vol iii n1_213-228

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Recensões 213 das ex-colónias. Como é sabido, a afirmação da disciplina antropológica em Portugal a partir de 1870 ocorreu basicamente em torno de estudos de natureza etnográfica e/ou etnológica orientados para a cultura popular portuguesa de matriz rural, de acordo com pressupostos ideológicos ligados à afirmação da identidade nacional. Recorrendo à terminologia de George Stocking (“Afterword: A View from the Center”, Ethnos, 1982), pode-se dizer que em Portugal, apesar da existência de colónias e da inexistência de um problema na- cional, a antropologia se desenvolveu historica- mente como uma nation building anthropology, e não – como nos restantes países europeus onde prevalecia uma situação aparentemente homóloga à portuguesa (Grã-Bretanha e França, por exem- plo) – como uma empire building anthropology. É com Jorge Dias que este autocentramento da disciplina antropológica em torno de Portugal é de alguma forma posto em questão. A mo- nografia sobre os macondes do Norte de Moçam- bique é justamente o marco central desse processo de viragem da antropologia portuguesa para África. Editada inicialmente entre 1964 e 1970, em quatro volumes da autoria de Jorge Dias (I Vol. Aspectos Históricos e Económicos, 1964), Jorge Dias e Margot Dias (II Vol. Cultura Material, 1964; III Vol. Vida Cultural e Social, 1970) e Manuel Vie- gas Guerreiro (IV Vol. Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos, 1966), Os Macondes de Moçambique cons- titui, por essa razão, uma das peças fundamen- tais não apenas da obra de Jorge Dias, mas do próprio percurso histórico da antropologia por- tuguesa. A sua reedição, numa iniciativa conjunta da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e do Instituto de Investigação Científica Tropical, deve pois ser saudada. Alguns dos volumes da edição original há muito que se encontravam esgotados e, no quadro recente de reedições da obra de Jorge Dias e dos seus colaboradores, esta era uma lacuna que se impunha preencher. Em conjunto com outras iniciativas – entre as quais se destaca o trabalho de levantamento, catalogação e estudo dos filmes etnográficos de Margot Dias entre os macondes, realizado por Catarina Alves Costa no âmbito do Museu Nacional de Etnologia (Guia para os Filmes realizados por Margot Dias em Moçambique 1958/ /1961, 1997) –, a reedição do volume I de Os Ma- condes de Moçambique contribui para dar uma JORGE DIAS OS MACONDES DE MOÇAMBIQUE. VOL. I: ASPECTOS HISTÓRICOS E ECONÓMICOS (INTRODUÇÃO DE RUI PEREIRA) Lisboa, CNCDP/IICT, 1998. Jorge Dias foi sem dúvida uma das mais im- portantes figuras da antropologia portuguesa do século XX. Essa sua importância deriva, por um lado, do trabalho de renovação da pesquisa an- tropológica sobre Portugal que ele empreendeu. Remontando à segunda metade dos anos 40, após o seu regresso da Alemanha, esse trabalho teve três facetas principais. A mais conhecida é sem dúvida a que se prende com a realização dos primeiros estudos de comunidade em Portugal (Vilarinho da Furna, Uma Aldeia Comunitária, 1948; Rio de Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, 1953). Simultaneamente, apoiado na metodologia da “ex- tensive survey”, Jorge Dias desenvolveu o ma- peamento e estudo sistemático das tecnologias tradicionais portuguesas. Prosseguida pelos seus colaboradores – em particular por Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pe- reira –, essa pesquisa encontra-se na origem de um conjunto invulgarmente amplo de monografias que ainda hoje constituem uma referência fun- damental para a reconstituição da ruralidade portuguesa nos anos que antecederam o “boom” emigratório da década de 1960. Finalmente, são também da autoria de Jorge Dias os primeiros grandes estudos de síntese da cultura popular portuguesa no seu conjunto. Um desses estudos, de resto – Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa (1955) –, continua a ser uma referência frequentemente invocada nos debates recentes sobre a identidade nacional portuguesa. A par da renovação da pesquisa antropoló- gica sobre Portugal, Jorge Dias foi também uma figura decisiva no processo de emergência de uma antropologia orientada para o estudo das socie- dades e culturas das ex-colónias portuguesas, na segunda metade dos anos 50. A importância da “descoberta” – embora tardia – desse terreno deve ser sublinhada. De facto, embora Portugal se definisse nominalmente como uma potência colo- nial, não é entretanto possível falar, ao longo do período que medeia entre os anos 70 do século XIX e o fim dos anos 50 do século XX, de uma tradição consistente de estudos de antropologia cultural e social centrada nas sociedades e culturas

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das ex-colónias. Como é sabido, a afirmação dadisciplina antropológica em Portugal a partir de1870 ocorreu basicamente em torno de estudos denatureza etnográfica e/ou etnológica orientadospara a cultura popular portuguesa de matriz rural,de acordo com pressupostos ideológicos ligados àafirmação da identidade nacional. Recorrendo àterminologia de George Stocking (“Afterword:A View from the Center”, Ethnos, 1982), pode-sedizer que em Portugal, apesar da existência decolónias e da inexistência de um problema na-cional, a antropologia se desenvolveu historica-mente como uma nation building anthropology, enão – como nos restantes países europeus ondeprevalecia uma situação aparentemente homólogaà portuguesa (Grã-Bretanha e França, por exem-plo) – como uma empire building anthropology.

É com Jorge Dias que este autocentramentoda disciplina antropológica em torno de Portugalé de alguma forma posto em questão. A mo-nografia sobre os macondes do Norte de Moçam-bique é justamente o marco central desse processode viragem da antropologia portuguesa paraÁfrica. Editada inicialmente entre 1964 e 1970, emquatro volumes da autoria de Jorge Dias (I Vol.Aspectos Históricos e Económicos, 1964), Jorge Diase Margot Dias (II Vol. Cultura Material, 1964;III Vol. Vida Cultural e Social, 1970) e Manuel Vie-gas Guerreiro (IV Vol. Sabedoria, Língua, Literaturae Jogos, 1966), Os Macondes de Moçambique cons-titui, por essa razão, uma das peças fundamen-tais não apenas da obra de Jorge Dias, mas dopróprio percurso histórico da antropologia por-tuguesa.

A sua reedição, numa iniciativa conjunta daComissão Nacional para as Comemorações dosDescobrimentos Portugueses e do Instituto deInvestigação Científica Tropical, deve pois sersaudada. Alguns dos volumes da edição originalhá muito que se encontravam esgotados e, noquadro recente de reedições da obra de Jorge Diase dos seus colaboradores, esta era uma lacuna quese impunha preencher. Em conjunto com outrasiniciativas – entre as quais se destaca o trabalhode levantamento, catalogação e estudo dos filmesetnográficos de Margot Dias entre os macondes,realizado por Catarina Alves Costa no âmbito doMuseu Nacional de Etnologia (Guia para os Filmesrealizados por Margot Dias em Moçambique 1958//1961, 1997) –, a reedição do volume I de Os Ma-condes de Moçambique contribui para dar uma

JORGE DIASOS MACONDES DE MOÇAMBIQUE. VOL. I:ASPECTOS HISTÓRICOS E ECONÓMICOS

(INTRODUÇÃO DE RUI PEREIRA)Lisboa, CNCDP/IICT, 1998.

Jorge Dias foi sem dúvida uma das mais im-portantes figuras da antropologia portuguesa doséculo XX. Essa sua importância deriva, por umlado, do trabalho de renovação da pesquisa an-tropológica sobre Portugal que ele empreendeu.Remontando à segunda metade dos anos 40, apóso seu regresso da Alemanha, esse trabalho tevetrês facetas principais. A mais conhecida é semdúvida a que se prende com a realização dosprimeiros estudos de comunidade em Portugal(Vilarinho da Furna, Uma Aldeia Comunitária, 1948;Rio de Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, 1953).Simultaneamente, apoiado na metodologia da “ex-tensive survey”, Jorge Dias desenvolveu o ma-peamento e estudo sistemático das tecnologiastradicionais portuguesas. Prosseguida pelos seuscolaboradores – em particular por Ernesto Veigade Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pe-reira –, essa pesquisa encontra-se na origem de umconjunto invulgarmente amplo de monografiasque ainda hoje constituem uma referência fun-damental para a reconstituição da ruralidadeportuguesa nos anos que antecederam o “boom”emigratório da década de 1960. Finalmente, sãotambém da autoria de Jorge Dias os primeirosgrandes estudos de síntese da cultura popularportuguesa no seu conjunto. Um desses estudos,de resto – Os Elementos Fundamentais da CulturaPortuguesa (1955) –, continua a ser uma referênciafrequentemente invocada nos debates recentessobre a identidade nacional portuguesa.

