vladimir de oliva mota acerca da noção de filosofia em voltaire

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Vladimir de Oliva Mota

    Acerca da noo de filosofia em Voltaire

    So Paulo 2012

  • VLADIMIR DE OLIVA MOTA

    Acerca da noo de filosofia em Voltaire

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia sob a orientao da Prof. Dr. Maria das Graas de Souza.

    So Paulo

    2012

  • Christine

  • Em presena dessa sociedade frvola e lgubre,

    Voltaire, sozinho, tendo sob seus olhos todos os

    poderes reunidos: a corte, a nobreza, as finanas; a

    fora inconsciente: a multido cega; a pavorosa

    magistratura: to pesada aos indivduos, to dcil ao

    chefe, esmagando e bajulando, de joelhos sobre o

    povo diante do rei; o clero sinistramente misturado

    de hipocrisia e fanatismo; Voltaire, sozinho, eu o

    repito, declara guerra a essa coalizo de todas as

    iniquidades sociais, a esse mundo enorme e terrvel,

    e aceita a batalha. Qual sua arma? Aquela que

    possui a leveza do vento e a fora do raio: uma pena.

    Victor Hugo

  • Agradecimentos

    Ao meu pai e a toda minha famlia pelo constante amparo.

    Professora Maria das Graas, pelos anos de atenciosa e rigorosa orientao, pelo

    acolhimento e pela amizade; a quem minha admirao e meu respeito misturam-se ao carinho

    que lhe nutro.

    Ao Professor Stphane Pujol, pela amizade, pela ateno a mim dispensada em Paris e

    pelos longos dilogos que muito me ensinaram sobre Voltaire. Ao Professor Bertrand

    Binoche pelo acolhimento na Sorbonne. Ao Professor Pedro Paulo Pimenta Garrido, que

    acompanha meu trabalho desde a qualificao do mestrado com orientaes preciosas. Aos

    Professores Franklin de Mattos, Alain Grosrichard, Antnio Carlos dos Santos e Edmilson

    Menezes pelas valiosssimas indicaes e sugestes ao meu trabalho.

    Ao meu amigo Thomaz Kawauche, pelo importante apoio em momentos cruciais

    dessa jornada. A David Scotte, pela amizade e apoio em Paris. A Danilo Bilate, Manoela

    Lage, William Wills, Fernanda Westin, Luiz Campos, Paola Lins, Leandra Santos, Micael

    Crtes, Eduardo Rocha, Henrique Codato, Denise Figueiredo, Leandro Trevisan e Sheila

    Cristina, eu agradeo a amizade e companheirismo; com vocs, eu vivi, na Maison du Brsil,

    momentos especiais de minha vida.

    s amigas Germana, Rejane, Symon, Jannayna e Fabola pela companhia e apoio.

    s funcionrias do Departamento de Filosofia da USP, em especial, Maria Helena,

    que sempre atendeu as minhas tantas solicitaes com ateno e eficincia.

    Ao Ncleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Histria e Modernidade da

    Universidade Federal de Sergipe (NEPHEM/UFS) pelos frteis dilogos.

    Faculdade de Administrao e Negcios de Sergipe (FANESE) pelo apoio constante

    nesses anos de pesquisa. A CAPES, por ter me possibilitado o imprescindvel estgio no

    exterior.

  • RESUMO

    MOTA, Vladimir de Oliva. Acerca da noo de filosofia em Voltaire. 2012. 192 f. Tese

    (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de

    Filosofia, Universidade de So Paulo, 2012.

    Este trabalho pretende demonstrar a existncia de um pensamento consistente e coerente na

    obra de Voltaire. Para tal, num primeiro momento, recorre finalidade atribuda por esse

    autor filosofia, a saber: o combate pelo aperfeioamento moral dos homens. Esse carter

    blico de seus textos o lao a unir sua multifacetria obra, dando-lhe coerncia. Num

    segundo momento, identifica que esse combate pressupe uma fundamentao das ideias, ou

    seja, a finalidade da filosofia voltairiana exige um pensamento consistente que lhe serve de

    alicerce; por fim, expe quais os pressupostos da realizao do combate filosfico, em uma

    palavra, objetiva compreender como esse combate se efetiva

    .

    Palavras-chave: Filosofia, combate, costumes, moral.

  • ABSTRACT

    MOTA, Vladimir de Oliva. About the notion of philosophy in Voltaire. 2012. 192 f. Tese

    (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de

    Filosofia, Universidade de So Paulo, 2012.

    This work intends to show the existence of a consistent and coherent thinking in Voltaires

    work. In order to reach that goal, at first, it is analysed the final usage given to Philosophy by

    him, in other words: the struggle to mankind moral improvement. This fighting aspect of his

    texts is the lace that binds his multifacated work together, giving coherence to it. Then, this

    research identifies that struggle takes for granted based ideas, in other words, the objective of

    Voltaires Philosophy demands a consistent thinking that serves as its foundation; finally, it

    exposes the assumptions in which this philosophical struggle happens, in one word , how this

    struggle takes place.

    Key Words: Philosophy. struggle. habits. moral

  • SUMRIO

    INTRODUO 09

    CAPTULO 1:

    A RECORRENCIA DO COMBATE 31

    CAPTULO 2:

    AS BASES DO COMBATE 68

    I O CONHECIMENTO 71

    1 O mtodo experimental 71

    2 Conhecimento do homem 82

    3 Conhecimento do mundo 89

    4 Experincia e metafsica: o limite do conhecimento 91

    5 Ignorncia e dilogo 95

    II DEUS 102

    1 Deus de todos so seres, de todos os mundos, de todos os tempos: provas da

    existncia de Deus 104

    a) Deus como ordenador do universo 104

    b) Deus como primeiro motor 107

    2 Se permitido a fracas criaturas [...] ousar te pedir algo: Deus distante dos

    homens 109

    3 No nos deste um corao para nos odiarmos e mos para nos matarmos: religio

    natural 110

    III TICA 116

    1 Moral e experincia 118

    2 Fundamento divino da moral 119

    a) A tbula rasa moral: a sociedade como media do bem e do mal 119

    b) Os presentes de Deus fundam e mantm a sociedade 121

    3 Universalidade da moral 125

  • a) H uma lei moral dentro dos homens 125

    b) A noo do justo e do injusto natural 127

    4 Conscincia como freio ao mal moral 128

    CAPTULO 3:

    A FILOSOFIA NA ARENA 134

    I FILSOFO E FILOSOFIA NAS LUZES FRANCESAS 136

    II A FILOSOFIA DESCE ARENA: O COMBATE PELOS COSTUMES 145

    1 Liberdade 150

    2 Paixes 156

    3 Paixo da razo 162

    4 O exemplo da Histria 168

    CONCLUSO 174

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 178

  • INTRODUO

    Voltaire autor de uma obra prodigiosamente vasta e igualmente

    variada, fruto de uma vida de mais de sessenta anos de produo quase diria e de

    combates infatigveis. Com efeito, desde o sculo XVIII, so interminveis as

    controvrsias ao seu respeito. Pronunciar o nome Voltaire despertar o esprito de

    partido: uns nada lhe atribuem, outros fecham os olhos aos seus defeitos e todos, para

    cmulo da desavena, recorrem a passagens da obra do prprio Voltaire para sustentar

    posies antagnicas ao seu respeito. Entre os temas que alimentam esse conflito est o

    de saber se h ou no uma filosofia em Voltaire. Deveria ele ser inserido entre aqueles

    que compem uma histria da filosofia ou ser exilado para a ptria dos literatos gaiatos

    que zombavam dos poderes estabelecidos, temporal e espiritual, mas sem nenhum

    pensamento coerente e consistente? Entre os destroos recolhidos desse conflito

    interpretativo, encontram-se apenas algumas indicaes soluo do problema e no a

    traduo do seu pensamento, que permitiria identificar em seus textos uma filosofia.

    Com efeito, o debate permanece aberto na atualidade. Longe de

    pretender esgotar as referncias bibliogrficas contemporneas sobre o problema da

    possibilidade de uma filosofia em Voltaire, possvel observar a partir de alguns

    exemplos que, no sculo XXI, os intrpretes do pensamento voltairiano continuam a se

    digladiar a respeito desse tema, em geral, a partir de trs posies distintas: h os que

    negam a existncia de uma filosofia em Voltaire, h os que a admitem enquanto restrita

    ao espao e ao tempo e h os que a afirmam irrestritamente.

    Entre os que no atribuem, neste sculo, uma filosofia a Voltaire,

    possvel citar Jacques Spica. Ele admite que Voltaire tem uma cabea filosfica, em

    razo da sua formao no Louis-Le-Grand, de sua identidade filosfica adquirida na

    Inglaterra e da persistncia de algumas ideias em sua obra. Mas Voltaire no teria uma

  • 10

    filosofia. Voltaire no pode ser inserido entre os filsofos porque, segundo Spica, ele

    no possuiria um sistema interpretativo do mundo. O esprito de Voltaire seria,

    desenvolve o intrprete, tal qual um dicionrio: admite todas as questes sem as

    colocar em marcha na direo de um trabalho1. Em uma palavra, faltaria a Voltaire um

    fio condutor que direcionasse seu pensamento que vinculasse suas idias

    harmoniosamente, unindo-as racionalmente e formasse um todo coerente.

    O exlio voltairiano do pas da filosofia tambm decretado por Didier

    Masseau, para quem; no obstante Voltaire ter tratado de todas as grandes questes da

    metafsica em grande parte com crticas e criticar a metafsica seria uma atitude

    filosfica e, no obstante ainda, ter buscado o esboo de uma ordem e de um sentido

    para alm da aparente desordem dos acontecimentos histricos; Voltaire no teria feito

    filosofia porque sempre desconfiou de uma reflexo que visa afinar o conceito e

    aprofundar no abstrato as ideias suscetveis de animar em seguida uma ao. Ou seja,

    faltaria a Voltaire a radicalidade investigativa oriunda do trabalho de reflexo filosfica,

    isto , o exame do prprio pensamento:

    A investigao da verdade no pode ter lugar [...] seno ao preo de uma necessria e continuada colocao em causa de si mesmo, de uma reflexo sobre as premissas de todo discurso, sobre a exposio das objees, sobre a presena de uma contraprova, o todo revelando um projeto heurstico, profundamente meditado. Nada disso h em Voltaire2.

    Em nome da urgncia da ao, do sentimento de misso a cumprir para

    vencer um adversrio, Voltaire teria transformado a filosofia em combate e, nesse

    sentido, um retorno a uma sofisticao do pensamento seria intil e perigoso aos seus

    olhos, pensa Masseau.

    O pensamento voltairiano no se vincula s perspectivas filosficas de

    sua poca porque a linguagem de sua obra no se associa nem filosofia da Escola

    embora esquecida por muitos intrpretes das Luzes, mas existente ainda no sculo 1 SPICA, Jacques. Territoire de la philosophie. In: Cahiers Voltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004. p. 101. Todas as citaes de fontes bibliogrficas cuja lngua de origem for a francesa ou a inglesa e que no possuem edies traduzidas para o portugus, sero mantidas os ttulos originais; no caso de livros cuja traduo para o vernculo j existe, sero utilizados os ttulos traduzidos. Na referncia bibliogrfica deste trabalho possvel constatar os textos traduzidos para o portugus que servem de orientao para a traduo dos ttulos. 2 MASSEAU, Didier. Et pourtant il nest pas philosophe. In: Cahiers Voltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004. p. 158.

