur et là se figure l’expérience traumatisante comme celui qui

éclate en violence (FARIAS, 2011). Pour cette raison, l’amour vient ralentir la potentialité agressive en

amortissant sa projection sur le monde extérieur. Néanmoins, nous devons explorer davantage cette

question en postulant que la convergence entre l’événement violent, en raison de l’exposition du sujet

à la douleur, donc de la connotation de traumatisme, et le mouvement pour lequel le sujet produit des

moyens afin de se distancier de cette expérience douloureuse. Si, d’une part, l’expérience traumatisante

indique la possibilité d’interruption de la vie, d’autre part, elle conduit l’individu à rechercher les moyens

de la poursuivre. Il faut signaler que l’état d’abandon, dans lequel la progéniture humaine se présente au

monde, devient une exigence d’amour et, par conséquent, on reconnaît celui qui était aussi dans la lutte

pour la survie face à la précarité propre à la vie. Pour cela, la mémoire pour le sujet, d’avoir un jour été

aimé par quelqu’un, fait qu’il puisse contenir, un minimum, son agressivité.

Mais quand les choses ne se passent pas de cette façon, la réalité pour le sujet qui a passé par une

expérience traumatisante crée une scène courante comme un corps étranger pour lequel il n’existe aucun

moyen de défense, ni de développement possible. On peut penser ici à l’extension de ces approches pour

réfléchir à l’effet de certaines actions destructrices sur certains groupes, communautés ou nations. Que

ce soit dans un contexte ou un autre, il n’y a pas de moyens pour subjectiver l’expérience traumatisante

comme si on la transformait en un souvenir d’intensité faible ou nulle. Ainsi, les traces de mémoire

de ces expériences restent comme quelques espèces de parasites, incapables de s’intégrer aux autres

expériences de vie. Cela se produit lorsque la rencontre avec l’agresseur devient inévitable et, ainsi, il

n’y a donc pas le temps pour le sujet de construire des mécanismes pour faire face à l’intensité mortifère

de ces situations.

Le retour en continu de la perception de ces scènes, que ce soit pour le sujet ou dans une nation,

produit des situations d’impuissance aboutissant à la position subjective de la victime dans une sorte

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de perdition quant à la possibilité d’appartenance. La présence impérative de la condition de victime

qui présente des résistances, afin de construire des alternatives à une autre position, légitime, dans une

certaine mesure, la condition de l’agent qui pratique la violence. Ainsi se perpétuent en tant que deux

positions étanches la victime et le bourreau, comme s’il n’y avait pas même de possibilité de pacte entre

eux. Celui-ci est un aspect qui demandera un approfondissement. Toutefois, lorsque qu’on idéalise ces

positions, fermement, on consolide l’impossibilité de négociation entre les hommes et les nations au

nom d’accords pacifiques, car ce qui reste, au premier plan, c’est la haine d’une part et la soumission

d’une autre.

3. La scène traumatique: l’agresseur et la victime

Les positions de la victime et de l’oppresseur sont alignées dans le même piège. Néanmoins,

c’est l’oppresseur qui parvient à déclencher la souffrance infligée à la victime qui, une fois exposée

à la situation, perd ce qui lui est de plus précieux: la confiance de l’humanité une fois ébranlée

est difficilement retrouvée. De même, l’oppresseur ne perd pas sa condition de faire déclencher, à

n’importe quand, l’engrenage de la souffrance. Mais nous devons souligner que ces positions ne sont

pas interchangeables, malgré l’accord qui peut être établie entre eux, surtout lorsque la victime devient

passive et résignée devant le chemin de la mort.

Si dans la relation victime / bourreau ce qui se passe est de l’ordre de la déshumanisation, la

même chose se passe quand une nation décide de détruire une autre pour des apparats belliqueux.

Dans ces circonstances, les accords ne sont pas réalisés par des négociations à travers de la parole,

mais par l’imposition de la guerre; de vrais pactes politiques qui se produisent seulement quand toutes

les possibilités de négociations entre les nations sont en échec. Ainsi, la violence entre en jeu, dans

son caractère instrumental, et apporte avec elle un élément arbitraire car, comme dit Arendt (2010,

p. 19) « la raison principale en fonction de laquelle la guerre est toujours entre nous, c’est le simple

fait qu’aucun remplaçant à cet arbitre ultime dans les affaires internationales est survenu sur la scène

politique. »

L’exposition de l’homme à des expériences qui dépassent la limite de ce que l’on supporte

et comprend corrobore la production de la violence. En ce sens, tout ce qui est dans l’ordre de

l’irreprésentable, de l’indicible et de l’incompréhensible se convertit en violence puisqu’il est une

expérience traumatisante. Et, pour cette raison, tout a tendance à se convertir en une sorte de perception

fréquente avec une intensité remarquable, au point de mettre le sujet, continuellement, devant

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l’expérience qui dépasse les limites de ce qu’il supporte. Ainsi, la violence de la situation s’inscrit, sans

aucune preuve d’élaboration, et revient avec insistance sur la condition d’un aspect mortifère de la vie.

La forme paralysante de l’expérience traumatique exige souvent une longue temporalité pour être

élaborée, en fonction de la disponibilité du sujet pour réussir à produire une écriture. À ce propos, nous

pouvons illustrer à travers la littérature de témoin de plusieurs survivants des camps de concentration qui

affirment catégoriquement, lors de leurs libérations, qu’à ce moment-là ils ne pouvaient même pas faire

un rapport sur leurs expériences vécues. Parmi les plus remarquables on y trouve celui de Primo Levi qui

a eu besoin d’une quantité considérable de temps pour donner corps à ses mémoires et quand même il

nous présente ce qu’il a appelé la zone grise comme une sorte de situation impossible à être décrite étant

donné le caractère de l’incompréhension car, « entourée par la mort, souvent, la personne déportée n’était

pas capable d’évaluer l’ampleur du massacre qui se déroulait devant ses yeux » (Lévi, 2004, p. 14). Pour

cela, n’importe quel écrit sur l’expérience d’un survivant, pour n’importe quel genre de massacre, se

produit uniquement en filigrane, étant donné que de nombreux aspects ne sont même pas approfondis.

Ainsi, les mémoires de ces expériences, comme toute ou n’importe quelle expérience traumatisante,

ne sont pas écrites dans toute leur clarté, vu qu’elles s’effacent, se modifient et aussi qu’elles intègrent

aussi des éléments étranges. Cela signifie que les situations traumatisantes ont la potentialité de falsifier

la mémoire, soit par l’interférence d’autres souvenirs en tant que ressources pour l’oubli des atrocités

vécues, soit par des distorsions dans les états de conscience qui, progressivement, retirent ou ajoutent de

nouveaux aspects aux décors de la situation vécue. Elles risquent aussi la possibilité d’être offusquées et

oubliées, et ainsi peu de souvenirs résistent.

Il y a un point intéressant à ce sujet: la mémoration d’une expérience traumatique ou subie ou

infligée est potentiellement violente à cause de la reprise de l’intensité douloureuse qui est mise à jour

et par la perturbation qui se produit sur celui qui a subi le traumatisme et qui s’efforce pour annuler la

perception courante ou même s’en débarrasser. Traitant ceux qui infligent le traumatisme, il est possible

que lorsque nous ne sommes pas dans le régime de la torture, la mémoration se rhabille d’un sentiment

de culpabilité.

La marque de la violence due aux expériences, allégées de négociations par le mot, devient un

traumatisme autant pour la victime que pour l’oppresseur dans les conditions signalées qui exceptent le

massacre, la torture, le lynchage, les querelles religieuses, les tueurs à gages et tant d’autres catégories

de bourreaux sociaux. Généralement les responsables de la pratique de tels événements quand ils se

déshumanisent pour anéantir leurs victimes, ne sont plus capables d’enregistrer n’importe quel sentiment

de caractère traumatique en fonction de l’action pratiquée. Dans ces agents, probablement, on trouve

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une instance critique féroce qui voit, dans la dévastation, la possibilité d’élaborer des dommages subits

dans la vie, mais comme une passion folle. Cette expérience de férocité comme une ressource échouée

pour quitter l’état d’impuissance causée par l’exposition à une situation traumatique, s’exprime par

la violence à la rencontre de son semblable. Mais pour autant, la première action est de l’oppresseur

consiste à se déshumaniser pour après traiter l’homme comme une chose susceptible de domination et

de manipulation technique. Ainsi perdure le visage de l’horreur dans son état brut sans aucune forme

de rationalité. Évidemment, il y a un ennemi intérieur qui est projeté dans certaines figures qui, dans le

contexte social, représentent la position de bouc émissaire. C’est dans cette perspective que l’oppresseur

se voit confronté à une insulte juste par le fait de l’existence de son semblable, raison pour laquelle il

s’arbore à l’emmener à la condition d’apathie totale. Mais où rencontrons-nous ces oppresseurs?

4. Le contexte social et les acteurs de la violence

Il n’est pas si difficile d’énumérer les agents qui s’occupent, techniquement, à provoquer des

dommages au sujet seul mais aussi à des groupes, des communautés, des nations. Dans cette ligne

d’acteurs on trouve les assassins, les meurtriers, les contrevenants, l’Etat quand il impose l’aliénation

aux intellectuels, les agents de sécurité excellents, à tout prix, pour maintenir l’ordre. Voici quelques-

unes des figures qui s’élèvent continuellement dans les fantaisies traumatiques des victimes, et emmènent

beaucoup d’entre elles à ne plus supporter le poids de la vie en choisissant le suicide. Combien de

survivants des camps de concentration, une fois libéré, ne pouvaient pas supporter de vivre avec le poids

des souvenirs et se sont tués? Combien de personnes torturées ne pouvaient-elles pas se débarrasser de

l’image tourmenteuse de leurs oppresseurs, et ont succombé à la mort? Sur ces gens s’est fermé l’horizon

existentiel d’un minimum de possibilités, au sens de l’élaboration des expériences vécues, bien comme

il y a eu l’incrédulité dans n’importe quelle valeur morale capable de réglementer les actions parmi les

hommes.

Certainement, ces personnes ont perdu la crédibilité pour faire confiance aux hommes, aussi bien

qu’elles ne croient pas que les pactes établis culturellement peuvent renverser de telles situations. Il y a

sans doute une force individuelle qui opère d’une telle façon qu’il n’envisage que la possibilité d’échec.

Autrement dit, les impératifs catégoriques de la collectivité comme tu ne commettras point d’homicide,

tu ne violeras point tes prochains, tu ne séquestreras personne, tu aimeras ton prochain comme toi-

même, ne sont plus crédités comme un héritage moral, c’est-à-dire, il n’y a plus d’espoir en eux pour

faire arrêter ou barrer la potentialité de la destructivité humaine. C’est ce que Freud (1976, p. 134) nous

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apprend quand il dit que « la culture espère empêcher les excès les plus grossiers de la violence brutale

en se donnant elle-même le droit d’user de violence envers les criminels, quant aux manifestations plus

prudentes et plus subtiles de l’agression humaine, la loi n’est pas en mesure de les prendre en compte.

» C’est l’impasse à laquelle nous sommes confrontés dans le processus de civilisation. C’est-à-dire les

impératifs de la violence individuelle et collective ne sont pas endigués, avec totale efficacité, par les

dispositifs issus du progrès scientifique; ni par la possibilité de l’homme de laisser tomber définitivement

la lance comme manière d’offense à son semblable. Cela signifie que les aspirations, de nature méchante,

habitent autant l’imagination de l’homme que des nations. Comme l’a souligné Naffah Neto (1997,

p. 104) « le fait est que nous, les hommes contemporains, nous perdons notre conscience quotidienne

de notre côté agressif, violent, cruel. Quand il apparaît, en jaillissant dans les torrents et nous domine

complètement, nous sommes pris par surprise, parce que notre envergure intérieure est trop petite. »

Ainsi, l’homme est presque aveugle, dans le sens de la reconnaissance de la bête humaine, le bandit,

l’assassin qui l’habitent, car il n’a même pas la disposition d’admettre cette possibilité, et encore moins

de vivre avec cette évidence.

Dans des circonstances dans lesquelles se manifeste, chez l’homme, une impulsion agressive

incontrôlée, généralement, presque toujours la possibilité de l’apparition de cette impulsion est attribuée

à un autrui en tant qu’agent coupable. Il n’est pas surprenant que plusieurs crimes d’une plus grande

atrocité ont été commis par des personnes apparemment équilibrées et justifiées par une certaine logique

rationnelle. À cet égard, on peut lancer une explication: plus élevée est la dissociation entre la conscience

et la reconnaissance de ces impulsions, moins grand est le contrôle et plus intense est l’action violente.

Nous pouvons également utiliser cette réflexion à penser la société contemporaine qui marche, de telle

manière qu’elle s’oppose à certaines pulsions naturelles de l’homme comme, par exemple, les conditions

de défense contre les menaces imminentes. Ainsi, encore une fois nous recourrons à une interprétation

proposée par Naffah Neto (1979, p. 106) affirmant que « l’homme de subjectivité étroite, incapable de

percevoir que le marginal demeure non seulement le monde mais aussi ses entrailles, sera une proie facile

pour les idéologies fascistes qui divisent le monde entre le bien et le mal. » Sans aucun doute, la possibilité

de compréhension et d’élaboration de ce côté sombre de chacun pour soi-même, constitue une tâche assez

difficile dans un monde où le sens de la vie devint banalisé et se perdit presque complètement, où les

idéologies deviennent extrêmement utiles, surtout quand elles sont utilisées pour justifier toutes sortes

de ségrégation afin d’éliminer tout ce qui importune, dans l’espoir de produire une homogénéisation de

l’homme en série.

C’est ainsi que le propre État très souvent prend, volontairement, la face de la violence, surtout

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dans l’absence de ses fonctions de base pour la survie de l’homme. Voici ce dont nous pouvons faire

allusion quant au scénario économique qui excelle surtout par la consommation comme une formule de

bonheur ou de règlement des collectivités. Autrement dit: la prolétarisation généralisée obéit à l’attente

de l’accumulation de plus-value d’un maître anonyme et invisible qui présente une multiplicité d’agents

spécialisés dans la promesse de sécurité, de bien-être, de corps parfaits, et montre, d’une manière subtile,

que la violence s’exprime en actions issues d’un dieu obscur à qui l’on ne doit qu’obéir sans aucune

argumentation. (ZALOSZYC, 1994). Ce dieu obscur peut apparaître erroné dans la figure de l’Etat.

Ainsi, nous sommes devant un conflit entre les intérêts collectifs de l’Etat, soutenus par les

impératifs moraux de réduction ou minimisation de la violence brute sur le sujet, et l’engrenage capitaliste

qui stimule constamment le sujet à la consommation effrénée. Voici deux tendances qui circulent dans

notre temps qui entraînent une divulgation de la subjectivité qui est exposée à l’air libre, de sorte que,

comme affirme Freud (1979, p. 267) « notre esprit, ce précieux outil par lequel nous nous maintenons

en vie, ne constitue pas une unité pacifiquement indépendante. » Nous pouvons comparer le psychisme

d’un Etat moderne dans lequel la masse des gens du prolétariat, avides de plaisir et de destruction, doit

être contenue par des principes moraux prudents. En ce sens, autant le flux de notre vie psychique que

le mouvement des masses sont des mises à jour transmises comme des héritages de mémoire par nos

ancêtres. Mais la force de ces représentations ne sont pas toujours susceptibles d’être apprivoisés ou

endiguées, ainsi que, très souvent, ne s’adaptent pas même aux demandes sociales. Cela signifie qu’une

grande partie de notre vie psychique, ainsi que ce qui maintient une masse homogène, se montre, dans

une certaine mesure, ingouvernable et, s’il n’y a aucun dispositif social, elle se manifeste sous forme de

violence, et peut conduire à la ruine. Comme on peut le voir, le processus de socialisation produit un état

de fragmentation dans notre psychisme de telle sorte que certaines de ses inclinations sont maintenues

endiguées tandis que d’autres sont dérivées à d’autres fins. Ainsi, on espère contenir minimalement la

propension à la destructivité par la pratique de la violence.

La division des forces dans notre activité mentale peut être comparée à la dynamique de

fonctionnement des groupes, des communautés, des nations qui ont besoin de dériver une partie de

l’intensité liée à l’agression contre le semblable, en tant que conditio sine qua non, pour l’établissement

et la maintenance des liens sociaux. Néanmoins, ces efforts n’éliminent pas l’apparition d’acteurs de la

destructivité qui se chargent d’exposer l’homme à des situations traumatisantes. Souvent, ces acteurs

agissent de telle sorte que leurs actes de violence sont enregistrés dans l’imaginaire des populations durant

de nombreuses décennies. Et ainsi, le sujet devient le prisonnier d’une image qui le harcèle constamment

comme un fantôme qui le hante et dont il ne peut se débarrasser.