A par da renovação da pesquisa antropoló-gica sobre Portugal, Jorge Dias foi também umafigura decisiva no processo de emergência de umaantropologia orientada para o estudo das socie-dades e culturas das ex-colónias portuguesas, nasegunda metade dos anos 50. A importância da“descoberta” – embora tardia – desse terreno deveser sublinhada. De facto, embora Portugal sedefinisse nominalmente como uma potência colo-nial, não é entretanto possível falar, ao longo doperíodo que medeia entre os anos 70 do séculoXIX e o fim dos anos 50 do século XX, de umatradição consistente de estudos de antropologiacultural e social centrada nas sociedades e culturas

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merecida visibilidade a uma das facetas mais im-portantes do trabalho de Jorge Dias e dos seuscolaboradores.

O volume agora reeditado beneficia de umaexcelente introdução de Rui Pereira, autor deestudos anteriores sobre a “experiência africana”de Jorge Dias, que problematiza o contexto emque ocorre essa viragem tardia da antropologiaportuguesa para África. Três pontos são centraisna argumentação de Rui Pereira.

O primeiro prende-se com o esclarecimentodo desinteresse da etnografia e da antropologiacultural e social portuguesas por África no pe-ríodo – longo – que antecede a investigação deDias e dos seus colaboradores entre os macondes.Como sublinha Rui Pereira, esse desinteresse con-trasta com o empenhamento evidenciado por dis-ciplinas como o antropobiologia e a antropologiafísica e é explicável quer em função do carácter“subdesenvolvido do colonialismo português”(p. XI), quer em função das políticas concretasimplementadas pelo estado português nas ex--colónias, com particular destaque para o períododo Estado Novo. A este propósito Rui Pereiraenfatiza as estreitas ligações entre o desenvol-vimento da antropobiologia e da antropologiafísica e “a necessidade de quantificação da forçade trabalho indígena” (p. XLVII) subjacente aoprojecto de exploração intensiva da mão-de-obraindígena do colonialismo português ao longo daprimeira metade do século XX. No seguimento deAlfredo Margarido (“Le Colonialisme Portugaiset l’Anthropologie”, Anthropologie et Impérialisme,1975), põe ainda em evidência a contradição entreo projecto assimilacionista e o desenvolvimento deestudos antropológicos.

O segundo ponto que ressalta da análise deRui Pereira relaciona-se com a caracterização mi-nuciosa da conjuntura política na qual se inscrevea viragem africana de Jorge Dias. De acordo comRui Pereira, é a partir da reorientação da políticacolonial portuguesa que ocorre na segunda me-tade dos anos 50 – no rescaldo da Conferência deBandung – que se torna não só possível masnecessário o desenvolvimento de estudos de na-tureza antropológica nas ex-colónias, de forma aproporcionar às autoridades coloniais portuguesasos meios para “gerir política e socialmente asconsciências das populações africanas” (p. XXIV),na tentativa de impedir o desenvolvimento de umclima favorável às aspirações independentistas.

É nesse novo contexto – dominado politicamentepela figura de Adriano Moreira – que é criado, em1956, no quadro da Junta de Investigações deUltramar, o Centro de Estudos Políticos e Sociais,no âmbito de cuja Missão de Estudos das MinoriasÉtnicas do Ultramar Português, Jorge Dias irádesenvolver a sua pesquisa sobre os macondes.

O terceiro ponto, por fim, tem a ver com aligação mais precisa entre a pesquisa de Jorge Diase alguns dos aspectos centrais da política colonialportuguesa a partir da segunda metade dos anos50. Apoiando-se nos relatórios escritos por JorgeDias no termo das suas sucessivas campanhasentre os macondes – que tiveram uma circulaçãopolítica restrita, tendo permanecido até hoje iné-ditos –, Rui Pereira mostra de forma convincenteas articulações efectivamente existentes entre apesquisa de Jorge Dias e as preocupações oficiaisde caracterização e avaliação da situação políticae social que se vivia então no planalto maconde.Fá-lo entretanto de forma duplamente equilibrada,resistindo à tentação – em que outros autores jácaíram – de simplificar a questão, procurando,ao contrário, expor as suas complexidades. Essascomplexidades exprimem-se, por exemplo, nosentido frequentemente crítico que, nos seusrelatórios, Jorge Dias – em contradição com o tomdeclaradamente apologético e “luso-tropicalista”empregue em textos e intervenções de carácterpúblico – emprestou aos comentários sobre ocolonialismo português tal como ele o pôde sur-preender no terreno. Mas exprimem-se tambémno modo como Jorge Dias, colocado numa situa-ção de “antropologia colonial aplicada”, acaboupor coordenar e co-redigir uma monografia mar-cada por preocupações descritivas e teóricas quese situavam fora desse quadro. Como sublinhaRui Pereira, “com o decorrer das campanhas,Jorge Dias parece ter invertido a hierarquia deinteresses previamente determinada por aquelesque patrocinavam a sua investigação no Norte deMoçambique, ou seja, fez ascender ao primeiroplano os objectivos eminentemente etnológicos”(p. XXXIII).

Constituindo uma imprescindível contribui-ção para o estudo da “experiência africana” deJorge Dias, é entretanto pena que a Introdução deRui Pereira não vá mais longe na exploração dosaspectos antropológicos dessa experiência, refe-renciando por exemplo o modo de construção e asopções teóricas de Os Macondes de Moçambique no

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quadro da antropologia africanista da época. Paraalém da contextualização política, fica de algumaforma por fazer o enquadramento teórico damonografia de Jorge Dias. Não posso tambémdeixar de fazer uma observação relativamente àsreferências bibliográficas mobilizadas no início daIntrodução, quando Rui Pereira procede à carac-terização genérica da antropologia portuguesa nofinal do século XIX e na primeira metade doséculo XX: as datas dessas referências não vãoalém de 1991, quando se sabe que nos últimosanos tem sido particularmente importante a pro-dução de artigos e ensaios na área da história daantropologia portuguesa.

Por fim, fica uma sugestão: porque não pen-sar na edição dos relatórios redigidos por JorgeDias no âmbito das suas campanhas entre osmacondes? Como Rui Pereira refere, não só não émais sustentável o clima de “incompreensível epúdico secretismo” (p. XXVIII) que tem sido porvezes criado em torno dos relatórios, como pareceóbvio que da sua edição resultaria a possibilidadede um conhecimento mais aprofundado daqueleque foi um dos acontecimentos mais importantesda antropologia portuguesa do período imedia-tamente anterior ao 25 de Abril.

João LealDepartamento de Antropologia do ISCTE

Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)

JOÃO PACHECO OLIVEIRA (ORG.)INDIGENISMO E TERRITORIALIZAÇÃO:PODERES, ROTINAS E SABERES COLONIAIS

NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998.

Dada a palavra aos Drs. Advogados da parte ré,às suas perguntas respondeu: que reafirma que, quandoesteve na área em 1976, lá encontrou ainda em pé doispostos indígenas (...) um que estava ocupado porfazendeiros e outro cujas casas, em número de seis a seteestavam ocupadas por famílias indígenas, que, entre-tanto, esse agrupamento não caracterizava o que tecni-camente se chama uma aldeia, até porque, comoconsta do depoimento, os índios, em sua grande maioria,já estavam vivendo como assalariados de terceiros, e nãoisolados como seria próprio de uma aldeia (...).

Que tal como os demais grupamentos humanos,também entre os índios ocorreu alto grau de misci-genação, mas essa mestiçagem não lhes retira a

condição de índios, tal como definida no próprioEstatuto do Índio, que chega a definir a categoria deíndio aculturado.

Como facilmente se depreende a partir da lin-guagem empregue e da identidade dos inter-venientes nomeados neste texto, ele reporta-se auma situação de tribunal. Trata-se de um processoque decorreu em 1998 num estado da UniãoFederativa do Brasil para reconhecimento de“terra indígena”. O que torna esta situação sin-gular – para quem não conheça o contexto emcausa – é que a testemunha que está a ser inter-rogada é uma antropóloga. Não sendo um excertodo livro aqui em recensão, ele conduz-nos comexactidão ao assunto que o livro problematiza: opapel da política indigenista na demarcação legalde terras de índios no Brasil e as implicações daantropologia nesses processos.

