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Familiaturas Do Santo Ofício, OrdensTRANSCRIPT
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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1
Viver lei da nobreza: familiaturas do Santo Ofcio, Ordens
Terceiras, cmaras e Ordem de Cristo num contexto de mobilidade social
(Minas Gerais, sculo XVIII)
Aldair Carlos RODRIGUES
Doutorando em Histria Social - Universidade de So Paulo
O ponto de partida desta comunicao a caracterizao social dos 457 familiares do
Santo Ofcio da capitania de Minas Gerais (sculo XVIII)1 por meio do mtodo
prosopogrfico. Visto que a familiatura foi obtida nessa regio principalmente por um grupo
em processo de mobilidade social ascendente, verificaremos qual era a eficcia dessa insgnia
num movimento mais amplo de busca por distino social. Qual era o valor da familiatura na
constelao de insgnias e ttulos que ofereciam distino no Antigo Regime? Alm da
familiatura, verificaremos quais outras estratgias o grupo analisado utilizou para sua
afirmao social. Ser considerada a entrada nas ordens terceiras, Ordem de Cristo e cmaras
municipais. Que estratgias eram adotadas para a penetrao em cada uma dessas
instituies? Em qual delas os sujeitos do grupo analisado entravam primeiro? O ingresso em
uma ajudava a abrir a porta de outra? Que impacto todo esse movimento tinha na construo
do viver lei da nobreza? O que significava viver lei da nobreza nessa regio da
Colnia? Como a noo do viver lei da nobreza era manipulada nesse contexto de
afirmao social?
No que diz respeito naturalidade, verificamos que a maioria absoluta dos sujeitos que
compunham a rede de familiares do Santo Ofcio de Minas era originria do norte de Portugal
do total de agentes com predominncia dos naturais do Minho.
Eles eram, em geral, filhos de lavradores caso da maioria e de oficiais mecnicos
que saam de suas terras natais em busca de melhores oportunidades de vida: queriam trilhar o
caminho da prosperidade, no caso do grupo analisado, na capitania de Minas Gerais. Eles
partiam de suas freguesias muito jovens, depois de alfabetizados, e comumente se apoiavam
em redes de parentesco e de solidariedade para se inserirem em outras regies, passando
primeiro por Lisboa e depois vindo para a Colnia, onde desembarcavam no Rio de Janeiro.
1 ANTT, IL, Livros de provises, 108-123; ANTT, HSO.
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A ocupao escolhida pelo grupo foi sobretudo a de comerciante. Eles atuavam no
abastecimento da Capitania do ouro via Rio de Janeiro, dedicando-se geralmente ao comrcio
de escravos e de fazendas secas. Depois de amealharem recursos no comrcio, parte
significativa do grupo passava a investir em lavras e escravos, fixando-se, desta forma, em
Minas.
Depois de estar 10 ou 15 anos, em mdia, na regio, eles pediam a habilitao no
Santo Ofcio: era o tempo que levavam para ascenderem economicamente. Quase todos os
indivduos estudados eram solteiros no momento em que se tornaram agentes da Inquisio e
pouqussimos se casaram, provavelmente porque tinham dificuldade de encontrar noivas em
Minas que pudessem passar pelo processo de habilitao do Santo Ofcio. Alm disso, a
historiografia revela que era comum os comerciantes permanecerem solteiros na Capitania.
Quanto ao cabedal, os processos de habilitao do grupo mostram que os pretendentes
eram relativamente abastados, embora, de modo geral, no fizessem parte da elite econmica
da Capitania, j que a maioria dos agentes possua peclios que iam, em mdia, de 2 a 8
contos de ris.
O perfil sociolgico dos indivduos que compunham a rede de familiares do Santo
Ofcio mineira revela-nos claramente um grupo em processo de mobilidade social ascendente.
O primeiro passo dado pelos sujeitos em anlise foi a obteno de recursos econmicos. Se
assim no fosse, por que no pediam a habilitao no Santo Ofcio logo que chegavam em
Minas? Eles somente o faziam depois de estarem nesta zona 10 ou 15 anos, em mdia. Alguns
candidatos ao cargo de familiar chegavam a justificar sua candidatura, dentre outros
argumentos, dizendo que eram ricos. Cosme Martins de Faria cujo processo no teve
desfecho , por exemplo, afirmou que ele suplicante deseja muito servir a Deus e a este
Santo Tribunal no ministrio de familiar para aumento e exaltao da santa f e porque na
pessoa do suplicante concorrem todos os requisitos necessrios e abastado de bens por ser
um mercador rico (...).2
Aps obterem o capital econmico, os sujeitos passavam a buscar o capital simblico,
investindo em insgnias, privilgios, enfim, em formas de dignificao e distino social.3
2Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Habilitaes Incompletas, m 15, doc. 31. Negrito nosso.
3Sobre esta relao entre mobilidade social, capital econmico e capital simblico, as nossas referncias aqui so
as anlises de Jorge Miguel de Melo Viana PEDREIRA, Os Homens de Negcio da Praa de Lisboa de Pombal
ao Vintismo (1755-1822): diferenciao, reproduo e identificao de um grupo social, Lisboa, Universidade
Nova de Lisboa, 1995. (Tese de Doutorado); Nuno Gonalo MONTEIRO, Elites e Poder: entre o Antigo
Regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais ICS-UL, 2003, pp. 37-82. No que diz respeito a conceitos e termos como capital simblico e poder simblico, ambos os historiadores tratam a mobilidade social
no contexto do Antigo Regime portugus inspirados no socilogo francs Pierre Bourdieu.
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dentro desta estratgia adotada pelo grupo em processo de mobilidade social que a familiatura
cumpre um papel relevante.
Nascidos e criados em Portugal, os reinis em anlise nunca perdiam de vista os
padres de estratificao e distino social do Antigo Regime. Depois de inseridos na
sociedade escravista colonial4, eles adaptavam seus valores ao contexto envolvente. A matriz
cultural continuava sendo portuguesa. Sobre esta questo, fazemos das palavras de Srgio
Buarque de Holanda as nossas:
sobretudo a diversidade de aptides bem ou mal afortunadas, que servir para
distribuir os vrios elementos em camadas sociais, e foroso ento que essa hierarquia se
estabelea segundo os padres ibricos e portugueses que so afinal os disponveis. Aquela
massa, pouco menos do que indiferenciada, dos primeiros tempos, vai recompor-se, na terra
de adoo, conforme tradies que lhes venham da ptria de origem.5
A importncia que os indivduos de nossa amostragem davam s formas de distino
social portuguesa fica patente em seus processos de habilitao. Depois de enriquecidos na
Colnia, podemos encontr-los enviando dinheiro e plios para as irmandades de prestgio de
suas freguesias natais. Uma testemunha das judiciais do processo de habilitao de Brs Dias
da Costa, por exemplo, informou que ele do Brasil tem mandado para a confraria do
Santssimo Sacramento desta freguesia 200 mil ris e este presente ano mandou um cofre e
um plio. Brs era natural da freguesia de Monte Alegre, Comarca de Bragana, e morava na
freguesia de So Sebastio, Termo de Mariana, tendo se tornado familiar em 1731.6
Nos vnculos que os reinis das Minas continuavam mantendo com Portugal ao longo
de suas vidas, as irmandades e as associaes leigas assistencialistas ocupavam sempre um
papel importante. Mesmo que a maioria no voltasse para o Reino, essas questes estavam
presentes at ao final de suas vidas e isso fica patente em vrios testamentos dos familiares do
Santo Ofcio da regio de Mariana. Baltazar Martins Chaves, por exemplo, legou 100$000
ris para a Santa Casa de Misericrdia da Vila de Chaves.7 Gonalo Rodrigues de Magalhes
tambm deixou de esmola 200$000 ris, em seu testamento, para a Santa Casa de Chaves.8 J
4Stuart SCHWARTZ, Segredos Internos: engenhos, e escravos na sociedade colonial (1550-1835), So Paulo,
Companhia das Letras, 1988, pp. 211-213. 5Srgio Buarque de HOLANDA, Metais e Pedras Preciosas. In: Srgio Buarque de HOLANDA (org.). In: Histria Geral da Civilizao Brasileir, So Paulo, Difel, 1960, t. I, vol. II, pp. 259-310. p. 296. 6IANTT, HSO, Brs, m. 03, doc. 48.