  • 11

    XVIII , escrita em latim, publicada, ensinada e que no pode ser completamente

    reduzida teologia, pois dessa filosofia Voltaire adversrio jurado; nem sua obra se

    associa a uma filosofia prpria de sua poca uma vez que seus escritos no possuem

    sempre a linguagem das Luzes. Essa a perspectiva adotada por Jean-Marie Goulemot.

    Para este, o que se chama de filosofia em Voltaire seria o conjunto de sua obra, algo,

    inclusive, difcil de circunscrever. Essa filosofia voltairiana no possuiria uma

    linguagem prpria, nem mesmo a do seu tempo, pois em seus textos seria possvel

    distinguir, numa grande parte, uma filosofia tal qual entendem as Luzes e, noutra, uma

    filosofia ligada tradio metafsica. E quando Voltaire ensaia filosofar, ele o faria

    sempre na direo de uma pedagogia mundana. Tal caracterstica o tornaria mais um

    moralista, no sentido mesmo dado a esse termo pelo sculo XVII, do que um filsofo:

    A filosofia implica, em todas as pocas, o uso de uma linguagem prpria e um modo de pensar formalmente especfico, contra os quais Voltaire recusa bem formalmente se sujeitar. Se nos associarmos a essa definio, Voltaire jamais foi um filsofo, nem quando militante, nem quando tenta uma reflexo mais abstrata3.

    Roland Mortier consta entre os que defendem uma filosofia, em

    Voltaire, restrita ao tempo e ao espao. No verbete Philosophie (Conception de la) do

    Dictionnaire gnral de Voltaire, o autor sustenta que Voltaire sempre cultivou, com

    intensas reflexes, as questes maiores colocadas pela investigao da verdade; isto ,

    Voltaire cultivou a filosofia durante toda sua vida, embora no o tenha feito com

    originalidade e moldada em sistema, a maneira de Descartes ou Malebranche4. Ou seja,

    para Mortier, como ele explicara em um texto anterior ao supracitado5, Voltaire fez

    filosofia se por isso se admite uma ideia de filosofia prpria ao sculo XVIII francs, e

    no no sentido atual no qual a filosofia se profissionalizou e o termo filsofo

    reservado desde Kant e Hegel queles que elaboram uma doutrina ou elementos de

    uma doutrina filosfica. Essa mesma posio defendida por Charles Porset: a filosofia

    3 GOULEMOT, Jean-Marie. Un moraliste en excs. In: Cahiers Voltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004. p. 177. Em uma obra anterior, Goulemot afirma que em Montesquieu, Diderot e Rousseau h uma mistura harmoniosa entre literatura e filosofia especulativa ou aplicada; em outros como dHolbach, La Mettrie e Helvtius o procedimento estritamente filosfico, mas quanto a Voltaire: sua filosofia jamais verdadeiramente especulativa ou terica, ela se quer militante e aplicada (GOULEMOT, Jean-Marie. La littrature des Lumires: en toutes lettres. Paris: Bordas, 1989. p. 60). 4 Cf.: MORTIER, Roland. Philosophie (Conception de la). In: TROUSSON, Raymond; VERCRUYSSE, Jeron. (Dir.). Dictionnaire gnral de Voltaire. Paris: Honor Champion, 2003. 5 Cf.: MORTIER, Roland. Prface: Voltaire et la philosophie. Rflexions sur un tricentenaire (1694 1994). Reveu international de philosophie: Voltaire (1694 1994), Bruxelle, N 187, Vol. 48, mars, 1994.

  • 12

    de Voltaire deve ser contextualizada no sculo XVIII francs. Porset aponta ainda para

    o equvoco dos que pretenderam defender ou negar uma filosofia em Voltaire,

    deslocando-a de sua poca: A filosofia de Voltaire deve ser colocada em seu tempo e

    o erro comum daqueles que pro ou contra discutem sobre isso de medi-la luz de uma

    philosophia perenis6. Ou seja, esses intrpretes admitem uma filosofia em Voltaire

    desde que inserida no contexto ideolgico das Luzes. Uma filosofia, portanto, com

    aspas para indicar seu local e prazo de validade.

    Em oposio a esses, outros intrpretes dos textos voltairianos

    sustentam o argumento de uma filosofia de Voltaire independente de espao e tempo.

    Jean Dagen, por exemplo, embora sem muito explicar, afirma essa ideia e, por isso,

    refere-se ao iluminista como filsofo sem utilizar as aspas. De acordo com Dagen,

    Voltaire foi um filsofo atrelado a uma tarefa e, para tal, afrontava as questes

    familiares da tradio com uma reflexo fundada sobre uma crtica racional e vida de

    belas certezas, conservando, atravs do tempo, o carter de um pensamento em

    movimento7.

    pergunta se Voltaire ou no filsofo, a resposta parece obviamente

    positiva para Gerhardt Stenger. Alm de indicar que o sculo da filosofia tambm o

    sculo de Voltaire, Stenger defende a ideia de que h uma filosofia nesse autor,

    atacando os que a negam. Estes assim se posicionam porque confundem profundidade

    com obscuridade: Voltaire claro, como o conjunto dos filsofos do sculo XVIII

    francs, claro demais para alguns que tm medo da fora que essa claridade [...] d

    crtica impiedosa que ele fez da teologia e da metafsica8. A resposta tambm

    positiva para Alain Sager9, embora sem lhe parecer bvia. Fazendo um brevssimo

    exame das concepes de filosofia nas quais Voltaire no se insere, Sager diz defronta-

    6 PORSET, Charles. Philosophie. In: _______. Voltaire humaniste. Paris: ditions Maonniques de France, 2003. p. 76. (grifo do autor) A esse respeito, ver tambm: PORSET, Charles. Un intermittant du concept. In: CahiersVoltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004. 7 DAGEN, Jean. vhmre la question: certitudes volontaires dun philosophe ignorant. Revue Voltaire, Paris, N. 5, 2005. p. 131. Em um texto de 1995, Jean Dagen defende a ideia de referir-se a Voltaire como um filsofo sem aspas, pois o autor do Tratado de metafsica teria o lugar marcado entre os representantes do racionalismo clssico e do pensamento ingls, de um lado, e, de outro, Rousseau, Kant e a filosofia alem. (Cf.: DAGEN, Jean. Voltaire ou lhorreur de plein. In: MERVAUD, Christiane; DAGEN, Jean. Voltaire aujourdhui. Bruxelles: VUBPRESS, 1995). 8 STENGER, Gerhardt. Prsentation. In: VOLTAIRE. Lettres philosophiques; Derniers crits sur Dieu. Paris: Flammarion, 2006. p. 9. 9 SAGER, Alain. La Lumire est discours. In: CahiersVoltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004.

  • 13

    se, assim, com duas escolhas: ou recusar a ideia de uma filosofia em Voltaire, visto que

    ele no se encontra em nenhuma das definies propostas; ou preciso considerar que

    Voltaire encara outra postura do filsofo e, consequentemente, da filosofia. E conclui

    assegurando que h uma filosofia em Voltaire porque possvel extrair deste: uma ideia

    de liberdade de pensamento acima de todo partido; uma orientao pelo real

    (independente da definio que se adote de real), o qual procura compreender para,

    eventualmente, guiar seus semelhantes e, por fim, uma curiosidade a qual nada escapa.

    Embora sustente no s a existncia de uma filosofia voltairiana, mas tambm sua

    validade perene, Sager confessa que uma perspectiva generalista de filosofia, como a

    de Voltaire, desapareceu na poca dos especialistas. Silvia Mattei, recorrendo

    anlise de um texto voltairiano, O filsofo ignorante10, e expondo o pensamento do

    autor atravs da metfora da viagem, indica a finalidade do pensamento filosfico de

    Voltaire: partindo da ideia de um ignorante que raciocina, a viagem do pensamento

    filosfico voltairiano aporta na moral e, assim, Mattei associa filosofia e virtude em

    Voltaire11.

    Infelizmente, de todos esses intrpretes da obra voltairiana; os que

    negam peremptoriamente uma filosofia em Voltaire tais como Spica, Masseau e

    Goulemot , os que admitem a existncia dessa filosofia, embora a circunscreva ao

    movimento das Luzes como pensa Mortier e Porset e mesmo os que defendem a

    existncia de uma obra filosfica voltairiana como o caso de Dagen, Stenger, Sage e

    Mattei ; no possvel extrair maiores explicaes acerca do que garantiria ou no a

    insero de Voltaire na histria da filosofia. Esses comentadores pouco escreveram

    sobre esse sujeito, satisfizeram-se com breves comentrios em textos de pouco flego

    acerca, especificamente, da questo em tela.

    A controvrsia que envolve a existncia ou a ausncia do pensamento

    filosfico em Voltaire mantm-se irreconcilivel. Consequentemente, o debate sobre o

    10 Os ttulos das obras voltairianas cuja traduo possvel encontrar em lngua portuguesa sero indicados no corpo do texto em portugus, os demais sero mantidos na lngua de origem do texto. 11 MATTEI, Silvia. Laube de la raison. In: Cahiers Voltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004. A ideia de uma filosofia em Voltaire permeia toda sua anlise acerca da relao entre razo e viagem no pensamento voltairiano em seu livro recentemente publicado. Embora a autora no se dedique, nesse livro, exclusivamente a essa questo: Cf.: MATTEI, Silvia. Voltaire et les voyages de la raison. Paris: LHarmattan, 2010.

  • 14

    tema mantm-se aberto. E exatamente nesse debate que o presente trabalho pretende

    se inserir.

    Seguindo a trilha aberta por outros na tentativa de indicar uma

    consistncia para usar a expresso de Jean-Raoul Carr e uma coerncia no

    pensamento de Voltaire12, o que aqui se pretende analisar a obra desse autor,

    objetivando identificar que o carter combativo de sua produo explcito em seus

    textos e exaustivamente salientado pelos seus intrpretes funda-se, est alicerado em

    um pensamento consistente este pouco ou quase nada debatido pelos seus

    comentadores. E, sendo dessa consistncia o efeito, o combate une a obra voltairiana,

    dando inteligibilidade ao seu conjunto, garantindo-lhe a unidade, a coerncia. Ou seja, o

    combate em Voltaire revela-se, por um lado, como o fim de um pensamento consistente

    e une, por outro, sua obra num todo coerente. Este trabalho pretende, portanto,

    identificar nos textos de Voltaire uma caracterstica acerca de sua concepo de

    filosofia: o texto de Voltaire, tal como ele o apresenta, sob mltipla forma, fruto de

    uma ideia de filosofia que atribui uma finalidade ao trabalho filosfico, a saber: o

    combate. Portanto, esse combate, que une a multifacetria obra voltairiana em um todo

    coerente porque visa a um s objetivo, consequncia de um pensamento consistente.