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Ce fantôme est d’une intensité assez forte qui empêche la circulation naturelle de l’homme

dans l’élaboration de ses projets pour la vie, puisqu’il est difficile d’oublier ce qui persiste comme une

perception courante, soit par les évidences exprimées en marques indélébiles comme des mutilations

corporelles et autres formes; soit par des dégâts psychiques en face d’une menace dont on ne peut pas

définir l’origine. Ainsi, le sujet est dans un état de monotonie qui frôle l’apathie et d’indifférence devant

une scène qui ne cesse pas de se produire, non plus avec l’agent qui causa la situation traumatique,

mais avec une instance intériorisée identifiée à un maître puissant devant lequel il n’y a aucune autre

alternative, sauf la résignation. Mais même dans ces circonstances, il est encore possible que le sujet

se demande pourquoi un tel maître le fait souffrir, ainsi que pourquoi est-il aussi le destinataire de la

souffrance? D’une certaine façon, la position de sujet qui s’exposa à une situation traumatique en ce qui

concerne la possibilité de ne pas savoir pour quelle raison le dieu obscure le fait souffrir est un impératif

qui commande la vie de la victime, en limitant à lui substantiellement les actions au point de l’enfermer

dans une prison subjective, condamné à un sort incertain dans un scénario dans lequel le mot n’a plus de

valeur en tant qu’outil de négociation. Ainsi se passe le choc qui frappe le sujet de la situation traumatique,

tout en étant un noyau dur à enlever, bien que pas impossible en termes de production, d’arrangements

minimaux quels qu’ils soient, d’élaboration. Cela veut dire qu’il y a des possibilités d’éloignement de

ces situations en les transformant en souvenirs et sans les maintenir avec des perceptions récurrentes.

5. Réflexions finales

Pour commencer nos réflexions finales comme point de départ nous prenons deux arguments: 1.

L’expérience de la subjectivité est la principale référence dans le processus de constitution de l’homme

et, pour ainsi dire, il renvoie à un moment où l’état de délaissement se trouve dans toute sa plénitude.

Ainsi, le souvenir de la condition d’impuissance peut même prendre un caractère traumatique par le

fait d’alerter le sujet en termes d’un éventuel état de passivité et, 2. L’homme est marqué, dès qu’il se

présente au monde comme un être parlant, par des représentations sociales et politiques, qui varient

historiquement.

En ce sens, on situe l’homme d’aujourd’hui comme quelqu’un qui cherche le bonheur à tout

prix et est donc « tiré par cette exigence qui fait ressurgir la dimension catastrophique du psychisme,

antérieur à l’élaboration, dont les conséquences amènent à adopter des comportements suicidaires »

(FUKS, 2006, p. 26). Sur le plan collectif, les dégâts du discours hégémonique néolibéral évoquent la

barbarie. C’est ainsi que nous situons l’histoire de l’homme comme l’histoire de l’assassinat des peuples,

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d’actions destructrices insérées au sein de la civilisation. Tout cela provient d’un projet élaboré, au

niveau politique, qui est basé sur la logique de l’exclusion de figures qui ne partagent pas le même idéal,

et donc, considérées comme différentes et non désirées.

Afin d’élargir la portée de cette conclusion, on pourrait affirmer que l’Etat fait circuler le projet

d’égalité et amour entre frères d’ethnie, tout en conduisant la haine contre les non-identiques en les

plaçant sur les marges pour être éliminés. Ainsi, l’intolérance de nos jours, que ce soit des nations ou

d’un sujet isolé, se convertit en une grande menace, à mesure où elle se situe, de manière brutale, dans

la promotion de la haine envers la différence quelle qu’elle soit, présente ou ayant fait partie du passé.

L’intensité de cette haine nous fait penser qu’un mécanisme d’élaboration ne fut pas possible pour faire

ralentir ou même transformer cette puissance destructrice à d’autres fins.

Nous voyons dans le scénario du quotidien présent, l’invention de dispositifs assez efficaces

dans ses actions techniques, mais qui ne connaissent pas les limites de la mort et qui, pour cette raison,

gonflent le processus de destruction en masse. Les événements sont tels que, difficilement, on a le temps

d’en rédiger un seul parce qu’un autre est déjà imminent. Ainsi, on n’a plus ni de pratiques de cérémonies

et de rituels dans le but d’élaborer des pertes, ni d’expiation de la mort de personnes. A la place du

cérémonial et du rituel on a la position subjective dans laquelle l’homme enlève toute signification de

la mort, culminant avec la banalisation. Compte tenu de ce processus de déshumanisation il est facile

pour l’homme de se dégager de toutes les tentatives de réparation ou de symbolisation par rapport aux

personnes qui meurent ou même devant les ruines et les débris résultant de la destructivité.

D’une certaine façon, nous pouvons approfondir nos considérations et nous poser la question

sur quel serait le sens de la désacralisation de la mort, tellement évidente de nos jours? La première

idée à laquelle nous sommes confrontés est que la suppression radicale du sens de la mort doit être le

moteur qui déclenche la terreur traumatique avec laquelle nous sommes constamment confrontés, en

particulier, dans certains acteurs qui commettent des assassinats sans laisser de trace des corps. Ainsi, la

torture, le massacre, le génocide et surtout l’industrie de production de cadavres qui ont eu lieu au XXe

siècle, constituent de vrais traumatismes laissant des restes indélébiles qui peuvent difficilement être

élaborés. En fait, la catastrophe connue sous le nom des morts dans les camps de concentration laissèrent

des traces, bien nets, qui franchisent la civilisation, de sorte que l’homme n’a aucun moyen d’esquiver

devant l’impondérable, l’indicible et l’incompréhensible

L’extermination de la Seconde Guerre mondiale ne doit pas être considérée comme une guerre

en faveur de la vie, mais comme l’exercice de la cruauté pratiquée par des moyens techniques et facilitée

avec les progrès scientifiques. D’ailleurs, comme l’a souligné Seligmann-Silva (2000, p. 78) la barbarie

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qui a décimé des milliers de vies peut être interprétée comme un objet « qui échappe à la représentation,

justement à cause de son excès, c’est-à-dire, il ne peut pas être défini, sauf par une affirmation générale

sur quelque chose qui doit être mis en phrases, mais il ne peut pas l’être. » Cela signifie qu’il s’agit

d’une expérience traumatisante impossible d’être représentée exactement en raison de la difficulté de

la capacité humaine pour ne pas même parvenir à l’imaginer. Par conséquent, l’expérience est indicible

à l’endroit exact où il n’a pas été possible de la vivre dû à la rupture des mécanismes de mémoire

nécessaires pour l’enregistrer. Donc, l’expérience traumatisante, dans son caractère débordant, est

précisément un trou que l’on produit dans les nappes de la mémoire. Pour cela, très souvent, ce que

l’on peut produire ne sont que quelques éléments qui bordent ce trou dans la chaîne de représentations

psychiques. Ainsi, le traumatisme est un élément qui déborde la capacité de réception du sujet, allant

au-delà des limites de la capacité perceptive, et c’est un type d’expérience sans forme ni couleur.

Voici la raison pour laquelle la scène du traumatisme se répète indéfiniment. Tout d’abord, la

répétition est une tentative d’élaboration. Deuxièmement, le retour de la scène peut servir à préparer

le sujet devant l’insupportable relatif à l’expérience écrasante. Troisièmement, on espère, à travers

la répétition, minimiser le choc causé par un traumatisme ou produire des mécanismes de l’oubli qui

affaiblissent l’intensité de l’expérience traumatique.

Nous devons encore nous poser la question sur le processus de meurtre des civils qui ne se

produisent pas forcément dans les pays en guerre. À cet égard, nous pouvons seulement penser qu’il

s’agit d’une stratégie de violence destructive transformée en une action politique conformément à ce

qu’il s’est passé lors de l’extermination des Arméniens par les Turcs et de l’extermination des Juifs

par les Allemands. Il est intéressant de noter que ces peuples n’étaient pas en guerre, mais qu’ils

furent inclus par l’Etat, selon de différentes logiques, comme des personnes à être exclues, raison

pour laquelle le meurtre fut justifié en termes de principes tels que l’ordre, le nettoyage ethnique,

l’organisation, la pureté, entre autres. Ce qui se passe à travers ces pratiques, c’est que, pour certains,

il y a des vies qui ne sont pas dignes d’être vécues et qui, pour cette raison, doivent être éliminées. Là,

la cruauté se met en scène comme la face sombre de la violence, mais cependant, elle produit des effets

attendus.

Pour conclure, à titre d’illustration il est pertinent de se rappeler des fabriques de meurtre du

XXe siècle qui sont encore en activité, mais plus sophistiquées pour qu’elles reflètent le progrès du

temps où nous vivons. Les camps de concentration ont produit les formes de terrorisme avec l’assassinat

en masse sans que la construction d’un lieu soit nécessaire, car on se tue sans discernement. Voici ce

que nous pouvons penser sur les icônes du capitalisme, les tours de World Trade Center, en tant que

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86

de vrais sarcophages humains, d’après Baudrillard (2004), ont été transformés en usines de la mort

sans que personne n’aurait jamais imaginé que cela se passer. Les trains produits comme un moyen de

transport ont été utilisés comme instruments de la mort par suffocation, par soif et faim. Et les invasions

de l’Afghanistan et d’Irak, tout en tenant compte du « meurtre israélien et de l’occupation obscène des

territoires palestiniens et des explosions meurtrières des palestiniens contre les femmes et les enfants»

(Fuchs, 2006, p. 32). Il y a aussi le meurtre dans la Communauté d’Acari et celle des garçons devant

l’église de Candelária dans la ville de Rio de Janeiro. Ces événements et d’autres encore sont de vrais

traumatismes qui assaillent l’homme de nos jours de façon que nous puissions dire que nous vivons une

ère d’un traumatisme sans précédent avec l’apogée de la culture de la mort et de la dévaluation totale de

la vie.

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Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

A éTICA DO TRABALHO E DAS RELAÇõES INTERPESSOAIS NA ORGANIzAÇÃO DO TRANSPORTE INFORMAL DA METRóPOLE DO

RIO DE JANEIRO

THE ETHICS OF WORk AND INTERPERSONAL RELATIONSHIPS IN THE ORGANIzATION OF INFORMAL TRANSPORT IN THE METROPOLIS OF RIO DE JANEIRO

Hernán Armando Mamani 1

1 Doutor em Planejamento Urbano e Regional, Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

PALAVRAS-CHAVES Transporte Informal, Mercado de Trabalho, Empreendedores Populares

Este artigo descreve e interpreta as relações de trabalho e a organização da produção do transporte informal da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, tendo como objeto relatos e histórias de vida de motoristas de “vans” e “kombis”. Nos referidos relatos, proprietários de veículos e presidentes de cooperativas apresentam suas relações de trabalho e produção, bem como seus vínculos com a política municipal e estadual, como relações pessoais. O presente trabalho sustenta que, antes que “atraso” e “clientelismo”, esse fato expressa uma “racionalidade” econômica e política relacionada a valores, ancorada num ethos e uma ética de empreendedores populares.

RE

SUM

O

KEY-WORDS Informal Transport, Labor Market, Popular Entrepreneurs

This article describes and interprets the work relations and the organization of Rio de Janeiro’s Metropolitan Region’s production of informal transport, having reports and life histories of “vans” and “kombis” drivers as the object of study. In these reports, vehicle owners and Cooperatives Presidents present not only their work and production relations, but also their associations with State and Municipal Government as personal relationships. This paper argues that, more than an old-fashioned position and an example of “clientelism”, this fact expresses an economic and political “rationality” which is related to values and anchored to the ethos and the ethics of informal entrepreneurs.A

BST

RA

CT

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2 Analiso aqui treze entrevistas. Uma sinopse da amostra pode ser vista no quadro 1 do apêndice. 3 Categoria nativa que se contrapõe a piratas ou clandestinos.

Introdução

Neste artigo, proponho descrever e interpretar as relações de trabalho e a organização da produção

do transporte informal da Região Metropolitana do Rio de Janeiro a partir de relatos e histórias de vida

de motoristas de “vans” e “Kombi”. A pesquisa de campo foi realizada entre os anos 2002 a 2004 e foi

fundamentada em observação, entrevistas e levantamento e análise de documentação. Considerando o

material coletado, exporei a observação que se destacou no trabalho de campo: no transporte informal

do Rio de Janeiro, proprietários e presidentes de cooperativas apresentam suas relações de trabalho e

produção como relações pessoais - relações de parentesco ou amizade, quando positivas, e inimizade

e ódio, quando negativas. Os mesmos termos caracterizam as relações das cooperativas e federações

de cooperativas com as autoridades municipais e estaduais. Este fato, interpretado como “atraso” e

“clientelismo” nas abordagens econômicas e técnicas, expressa uma “racionalidade” econômica e política

específica evidenciada na pesquisa de campo realizada no âmbio de minha Tese de Doutorado. Com

efeito, apresentarei tal racionalidade com relação a valores, destacando o ethos e a ética destes atores –

que denominei de empreendedores populares.

No referido contexto, quando os municípios e o estado do Rio de Janeiro realizavam a regularização

do Transporte Informal, as questões que norteavam a pesquisa eram simples: o porquê da expansão na

década de anos 90, dado que carência de transportes ocorre há muitas décadas no Rio de janeiro, e

o porquê dessa expansão ter impulsionado um forte movimento pela legalização, o que nunca tinha

acontecido, ou pelo menos não acontecia desde 1930. Essas perguntas levavam a sondar qual era a

relação desses fenômenos com o mercado de trabalho e com a cidade, pondo em dúvida a fácil relação

com a desregulamentação neoliberal e a promoção do empreendedorismo e da cidade global.

1. Tipo de Informais e Formas de Circulação

As entrevistas1 tinham como ponto de partida a percepção das causas da expansão do transporte

informal nos anos 90. Proprietários, motoristas e presidentes de cooperativas afirmavam, invariavelmente,

que o “transporte alternativo2” não era novidade. As “kombis” interligavam o centro do bairro até a sua

periferia na Zona Oeste desde os anos 70. Atuavam, também, nas favelas planas, sendo pouco expressivas

em outras áreas. Beneficiavam-se da falta de serviço e do não cumprimento de horários por parte das

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empresas de ônibus. Já na década de 90 - antes da expansão das “vans” – os ônibus “piratas” interligavam a

periferia ao centro da cidade. A circulação de “vans” teria iniciado mais tarde, por volta de 1994, realizando

o transporte de turistas e fretamentos3, e a partir de 1995 “lotadas”. Inseriram-se numa brecha deixada

pelos ônibus, por ocasião do colapso do sistema ferroviário, metroviário e da CTC – do sistema público de

transportes – que antecedeu à privatização desta última, atendendo passageiros inicialmente dos Subúrbios

ao Centro e, logo depois, da Baixada ao Centro.

Além da cronologia, os termos “vans”, “Kombis” e ônibus “pirata” definem diferentes formas de

circulação na cidade. As primeiras operam, majoritariamente, em trajetos curtos, conectando um subcentro

a um bairro periférico, enquanto as demais realizam, predominantemente, a conexão radial em direção

ao centro da metrópole. As “vans”, que atuam no município sede, atenderiam à classe média, enquanto

kombis, “vans” e ônibus da periferia atenderiam ao “povão”.

A organização do trabalho não difere muito entre as três categorias e assemelha-se a dos ônibus ou

táxis que se constitui de proprietários, motoristas auxiliares, cobradores, fiscais e chamadores – denominados

papagaios. Na cidade, os locais de chegadas e partidas - “pontos” - podem ser controlados por um “dono

de ponto” ou podem ser garantidos por outros arranjos de grupos de motoristas ou de Cooperativas. Aliás,

a Cooperativa - que aglutina operadores isolados por áreas da cidade e serve de instância de solução de

conflitos internos e regionais - é um aspecto inovador do transporte informal da década de 90 (no caso das

“vans” e das kombis). As cooperativas organizam-se através de Sindicatos e Federações. Em janeiro de

2002, no Estado do Rio, opunham-se a Federação de Cooperativas de Transporte Alternativo do Rio de

Janeiro (FECOTRAL), a Federação do Rio de Janeiro de Janeiro de Transporte Alternativo (FERTALRio) e

a Federação de Cooperativas de Vans (FECOVAN), o Sindicato de trabalhadores do Transporte Alternativo

(SINTRAL) e ainda a Confederação das Vans (CONVAN ), expulsa da FECOTRAL.