Partamos então deste depoimento para umaincursão na temática do livro. A primeira questãoque nos é colocada é a do próprio exercício pro-fissional desta antropóloga: ela usa a sua estadiaem terreno, duas décadas antes, como prova ocularda presença de famílias de índios num espaçoterritorial que, hoje, eles reivindicam como seu.Mais ainda, ela refere-se a um saber “técnico” parafalar da desagregação da organização social espe-cífica deste grupo, que teria perdido a capacidadede viver isoladamente “como seria próprio deuma aldeia”. Este é um assunto largamente tra-tado no livro em recensão. Como aí se refere,Darcy Ribeiro, nos anos cinquenta, incluía os“antropólogos” na categoria de experts dotados desaber técnico sobre “qual” e “quanto” territóriodeveria tornar-se disponível para um grupo deíndios. As contradições entre esta forma de con-ceber o conhecimento e aquela que era preconi-zada pela academia não deixaram de crescer,particularmente na última década, com a intensi-ficação da tendência interpretativa da disciplina.

Articulando de forma singular uma reflexãosobre ética profissional (do antropólogo), socio-logia do conhecimento e dados empíricos, re-sultantes de pesquisa no âmbito da situação dasterras indígenas no Brasil, o livro coloca-se por-tanto no contexto de uma “antropologia comocrítica cultural” – o que acaba por assumir expli-citamente (p. 262).

Os artigos desta colectânea, à medida que nosvão dando conta das políticas indigenistas nosprocessos de demarcação de “terras indígenas”,

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familiarizam o leitor com a natureza colonial dossaberes jurídico e antropológico nelas implicados.Desta forma, o livro torna-se uma referênciaimportante para quem debate a questão do pós-colonialismo, neocolonialismo e situações colo-niais na orgânica internacional contemporânea.Não se trata de uma abordagem abrangente dotema, mas de uma cuidada apresentação de dadose de analíticas do poder, nos meandros dos pro-cedimentos burocráticos. Entre as instituições ana-lisadas, destacam-se aquelas que, ao longo desteséculo, tiveram a “tutoria” sobre os índios noBrasil. Primeiro, o Serviço de Protecção ao Índio(SPI), criado em 1910, estandarte do Governo doEstado Novo brasileiro, mitificado na figura deCândido Rondon. Depois, o organismo que lhedeu continuidade, a Fundação Nacional do Índio(FUNAI), criada em 1967, a qual foi considerada,pelo menos até à Constituição de 1988, como re-presentante qualificada dos índios face à lei, istoé, o seu “órgão tutor”.

Enquanto colectânea, o livro apresenta umagrande coerência interna, já que dos oito artigosque contém, quatro são da autoria do organizadordo volume, João Pacheco de Oliveira (um emcolaboração com Alfredo de Almeida), e dois deAntónio Carlos de Souza Lima, sendo os restantesdois assinados, respectivamente, por Lucy Linha-res e Ana Azevedo. Todos resultam, para mais, deum amplo projecto de pesquisa dirigido por JoãoPacheco de Oliveira (Professor no Museu Nacionaldo Rio de Janeiro) sobre terras indígenas no Brasil(PETI).

Este livro elabora, portanto, uma vasta aná-lise das políticas indigenistas brasileiras, no querespeita à questão fundiária. Entre o conjunto dequestões tratadas, destacaria três fundamentais.

A primeira diz respeito à situação real dademarcação de terras para populações de índiosno Brasil. Na avaliação da situação, Pacheco deOliveira discrimina as cinco fases do processo delegalização da propriedade de terra indígena, da“identificação” até à “regularização”. Depois denos explicar que é apenas nesta última fase que otítulo de propriedade ganha validade legal efec-tiva, mostra-nos – com a habitual frieza que aexactidão numérica suscita – que da extensão deterra que a FUNAI reconhecia pertencer a gruposde índios nos anos oitenta, 50,39% está ainda nafase de “identificação” enquanto só 3,88% está nafase final de “regularização”. Estes dados vêm ao

arrepio de muitas das afirmações públicas a pro-pósito da questão fundiária no Brasil, inclusiveaquelas que chegam à Europa.

Uma segunda questão refere-se à forma comoo indigenismo tem tratado o requisito legal dadiferenciação étnica nos processos de demarcaçãodo território indígena. Também esta questão podeser equacionada a partir do depoimento com quese abriu esta recensão, quando se diz que a “mis-cigenação” não anula a diferenciação étnica dapopulação em causa. O livro debate largamenteesta temática, tecendo uma crítica epistemológicae metodológica à forma como os “relatórios an-tropológicos de identificação” (analisados emalguns casos como objectos etnográficos – p. 221e segs.) usam o conceito de grupo étnico de formaanacrónica. No artigo de encerramento, Pachecode Oliveira defende que o aspecto conjuntural daidentificação étnica faz com que ela tenha de seravaliada, essencialmente, nos processos contem-porâneos de diferenciação – e não nas forjadascontinuidades etno-históricas com um tempolongínquo. Esta questão conduz-nos directamenteà seguinte.

A terceira e última temática a destacar dizrespeito ao papel da memória nos processos deidentificação de “terra indígena”. Esta é talvez anoção que serve de epítome aos problemas le-vantados com estes processos de territorialização.Na página 21 transcreve-se o artigo do Estatuto doÍndio (1973) onde fica expresso que a terra in-dígena deve ser reconhecida segundo um “con-senso histórico” sobre a sua ocupação, desde umpassado remoto, pela população que hoje a rei-vindica. O conjunto de equívocos etno-históricosem que os “relatórios de identificação” têm in-corrido a partir desta noção é então alvo dedebate. Nele acentua-se a ausência de uma críticade fontes e a substituição do terreno pela etno--história.

Ainda no campo da memória e do seu papelnos processos da lei e da cultura, é de destacar oartigo de Ana Lúcia de Azevedo (p. 168) sobre acontraposição entre a “ideologia da verdade” dasacções jurídicas, largamente assente na escrita – edesconfiada da oralidade – e a falacidade real dos“testemunhos” escritos considerados de maiorvalidade nestes processos fundiários: as escriturasde propriedade. Esta formulação torna-se parti-cularmente útil depois dos artigos que a pre-cedem: o de Lucy Linhares (onde se faz uma

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apresentação histórica bem documentada das leisde propriedade da terra no Brasil) e os resultadosquantitativos da pesquisa efectuada por Pacheco deOliveira. Assim, por exemplo, Pacheco de Oliveira(p. 64) mostra que a percentagem da extensão deterra ocupada (isto é, para a qual existe umaescritura de propriedade) em quatro estados daUnião é superior a 100% e que isso se deve aofacto de as escrituras de propriedade serem feitasmediante uma declaração oral do proprietário.É, portanto, paradoxal que, no momento de ava-liar um processo de terra indígena, a escrita ganheum valor esmagador face a qualquer recurso àmemória oral, a qual mais facilmente é accionadapelo lado indígena. No entanto, os autores mostrambem a sua posição: não podemos resolver esteproblema forjando documentos escritos que objec-tivamente não oferecem rigor, tais como relatos deviagem ou outras fontes etno-históricas.

Ainda a respeito destas incongruências en-tre acção institucional e prática social, destacariafinalmente o artigo de Oliveira e Almeida. Nele,faz-se uma análise etnográfica do quotidiano daFUNAI, que nos permite entrar nos moldes depensamento de uma instituição e entender a acçãodos seus técnicos. Como aí se mostra, os fun-cionários da FUNAI são compelidos a agir se-gundo uma lógica SOS – de “urgência” e “catas-trofismo” –, o que denuncia a real ausência de umplaneamento sério de trabalho no órgão gover-namental mais directamente responsável pelaquestão indígena no Brasil.