    A associao entre os elementos da consistncia e da coerncia na obra

    de Voltaire fazem desse autor, a um s tempo, um produto legtimo das Luzes francesas

    e um pensador cuja produo mantm-se viva, atemporal, porque legitimamente

    filosfica. Isto , os nexos lgicos entre as idias que fundamentam seu pensamento e o

    consequente combate que este pensamento exige fazem de Voltaire, por um lado, o

    autor que, talvez, melhor represente o sculo XVIII francs. O carter combativo de sua

    obra o insere definitivamente entre os philosophes, fazendo com que sua produo

    torne-se mesmo, por essa razo, referncia do perodo das Luzes francesas, levando

    alguns intrpretes a afirmar, como o caso de Stenger, que o sculo XVIII igualmente

    chamado de o Sculo de Voltaire13. Por outro lado, as exigncias lgicas que so

    possveis de se extrair dos seus textos ao logo de toda sua produo, os vnculos

    12 A esse respeito, ver, por exemplo: PELLISSIER, Georges. Voltaire philosophe. Paris: Colin, 1908.; CARR, Jean-Raoul. Consistence de Voltaire le philosophe. Paris: Boivin, 1938.; MARTIN-HAAG, liane. Voltaire: du cartsianisme aux Lumires. Paris: Vrin, 2002. 13 Cf. STENGER, Gerhardt. Prsentation. In: VOLTAIRE. Lettres philosophiques; Derniers crits sur Dieu. Paris: Flammarion, 2006.

  • 15

    racionais entre as idias idias estas que em sua maior parte mantm-se inalteradas

    fundamentam um pensamento que, em grande medida, devedor de uma herana terica

    sempre ratificada pelo prprio Voltaire, no deixa de apresentar caractersticas prprias.

    O combate articula os vrios domnios e gneros trabalhados pelo filsofo cujo

    critrio de escolha o que, julga o autor, melhor se adequaria s circunstncias da luta

    , fazendo de sua obra um todo coerente; ao passo em que os fundamentos do combate

    lhe do consistncia. Em uma palavra, a obra voltairiana apresenta uma dupla face: o

    carter combativo de sua obra faz de Voltaire um philosophe e as bases desse combate,

    os seus fundamentos, fazem de seu pensamento uma filosofia perene. Essa dupla

    caracterstica da obra de Voltaire, e sobretudo sua articulao, talvez tenha sido a razo

    pela qual, associada complexidade e dimenso vultosa de seus escritos, alguns dos

    seus intrpretes, ao negligenciarem-na, oscilem tanto quando se trata de atribuir ou no

    uma filosofia obra de Voltaire.

    O fio condutor que permite encontrar os laos que unem a obra de

    Voltaire a finalidade ltima atribuda por ele noo de filosofia, a saber: o combate

    pelo uso esclarecido e livre da razo e, assim, pelo aperfeioamento dos costumes e pela

    consequente felicidade dos homens pelo bem-estar individual e coletivo que esses

    costumes, orientados pela razo, podem, na medida em que a condio humana os

    permite, possibilitar. Para explicitar essa noo de filosofia como combate, faz-se

    necessrio demonstrar que, alm de coerente, o pensamento de Voltaire consistente,

    isto , a noo de combate atrelada filosofia fruto de uma reflexo constante e de

    uma conexo lgica entre as ideias que levam a uma fundamentao racional, terica e

    crtica latente em sua obra; tal fundamentao, por sua vez, estabelece as poucas

    certezas do filsofo ignorante que, a partir delas, lana dardos contra as ideias

    dominantes e os poderes estabelecidos em nome da felicidade individual e coletiva. Isso

    implica dizer que o combate no se realiza aleatoriamente, ele pressupe uma reflexo

    persistente, realizada ao longo de toda uma vida, a fundamentao e a organizao de

    noes, como a de conhecimento, de Deus, de moral, de religio, de liberdade, de

    paixes e de felicidade tais temas ganham destaques aqui, em detrimentos de outros,

    porque servem de alicerce ao seu combate , formando um todo coerente, um

    pensamento harmonioso.

  • 16

    O combate em Voltaire aqui entendido num duplo movimento: por

    um lado, como crtica e polmica a tudo o que parea um obstculo felicidade dos

    homens: todas as formas de tirania, o dogma, a superstio, o fanatismo, a

    intolerncia...; por outro, como divulgao de ideias de modo a contribuir para a

    reforma dos costumes do seu tempo, agindo sobre as paixes de seus leitores e

    espectadores. Pois, segundo Voltaire, sendo a felicidade sobre a terra dependente da

    virtude, sem esta no possvel aquela, o filsofo luta para esmagar a infame, isto ,

    toda forma de obscurantismo, de esprito de sistema e de opresso que coloca fim a

    felicidade humana. Mais especificamente, o filsofo identifica a raiz da infame,

    combatendo pela causa dos males morais, a saber: o mau uso das paixes. Estas, embora

    Voltaire reconhea a impossibilidade de elimin-las, pois so parte constituinte da

    condio humana, devem ser controladas pela razo livre e esclarecida porque, sendo as

    paixes o motor das aes, caso no sejam orientadas pela razo, os costumes

    corromper-se-o, a virtude se perder, a felicidade sobre a terra torna-se invivel. Assim

    revela-se a dupla face do combate: destrutivo e construtivo a um s tempo.

    Filosofia e combate no so termos excludentes na obra de Voltaire, ao

    contrrio, o segundo deriva do primeiro. O combate em Voltaire, enquanto resultado de

    um pensamento elaborado, parte constitutiva de sua filosofia, pois desta o meio

    necessrio que possibilitaria o fim da sua filosofia, a saber: a felicidade. Em Voltaire, o

    combate a manifestao de seu pensamento filosfico, um elemento essencial de

    uma filosofia centrada na imanncia, que limita as condies do conhecimento humano

    a um crculo estreito, mas que se quer til, que encontra sua justificativa, sua finalidade,

    ao tentar contribuir para o aperfeioamento dos costumes, nica via felicidade terrena.

    neste sentido que alguns especialistas de sua obra definem a sua filosofia como

    aprendizado, como educao14; consideram Voltaire como um reformador dos

    costumes15, como algum que usou sua pluma para formar os espritos16, enfim,

    como educador da Europa17.

    14 Cf.: GOLDZINK, Jean. Voltaire entre A et V. Paris: Hachette, 1994. p. 136. 15 ASCOLI, Georges. Voltaire (I). Reveu bimensuelle des cours et confrences. Paris, N 8, Vol. 25, mars, 1924. p. 684. 16 CHANFRAULT, Marie-Franoise. ducation. In: GOULEMOT, Jean et al. (Dir.). Inventaire Voltaire. Paris: Gallimard, 1995. p. 461. 17 BOISDEFFRE, Pierre de. Voltaire est-il un philosophe? In: BLUCHE, Franois et al. Voltaire. Paris: Hachette, 1978. p. 132.

  • 17

    Como examinar uma obra colossal, com grande variedade de formas e

    com uma linguagem flutuante de causar vertigem e, desse conjunto aparentemente

    desarmnico, extrair um pensamento coerente e consistente, uma filosofia? Que

    caminho deve ser seguido com o fim de demonstrar que, num primeiro momento, h

    nos escritos de Voltaire noes que permanecem e se repetem, fundamentando sua obra

    e tornando-a um todo harmnico, assim como se repete e permanece sua a ideia acerca

    do fazer filosfico como combate? Em seguida, como expor as conexes entre essas

    noes de modo a indicar a consistncia de um pensamento? Por fim, que mtodo

    aplicar aos textos voltairianos de modo a possibilitar demonstrar de que maneira o

    filsofo pretende alcanar o fim de sua filosofia, isto , como o combate filosfico,

    efetivamente, contribui para o aperfeioamento dos costumes? Em uma palavra, como

    ler a filosofia de Voltaire?

    Em 1906, Gustave Lanson publicou um texto que se tornaria uma

    referncia para os estudos acerca do filsofo aqui investigado. Na breve Apresentao

    ao seu Voltaire, Lanson afirma que seu objetivo , em suas palavras, falar de

    Voltaire18. Concomitantemente, o intrprete apresenta o caminho a ser tomado para tal

    fim. O mtodo escolhido pelo autor foi o que denominou de histrico, assim explicado:

    trata-se de falar de Voltaire sem apoteose e sem caricatura [...], reportando sempre a

    ideia ou a expresso de Voltaire s coisas de seu tempo19. Esse mtodo de anlise

    pressupe que a nica via para extrair as direes principais do mvel pensamento de

    Voltaire unindo o pensamento do filsofo s suas circunstncias. Caso contrrio,

    adverte Lanson, aquele que tentasse ler a esparsa e mltipla obra voltairiana

    negligenciando tal mtodo perder-se-ia em toda sorte de contradies. Neste sentido, as

    contradies da obra de Voltaire so, em parte, resolvidas quando se tem a ateno de

    datar os textos e procurar seu sentido prprio, relativo, preciso que cada obra recebe das

    circunstncias de sua composio. Assim, Lanson sugere trs passos leitura da obra

    voltairiana: o primeiro, distinguir o que motiva o texto do filsofo, ou seja, distinguir o

    que escrito para o pblico ou correspondncia privada, filosofia refletida ou mpeto de

    humor, viso geral da ordem social ou ocasio de interesse pessoal20; o segundo,

    avaliar as modificaes de redao em razo do fim ao qual cada escrito est destinado; 18 LANSON, Gustave. Voltaire. Paris: Hachette (Collection Les Grands crivains Franais), 1906. p. 5. 19 Idem. 20 Idem.

  • 18

    terceiro, identificar em suas afirmaes contrrias o que sua opinio e o que

    concesso opinio comum. Todavia, o mesmo Lanson reconhece que tais redues so

    difceis de serem efetivadas porque, por esse mtodo, no se sabe exatamente qual a

    medida da precauo ou do escrpulo para a reduo do texto do filsofo tampouco no

    se sabe como evitar introduzir, nessa reduo, partidarismo ou sentimento pessoal21.

    Lanson confessa: Eu no ousaria me vangloriar de t-la [a precisa reduo que seu

    mtodo exige] sempre e em todo lugar conseguido22. Assim, o mtodo de anlise

    sugerido por Lanson de recortes da obra voltairiana d margem subjetividade do

    leitor na hora de decidir o que deve ou o que no deve ser levado em considerao na

    escrita de Voltaire, para da, extrair seu pensamento. Alm disso, esse mtodo ignora

    por completo a possibilidade de extrair um fio condutor capaz de ligar os textos

    esparsos, no tempo, e mltiplos, na forma, de Voltaire, dando-lhe uma coerncia e

    eliminando parte do que se considera contradio. Todavia, a referida obra de Lanson

    mantm-se um importante instrumento compreenso da consistncia de algumas

    ideias do filsofo.