Quanto às causas da proliferação do transporte informal e da politização do tema ao longo dos anos

90, era enumerado o desemprego, originado na crise industrial, no enxugamento da máquina estatal e aliado

à carência de transportes; bem como uma política econômica que possibilitou a oferta e compra de veículos

capazes de atender à demanda de rapidez e conforto de consumidores dispostos a pagar, um pouco mais

caro, por “vans”. Seria um transporte duplamente alternativo: uma alternativa de trabalho e uma alternativa

de transporte. Os proprietários de “vans” e “kombis” eram trabalhadores desempregados, que aplicaram

seu capital num veículo que serve de única fonte de rendas da família. Alguns outros eram funcionários

públicos e até mesmo profissionais liberais – de classe média - que usam o veículo para complementar a

renda, ou como alternativa de investimento de rápido retorno, no caso dos ex-funcionários estatais. Os dois

3 Transporte de pessoas para fins específicos com data e passageiros pré-determinados. O transporte de passageiro análogo ao do ônibus recebe o nome de “lotada”.

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4 Na linguagem nativa: “tocar o dinheiro”.

movimentos conjugados culminam na saturação do mercado e no aumento da concorrência com ônibus

e taxis, levando à luta pela legalização ente 1996 e 1997.

2. - Valores mobilizados para explicar a atuação na economia informal

Independente da hierarquia estabelecida, entre os operadores de “kombis” e “vans”, ambos os grupos

afirmaram ter vivenciado uma grande transformação dos mercados de trabalho. A descrição de trajetórias

e das decisões que os levaram ao transporte informal – que se sustenta na busca de estabilidade, autonomia

e renda maior - segue parâmetros similares. Tais grupos argumentam mediante uma lógica econômica que

se orienta conforme certo senso de dever comum a todos – o dever para com o dinheiro e o patrimônio

familiar, o qual, como mostrarei a seguir, pode ser reconhecido como um ethos social e uma ética.

2.1 - Deveres para com o Dinheiro

Efetivamente, o senso de dever em relação ao crescimento do volume de investimento, é identificável

tanto entre proprietários de “kombis” quanto entre os de “vans”. De fato, é o volume de dinheiro investido

nos veículos que estabelece a hierarquia a que me referi anteriormente. Tal hierarquia é confirmada

quando a diretora de linha da Zona Oeste n.º 1 “sonha” com a possibilidade de renovar gradativamente

sua frota de “kombis” até chegar a “vans”.

Essa hierarquia fundamenta-se, objetivamente, em possibilidades econômicas bem calculadas,

nas quais se considera a rentabilidade possível do investimento realizado, estabelecida pela relação entre

investimento e possibilidade de retorno4, o que me foi explicado nos seguintes termos:

Um operador de “Kombi” não pode pretender cobrar o mesmo que uma van, já que seu custo e

condições de circulação são inferiores as observadas em outras modalidades de veículos, isto é, na visão

nativa, relaciona-se – mediante o cálculo de rentabilidade - as condições de produção – tecnologia e

A gente quer ter uma van, e depois se legalizar, implantar aquilo, ou o microônibus, eu acredito quer todo mundo vai trabalhar um pouco mais para conseguir seus objetivos (Diretora de Linha de Cooperativa da Zona Oeste nº 3).

...vou explicar o por que: a kombi é um custo mais barato. Eu fiz um acordo, há meia hora atrás, e fechei por 21 mil reais. Tem “kombis” que custam R$42.000,00. Vai trabalhar por R$ 1,00 então não dá. (Diretor de linha Cooperativa da Zona Oeste nº1).

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organização – às possibilidades de consumo: ao preço que seus clientes poderão pagar.

No mesmo cálculo, está embutida ainda a possibilidade do aumento da frota, ou de passar de

“Kombi” para a “van”, ou mesmo chegar a formar uma “frota de veículos” de maneira que, somados, um

pequeno investimento e muito trabalho culminem em avanços e melhorias.

Em dezembro de 2001, o diretor de linha acima citado possuía duas “kombis”, uma delas nova,

financiada com a venda de uma Kombi 1991, que o permitiu dar uma entrada de R$ 5.000, 00 e pagar 36

parcelas de R$ 630,00.

Com esses dados é possível concluir que o transporte informal é rentável, o que explica a afirmação

da Diretora de Linha de Cooperativa da Zona Oeste de “não querer parar”. Isso nos permite entrever um

“dever”6 comum de fazer crescer o próprio patrimônio, como pode ser percebido no seguinte trecho de

entrevista publicada na revista Veja de 19 de março de 1997.

A supramencionada dona de casa, que havia comprado uma towner7 a crédito, esperava a prosperidade

no futuro. Há um projeto comum de prosperar trabalhando. Os procedimentos para a realização desse

projeto - que, ao contrário do que habitualmente8 se pensa, não atingem apenas trabalhadores pobres –

demandam que se abra mão de diversos recursos para atingi-lo, como ilustra a trajetória mal sucedida

apresentada a seguir:

A gente sempre caiu dentro - eu e o meu marido - não é à toa que a gente é cheio de carro, a gente sempre caiu dentro. Agora é que eu dei uma paradinha. Eu, ele, não. Para resolver um lado da cooperativa também. Mas ele caiu dentro. Porque ele é o motorista. Mas é o que eu falei, comecei com um carro bem velhinho, aos poucos fui dando aquele passo, igual a neném quando começa a andar, e não pretendo parar. Como ninguém, com uma kombi5 (Diretora de Linha de Cooperativa da Zona Oeste nº 3).

O dinheiro que eu peguei como metalúrgico eu comprei uma kombi 79 para trabalhar. Então a gente já viveu isso. (Diretor de Linha de Cooperativa da Zona Oeste nº 1).

Estou só no começo, quem sabe ainda não vou ter uma frota de Topic (Cristina Pinheiro, dona de uma Towner 44, dona de casa) (ALVARENGA, 1997)

Em três anos espero que tenhamos uma frota de quarenta “vans” (Ana Paula Capiós. Professora, proprietária de Van da Barra da Tijuca).

4 Atenção à metáfora: dos passos infantis...6 Friso a noção de dever, pois manifesta a vigência de uma ordem que nos sentido de Weber, pode ainda evidenciar uma ética, isto é uma ordem garantida internamente, em valores internos e sentimentos de dever. (WEBER, 1982. p.22)7 Veículo de 8 lugares fabricado pela Asia Motors 8 Lautier por exemplo

Mas nesse processo, demorado de legalização perdi uma van. O carro deu problema, eu fiquei desassistido. O carro era usado, mas era um carro caro, o investimento de 25 anos, de uma vida. A minha ideia era trocar a iniciativa pública pela privada. Porque eu não queria me aposentar pelo serviço público. Aquilo ali é uma coisa que precisa ser pensada. Ali tem algumas pessoas que botam um paletó, dizem para você vestir

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Os valores que pautam a argumentação são a busca da autovalorização, do respeito e da renda

adequada, mas, também, da autonomia. A meta é uma aposentadoria melhor. Mas alcançar este “futuro”

dependia da legalização do transporte, que, se obtida, permitiria dar o “pulo do gato”.

Esta figura de linguagem popular resume a expectativa de que na ocasião em que surgir a

oportunidade de atingir um objetivo é preciso agir adequadamente, senão a oportunidade escapa. A esta

postura de maximização das oportunidades denominarei tática9, ou seja, complementar as estratégias,

concebidas como modos de agir para atingir um fim.

Neste caso trata-se de atingir estabilidade ou autonomia, que cada um alcança ou poderia alcançar

através de variados recursos10, já que parte de condições de origem diferentes, o que um diretor de linha

de kombi resume assim:

Cada um à sua maneira “tem que correr atrás”, como mencionado anteriormente na citação de um

diretor de linha, ou mesmo “se virar para viver” – estas frases iluminam um aspecto ético e moral das

práticas dos trabalhadores urbanos. Para viver, não é possível esperar pelo governo, nem que ninguém

faça por nós: temos que “fazer por onde”. Esta é a uma versão popular do “ajuda-te a ti mesmo”. E nesta

ajuda, neste merecer, é legítimo usar o recurso de que se dispõe. Trata-se, ademais de um princípio de

avaliação ampla, que deixa vislumbrar um conjunto de valores que conformam o viver. O significado de

“viver”, que obviamente é mais que o mero subsistir, permanece, entretanto, obscuro.

3. – Repertórios de valores e projetos implícitos

Os deveres para com o patrimônio e a valorização da autonomia articulam-se em cada caso a uma

...o povo também sabe, está chegando a conclusão do seguinte. Vamos dizer assim, que tem que se virar, que tem que viver. Então você vai com uma kombi para a rua, ele vai com uma van, eu vou vender um churrasco (Diretor de Linha de Cooperativa da Zona Oeste)

9 Ver Certau (1994).10 Se estratégias não mudam com variações do mercado de trabalho, como afirmam Lautier & Pereira (1994) são, contudo, motivo de reavaliação avaliação.

a camisa, dão gratificações, trazem amigos e amanhã muda, e é outro fazendo pressão. Você fica com cara de funcionário de carreira. Então eu não acredito no serviço público. Só acredito na cúpula, está ali em cima e sabe o que quer. Acredito sim, que se houvesse uma flexibilidade para repensar essa situação, então eu queria mudar a minha atividade. E perdi a van justamente por isso. Perdi a van, na época a gente moveu um processo contra um grupo daqui de dentro, muito tendencioso, só pensava em causa própria, fizemos uma proposta séria, acreditando na legalização e acreditamos que agora com esse passo, nós vamos dar o pulo do gato. (Diretor de Cooperativas de Grande Niterói)

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11 Os 40 anos de idade aparecem como referência para a inflexão profissional destinada a obter maior estabilidade e/ou a aposentadoria, associada a outra atividade, como uma das formas de realização. Algo semelhante ao apontado por Lautier (S. D, p. 3). Essa inflexão faz parte do modelo analítico de Machado da Silva (1971).12 Tomo como referência neste caso a noção Modus operandi ou habitus, segundo Bourdieu (1989) que assume a forma de projeto implícito.13 Trata-se de uma ética do empreendedor diferente da ética protestante embora lhe seja análoga, em muitos pontos, na medida em que incorpora a sorte.14 Ou capitais para usar os termos de Bourdieu (1989).

avaliação das possibilidades individuais e da idade11. Mas estes cálculos não têm como sujeito o simples

indivíduo: a família é o núcleo central dessas estratégias. De fato, a família, o patrimônio e os deveres para

com estes representam um momento significativo dos discursos.

Ouvi de uma liderança da categoria, numa reunião com vários presidentes de cooperativas a

seguinte frase: “A gente faz tudo pela família e o patrimônio”. O comentário foi sucedido por varias

manifestações de assentimento. Essa frase, na boca de um homem, resume o ideal do “provedor”, atribui

à família um valor supremo, capaz de justificar um amplo leque de ações (tudo). Parece-me, ainda, mais

significativa ao observar que foi usada numa conversa com colegas sobre assuntos de trabalho. Permite

inferir que se trate de uma concepção difundida e aceita, de uma ética, capaz de orientar ações. Seria

um elemento valorativo de uma racionalidade referida a valores que orientam as práticas econômicas

no transporte informal. A mesma articulação pode ser também percebida no depoimento do Diretor de

Cooperativa da Zona Oeste, já citado: busca-se construir um patrimônio para o futuro da família, ou seja,

o futuro da família apresenta-se como projeto12.

É notável que esta racionalidade – modo de pensar – seja de um tipo diferente, não meramente

instrumental, como se atribui, habitualmente, ao tipo de empreendedor individual e ao empresário, que

manteria a rápida separação de entre as esferas profissional e familiar. Estas práticas pareceriam articular,

à esfera econômica, elementos valorativos da esfera doméstica, vínculos entre familiares e amigos.

Família e patrimônio, nos depoimentos, revelam elementos visíveis de uma ética que estipula

o dever de velar por ambos. O zelo no cumprimento do dever iguala moralmente os empreendedores13,

conformando um conjunto vasto de práticas. A ética identificada é parte integrante de um ethos social que

não se afirma pela busca de um estatuto, como afirmam Lautier & Pereira (1994), senão por algo mais

próximo ao que tradicionalmente se denominou mobilidade social ascendente. Constitui-se um projeto

implícito, em que se abdica de um conjunto variado de recursos14, que não são unicamente relativos

ao trabalho, já que a família é o centro da ação. Essas estratégias, por outro lado, não se alteram com

variações econômicas temporárias, mas que comportam mudanças no sentido da ação e longos períodos

de busca. Pode tanto valer-se de uma rede de contatos interpessoais, como passar pela educação ou pelo

financiamento familiar, conformando trajetórias intergeneracionais.

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15 A noção de busca e realização, posteriormente ao achado do lugar... Apresenta grande analogia com a noção de vocação. 16 A inserção em atividades informais, ao contrário do que, normalmente, se pensa não é fácil exige a inserção em redes sociais e a disposição para fazê-lo.

3.1 - Estratégias Intergeneracionais

As trajetórias intergeracionais supõem investimento em educação, tendo como objetivo obter um emprego

valorizado no mercado de trabalho. Essas trajetórias estão, também, sujeitas a inflexão e a alteração como

mostra o depoimento da Presidente de Cooperativa da Grande Niterói:

Neste caso a estratégia inicial esteve dirigida à formação educacional e visou à obtenção de um

emprego público, sendo reavaliada numa busca que levou a outro caminho: firmar-se como liderança de

classe e fundadora de cooperativa.

O investimento em educação demanda algum tipo de apoio familiar (a família como unidade

reprodutiva) sem que o sucesso esteja, necessariamente, garantido, como ilustra o depoimento do Diretor

de cooperativa da Zona Oeste.

Nesse caso, o investimento em educação destinado a garantir que o filho pudesse se integrar à indústria

metalúrgica como operário qualificado, fracassou por conseqüência de transformações econômicas. Esse

episódio aponta para um dos riscos da estratégia educacional: a defasagem entre o momento em que se

projeta e em que se realiza o investimento em educação e o momento de seu retorno através de um posto

de trabalho. Nesses casos, quando as estratégias falham ou sua efetividade é limitada pelas transformações

econômicas, o trabalho não formalizado – o transporte informal neste caso – apresenta-se como uma

alternativa. Uma alternativa16 ao desemprego, como posto pelo Diretor de Linha de Cooperativa da Zona

Oeste nº1, em trecho citado anteriormente, que repito aqui.

Olha, se você for ver. Eu fiz na UFRJ, dois anos de Farmácia. Depois saí para Direito e não acabei. A primeira vez que eu entrei na UFRJ foi para Engenharia Química. É aquele negócio. Eu estava tentando... ( Presidente de cooperativa da Grande Niterói)

As tentativas nos vários cursos correspondem à expectativa de uma posição ou lugar social que permita realizar o projeto implícito do que antes falava15.

Eu fazia faculdade e [...] era funcionária pública da Secretaria de Educação. Aí pedi demissão, porque o meu cigarro, a minha passagem era o ordenado todo. Eu saí em 1993. Aí fui trabalhar na Banana Boat que depois legalizou, e eu saí. Aí entrei no transporte. (Presidente de cooperativa de Grande Niterói)

O meu filho já está dirigindo kombi. Junto comigo. Ele tem 24 anos, ele fez 2º grau só, fez técnico em mecânico industrial. E a única coisa que ele conseguiu foi fazer um estágio. E assim mesmo porque eu tinha conhecimento e consegui esse estágio para ele. E de lá para cá, deixou currículo em vários lugares e não conseguiu. . Porque também não tem uma experiência. Porque no Brasil é o seguinte: o que conta mais para eles é a experiência até um determinado ponto. Daí para frente a experiência passa a não contar mais. Não é? Porque aí o cara com 40 anos já é considerado velho para o trabalho no Brasil. Aí o cara velho, cheio de experiência só que não serve mais. Só que quando o garoto tem 21 anos e ele ainda não tem aquela experiência, aí eles pedem. E o cara esbarra nisso aí. Então esse meu filho está nessa aí. E vários outros garotos novos que também trabalham no transporte alternativo aí porque não tem uma outra opção. (Diretor de Linha de Cooperativa da Zona Oeste nº 1)

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Estratégias não mudam do dia para a noite, pois supõem investimento e cálculo de longo prazo.

Elas sofrem, contudo, restrições quanto à possibilidade de realização. Quando não são bem sucedidas,

entram em jogo as tentativas de reconversão e a inserção em redes sociais. Em verdade, (a possibilidade de

reconversão e) as estratégias são parte integrante do que denomino, aqui, ethos do empreendedor popular

urbano. Num primeiro e decisivo momento aciona-se a rede familiar e social (em que está inserida) para

ingressar no mercado de trabalho, como mostrarei a seguir.

3.2. Estratégias Presentes: A Rede, a família e os amigos

Como já é fato bem conhecido, a inserção numa rede social é de fundamental importância para

ingressar em mercados de trabalho, e isto não vale apenas para os jovens. Recorre-se à rede social em todo

momento de inflexão de trajetórias, como terei oportunidade de mostrar logo a seguir. Independentemente

da idade, a família constitui ou pode constituir um ponto de apoio para ocasiões difíceis. O Presidente

da Cooperativa da Baixada Fluminense, cujo depoimento por razões técnicas não posso citar, contou em

entrevista que, ao terminar seu mandato de vereador de um município da Baixada Fluminense, não tendo

sido reeleito e pertencendo a um partido de oposição, recebeu empréstimo de um primo para adquirir uma

van.