Tendo mostrado a relevância actual destapublicação, é necessário que se faça, no entanto,um comentário crítico. Na medida em que estelivro trata de questões tão permeáveis à histo-ricidade da vida social e política, não é possíveldeixar de notar que os artigos nele contidos sãoescritos entre os finais da década de oitenta e oinício da década de noventa e se reportam àanalítica do exercício do poder burocrático nesseperíodo. Assim, esperava-se que em algum mo-mento se fizesse uma actualização de muitas dasquestões tratadas. Entre elas, destaca-se a daimplicação profissional do antropólogo nestesprocessos, na medida em que esta veio a alterar--se substancialmente na década de noventa. Estaalteração é apenas referida por Souza Lima(p. 266) e por Pacheco de Oliveira (numa nota derodapé, p. 293), sendo que noutros lugares dolivro (como por exemplo nas páginas 89 e 117) ela

surge como mera sugestão para o futuro: umamaior colaboração entre a academia brasileira//universidades e os organismos de decisão jurí-dica. Fica-nos portanto a dúvida sobre a posiçãodestes autores face a essa mudança da situação.Não nos é dito, por exemplo, se nestes novosmoldes está finalmente a transformar-se a “im-pensada antropologia aplicada brasileira” (Lima:268) numa “antropologia implicada” (expressãoque adopta de Albert, 1995, cit. p. 268).

Susana de Matos ViegasDepartamento de Antropologia

da Universidade de Coimbra

ANASTASIA KARAKASIDOU

FIELDS OF WHEAT, HILLS OF BLOOD:PASSAGES TO NATIONHOOD IN GREEK

MACEDONIA 1870-1990Chicago e Londres, The Universityof Chicago Press, 1997.

Este livro é a versão revista de uma tese dedoutoramento apresentada na Universidade deColumbia em 1992. Desde então, as polémicas emtorno das ideias que ali cabiam surgiram de várioslados, como a autora dá conta no largo prefácio eainda num posfácio ao volume agora apresentado.Entre as ameaças extremas de nacionalistas gregosmais exaltados, as denúncias patéticas de ma-nipulações por parte de políticos locais em buscade uma honra supostamente perdida, o nasci-mento muito polemizado de um novo estado – a“Antiga República Jugoslava da Macedónia” –,a cobardia dos editores da Cambridge UniversityPress, a solidariedade de académicos importantes,Fields of Wheat, Fields of Blood já se tornou um“caso”. Célebre por aquela vaga de paixões quedespertou, foi nomeadamente capa do TLS em13 de Fevereiro de 1998, onde é tratado em artigolongo por um antropólogo – Roger Just, “TheMaking of Greeks. Locals into Greeks” –, recensãoajustada que agora tomo em conta.

Neste livro, de uma parte, temos uma ex-pressão dos interesses antropológicos muito sa-lientes que a Grécia – ao contrário de Portugal,noto de passagem – suscitou nos circuitos aca-démicos especializados anglo-americanos na se-gunda metade deste século. Esta não é todavia

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uma tese qualquer, um contributo relativamenteanónimo para os estudos “gregos” ou “mediter-rânicos” especializados, se é que esta designaçãomuito vaga ainda resiste. Fields of Wheat, Fields ofBlood é estudo importante, sólido, bem documen-tado, de antropologia histórica. Propondo umacomparação, encontrámos aqui algo do fôlego e daprofundidade diacrónica que caracterizavam otrabalho célebre de Anton Blok, The Mafia of aSicilian Village. Alguns dos argumentos desen-volvidos pela autora são mesmo, por momentos,similares aos de Blok. Contudo, a autora não de-monstra conhecer aquele trabalho, o que se tornacurioso, na medida em que sugere similitudesestruturais para o papel crucial desempenhadopor mediadores locais na configuração de novasentidades políticas e culturais de âmbito nacional,ao longo do século XIX e nos princípios do sé-culo XX.

Para além da articulação política e económicade um estado – e dos bloqueios que estes pro-cessos sofreram –, tópicos que o estudo de Bloktinha favorecido no contexto siciliano, Karaka-sidou firma os seus interesses também num pro-cesso – muito bem sucedido, aliás – de “cons-trução” de cultura nacional. Assim, temos umtrabalho que se situa numa área de interessesainda relativamente recente. Anote-se que a au-tora cita mais frequentemente E. Gellner do queB. Anderson como referência teórica importante.Sugiro, aliás, que a leitura cruzada mais escla-recedora do sentido das polémicas que marcam avida desta monografia pode ser encontrada numtítulo também recente, servido sensivelmentepelas mesmas referências teóricas. Falo do livro deLoring M. Danforth The Macedonian Conflict: EthnicNationalism in a Transnational World – PrincetonUniversity Press, 1995 –, onde o autor expõe avivacidade das disputas de identificação étnica enacional vividas por emigrantes originários daMacedónia na Austrália.

Seria suficientemente original e interessantecomo proposta de trabalho o conjunto de inter-rogações que A. Karakasidou se propunha eluci-dar no começo do seu trabalho – sumariamente,perceber como a partir do ínicio dos anos 20, nasequência da Guerra Greco-Turca, os refugiadosde origem grega oriundos de várias zonas quefazem parte da Turquia actual tinham aprendidoa ser cidadãos gregos, a par dos habitantes ori-ginais das zonas onde reiniciaram as suas vidas,

depois do processo de “limpeza étnica” entãoacordado entre ambos os estados. Estas questõestinham para a autora um fundamento autobio-gráfico significativo, na medida em que o seu pai– turco-falante, cristão-ortodoxo, oriundo da Ca-padócia – fora um dos refugiados (prosfighes)daquela guerra, enquanto a mãe era uma “local”(dopy), oriunda de Tessalónica.

A familiarização com o terreno trouxe algo demuito mais interessante – e definitivamente maispolémico e incómodo para muitos –, na medidaem que a autora foi desvendando um quadromuito mais complexo de possibilidades de iden-tificação recentemente apagadas, onde o seu sensocomum à partida apenas distinguia a existência dedopy – gregos de sempre, por conseguinte – a quese tinham somado desde a década de 20 os pros-fighes deportados da Turquia. O olhar melhorinformado pela investigação de arquivos e me-mórias pessoais deixou distinguida a coexistênciaprévia e recente de pastores e seareiros eslavos,proprietários seareiros e administradores turco--falantes, mercadores gregos e judeus, ciganos,pastores valáquios, arménios, entre outros, todostornados “gregos” num espaço de tempo singu-larmente curto.

O contexto tomado para observação foi umapequena unidade administrativa com três loca-lidades na Macedónia, no Norte da Grécia actual.Ali, com a atenção centrada sobretudo no povoadomais importante, que sediava os arquivos – domunícipio, da escola e da igreja –, a autora do-cumenta as expressões localizadas do processo de“nation building” que se iniciou nos anos de 1870.Nesta vila tiveram expressão muito nítida asdisputas de influência dos novos estados emer-gentes, que tentavam expandir as respectivasáreas de influência – Grécia, Bulgária e até mesmoSérvia.

A vila de Guvenza – depois denominadaAssiros, em 1927, já então integrada no estadogrego – era nos meados do século passado umpróspero pólo de rotas de comércio trans-balcânicas, quando decaía o domínio imperialturco nesta área. Nos últimos anos do séculoXIX competem ali padres, professores e agi-tadores políticos, representando sobretudo osinteresses dos estados adjacentes mais direc-tamente envolvidos na partilha dos despojosdo império otomano naquela área da Macedó-nia: a Bulgária e a Grécia.

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Foram vários os factores que favoreceramgradualmente a predominância local dos agentesnacionalizadores oriundos da Grécia, com os quaisse identificaram os interesses de uma elite local denovos terratenentes e comerciantes, de diversasorigens, ali gradualmente formada. Esta, namedida dos seus interesses, envolveu-se maio-ritariamente no suporte dos interesses políticos deAtenas e apropriou a nova cultura nacional pro-duzida a partir dali.

Com as disputas pela Macedónia de 1902--1908 – com o seu cortejo de guerrilhas e de ter-ror –, e, sobretudo, quando se consolidaram novasfronteiras no fim das Guerras Bâlcanicas de 1912e 1913, Guvenza pôde passar a ser pensada comolocalidade “grega”, habitada por “gregos”. Comoa autora aclara, foi por intermédio de vários meioscomo a acção da escola, do exército, da políticamunicipal – e também por intermédio de repres-sões sempre mais ou menos cruas exercidas pelaselite política local discricionariamente nas épocasde maior repressão e miséria no século XX – quea identidade dos seus habitantes enquanto “gre-gos” pôde tornar-se um lugar comum partilhado,um facto “natural” justificado por enunciadosacrónicos de uma história também ela estrita-mente nacionalizada. Rasuraram-se outras possi-bilidades de identificação que até então tinhamsido possíveis. É esta história de aprendizagensora forçadas ora de bom-grado que a autora trazaté aos nossos dias, acendendo de passagempolémicas muito virulentas.

