você tem meia hora

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Na noite de réveillon, Bia, a aeromoça sensível e romântica, é abandonada por Arthur, o namorado de três anos com quem já morava há dois e pretendia se casar em um. Aos vinte e nove anos essa é a maior tragédia que pode acontecer na vida de uma mulher, pois à beira dos trinta o que era para dar certo já tinha que ter dado, o que deu errado, não dá mais tempo de consertar e o que se espera que aconteça, talvez não vá mais acontecer, ou seja se não se casar até os trinta, Bia estará condenada ao calabouço da solteirice, brigando pelo buquê nas festas de casamento e conhecendo homens que mentem a idade, o estado civil e a foto nos sites de relacionamento. Mariana acha que a melhor amiga está exagerando e só precisa de uma mudança radical, pois até um pé na bunda te empurra para frente.

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P R Ó L O G O

Quando o avião aterrissou, o cansaço me vencia e a ansie-dade jorrava litros de adrenalina na minha corrente sanguínea. Fim de ano era sempre a mesma coisa: mais voos, aeroportos lotados, promoção das companhias aéreas, passageiros surtando e, consequentemente, muito mais trabalho. Eu vinha no ritmo frenético de uma rota de voos internacionais, nos quais pernoi-tara em Caracas, Bogotá e La Paz. Como de praxe, dormia uma média de três horas por noite e nessas raríssimas oportunidades acordava sobressaltada com pesadelos que envolviam uma forte turbulência e um trolley desgovernado pelo corredor, espalhando o pânico entre os passageiros.

Embora exausta e sob pressão, eu estava consciente o sufi-ciente para saber que estava surtando. Começava a considerar com simpatia a hipótese de virar anoréxica a encarar mais um pãozinho com manteiga. Tudo o que eu queria era chegar em casa e ver Arthur e, convenhamos, depois de um ritmo de traba-lho intenso, uma noite de réveillon fabulosa era o mínimo que eu merecia, não?

Veja bem, eu não estava reclamando por estar trabalhando em pleno 31 de dezembro. Muito menos da minha profissão que, aliás, eu adorava.

Desde os treze anos eu queria ser comissária de voo – ou ae-romoça, como se dizia à época –, mas naquele tempo eu acha-va que comissárias de voo eram apenas mulheres lindíssimas e podres de chique, que falavam várias línguas e conheciam o mundo inteiro. Eu não sabia que, na verdade, conhecia-se apenas aeroportos do mundo inteiro, e que no pacote ia de brinde uma insônia crônica e uma grande, enorme, imensa, gigantesca difi-culdade de se relacionar com homens que não fossem também comissários ou pilotos.

Porém, devo confessar que minha gana pela aviação estava muito relacionada à independência com que a carreira me ace-nava. É que eu passei a adolescência toda desejando ser adulta e

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aos dezessete anos, quando finalmente terminei o segundo grau. Tudo o que eu mais queria era ser dona do meu nariz. Tinha tanta vontade de ser dona do meu próprio nariz que recusava veementemente a hipótese de passar cinco anos enterrada numa faculdade para só então arranjar um emprego e só então virar adulta e só então.

Deus me livre!Até o dia que descobri que nem toda moça podia ser aeromo-

ça. Foi Mariana quem me alertou. Para mim não foi surpresa alguma. — É claro que não! — respondi do alto da sabedoria adoles-

cente. — Tem que falar inglês fluentemente também! A língua inglesa jamais seria uma pedra no meu caminho.

Inclusive, eu já tinha pensado nesse detalhe e as contas fechavam perfeitamente. Daria tempo suficiente para terminar o cursinho de inglês antes de começar a voar.

— Não, Bia, não basta falar inglês não. — Mariana explicou-me. — Para ser aeromoça tem que ser alta.

Foi um balde de água fria nos meus 1,53m de altura. Aos treze anos nada é cem por cento garantido em relação ao

corpo que teremos aos vinte, mas o fato é que eu era a mais bai-xinha da classe. Ninguém poderia afirmar se eu seria gordinha, magrinha, peituda ou bunduda, mas uma coisa era certa: eu não ia crescer muito mais que aquilo. Não ia mesmo.