No entanto, a rede de relações aparece nas entrevistas, por vezes, de forma pouco clara como

exemplificam frases, “um amigo me chamou”, “me disseram”, “fui apresentado”. Tais afirmações

permitem inferir que, para ingressar no transporte informal é preciso “ter conhecimento”, tal como relatou

o Diretor de Linha da Zona Oeste nº 1.

Ter conhecimento tanto pode significar possuir contatos pessoais quanto deter informação e

recursos. A explicação da decisão de formar uma cooperativa, fornecida pela Presidente de Cooperativa

da Grande Niterói, e a expressão “ter visão”, utilizada pelo Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana,

provam que as redes não são horizontais e que o ingresso em uma delas acontece de acordo com a

informação que se dispõe e, obviamente, do capital, na forma de bens e, principalmente, de habilidades

e controle territorial. (“donos de ponto” e “donos de garagens” são capazes de controlar a repressão e

permitir o ingresso na operação do transporte informal17).

O desemprego diminuiu no Rio. E por que? Porque abriu vaga para mais “kombis”. Abriu para 20 mil pessoas, empregos. No transporte. Então isso é muito importante também. (Diretor de Linha de Cooperativa da Zona Oeste nº 1)

17 Na cooperativa, a figura principal é o presidente e entre estes, são os que se dedicam à política sindical.

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O topo dessa rede é controlado por investidores – capitalistas locais. O investimento, principalmente

em “kombis”, por parte de comerciantes, constitui uma prática corrente18. É comum, na imprensa, a

referência à ”máfia das vans”, o que indica o fato de serem usadas para lavagem de dinheiro do tráfico. Há

possibilidade de este fato ser verdadeiro, mas, ao que tudo indica, o investimento no transporte informal

é uma prática muito estendida – mesmo entre a classe média – e o mesmo ocorre com táxis. Trata-se,

de todo modo, de um investimento enraizado no lugar – sem corresponder à busca de uma rentabilidade

abstrata – fundado em redes localizadas, formas de dominação, alianças e subordinações. Os capitalistas,

os poderosos, ou “outros” com posições sociais mais elevadas ou melhor posicionados são, portanto, os

que controlam a rede social que sustenta a expansão do transporte informal.

4. é possível Falar em ética?

Considerando-se o que foi exposto, depreende-se a existência de uma dimensão imaterial da ação,

de uma ética do empreendedor popular, que conduz a uma espécie de sentimento de dever para com o

crescimento do patrimônio familiar, pela inserção em uma atividade rentável. Não se trata, então, da ética

protestante, embora seja perceptível a sua filiação cristã. Encontra-se estipulado o dever de “se virar”,

com os recursos disponíveis. Não se trata, também, do profissionalismo individual burguês, já que esta

ética tem a família e os amigos como referência central.

De fato a família assume, ao menos nas representações reconhecidas pela pesquisa de Tese, uma

posição central. A família constituiria o lugar definidor das estratégias. Ela é o ponto de capitalização

de ganhos e legitimadora das ações; servindo, simultaneamente, de pólo articulador de estratégias

intergeneracionais e de flutuações etárias. Quanto a estas, os dados confirmam, não apenas a existência

de clivagens etárias, mas também que os 40 anos de idade, constituem uma referência importante para a

estruturação de um projeto que visa à autonomia profissional, além do fortalecimento da família, de modo

a assegurar uma velhice tranqüila. Há então, de um modo geral, a busca de estabilização da trajetória

profissional no que concerne à posição - como ensinara Machado da Silva (1971) - sem perder de vista

as oportunidades ou, aliás, buscando maximizá-las. Por outro lado, como complemento das relações

familiares, a construção de redes é também indispensável. Trata-se de relações que, tomadas como

amizade ou ódio, determinam a posição socioeconômica, que, como se verá, permeia todas as relações de

trabalho.

18 Como um dono de bar nas cercanias da rua Riachuelo, no centro da cidade, dono de 4 kombis que realizam lotadas para os bairros das redondezas.

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4. 1. - Relações de Trabalho: redes e cooperativas

As cooperativas de proprietários formaram-se, inicialmente, como uma articulação de proprietários/

operadores de uma mesma linha. Posteriormente, objetivando a legalização, segundo um padrão de

eficiência empresarial, organizaram-se em cooperativas.

A mesma postura de busca da eficiência pode notada ser entre outros presidentes de cooperativa

entrevistados.

A presidente da Cooperativa da Grande Niterói, fazendo referência à rede, informa que a organização

em cooperativas

Como já foi dito a referida fundadora de Cooperativa participou de um curso de formação de

cooperativas de transporte realizado em Rio das Ostras pela COPPE/ UFRJ. Contudo, e com base nessa

experiência, a presidente afirma que, dada à natureza da operação, a cooperativa não corresponde exatamente

àquilo para o que foi orientada durante a formação recebida.

As pessoas, primeiro, se organizam em linhas, depois em cooperativas. Bom, esta daqui... Primeiro se formou, depois que se criou cooperativa. [...] Tem uma lei federal que rege o cooperativismo, tem que ter vinte pessoas para criar, tem que ter o capital social mínimo. Você registra, tem que tirar alvará, CGC e você tem que estar filiado a Organização das Cooperativas, a OCERJ. Quando a gente viu a perspectiva de regulamentação, a gente resolveu colocar tudo em dia, por que é o seguinte, é sair de baixo do nível do caranguejo da lama e dizer: porra! To começando a ser cidadão! Porque a gente nunca se negou a pagar os nossos impostos, nada disso. Quando a gente viu essa possibilidade a gente começou a colocar tudo em dia. Por que qual o sentido que tinha se não tinha essa possibilidade, não é? Qual o sentido que tinha? E aí entenderam. O que é isso? Não, agora a gente pode, vamos botar o pessoal de fora, vamos regularizar nossas linhas, vamos botar um contador direto aqui dentro.Nós estamos caminhando na verdade para que a cooperativa se torne uma empresa cooperativada, uma cooperativa-empresa, gerenciando linhas, então, por exemplo, não existe aqui o dono do ponto, não existe na Cooperativa da Zona Oeste. Primeiro, uma cooperativa é bom, [...] firma convênio com uma empresa por fora, estágio, convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tem um departamento como a COOPE que é reconhecido internacionalmente, para gente é como pegar uma medalha de primeiro lugar e colocar na parede. (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)

A gente estava na rua e a gente começou na rua: a gente começou a ter uma visão de empresa. Eu vim de uma empresa, a maioria das pessoas veio de uma empresa. (..) Foi por que a gente sentiu a necessidade de trabalhar com empresas e a gente dava uma nota fiscal: ou você abre uma empresa para você ou trabalha num sistema de cooperativismo. Por isso foi escolhido o cooperativismo. Quer dizer, as pessoas se cooperativaram pelo simples motivo de ter que entregar uma nota fiscal para entrar numa empresa, para levar gente para o trabalho e não sei que. Só que a gente cresceu e se estabeleceu com qualidade. Hoje a Riovan não tem nenhum interesse em linha. A gente trabalha no Shopping, por exemplo, no corredor de 12 pessoas no Shopping, a gente trabalha em faculdades: PUC, UNIG, Gama Filho. A gente trabalha com transporte de alunos. Com empresas, com gravadoras. (Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana).

...começou esse negócio de legalização: “Vai ter legalização, mas vai ser por cooperativa”. Desde aquela época falavam isso.

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Olha, sinceramente a cooperativa de transporte alternativo nada mais é do que uma empresa, estilo de ônibus, só que com microônibus, no estilo das vans, aonde tem vários donos. É uma empresa. [...] Porque o lucro é individual. A organização é como uma empresa mesmo de ônibus. Só muda que não se concentra o lucro em um dono. Se rateia. [...] A organização nossa é, ela é muito, bem..., vamos dizer, capitalista (Presidente de Cooperativa da grande Niterói).

Em suma, as cooperativas formadas no bojo da expansão do transporte informal são um instrumento

de institucionalização das práticas envolvidas, tendo por objetivo a legalização e administrando o transporte

à maneira de uma empresa. Isto vale, até mesmo, para cooperativas de fachada ou cooperativas que

formalizam um ponto, cujo “dono” converte-se em Presidente da cooperativa19.

As relações, ao longo dessas redes, apresentam-se, nos depoimentos, sobretudo como relações

pessoais. Entretanto, com as cooperativas, estas relações adquirirem alguns aspectos ou formas institucionais,

na medida em que os pontos hierarquizados da rede organizam-se como uma cooperativa de proprietários,

regida por estatutos e chefiadas por uma direção eleita, composta por um presidente e uma diretoria que

aufere um pró-labore.

A institucionalização da rede deixa fora um número razoável de pessoas, como pode ser visto nos

gráficos que seguem.

19 É interessante frisar que formação de cooperativas gozou de bastante apoio institucional.

Gráfico 1- Organograma da Cooperativa da Grande Niterói

Fonte: Pesquisa de Campo – 2003

(1) Prancheta: aquele que registra chegadas e saídas nos pontos.

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Gráfico 2 - Organograma da Cooperativa da Zona Oeste

Fonte: Pesquisa de Campo, 2003

O organograma de uma cooperativa é muito simples, se comparado ao de uma empresa. Compõe-

se basicamente de três diretores e um gerente. Aos diretores correspondem as funções administrativas,

financeiras e comerciais, enquanto a operação do serviço é controlada pelo gerente de caixa. Habitualmente,

os diretores são membros da própria cooperativa, como representado no gráfico 1. Contudo, no caso da

cooperativa da Zona Oeste a direção é terceirizada20 (ver gráfico 2).

Quanto ao controle nos pontos, a sua execução é variável. Enquanto na cooperativa da Grande

Niterói, são os “Pranchetas” – cooperados não proprietários – que realizam a fiscalização nos pontos, na

cooperativa da Zona Oeste são os despachantes, existindo ainda, uma outra função na organização, que é a

de Diretor de Linha: cargo correspondente ao fundador da linha que zela por ela21.

Outro aspecto interessante desta institucionalização em forma de cooperativa, é que a figura do

presidente adquire extremo destaque, por acumular os papéis de fundador da cooperativa e de protetor da

mesma, por ter enfrentado a antiga diretoria. Enfim, a figura do presidente inspira respeito aos cooperados,

sendo ao mesmo tempo a cabeça visível nas lutas pela legalização e nas várias organizações de presidentes,

que lideram o movimento pela legalização.

Segundo o presidente de Federação de Transporte Alternativo do Estado do Rio de Janeiro

20 Observei esta forma de organização apenas nesta cooperativa.21 Existe também o Inspetor, cooperado não proprietário que atua como segurança e informante em casos de fiscalização quando se trata de linhas ou veículos irregulares.

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Como existem cooperativas, também, que são donas de ponto. Aí no caso, não é a cooperativa em si. É o presidente que é o dono do ponto. A arrecadação do ponto vai toda para ele. É uma coisa meio camuflada, eu não consigo, na minha concepção de cooperativa, ver ou usar uma empresa para ser dono da rua” (Presidente de Cooperativa da Grande Niterói).

Na central, na verdade é uma empresa que montou e alguém foi lá e se associou a ela, aqui não: a cooperativa gerência”. Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)

...o cara não tem compromisso, não tem compromisso em organizar, não tem compromisso em construir, você pára no ponto, paga a ele e vai embora e roda e qualquer um pode rodar. Na cooperativa, na Cooperativa da Zona Oeste, quem trabalha naquela linha trabalha naquela linha. O ponto é só um referencial (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste).

É aquele negócio. Se você for a outras cooperativas, [...] aí você vai ver que tem segurança em cada ponto. Nós aqui não trabalhamos assim. É justamente acho que pela formação que eu tive lá na COOPE, de ser bem democrático, bem...Foi, fui eu que fundei. E eu fui reeleita o ano passado. Agora na última assembleia eu tive uma prorrogação do meu mandato por mais quatro anos. A gente aqui é bem democrático. Nós por exemplo, ganhamos as linhas. Aí eu tenho as linhas, nós ganhamos e há quantidade de veículos. E até para decidir quem ia ficar com as linhas eu fiz assembleia. O critério foi definido pela maioria, tudo meu é assembleia. A influência de um presidente num curso de cooperativismo é completamente diferente daquele presidente autoritário que acha que isso é a minha empresa, que a cooperativa é minha” (Presidente de Cooperativa de Grande Niterói).

Nós éramos da FECONTRAL, só que existe, eu na minha concepção, das outras seis cooperativas que fazem parte da nossa federação..., como é que você pode fazer parte de uma mesma federação com outras cooperativas. Você fere totalmente os seus interesses. Você pode, como é que eu vou sentar com você, você vem com a sua cooperativa e bota na minha, me desrespeitando e eu vou sentar com você para ser sua amiga.O sindicato do jeito que está, isso eu não quero, porque aí eu vou ter que compartilhar mais duas linhas, com duas cooperativas que eu odeio mortalmente eles e eles odeiam a mim. (Presidente de Cooperativa de Grande Niterói)

Esta situação é apontada como ocorrendo em muitas cooperativas que operam nos Galpões da

Central

Enquanto no ponto

22 Por ocasião da pesquisa cinco organizações sindicais atuavam no Estado do Rio. A FETRANS- Rio no município do Rio de Janeiro, A FECOTRAL, a FECOVAN, a CONVAN e a SINTRAL na escala estadual.

(FECOTRAL) “chega-se a presidente por educação, por capacidade, porque ninguém quer o cargo ou

pela força”. As condições são heterogêneas, como aponta o depoimento que segue:

A presidente da Cooperativa da Grande Niterói descreve sua organização como democrática e a

contrapõe a uma cooperativa rival definindo sua direção como autoritária.

A relação entre presidentes se expressa em termos afetivos, cujo estado determina também a

articulação das cooperativas em organizações sindicais22.

Em muitos casos as desavenças, entre não amigos, resolvem-se com violência.

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Nós éramos dez. Não, minto, 16 depois passou para 10, porque morreu um, o outro foi preso e o outro também morreu. Tudo assassinado. É aquele negócio. Discordar nem sempre é saudável no nosso meio. E a gente faz uma oposição, que nós cuidamos dos nossos interesses mas dentro da legalidade. De repente fere o interesse econômico que não seja de outros. Por isso que nós criamos a Fecovan.” Todos nós, eu estava até falando para o Maurício, todos nós. (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)

Quer ver uma coisa? Aquele muquirana que a gente expulsou agora, que faturou uma grana da cooperativa, tende a falir logo porque tem uma visão muito mercantilista da vida, e a vida não é só mercantil, a vida é outras coisas. (Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)

Numa das Cooperativas de Vista Alegre o Robson, esse foi um... Roubou para cacete a cooperativa aqui também. Aqui teve intervenção. Um ano depois não dava mais para gente. O cara me apresentou uma nota fiscal para concertar uma torneira de R$1.500,00. Foi complicado. E ai a gente entrou na justiça entrou na OCERJ. Foi sorte que tinha só um ano de mandato e ai tinha eleição para três anos. Como a gente não conseguiu nada na justiça, ele entrou com uma liminar. Ai a gente decidiu: nós tivemos que partir para uma eleição que é a forma mais correta. Eu já tinha feito um ponto na Graça Aranha, talvez o mais famoso de Van. (Presidente de Cooperativa da Zona Suburbana)

Olha, aqui eu tenho bem mesclado. Tenho proprietários que ficam em casa e escolhem um motorista. Aqui a maioria mesmo é proprietário. Trabalha e utiliza o motorista, o auxiliar porque a gente começa muito cedo, 4:30h, 5:00h. E os motoristas auxiliares, durante o dia, para ele pegar à noite, de novo. A Sara, por exemplo, utiliza o motorista dela. Ela bota o motorista e trabalha com ele, cobrando. Porque ela acha cansativo dirigir. Então existe também, como existem proprietários que dão na mão do motorista, o motorista paga lá, dá o dinheiro a ele. Existem várias (Formas de se relacionar). Existem proprietários aqui que não dão o carro de jeito nenhum na mão de ninguém. É bem variado. Aqui é assim: eu te alugo a minha van. Você tem que pagar o combustível e o óleo. Quebrou?

O mesmo parece ter acontecido no interior das cooperativas.

Praticamente todas as cooperativas ao longo de sua curta história, tiveram diretores expulsos ou

facções e, muitas vezes isto, expulsões violentas.

Em suma, as redes não formalizadas, que deram origem à operação do transporte informal, passaram

por um processo de formalização ou institucionalização ainda inconcluso, preservando muitos traços de sua

origem. Entre eles destacam-se as relações comerciais, que assumem a forma de relações de afinidade ou

rivalidade pessoal.