7AHCSM, Reg. Testamentos, livro 49, fl. 28v.
8AHCSM, Reg. Testamentos, Livro 54, fl. 170v-174v
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Domingos Fernandes deixou 400$000 ris para a Santa Casa da Ponte de Lima.9 E Joo
Vieira Aleluia destinou 200$000 ris de esmolas para as obras pias da igreja de So Lzaro do
Porto.10
Voltando familiatura, a distino social oferecida pela insgnia estava associada a
trs elementos que atraam o interesse do grupo que estudamos: (I) a prova pblica de limpeza
de sangue que o ttulo oferecia (dado o rigoroso processo de habilitao exigido), (II) os
potenciais privilgios inerentes ao ttulo, e (III) o fato de os familiares serem representantes e
servidores em potencial de uma instituio metropolitana robusta como era a Inquisio.
Segundo Veiga Torres, a Inquisio, pela figura do familiar, viu-se enredada pelas
malhas dos interesses mais prosaicos e profanos de uma sociedade que ganhava mobilidade, e
da qual, naturalmente, se sustentava e a quem servia.11
importante situar a familiatura entre outras formas distintivas obtidas pelo grupo em
estudo para, primeiramente, verificarmos as potencialidades e os limites da insgnia no
processo de diferenciao e reconhecimento sociais; em segundo lugar, para saber, em termos
de distino, o que era peculiar familiatura.
Para tanto, escolhemos tratar, mais detidamente, a entrada dos habitantes de Minas que
se tornaram familiares em duas instituies: as Ordens Terceiras e a Ordem de Cristo. No
caso da primeira, a anlise ser recortada para o Termo de Mariana e, em relao segunda,
trataremos de todos os familiares de Minas que se tornaram Cavaleiros do hbito de Cristo.
Alm dessas duas instituies, abordaremos tambm o trnsito do grupo enfocado nas
cmaras e ordenanas do termo marianense.
Ordens Terceiras
O estabelecimento das irmandades em Minas e a sua configurao social relacionam-
se ao movimento de sedimentao e estratificao da sociedade mineradora, cujo processo
ganha fora na dcada de 1730 e atinge seu pice em meados da centria.12
Com efeito, se nos
9AHCSM, Reg. Testamentos, livro 51, fl. 203v.
10AHCSM, Reg. Testamentos, livro 64, fl. 80.
11Jos Veiga TORRES, Da represso promoo social: a Inquisio como instncia legitimadora da promoo social da burguesia mercantil, Revista Crtica de Cincias Sociais, 40 (Outubro de 1994), pp. 105-35. p. 131. 12
Para compreendermos o papel das associaes religiosas leigas em Minas, como as Ordens Terceiras do Carmo
e So Francisco, a nossa referncia Caio Csar BOSCHI, Os leigos e o poder: irmandades leigas e poltica
colonizadora em Minas Gerais, So Paulo, tica, 1986; Fritz Teixeira SALLES, Associaes religiosas no ciclo
do ouro, Belo Horizonte, UFMG, Centro de Estudos Mineiros, 1963. (Coleo Estudos, 1).
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primeiros decnios do sculo XVIII, os brancos se concentravam principalmente na
irmandade do Santssimo, Rosrio e So Miguel e Almas, a partir do ano de 1750, devido
maior complexidade do processo de estratificao social, os mais abastados vo se aglutinar
sobretudo nas ordens terceiras do Carmo e de So Francisco.13
Por adotar critrios de admisso tnicos, sociais e econmicos mais rigorosos, as
ordens terceiras ofereciam mais prestgio e distino social aos seus membros, fazendo com
que pertencer a elas significasse integrar um estrato superior da sociedade escravista
colonial.14
nesse contexto de maior sedimentao e assentamento da sociedade das Minas
que devemos compreender a entrada e a distribuio dos familiares do Santo Ofcio da regio
de Mariana nas irmandades leigas.
Atravs dos testamentos dos familiares, datados, em sua maioria, da segunda metade
do sculo XVIII, encontramos informaes concernentes filiao s irmandades para 35
oficiais de nossa amostragem. Observando a distribuio dos agentes inquisitoriais em tais
instituies, a primeira constatao que nos salta aos olhos a forte presena dos familiares
nas ordens terceiras de um total de 35 agentes, apenas 3 no pertenciam s ordens terceiras
do Carmo ou de So Francisco.
Quanto aos demais 32 familiares de nossa amostragem, todos destacavam em seus
testamentos a filiao a uma das ordens terceiras carmelitas ou franciscanas, seja no que toca
ao amortalhamento e/ou sepultamento e, at mesmo, na escolha dos testamenteiros.
James Wadsworth afirmou a presena em Vila Rica da irmandade de So Pedro
Mrtir, o santo de invocao dos agentes da Inquisio, a qual agregava os familiares de
Minas.15
Na verdade, os familiares da regio de Mariana, em seus testamentos, no fazem
qualquer meno existncia da irmandade de So Pedro Mrtir na zona mineradora, o que
indica que naquela Capitania ela no existiu.
Nesta regio interior da Colnia, apesar do grande nmero de agentes inquisitoriais,
no houve esforo para fundar uma irmandade especfica para os familiares, como ocorrera
em Salvador, Rio de Janeiro e Pernambuco.16
Para os familiares de Minas, era mais
importante pertencer s irmandades locais, sobretudo as que agregavam a elite da regio. Eles
apenas celebravam a festa de So Pedro Mrtir, que foi instituda em Vila Rica pelo
13
Jnia Ferreira FURTADO, Homens de negcio: a interiorizao da metrpole e o comrcio nas Minas
Setecentistas, So Paulo, Hucitec, 1999, pp. 136-142. 14
F. T. SALES, Associaes...cit, p. 126, C. C. BOSCHI, Os Leigos... p. 20. 15James WADSWORTH, Celebrating St. Peter Martyr: The Inquisitional Brotherhood in Colonial Brazil, In: Colonial Latin American Historical Review, vol. 12, no. 02 (spring, 2003), pp. 173-227. James WADSWORTH,
Agents of Orthodoxy: inquisitional power and prestige in colonial Pernambuco, Brazil, University of Arizona,
2002, (Tese de doutorado), pp. 228-253. 16J. WADSWORTH, Celebrating cit; J. WADSWORTH, Agentscit.
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Comissrio Manuel Freire Batalha, no ano de 1733, ocasio em que os familiares vindos de
fora17 se reuniram para celebrar seu santo de invocao.