    Oitenta e oito anos depois, o mais clebre intrprete de Voltaire, Ren

    Pomeau, defende em seu livro, La religion de Voltaire, de 1994, um mtodo de anlise

    da obra do filsofo diferente do proposto por Lanson porque mais preciso. Segundo

    Pomeau, a nica chance de obter um resultado minimamente vlido em uma pesquisa

    sobre Voltaire fazendo uso de um mtodo de anlise at ento indito. Esse mtodo

    consiste em abandonar julgamentos irresponsveis a respeito do pensamento de

    Voltaire, fruto de pesquisas feitas pela via da amostragem, isto , pela adoo, para

    anlise, de passagens de seus textos sem levar em considerao o conjunto de sua obra e

    os fatos de sua biografia. A consequncia do equvoco de analisar Voltaire por

    amostragem, assegura Pomeau, so as interminveis perspectivas criadas em sua

    maioria, divergentes acerca do pensamento voltairiano. O mtodo de Pomeau sugere

    uma investigao cronolgica dos textos, situando-os na histria do sculo e na de

    Voltaire porque, explica o intrprete sobre o filsofo:

    Mais do que qualquer outro, talvez, ele sensvel circunstncia qual ele adapta com flexibilidade seu pensamento e sua ao. [...] No que ele escreve e faz, as circunstncias de uma personalidade e os imperativos racionais

    21 Ibidem. p. 5-6 22 Ibidem. p. 6.

  • 19

    enlaam-se aos acontecimentos: eis o n que em cada caso preciso desatar23.

    Mais frente, Pomeau toma partido da idia de que as circunstncias da

    personalidade de Voltaire predominam em sua obra em detrimento das exigncias

    lgicas de suas idias, fazendo com que estas oscilem incessantemente: Seria

    equivocado crer [...] que a crtica voltairiana inspirada pelo puro amor verdade. [...]

    Voltaire um homem de contrastes e de alternncias24. E, acerca do seu tema, a saber,

    a religio de Voltaire, Pomeau conclui fiel ao seu mtodo:

    Voltaire no especula friamente e isso , se se quiser, sua fraqueza. Suas ideias, particularmente em matria de religio, definem sua maneira de ser no mundo. Pode-se, portanto, esperar que elas sejam, em larga medida, determinadas pelo temperamento voltairiano25.

    Essas passagens indicam que, menos as idias e a histria do sculo e

    mais a biografia de Voltaire, especificamente, a personalidade do filsofo, o fio

    condutor a guiar Pomeau na anlise da obra voltairiana. Essa escrita misturada s

    contingncias do momento que subjugam suas idias de acordo como essas

    circunstncias afetam sua personalidade. Isso faz das ideias de Voltaire to inconstante

    quanto o seu carter, to varivel quanto o seu humor; o que explicaria as idas e vindas

    de suas ideias, a inconstncia de seu pensamento, sua inconsistncia, sua incoerncia.

    Essa anlise, denominada por Pomeau de caracterolgica26, elimina toda e qualquer

    possibilidade de buscar um fio condutor racional inerente aos prprios textos

    voltairianos que, se por um uma lado, ganham em clareza na exposio das ideias ao

    faz-las conformarem-se s circunstncias, por outro, essas idias extradas dos textos,

    variando de acordo com os acontecimentos e a personalidade do autor, no mais se

    relacionam entre si, tornam o conjunto de sua obra incoerente e no encontram nenhuma

    base na qual possam se apoiar. A anlise caracterolgica faz de Voltaire incoerente e

    inconsistente. Esse mtodo d razo clebre crtica de mile Faguet, que definiu o

    esprito de Voltaire como um caos de ideias claras27.Embora tal sentena no seja

    uma explicao, e no passe de um gracejo.

    23 POMEAU, Ren. La religion de Voltaire. Paris: Nizet, 1994. p. 16. 24 Ibidem, p. 124-125. 25 Ibidem, p. 125. (grifo nosso) 26 Ibidem, p. 159. 27 FAGUET, mile. Dix-huitime sicle: tudes littraires. Paris: Socit Franaise dImprimerie et de Librairie, 1910. p. 226.

  • 20

    Todavia, o mesmo Pomeau no elimina completamente a possibilidade

    de se perceber, no prprio texto voltairiano, razes que extrapolam as circunstncias.

    Assim ele comenta o mtodo a ser usado em La religion de Voltaire:

    A enquete devia ser cronolgica. Cada texto, cada fato foi, portanto, situado na histria do sculo e na histria de Voltaire. Existem certamente necessidades lgicas, subtradas contingncia do momento e do lugar [...]. Porm Voltaire, mais do que qualquer outro talvez, sensvel circunstncia a qual ele adapta com habilidade seu pensamento e sua ao28.

    inegvel o argumento de Pomeau acerca da adequao do discurso de

    Voltaire s circunstncias de sua vida, os textos do filsofo a demonstram. Porm,

    levando em considerao o mtodo a ser aqui adotado, essa adequao no feita

    aleatoriamente, ao sabor da inconstncia de um carter; ao contrrio, h uma

    necessidade lgica que faz a obra voltairiana vincular-se s circunstncias sem se perder

    no labirinto dos fatos histricos, sem tornar seu pensamento um acmulo de ideias

    desconexas e infundadas, como nico meio desse pensamento se adequar

    multiplicidade dos acontecimentos. Isso seria, para dizer o mnimo, subestimar o leitor

    de Locke, Bacon, Newton, Malebranche... que confessou, diversas vezes, em sua vida,

    amar a verdade.

    necessrio alterar a perspectiva do olhar sobre Voltaire, afastar-se um

    pouco das confusas circunstncias, ganhar uma distncia que possibilite perceber,

    assim, que sua obra adquire traos mais ntidos, mais firmes e mais constantes. Para

    usar uma metfora antiga: preciso olhar a relao das ideias de Voltaire com as

    circunstncias da vida desse filsofo como a um jogo de perspectiva de uma quadro que

    s se deixa apreender o seu sentido a partir de um certo ponto, de uma certa distncia.

    Deve-se levar em considerao mais os elementos filosficos de sua obra do que as

    circunstncias de sua vida, embora sem desprez-las.

    Adequando o texto ao momento e ao lugar, Voltaire no o faz

    aleatoriamente, ele no perde sua direo, mas atende ao fim ao qual se presta a sua

    noo de filosofia. A finalidade da filosofia em Voltaire explica mesmo a necessidade

    da adequao do texto s circunstncias: essa adequao feita em nome do

    esclarecimento dos homens, e no para atender aos caprichos de uma personalidade 28 POMEAU, Ren. La religion de Voltaire. Paris: Nizet, 1994. p 16. (grifo nosso).

  • 21

    instvel. Essa perspectiva d obra voltairiana maior inteligibilidade, pois elimina o

    caos aparente, levando seus textos a uma s direo e fundando-os em bases refletidas,

    sem perder a clareza. Ou seja, a idia de combate pelo esclarecimento dos homens, que

    tem como objetivo o aperfeioamento dos seus costumes, apresentada como a finalidade

    da filosofia em Voltaire, o fio condutor que unifica a obra e norteia a investigao

    sobre a consistncia do seu pensamento. Dessa forma, possvel viabilizar a pesquisa

    histrica da filosofia no mbito da filosofia das Luzes, em geral, e de Voltaire, em

    particular. Pois, como adverte Ernst Cassirer, quando se expe simplesmente os

    resultados do pensamento das Luzes, esses resultados passaro por contradies

    insolveis e por mistura de temas heterogneos. No possvel ter acesso camada

    profunda da filosofia do Iluminismo se nos ativermos, como a grande maioria das

    obras histricas dedicadas a esse perodo, ao seu corte longitudinal29. Ou seja, no

    mais possvel acompanhar o desenvolvimento da filosofia de sistema em sistema, pois,

    alerta Cassirer, esse fio condutor abandona-nos no limiar do sculo XVIII, por quanto

    o sistema filosfico como tal que carece ento de fora de lei e de

    representatividade30. A investigao da filosofia das Luzes s se realiza a partir de um

    centro nico de perspectiva para assim desvendar as suas tenses e distenses, suas

    dvidas e decises, seu ceticismo e sua f inquebrantvel31. Esses termos de Cassirer

    sobre o pensamento do sculo XVIII francs aqui aplicado a Voltaire: o estudo da

    filosofia voltairiana permite o descobrimento desse centro nico de perspectiva, isto ,

    de um fio condutor a partir do qual se possvel trafegar com segurana nas curvas

    sinuosas de sua vasta e difcil obra.

    Todavia, dois obstculos se apresentam a essa tarefa: o primeiro,

    quando se verifica que, na espantosa produo sobre a obra de Voltaire, as questes

    filosficas so, comparativamente a outras investigaes feitas acerca desse autor,

    bastante reduzidas, quando no so completamente desprezadas. Consequentemente,

    escassa a pesquisa sobre o pensamento filosfico em Voltaire. Este problema no

    novo, ao contrrio, antigo e, alm disso, recorrente entre os poucos que se dedicam

    filosofia voltairiana. Para exemplificar: em 1938, Carr j se ressentia da falta de uma

    29 CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Traduo lvaro Cabral. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. p. 12. 30 Idem. 31 Ibidem, p. 8.

  • 22

    ateno maior a Voltaire por parte dos historiadores da filosofia moderna32. Na mesma

    direo, 64 anos depois, em 2002, Eliane Martin-Haag repete a queixa. Referindo-se

    imensa bibliografia de Frederick A. Spear dedicada a Voltaire, Martin-Haag assinala o

    fato do esquecimento da filosofia voltairiana por parte dos historiadores da filosofia

    moderna. A autora lembra ainda que as poucas vezes nas quais o pensamento filosfico

    de Voltaire debatido, isso feito por artigos ou parte de obras mais gerais33.

    Consequentemente, esse obstculo exige do pesquisador um trabalho de garimpagem

    em busca de anlises de comentadores dedicadas filosofia de Voltaire.

    O segundo obstculo diz respeito prpria obra de Voltaire. Por um

    lado, o corpus voltairiano cuja publicao se encontra ainda incompleta34 de uma

    dimenso colossal, poucos escreveram tanto quanto Voltaire. Por outro lado, sua

    linguagem flutuante, a ausncia de uma obra organizada sistematicamente, a variao

    acerca de alguns elementos de suas idias exigem, investigao do seu pensamento,

    um mtodo que permita traduzir sua filosofia no obstante esses obstculos. Assim, faz-

    se necessrio tomar algumas precaues metodolgicas ao tratar da filosofia desse

    autor.

    O nome Voltaire mais conhecido do que sua obra. Observam-se

    crticos que, extraindo passagens aleatrias de textos voltairianos, fazem do filsofo o

    32 Cf.: CARR, Jean-Raoul. Consistence de Voltaire le philosophe. Paris: Boivin, 1938. 33 Cf.: MARTIN-HAAG, liane. Voltaire: Du cartsianisme aux Lumires. Paris: Vrin, 2002. Esse problema se mantm conforme se observa nas referncias feitas acima acerca da possibilidade de filosofia em Voltaire. Contudo, este incio de sculo parece indicar uma sutil mudana. Ainda muito tmida quantitativamente, uma ateno maior s questes filosficas de Voltaire percebida a partir de publicaes e debates mais constantes acerca do contedo do pensamento filosfico desse autor: alm do prprio livro j citado de Martin-Haag, de 2002, dedicado ao pensamento filosfico de Voltaire, e do debate acerca desse tema, em 2004, no N.3 dos Cahiers Voltaire, possvel ainda constatar, por exemplo, publicaes na Europa de obras inteiras cujo tema envolve o contedo e a forma da filosofia voltairiana: BOUCHER, Gwenalle. La posie philosophique de Voltaire. Oxford: Voltaire Foundation, 2003.; MALKASSIAN, Grard. Candide: un dbat philosophique. Paris: Ellipses, 2005.; AZERHAD, Annick. Le dialogue philosophique dans les contes de Voltaire. Paris: Honor Champion, 2010.; MTAYER, Guillaume. Nietzsche et Voltaire: de lalibert de lesprit et de la civilisation. Paris: Flammarion, 2011.. No Brasil, teses de doutorado dedicadas filosofia de Voltaire surgem com mais constncia na primeira dcada dos anos 2000, por exemplo: DIAS, Elizabeth de Assis. Alguns aspectos do conceito de razo em Voltaire. Tese (Doutorado em Filosofia) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas. 2000. MIRANDA, Luiz Francisco Albuquerque de. Voltaire e a histria do Estado civilizador. Tese (Doutorado em Filosofia) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas. 2003. BRANDO, Rodrigo. A ordem do mundo e o homem: estudos sobre metafsica e moral em Voltaire. Tese (Doutorado em Filosofia) Universidade de So Paulo (USP). So Paulo. 2008. 34 A mais recente edio das obras completas de Voltaire, que conta j com 142 volumes, comporta um aparato crtico atualizado por numerosos especialistas, porm ainda no concluda: Oeuvres compltes de Voltaire/Complete works of Voltaire. Oxford: Voltaire Foundation, 1968-.