Fiquei paranoica. Aos treze anos já era completamente escrava dos padrões de

aparência. Comecei a fazer sessões de alongamento, usar ombrei-ras, saltos e listras verticais. Iniciei um ritual diário: todas as ma-nhãs ia até a porta do quarto me medir, fazendo um risquinho na madeira. Havia todo um sistema de acompanhamento mensal, com estimativas anuais que visavam calcular minha altura aos dezoito, aos dezenove e aos vinte anos, quando então imaginava começar a voar.

Com muita emoção me vi chegar aos 1,56, 1,57, 1,58 e então estacionar nos 1,59 aos dezoito. Crescer, fisicamente falando, era a meta da minha vida. Mas eu precisava pelo menos atingir os 1,63m para poder arredondar e preencher 1,65m nos formulários.

Porém, depois dos dezoito as coisas ficaram mais lentas e nem mesmo as seções de alongamento funcionavam.

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Só me restou apelar para Deus. Então, antes de dormir eu rezava: “Meu querido Deus, conceda-me milagrosamente mais quatro centímetros! Tenha misericórdia da minha altura e faça com que até o dia da prova da ANAC eu esteja medindo 1,63m de altura. Amém!”

A verdade nua e crua, entretanto, veio numa tarde de domin-go assistindo ao programa do Gugu. Um ortopedista, convidado para falar sobre a nova linha dos tênis Kichute, afirmou que a fase de crescimento – lamentavelmente – encerrava-se aos dezoito.

Foi a maior decepção da minha adolescência. Muito mais traumatizante do que ter perdido o show do Guns N’ Roses no Rock in Rio II, em 91.

Chorei copiosamente por uma semana até que, enfim, aceitei os fatos.

Não havia mais nada a fazer a não ser recorrer à cartada final: o salto alto.

Quando digo “salto alto” não estou aqui me referindo ao salto tradicional. Já estava tão na cara que eu era baixinha, que usar sapatos de salto só ajudariam a reforçar a ideia de que eu tenta-va parecer alta. Eu não queria assumir meu tamanho. Eu queria realmente ser alta. Ou pelo menos enganar bem. Portanto, pelo termo “salto alto” refiro-me na verdade a um sistema muito sofis-ticado, totalmente desenvolvido por mim, o qual me fazia pare-cer quatro centímetros maior, mesmo usando um All Star branco cano curto.

Eu explico:Basicamente, o sistema consistia em amassar uma pequena

pilha de guardanapos até formar uma maçaroca de uns três ou quatro dedos e então acoplá-la dentro do tênis, debaixo do calca-nhar. Bem, não há como negar que esse método era extremamen-te dolorido. Eu desconfiava, inclusive, que no futuro teria sérias complicações na coluna, mas a sensação de ter 1,63m de altura compensava o sacrifício. De longe, qualquer um podia jurar que aquela era realmente a minha altura e eu ainda parecia – apenas parecia! – super confortável.

Assim, resolvido o impasse com as minhas medidas, fui atrás do sonho de ser comissária de voo. Enquanto os meus amigos en-traram para o cursinho, eu enfiava a cara nas apostilas de aviação. Enquanto todos prestavam vestibular, eu fazia a prova da ANAC.

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E quando todos, finalmente, passaram para alguma faculdade eu recebia o meu primeiro salário que, mesmo não sendo lá gran-des coisas, pagava o aluguel do meu conjugado no Flamengo e as noitadas de porre no Arco do Teles. Exatamente a vida adulta que tanto sonhei!

Sim, porque por mais incrível que pareça, as aeromoças tam-bém tomam porres.

Aliás, elas realmente existem fora dos aviões! Muito embora essa minha história comece dentro de um.

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Capítulo 1Entre por esta porta agoraE diga que me adora, Você tem meia hora Para mudar a minha vida…

Todos os passageiros já haviam desembarcado e eu cantaro-lava na galley, preparando-me para deixar a aeronave. Adorava véspera de ano novo! Me identificava muito com o clima de re-novação que antecedia a virada. Além disso, eu tinha uma razão especial para estar empolgada: as férias! Há dois anos eu sequer pronunciava esta palavra e agora finalmente teria vinte dias para não fazer nada. Vinte dias sem despertador, aviões, turbulências, malas, hotéis e uniformes só para mim e Arthur.