Por meio dos testamentos dos familiares, notamos que as ordens terceiras ganhavam
mais importncia entre os agentes que habitavam a cidade de Mariana, pois era nas capelas
daqueles sodalcios que eles queriam ser sepultados. Como as Ordens Terceiras do Carmo e
So Francisco agregavam as elites locais tinham condies de oferecer um ritual fnebre mais
pomposo, bem ao gosto da sociedade barroca das Minas. No caso dos familiares que
habitavam as freguesias mais afastadas do ncleo urbano principal, apesar de, em sua grande
maioria, tambm pertencerem s ordens terceiras, em geral, reivindicavam os sepultamentos
nas matrizes ou capelas das irmandades locais; porm, o corpo deveria ser amortalhado
sempre com o hbito terceiro de So Francisco ou de Nossa Senhora do Monte do Carmo.
No encontramos caso algum em que um membro da ordem terceira de So Francisco
pertencesse simultaneamente do Carmo.
Como podemos observar no quadro abaixo, 2/3 dos familiares estavam na ordem
Terceira de So Francisco, sobretudo na de Mariana nos casos em que foi possvel verificar
a sede da irmandade. A ordem terceira do Carmo apetecia menos aos agentes leigos da
Inquisio, pois apenas 1/3 se filiou a ela.18
Os familiares do Santo Ofcio de Mariana nas Ordens Terceiras19
Ocupao Ordem
Terceira de So
Francisco
Ordem Terceira
do Carmo
Homem de negcio 16 05
Vive de seu negcio 02 00
Vive de sua fazenda 00 01
Escultor 01 00
Mestre carpinteiro 00 01
Boticrio 01 00
Mineiro 03 01
Militar 01 00
Total 24 08
Fonte: Testamentos do AHCSM e AEAM.
17
IANTT, CGSO, m 04, doc. 12. 18
A localidade das ordens terceiras s quais os familiares pertenciam era a seguinte: Ordem Terceira de So
Francisco: Mariana, 06; Vila Rica, 03; Rio de Janeiro, 01; e sem mencionar a localidade, 15. No caso destes no
mencionaram a localidade, suspeitamos que quase todos estavam na de Mariana.
Ordem Terceira do Carmo: Mariana, 03; Vila Rica, 03; e sem mencionar o local, 02. 19
Obs.: em 03 casos, dos 35 testamentos localizados, o testador no pertencia a nenhuma das ordens terceiras.
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Embora no possamos precisar exatamente, o momento de entrada nas ordens terceiras
coincidiu mais ou menos com o pico da expedio de cartas de familiar para os habitantes das
Minas. Isto significa que, para o grupo focado em nossa anlise, tanto a obteno da
familiatura, como a entrada nas irmandades de maior prestgio, fazia parte de um movimento
maior: a busca por distino social.
A predominncia dos familiares de Mariana na ordem terceira de So Francisco pode
ser explicada por dois fatores. O primeiro se relaciona ao perfil ocupacional dos familiares, j
que 80% estavam ligados ao setor mercantil quando se habilitaram. No dispomos, na
historiografia, de trabalho detido sobre o perfil ocupacional dos membros das ordens terceiras
de Minas. Sales sugeriu que a Ordem Terceira de So Francisco era a irmandade dos
intelectuais e altos funcionrios, ao passo que a Ordem Terceira do Carmo englobava ou
aglutinava em seu seio, de preferncia, a classe de comerciantes.20 Jnia Furtado e Caio
Boschi endossam esta mesma tese de Sales.21
No caso de So Paulo, Maria Aparecida de
Menezes Borrego verificou significativa participao dos comerciantes na Ordem Terceira
da Penitncia de So Francisco e na Irmandade do Santssimo Sacramento. Na primeira, a
autora observou que os agentes mercantis correspondiam a 46,29 % do total de irmos que
ocuparam importantes cargos administrativos no sodalcio.22
Na regio de Mariana,
acreditamos que havia uma tendncia entre os comerciantes para estarem predominantemente
na ordem terceira de So Francisco. No estatuto deste sodalcio ficava estabelecido que a
entrada dos irmos teria como condio essencial a posse de bens de ofcio ou agncia de que
se possa comodamente sustentar. E no as tendo sero admitidos, exceto as pessoas que forem
caixeiros de lojas de fazenda seca, ou molhados, porque estes, ainda que ao presente no
tenham, contudo esto aptos para estabelecer negcio de que se possam sustentar, contanto,
que neles concorram os mais requisitos.23
A ateno dedicada aos caixeiros pelos redatores do estatuto do sodalcio um reflexo
da presena dos comerciantes, sobretudo reinis, na Ordem Terceira de So Francisco. Era
20
F. T. SALES, Associaes... cit. p. 71. Apesar do autor colocar essa afirmao na concluso do captulo em que
so analisados os aspectos sociais e econmicos da irmandade, na pgina 50, ele afirma que devido polarizao
social alcanada pelas Minas em meados dos setecentos, j existiam classes estratificadas como a dos comerciantes, a qual pertencia Ordem 3 de So Francisco. 21
J. FURTADO, Homens...cit. pp. 146-147. A autora acrescenta que essa diviso nunca foi totalmente rgida, pois dois comerciantes (...) afirmaram em seus testamentos fazer parte da Ordem Terceira de So Francisco da
Bahia ou Rio de Janeiro. p. 147; C. BOSCHI, Os Leigos... cit. p 164. 22
Maria Aparecida de MENEZES, A teia mercantil: negcios e poderes em So Paulo Colonial (1711-1765), So
Paulo, FFLCH-USP, 2007 (Tese de doutorado), pp. 152-153. 23
F. T. SALES, Associaes... cit. p. 51.
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fato comum os imigrantes portugueses iniciarem a carreira mercantil como representantes de
outros comerciantes ou de casas mercantis estabelecidas nas praas h mais tempo.
O segundo fator que explica a predominncia dos familiares na ordem terceira de So
Francisco a atuao desse grupo na fundao da irmandade. Na verdade, este fator se liga ao
primeiro, j que os agentes inquisitoriais que se destacaram na criao do sodalcio eram
homens de negcio. Entre os sete irmos que compunham a mesa administrativa, estava o
familiar Tom Dias Coelho. Ele apresentava o tpico perfil de um familiar de Minas: era
minhoto, identificava-se como homem de negcio na petio enviada ao Santo Ofcio, embora
tambm vivesse de minerar, e era solteiro. Depois de cerca de 25 anos nas Minas, habilitou-se
como familiar, em 175424, tendo afirmado em seu testamento, 20 anos, depois que (...) meu
corpo ser sepultado na capela do glorioso Serfico S. Francisco da Ordem Terceira da cidade
de Mariana na qual sou irmo (...).25
A mesa dirigente da ordem Terceira de So Francisco, da qual o familiar Tom Dias
Coelho fazia parte, elegeu Miguel Teixeira Guimares e Francisco Soares Bernardes para
serem os redatores do estatuto da irmandade. E aqui, mais uma vez, um agente leigo da
Inquisio teve destaque, pois o primeiro era familiar do Santo Oficio. 26
Miguel Teixeira
Guimares habilitou-se como familiar em 1747, quando tinha 32 anos; era minhoto e homem
de negcio; vivia de lojas de fazenda molhada e de minerar.27
Anos depois de redigir o
estatuto da mesma Ordem Terceira de So Francisco de Mariana, tal familiar voltaria a atuar
na mesma como ministro.28
A influncia exercida pelos irmos familiares na ordem terceira de So Francisco de
Mariana acabou se refletindo no seu estatuto, no qual se esclarecia que os familiares do Santo
Ofcio, juntamente com os Cavaleiros do Hbito de Cristo estavam dispensados dos
interrogatrios.29
Isso era possvel tambm porque os processos de habilitao exigidos, tanto
para a familiatura como para entrar na Ordem de Cristo, eram considerados pela sociedade do
Antigo Regime portugus como os mais rigorosos, sobretudo no que toca limpeza de
sangue.