  • 23

    que se deseja. Tudo j foi dito sobre a filosofia de Voltaire e a maioria do que foi dito o

    foi em perspectivas antagnicas, as mais variadas e opostas interpretaes do

    pensamento voltairiano foram feitas. Nesse sentido, a primeira precauo a ser tomada

    bvia, embora paradoxalmente pouco empregada: seguir o conselho de Carr: ler

    realmente o autor ao qual se pergunta qual sua filosofia35. Para evitar as

    consequncias desastrosas de se tomar Voltaire por amostragem como explicou

    Pomeau36 , necessrio l-lo em bloco, por conjunto, em grande quantidade,

    considerando a multiplicidade de formas e de ideias recorridas pelo filsofo ao longo de

    sua vida.

    Mas, no caso de Voltaire, a quantidade ainda no suficiente para ter

    uma aproximao do seu pensamento filosfico. Pois em uma obra extremamente

    variada, preciso no abusar contra o autor, como lembra Georges Ascoli, de termos

    excessivos, que explica o ardor da polmica, mas no esclarece seu pensamento. Faz-se

    necessrio distinguir em sua obra o essencial e, para tal tarefa, deve-se recolher, entre o

    que ele disse, o que ele quase sempre diz37. Como faz-lo?

    Ao se buscar a noo de filosofia em Voltaire, um levantamento do

    termo em sua obra exequvel com auxlio da informtica tem-se um recurso que de

    forma alguma elimina a necessidade de ler Voltaire em bloco, pois, alerta Dagen: No

    porque ele emprega a mesma palavra que Voltaire diz sempre a mesma coisa38. Ou

    seja, Voltaire afasta-se de uma linguagem tcnica, do jargo universitrio, etc.; sua

    linguagem propositalmente flutuante, seu vocabulrio incerto, prprio a uma

    filosofia que se nega a circunscrever, a esgotar a verdade e a riqueza da vida e de seus

    interesses num nmero finito de palavras. Alm dessa razo, o que Voltaire pretende

    alcanar a clareza para o combate. Com esse fim, o vocabulrio tcnico importa pouco

    se as idias so claras e as razes so boas. Carr sintetiza a relao de Voltaire com a

    35 CARR, Jean-Raoul. Consistence de Voltaire le philosophe. Paris: Boivin, 1938. p. 8. 36 Na introduo de sua obra, A religio de Voltaire, Pomeau faz, 60 anos depois, o mesmo alerta de Carr: se se toma extratos de textos de Voltaire e, a partir deles, deduz-se seu pensamento, ser possvel fazer de Voltaire o que se desejar e, assim, no se traduzir sua filosofia. (Cf.: POMEAU, Ren. La religion de Voltaire. Paris: Nizet, 1994). 37 A respeito da ideia de que o essencial em Voltaire encontrado no que ele sempre diz, ver: ASCOLI, Georges. Voltaire (I). Reveu bimensuelle des cours et confrences. Paris, N 8, Vol. 25, mars, 1924. 38 DAGEN, Jean. vhmre la question: certitudes volontaires dun philosophe ignorant. Revue Voltaire, Paris, N. 5, 2005. p. 131.

  • 24

    seleo de palavras usadas pelo filsofo: o vocabulrio, mesmo no tcnico, bom se

    ele diz o que ele quer dizer39.

    Esse presente obstculo compreenso da filosofia de Voltaire no ,

    todavia, intransponvel. possvel ao intrprete contorn-lo: a leitura em bloco e a

    busca por textos em momentos distintos da vida do filsofo possibilitam identificar o

    que permanece, a essncia do seu pensamento e a articulao das suas idias. Como

    explica Carr, a linguagem em Voltaire flutuante, mas algumas posies do seu

    pensamento mantm-se:

    O vocabulrio do detalhe pode ser flutuante, as posies reais do pensamento no o so; elas podem se enriquecer e se modificar, mas elas no o fazem por saltos bruscos e com incoerncia; vem-se nelas as razes. Quanto linguagem, ela segue como ela pode, apenas tomando sentido, como se deve, graas a um contexto indefinido, o que completamente natural quando se v na filosofia no um jogo sutil, combinando em um mundo irreal palavras fixas [...] por conceitos artificiais e rgidos, mas o pensamento concreto de uma vida que experimenta se definir, compreender-se, dar-se um sentido que a legitime. A filosofia de Voltaire est, portanto, nele em todos os lugares, em seus versos como em sua prosa, em seus romances como em seus tratados nomeadamente designados como filosficos, em suas obras histricas como em seus textos jocosos. Isso [...] bem natural se a filosofia uma meditao de toda a vida40.

    Em vista de buscar a concepo de filosofia em Voltaire, faz-se

    necessrio recorrer a leituras em bloco e em diferentes perodos da produo do

    filsofo, pois alm do fato explicado de que algumas posies do pensamento

    voltairiano permanecem, elas so possveis de serem extradas de seus textos no

    importando o gnero que lhes serve de meio porque Voltaire no esconde suas posies

    sob o vu da imparcialidade impenetrvel: seus textos tm indicaes bastante claras

    que permitem retirar o essencial da mensagem. Soma-se a isso o fato de que Voltaire,

    estrategicamente, repete-se, o que fortalece ainda mais a idia dessa permanncia.

    Voltaire repete as mesmas ideias frequentemente, e no o faz por expresso ou frases

    apenas, mas por longas passagens, chegando mesmo a repetir textos inteiros. Nesse

    caso, como indica Nicholas Cronk, podemos falar de uma esttica do copiar/colar,

    39 CARR, Jean-Raoul. Consistence de Voltaire le philosophe. Paris: Boivin, 1938. p.7. 40 Ibidem, p. 8. Outro intrprete do pensamento filosfico de Voltaire adota esse mtodo, admitindo a permanncia das concepes de Voltaire. DAGEN, Jean. Voltaire ou lhorreur de plein. In: MERVAUD, Christiane; DAGEN, Jean. Voltaire aujourdhui. Bruxelles: VUBPRESS, 1995.

  • 25

    que ultrapassa de longe a simples problemtica da repetio41. Qual seria a finalidade

    dessa caracterstica de autoplagiador? Lanson assegura que Voltaire repete-se

    propositalmente com o fim de difundir seu pensamento: Uma ideia s um pouco

    inserida no pblico a fora de ser reeditada42. Para Chrsistiane Mervaud, a repetio

    em Voltaire tem um carter pedaggico43. No se pretende, aqui, desenvolver esse tema,

    mas somente indic-lo como argumento adicional ideia de que algumas concepes de

    Voltaire permanecem, repetem-se, alm de serem usadas como instrumento pedaggico,

    isto , com o fim de contribuir para o aperfeioamento dos costumes. E isso s pode ser

    apreendido na leitura feita em bloco e levando em considerao perodos distintos da

    produo do filsofo.

    Importante enfatizar que no se pretende apresentar as ideia de Voltaire

    de forma cronolgica mtodo comumente admitido por muito dos seus intrpretes ;

    objetiva-se aprofundar a hiptese segundo a qual as ideias essenciais se repetem nesse

    autor, elas permanecem. A exposio cronolgica das ideias voltairianas seria inclusive

    prejudicial pesquisa sobre o pensamento desse filsofo. Tal constatao foi salientada

    por Raymond Naves, em 1938, no seu Le got de Voltaire (reeditado em 2011): ao

    apresentar seu mtodo de investigao, Naves afirma que a pesquisa do gosto nesse

    filsofo faz-se possvel identificando os elementos ligados e convergentes, frequentes

    em mltiplos textos, mas deve-se evitar apresent-los cronologicamente, pois uma tal

    exposio seria til apenas para marcar uma sucesso das ideias do filsofo; em

    contrapartida, geraria uma confuso extrema, provocando repeties de ideias a cada

    passo daquela sucesso sem em nada satisfazer a anlise44.

    A leitura em bloco e em diferentes perodos da obra voltairiana permite

    desvelar um nexo interno em seus textos, nexo esse que o prprio autor no est

    preocupado em explicitar, pois a Voltaire interessa mais o efeito produzido de seus

    combates no mbito prtico, e no h nele a preocupao de convencer seus adversrios

    41 CRONK, Nicholas. Voltaire auto plagiaire. In: FERRET, Olivier et al.. (Ed.) Copier/Coller: criture et rcrituer chez Voltaire (Actes du coloque international: Pisa, 30 juin 2 juillet 2005). Pisa: Edizioni Plus - Pisa University Press, 2007. p. 10. 42 LANSON, Gustave. Voltaire. Paris: Hachette (Collection Les Grands crivains Franais), 1906. p. 145. 43 MERVAUD, Christiane. Rflexions alphabtiques sur la justice dans le Dictionnaire philosophique. In: HEMMING, T.D. et al. (Dir.). The secular city: studies in the Enlightenment presented to Haydn Mason. Exeter: University of Exeter Press, 1994. p. 115. 44 NAVES, Raymond. Le got de Voltaire. Genve: Slatkine, 2011. p. 5.

  • 26

    e seu pblico com discusses no mbito terico da obra Voltaire no quer aborrecer o

    pblico com problemas de natureza terica, uma vez que razo e virtude, pensa o

    filsofo, tocam pouco quando aborrecem , o que no implica dizer que no h em seus

    escritos uma conexo e um fundamento terico e crtico, embora implcitos. Nesse

    sentido, este trabalho representa uma traio a Voltaire: a denncia de uma coerncia e

    de uma consistncia latentes em seus livros. Seu leitor e espectador, absorvidos pela

    clareza do texto, s percebem aquilo que o filsofo intenciona explicitar como

    finalidade da sua filosofia: o combate, e no a coerncia e a consistncia de uma obra

    imensa. Ao tratar do romance filosfico, inveno das Luzes, Marilena Chaui o

    considera um gnero literrio paradoxal. Entre os paradoxos inerentes a esse gnero,

    Chaui indica que o romancista quer, ao mesmo tempo, que suas ideias sejam tomadas

    como verdade e que toquem o leitor, diz a autora: [...] o romancista, enquanto filsofo,

    quer ser acreditado como verdadeiro, mas, enquanto poeta-dramaturgo, quer encantar,

    interessar, comover, persuadir, entrar furtivamente na alma do leitor.45 Essa leitura

    pode ser aplicada a Voltaire que, dessa forma, esconde-se exatamente quando se mostra;

    isto , as bases e a harmonia do seu pensamento no so expostas imediatamente no

    combate, mas ao longo da sua obra possvel perceber que exatamente esse combate

    explcito o lao que amarra seus escritos e lhe d coerncia, assim como a permanncia

    de algumas ideias com suas respectivas defesas durante a luta asseguram ao combate

    bases slidas. Esse velar-se ao se mostrar uma caracterstica do fazer filosfico

    voltairiano, trao de sua obra j observado por Jean Goldzink: O que prprio da

    filosofia voltairiana que ela se esconde, oferecendo-se completamente nua, sem

    nenhum pudor, nem a menor distino46. A tarefa do historiador da filosofia ao tratar

    do pensamento de Voltaire encontrar o fio condutor invisvel, primeira vista, que

    permite amarrar as idias constituintes do pensamento voltairiano num conjunto

    coerente e consistente, numa filosofia.