Desde que começamos o namoro, três anos antes, tentáva-mos tirar férias na mesma época, mas na véspera sempre entrava um caso milionário no escritório dele ou rolava uma mudança na minha rota, de modo que nunca conseguíamos um tempo só para gente. Dessa vez, então, marcamos as férias com um ano de antecedência e juramos não mudar os planos nem se ganhásse-mos na loteria.

Havíamos resolvido ficar em casa mesmo — a última coisa que aeromoças querem fazer nas férias é viajar. De avião então, nem morta! — sem a loucura da rotina. Só nos dois.

— Eu gosto dessa música. — Mariana interrompeu meus pensamentos, enquanto eu terminava de preencher o relatório de checagem da aeronave.

Não me lembro se sorri ou se só balancei a cabeça, mas fiz um gesto assim bem automático. Estava louca para dar o fora dali e me jogar na noite de réveillon com Arthur.

A última vez que falara com ele fora dois dias antes no aero-porto de Bogotá. Ele não quis me contar o que havia planejado para nossa noite de ano novo e eu desconfiei que estivesse prepa-rando uma surpresa ou algo assim.

— Escreve para mim? — lançou Mariana com uma calma, to-talmente fora de contexto para um final de expediente em pleno trinta e um de dezembro.

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— Tá bom. — respondi apressada, assinando o relatório e pe-gando minha Balenciaga, sabiamente adquirida numa liquidação na Recoleta, durante a última rota em Buenos Aires — eu te man-do por e-mail, ok?

— Não, não... escreve agora! — insistiu empolgada, bloque-ando a minha passagem.

Mariana tinha cada uma. Embora fôssemos melhores amigas, as vezes sua falta de noção me intrigava.

— Fica sendo o meu presente de ano novo! — ela tentou me convencer.

— Ninguém dá presente no ano novo, Mariana. — tirei o bra-ço dela do meio do caminho e segui pelo corredor — E mesmo que dessem, sua cota de presentes estourou no Natal. Ou você acha que foi fácil conseguir um perfume que a Chanel só vai lan-çar ano que vem?

— Eu te dei outras opções. — ela defendeu-se, vindo na mi-nha cola — O que eu posso fazer se você foi no mais difícil?

Todos os Natais, eu e Mariana tínhamos um ritual que com o passar do tempo, carinhosamente, apelidamos de AAA. Tradu-zindo: Agrado de Amiga à Amiga. Basicamente, consistia numa listinha de sugestões de presentes que uma amiga fazia chegar ao conhecimento da outra para que esta então escolhesse um item e presenteasse. Vinte anos antes, quando a AAA foi implantada entre nós, as opções de agrado eram apenas lembrancinhas sim-ples, tão simples quanto o valor de nossas mesadas: pacotinho de figurinhas dos Menudos, saquinho de dip’nlik sabor uva, papéis de carta, fita cassete gravada com as músicas preferidas — muito mal gravadas, por sinal. Com o tempo, naturalmente, as listas evoluíram e se sofisticaram: carteira Prada de couro marrom com fecho dourado fosco; loção hidratante Lancôme com filtro solar fator 30 para área dos olhos; pó facial MAC n.4 (tem no free shop de São Paulo!!!) – muitas vezes, a sugestão vinha acompanha-da de indicações para facilitar. O mais interessante, entretanto, era a forma como as listinhas eram trocadas entre nós: enfiadas na mala da outra, pregadas no armário, colocadas no talão de cheque... A única regra é que jamais fossem entregues em mãos, porque isto sim seria uma tremenda falta de educação.

— Vai, Bia, escreve logo essa música para mim! Por favor! Mariana não me deixaria em paz assim tão fácil, pressenti.

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— Não dá, não tenho caneta. — respondi, já com a bolsa no ombro e um pé fora do avião.