O fato de os familiares estarem isentos dos interrogatrios para a entrada na ordem
terceira de So Francisco deve ter contribudo para a atrao que esta irmandade exerceu
24
A informao de que ele era membro do Definitrio da Ordem Terceira de So Francisco obtivemos em F. T.
SALES, Associaes... cit. p. 50. Os dados da sua habilitao em IANTT, HSO, Tom, m 05, doc. 68. 25
Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana. Registro de Testamento. Livro 47; fls 147v. 1 ofcio.
1774. 26
Citado em F. T. SALES, Associaes... cit. p. 50. 27
IANTT, HSO, Miguel, m 12, doc 202. 28
AEAM, Testamentos, 1109. 29
F. T. SALES, Associaes... cit. p. 51. Documento transcrito.
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sobre eles, em detrimento da ordem terceira do Carmo. Apesar de reconhecermos a influncia
desta iseno, acreditamos que o fato de a maioria dos familiares de Mariana ser homens de
negcio o fator que mais explica a predominncia deles na ordem terceira franciscana. Mais
do que familiares que se tornaram membros das ordens terceiras, tratava-se de arrivistas
reinis, sobretudo homens de negcio, que se tornaram agentes leigos da Inquisio e
membros da Ordem Terceira de So Francisco. Em outras palavras, os motivos que levavam
os portugueses que moravam em Mariana a procurarem a familiatura eram os mesmos que os
levavam a estar predominantemente nas ordens terceiras, sobretudo a de So Francisco. Ser
familiar e membro de tais sodalcios, portanto, faziam parte de um mesmo jogo: a busca por
distino e prestgio social.
Apesar de os familiares do Santo Ofcio de Mariana terem se aglutinado nas ordens
terceiras, elas no eram as nicas associaes religiosas leigas s quais pertenciam. Devemos
relembrar que as ordens terceiras do Carmo e de So Francisco s passaram a existir em
Mariana a partir da segunda metade do sculo XVIII. Antes disso, eles estavam presentes nas
diversas irmandades de brancos da regio, aparecendo com maior freqncia na irmandade da
Terra Santa de Jerusalm e na do Santssimo Sacramento seja a da S ou das freguesias
mais afastadas de Mariana. Outras irmandades, como, por exemplo, as do Rosrio, So
Miguel e Almas, eram mencionadas nos testamentos de uma forma secundria.
De modo geral, se um mesmo indivduo pertencia a vrias irmandades e s ordens
terceiras ao mesmo tempo, ele tendia a dar destaque, em seu testamento, s ordens terceiras.
Isto indica que, pelos motivos j mencionados acima, elas eram as associaes religiosas
leigas que ofereciam maior estima social aos seus irmos, pelo menos no momento de maior
assentamento da sociedade das Minas.
Cmaras e Ordenanas30
Diferentemente das ordens terceiras, onde os indivduos de nossa amostragem
penetraram em larga escala, nas cmaras e nas companhias de ordenanas da regio de
Mariana, eles tiveram uma baixa presena. A entrada nestas instituies dependia de uma boa
posio dentro dos jogos de poder poltico locais e no apenas da limpeza de sangue.
No caso dos familiares de Mariana, apenas 05 deles, em algum momento de suas
vidas, chegaram a ocupar cargos importantes na cmara: Caetano Alves Rodrigues (vereador,
30
Diferentemente do que ocorreria nas capitanias do Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia, em Minas no se
constituiu uma companhia militar especfica para os familiares servirem.
Sobre a organizao das companhias dos familiares no Brasil, ver J. WADSWORTH, Agents...Cit pp. 253-264.
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em 1718, e presidente, em 1721), Nicolau da Silva Bragana (vereador, em 1726), Antnio
Duarte (procurador em 1747), Paulo Rodrigues Ferreira (procurador, em 1771) e Francisco
Pais de Oliveira Leite (presidente, em 1780).31
Todos eram muito abastados no momento das
habilitaes no Santo Ofcio, possuindo, respectivamente 200 mil, 30 mil, 100 mil e 25 mil
cruzados. Quanto ao ltimo, as testemunhas apenas informam que ele era muito rico. Suas
fortunas advinham de grandes plantis de escravos, vrias lavras e roas. Os comerciantes de
nossa amostragem quase no tiveram insero na Cmara de Mariana. Dos 5 citados apenas
Antnio Duarte tinha envolvimento com essa atividade.
Diferentemente da Cmara de Mariana, a de Vila Rica parecia ser mais aberta aos
comerciantes, pelo menos aos que se tornaram familiares. Manoel Jos Veloso, comerciante
de fazendas secas, serviu de vereador da cmara e aos mais cargos distintos dela que no
ocupara seno pessoas graves.32 Jos Veloso Carmo, mercador de fazendas secas, e, mais
tarde, mineiro, serviu de vereador da cmara da dita vila [Rica], que capital e de maior
autoridade de toda a capitania.33 Alm desses, encontramos cerca de uma dezena de
familiares de Vila Rica que eram comerciantes na poca em que se habilitaram no Santo
Ofcio e entraram na cmara daquela cidade.34 Alguns agentes mercantis de outras regies
das Minas tambm conseguiram participar das Cmaras. Foi o caso do familiar Joo Furtado
Leite, habilitado em 1750, que foi algum dia comboieiro de negros, foi o ano passado
vereador na vila do Caet e, de presente, vive de minerar nas lavras em que scio de seu
primo.35 Ele seguiu aquela trajetria comum a muitos comerciantes das Minas que, em
meados do sculo XVIII, se tornaram familiares, ou seja, concomitante sua insero social,
ele abandonou a atividade mercantil e passou a viver de minerar.
31
Baseamos, aqui, na lista de vereadores, presidentes e procuradores da Cmara de Mariana publicada em:
Salomo VASCONCELOS, Vida Poltica e Social da Vila do Carmo in Revista Brasileira de Estudos Polticos, Belo Horizonte, n. 20 (jan./ 1966), pp. 195-234. Esta listagem inclui apenas os cargos de presidente,
vereador e procurador.
Sobre a relao entre prestgio social e ocupao de cargos camarrios, ver Maria Beatriz Nizza SILVA, Ser
Nobre na Colnia, So Paulo, Editora da Unesp, 200, pp. 138-148. Sobre o papel das cmaras em Minas, ver:
Russel A. J. R. WOOD, O Governo Local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural, Revista de Histria da USP, So Paulo, ano 25, v. 55 (1977), pp. 25-80. 32
IANTT, HOC, Letra M, m. 19, doc. 13; IL, Livro de Registro de Provises, Liv. 117, FL. 52v. 33
IANTT, HOC, Letra J, m. 40, doc. 04; IL, Livro de Registro de Provises, Liv. 111, Fl. 352v. 34
IANTT, IL, Livro de Registro de Provises. Obtivemos a listagem de todos os ocupantes de cargos na cmara
de Vila Rica em: Memorial Histrico-Poltico da Cmara Municipal de Ouro Preto, Ouro Preto, Ouro Preto
Ilimitada, 2004. (Memorial realizado pela Cmara Municipal de Ouro Preto).