4. 2. - Relações da Rede não Cooperativada

De qualquer modo, em geral, a cooperativa é uma associação de proprietários que institucionalizam

redes já estabelecidas. Por outro lado, essas associações de pequenos proprietários de veículos, com iguais

direitos, raramente faz uso de mão-de-obra assalariada, abrindo mão de várias outras formas de trabalho

subordinado, de modo que a relação entre proprietário e auxiliar é pessoal e variável.

Pode haver trabalho assalariado, mas é raro. Predomina o aluguel do veiculo ou uma divisão do

faturamento.

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Na maioria, é o proprietário que arca. Têm alguns que dividem a manutenção com o motorista. E têm outros que deixam a cargo do motorista, que é a pior coisa que tem. Porque - você como motorista - quebrou o carro, tem a peça original e a alternativa que é muito inferior, vai tirar o menos possível do bolso. (Presidente Cooperativa da Grande Niterói)

Mas tem outra coisa que eu acho que é a criação de um mercado novo de profissionais. As empresas falam assim: - os carros das cooperativas estão obrigando a gente a desempregar. Não é verdade, eles cresceram com a frota de ônibus, não é verdade, e muito pelo contrário, eles desempregam e a gente absorve, o que não falta é trocador e motorista vindo aqui, uniformizado, na cooperativa procurando emprego, se cadastrar como motorista auxiliar, por incrível que pareça. Um motorista de ônibus deve estar ganhando uns novecentos reais. E um motorista da cooperativa entre mil reais e mil e duzentos reais.Numa empresa ele nem sabe o nome do dono da empresa ele sabe que o nome da empresa é Joaquim, mas pode ser Joaquim José, Joaquim de Paula, Joaquim... qualquer Joaquim. Aqui não, ele faz o trabalho dele, no final paga a diária para o permissionário, se a relação for de diária, ou percentagem, seja qual for...A relação entre o proprietário e o motorista auxiliar é de livre negociação.[...] A cooperativa agora está intervindo e está estabelecendo, ao contrário do que foi aprovado no nosso congresso nacional, aqui a gente está intervindo e determinando um padrão de percentual. Estamos intervindo porque a livre negociação estava criando problema”. ( Diretor de Cooperativa da Zona Oeste)

A relação entre proprietários e motoristas auxiliares é também motivo de tensões e exige, algumas

vezes, intervenção da Cooperativa nas relações de trabalho.

Em termos gerais, a cooperativa de proprietários recorre a relações de trabalho não assalariadas:

o aluguel de veículo, ou partilha da renda do dia, corresponde a uma porcentagem previamente pactuada,

reproduzindo o tipo de relação existente entre proprietários de táxis e seus auxiliares. A mesma tendência

verifica-se em relação às diferentes funções.

Expande-se a variedade de funções, e conseqüentemente, de relações de trabalho. Por exemplo, em

frente à Rodoviária Novo Rio, opera-se uma função única: os “papagaios”, ou seja, pessoas encarregadas de

atrair e contatar possíveis clientes, levando-os até os veículos que partem com destino a Angra dos Reis ou

Campos. Estes recebem do motorista a quantia de R$ 1,00 por passageiro23.

Concluindo, as relações personalizadas24 existentes em todos os tipos de operadores, proprietários

ou não, até mesmo por seus aspectos éticos, parecem permear todas as relações de produção do transporte

informal na metrópole do Rio de Janeiro. O curioso é que, se os critérios morais são idênticos, as condições

de realização não o são. Entretanto, estes critérios parecem ser instrumentos de legitimação das práticas.

Descrevi os indícios de uma ética do empreendedor urbano que, ao contrário do que normalmente se

pensa, não corresponde apenas aos valores dos pobres. Parece ser o ideal do empreendedor popular, capaz 23 Isso sem contar a rede de troca de vales transportes. Há empresas especializadas na compra e troca de vales transporte. A troca do vale pela passagem ocorre nos pontos movimentados da metrópole. Quem cumpre essa função recebe R$ 0,15 por cada vale de R$ 1, 50.24 É frequente observar motoristas ou cobradores que tratam de maximizar oportunidades. Quebra galho para se estabelecer como auxiliares.

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de acumular uma considerável fortuna. Os elementos desta ética servem na legitimação das posições e das

relações de trabalho.

Conclusão

A tese de que os valores e a ética moldam o comportamento econômico é clássica e não precisa ser

defendida em ciências sociais. No caso do transporte informal do Rio de Janeiro, diz respeito a tratar de uma

ética do empreendedor popular que o obriga a “correr atrás”, “se virar” e “tocar o dinheiro”, que se traça

como meta à construção de um patrimônio familiar. Esta ética não define apenas uma atitude econômica

isolada, é também adequada à organização econômica em redes. Com efeito, a posição econômica e a

possibilidade de reconversão de estratégias relacionam-se diretamente ao grau de “conhecimento” de cada

ator. Isto é, ao número de amigos que se possui. E o termo “amigos”, neste caso, antes que a pessoas muito

próximas, corresponde a sócios e parceiros que cuidam mutuamente dos interesses individuais, mas não

estabelecem relações simétricas.

A associação por amizades permite uma integração hierárquica em que sócios hierarquicamente

iguais cuidam de interesses comuns e sócios subordinados são também obrigados a cuidá-los e respeitá-los.

Por outro lado, sócios que rompem tornam-se inimigos e inimigos mortais. Os depoimentos são eloqüentes,

mostrando o grau de violência que impera em relação às desavenças econômicas. De igual modo, as alianças

políticas são expressas em termos idênticos de amizades e inimizades.

Referências Bibliográficas

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WEBER, M. Ensaios de Sociologia. 5a ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de janeiro: LTC, 1982.

Cooperativa Nome Atribuído Cargo Tipo operação

Veículo Idade E. Civil Trabalho Anterior

Riovan Cooper Meyer Cooperativa da Zona Suburbana

Pres. Cooperativa

Fretamento Van 40 - 50 Casado Funcionário Público

Riovan Cooper Meyer Cooperativa da Zona Suburbana

Motorista/ proprietário

Fretamento Van 50 - 60 S. I. Funcionário Público Aposentado

Cooperpenha Cooperativa da Zona Suburbana 2

Pres. Cooperativa

Lotada Van 40 - 50 S. I Bancário

Cooper Rio da prata Cooperativa da Zona Oeste Dir. Administrativo

- - 40 - 50 S. I Assessor Parlamentar

Cooper Rio da Prata Cooperativa da Zona Oeste Dir. de Linha Lotada Kombi 40 – 50 Casado Metalúrgico Cooper Rio da Prata Cooperativa da Zona Oeste Dir. de Linha Lotada Kombi 40 – 50 Casado Metalúrgico Cooper Rio da Prata Cooperativa da Zona Oeste Dir. de Linha Lotada Kombi 40 – 50 Casado Motorista de

ônibus Cooper Rio da Prata Cooperativa da Zona Oeste Dir. de Linha Lotada Kombi 30 – 40 Casada Camelô Cooperativa Rio da Prata

Cooperativa da Zona Oeste Inspetor Lotada Kombi 30 -40 S. I. S. I

Cooperitt Cooperativa da Grande Niterói Pres. Cooperativa

Lotada Van 30 - 40 S. I Funcionário público

Cooperitt Cooperativa da Grande Niterói Dir. Financeiro Lotada Van 30 - 40 S. I Funcionário público

Cooper Fluminense Cooperativa da Baixada Fluminense

Pres. Cooperativa

Lotada Van 40 - 50 casado Vereador

Apêndice

Quadro 1 - Caracterização dos Entrevistados

Fonte: Pesquisa de Campo – 2002- 2003

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Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

éTICA E POLITICA COMO FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO EM ARISTóTELES

ETHICS AND POLITICAL AS FOUNDATIONS OF EDUCATION IN ARISTOTLE

Giovane do Nascimento 1, Lenilson Alves dos Santos 2

1 Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF); Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana. E-mail: [email protected] Mestrando do Programa de Pós-graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). E-mail: [email protected].

PALAVRAS-CHAVES Ética, Política, Paideia e Eudaimonia.

O presente artigo tem por finalidade apresentar a relação inseparável entre ética, política e educação no pensamento aristotélico, as quais são costuradas, por assim dizer, pela ideia de eudaimonia ou felicidade. Para Aristóteles, qualquer projeto de cidade deve, necessariamente, partir de uma Paideia que vise formar um cidadão levando em conta sua dimensão ético-política e harmonizando o seu telos ou finalidade individual, com o télos ou a felicidade da polis. R

ESU

MO

KEY-WORDS Ethics, Politics, and Paideia Eudaimonia.

This article aims to show the inseparable relationship between ethics, politics and education in Aristotelian thought, which are sewn together, so to speak, by the idea of eudaimonia or happiness. For Aristotle, any city project must necessarily from a Paideia seeking to form a citizen taking into account their ethical-political dimension and harmonizing your individual telos or purpose, the telos of the polis or happiness.

AB

STR

AC

T

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A educação, sem dúvida nenhuma, é um tema reconhecidamente de grande importância para a vida

humana. Ela significa a necessidade do humano em realizar-se, em todas as suas potencialidades, constitui-

se num mundo que, por sua vez, encontra-se em constante construção. Dessa maneira, a educação é uma

arte humana que visa formar esse indivíduo, tornando-o sujeito cognitivo, moral e sociável. Inerente ao

tema da educação é a questão que se refere ao que podemos denominar de ação pedagógica, uma ação

que consiga abarcar a necessidade de uma instrução, mas, ao mesmo tempo, valorizando a criatividade

individual, uma criatividade não isolada, mas, ao contrário, que visa inserir o indivíduo no mundo social.

Um parâmetro desse modo de educação pode ser encontrado na antiguidade clássica grega. Esta educação

foi denominada Paidéi3 e consistia no processo de formação integral do indivíduo para uma vida coletiva.

Nas inúmeras concepções de pedagogia, a ação educativa sempre se apresentou como um tema em

aberto, pois se sabe da necessidade da educação na formação do indivíduo, mas não se sabe qual a melhor

ação pedagógica para se chegar a uma boa formação.

A teoria aristotélica sobre a educação chegou-nos de maneira fragmentada e para compreendermos

um pouco mais sobre sua pedagogia é fundamental que nos apoiemos em duas obras fundamentais escritas

por ele: a Ética a Nicômacos e A Política. Nestas duas obras encontraremos os princípios norteadores da

formação para Aristóteles. De maneira geral, podemos dizer que a Ética à Nicômacos nos possibilita falar

dos princípios pedagógicos para a virtude; e, na Política, podemos encontrar as bases para um processo

educativo de inserção do indivíduo na polis. Desse modo, essas duas obras oferecem, assim, os elementos

pedagógicos de uma educação para o bem viver.

O processo educativo, para Aristóteles, pretende levar em conta as seguintes questões: de que

maneira poderá o homem tornar-se virtuoso, contribuindo para a vida política de sua cidade? Como o

homem poderá alcançar a felicidade neste mundo? Podemos antecipar que Aristóteles, inserido na sua

realidade, observou o comportamento de pessoas e grupos para desenvolver aquilo que seria, para ele,

o melhor modelo educacional, isto é, um modelo humanitário que conduziria o indivíduo à felicidade.

Neste modelo, a felicidade só pode ser atingida num Estado formado por indivíduos virtuosos. Assim,

o princípio geral norteador da formação poderia ser formulado do seguinte modo – uma boa ação se

caracteriza em saber agir em conformidade com o que é bom para si e para o Estado. Este princípio está

3 Este termo é difícil de ser definido, pois trata-se de um conceito de grande amplitude. Werner Jaeger, na introdução da sua obra intitulada Paidéia, ressalta que este conceito não pode ser entendido nos moldes modernos como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação. Na verdade, afirma Jaeger, este conceito abrange todos os outros designados pela modernidade. O termo Paidéia vem de paidos (crianças) e significa, literalmente, educação dos meninos. Porém, a partir do século V a.C. este termo começa a designar um ideal de educação para os gregos que envolvia a formação do individuo para tornar-se bom cidadão. Apesar desta complexidade semântica, o conceito paidéia será, por nós, compreendido como educação para cultivo do homem, e esta , não por meio de teorias abstratas, mas por meio de teorias que fundem-se com a vida, tornando-se atitude, a ação de um bom cidadão.

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na base da ação pedagógica, cujo télos ou finalidade é a eudaimonia, ou seja, a felicidade.

Antes de iniciar a investigação da nossa temática, achamos por bem fazer uma apresentação sucinta

das duas obras norteadoras desse trabalho e da visão aristotélica acerca do cidadão.

********

Aristóteles escreveu três grandes obras ocupando-se de questões relativas à ética: Ética a Nicômacos,

Ética a Eudemo e a Grande Moral. A Ética a Eudemo teve por muito tempo sua autenticidade contestada.

As duas Éticas são hoje consideradas escritos autênticos de Aristóteles, entretanto, foram escritas em

fases distintas do pensamento do filósofo. Ética a Eudemo, refere-se à primeira fase do seu pensamento,

influenciado ainda por seu mestre Platão; a Ética a Nicômacos, produzida posteriormente, apresentou

um pensamento mais amadurecido, distanciando-se da academia de Platão. A nossa investigação não

pretende levar em conta o problema da autenticidade das Éticas atribuídas a Aristóteles. Além disso,

não vamos mencionar, neste trabalho, a Ética a Eudemo, bem como não será necessário, para os nossos

propósitos levar em conta a Grande Moral, também conhecida como Magna Moralia. Nesse sentido,

iremos circunscrever nossa investigação no âmbito da Ética a Nicômacos, na medida em que esta já

nos fornece os elementos necessários para levar a cabo a nossa empreitada em apontar os fundamentos

éticos e políticos presentes no projeto educativo de Aristóteles. O conteúdo dessa Ética, em linhas gerais,

pretende investigar o que compreendemos como o bem mais elevado para o homem, ideia de finalismo,

de uma teleologia da ação humana, para tanto, é necessário o esforço na transformação da práxis humana

em eupraxia (boa ação), visando a realização de um fim. A partir dessa ideia, a ética de Aristóteles estará

envolvida na constante e problemática tarefa de supor a existência de um fim, e, em havendo um, justificar

o seu télos (fim) e sua prioridade a despeito de outros fins.

De maneira geral, o procedimento metodológico aristotélico caracterizou-se pela conveniência

na eleição do método, como podemos constatar em vários livros de sua obra, tais como, a Física, o

Tratado da Alma e, principalmente, nos textos que tratam da linguagem, presentes no Organon, em que

Aristóteles opta pelo método em função do objeto de estudo. Na obra Ética a Nicômacos não encontramos,

por exemplo, um Aristóteles analítico e lógico, mas, ao contrário, aporético e pouco preocupado com

definições muito exatas, o que restaura a importância da doxa e do método dialético (FARIA,1995,p.186).

A relação entre ética e política é indissociável em Aristóteles na medida em que tem sempre em vista o

tema da felicidade, sendo a felicidade da coletividade a última instância de realização da ação humana,

desse modo, as ações humanas que tem início na ética só terá sua realização plena na política. Mas, para

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tanto, faz-se necessário a educação do cidadão que através do hábito cultivado com olhos postos nos

exemplos dos grandes homens, torna-se o instrumento fundamental e único para o resgate do projeto de

pólis.

********

A obra A Política de Aristóteles, que também compõe o corpus aristotelicum, tem o objetivo de

criticar as formas de governos de seu tempo, baseando-se nos critérios de justiça e de injustiça. Nela ele

distingue regimes políticos tais como, a monarquia, aristocracia e a politia (democracia moderada) da

tirania, da oligarquia e da democracia. Esta obra é, ao mesmo tempo, descritiva, comparativa e crítica.

Trata-se de um texto que possui um ideal reformador, pois, ao avaliar os elementos que compõem o

Estado que o mantém conciso e o legitima, Aristóteles irá propor um novo modelo estatal, pautado não

na expansão territorial através das conquistas, mas na formação de indivíduos virtuosos.

Aristóteles analisa a natureza dos indivíduos e do Estado, procura formular direitos e deveres daqueles

e analisa o papel do Estado. Encontramos na Política um duplo télos para o Estado: primeiro - assegurar

aos homens mais facilmente o que é necessário à vida; segundo – assegurar uma vida intelectual e moral

na cidade.

De maneira geral, podemos perceber na Política a importância de uma boa educação para a

formação das virtudes, promovendo bons cidadãos. É pela educação que o homem desenvolve a política,

por ela, ele se torna capaz de bem legislar, de bem governar a si mesmo, a família e a cidade. Desse

modo, é importante notar que para Aristóteles, a mais alta ciência que trata das coisas humanas (a

Política) tem o seu desenvolvimento necessariamente fundamentado na educação.