Então, rápida como uma flecha, ela puxou uma caneta do bol-so. Antes que eu pensasse em protestar a falta do papel, ela olhou para o lado, passou a mão no primeiro guardanapo amassado que viu e me entregou, com um sorriso vitorioso. Era o desfecho mais previsível porque eu sempre acabava fazendo as vontades dela.

— Só rindo, Mariana. — achei graça, porém um pouco con-trariada. — Só rindo mesmo!

Pouquíssimos momentos da minha vida não estavam direta ou indiretamente ligados à Mariana. Eu diria que nossas vidas eram vinculadas como se fôssemos realmente irmãs.

Crescemos juntas na Tijuca, estudamos no Colégio Marista e fizemos absolutamente tudo que toda menina da época fez. Nos vestimos como a Madonna, tivemos mochilas – e agendas – em-borrachadas da Company, sonhamos nos casar com um dos New Kids on The Block (eu com o Joe, ela com o Jordan), achávamos o máximo frequentar boates com banho de espuma e aos quinze anos e, como toda classe média que se preze, fomos enviadas à Disney numa excursão da Stella Barros com mais quarenta ado-lescentes feias e cheias de espinha (essa foi a primeira vez que eu pisei num avião).

Durante nossa adolescência, se alguém quisesse convidar Mariana para uma festa, era subentendido que eu ia a reboque e vice-versa. Nossas vidas eram tão misturadas que perdemos a virgindade na mesma noite. Obviamente, que com meninos diferentes.

Enfim, não tivemos a opção de não sermos melhores amigas. Ou seríamos ou seríamos. E fomos. Numa época em que a barra pesou lá em casa, passei um bom tempo na casa de Mariana. Pos-so dizer até que tia Clarissa, a mãe de Mariana, foi também um pouco minha mãe.

Então aconteceu que aos vinte e um anos, quando eu me pre-parava para fazer meu primeiro voo, Mariana tentava, pela se-gunda vez, o vestibular para medicina da UFRJ, o de jornalismo da UERJ e o de arquitetura da UFF. Acabou passando para moda na Veiga de Almeida. Mas cursou apenas dois períodos. Muita gente esquisita, foi o que alegou na época. Rolou ainda uma ideia sobre um concurso público para o Tribunal de Contas, mas o

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plano acabou não vingando quando ela descobriu que teria de estudar contabilidade no cursinho preparatório.

Assim, numa bela noite de bebedeira na Mariozin, entre mar-gueritas e bloody maries, Mariana muito bêbada virou para mim e disparou:

— Eu zá tô cum vintizinco e num tenho nada nezza vida. Pu-rexempro, nem profissaum eu tenho! Minha mãe é maisi orgulhosa di vozê duquigimim, zabia? Comequié ezza porra di zer zaeromo-za mesmo, hein?

E a partir daquele dia Mariana empenhou-se com tanto afin-co que tornou-se uma de nós. Fez o curso, passou nas provas e um ano e meio depois já estava contratada. Coincidentemente, na mesma empresa que eu — foi coincidência mesmo, juro!

— Tá vendo só? Nem doeu! — disse Mariana, lendo a letra da música que eu acabara de escrever.

— Fui! — falei, desvencilhando-me dela.— Feliz ano novo, amiga! — Mariana me puxou pela mão.— Feliz ano novo! — nos abraçamos.— Amo você, viu?— Eu também.

Capítulo 2Peguei minha bagagem na esteira e cruzei o aeroporto como

uma bailarina em grand jetés. Mal podia esperar para chegar em casa e, enfim, sentir que realmente estava de férias.

Sem o menor pudor, lancei um olhar fulminante para a fa-mília de japoneses que ameaçou fazer sinal para o primeiro táxi da fila.

— Botafogo, por favor. — enfiei minha bagagem na mala do carro e me atirei no banco de trás.

— Orla ou Aterro? — indagou o motorista, jogando a guimba do cigarro pela janela.