No caso de So Paulo, durante a primeira metade do sculo XVIII, Maria Aparecida Borrego verificou uma
significativa participao dos comerciantes na cmara. M. A. M. BORREGO, A teia... cit, pp. 128-167. 35
IANTT, HSO, Joo, m. 93, doc. 1586.
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Quanto s ordenanas e outras foras militares da regio de Mariana, notamos a
entrada de uma pequena parcela dos familiares.36
Em parte, a obteno de tais postos
coincidia com a ocupao de cargos na Cmara: dos 05 familiares que foram vereadores, 03
tiveram tambm cargos nas foras militares da regio de Mariana. Alm desses, mais 08
indivduos de nossa amostragem ocuparam cargos nas foras militares do Termo de Mariana,
principalmente, nas companhias de ordenana.37
Nessas instituies marianenses, diferentemente do que ocorria na cmara,
observamos uma maior penetrao dos comerciantes. Dos 11 familiares que entraram nas
companhias militares, sobretudo nas de ordenanas, 06 exerciam alguma atividade mercantil,
enquanto os demais viviam de minerar e de suas fazendas.38
Os familiares que ocuparam cargos nas cmaras e nas ordenanas pertenciam elite
das Minas. Fato que podemos confirmar quando observamos que muitos dos que ocuparam
estes postos tambm se habilitaram na Ordem de Cristo, j que o desempenho daqueles
ofcios os ajudava a criar um histrico de servios prestados Coroa.
Ordem de Cristo
Dos smbolos de distino social obtidos pelos sujeitos em foco, o de mais difcil
acesso foi o hbito da Ordem de Cristo. Do total de 457 familiares, 23 se habilitaram para
receber o hbito de cavaleiro.39
O reduzido percentual se liga ao fato dos requisitos exigidos
para a habilitao na Ordem de Cristo serem mais restritivos do que os do Santo Ofcio.
Alm da limpeza de sangue, exigncia comum s duas instituies, outros dois
requisitos, difceis de serem transpostos, eram cobrados pela primeira. Um deles era que os
candidatos tivessem prestado servios Coroa, a qual, como recompensa/remunerao,
36
Estudando as elites de Portugal do Antigo Regime, Nuno Monteiro afirmou que as ordenanas constituam outra das instituies relevantes da sociedade local portuguesa, certamente uma das mais originais. Nuno Gonalo MONTEIRO, Elites e Poder.... cit. p. 46. Para compreendermos a importncia da ocupao de postos nas ordenanas como uma forma de distino social
em Minas, baseamos, sobretudo, em: Ana Paula Pereira COSTA, Atuao de poderes locais no Imprio
Lusitano: uma anlise do perfil das chefias dos Corpos de Ordenanas e de suas estratgias na construo de sua
autoridade. Vila Rica, 1735-1777, Rio de Janeiro, UFRJ, 2006. (Dissertao de Mestrado). Segundo a
historiadora, a ocupao de postos nas ordenanas significava produo ou reproducao de prestgio e posio de comando, bens no negligenciveis no Antigo Regime, bem como isenes de impostos e outros privilgios. p. 35. Sobre as ordenanas, ver tambm: Christiane Figueiredo Pagano MELLO, Os Corpos de Auxiliares e de
Ordenanas na Segunda Metade do Sculo XVIII: as Capitanias do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais e a
Manuteno do Imprio Portugus no Centro-Sul da Amrica, Niteri, UFF, 2002 (Tese de Doutorado). 37
IANTT, HSO, HOC, AHU/ Resgate-MG. 38
IANTT, HSO, HOC, AHU/ Resgate-MG. 39
IANTT, HOC; Chancelaria da Ordem de Cristo. Sou muitssimo grato a Fernanda Olival por ter pesquisado,
em seu banco de dados sobre as ordens militares, o nome de todos os 457 familiares de Minas para saber quais
deles tinham se tornado cavaleiros do hbito de Cristo.
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12 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
concedia a merc do hbito de Cristo.40
Depois de concedido o hbito, para serem armados
Cavaleiros, os sditos precisavam passar pela habilitao da Mesa de Conscincia e Ordens.
Pelo processo, eles tinham que provar que no tinham defeito de mecnica, ou seja, que no
tinham vivido do trabalho de suas prprias mos, exigncia esta estendida tambm aos pais e
avs dos candidatos.41
Os habitantes de Minas, que se tornaram familiares e tambm
cavaleiros do hbito de Cristo, enfrentaram problemas tpicos de grupos em mobilidade social
ascendente quando se submeteram ao processo de habilitao da Mesa de Conscincia e
Ordens, sobretudo no que se refere limpeza de mos.
Na rampa da distino social escalada pelos 23 habitantes das Minas que obtiveram a
familiatura e o hbito da Ordem de Cristo, 16 se tornaram primeiramente agentes da
Inquisio para depois se tornarem cavaleiros do hbito de Cristo. Ser familiar era um passo
importante para se tornar cavaleiro, primeiro, porque essa insgnia funcionava como um
atestado de limpeza de sangue, o que dava garantia ao candidato de que ele atenderia
tranquilamente, na ordem militar, ao requisito de ser cristo-velho. Segundo Fernanda Olival,
no se conhece, por ora, nenhum caso de familiar que tivesse reprovado nas Ordens Militares
por questes de sangue.42 E, segundo, porque, com a familiatura, eles aumentavam a sua
considerao e estima social, diferenciao esta que acabava tendo repercusso positiva
quando as testemunhas depunham a seu respeito na habilitao da Ordem de Cristo, ajudando
a compor o modo de vida que no contexto envolvente era considerado o viver lei da
nobreza.
Os poucos que conseguiram o hbito da Ordem de Cristo antes de obter a familiatura
ocupavam postos importantes nas companhias de ordenanas como o de sargento-mor e de
capito-mor ou nas outras companhias militares de Minas ou ainda cargos nas cmaras.
Devido ao exerccio destes cargos, era mais fcil conseguir a merc do hbito de Cristo
atravs de servios prprios Coroa43
, pois os que conseguiam a familiatura antes do hbito
de Cristo, levavam mais tempo para darem entrada na habilitao da Ordem militar, j que,
geralmente precisavam negociar a compra dos servios Coroa de terceiros.
40
Sobre a economia da merc, ver Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Merc e Venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001, pp. 15-38. 41
Sobre os procedimentos para se habilitar na Ordem de Cristo, ver F. OLIVAL, Fernanda. As Ordens
Militares... cit. pp. 107-137. 42
Fernanda OLIVAL, Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal in Cadernos de Estudos Sefarditas, n 4(2004), pp. 151-182, P. 166. Ainda, segundo a autora, muitos dos que no sculo XVIII tinham necessidade de dispensa de mecnica, fosse nos prprios ou nos ascendentes, eram j familiares do Santo
Ofcio quando lutavam pelo hbito. Como eram cristos-velhos, comeavam por aquela distino que,
teoricamente, no averiguava das mecnicas. In: Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares... cit. p. 377. 43
Alm de contribuir no quesito servios, a ocupao destes postos era importante porque ajudava o indivduo a exibir publicamente, ao nvel local, um viver nobremente ou viver lei da nobreza, exigncia importante para se entrar na Ordem de Cristo. Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares... cit. p. 374.