    Para vincular filosofia e combate em Voltaire, apontando este combate

    no qual as paixes, como causas dos males morais, so alvo constante como a 45 CHAUI, Marilena. Prefcio. In: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta: Diderot e o romance filosfico. So Paulo: Cosac&Naiy, 2004. p. 9. 46 GOLDZINK, Jean. Que faire et comment dire? Appel la dlocalisation. In: Cahiers Voltaire, N. 3, Ferney-Voltaire, 2004. p. 149. Goldzink aponta para duas caractersticas prprias da filosofia de Voltaire: o deslocamento (dlocalisation), segundo o qual, Voltaire leva seu leitor a deslocar as ideias com sua forma de escrita, isto , provoca em quem o l uma necessidade de criticar as prprias ideias; e o fato de sua filosofia se esconder. Esses traos do pensamento voltairiano so apresentados por Goldzink como dificuldades ao se tentar apreender a filosofia de Voltaire.

  • 27

    costura a entrelaar coerentemente sua obra, faz-se necessrio demonstrar que, em seus

    textos, essa finalidade est atribuda a sua filosofia ao longo de sua obra, desde os seus

    textos de juventude aos mais tardios, assim como nas mais variadas formas: poema,

    teatro, panfleto, ensaio, conto... Em seguida, investigar alguns elementos da estrutura do

    pensamento voltairiano que fundamentam uma filosofia combativa, a saber:

    Conhecimento, Deus, tica, e o problema do Belo. Sem pretender esgotar essas

    questes e circunscrever as nuances que sofrem esses conceitos ao longo da obra de

    Voltaire, o interesse aqui , mais uma vez, identificar o que nessas ideias se mantm e

    sua relao permanente com a dupla face do carter combativo de sua obra,

    caracterizando esse combate como oriundo de um pensamento bem elaborado,

    reflexivo, crtico e racional, e que esteve constantemente presente nos textos de

    Voltaire. Em uma palavra, nos escritos desse filsofo, por detrs do combate pelo

    esclarecimento e pelos costumes presente em grande parte de sua obra e em todas as

    pocas de sua produo h um pensamento consistente, h uma filosofia que o

    fundamenta.

    Nessa direo, o presente trabalho ser dividido em trs momentos: no

    primeiro, trata-se de demonstrar que algumas ideias vitais filosofia voltairiana e,

    sobretudo, que a finalidade que a esta atribuda, estavam presentes desde seus escritos

    de juventude at os mais tardios. Embora, num primeiro momento da produo de

    Voltaire, essas ideias no apresentem com preciso suas fundamentaes, possvel

    identific-las como o eixo de suas discusses e, sobretudo, possvel perceber tambm

    o carter combativo de seus textos. A luta contra as paixes e suas horrveis

    consequncias e pelo aperfeioamento dos costumes, em nome de uma razo

    esclarecida, predomina desde suas primeiras publicaes, mantendo-se ainda no centro

    de suas preocupaes at seus textos mais tardios. Com esse propsito, ser dado

    destaque aos textos anteriores ao seu exlio ingls em 1726 porque, na Inglaterra, com o

    incio da confeco das Cartas filosficas, o pensamento de Voltaire revela novas

    caractersticas que sero explicitadas no captulo subsequente. Portanto, de incio,

    pretende-se apontar ideias que permanecero constantes na obra de Voltaire e, o mais

    importante, a finalidade atribuda pelo jovem filsofo aos seus escritos antes do seu

    embarque forado para terras inglesas. Para tanto, no bloco de textos investigados,

    ganharam destaque, em razo de apresentarem com mais preciso, em relao aos

    outros do mesmo perodo, o que aqui se busca: as peas dipe e Artmire; o poema

  • 28

    ptre Uranie e o pico Henriada; assim como os contos Cosi-Sancta e O carregador

    caolho. Outros tantos textos desse perodo so discutidos, pois, embora menos

    combativos, associam-se demonstrao do que aqui se objetiva. Ainda nesse primeiro

    momento, sero feitas referncias a textos de outros perodos da produo voltairiana

    com o propsito de perceber a permanncia de alguns temas estruturantes de sua

    filosofia e, consequentemente, da finalidade que a esta atribuda: o combate. Dessa

    forma, possvel perceber que, desde cedo, o jovem filsofo pretende agir sobre as

    paixes dos seus leitores e espectadores, com o propsito de corrigir-lhes os costumes, e

    que essa pretenso perpetuou-se em sua obra.

    Num segundo momento, pretende-se expor a estrutura do pensamento

    voltairiano, identificando as conexes lgicas entre os elementos dessa estrutura, com o

    fim de identificar, nas poucas certezas do filsofo ignorante, o alicerce para o seu

    combate. No se trata, evidentemente, de expor todo o pensamento de Voltaire, mas

    indicar aquelas ideias que sustentam seu combate. Para tanto, faz-se necessrio o exame

    de algumas noes, a saber: acerca do conhecimento seus limites e possibilidades, o

    mtodo, o conhecimento do homem, do mundo, o lugar da metafsica em sua obra e a

    relao entre o reconhecimento do limite do conhecimento e a necessidade do dilogo ;

    sobre Deus as provas de sua existncia e a relao entre a divindade e a conduta do

    homem no mundo ; acerca de uma tica voltairiana seus fundamentos em Deus e na

    sociedade, a universalidade da moral e a ideia de conscincia como freio ao mal moral.

    Com esse intuito, sero levados em considerao textos de Voltaire, escritos em vrios

    perodos de sua vida, nos quais tais temas esto significativamente presentes. Vale

    destacar os ensaios como as Cartas filosficas, Tratado de metafsica, Discours en ver

    sur lhomme, Elementos da filosofia de Newton, Pome sur la loi naturelle, O filsofo

    ignorante, Tout en Dieu, Il faut prendre un parti; algumas correspondncias; dilogos

    como LA,B,C... e tantos outros textos que auxiliam na compreenso do que aqui se

    prope.

    Com esse mesmo procedimento, no terceiro momento, busca-se

    compreender a guinada de uma filosofia destrutiva para uma filosofia construtiva,

    que se estrutura a partir das poucas certezas do filsofo. Questionar como o filsofo

    ignorante, que percebe o limite do seu discurso, identifica, ao mesmo tempo, a

    necessidade moral de no se calar e tornar sua razo eficaz, agindo sobre as paixes

  • 29

    com o propsito de, contribuindo para o aperfeioamento dos costumes, evitar o mal

    moral, consequncia das aes passionais. Compreendendo que, para Voltaire, os

    costumes no so o critrio ltimo do bem-estar social pois h sempre a possibilidade

    de existirem aqueles que so bons e os que so maus, ou seja, os costumes, os hbitos

    variam. A batalha travada pelo filsofo pelo aperfeioamento dos costumes, significa

    dizer que as aes humanas necessitam, para a garantia de correo da conduo, de se

    guiarem por leis gerais, ou, para usar a expresso do prprio filsofo, por uma lei moral

    universal que forma a conscincia humana. exatamente essa moral universal que

    Voltaire deseja indicar aos homens. De acordo com a tica voltairiana, essa moral

    universal porque inerente ao homem, mas que apenas se efetiva com o auxlio da razo

    que, assim como a moral, dada por Deus. Em termos aristotlicos, pode-se dizer que

    essa moral est no homem em potncia, mas necessita da razo para tornar-se ato, da a

    necessidade do esclarecimento pelo qual Voltaire tanto se bateu porque, negligenciando

    a razo, o homem, arrastado apenas pelo motor de suas aes, a saber, as paixes, pode

    tender injustia. Quando a razo humana indica ao indivduo que a noo de justia

    lhe prpria porque lhe foi dada pela divindade, sua conscincia o condena sempre

    quando a lei moral no for atendida. Nesse sentido, a parte final desse trabalho pretende

    explicar como se realiza o combate pelo aperfeioamento dos costumes. Isto , trata-se

    de demonstrar que, para Voltaire, o discurso terico impotente ao propsito de

    aperfeioamento das aes humanas, uma vez que os homens no agem por metafsica e

    sim por hbito, por costumes. Ciente disso, a estratgia do filsofo implica em atacar o

    motor das aes humanas a fim de orientar suas aes. Objetiva-se, nesse terceiro

    momento, expor os nexos existentes entre a fundamentao da tica apresentada na

    segunda parte deste trabalho , a partir da qual Voltaire pretende instaurar o seu

    combate, e a estratgia usada pelo filsofo em sua obra para tocar as paixes dos

    homens, corrigindo-lhes os costumes, ou seja, tem-se a inteno de demonstrar que h

    em Voltaire uma conexo entre sua tica e sua esttica. Em uma palavra, a polimrfica

    obra de Voltaire faz os homens sentirem a verdade moral, criando neles uma paixo

    contrria ao ato imoral e a favor da razo, trata-se, usando a expresso de Bernard

    Groethuysen, de explicar a paixo da razo47, isto , a paixo que o filsofo faz

    despertar em seu leitor ou espectador quando um ato contrrio razo. Combatendo

    pelo esclarecimento, pelo controle das paixes, por uma razo livre e esclarecida capaz

    47Cf.: GROETHUYSEN, Bernard. Voltaire ou la passion da la raison. In: _______. Philosophie de la revolution franaise. Paris: Gallimard, 1996.

  • 30

    de possibilitar a retido dos costumes, Voltaire faz do seu combate um elemento que

    unifica uma obra e do seu pensamento uma produo consistente, uma filosofia. Por

    fim, nesse ltimo momento, ciente das mltiplas faces da filosofia em Voltaire, buscar-

    se- definir essa filosofia a partir de um de seus aspectos, o da sua finalidade.