Este é um texto de escrita tensa, em que aexposição das linhas de argumento mais im-portantes mantém, a maior parte do tempo, umregisto denunciador dos processos de encultu-ração nacionalizadora conduzidos pelas eliteslocais. Não é significativa a simpatia pelos inter-venientes ou pelos seus descendentes, forma deaproximação que também podia ter sido percor-rida. Assim, porque se demonstra pouca fami-liaridade com as perspectivas dos habitantes locaismais activos no processo de “nation building” etambém pouco empenho na descrição da culturahoje partilhada nesta localidade – contrapartidado fascínio sentido pelo cosmopolitismo do sé-culo passado, sucessivamente expresso –, faltam aFields of Wheat alguns dos ingredientes que noshabituámos a prezar nas melhores etnografias.

O destino polémico deste trabalho torna-oinevitavelmente simpático. Na minha opinião, é

importante pela solidez do argumento e pelaspossibilidades comparativas que suscita. É exem-plar também na sugestão de perigos do trabalhoantropológico, para além da malária ou dosdesconfortos das velhas epopeias da antropologiaimperial. Assim, por estas duas razões, pode já sertomado como um trabalho de referência no âm-bito dos estudos de “nation-building”.

António MedeirosDepartamento de Antropologia do ISCTE

Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)

JOSÉ LUIS GARCÍA

PRÁCTICAS PATERNALISTAS:UN ESTUDIO ANTROPOLÓGICO

SOBRE LOS MINEROS ASTURIANOS

Ariel, Barcelona, 1996.

José Luis García es catedrático de AntropologíaSocial en la Universidad Complutense de Madridy coordina un proyecto de investigación sobre seiszonas mineras españolas, cada una de las cualeses estudiada por otros tantos antropólogos espa-ñoles (todos ellos participan en el monográfico“La Minería y sus Contextos Sociales” de la revistaAntropología, 13, Madrid, 1997). Su propio ámbitode trabajo de campo es, desde hace años, Asturias,región minera del norte de España, en donde sehalla situada también la cuenca del valle de Aller,analizada en la obra que comentamos. Dicho vallefue explotado para la extración de carbón por laSociedad Minera Española desde finales del siglopasado hasta 1967. El segundo Marqués de Comil-las, que heredó de su padre esta empresa, muertopoco después de comprarla, ejerció un paterna-lismo integral que ha sido considerado como uncaso único y al que tradicionalmente se ha atri-buido la evolución diferencial de este valle conrelación a las otras cuencas asturianas, reflejada,entre otros aspectos, en la escasa politización desus mineros. Frente a este planteamiento, J. L. Gar-cía sostendrá en esta obra que el paternalismotiene siempre un contexto que lo hace posible ymás allá del cual resulta inviable.

El paternalismo puede ser considerado comotoda una filosofía orientadora de la práctica de lasempresas que, en el contexto del despegue in-dustrial, debieron atraer y preparar como mano de

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obra productiva a una población de procedenciarural. La esencia de esta filosofía radica en pre-sentar las relaciones mercantiles entre patronos yobreros, que persiguen en realidad la maximi-zación del beneficio, como relaciones familiaresorientadas por la reciprocidad.

El interés de este trabajo, como aportaciónantropológica concreta al estudio de este problemageneral, que puede atraer a especialistas y lectoresdiversos, consiste precisamente en que desvelacon rigor y claridad las condiciones que hicieronposible esta práctica empresarial y que, en estecaso concreto, según la tesis que defenderá elautor, radican en las estructuras agrícolas previascon las que se articuló y coexistió, de modopeculiar, la industrialización. Dicha tesis poseeademás un interés más amplio para la teoría socialen general, en lo que se refiere al problema de laconceptualización de las relaciones entre la acciónsocial y la estructura y sus papeles respectivos enla transformación de la sociedad.

La obra es una muestra excelente del pro-ceder propio de la antropología socio-cultural y desu mirada multidimensional y microanalítica. Elautor combina, en este sentido, un profundoconocimiento del presente, en el que aún sonobservables las huellas y consecuencias de estapeculiar industrialización, con un estudio por-menorizado del pasado. Si el primero se fun-damenta en el prolongado trabajo de camporealizado en la zona en diferentes épocas – en elque ha basado otros trabajos anteriores como suAntropología del Territorio (1976) –, el segundo hasido posible por el análisis de la amplia y por-menorizada documentación del archivo de laempresa, verdaderamente sorprendente por lacantidad de observaciones y detalles que recoge,en los que puede observarse innumerables as-pectos de la vida cotidiana y las relaciones que laempresa mantenía con el entorno.

La estructura del trabajo, dividido en dospartes que articulan los diferentes capítulos, reflejala claridad y coherencia del argumento. En laprimera parte, titulada “El Contexto Social delPaternalismo”, se analizan las condiciones delvalle de Aller que, a diferencia de otras cuencasasturianas, propiciaron aquí la continuidad de lasestructuras agrícolas. Se estudian con deteni-miento cuales son esas estructuras, mostrandocómo actuaron como condicionantes de la minería,pero también cómo ella misma supo utilizarlas

como recurso para realizar sus objetivos em-presariales. Así la eficacia de la política del Mar-qués de Comillas se pone en conexión con di-ferentes factores del contexto, sin ir más lejos, conla propia configuración geográfica del valle, cuyaangostura impidió el crecimiento urbano y laformación de núcleos concentrados como los quese desarrollaron en Mieres o Langreo. Desde losprimeros momentos de la industrialización, elminero de Aller será un minero mixto, que man-tiene su explotación agrícola-ganadera viendo lamina como un recurso para el acceso a la pro-piedad de la tierra y ocupando un lugar sub-sidiario y complementario en su economía.

Muy ilustrativos del planteamiento de estaprimera parte son los capítulos dedicados a laconstrucción del espacio minero, en los que elautor nos muestra, una vez más, su profundoconocimiento de las claves interpretativas delespacio como realidad social y cultural. Se nosexplica cómo, por una parte, la empresa se en-contró con dificultades estructurales insalvablesque le impidieron construir, tal y como pretendía,un concejo minero, concebido como un espaciopropio en el que desplegar la planificaciónempresarial y ejercer el poder sin las cortapisas dela legislación municipal y el criterio de autori-dades de los tres ayuntamientos en los que seubicaban las minas. La empresa consiguió, sinembargo, este objetivo a través de acciones que noestaban, en principio directamente orientadashacia él, y que de acuerdo con la perspectivateórica que defiende el autor, deben verse comoresultado de las consecuencias inintencionales ysistémicas del marco estructural en el que tienenlugar dichas acciones. La creación de servicioscomo los economatos, las escuelas, la financiacióny organización de servicios médicos y religiosos(véase la promoción que se lleva a cabo de fes-tividad de Sta. Bárbara, patrona de la minería), sereveló como una forma eficaz de controlar el cotominero y de crear un verdadero espacio industrialsuperpuesto a las divisiones administrativas de lasque dependía y sobre el que se produce tambiénla idenficación de los trabajadores con la empresa,más allá del ámbito estrictamente laboral.

A través de estos servicios, la empresa estápresente y supervisa innumerables aspectos lavida cotidiana y de la interacción social. Estaconexión entre lo cotidiano y lo laboral tiene sumáxima expresión en la creación del poblado

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minero de Bustiello. Como sucede con los otrosservicios, lo que se presentaba como un dondesinteresado de la empresa, ocultaba en realidadla intención de controlar y, en este caso, de atajareficazmente algunos de los problemas endémicosde la minería, como eran las tabernas, lapretendida “indolencia”, o los conflictos entre lostrabajadores y la empresa. El “poblado pater-nalista” concentra al trabajador en un espacioestructurado orientado a dirigir todas sus ac-ciones: la iglesia para las actividades religiosas, elcasino para el ocio bien entendido, el local para lasreuniones de los círculos católicos, la Chavola deSan Martín para la matanza del cerdo que juntocon el pequeño huerto contribuyen a la obtenciónde complementos económicos que frenen lasreivindicaciones salariales. Los diferentes esta-mentos de la empresa se plasman en la utilizaciónde zonas diferentes y en la ubicación de lasviviendas. La estructuración de este espacio es laexpresión misma de la ideología paternalista y desu concepción de la empresa como una granfamilia unida por los mismos intereses.