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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 13
No caso dos que se tornavam cavaleiros antes de se tornarem familiares, o fato de
possurem servios prprios no significava que teriam uma habilitao tranqila na Ordem
de Cristo. Caetano lvares Rodrigues, por exemplo, que era guarda-mor em Mariana e fora
vereador na cmara da mesma vila, enfrentou problemas com o defeito de mecnica, que
recaa sobre si e seus progenitores seu pai foi caixeiro e depois mercador de loja e o av
materno alfaiate vestimentrio. Depois de muita insistncia, atravs do envio de vrias
peties e certides que comprovavam seus servios Coroa sobretudo seu apoio ao
Governador Assumar na represso do motim de Vila Rica ocorrido em 172044
-, em 1731, ele
teve o seu defeito dispensado pelo Rei. 45
De modo geral, daqueles para os quais dispomos de dados referente ao defeito de
mecnica, verificamos que apenas um candidato no enfrentou as dispensas. Em virtude
daquela mcula, os 12 restantes tiveram que solicitar a dispensa do Rei para se habilitarem.
Joo Gonalves Fraga conseguiu a dispensa de seu defeito devido ao relevante servio
porque foi despachado, dando porm dois marinheiros para a armada, em 1732.46 Manoel
Borges da Cruz, que foi tanoeiro no Reino, ourives do ouro quando chegou em Minas, depois
comboieiro de escravos e, por fim, vivia de minerar, em 1769, conseguiu ser dispensado dos
impedimentos assim pessoais como de pais e avs dando o donativo de seis mil cruzados por
serem impedimentos muitos e alguns de grande abatimento e outros srdidos.47
A negociao que os indivduos de nossa amostragem travaram na Mesa de
Conscincia e Ordens para terem seus defeitos de mecnica dispensados revela mais uma
vez um tpico grupo em processo de mobilidade social ascendente e vidos por nobilitao.
Alguns, sobretudo aqueles que no tinham servios prprios, alm de arcar com custos do
processo de habilitao, ainda tinham que pagar as altas multas para terem seus defeitos de
mecnica dispensados.
A trajetria de vida dos indivduos que se habilitaram na Ordem de Cristo e tambm
no Santo Ofcio, grosso modo, muito parecida com aquela dos que se habilitaram somente
nesta ltima48
: eram, em sua maioria, naturais do norte de Portugal, filhos de lavradores e/ou
oficiais mecnicos, vinham para a Colnia apoiados em redes de parentesco e eram solteiros.
Ao chegar a Minas, atuavam sobretudo no setor mercantil em geral, no comrcio de
escravos e fazendas secas e depois passavam a investir na minerao. Em nmeros, o perfil
44
Laura de Mello e SOUZA. Norma e Conflito: Aspectos da Histria de Minas no sculo XVIII, Belo
Horizonte, Editora da UFMG, 1999, pp. 30-45. 45
IANTT, HOC, Letra C, m. 12, doc. 06. 46
IANTT, HOC, Letra J, m. 09, doc. 64. 47
IANTT, HOC, Letra M, m. 23, doc. 13. 48
claro que isto se deve tambm ao fato de nossa amostragem s incluir os Cavaleiros que, em algum
momento de suas vidas, se tornaram familiares do Santo Ofcio.
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ocupacional dos 23 familiares que se tornaram Cavaleiros era o seguinte: 15 eram
comerciantes, 02 eram mineiros, 02 eram militares, 01 vivia de sua fazenda e 01 era senhor de
engenho; para 02, no consta a ocupao.49
No caso dos habilitandos que eram homens de negcio, eram comuns os problemas na
habilitao por causa do defeito de mecnica, geralmente adquirido no incio de suas
carreiras, quando tinham sido caixeiros ou exercido algum ofcio mecnico, como ocorreu
com Manoel Jos Veloso, por exemplo.50
Ele conseguiu a merc do hbito de Cristo, com 12 mil ris de tena, por ter quintado
15 arrobas e 23 marcos de ouro na Real Casa de Fundio de Vila Rica desde 01/08/1755 at
31/07/1756. Quando a Mesa de Conscincia e Ordens realizou as provanas para habilit-lo
como cavaleiro do hbito de Cristo, constatou que ele teve loja de panos e baetas e,
assistindo em casa de um tio que era contratador de livros [no Rio de Janeiro], tambm vendia
alguns, o que resultou em defeito de mecnica. Alm disso, uma testemunha de seu processo,
o Pe. Manuel lvares Ribeiro, informou que ele era homem de negcio de escravos que
comprava no Rio de Janeiro para vender nas Minas (...). Outras testemunhas negaram que ele
tivesse sido comboieiro, seja de escravos ou de suas prprias mercadorias, ao declararem que
no teve o trato de comboieiro porque as fazendas que do Rio mandava para as Minas eram
nas tropas que alugava aos homens de caminho, como se pratica e estilo nas mais partes da
Amrica. Manoel Jos Veloso recorreu da deciso da Mesa de Conscincia e Ordens em
reprovar seu processo de habilitao, apoiado na quantidade de quinto pago por ele em Vila
Rica. Acatando seu argumento, o Rei concordou em dispensar o seu defeito de mecnica
em 20 de julho de 1768. 51
Outro comerciante que enfrentou semelhante impedimento por causa do incio da
carreira foi Antnio de Abreu Guimares, habilitado no Santo Ofcio em 1753 e na Ordem de
Cristo em 1765. Quando chegou s Minas, na freguesia de Carijs, comarca do Rio das
Mortes, foi trabalhador de enxada e foice e que depois comboiara pretos algum tempo do Rio
de Janeiro para as Minas e que para isto vendera as plantas que tinha roado. Depois de obter
49
IANTT, HOC.
A ocupao considerada aqui foi aquela declarada na petio ao Conselho Geral do Santo Ofcio quando eles se
candidataram ao cargo de familiar. Portanto, no consideramos a diversificao de seus investimentos ou a
mudana de ocupao ao longo de suas vidas.
No caso dos 15 comerciantes, a maioria deles atuava no comrcio de escravos e fazendas secas. Dos 15, quando
foi possvel saber, 6 diversificaram seus investimentos investindo em minerao.
50
Esta no era uma caracterstica peculiar aos cavaleiros de Minas, parece ter sido comum ao longo do sculo
XVIII: segundo Olival, o tipo ideal de cavaleiro com mecnica nele prprio estava geralmente ligado ao comrcio; era quase sempre, homem de negcios do grande trato ou caixeiro, quando recebia o hbito. Tinha, em
regra, bons recursos financeiros. Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares...cit. p. 376. 51
IANTT, HSO, Letra M, m. 19, doc. 13.
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lucro com o comrcio de escravos, ele passou tambm a ter loja de fazendas secas no arraial
dos Carijs no qual assistia e tinha outra por sua conta no Serro, para as quais ia comprar
fazendas para sortimento ao Rio de Janeiro. Esses defeitos de mecnica adquiridos no
incio da vida foram dispensados mediante o fato de ser interessado em dez aes originais
na Companhia do Gro-Par e Maranho, conforme previa o alvar pombalino de 1757.52
Como os dois comerciantes acima, Jos Veloso do Carmo enfrentou problemas em sua
habilitao na Ordem de Cristo por causa do defeito de mecnica, uma vez que iniciara sua
carreira numa loja de fazendas secas em Vila Rica, onde vendia por si e seus caixeiros.