Observamos acima que há uma ligação indissolúvel entre ética e política em Aristóteles e, nesse

sentido, o processo educativo ou o processo de formação humana deve ser elaborado levando-se em

conta essa relação de interdependência. Ética e Política, amalgamadas, oferecem os princípios básicos

para uma ação pedagógica que visa formar o indivíduo para viver em coletividade tornando-se feliz. A

Política é para a Ética uma ciência arquitetônica e ambas constituem a ciência das coisas humanas, a

ciência da sociedade. Essa ciência por excelência visa não só o cuidado em atingir a beleza no governo

do Estado, mas, também, a beleza no governo de sua vida pessoal.

O tema da educação e sua necessidade para a constituição de um estado feliz, pode ser encontrado

na Política em dois capítulos de grande importância, a saber: o Capítulo V intitulado - Da finalidade

do Estado; e o capitulo VI cujo tema – Da eugenia e da Educação, pertencem ao Livro II, intitulado Do

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cidadão e da cidade. Eugenia é uma palavra grega formada da junção do prefixo eu (belo, bom) com o

substantivo feminino genéia (raça); dai significar melhoria da raça, ou, melhor raça. Nestes dois capítulos

é unificada a necessidade de melhoria da raça, como o meio para tal, a educação. É importante notar que

a concepção aristotélica de eugenia nada tem em comum com as atuais teorias que pregam a purificação

da raça, culminando no descalabro do holocausto. Aristóteles fala de um melhoramento no interior da

própria polis, afinal, em toda a Política ele irá reconhecer as especificidades de cada povo, e, além disso,

já havia advertido no livro III da Ética à Nicômacos: “E nem sequer deliberamos sobre todos os assuntos

humanos: por exemplo, nenhum espartano delibera sobre a melhor constituição para os citas”.

É fundamental, no pensamento aristotélico a aproximação que ele faz com as “coisas da vida”,

assim a naturalidade política dos seres humanos está fundada sobre a capacidade que só eles têm de ir

além da simples expressão do prazer e da dor, comum a todos os animais. A naturalidade do homem

como ser racional e social permite que as suas ações ultrapassem o prazer e a dor, pois, na medida em

que os animais não possuem o logos, agem meramente pelo repúdio à dor e pela atração ao prazer, ao

passo que os seres humanos são capazes de dar à ação uma intencionalidade, justificada racionalmente.

Para tanto, eles devem ser instruídos para ofertar à sua ação este fim e, ao mesmo tempo, tornar esta ação

responsável, refletida e comprometida com o bem comum.

Observando a vida dos gregos antigos, percebemos que eles eram guiados pelas condutas dos

heróis recolhidas na poesia, sobretudo, as de Homero. Valorizavam os espetáculos teatrais, os jogos, o

discurso retórico e a filosofia. Essas formas de expressão de racionalidade não eram, para os gregos, algo

sem sentido, sem finalidade. Eles aprendiam, nessas formas de expressão de racionalidade, um modo

de ser, um modo de viver, que salientava um modo peculiar de vida de uma determinada sociedade.

A areté4 dos heróis homéricos era a areté almejada pelos homens dentro da cidade. Aristóteles, pensou

a vida humana como um processo que se desenvolve na polis, como um processo que está marcado

pelo inacabamento e que, portanto, precisa ser orientada para a realização da sua finalidade, isto é, a

eudaimonia (felicidade). A areté humana, nesse contexto, não será mais a dos heróis, mas a do próprio

homem. O bem buscado não será o das epopéias gregas, mas o bem presente na vida do homem que sabe

orientar-se na rota do melhor, do melhor bem, da melhor ação, da melhor vida.

Para compreendermos melhor esse homem que vive e depende da sociedade, é preciso partir daquilo que

é fundamental na política, ou seja, o cidadão.

O Livro II da Política, intitulado Do Cidadão e da Cidade, é uma investigação acerca do que é

4 Iremos traduzir a palavra areté por virtude, mas chamamos atenção para o fato de que o termo virtude está fortemente marcado pelo pensamento cristão. Entretanto, a virtude no sentido grego deve ser entendida como uma excelência moral, uma disposição adquirida, seja pelo hábito (virtudes éticas), seja pelo ensino (virtudes dianoéticas).

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um cidadão, das diversas formas de cidadãos, e das virtudes que constituem o cidadão. Já o capítulo V, do

mesmo Livro, investiga a natureza e a finalidade do Estado. As temáticas abordadas nestes capítulos, IV

e V, nos orientarão para a compreensão do que seja um bom cidadão e, ao mesmo tempo, saber qual é a

relação existente entre cidadãos e Estado. Em uma passagem da Política Aristóteles afirma: “O Estado é

o sujeito constante da política e do governo, a constituição política não é, senão, a ordem dos habitantes

que o compõem” (ARISTÓTELES, 1998, p. 41). Ser sujeito significa ser ordenante, superior ao que ele

ordena. Para a lógica política de Aristóteles o todo não pode ser inferior às partes. O Estado consiste numa

multidão de partes, e estas são diferentes por natureza e, portanto, é imprescindível uma ordenação para

serem harmonizadas.

Saber quem é o cidadão exigiu de Aristóteles uma análise de diversos fatores que influenciavam

diretamente a tentativa de encontrar uma reposta que pudesse satisfazer a essa indagação. Ele elabora

alguns fatores, tais como:

- Ser cidadão não pode estar relacionado ao espaço habitado. Não basta habitar uma determinada

cidade para ser considerado cidadão. “Não é a residência que constitui o cidadão” (ARISTÓTELES, 1998,

p. 42)

- As crianças e os velhos não podem ser considerados cidadãos, elas por não terem alcançado a idade

da razão e, por isso, não poderiam participar das obrigações cívicas. Os velhos, porque não possuiriam

mais a idade para os serviços cívicos (ARISTÓTELES, 1998, p. 42). Dessa afirmação, compreendemos

que ser cidadão é ter como participar efetivamente da vida da sociedade.

Partindo desses fatores, Aristóteles irá propor que o cidadão seja aquele que tem participação

efetiva na vida da cidade, e, portanto, é esse que terá “direito a voto na assembléia e de participação

no exercício do poder público em sua pátria” (ARISTÓTELES, 1998, p. 42). É preciso salientar que

cidadão é aquele que participa, aquele que tem uma vida ativa na sua cidade. Dessa maneira, o cidadão

não herda esse título, não o recebe porque é naturalizado num determinado Estado, mas, porque é parte

viva e atuante no Estado. “Ora chamamos de cidadão quem quer que seja admitido nessa participação e é

por ela, principalmente, que o distinguimos de qualquer outro habitante” (ARISTÓTELES, 1998, p. 43).

Nesse sentido, as mulheres, os escravos, os velhos e as crianças são habitantes e não cidadãos, pois não

são admitidos na participação da vida do Estado. Uns por condição natural, outros pela pouca de idade e

outros pelo excesso de idade.

Aristóteles salienta que, o sentido de cidadão depende diretamente da constituição do Estado.

Não são todas as formas de governos que valorizam a participação das suas partes. Assim, ele conclui:

2 http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3055/Da-politica-estadual-de-reciclagem-de-materiais-e-o-incentivo-fiscal-aos-contribuintes

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“O cidadão não pode ser o mesmo em todas as formas de governo” (ARISTÓTELES, 1998, p. 43).

Porém, a definição de cidadão parece ser clara para ele: “são aqueles que participam do poder público”

(ARISTÓTELES, 1998, p. 44). Contudo, curiosamente na noção de participação podemos falar em duas

capacidades, a saber: a capacidade de ordenar e obedecer. Aparentemente a definição de cidadão parece

não concordar com a afirmação de que o sentido de cidadão depende da forma de governo. Entretanto,

para Aristóteles a definição faz referência a outros fatores fundamentais para o bem estar da pólis, ao ver

de Aristóteles, ser um pleno cidadão consiste em ter desenvolvido a condição de saber obedecer e saber

ordenar (ARISTÓTELES, 1998, p. 50).

Mas, retornemos à definição de cidadão no intuito de compreendermos o que faz um cidadão ser

feliz na sociedade. E, consequentemente, o que faz uma sociedade feliz. Partindo do princípio de que

cidadão e Estado compartilham a mesma realidade, podemos concluir que é o mesmo fundamento que os

tornam (cidadãos e Estado) felizes. A causa de felicidade do cidadão e do Estado deve estar entrelaçada

com a finalidade de cada um deles, ou seja, a causa da felicidade deve relacionar-se com o obedecer e o

mandar, ou seja, pela capacidade de legislar. A causa da felicidade, tanto no âmbito privado quanto no

público, é a virtude. Somente por meio de cidadãos virtuosos haverá um Estado virtuoso e, somente por

meio de um Estado virtuoso haverá cidadãos virtuosos.

Aristóteles começa a delinear os limites de duas grandes ciências práticas: Ética e Política. Diz

ele: “Não entra no plano da Política determinar o que pode convir a cada indivíduo, mas sim o que

convém a pluralidade. Em nossa Ética, aliás, tratamos do primeiro ponto” (ARISTÓTELES, 1998, p. 50).

A linha divisória entre essas duas ciências concerne ao campo privado e ao campo público. Entretanto,

o que está limitado não significa que tem vida independente, pois, Ética e Política possuem seus limites,

mas, se articulam por meio de uma interdependência. Fazer o cidadão feliz e o Estado feliz é o objetivo

da Ética e da Política. Nesse sentido, “o fim da sociedade civil é viver bem” (ARISTÓTELES, 1998,

p. 56). Tudo aquilo que compõe a sociedade, tais como: famílias, aldeias, instituições, corporações,

devem estar comprometidas com esse ideal de vida feliz. É essa vida que caracteriza uma boa sociedade,

que caracteriza os cidadãos e os Estados virtuosos. “A sociedade civil é, pois, menos uma sociedade de

vida comum do que uma sociedade de honra e de virtude” (ARISTÓTELES, 1998, P. 56). A sociedade

não é, para Aristóteles, um aglomerado de pessoas com diversos interesses, ela é muito mais que isso.

“Não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos que se faz o Estado” (ARISTÓTELES,

1998, p. 53). Eis o télos da sociedade: bem viver, em outras palavras, ser feliz. Esse télos é possível

ser vislumbrado nas sociedades onde os indivíduos são educados para uma virtude comum. O exemplo

abaixo nos põe diante da necessidade de uma sociedade plural, mas convergente.

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A conservação do Estado é uma tarefa comum, porém, para que ela seja realizada, é necessária a

formação virtuosa dos cidadãos, pois, por ela, os cidadãos comprometer-se-ão com a felicidade coletiva

que é o maior bem dentro da sociedade. Os interesses de cada indivíduo devem ser subordinados ao

interesse comum dentro de uma sociedade virtuosa. Nesse sentido, as leis satisfazem a necessidade de

harmonizar o Estado, elas imperam sobre os interesses individuais visando o bem comum. Porém, não

basta que os indivíduos cumpram as leis, é preciso que sejam preparados para ser virtuosos, pois, não é

um Estado legalista que chegará a uma boa vida, mas um Estado de pessoas virtuosas que se reconhecem

nas leis. “As leis em si mesmas não produzem as virtudes, por isso, são incapazes de tornar os cidadãos

bons e honestos” (ARISTÓTELES, 1998, p. 54). Além da tarefa comum da conservação do Estado,

além da formação para as virtudes e além das leis, está a amizade como uma forma de aproximação, de

comunicação entre os cidadãos. A amizade não nasce das leis, mas, ela é efeito de uma escolha recíproca.

Na Ética a Nicômacos, no Livro VIII, Aristóteles realiza uma investigação acerca da amizade, buscando

saber se todos os homens são capazes de amizade ou se os homens maus são incapazes de serem amigos;

e se há apenas um tipo de amizade ou vários. A amizade no corpo social será mais uma imprescindível

virtude para a conservação do Estado. Os cidadãos virtuosos se aproximam por laços de amizade, desse

modo, para o estagirita, o Estado virtuoso é, por conseguinte um Estado de amigos.

Uma vez exposto os princípios constituintes do cidadão na Política, sobretudo o princípio da

participação na vida social, e a forte relação entre ética e política, passemos agora para o modo de

efetivação de relação com vistas ao alcance daquilo que os gregos denominariam de bem comum. Para

tanto, iremos apontar algumas alternativas educacionais visando a formação do cidadão virtuoso.

********

A educação, em Aristóteles, é a maneira pela qual o homem pode se tornar aquilo que ele deve

ser por natureza, ou seja, um ser racional, capaz de participar efetivamente do Estado. A teleologia da

educação busca, portanto, formar o indivíduo para viver em comunidade. Isso requer uma ação pedagógica

que valorize o fato de que, todos pertencem ao Estado.

Podemos comparar os cidadãos aos marinheiros: ambos são membros de uma comunidade. Ora, embora os marinheiros tenham funções diferentes, um empurrando o remo, outro segurando o leme, um terceiro vigiando a proa ou desempenando alguma outra função que também tem seu nome, é claro que as tarefas de cada têm sua virtude própria, mas sempre há uma que é comum a todos, dado que todos têm por objetivo a segurança da navegação, à qual aspiram e concorrem, cada um à sua maneira. De igual modo, embora as funções dos cidadãos sejam dessemelhantes, todos trabalham para a conservação de sua comunidade, ou seja, para a salvação do Estado. (ARISTÓTELES, 1998, p. 48)

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Neste exposto, encontramos duas afirmações aristotélicas imprescindíveis para uma boa ação

pedagógica. A primeira diz que somos partes de um todo; a segunda, afirma que o governo do todo deve

dirigir o governo das partes. Unindo as duas afirmações, podemos dizer que a educação deve formar o

indivíduo para se tornar um cidadão; e este deve harmonizar-se com o todo. Como cada indivíduo é parte

viva do todo, deve receber uma educação que seja pública, isto é, a mesma para todos, pois somente por

uma educação pública o indivíduo tornar-se-á um bom cidadão.

Aristóteles consagrou a educação como aquela atividade capaz de preparar o indivíduo para a

felicidade. Por isso, ninguém pode ignorar a importância da educação para o bem viver. “Não se deve

ignorar o que é a educação, nem como ela se deve realizar” (ARISTÓTELES, 1998, p. 78). Mas,

principalmente, não se deve ignorar a educação porque ela é uma ação de responsabilidade do Estado e,

portanto, cabe a este a ocupação com a formação da criança na sua mais tênue idade. O começo da vida

de uma criança deve receber as melhores impressões, pois “são as primeiras impressões que mais nos

afetam” (ARISTÓTELES, 1998, p. 77). Ao ver de Aristóteles, a educação da criança deve ser um dos

primeiros cuidados do legislador, pois, a negligência na educação causará um prejuízo ao corpo social,

pois, este padecerá pela ausência de bons cidadãos, por conseguinte, de bons legisladores.

Para Aristóteles, a importância da educação é algo claro, porém, o como fazer essa educação não

é tão claro e objetivo, pois, cada ação pedagógica deve contemplar o que é bom para um determinado

Estado. Assim, não há uma ação educativa que deva valer para todos os Estados, mas, cumpre aos Estados

uma preocupação com a melhor ação pedagógica, e essa será, sem dúvida, aquela que forma, pelos bons

costumes os indivíduos.

É preciso, ademais, que todo cidadão se convença de que ninguém é de si mesmo, mas que todos pertencem ao Estado, de que cada um é parte e que, portanto, o governo de cada parte deve naturalmente ter como modelo o governo do todo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 78).

Em toda parte a educação deve tomar como modelo a forma do governo. Cada Estado tem costumes que lhe são próprios, de que depende sua conservação e até sua instituição. São os costumes democráticos que fazem a democracia e os costumes oligárquicos que fazem a oligarquia. Quanto mais os costumes são bons, mais o governo também o é. (ARISTÓTELES, 1998, p. 77).

A educação é entendida, no exposto acima, não como obra de indivíduos e, sim da cidade, pois ela

é verdadeiramente natural ao ser humano. Fora da cidade, o homem fica privado de alguns atributos

essenciais ao ser humano, como por exemplo, a racionalidade, a poesia, a arte e, por que não, da própria

felicidade. O homem age, constitui o seu caráter, no contexto da polis. Entretanto, a educação não pode

deixar de considerar o ethos (hábitos, costumes) do Estado onde ela será uma ação. Nesse sentido, a

educação põe o indivíduo em contato com um ethos histórico, conservado e transmitido pela tradição;

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reflete esse ethos e forma o ethos individual. O ethos a ser considerado pela educação é aquele que está

em harmonia com um determinado Estado. Ele deve oferecer à vida social a virtude necessária à sua

conservação, e à conquista da vida feliz. Cada forma de governo gera um ethos que o identifica.

Considerando que todo indivíduo nasce num ethos histórico e social, como diz Lima Vaz, “o

ethos é a casa do homem ( LIMA VAZ, 1988, p.12). A educação prepara o indivíduo para ser um bom

hospede dessa casa, ela acrescenta à natureza social do indivíduo, uma disposição para agir segundo o

melhor fim (a eudaimonia). O processo educativo compromissado com a formação para o bem viver (eu

zen), em sociedade, une necessariamente ética e política, indivíduo e sociedade, ação e responsabilidade,

exercício das virtudes e vida feliz.