— O que for mais rápido.Era mesmo um privilégio morar numa cidade como o Rio

de Janeiro. Especialmente no ano novo, quando uma atmosfera de recomeço inundava o coração das pessoas, como um placar zerando em nossas vidas. Tão bom ver as pessoas de branco, os casais de mãos dadas, as crianças correndo pela praia. Só as mu-

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lheres carregando flores que me entristecia um pouco, porque eu sabia que à meia noite todas faziam o mesmo pedido: homens. Posso ainda apostar que todas – absolutamente todas – estavam usando calcinhas vermelhas na esperança de uma paixão arre-batadora para o novo ano. Eu ficava imaginando a coitada da Ie-manjá, na manhã do dia primeiro, contabilizando centenas de barquinhas e flores, estressada com a responsabilidade de resol-ver a situação das encalhadas que Santo Antônio não deu conta na festa junina.

De repente, essa constatação desencadeou em mim uma sen-sação de alegria tão confortável que nem mesmo o engarrafa-mento de quarenta minutos da Voluntários da Pátria me tirou a paciência.

Eu tinha Arthur. Era feliz e sabia.O céu já começava a escurecer, mas o dia continuava quente

quando o táxi finalmente estacionou na calçada do meu prédio. Saí do carro e Firmino veio correndo me ajudar a tirar a bagagem do porta-malas.

— Só viajando, hein, Dona Bia?! — disse com admiração. — Eita, vidão!

Coitado! Se ele soubesse...Na sequência, Firmino me deu a cobertura completa dos úl-

timos acontecimentos do Solar Botafogo. Eu desconfiava que se um dia perdesse o emprego, Firmino daria um ótimo paparazzo porque a velocidade com que tomava conhecimento de fatos ín-timos da vida alheia era de dar inveja a qualquer estudante de jornalismo.

Assim, do caminho entre a portaria e o elevador, fui informa-da de que o Dr. Jarbas do 402 teve o nome envolvido na CPI dos precatórios, que se mudara para o prédio uma família de ciganos ricos, mas por via das dúvidas era melhor não descuidar, que o 703 estava com um vazamento terrível e, por último, que Arthur havia saído com o “rapaz do cabelo gozado”. Na certa, Diogo que realmente abusava das propriedades modeladoras do gel.

— Obrigada pela ajuda, Firmino. — agradeci, botando a mala no elevador — Se não nos encontrarmos novamente, feliz ano novo!

Abri a porta de casa e constatei que Firmino estava certo. Ar-thur de fato havia saído. No entanto, não achei isso ruim, pois era

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muito mais agradável me arrumar tranquilamente, sem alguém gritando que eu só tinha cinco minutos. Peguei um copo de água na geladeira, chequei os recados na secretária eletrônica e fui para o chuveiro concentrando-me nas promessas de ano novo. Quem sabe aquele não seria o ano do meu casamento? Por “casa-mento” entenda-se a festa e o vestido, porque eu já me sentia uma mulher casada. Podia ser bobagem minha, mas eu era esse tipo de mulher romântica e tola que gosta de celebrações.

Enquanto fazia mil planos e me besuntava em óleos aromáti-cos, ouvi o barulho da chave na porta. Era ele! Meu coração deu duas cambalhotas.

Desliguei o chuveiro correndo, enrolei o cabelo na toalha, vesti o roupão e na pressa quase me esborrachei no piso do banheiro.

Apontei no corredor e ali, encostado na mesa de jantar, esta-va Arthur com as mãos no bolso da calça jeans e algo nas costas que só tempos depois, ao reconstituir a cena pela milionésima vez, percebi que vinha a ser uma mochila. Tinha no rosto uma expressão diferente, algo que não consegui identificar de pronto. Fiz menção de me aproximar, mas parei no meio do caminho. Por alguma razão não consegui dizer nada e a tensão que ime-diatamente impregnou o ambiente denunciou algo de estranho no ar.

O meu silêncio foi exatamente a deixa que ele precisava para começar o monólogo.

— Estou indo embora. — disse Arthur à queima roupa.A informação me atingiu como um soco do Mike Tyson. Tão

atônita, não consegui sequer coordenar os pensamentos com ha-bilidade suficiente para montar uma frase. Ele prosseguiu:

— Caramba, Bia! Estou péssimo! — desabafou, parecendo arrasado — Juro que não queria estar aqui te falando isso, mas é que... — ele desviou o olhar, baixou a cabeça, tomou coragem e continuou — mas é que não dá mais para continuar desse jeito.