Pero la eficacia de todos estos servicios noreside sólo en el control directo que permitenejercer sobre la vida de los obreros, sino tambiény de modo fundamental, por su contribucióndecisiva a la creación de “una imagen de laempresa” que determina la relación con el obrero.Este es, en el argumento del autor, uno de lasnotas esenciales de la filosofía empresarial pa-ternalista y de sus prácticas: presentar como donlo que está en realidad movido por un interés. Elvalor expresivo de este juego radica en quepermite reclamar en justa reciprocidad, el apro-piado comportamiento por parte de sus obreros.La reciprocidad y su peculiar lenguaje es el ele-mento clave del sistema de relaciones sociales delmundo campesino en el que viene a insertarse elpaternalismo de la empresa.

El análisis de la importancia de la reci-procidad y de la construcción de la buena imagenempresarial aparece analizado sobre todo en lasegunda parte, que lleva por título “PrácticasPaternalistas”. El núcleo central de éstas prácticasconsiste, según el autor, en conseguir que laeconomía empresarial, basada necesariamenteen el intercambio, se articule con otras formaseconómicas características de sistemas no mer-cantiles, como la reciprocidad y la redistribución,y rentabilizar éstas para la obtención del máximo

beneficio empresarial. Prestaciones sociales crea-das por la empresa con la intención proclamadade asistir al trabajador, como son por ejemplo la“caja de retiros” y la “caja de socorros”, son ana-lizadas por J. L. García como manifestaciones delas formas económicas que representan lareciprocidad y la redistribución respectivamente,a través de las cuales se consiguen objetivosfundamentales para el rendimiento laboral y deeste modo, la ganancia económica. La discre-cionalidad con que operaba la empresa en laconcesión de estas prestaciones, las condicionesque se imponían de buen comportamiento y lavinculación del trabajador y de su familia con laempresa que se logra por medio de ellas, con-vierten a éstas prestaciones en instrumentos paraconseguir obreros preparados para rendir almáximo en el trabajo.

Sin embargo, no siempre es fácil para laempresa conseguir que sus acciones sean inter-pretadas en clave de generosidad. En algunoscasos se trata de comportamientos en los que sehace claramente visible el puro interés empre-sarial. Así el incumplimiento de las medidas paraevitar la enfermedad conocida como “anemia delminero”, es un claro ejemplo de actuaciones en lasque la empresa ve deteriorarse su imagen a fuerzade las contradicciones que se introducen con lasintenciones proclamadas.

La especialización del autor en los ámbitos dela antropología simbólica y cognitiva – para losque la obra es también una valiosa aportación – lepermiten mostrarnos con maestría como se com-plementan las dimensiones cognitivas y sim-bólicas del conocimiento en la construcción de laimagen de la empresa y su aceptación social. Laevocación simbólica y la referencialidad cognitivadeben estudiarse, según este planteamiento, en elcontexto de la realidad social concreta. La pro-ducción de un tipo o otro de discursos, así comola posibilidad de que el actor social se dejeorientar por ellos, ha de verse con relación a losintereses que entren en juego en un momentodeterminado.

En el último capítulo, titulado “Las Cuentasdel Paternalismo”, las tres etapas que pueden serdiferenciadas según la intensidad con la que laSociedad Ullera Española ejerció su paternalismo,se ponen en correspondencia los distintos ava-tares por los que atravesó el comercio interna-cional del carbón entre los años 1875 a 1925 y las

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posibilidades o no de dar salida a la producción.La perfecta demostración del interés mercantil queorienta al paternalismo, basada en datos econó-micos verdaderamente sorprendentes, es casi ungolpe de efecto final que no deberá hacer olvidaral lector el eje central de la obra, el estudio de lascondiciones de posibilidad de esta filosofía em-presarial y los instrumentos de los que se vale.

Nieves HerreroDepartamento de Filosofía e Antropoloxía Social de la

Universidad de Santiago de Compostela

GRAÇA ÍNDIAS CORDEIRO

UM LUGAR NA CIDADE: QUOTIDIANO,MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO

NO BAIRRO DA BICA

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.

Pode comentar-se um livro com outro livro? Oucom uma passagem dele? É o que acontece nestecaso. Por coincidência – mas nunca se saberá bemdecifrar os encadeamentos subjacentes a estascoincidências sociais e pessoais –, no mesmo anoem que se editava o primeiro livro de Graça ÍndiasCordeiro, o consagrado escritor José Cardoso Pirespublicava um testemunho muito pessoal das suasdeambulações por Lisboa, da sua visão da cidadee do seu afecto por ela. Diz José Cardoso Pires:“Mas ninguém poderá conhecer uma cidade senão souber interrogar, interrogando-se a si mes-mo” (Lisboa, Livro de Bordo. Vozes, Olhares, Me-morações, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997,p. 11). A antropóloga Graça Índias Cordeiro soubefazer as duas coisas. É o que se impõe desde logotestemunhar acerca de uma obra importante nopanorama da investigação em ciências sociaisdesenvolvida nos últimos anos em Portugal.A investigação realizada, com efeito, é porme-norizada, cuidadosa, lúcida quanto às dificul-dades encontradas, persistente na recolha deinformação e no respectivo exame, refrescante-mente audaciosa na convocação de todas asdimensões de análise e na mobilização de todas astécnicas de investigação que lhe pareceram per-tinentes em função do tema e do objecto, exemplarna explicitação das dúvidas, permanentementeauto-reflexiva.

Num certo sentido, a última coisa de que umlivro precisa é que se diga o que ele diz. Precisa,

sim, de ser lido, discutido, analisado. Pode in-dicar-se, entretanto, de forma muito sumária, quea investigação antropológica expressa nesta obra,na qual Graça Índias Cordeiro retoma a parteprincipal da sua tese de doutoramento, tomoucomo terreno de pesquisa e horizonte de obser-vação o bairro da Bica, em Lisboa. A autoraenquadra-o na história dos bairros da capital,localiza-lhe a inserção sócio-espacial, analisa emprofundidade os processos da sua construçãosocial enquanto “bairro típico”. Do elenco dequestões que o texto aborda destacam-se as li-gadas à problematização dos limites de iden-tificação do bairro e das suas subdivisões, àinvestigação dos trajectos migrantes e das redessociais da população ali residente, à análise doscontextos e das práticas de sociabilidade locais,culminando, como chave de decifração, nasquestões implicadas no exame das festas e dasmarchas populares que o bairro organiza e que,de maneira privilegiada, o constroem, perante acidade e perante si próprio, como bairro sin-gular.

Mas mais importante do que referir o que olivro diz será, porventura, acrescentar algumaslinhas sobre como o faz, e sobre o que representado ponto de vista das ciências sociais. Alinham-se,de seguida, alguns breves apontamentos a esterespeito.

Como salienta no prefácio o antropólogocatalão Joan Pujadas, é o primeiro trabalho defundo de antropologia urbana, na sua acepçãocontemporânea, publicado em Portugal. O in-vestimento científico da autora na constituição econsolidação desta área entre nós tem, por si só,enorme importância, e o presente trabalho cons-titui o seu marco principal.

Sendo um trabalho minucioso sobre o bairro– ou melhor, sobre um conjunto de aspectos neleobserváveis, como os acima assinalados –, GraçaÍndias Cordeiro tem a preocupação permanenteem abordá-lo enquadrado no tempo e no espaço.Um dos exemplos mais importantes é a atençãoprestada à história das marchas populares deLisboa. Aliás, para além do lugar crucial que temna análise do bairro, o assunto foi desenvolvidopela autora em termos mais gerais na sua tese dedoutoramento, aspecto não incluído na presenteobra, afigurando-se de todo em todo desejávelpoder-se contar, para breve, com uma publicaçãoautónoma acerca dele.

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Mas poderiam referir-se, ainda a propósitodesta preocupação de não confinamento iso-lacionista do objecto de estudo e do terreno deobservação, outros aspectos, como o processo desucessão de gerações, com os seus percursosmigratórios e o estabelecimento dos seus laçossociais, ou como a constituição da cidade, no seutodo, como quadro social, como sistema de redese dinâmicas sociais, bem assim como espaço derepresentação de identidades bairristas. Sublinhe--se que a antropóloga desenvolve em simultâneodois esforços integrados: entra a fundo no íntimodo bairro, das suas relações sociais, das suasformas culturais, do quotidiano das pessoas queali habitam; mas, ao mesmo tempo, ciente de quenão vivem ali numa redoma, procurou rompercom concepções de isolamento que não têm con-trapartida efectiva em (erradamente supostos)isolamentos sociais.