A vida social, harmonizada pela educação, é organizada por meio das leis (nomos), e estas não

apenas organizavam a sociedade, mas também apresentavam um determinado ethos social. Mas, esse

ethos só poderá contribuir para a felicidade, se ele se constituir num ethos virtuoso, ou seja, se for

expressão da união entre ética e política. Na política o ethos se apresenta sob a forma de lei e, na ética,

ele se apresenta sob a forma de virtude. Dessa maneira, o ethos (nomos) apresenta o bem final, para o

qual todas as ações individuais devem tender – a eudaimonia – e na ética apresenta os meios necessários

para o alcance desse bem – as virtudes. A práxis (ação) humana será mais humana, quando for resultado

da unidade entre ética e política. Em outras palavras, a práxis humana só será eupraxia (boa ação)

quando os indivíduos forem educados de modo a conciliar o ethos individual com o ethos social. A

lapidação dessa capacidade natural humana só é possível num Estado virtuoso e que, portanto, se ocupa

de formar seus cidadãos para a virtude.

A educação para Aristóteles é um processo que aprimora a natureza do indivíduo ( LIMA VAZ,

1988, p.77) pois, a sua ação o conduz ao estado natural, ao raciocínio, e este processo se dá por meio

de uma ação pedagógica que valoriza o hábito, ou seja, a prática. O esquema educacional aristotélico

se apresenta como um esquema que envolve natureza-hábito-instrução. Cabe à educação formar, por

bons hábitos, o bom cidadão, aquele que governa bem as coisas tanto no âmbito particular quanto no

coletivo. Nesse sentido, o indivíduo não pode viver fora da comunidade, pois, fora dela, ele se torna um

degradado. O Estado possui, para Aristóteles, uma concepção orgânica onde o todo não absorve e funde

em si mesmo as partes que o compõem, mas um todo que deixa às suas partes funções autônomas, que

se vinculam ao fim geral da vida” ( HOURDAKIS, 2001, p 21). Esta concepção orgânica de Estado é

fundamental na fisiologia política de Aristóteles para compreendermos a necessidade vital da interação

das partes com o todo. Trata-se de uma interação que promove a adequação entre os télos, isto é, o télos

da vida do indivíduo deve se adequar ao télos da vida do Estado. Esta concepção orgânica propõe uma

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116

eudaimonia que nunca poderá ser privada, mas, coletiva, como é apresentada na Ética à Nicômaco, II,

1103a.

Para Aristóteles, a natureza humana não determina se o homem será bom ou mau cidadão, contudo,

sem uma adequada formação não temos a garantia de um bom cidadão. Deve-se agregar à natureza as

virtudes, e essas, são oriundas do hábito – no caso das virtudes morais – ou do ensino – no caso das

virtudes intelectuais. Não haveriam, portanto, virtudes inatas ao homem, ou elas se agregam à natureza

humana por meio do hábito, ou por meio do ensino. Aristóteles expõe essa relação vital entre natureza-

hábito-instrução dizendo:Concluímos que as virtudes não nascem em nós nem por natureza, nem contrariamente à natureza, mas que nascemos com a capacidade de receber essas virtudes e aperfeiçoá-las em nós, esforçando-nos para isso, por meio do habito. De resto, todas as particularidades que nos são fornecidas pela natureza, nós as conservamos primeiramente como potencialidades, e as transformamos mais tarde em atos... As virtudes, entretanto, nós as possuímos após tê-las exercido, como é o caso das outras artes e ofícios. Com efeito, o que precisamos aprender fazer, nós aprendemos fazendo: por exemplo, tornamo-nos construtores, construindo, e citaristas, tocando citara. Do mesmo modo, nós nos tornamos justos, realizando atos justos, tornamo-nos sábios, realizando atos sábios, e corajosos, realizando atos corajosos (Aristóteles, p. 33-34)

Mas a maioria dos homens não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira. Nisso se portam como enfermos que escutassem seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhe prescrevem. ( ARISTÓTELES, EN II 1105b).

Ao afirmar que as “virtudes não nascem em nós nem por natureza nem contrariamente à natureza”,

Aristóteles confere ao homem e ao Estado a missão de somar à natureza humana as virtudes necessárias

para uma vida feliz. Há uma potencialidade na natureza humana, contudo, as virtudes só podem ser

realizadas pelo exercício do hábito. Assim, podemos dizer que, o télos da natureza humana é a felicidade

social, esse télos só é possível de ser realizado por causa da capacidade natural do homem de aprender.

Portanto, o homem, animal portador de lógos, aprende a ser aquilo que potencialmente ele pode ser, isto é,

um virtuoso. Nesse sentido, torna-se fundamental o tema da formação para o desenvolvimento do homem

virtuoso (fronimós) e do tempo de formação desse indivíduo para a transformação de suas potencialidades

naturais em atos virtuosos. Da potência ao ato temos o tempo do cultivo, da formação, sem a qual a

potência não terá o movimento necessário para atualizar-se.

Neste sentido, é imprescindível para a formação do homem virtuoso a experiência (empeiria). No

livro II da Ética a Nicômacos, Aristóteles afirma que a gênesis e o desenvolvimento da virtude dianoética

devem-se ao ensinamento e, portanto, exigem experiência e tempo. É no acumulo do vivido, do praticado

que o homem se torna de fato virtuoso. Assim, é através da ação que existe a possibilidade de alguém

tornar-se bom:

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117

As potencialidades naturais são desenvolvidas na ação, já que, sem ação, sobretudo a educativa, não

haverá uma virtude que seja a conjugação do prescrito (o que está na natureza como potência) com o feito

(o que está na natureza como potência atualizada), ou seja, não haverá uma potência atualizada em virtude.

A virtude não pode ser apenas uma disposição cognitiva, mas também prática, pois “aprendemos o que é

justiça sendo justos”. Dessa forma, precisamos aprender a realizar o que se aprendeu. A experiência que

traz em si a conotação de tempo, do tempo vivido, do tempo aprendido, não é uma voz sem ressonância na

ação. Esse tempo permite o homem aprender a razão da ação, o seu fim, o que lhe possibilita encontrar, de

forma mais segura, os melhores meios para se alcançar o fim mais elevado.

A experiência no pensamento de Aristóteles, seja na sua filosofia teórica ou prática, cumpre uma

função fundamental para o conhecimento. Quando quis saber o que é o bem, recorreu aos homens que

possuíam experiência, que tinham vivo o tempo de modo virtuoso. Foi investigando a vida daqueles que

eram considerados sábios que Aristóteles elaborou sua doutrina sobre os bens humanos, os bens realizáveis.

Esses bens, investigados no Livro I da Ética a Nicômacos, podem ser divididos em bens secundários e o

bem principal. O principal é a eudaimonia, os secundários são todos aqueles que estão no percurso para a

eudaimonia. O sábio, homem de experiência, de phronesis (prudência) endereça a sua vida à eudaimonia,

para tanto, aprende a fazer o que é necessário, e como fazer o necessário.5 O sábio é o fronimos, pois, ele

realiza o télos da vida humana pelos melhores meios.

Sendo a experiência uma forma de conhecimento, é necessário algum tempo de vida para sabermos

sobre ética e política - ciências práticas - por isso, o jovem não aproveita muito os ensinamentos da ética e

nem da política, justamente, porque não teve ainda tempo de vida suficiente para se empenhar nas coisas

práticas.

Um homem ainda jovem não é a pessoa própria para ouvir aulas de ciência, pois ele inexperiente quanto aos fatos da vida e as discussões referentes à ciência política partem destes fatos e giram em torno deles; além disso, como os jovens tendem a deixar-se levar por suas paixões, seus estudos serão vãos e sem proveito, já que o fim almejado não é o conhecimento, mas a ação. Não será uma questão de tempo, mas depende da vida que a pessoa leva, e da circunstância de ela deixar-se levar pelas paixões, perseguindo cada objetivo que lhe apresenta. Para tais pessoas o conhecimento não é proveitoso, tal como acontece com as pessoas incontinentes, mas para quem deseja e age segundo a razão o conhecimento de tais assuntos é altamente útil. (ARISTÓTELES, Ética à Nicômacos, 1142 a).

5 Cf. ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco, II 1104 a 1109.

A passagem citada afirma que a deficiência não é uma questão de tempo, ou seja, não basta

que o tempo passe, mas este deve passar no empenho de cultivar-se, pois quem deixa o tempo passar,

desobrigando-se do próprio cultivo, degenera-se. Pierre Aubenque, comentarista da obra de Aristóteles,

endossa a ideia da importância da experiência para o cultivo de si mesmo, dizendo:

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118

A experiência já é conhecimento, ela supõe a soma do particular e está, pois na rota do universal. Ela não é repetição indefinida do particular, mas já se introduz no elemento da permanência: é esse saber antes vivido do que aprendido, profundo, porque não reduzido, e que reconhecemos naqueles dos quais dizemos que têm experiência. (AUBENQUE, 2003, p.99).

A noção de homem cultivado, de homem formado, em Aristóteles, é a de homem de boa ação.

Este é oriundo de uma ação pedagógica que une política e ética. A ética que envolve esta ação não oferece

princípios gerais e imutáveis, pois o que ela pretende é formar o indivíduo para bem calcular suas ações,

para medir, para encontrar a boa medida nas situações particulares para o bem agir. Dessa maneira, o

indivíduo não estará sendo direcionado por regras que aniquilam uma particularidade, ao contrário, o

homem cultivado é o homem criativo, aquele que aprende em cada situação, e visa encontrar o melhor

meio para fazer o que é bom, o que é belo, justo e honroso. A base política desta ação pedagógica refere-

se ao fato de ser o homem um animal social e, por conseguinte, aquele que não inviabiliza o outro no seu

processo de aquisição de vida feliz, o que confere à política o estabelecimento do télos da educação.

Segundo Morral, Aristóteles começa por insistir na indispensabilidade da filosofia para a vida

cotidiana. Sendo a vida cotidiana uma práxis, ela necessita ser bem orientada para se tornar uma boa

ação, uma ação fruto de um bom cálculo. Nesse sentido, a filosofia prática, ética e política, dão à vida do

homem os princípios para a boa ação. Esta tem sua origem na escolha dos bens, pois, não se pode utilizar

os bens externos da vida sem um preparo adequado, sem uma formação. Fazer escolhas é algo inevitável

na vida humana e a felicidade está relacionada diretamente às escolhas, às boas escolhas. “A felicidade

não é o simples processo de adquirir possessões materiais por si mesmas” (MORRALL, 1981, p.31).

Ser preparado para bem viver consiste em ser preparado para escolher os melhores bens, que devem ser

harmonizados por um bem supremo (summum bonum ou agathon). A práxis será efetivamente o lócus

(lugar) do somatório das escolhas de um determinado indivíduo, locus de atualização de suas potencias

naturais.

A práxis, como Aristóteles compreendeu, deve ser o lugar da liberdade, lugar de revelação do homem

que se tornou virtuoso, é lugar de afirmação do indivíduo em sua relação com o todo, é lugar de consolidação

de uma boa educação. Falar de ética, de politica, de educação em Aristóteles é, necessariamente, falar de

práxis. A ética destina mostrar aos indivíduos como agir, a política a finalidade do agir, e a educação a

formação da natureza a disposição para agir, segundo uma determinada ética e uma determinada politica.

A educação unida à ética e à política prepara o indivíduo para subordinar as suas ações à reta razão (ortós

lógos)6.

6 A reta razão é a razão voltada para os aspectos práticos da vida, é a razão orientada a algum fim, ela é o discernimento relativo à conduta. Ela não é um fim em si mesma, mas conduz a um fim.

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119

A práxis aristotélica não é um ideal a ser perseguido, como pensava Platão em sua utopia na

República, ao contrário, para Aristóteles ela é uma atitude, é uma realização da própria vida, que deve

ser boa para si, na medida em que é boa para o coletivo. Trata-se de uma ação construtiva da eudaimonia.

Ela não é um conhecimento prévio, antecipado, metafísico. Ao contrário, Aristóteles, como bom realista,

empenhou-se em sua teoria sobre a práxis na tentativa de uma investigação sobre como ser feliz na vida

privada e pública. Como dissemos anteriormente, a felicidade é algo final e auto-suficiente, é o fim a que

visa as ações7. A eudaimonia é o resultado do viver bem e do conduzir-se bem8. Contudo, será a finalidade

da Política difundir um certo caráter nos cidadãos, como por exemplo, torná-los bons e capazes de praticar

boas ações.9 É nesse sentido que podemos afirmar que a eudaimonia depende inteiramente da ética e da

política.

Aristóteles se interrogava, de maneira muito ampla, sobre as faculdades próprias do homem.

Segundo ele, o espírito humano compreende não somente o pensamento, mas a percepção, as afecções, a

vontade e o desejo. Se nos interrogarmos sobre a atividade do conhecimento, observamos que conhecer

verdadeiramente é conhecer o porquê das coisas, e mas ainda, é poder agir em função daquilo que

conhecemos. (BERTEN, 2004, p.71). A práxis não é um puro agir, o agente no ato de decidir não é um puro

empírico, mas é alguém que, por meio do lógos, avalia como se deve agir para alcançar o fim proposto. É,

na verdade, uma práxis como resultado de um conhecimento do porquê se deve agir, bem como, para quê

se deve agir. Reivindica-se, dessa maneira, para a práxis aristotélica, o lógos como princípio investigatório

dos meios e, ao mesmo tempo, como aquele que visa um télos. Essa é a sabedoria prática proposta por

Aristóteles.

Para Aristóteles, tudo no homem pode ser educado e quando diz que toda ação humana nasce de

um desejo, este, por sua vez, é capaz de ser educado. O lógos, por meio da educação, direciona o desejo

na rota do bem agir. Da mesma maneira, as emoções e as paixões, que tanto influenciam o homem no ato

de agir, também podem ser educadas. Sem dúvida, Aristóteles tinha o desafio de apresentar o objetivo

da educação, da ética e da política como uma atividade capaz de fazer o homem agir em função de uma

boa finalidade. É, sem dúvida nenhuma, uma investigação antropológica, na medida em que o projeto

aristotélico de cultivar o homem baseado numa junção entre educação-ética-política, realiza inventários

sobre as mais variadas formas de se educar o homem, mas, tendo em vista o aperfeiçoamento, pela cultura

de sua natureza, aprimorando sua ação. Dessa maneira, a antropologia aristotélica apresenta o homem

como aquele que carece de formação e como aquele se realiza, que se revela, na ação.

7 Cf. Ibidem, 1097b.8 Cf. Ibidem, 1098b.9 Cf. Ibidem, 1099b.

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Assim, o humano deve ser tomado em todas as suas dimensões, para que, possa ser lapidado, por

meio de uma educação que visa conduzir o homem do estado bruto, sem forma, ao estado de homem

feliz. Para tanto, é imprescindível que as dimensões públicas e privadas do homem sejam norteadas por

uma educação que o conduza ao aprendizado dos bons ethos e, por conseguinte, a uma vida virtuosa. A

verdadeira educação, não pode ter por télos primeiro as coisas úteis, ou produtivas, mas a vida feliz que só

pode se realizar na pólis.

Segundo Aristóteles, é de suma importância saber o fim a que nos popomos no que fazemos e

no que ensinamos. Este fim conhecido só será verdadeiramente um bom fim se buscar a realização da

felicidade coletiva que, só pode ser alcançada pelo exercício das virtudes. Assim, deve haver uma unidade

entre o fim da vida individual e o fim da vida social. Esta unidade gera perfeição, harmonia, vida feliz.

“Sendo o fim o mesmo tanto para a vida pública quanto para a vida privada, a perfeição dos Estados não

pode definir-se de modo diferente da dos particulares (...)”.10 Portanto, trata-se de uma felicidade coletiva,

atualizada no corpo social, este formado por cidadãos e legisladores virtuosos.

Como dissemos, para Aristóteles, o homem feliz é o homem de prudência, é o homem dotado

de discernimento. Assim, é no momento deliberativo que a phronesis – virtude dianoética – manifesta o

conhecimento cultivado, adquirido pela educação para o exercício das virtudes, aplicado em cada caso

particular. Essa arquitetura da boa ação salienta um novo intelectualismo inaugurado por Aristóteles, mas

um intelectualismo prático, diferente do intelectualismo da ciência e da arte, pois ele não se trata de mero

conhecimento, mas é ação. O protótipo de homem feliz para Aristóteles é Péricles, pois ele soube discernir

o que é bom para si e para todos.

10Ibidem, p.68.

É por esta razão que pensamos que homens como Péricles têm discernimento, porque podem ver o que é bom para si mesmos e para os homens em geral; consideramos que as pessoas capazes de fazer isto, são capazes de bem dirigir as suas casas e cidades. (ARISTÓTELES, EN VI 11040 a).