  • CAPTULO 1:

    A RECORRNCIA DO COMBATE

    Em 1761, Thomas-Arthur, general de Lally, oficial do exrcito francs,

    responsvel por organizar a defesa dos estabelecimentos franceses na ndia durante a

    Guerra dos Sete Anos, foi acusado de capitular. A partir de 1762, Voltaire movimenta-

    se, com sua escrita, em defesa do general. O processo durou dois anos, o conselheiro

    Pasquier, o mesmo que seria responsvel mais tarde pelas acusaes que levaram

    condenao o cavalheiro de La Barre e do Dicionrio filosfico (1764) de Voltaire,

    alcanou o mesmo resultado com o caso Lally. O general foi condenado morte pelo

    parlamento e executado em 9 de maio de 17661. Mais de doze anos mais tarde,

    precisamente no dia 26 de maio de 1778, o filsofo recebe a notcia de que o Conselho

    do rei, enfim, cassou a sentena do parlamento a respeito do infeliz Lally. Voltaire

    encontrava-se j bastante debilitado, quase no mais falava, contudo a notcia o

    reanimara e o fizera recolher as ltimas energias para ditar um pequeno bilhete que foi

    endereado ao jovem Lally-Tollendal, filho do general. Nesse bilhete, o velho filsofo

    expressa a desesperana na reabilitao de sua sade e a sua ltima alegria, a cassao

    da condenao de Lally: O morto ressuscita, tomando conhecimento dessa grande

    notcia, abraa ternamente o Sr. de Lally, v que o rei defensor da justia e morrer

    contente2.Seu entusiasmo o fez ordenar que colocassem sobre a tapearia do seu quarto

    a inscrio: 26 de maio, o assassinato jurdico cometido por Pasquier contra a pessoa

    de Lally foi vingado pelo Conselho do rei3. Quatro dias depois, em 30 de maio de

    1778, aos oitenta e quatro anos, Voltaire falece. Dessa forma, o filsofo havia

    1 Cf.: HEUVEL, Jacques Van den. Prsentation. In: VOLTAIRE. LAffaire Calas et lautres affaires. Paris: Gallimard, 2008 2 VOLTAIRE. Correspondence. In: Oeuvres compltes de Voltaire. L'dition Moland. Paris: Garnier, 1875. VOLTAIRE-INTEGRAL. CD-ROM, 1999-2005. 3 POMEAU, Ren et al.. On a voululenterrer. In: _______. Voltaire en son temps (Tome II). Oxford: Fayard; Voltaire Foundation, 1995. p. 621. Essa comemorao foi em vo, pois em 1781, o Conselho do rei retomou o caso e, por unanimidade, a condenao de Lally foi mantida.

  • 32

    dispensado suas ltimas energias ao que o motivava, ao que exigia sua conscincia, ao

    combate.

    Esse episdio uma amostra da paixo de Voltaire pela luta em nome

    da verdade e da justia, do uso de suas ideias e de sua escrita, de seu talento, at o

    ltimo momento, para a interveno direta no mundo, no sentido de tornar este o mais

    saudvel convivncia humana. A obra de Voltaire marcada pelo uso da filosofia

    como fim de combater pelo que possibilita a felicidade. A tarefa do filsofo foi tornada

    clebre no artigo Letras, homens de letras ou letrados, inserido em 1765 no seu

    Dicionrio filosfico. O homem de letras, que entre suas caractersticas est o de ser

    filsofo, voluntariamente se pe a lutar, a combater; diz Voltaire acerca desse homem:

    ele desceu por sua vontade na arena, ele mesmo se condenou s feras4. A filosofia

    voltairiana, portanto, desce arena para combater as feras! Essas so identificadas pelo

    filsofo como todo tipo de superstio, de fanatismo, de intolerncia, de irracionalidade,

    de inumanidade. A filosofia sinnima de embate entre, de um lado, o humano, a razo

    e, de outro, o inumano, a desrazo. Goldzink assim identifica o fim da filosofia em

    Voltaire: A filosofia o belo tornado uma ideia fora, um uso social [...] que reivindica

    o monoplio da humanidade5. Voltaire alargou o campo da filosofia em sua poca,

    pois ele compreendia a funo social do texto escrito no sculo XVIII, tal funo chega

    ao sculo XXI com o efeito de sua fora bastante reduzido. No podemos hoje, como

    explica Pierre Lepape, ter noo do impacto simblico da coisa escrita em uma

    sociedade de informao rarefeita [a sociedade do sculo XVIII]6.

    A caracterstica combativa da filosofia voltairiana que pretende descer

    na arena e combater as feras, sair rua para influenciar os costumes e as ideias que lhe

    servem de fundamento sempre estiveram presentes em seus escritos ou elas marcam sua

    obra apenas a partir das Cartas filosficas? Pois, como sabido entre a maioria dos

    intrpretes da obra do filsofo, esse livro, nutrido desde quando seu autor ainda estava

    em Londres, empenhado em aprender a s filosofia inglesa e experimentando os

    costumes daquele pas, e preparado at sua publicao em 1734, lanado contra a

    4 VOLTAIRE. Lettres, gens de lettres, ou lettrs. In:_______.Dictionnaire philosophique. Paris: Flammarion, 2010. p. 370. 5 GOLDZINK, Jean. Voltaire entre A et V. Paris: Hachette, 1994. p. 134. 6LEPAPE, Pierre. Voltaire: nascimento dos intelectuais no Sculo das Luzes. Traduo Mrio Pontes. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. p. 50.

  • 33

    Frana e sua chegada produz, entre os franceses, o efeito de um brulote que atinge seu

    alvo; nesse sentido, o carter combativo desse escrito evidente, como se percebe pela

    reao enrgica e imediata do poder estabelecido: enviado a Voltaire, em 3 de maio de

    1734, uma lettre de cachet e exemplares da obra havia sido j apreendidos; em 10

    junho, o Parlamento ordena queimar o livro e o seu autor torna-se procurado. Durante

    dez anos a condenao do Parlamento foi uma ameaa a Voltaire. Alm disso, com

    carter belicoso, possvel perceber tambm nas Cartas filosficas uma ateno maior

    do seu autor em tratar mais diretamente questes filosficas: das vinte e cinco cartas que

    compem a obra, sete so dedicadas religio, trs poltica e oito filosofia

    (incluindo a carta sobre Pascal); nas sete restantes, so discutidas questes acerca das

    letras. Nas palavras de Lanson, as Cartas filosficas um incomparvel filtro de

    ideias7.

    Neste momento, interessa identificar nos primeiros escritos de Voltaire,

    isto , nos textos anteriores ao seu exlio londrino em 1726, alguns temas que sero

    recorrentes na filosofia voltairiana, porque estruturais desse pensamento para a

    fundamentao da ideia de combate, e, sobretudo, uma orientao acerca da finalidade

    atribuda filosofia, que se manter at seus ltimos escritos, a saber: a luta contra as

    paixes desmedidas pelo aperfeioamento dos costumes. Com esse objetivo, faz-se

    necessrio a anlise em bloco dos textos de Voltaire anteriores a 1726 para procurar

    ideias recorrentes e a presena, ou no, do combate; assim, possvel cotejar os

    resultados com textos de outros perodos da produo voltairiana e identificar a

    permanncia de algumas ideias e do seu fazer filosfico.

    Importante advertir que no se trata aqui de afirmar que, desde sua

    primeira publicao, Voltaire possua uma clara ideia do seu projeto filosfico de

    esclarecimento dos homens, pois parece razovel o argumento segundo o qual um

    projeto filosfico se tece ao longo dos anos, ao longo de uma vida e que no possvel

    determinar a data precisa em que um filsofo, Voltaire particularmente, decreta que ser

    um pensador consciente de um fim especfico para a filosofia8. No entanto, mesmo que

    7 LANSON, Gustave. Voltaire. Paris: Hachette (Collection Les Grands crivains Franais), 1906. p. 51. 8 A esse respeito, conferir: POMEAU, Ren. Avant-propos. In: POMEAU, Ren et al..Voltaire en son temps (Tome I). Oxford: Fayard; Voltaire Foundation, 1995. A pergunta mesma sobre o que filosofia uma pergunta colocada tardiamente, esta foi a constatao a que chegaram Gilles Deleuze e Flix

  • 34

    algumas ideias do filsofo sejam menos explcitas no incio de sua carreira, porque sem

    a preocupao maior de expor as bases do argumento, e menos conscientes, porque sem

    uma sustentao terica ainda segura, uma vez que s aps seu exlio ingls essa

    sustentao seria consolidada, as consequncias de sua estada na Inglaterra no

    representam, no entanto, uma transformao de um poeta em um filsofo, pois

    possvel constatar nas suas primeiras publicaes, entre as ideias que Voltaire cultivar

    por toda sua existncia, uma clara tendncia de fazer da filosofia um instrumento de

    esclarecimento dos homens, objetivo jamais abandonado e, ao longo da vida, ratificado

    sobre um pensamento consistente como base a esse fim.

    Num estudo sobre o estado de esprito filosfico de Voltaire antes de

    seu exlio na Inglaterra, Georges Ascoli9, referindo-se s ideias de Voltaire acerca do

    materialismo mas que pode ser aplicada a todas as ideias do filsofo , afirma que elas

    ainda no estavam cristalizadas, contudo, o pensamento voltairiano no era menos, por

    isso, saturado de noes; elas estavam orientadas antes de sua partida para a Inglaterra.

    As questes filosficas sempre o inquietaram e ele no deixou em momento algum de

    tentar buscar suas respostas. Qual seria ento a relevncia do exlio ingls no

    pensamento filosfico de Voltaire? A consolidao de algumas ideias. Destacando a

    importncia da estada de Voltaire na Inglaterra, Ascoli argumenta: Mesmo naquilo que

    ele no mudar seu ponto de vista, a Inglaterra confirmar nele tendncias que sem ela

    no teriam sido talvez definitivas10. Pierre Boisferre11 defende a tese segundo a qual,

    antes de 1726, a prtica cotidiana das ideias que interessa a Voltaire (aqui se defende

    que esse sempre ser o interesse de Voltaire), essas ideias sero disseminadas em peas,

    em versos, em ensaios; ele quer agradar o grande pblico. A preocupao de Voltaire

    a de fazer crer, de levar seu leitor ou espectador a aceitar ideias que esto implcitas em

    seus escritos, e no explcitas e desenvolvidas ao modo de uma tese. Essa preocupao,

    ele s a ter aps a experincia inglesa e, ainda assim, sem muito destaque, porque seu

    interesse sempre ser o efeito prtico dos seus combates e no o convencimento no

    mbito terico daquilo que ele defende. Portanto, a Inglaterra representa para o Guattari: Talvez s possamos colocar a questo O que filosofia? tardiamente, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. O que filosofia? Traduo Bento Prado Jr.; Alberto Alonso Muoz. 2 Ed. Rio de Janeiro: Edies 34, 2005. p. 9). 9 Cf.: ASCOLI, Georges. Voltaire (II): Ltat desprit philosophique de Voltaire avant le sjour en Angleterre. Reveu bimensuelle des cours et confrences. Paris, N 9, Vol. 25, avril, 1924. 10 Ibidem, p. 144. 11 Cf.: BOISDEFFRE, Pierre de. Voltaire est-il un philosophe? In: BLUCHE, Franois et al. Voltaire. Paris: Hachette, 1978.

  • 35

    pensamento de Voltaire uma consolidao das ideias, no uma mudana. No h, por

    exemplo, entre o dipe, de1718, e as Cartas filosficas de, 1734, uma mutao, uma

    passagem do poeta para o filsofo, mas antes uma maturao, pois, como diz Pomeau12

    a esse respeito, o dipe j uma tragdia filosfica.