O livro em apreço é uma obra assumida-mente oriunda das ciências sociais. Trata-se, antesde mais, de uma análise científica – expressãosujeita a ambiguidades e más interpretações, e atéultimamente causadora de um certo mal-estarentre alguns dos que, por outro lado, não hesitamem inserir-se no âmbito institucional da suaprática. O trabalho de Graça Índias Cordeiroapresenta, no entanto, sem complexos, os doisatributos principais que, conjugados, melhor per-mitem classificá-lo como tal. Procura conhecer demaneira sistemática, profunda, sujeitando aquiloque diz a um duplo filtro: o da teoria (presente nabibliografia de referência antropológica, e não só)e o da observação (minuciosa, cuidadosa, tãocompleta quanto possível, trabalhando com mé-todos aferidos). Tudo isto com grande profis-sionalismo, num registo onde estão ausentes ascertezas vagas, apriorísticas ou doutrinárias, masem que, pelo contrário, se cultiva a capacidade dediálogo com o que de mais interessante se fez e sefaz nas ciências sociais.

Na procura de desenvolver a análise e com-preender o seu objecto, a autora não se deixaintimidar por fronteiras do saber preestabele-cidas, muitas vezes com fundamentos mais ins-titucionais do que cognitivos. Recorre a contri-butos da sua área científica, a antropologia, mastambém de outras, sobretudo da história e dasociologia. Sem perder especificidade disciplinar,consegue enriquecer a análise com esses con-tributos, trabalhados, aliás, com grande mestria.

Também no plano das técnicas de investigaçãoisso se passa. É assim que, para além da obser-vação etnográfica, no contexto do bairro, pratica,por exemplo, a análise documental de jornais (emespecial para o estudo das marchas populares), oua pesquisa de registos de nascimento e baptismoou, ainda, a análise sociográfica dos recensea-mentos gerais da população (num caso e noutro,para reconstruir as redes sociais constituídas nobairro e as trajectórias sociais que a elas condu-ziram).

Um último traço em que o posicionamentoanalítico e pessoal de Graça Índias Cordeiro bemse exprime – e que faz jus ao título da colecçãoque agora publica o seu trabalho, a colecção “Por-tugal de Perto”, dirigida por Joaquim Pais de Brito– é a forma como se aproxima das pessoas da Bica,como as observa de perto, como dialoga com elase, ainda, como repetidamente lhes dá voz, namelhor tradição das ciências sociais. Tradição essaem que se sabe que o universo social é atra-vessado por múltiplas desigualdades e que não éincompatível com a procura de rigor analítico orespeito profundo pelas pessoas com que secontacta no estudo dos fenómenos sociais e apreocupação de contribuir para repor nalgumamedida, mesmo que limitada e parcial, o balançodas falas e dos silêncios. Contribui-se assim – étambém o que este livro faz – para o diálogoalargado entre pessoas, grupos sociais e formas decultura.

António Firmino da CostaDepartamento de Sociologia do ISCTE

Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (ISCTE)

BENJAMIM PEREIRA

TECNOLOGIA TRADICIONAL DO AZEITE

EM PORTUGAL

Idanha-a-Nova, Centro Cultural Raiano, 1997.

No pequeno texto de abertura da Alfaia AgrícolaPortuguesa, Ernesto Veiga de Oliveira, FernandoGalhano e Benjamim Pereira explicam que nãoabordavam ali “o estudo de certas actividadestambém ligadas à vida agrícola – o vinho, o azeite,o leite, a cortiça, o figo, a amêndoa, etc. – jáporque, sendo de natureza especial [tencionavam]tratá-los isoladamente, já porque, relativamente a

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algumas delas, prevalecem aspectos técnicos datransformação” (1983 [1977]: 7).

O azeite estava assim previsto como objectode um estudo isolado, à semelhança de outrasmonografias entretanto realizadas, e de que sãoexemplos Os Sistemas de Moagem (1965-1983), asConstruções Primitivas (1969), as Actividades Agro--Marítimas (1975) e o Linho (1978), para só referiralgumas das que têm Benjamim Pereira comoco-autor, mas às quais haveria de adicionar-se– até pelo facto de serem de autoria exclusiva deBenjamim Pereira – a série de estudos dedicadosaos têxteis, publicados entre 1960 e 1985, os de-dicados a máscaras, publicados entre 1973 e 1986,e ainda o livro sobre serração das madeiras, em1970. É pois nesta sequência que surge em 1998,apesar de editado desde 1997, esta TecnologiaTradicional do Azeite em Portugal.

A leitura deste que é o mais recente trabalhode Benjamim Pereira obriga desde logo a con-siderar o duplo plano em que a obra se situa.Dado como catálogo de um núcleo museológico,ele ultrapassa essa função circunstancial, consis-tindo principalmente na concretização de umprojecto anterior do Centro de Estudos de Etno-logia (CEE). Mesmo na sua função de catálogo, eleé-o para “um museu que não é museu”, naspalavras do prefácio de Joaquim Pais de Brito, jáque se reporta ao núcleo de Proença-a-Nova doCentro Cultural Raiano, conjunto cujas funções,programa e vocação ultrapassam os objectivoshabitualmente mais restritos de um museu.

Por outro lado, enquanto concretização deum programa de etnografia sistemática de umatecnologia tradicional, este trabalho, seja pelanatureza própria que a história do azeite e daoliveira lhe inculcaram, seja pelas circunstânciasem que os trabalhos de campo foram realizados,desdobra-se sobretudo na região da Beira Baixa,justificando desse modo o contexto editorial quede algum modo também ultrapassa.

O livro abre com um breve enquadramentohistórico da progressão e do declínio da oliveiraem Portugal, passando logo à descrição dos pro-cessos de apanha e entulhamento da azeitona,com particular atenção às implicações sociais ecerimoniais que envolviam, desde as migraçõesinternas que induziam, até à própria vida dessesranchos, pelos olivais, aos momentos festivos dasafra e ao jogo de relacionamentos e interdepen-dências que marcavam com os proprietários e que

envolviam direitos e obrigações como o acesso ao“rabisco”, as refeições cerimoniais ou outras pres-tações ainda em alimentos ou serviços. O livroprossegue pela ordem própria do processo defabrico do azeite, acompanhando os sucessivoselementos técnicos envolvidos: pios, galgas e osseus processos de accionamento, sistema de pren-sagem, processos de decantação e utensílios im-plicados, como seiras e caldeiras.

Segue-se então o “Fabrico de Azeite”, capí-tulo axial de todo o livro. Nele encontramosintimamente entrosada a descrição técnica do fun-cionamento dos mecanismos com a das “técnicasde corpo” que envolvem, remetendo para as di-mensões práticas deste fabrico, mas também paraas suas dimensões económicas, políticas, histó-ricas, ecológicas, comparando diferenças e seme-lhanças que se estendem de Arcos de Valdevez àSerra do Caldeirão.

Por fim, depois de se recuperar de um textoanterior os aspectos centrais do significado socio-lógico e humano do trabalho dos lagares, no-meadamente o dos barrosões no Alentejo, eenquanto se vai referindo os regimes jurídicos dagestão dos lagares, o capítulo aponta (p. 124) aimportância de um factor como o “gosto” naexplicação da persistência de processos arcaicos deextracção, sempre muito censurados e nunca com-pletamente explicáveis pelos constrangimentossociais e jurídicos que se impuseram historica-mente aos lagares.

Adiciona-se ainda um capítulo registando asmemórias de oito pessoas que, em diferentesposições, trabalharam em lagares do concelho deIdanha-a-Nova, concluindo-se com uma descriçãodos dois lagares que integram o Centro CulturalRaiano.

Em epílogo, o texto de Benjamim Pereira re-toma a reflexão e o sentido interpretativo para queao longo de toda a obra a sua etnografia foiapontando. Mais do que a exacta compreensão dastécnicas, neste livro temos a experiência vividadelas, questionada tanto quanto a implicaçãohumana e a sensibilidade poética permitem explo-rar numa etnografia. Os objectos surgem comrostos e nomes agarrados a eles, vivem em me-mórias pessoais e não apenas no anonimato dastaxionomias, e interpelam não só as diversidadesdo território por onde se distribuem, mas tambémo frágil universo dos valores tácitos em que asvidas humanas fazem socialmente sentido. Nele é

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possível aperceber a longa afinação de um métodode trabalho e de uma maneira de construir osobjectos científicos e o seu enquadramento his-tórico e sócio-económico, sem prejuízo de umolhar próprio, a um tempo rigoroso e poético,atento à profusa variedade dos detalhes, cuidandoda autonomia do registo fotográfico e desenhado,e apurando uma sensibilidade antropológica queo leva a visar sempre o sentido humano dasexperiências materializadas nos objectos, nas suasmarcas físicas e nas memórias que desfiam.