Tendo Péricles como exemplo de homem prudente, Aristóteles nos permite compreender que a

vida feliz (quer se trate da cidade ou da casa, assim como do indivíduo) é a totalidade que transcende os

fins particulares. O bem encontrado por Péricles é o bem-viver, ou seja, o bem econômico. É importante

notar que o termo “economia” é originado da junção dos termos grego oikia e nomos e pode ser traduzido

como as regras da casa, portanto, o bem viver, nesse sentido, faz referência ao bem na relação familiar, na

vida privada. Quanto ao bem político faz referência ao bem na relação entre os cidadãos o que é comum

a todos, e o que para Aristóteles deve ser posto como o telos a ser atingido como vida feliz.

Em suma, os fundamentos éticos e políticos para o processo educativo em Aristóteles são de dois

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tipos: o que prepara os indivíduos para uma vida social harmônica e o que prepara os indivíduos para

serem felizes nessa vida social. Esses fundamentos fazem da educação não um mero acréscimo à natureza

humana pelo cognitivo, mas um processo que molda a natureza de tal forma que ela confere disposição

adquirida, pelo hábito e pelo ensino, para bem agir. O que está presente no processo educativo de Aristóteles

é o homem na condição de ser animal de lógos e animal político (zoon politikon). Portanto, o processo

educativo visa formar o homem, capacitando-o ao calcular dos meios para melhor deliberar sobre suas

escolhas. Ao que parece essa tão desejada, nos dias de hoje, relação entre ética e política costurada pela

educação é um empreendimento de séculos, cabe a nós como educadores a tarefa de resgatá-la, na medida

em que ainda estamos muito distantes da efetivação de um tal projeto.

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EnsaioFotográfico

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RECORTES

Praça da Igreja do Rosário em Vila Velha - ES. Antigamente o veículo que lá passava era o bonde, o que contrasta com a atual proibição de tranportes mais pesados, como ônibus, circularem na imediação já que o movimento constante de tremores estavam provocando rachaduras na igreja que é o marco da colonização espirito-santense.

Prof. MSc. Teófilo Augusto da Silva

Mestre em Cognição e Linguagem (UENF), Professor da Faculdade de Filosofia de Campos (FAFIC/UNIFLU) e o Instituto de Ensino Aldo Muylaert (ISEPAM).

Coordenador do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares em Diversidade Cultural e Linguagens (UNIFLU)

Vol. 6, Nº 3journal homepage: www.revistaagendasocial.com.br ISSN 1981-9862

SLICES.

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PALAVRAS-CHAVES Vila Velha; Hugo Musso; Assemblage;

Por meio de uma técnica de fotomontagem denominada assemblage (como a colagem das obras de John Jasper, Picasso ou Braque), procuro juntar o passado retratado por um exímio fotógrafo capixaba, Hugo Musso, com o presente apreendido em uma câmera fotográfica digital, de forma a trazer ao conhecimento de um público geral o trabalho daquele fotógrafo, enquanto procuro da mesma maneira descrever as modificações no ambiente humano demonstrada pela comparação imediata entre as imagens.R

ESU

MO

KEY-WORDS Vila Velha; Hugo Musso; Assemblage

Through a photomontage technique called assemblage (as the collage works of John Jasper, Picasso or Braque), I try to join the past portrayed by a capixaba master photographer, Hugo Musso, seized on this with a digital camera in order to bring to the notice of a general public that photographer’s work while looking the same way to describe changes in the human environment as demonstrated by the comparison between the images.

AB

STR

AC

T

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129

Introdução

Este ensaio é um tipo de pagamento, já que devo parte do que eu sei de fotografia à figura

de Hugo Musso. Não que eu tenha tido aula com ele, infelizmente ele faleceu antes de eu ter esta

oportunidade, na verdade foi algo “por tabela”: quem teve aula com o ícone da fotografia capixaba

foi meu pai, que mesmo sem me dar uma instrução propriamente dita em fotografia, me incentivou no

início – foi quem me deu minha primeira câmera SLR, uma Zenit 122, e um pequeno laboratório de

revelação. Além disso me tornei amigo do filho dele, o médico e ambientalista César Musso.

Este trabalho também foi minha primeira experimentação na fotografia artística. Produzi

o conjunto em 2007 quando intencionava participar do então “Prêmio Porto Seguro de Fotografia”.

Contudo a banca da premiação não reconheceu meu trabalho como pertinente para participar da galeria

do prêmio e ele ficou na minha gaveta durante muito tempo.

O trabalho consiste de uma superposição das imagens de Vila Velha dos anos 50, 60, 70 e

minhas imagens feitas em 2007. Convém destacar que além de simplesmente montar tive de realizar

uma pesquisa visual, tentando imaginar quais seriam aquelas composições já que muito daquele cenário

já devia estar completamente modificado, ou não existia, como a FIG ## que mostra uma estrada que a

expansão urbana já cobriu e substituiu pela “Rodovia do Sol”.

A capacidade de registro mnemônico da fotografia é uma das características que sempre me

atraiu como pesquisador, e, nesta obra em específico, fica evidente este esforço, já que Vila Velha, e

toda a Grande Vitória, sofreram modificações consideráveis em sua infraestrutura nos últimos séculos.

Devo destacar a semelhança do trabalho de registro de Hugo Musso com Eugéne Atget e outros

fotógrafos do século XIX, e o fato de que foi durante meados do século XX que o Espírito Santo

presenciou este tipo de necessidade de registro imagético fotográfico, visto que a condição histórico-

social-econômico do estado sempre foi a de ser um território estratégico em questão de defesa do país

e, por isso, deixado em seu modo mais “selvagem” durante décadas a fio.

Hugo Musso representa os esforços de outros tantos fotógrafos que, naquela época, fundaram o

Foto Clube Espírito Santo (um dos mais velhos do país) e se orgulhavam de sua condição amadorística,

o que para nós representa que os mesmos se identificavam com a expressão fotográfica, com sua

popularização, atuando como “alfabetizadores” para um público ainda não acostumado a visualizar

imagens fotográficas.

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1. O fotógrafo Hugo Musso

Como dito anteriormente, Hugo Musso foi um dos primeiros fotoclubistas brasileiros, sendo fundador

do Foto Clube Espírito Santo que em 2008 fez 62 anos2. Seu corpus imagético é enorme para alguém

que se intitulava fotógrafo amador, o que nos faz lembrar do trabalho de Eugéne Atget no início do

século XIX.

Hoje, parte do acervo do fotógrafo é cuidadosamente preservado por seu filho, porém, sem

incentivo estes registros de Vila Velha, Vitória e Guarapari, ficam escondidos da população que nem

mesmo sabe porque uma das principais vias da cidade tem o nome de Hugo Musso.

2 Cf. << http://vitoriafoto2008.blogspot.com.br/2008/05/entrevista-magid-saad-foto-clube-do-es.html>> Acesso em: 16 de Mar de 2013.

FIGURA 01

Eugène Atget, Hôtel, 1 rue des Prouvaires et 54 rue Saint-

Honoré (1912), Fotografia sobre cartolina. Disponível em: <<

http://artblart.com/category/eugene-atget/ >>. Acesso em: 16

de Mar de 2013.

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MUSSO, Hugo. Igreja do Rosário, Prainha, Vila Velha – ES.

2. O projeto Recortes

Durante a execução do projeto, tive a possibilidade de visualizar parte do acervo que havia sido

digitalizado por César Musso. Dentro daquele corpus gigantesco tive que me contentar com a seleção de

alguns poucos arquivos que ainda passaram por uma segunda triagem restando apenas 5 (FIGURA 02 a

06) para a primeira parte do projeto.

A FIGURA 02 apreendeu a imagem da Igreja do Rosário, uma das igrejas mais antigas do Brasil,

construída durante o período da colonização (1551) enquanto o estado do Espírito Santo e o de Minas

Gerais faziam parte da mesma Capitania. A Igreja fica em uma região de Vila Velha chamada “Prainha”,

onde se estabeleceu uma colônia de pescadores e as bases do Exército e da Marinha.

FIGURA 02

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FIGURA 03

MUSSO, Hugo. Seus três filhos mais

velhos caminhando na praia da Prainha,

Vila Velha - ES. César Musso não está

nesta imagem.

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FIGURA 04

FIGURA 05

MUSSO, Hugo. Vista do Morro da Penha

e do Convento da Penha, Prainha, Vila

Velha - ES.

MUSSO, Hugo. Caminho antigo que levava em

direção à Guarapari, passando por Barra do Jucu.

Hoje não mais existe esta via que foi substituída

pela Rodovia do Sol, Vila Velha - ES.

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FIGURA 06

MUSSO, Hugo. Praia de Itaparica, Vila Velha - ES.

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Nesta imagem, podemos ver que antigamente havia o transporte por bondes disponível na cidade,

o que de certa maneira era mais democrático, uma vez que hoje, por conta da manutenção da igreja que já

apresentava rachaduras na estrutura, os ônibus municipais são proibidos de circular na região do entorno

da construção. Na direita da imagem, há um sujeito caminhando, vestido de terno e com um chapéu há

uma descrição visual da vestimenta da época. As linhas de energia ainda continuam presentes, porém,

como não há mais bondinho, não há a necessidade delas estarem no meio da pista de tráfego, portanto,

elas acompanham os postes colocados nas calçadas.

A FIGURA 03 ilustra a praia da Prainha, onde hoje existe a cooperativa dos pescadores e parte

da área de areia é bloqueada à passagem por conta da segurança da Escola de Aprendizes-marinheiros do

Espírito Santo (EAMES). Na imagem podemos ver os três filhos mais velhos de Hugo Musso – o César

ainda não estava presente a estas brincadeiras. No canto direito, podemos ver três pequenas embarcações

da pesca artesanal que ainda hoje é praticada, apesar de o canal de Vitória não ser limpo o suficiente,

como comprovam os destroços e resquícios do consumo humano presentes nas praias de ambos os lados

do canal.

Na FIGURA 04 pode-se ver o Morro da Penha e acima dele o Convento construído por Frei

Pedro Palácios, provavelmente com ajuda dos índios locais que eram alvos de sua “catequização”. Na

época em que fiz a imagem que serviria de contraponto à esta (2007), vemos uma série de construções

feitas nesta parte da Prainha, parte de um serviço de reurbanização e revitalização desta área trazida pelos

prefeitos Vasco Alves e Albuíno Azeredo – que mais tarde tornar-se-ia Governador do estado. Contudo, as

atuais administrações (Max Filho e Neulcimar Fraga) demoliram a maioria daquelas construções devido

a inutilidade que a região havia mergulhado e o fato de servir de abrigo à práticas criminais e ao consumo

de entorpecentes.

Como mencionei no início do ensaio, a FIGURA 05 apresenta uma via que não mais existe. Até

então, os projetos de mobilidade para o ES eram muito incipientes, não dando conta de interligar realmente

o estado com outras regiões do país. Os políticos da ditadura temiam uma possível invasão comunista

por terras capixabas e antes disso os portugueses não queriam que os piratas tivessem caminho livre até

as Minas Gerais e seu ouro. Apesar disso, o estado tem noção da sua multiculturalidade tentando ser

democrática nas línguas citadas na placa de Boas Vindas.

Finalmente, na FIGURA 06, temos um exemplo do crescimento urbano que o município atestou

nas últimas décadas. Neste caso, a fotografia que apreendi em 2007 não pude utilizar o mesmo ângulo, por

agora, no local onde possivelmente o Sr. Musso havia estado para captar a imagem, existe um edifício e

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que mesmo indo para a sacada de um dos

andares não havia como imitar o ângulo

do autor da FIGURA 06.

3. Os Recortes: Assemblage digital

Quando se trabalha em cima de uma

obra de outro artista tão renomado temos

de ter o cuidado de não ofender a memória

do mesmo poluindo ou descaracterizando

seu trabalho. Esta preocupação pontuou

minha própria busca, desde o momento

da concepção do projeto, até a montagem

final em programa de edição de imagens.

A intenção explícita do autor foi a de

identificar as características físicas

do ambiente urbano da época e tentei

manter isso ao realizar a sobreposição das

imagens.

Na FIGURA 07 podemos

visualizar que tento demonstrar como

houveram diferenças da infraestrutura e

do comportamento social. Ainda como na

época de Musso, hoje em dia ainda se trata

de um ambiente de pouca agitação social,

com exceção da famosa “Festa da Penha”,

evento religioso-secular que atrai milhares

de fiéis todos os anos para as missas no

Convento que vão até de madrugada, e as

feiras populares no pé do Morro da Penha.

O veículo mudou e transita no

mesmo caminho do antigo bonde, não

mais existem os trilhos, o que realmente

FIGURA 07

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MUSSO, Hugo; SILVA, Teófilo A. Igreja do Rosário, Prainha, Vila Velha – ES. (? – 2007).

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FIGURA 08

MUSSO, Hugo; SILVA, Teófilo A. Praia da Prainha, Vila Velha - ES. (? – 2007).

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indica a substituição completa do antigo veículo.

Enquanto as palmeiras já cresceram tendo diferenças

gritantes tanto no tamanho quanto na composição

das folhagens da copa.

Não estamos no mesmo ponto de onde foi

tirada a imagem de Musso, por conta da questão de

segurança da EAMES – a referida extensão de areia

fica agora dentro dos muros da instituição militar. Por

isso, não utilizei muito da imagem original, retirando

apenas os elementos mais característicos, até porque

a praia de antes não possuía tantos elementos visuais.

Os filhos de Musso contrastam com os pescadores. A

antiga praia vazia, agora está cheia de embarcações,

diferentes daquele primeiro tipo que aparece na

FIGURA 03, e a embarcação tirada daquela imagem

fica agora deslocada, posicionada na direita da

imagem.

A assemblage da FIGURA 09 foi uma das

mais difíceis de imaginar uma composição adequada.

A sobreposição de camadas ia além do simples

posicionamento dos elementos recortados. O Morro

da Penha está no mesmo local e a arquitetura do

Convento não mudou nos seus quase quatrocentos

anos desde a colocação da pedra fundamental . Estes

dois argumentos me fizeram concentrar-me nas

mudanças acontecidas no terreno da Prainha. A visão

que temos na fotografia apreendida por Hugo Musso

é a do campo plano. A capela ao fundo foi a capela

fundada na gruta da penha por Frei Pedro Palácios,

hoje encoberto (deste lado da vista) pelo prédio da

Polícia Militar e outras instalações como um clube

de Bocha.

MUSSO, Hugo; SILVA, Teófilo A. Praia da Prainha, Vila Velha - ES. (? – 2007).

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FIGURA 09

FIGURA 10

MUSSO, Hugo; SILVA, Teófilo A. Praia da Prainha, Vila Velha - ES. (? – 2007).

MUSSO, Hugo; SILVA, Teófilo A. Caminho para Guarapari – Rod. Do Sol, Vila Velha - ES. (? – 2007).

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FIGURA 11

MUSSO, Hugo; SILVA, Teófilo A. Praia de Itaparica, Vila Velha - ES. (? – 2007).

Neste caso, a via que fora retratada por Musso já não existe mais. É agora a Rodovia do Sol

(ES 040) que faz a ligação do município de Vila Velha com o de Guarapari. Contudo, os capixabas

atuais não parecem ser tão receptivos quanto os de antigamente, a placa de “Bem-Vindo” a cidade

fica mais distante (na divisa entre municípios) e só está escrita em português, indo na contramão do

multiculturalismo presente no território capixaba, famoso por possuir colônias de imigrantes que ainda

mantém tradições das terras europeias, africanas e asiáticas.

A FIGURA 11 como já citado anteriormente, foi aquela que me deixou mais insatisfeito, já que

o ângulo que Musso havia utilizado já não podia ser alcançado com o equipamento que eu possuía na

época já que no local há hoje um edifício. Por isso, a imagem feita por Musso era vertical enquanto

a que eu apreendi estava na horizontal. Contudo, apesar da diferença de composição, pode-se notar

diferenças na infraestrutura que décadas separam. O urbanismo alcançou o ambiente praieiro e o

calçadão superpôs-se à restinga original.

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4. Experiência estética no Assemblage

Durante o processo de fotomontagem adicionou-se significantes extras ao trabalho fotográfico

de Hugo Musso sem, contudo, interferir no processo significante inicial. Quis apenas demonstrar as

modificações no ambiente humano de algumas décadas em separação.

Este trabalho que executei não é inédito, outros já fizeram – como exemplo podemos citar o

trabalho de Marcelo Zocchio no livro “Repaisagem São Paulo”. E, ainda assim, é o mesmo exercício

que fazemos mentalmente, quando visualizamos imagens antigas e as comparamos com nossa própria

imagem mental daquele espaço, ou seja, de alguma maneira o assemblage é uma técnica comum para

nossa vivência.

Além disso, trabalhos como este podem resgatar objetos fotográficos perdidos em acervos

familiares, ou em departamentos de diversas instituição estatais ou não.

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