    A primeira obra assinada por Voltaire intitula-se Ode sur sainte

    Genevive, publicada em 1710; essa , na verdade, sua data mais provvel. Esse texto

    foi escrito quando Voltaire, ainda Franois-Marie Arouet, era aluno de retrica do

    Louis-Le-Grand. Trata-se, na verdade, da traduo de uma ode escrita em latim pelo seu

    professor, padre Le Jay, chamada Sanctae Genovefae, parisiorum patronae, votum ipso

    ejus festivitatis die persolutum. Mesmo dizendo respeito menos a uma composio

    original do que a uma traduo, segundo Catriona Seth, possvel encontrar traos de

    Voltaire em Arouet Le Jeune a partir j desse texto: Sob a escola, em ritmo talvez mal-

    adaptado, o imitador guiado pelo seu modelo indica j [...] as causas que lhe so caras: o

    desmo, a tolerncia, a liberdade de pensar13.

    A interpretao de Seth parece um tanto generosa ao enxergar j nessa

    traduo uma pliade de alguns dos principais conceitos que ocuparo as reflexes

    futuras de Voltaire. Embora esteja presente, explicitamente, nesse texto escolar do autor

    de dezesseis anos, dois temas bastante recorrentes em sua obra: as paixes como causa

    dos males morais e o repdio guerra.

    So explcitas as descries dos consequentes males da guerra,

    provocados pelo desregramento das paixes, nas duas ltimas estrofes da ode: o furor

    dos exrcitos, os cruis homicdios, os sangue dos guerreiros, as cidades queimadas, o

    dio, a morte. clara a inteno de Voltaire em aterrorizar o leitor em relao s

    funestas consequncias das paixes descontroladas e de seu mais terrvel efeito, a

    guerra, em sua Ode sur sainte Genevive:

    Regardez la France en alarmes, Qui de vous attend son secours! Enproie La fureur des armes,

    12 Cf.: POMEAU, Ren. DArouet Voltaire: 1694-1734. In: POMEAU, Ren et al..Voltaire en son temps (Tome I). Oxford: Fayard; Voltaire Foundation, 1995. 13 SETH, Catriona. Introdutcion. In: VOLTAIRE. Ode sursainte Genevive. In:_______. Les oeuvres compltes (IB). Oxford: Voltaire Foundation, 2001. p. 7.

  • 36

    Peut-elle avoir d'autre recours? Nos fleuves, devenus rapides Par tant de cruels homicides, Sont teints du sang de nos guerriers; Chaque t forme des temptes Qui fondent sur d'illustres ttes, Et frappent jusqu' nos lauriers. Je vois en des villes brles Rgner la mort et la terreur; Je vois des plaines dsoles Aux vainqueurs mmes faire horreur. Vous qui pouvez finir nos peines, Et calmer de funestes haines, Rendez-nous une aimable paix! Que Bellone, de fers charge Dans les enfers soit replonge, Sans espoir d'en sortir jamais!14

    Apelar Santa Genoveva parece o nico meio de controlar as paixes

    funestas dos homens, responsveis pelo mal da guerra. No h melhor recurso para

    reduzir a fria dos exrcitos, a crueldade dos homicdios, o dio... seno recorrendo

    transcendncia como freio aos desejos imoderados. Em 1710, o jovem Arouet recorre

    santa para apaziguar os coraes humanos! O apelo transcendncia com o propsito

    de frear os impulsos humanos perene na obra voltairiana. Muito embora, em textos

    posteriores, Voltaire concentra seus apelos no mais a santos, mas diretamente

    divindade. importante observar, para evitar enganosas contradies na obra

    voltairiana que, certamente, Voltaire no espera que haja uma interveno de Deus no

    mundo, com o propsito de corrigir os atos dos homens, a partir de um apelo comovente

    divindade; o autor nunca admitiu uma Providncia particular. Desde, por exemplo, sua

    pea dipe de, 1718, at o artigo Providncia, surgido em 1771 na monumental

    14Olhai a Frana em alarme,/Que de vs espera seu Socorro!/Como presa da fria dos exrcitos,/Pode ela ter outro recurso?/Nossos rios, rapidamente,/Por tantos cruis homicdios,/So tingidos de sangue dos nossos guerreiros,/Cada vero forma tempestades/Que fundam sobre ilustres cabeas/E atingem at nossos loureiros./Eu vejo em cidades queimadas/Reinar a morte e o terror;/Eu vejo plancies desoladas/Que mesmo aos vencedores horrorizam./Vs que podeis terminar nossas penas,/E acalmar funestos dios,/D-nos uma amvel paz!/ Que Bellone [deusa romana da guerra] de ferros carregada/Nos infernos seja mergulhada,/Sem esperana de jamais de l sair. VOLTAIRE. Ode sur sainte Genevive. In:_______. Les oeuvres compltes (IB). Oxford: Voltaire Foundation, 2001. p. 17. Optou-se em manter os versos na lngua original no corpo do texto com o propsito de salvaguardar a rima e a mtrica, to caras a Voltaire, que defende em 1730, no Discours sur la tragdie Milord Bolingbroke, a ideia segundo a qual uma boa palavra em versos retida mais facilmente e os retratos da vida humana so sempre mais tocantes em versos do que em prosa. (Cf.: VOLTAIRE. Discours sur la tragdie Milord Bolingbroke. In:_______. Les oeuvres compltes (5). Oxford: Voltaire Foundation, 1998.) Doravante, a traduo dos versos vir em nota de rodap, exceto quando a referncia utilizada j se encontra vertida para o vernculo.

  • 37

    Questions sur lEncyclopdie, o filsofo tem plena convico de que esses apelos so

    inteis e que a melhora da vida humana na terra depende das aes dos homens15.

    Em dipe, quando o povo tebano clamava aos deuses pelo fim do

    sofrimento, o Grand-Prtre surge porta do templo e questiona se as palavras a tais

    deuses poderiam resolver o problema; em seguida, indica que a resoluo se deve ao

    poltica e que o clamor do povo chega aos ouvidos do rei:

    Cessez, et retenez ces clameurs lamentables, Faibles ou lagementaux maux des misrables. Flchissons sous um dieu qui veut nous prouver, Qui d'un mot peut nous perdre, et d'un mot nous sauver. Il sait que dans ces murs la mort nous environne. Et les cris des Thbains sont monts vers son trne. [...] Les temps sont arrivs, cette grande journe Va du peuple et du roi changer la destine16.

    Cinquenta e trs anos aps a publicao de dipe, Voltaire repete sua

    posio frente ao apelo transcendncia para corrigir e mudar a ordem do mundo. No

    verbete Providncia, seu autor faz dialogarem uma freira, a irm Fossue, com um

    metafsico. A religiosa, imaginando que as nove Ave Maria que rezou para pedir pela

    sade de seu pardal garantiram que o pssaro tivesse sua vida prolongada; a essa

    argumentao, o metafsico retrucou:

    Eu creio na Providncia geral, minha cara irm, naquela da qual emanou, de toda a eternidade, a lei que regula todas as coisas, como a luz nasce do Sol. Mas no creio de maneira alguma que uma Providncia particular muda a economia do mundo para o vosso pardal [...]17.

    Assim, sabendo intil apelar transcendncia para modificar o mundo,

    o filsofo, na verdade, recorre a esse expediente com o fim estratgico de tocar o

    corao dos seus leitores para os erros decorrentes da natureza humana, mais

    15 O recurso transcendncia como freio aos males morais no corresponde aos fundamentos de suas ideias sobre a relao dos homens com o Ser supremo, mas como uma estratgia para tocar os coraes de um pblico pouco ou mesmo no esclarecido. 16 Cessem e retenham esses clamores lamentveis,/Fraca ajuda aos males dos miserveis;/Curvam sob um deus que quer nos provar,/Que de uma palavra pode nos perder, e de uma palavra, nos salvar:/Ele [o rei] sabe que nestes muros a morte nos ronda;/E os gritos dos tebanos sobem ao trono. [...] O tempo chegou, dessa grande jornada/ cabe ao povo e ao rei mudar o destino. VOLTAIRE. dipe. In:_______. Les oeuvres compltes (IA). Oxford: Voltaire Foundation, 2001. p. 178-179. 17 VOLTAIRE. Providncia. Traduo Vladimir de Oliva Mota. In: Philosophica: Revista de Filosofia da Histria e Modernidade. So Cristvo, N 3, maro, 2002. p. 126.

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    exatamente, o mal oriundo das paixes desorientadas. Nesse sentido, o apelo a Deus

    traduz-se na pena voltairiana como um apelo ao corao humano, a divindade

    representa um freio moral aos impulsos desregrados pelo respeito que os homens

    nutrem pela divindade. Essa ideia ir se repetir no seu poema pico que marcar esse

    perodo, a Henriada.

    Quanto ao tema da guerra, ele reincidente em Voltaire, um dos seus

    prediletos porque, segundo o filsofo, a guerra uma das condies mais certas para a

    infelicidade dos homens. E a inteno de expor os seus terrveis efeitos se perpetuou em

    sua obra com o objetivo de criar em seus leitores e espectadores o mesmo repdio moral

    que nutria pelos responsveis, pelas causas e pelas consequncias.

    Mesmo quando Voltaire celebra as glrias militares e a grandeza

    herica dos oficiais mortos em combate, ele lamenta o sangue derramado, o flagelo, a

    infelicidade, como em loge fnebre des officiers de 1748, por exemplo:

    Mais a guerra um flagelo terrvel, unindo sob esse todas as calamidades e todos os crimes, maior deve ser nosso reconhecimento a esses bravos compatriotas que pereceram para nos dar essa paz feliz que deve ser a nica finalidade da guerra.18

    Como lembra Simone Goyard-Fabre19,Voltaire usa todo o seu talento ao

    associar as narrativas dos combates, e dos seus medonhos efeitos, reflexo moral. Seu

    objetivo visvel: difundir uma opinio negativa acerca da guerra e ressaltar a

    importncia da paz. Considerada, em 1752, no Pome sur la loi naturelle, como to

    importante quanto a verdade mesma20; em 1759, no Candido, Voltaire retoma o tema

    presente na Ode sur sainte Genevive e ironiza a beleza dos efeitos militares com o

    propsito de fazer ver seus males:

    Nada era to belo, to leve, to brilhante, to bem ordenado do que os dois exrcitos. As trombetas, os pfanos, os obos, os tambores, os canhes

    18 VOLTAIRE. loge fnebre des officiers qui sont morts dans la guerre de 1741. In:_______. Les oeuvres compltes (30C). Oxford: Voltaire Foundation, 2004. p. 222. 19 Cf.: GOYARD-FABRE, S. Guerre. Paix. In: TROUSSON, Raymond; VERCRUYSSE, Jeron. (Dir.). Dictionnaire gnral de Voltaire. Paris: Honor Champion, 2003. 20 La paix enfin, la paix, que lon trouble et quon aime,/Est du prix aussi grand que la vrit mme [A paz, enfim, a paz, que se a impea e que se a ame,/ de um preo to grande quanto a verdade mesma]. VOLTAIRE. Pome sur la loi naturelle. In: _______. Mlanges. Paris: Gallimard, 1995 (Bibliothque de la Pliade). p. 287.

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    formavam uma harmonia tal que jamais a houve no inferno. Primeiro os canhes derrubam cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida, a mosquetaria varreu do melhor dos mundos uns nove a dez mil marot