Como aconteceu com outros comerciantes, aps a lei de 03 de dezembro de 1750, ele
conseguiu a dispensa de seu defeito porque, seis anos antes de peticionar sua habilitao na
Ordem de Cristo, abandonou o negcio e passou a minerar, o que permitiu que ele fundisse
em um s ano mais de 11 arrobas de ouro na Casa de Fundio de Vila Rica. Cotejando seu
processo de habilitao na Mesa de Conscincia e Ordens e no Santo Ofcio, percebemos que
Jos Veloso Carmo manipulou as informaes de seu passado de modo a enfrentar menos
defeitos de mecnica na Ordem de Cristo. Para esta ltima, ele informou que era filho e
neto de lavradores de suas prprias terras, porm, na habilitao do Santo Ofcio onde no
se exigia limpeza de ofcio constatamos que, na verdade, ele era filho de um
carpinteiro/serrador de madeira, neto paterno de lavrador e carpinteiro e neto materno de
fazedor de telhas e rodzios de moinho. Alm de esconder a mecnica de seus ascendentes,
ele omitiu que tinha sido alfaiate em Braga, antes de partir para o Brasil.53
Outro que escondeu a sua mecnica na Ordem de Cristo foi Manoel Dias Pereira, cujo
processo teve desfecho em 1760. Nas suas provanas para se tornar Cavaleiro, constatou-se
que seus pais e avs eram lavradores de seus bens, porm na habilitao do Santo Ofcio,
concluda em 1753, as testemunhas informaram que seu pai viveu do ofcio de alfaiate e
depois de rendas, seu av paterno era lavrador e o materno era rendeiro e tecelo. Alm disso,
no seu processo da Ordem de Cristo procurou-se enfatizar que ele vivia de minerar com seus
escravos. J no Santo Ofcio, ele aparecia como mercador de fazenda seca ocupao que,
provavelmente, teria constitudo um defeito de mecnica, j que era comum aos
52
IANTT, HOC, Letra A, m. 16, doc. 11.
Sobre o Alvar, ver Fernanda OLIVAL, O Brasil, as companhias pombalinas e a nobilitao no terceiro quartel do Setecentos in Mafalda Soares CUNHA (org.), Do Brasil Metrpole: efeitos sociais (sculos XVII-XVIII), Separata da Revista Anais da Universidade de vora, vora, n. 8 e 9 (dezembro 1998/1999), pp 47-72, pp. 73-
98. 53
IANTT, HOC, Letra L, m. 40, doc. 04. HSO, Jos, m. 106, doc. 1485.
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comerciantes desse gnero venderem por si prprios em suas lojas, pelo menos no incio da
carreira.54
No caso de grupos em processo de mobilidade social ascendente, parece ter sido usual
este tipo de manipulao para tentar esconder o passado mecnico diante da Mesa de
Conscincia e Ordens ou, pelo menos, para buscar diminuir a incidncia do defeito, com
vistas a facilitar a obteno da dispensa rgia. Em relao aos que se tornavam familiares
antes de se tornarem Cavaleiros, caso da maioria, eles solicitavam ao Conselho Geral do
Santo Ofcio certides de como eram familiares para provar Mesa de Conscincia e
Ordens que eram cristos-velhos ou para comprovar suas filiaes. Como na Inquisio a
mecnica no era um entrave, os Comissrios registravam, com alguma exatido, a ocupao
dos pais e avs dos familiares, fato que tinha conseqncias negativas quando da habilitao
na Ordem de Cristo.55
Alguns eram bem sucedidos e conseguiam esconder o passado
mecnico declarado no Santo Ofcio, mas outros no.
Outra caracterstica da habilitao na Ordem de Cristo do grupo em anlise o fato de
a maioria ter comprado de terceiros os servios que geraram a merc do hbito de Cristo pela
qual lutavam. Segundo Olival, os principais compradores de hbitos, sobretudo no sculo
XVIII, eram pessoas cuja ascenso se esboara recentemente; tinham, por isso, como mcula
alguma mecnica na gerao dos pais e/ ou dos avs; por vezes at o prprio candidato era
acusado pela Mesa de Conscincia e Ordens de ser portador do defeito de mecnica.56
Pelos dados obtidos quanto aos servios que geraram a merc do hbito para 13 cavaleiros,
verificamos que 08 compraram os servios Coroa; 04 obtiveram a merc do hbito por
servios prprios e 01 a obteve atravs de servios prprios e alheios.57
Quanto distribuio dos hbitos da Ordem de Cristo por comarca, a de Vila Rica foi
a que mais contou com cavaleiros: 17, o que representa quase do total sendo que 10
residiam no termo de Vila Rica e 07 no de Mariana. No que se refere s outras comarcas, Rio
das Mortes aparece com 04 cavaleiros, Serro com 01 e Rio das Velhas tambm com 01.
*****
Apesar das barreiras colocadas diante de um grupo em processo de mobilidade social
ascendente, verificamos que vrios indivduos de nossa amostragem conseguiram atingir o
54
IANTT, HOC, Letra M, m. 10, doc. 97; IANTT, HSO, Manoel, m. 154, doc. 1575. 55
Sobre a manipulao das instituies do Antigo Regime portugus por indivduos em busca de distincao e
nobilitao, ver Evaldo Cabral de MELLO, O Nome e o Sangue: uma fraude genealgica no Pernambuco
Colonial, So Paulo, Companhia das Letras, 1989. 56
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares...cit, p. 269. Sobre a venalidade/ mercado de hbitos das ordens militares, ver tambm pp. 237-282. 57
IANTT, HOC; Chancelaria da Ordem de Cristo.
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topo da hierarquia das insgnias que ofereciam distino social em Minas colonial. Dadas as
caractersticas do conjunto que logrou sucesso, o que mais nos chama a ateno o papel
exercido pelo comrcio de abastecimento da regio mineradora enquanto mola propulsora da
mobilidade social e a minerao como fator de acomodao do indivduo na regio, pelo
menos at meados do sculo XVIII.
Da mesma forma que a atividade mercantil possibilitou que os indivduos de nossa
amostragem obtivessem a familiatura, permitiu tambm que uma pequena parcela deles
alcanasse o topo da hierarquia dos smbolos de distino social na zona mineradora. A
maioria daqueles que entraram na Ordem de Cristo, por exemplo, dedicavam-se ao comrcio,
pelo menos at conseguirem recursos suficientes para se estabelecerem localmente atravs da
minerao.
As estratgias de afirmao social adotadas pelo grupo passavam por um pesado
investimento no parecer. Procurava-se tratar lei da nobreza, era assim que o esforo
para incrementar a aparncia e o modo de vida era traduzido nas habilitaes ao Santo Ofcio
e ordem de Cristo. Em Minas, o viver lei da nobreza era entendido como andar a cavalo,
servir-se de escravos, usar casaca, cabeleira, espadim, ser asseado e ocupar os cargos da
governana local. A construo da boa reputao nesse nvel regional era importante para a
obteno de ganhos no centro quando se candidatava s insgnias emitidas pelas instituies
tpicas do Antigo Regime portugus. Como afirmou Olival, analisando o caso das Ordens
Militares, a ascenso protagonizada ao nvel concelhio podia ter efeitos nas pretenses
defendidas no centro. (OLIVAL, 2001: 374)
O ideal de estilo de vida referido aparece nos depoimentos das testemunhas filtrado,
obviamente, pelos agentes que realizavam os interrogatrios e/ ou nos pareceres que os
comissrios davam a cada etapa das diligncias58
. Por exemplo, um dos depoentes do
processo de Antonio Pinto dos Santos, habilitado em 1753, afirmou que ele trata com
limpeza, com seus cavalos e pajem. Na habilitao de Manoel Francisco Peixoto consta que
ele vivia com bom trato, de cavalo e pajem. J no processo de Andr Ferreira Fialho, lemos
que ele vive limpamente com seus cavalos de estrebaria e escravos que o acompanham.