Que jeito?, perguntei a mim mesma. Até onde eu sabia não havia absolutamente nada de errado com o jeito que vivíamos e se houvesse algo tão anormal assim seria impossível eu não ter percebido antes, não?

— Talvez você não consiga entender agora, mas vai ser me-lhor para nós dois. — disse Arthur com ar sombrio — Você pode

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ficar aqui pelo tempo que quiser. Depois a gente vê o que faz com esse apartamento. Vende, aluga, sei lá...

Do que ele estava falando? Fazer o quê com que apartamen-to?, me questionei perplexa, se realmente era trinta e um de de-zembro ou primeiro de abril porque pela lei natural das coisas, deveríamos estar mortos de saudade um do outro, nos beijando desesperadamente, para então no instante seguinte decidirmos, entre milhões de opções, que festa teria a honra da presença de um casal tão bacana quanto nós.

Diferente disso, Arthur estava ali com uma conversa torta so-bre me deixar e vender o apartamento.

— Mas o que foi que aconteceu? — se algo muito grave não estivesse por trás daquela loucura, eu ia acordar a qualquer mo-mento e perceber que tudo não passara de um sonho. Um pesa-delo, na verdade.

Arthur, entretanto, não disse nada. Deu três passos em di-reção à porta, me fazendo entender que o silêncio era a minha resposta. Ou eu fazia algo naquele instante ou o perderia para sempre.

Apelei e não deu para esconder o desespero. Atirei-me sobre ele e segurei seu rosto com força, suplicando por um olhar, uma palavra ou as duas coisas, de preferência. Eu tinha esperança de que isso prolongasse sua permanência junto a mim.

Ele, porém, manteve-se rígido, olhando para o teto, para o pé, para a televisão, para o teto de novo, para todos os cantos. Menos para os meus olhos, como se não pudesse me ver.

— Arthur, pelo amor de Deus, fala para mim o que houve! — implorei.

Mas ele encolheu os ombros e não reagiu. — Não foi nada. — disse, esquivando-se — Simplesmente

percebi que não era mais feliz. — ele buscou um pouco de ar para concluir — com você.

Outro soco do Mike Tyson. Caí na lona e o juiz começou a contagem. No quatro levantei cambaleante.

— Então você não me ama mais? — fiquei surpresa com a minha coragem ao fazer a pergunta.

— Amo, mas de outro jeito. Nocaute.A força da sinceridade dele era tão desconcertante, quase hu-

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milhante. O máximo que consegui fazer foi ficar inerte.Embora aquilo fosse tecnicamente um diálogo, eu não tinha

muita compreensão do que falávamos. De tão absurdo, era im-possível. Sei lá porque, eu estava convencida de que terminada a conversa, ele iria tomar banho, eu botaria o vestido branco e nós realmente seguiríamos para alguma festa onde tomaríamos champanhe até o dia clarear, distribuindo votos de feliz ano novo a todos.

No entanto, diferente disso, Arthur se desvencilhou de mim, virou de costas e caminhou para a porta.

— Você vai me ligar? — A gente vai continuar amigos, Bia — “Amigos”??? Foi isso

mesmo o que eu ouvi? Ele disse isso? — Eu vou manter contato. — disse já de saída.

O tempo todo eu sabia que o perderia se ele atravessasse a porta.

E ele atravessou.Continuei parada no meio da sala, como se fosse uma árvore

presa ao chão, sem saber o que se faz quando o marido diz que está indo embora, mas que tudo bem, seremos bons amigos por-que me ama, mas de ountro jeito.

Finalmente alguma coisa aconteceu no meu cérebro. Uma suspeita! Fui para o nosso quarto e abri o armário dele. Suspeita confirmada. Estava vazio. Arthur já havia levado todas as coisas dias antes, enquanto eu trabalhava.

Estávamos separados há dias e eu nem sabia. Corri até a varanda ainda a tempo de vê-lo sair do prédio e

esta foi a pior parte.

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