Esta dimensão, que atravessa todo o texto,dá um brilho muito particular a este livro echama a atenção para as notáveis fotografias edesenhos que o integram. A tradicional riquezagráfica dos trabalhos da equipa do CEE habituoua tomar os desenhos de Fernando Galhano e asfotografias de Benjamim Pereira como registos deexactidão e sentido próprios em relação aostextos, de que não são simples ilustração apenas.Aqui, a notável colecção fotográfica e de de-senhos, agora reunindo outros autores, comoLuís Pavão na fotografia, Manuela Costa e PauloLongo no desenho, contribui muito para elucidaros sistemas mecânicos, e sobretudo para traduziressa experiência humana do ambiente denso doslagares.

O livro está construído em diálogo perma-nente entre ambos os registos – o da escrita e o daimagem –, e só é pena faltar-lhe mapas e umíndice remissivo que ajude a avaliar a dimensãocomparativa e territorial de um trabalho que re-mete para outros levantamentos cartografados epara um longo processo de recolhas e observações.

Todavia, se este livro é situável numa se-quência, a sua ocasião não deve ser tomada nemcomo um atraso, nem como um anacronismo. Astécnicas de prensagem (seja para vinho, azeite oucera), como notou Charles Parain (Outils, Ethnieset Developpement Historique, 1979 [1962]: 265), nãomereceram tantas atenções dos investigadorescomo o arado ou a charrua, apesar de – ou porcausa de – terem a sua história tão intimamenteligada a contextos económicos e sociais complexos(ibidem: 281).

Particularmente no caso das prensas deazeite, as dificuldades de sistematização geográ-fica, histórica e agronómica agravam-se. Podendoencontrar-se-lhe referências recuáveis a Fenícios eCartaginenses (p. 13), o azeite marcou a paisagemportuguesa de forma geral no território só a partir

do séc. XVIII, altura em que transpõe expres-sivamente limites ecológicos e sócio-económicosque lhe confinavam a cultura ao Centro e a partesdo Sul. E já hoje relança-se numa imagem deproduto de excelências e de raridades.

O azeite releva de escalas económicas muitodíspares, indo do fabrico manual doméstico, talcomo é atestado para a serra algarvia, até aoafrontamento entre sectores da indústria agro-alimentar internacional com reflexos directos,imediatos quase, na vida de cada produtor in-dividual.

Foi, até há poucas décadas, um recursoindispensável à manutenção da vida doméstica,fosse como alimento, conservante, combustível,remédio, cosmético, quase moeda, símbolo chavede representações do sagrado, sem contar com asutilidades dos seus subprodutos para saboaria,alimentação de gado ou adubo. Ao mesmo tempo,foi questão de Estado, alvo de estratégias dealcance fiscal, factor de atrito entre poderes sociaise grande mobilizador de migrações internas.

Foi também motivo de desentendimentos eperplexidade. A sua produção, supondo umaaplicada sequência de soluções técnicas racio-nalmente exigentes, surpreendia sempre peloabsurdo da sua realidade: não haverá produçãochave de sociedade rural que tenha sido tãoespantosamente repreendida nos seus modos e tãopersistentemente relutante à sua respectiva cor-recção (cf. Maria Carlos Radich, Agronomia noPortugal Oitocentista, 1996).

A duração do arcaísmo técnico desencadeiaquestões clássicas. Que cálculos sustentaram tantotempo a manutenção de tantos lagares? A lógicada pequena agricultura familiar, da pulverizaçãodo minifúndio, da pressão sobre os rendimentosmarginais das casas, não pode deixar de explicargenericamente a correspondência entre o facto de“...40% do património olivícola se encontrar sob aforma de oliveiras dispersas” (Fernando O. Bap-tista, A Política Agrária do Estado Novo, 1993: 256)e de ser em regiões mais defendidas na exploraçãofamiliar que se encontram as referências etno-gráficas mais ricas. É esta multidão de oliveiras,a que se não dedicam mais do que cuidadosmínimos, custando esforços redobrados na apa-nha, dando rendimentos incertos e baixos, quealimentou tantos lagares tradicionais e que pro-duziu o pequeno azeite para a casa, o qual, semvagar para as demoras burocráticas dos benefícios

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estatais ou cooperativos, era logo vendido aopreço do primeiro comprador à porta.

Mas não bastará a clássica conexão entreforças produtivas e relações de produção paraesgotar a compreensão do universo de existênciadestes lagares, e menos ainda supostos apegos àtradição. Algo como os “perfis étnicos especí-ficos”, de que fala Parain, tornam-se indispen-sáveis à compreensão da complexidade de factosque a etnografia regista (Antoine Casanova, inParain, Outils, Ethnies et Developpement Historique,1979: 14). As memórias pessoais que BenjamimPereira relata (pp. 128-134) permitem que o leitortenha acesso às existências humanas onde osobjectos faziam sentido. Estas, apesar do papelfundamental que desempenhavam na construçãoetnográfica, raramente eram reveladas nos traba-lhos anteriores do CEE, fosse por um escrúpulo deexactidão que pudessem embaraçar, fosse comopreço de um distanciamento face ao ruralismopiegas ou místico da literatura naturalista. Nestetrabalho, o testemunho poético vem ajudar aconcretizar os tais “perfis étnicos específicos” deParain.

Não foi assim a “inércia tecnológica ou au-sência de sentido quantificativo da sociedaderural” que assegurou o “predomínio [das técnicastradicionais de prensagem] sobre as mecânicas atéaos anos 50”, mas sim um “conceito de vida e deprodutividade que tinha as suas lógicas próprias”(p. 156).

Ora, precisamente, o livro de Benjamim Pe-reira entrega-nos mais do que a síntese dosenquadramentos históricos, sociais e económicos,e mais do que a rigorosa descrição dos sistemasmecânicos dos lagares. Entrega-nos uma com-preensão de múltiplos aspectos desse “conceito devida e de produtividade” que se “apaga discretae inexoravelmente” (p. 153), deixando claramenteapontado o objecto humano que é chave dacompreensão do absurdo residual que parecesobrar sempre, uma vez feita a inspecção racional– seja do sistema produtivo que converge nos

lagares toscos e arcaicos, seja das obstinadas pre-ferências de gosto no azeite, seja da persistênciade efeitos que produz o ambiente, a um temporepulsivo e cativante, dos velhos lagares que de-saparecem. Esse objecto humano que se revela natão castigada abjecção dos lagares, como “ver-dadeiros antros, infectos e imundos” (p. 153) nasua escuridão; nas exalações escaldantes dos cal-deiros e enceiramentos; na promiscuidade queavizinha os animais de tracção ao extracto su-perlativo que era o azeite; nos corpos suados eesforçados; na untuosidade e no ranço imiscuídosem tudo. E também nas expectativas suspensassobre a funda da azeitona, a competência domestre, as suspeitas e as solidariedades que fa-ziam desconfiar dos “infernos”, para onde seescoaria talvez mais do que a água ruça, ao mes-mo tempo que se procurava na partilha comensalconquistar equilíbrios onde as posições estraté-gicas estavam tão diferenciadas. Ainda aquele quese revela nas funções que as aparentes disfunçõessociais cumpriam em meios restritos onde todospermaneciam à vista de todos e a fome, fosse aprópria ou a alheia, era sempre um perigo. Assim,o rabisco da azeitona, a redecantação das águasruças, a refunda do bagaço, iam deixando folgaspara algum acesso de todos ao condimento, aomeio de pagamento de uma renda, à própria luzde uma candeia em casa.

Em cifra de todo este universo a que o livrode Benjamim Pereira nos dá acesso, fica a im-precisável qualidade do sabor de cada azeite, queopunha às preferências de norma pela “finura” ebaixa acidez as preferências tradicionais por umazeite saboroso, mesmo que grosso, independen-temente do seu grau, tal como saía destes lagares.Aquele que, provado com a ponta do dedo, fe-chava no seu paladar o círculo de identidadesonde oliveiras, gentes ou lagares encontravammundo, sentido e nome próprio.

Pedro PristaDepartamento de Antropologia do ISCTE

Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)