Outra testemunha acrescentou que ele tinha pajens. Ter criados como acompanhante (ou
escravos nas mesmas funes) dava notrio status, patente aos olhos de todos na rua. Atravs
da habilitao de Amaro Romeiro da Costa, sabemos que ele possua seu cavalo para andar.
58
No caso do Santo Ofcio, as menes ao estilo de vida dos candidatos aparecem relacionadas ao item do
interrogatrio que perguntava se o habilitando pessoa de bons procedimentos, vida e costumes, capaz de ser encarregado de negcios de importncia e segredo e de servir ao santo ofcio no cargo de familiar, se vive
limpamente e com bom trato, que cabedal ter de seu ou sido, se o negcio de que trata tira lucros para passar
com limpeza e asseio, se sabe ler e escrever e que anos ter de idade. ANTT, TSO/CG/HSO.
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Um depoente, em 1754, referindo-se ao comerciante Tom Dias Coelho, afirmou que ele era
rico e trata lei da nobreza. O comissrio Geraldo Jos de Abranches, de forma muito
perspicaz, afirmou, no parecer que deu ao fim das diligncias de capacidade do processo de
habilitao de Antonio Gonalves Pereira, mercador de secos e molhados, que este ltimo se
tratava com limpeza, ainda que havera dois anos somente que principiou a tratar-se de
casaca, cabeleira e espadim 59. Portanto, o minhoto Antonio Gonalves Pereira, filho de
lavradores, depois de ter amealhado recursos atravs do comrcio de fazendas secas e
molhadas em Minas, procurou tratar-se lei da nobreza, usando casaca, cabeleira e
espadim. Foi justamente nesse momento de sua trajetria que ele se candidatou ao cargo de
familiar do Santo Ofcio.
Colocadas as principais formas de distino social obtidas pelo grupo que analisamos
dentro de uma hierarquia, conclumos que, na sua base estava a participao nas associaes
religiosas leigas, sobretudo as ordens terceiras, e, logo acima, a familiatura.
Comparando a obteno da familiatura com a entrada nas ordens terceiras, conclumos
que esta ltima era acessvel a todos os indivduos da nossa amostragem que quisessem ser
irmos terceiros do Carmo ou de So Francisco. Portanto, de todas as formas de distino
consideradas aqui, a entrada nesses sodalcios era a que possua menos valor simblico.
Para ser apenas familiar do Santo Ofcio, teoricamente, o candidato no precisava
estabelecer relaes polticas ao nvel local, como no caso das ordenanas ou cmaras, nem
ter limpeza de ofcio, como na Ordem de Cristo.
Numa posio intermediria, ficava a ocupao de postos nas ordenanas e nas
Cmaras. No topo desta hierarquia, estava o hbito da Ordem de Cristo que, por ser o mais
difcil de se conseguir, era tambm o que oferecia maior distino social.
Em termos de projeo social, alm da inegvel repercusso local, a familiatura e o
hbito da Ordem de Cristo ofereciam distino ao nvel do Imprio portugus. J a distino
obtida atravs da entrada nas ordens terceiras, da ocupao de postos nas companhias de
Ordenanas e nas cmaras teria uma eficcia mais local.
Embora variassem na escala do valor simblico, todas essas formas de distino
faziam parte de um mesmo jogo social e, por isso, uma acabava influenciando a obteno da
outra, sobretudo no que dependia da considerao pblica do indivduo. Quem tinha ocupado
cargo nas cmaras, por exemplo, aproveitava o fato de ter servido os cargos da repblica
59
Respectivamente: ANTT, TSO/CG/HSO, Antonio, m 118, doc 2028; Manoel, m 124, doc 1951; Andr, m
11, doc. 174; Amaro, m 03, doc 49; Tom, m 05, doc. 68; Antnio, m. 128, doc. 2157. Negrito nosso.
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para argumentar que vivia limpamente e lei da nobreza. A familiatura era utilizada para,
alm da estima pblica que oferecia, provar que o indivduo era bem reputado na limpeza de
sangue. No mundo com valores de Antigo Regime, o parecer, a forma de tratamento
desempenhavam um papel fundamental na demarcao dos lugares dos indivduos na
sociedade.
Enfocando a familiatura dentro da constelao de insgnias e smbolos de distino
social em voga nas Minas setecentistas, conclumos que, para o grupo em anlise, ela era
relativamente acessvel, j que o principal requisito para a habilitao no Santo Ofcio era ser
limpo de sangue.
Pensando nas insgnias ao longo da vida dos indivduos, temos a medalha de familiar
do Santo Ofcio, o hbito das Ordens Terceiras e o hbito da Ordem de Cristo como aquelas
que poderiam durar para o resto da vida dos que as obtivessem. Por outro lado, a ocupao de
cargos nas cmaras e nas ordenanas tinham prazo determinado para acabar. Portanto, desse
ponto de vista, a familiatura oferecia uma distino estvel, que no ficava merc da
configurao do poder local, fato que certamente acrescentava-lhe valor simblico.
A familiatura diferenciava-se de todas as insgnias acima porque ela era a nica que
oferecia aos seus postulantes a autoridade de uma instituio metropolitana do porte da
Inquisio. Alm do prestgio de representarem aquela instituio, os familiares poderiam
manipular a autoridade inquisitorial, de forma indevida, a favor de seus interesses prprios. O
ttulo dava-lhes poder no mbito local.
Quanto hierarquia de insgnias e smbolos de distino social, de modo geral, a
tendncia era que, primeiramente, os habitantes das Minas em anlise entrassem nas ordens
terceiras; depois obtivessem postos nas ordenanas, a familiatura, cargos nas cmaras; por
fim, a Ordem de Cristo. Podemos considerar os poucos indivduos que conseguiram percorrer
todo esse percurso como aqueles que pertenciam elite local da zona mineradora.
A escalada da distino social em Minas, de maneira geral, no se diferenciava muito
do resto da Colnia. No Recife, entre 1713 e 1738, segundo Maria Beatriz Nizza da Silva
apoiada no trabalho de Jos Antnio Gonalves de Mello podemos constatar um certo
padro no processo de nobilitao: postos de ordenana, familiatura, cargo municipal e,
ocasionalmente, Ordem de Cristo.60
Por fim, podemos dizer que a maioria dos indivduos de nossa amostragem se
contentou com a familiatura e a entrada nas irmandades de prestgio. As outras formas de
distino social, nomeadamente, o ingresso nas cmaras, nas ordenanas e na Ordem de
60
SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser Nobre na Colnia. So Paulo: Editora da Unesp, 2005. p. 161.
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Aldair Carlos Rodrigues
20 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
Cristo, dependia de uma boa relao com o poder poltico local e de uma posio econmica
mais elevada. Como vimos, a maioria dos familiares que estudamos no esteve em condies
de atender quelas exigncias: eles eram pequenos e mdios comerciantes, com cabedais
variando, em mdia, de 02 a 08 contos de ris. Os poucos indivduos que galgaram aquelas
posies ligadas ao poder poltico cmaras, ordenanas e hbito da Ordem de Cristo eram
os mais ricos de nossa amostragem e talvez estivessem entre os mais abastados das Minas.