viver à lei da nobreza - familiaturas do santo ofício, ordens

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 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1 Viver à lei da nobreza: familiaturas do Santo Ofício, Ordens Terceiras, câmaras e Ordem de Cristo num contexto de mobilidade social (Minas Gerais, século XVIII) Aldair Carlos R ODRIGUES Doutorando em História Social - Universidade de São Paulo [email protected]  O ponto de partida desta comunicação é a caracterização social dos 457 familiares do Santo Ofício da capitania de Minas Gerais (século XVIII) 1  por meio do método  prosopográfico . Visto que a familiatura foi obtida nessa região principalmente por um grupo em processo de mobilidade social ascendente, verificaremos qual era a eficácia dessa insígnia num movimento mais amplo de busca por distinção social. Qual era o valor da familiatura na constelação de insígnias e títulos que ofereciam distinção no Antigo Regime? Além da familiatura, verificaremos quais outras estratégias o grupo analisado utilizou para sua afirmação social. Será considerada a entrada nas ordens terceiras, Ordem de Cristo e câmaras municipais. Que estratégias eram adotadas para a penetração em cada uma dessas instituições? Em qual delas os sujeitos do grupo analisado entravam primeiro? O ingresso em uma ajudava a abrir a porta de outra? Que impacto todo esse movimento tinha na construção do “viver à lei da nobreza”? O que significava “viver à lei da nobreza” nessa região da Colônia? Como a noção do “viver à lei da nobreza” era manipulada nesse contexto de afirmação social?  No que diz res peito à naturalidade , verificamos que a maioria absoluta d os sujeitos que compunham a rede de familiares do Santo Ofício de Minas era originária do norte de Portugal    ¾ do total de agentes    com predominância dos naturais do Mi nho. Eles eram, em geral, filhos de lavradores    caso da maioria    e de oficiais mecânicos que saíam de suas terras natais em busca de melhores oportunidades de vida: queriam trilhar o caminho da prosperidade, no caso do grupo analisado, na capitania de Minas Gerais. Eles  partiam de suas freguesias muito jovens, depois de alfabetizados, e comumente se apoiavam em redes de parentesco e de solidariedade para se inserirem em outras regiões, passando  primeiro por Lisboa e depois vindo para a Colônia, o nde desem barcavam no Rio de Janeiro. 1  ANTT, IL, Livros de provisões, 108-123; ANTT, HSO.

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Familiaturas Do Santo Ofício, Ordens

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  • Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

    Viver lei da nobreza: familiaturas do Santo Ofcio, Ordens

    Terceiras, cmaras e Ordem de Cristo num contexto de mobilidade social

    (Minas Gerais, sculo XVIII)

    Aldair Carlos RODRIGUES

    Doutorando em Histria Social - Universidade de So Paulo

    [email protected]

    O ponto de partida desta comunicao a caracterizao social dos 457 familiares do

    Santo Ofcio da capitania de Minas Gerais (sculo XVIII)1 por meio do mtodo

    prosopogrfico. Visto que a familiatura foi obtida nessa regio principalmente por um grupo

    em processo de mobilidade social ascendente, verificaremos qual era a eficcia dessa insgnia

    num movimento mais amplo de busca por distino social. Qual era o valor da familiatura na

    constelao de insgnias e ttulos que ofereciam distino no Antigo Regime? Alm da

    familiatura, verificaremos quais outras estratgias o grupo analisado utilizou para sua

    afirmao social. Ser considerada a entrada nas ordens terceiras, Ordem de Cristo e cmaras

    municipais. Que estratgias eram adotadas para a penetrao em cada uma dessas

    instituies? Em qual delas os sujeitos do grupo analisado entravam primeiro? O ingresso em

    uma ajudava a abrir a porta de outra? Que impacto todo esse movimento tinha na construo

    do viver lei da nobreza? O que significava viver lei da nobreza nessa regio da

    Colnia? Como a noo do viver lei da nobreza era manipulada nesse contexto de

    afirmao social?

    No que diz respeito naturalidade, verificamos que a maioria absoluta dos sujeitos que

    compunham a rede de familiares do Santo Ofcio de Minas era originria do norte de Portugal

    do total de agentes com predominncia dos naturais do Minho.

    Eles eram, em geral, filhos de lavradores caso da maioria e de oficiais mecnicos

    que saam de suas terras natais em busca de melhores oportunidades de vida: queriam trilhar o

    caminho da prosperidade, no caso do grupo analisado, na capitania de Minas Gerais. Eles

    partiam de suas freguesias muito jovens, depois de alfabetizados, e comumente se apoiavam

    em redes de parentesco e de solidariedade para se inserirem em outras regies, passando

    primeiro por Lisboa e depois vindo para a Colnia, onde desembarcavam no Rio de Janeiro.

    1 ANTT, IL, Livros de provises, 108-123; ANTT, HSO.

  • Aldair Carlos Rodrigues

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    A ocupao escolhida pelo grupo foi sobretudo a de comerciante. Eles atuavam no

    abastecimento da Capitania do ouro via Rio de Janeiro, dedicando-se geralmente ao comrcio

    de escravos e de fazendas secas. Depois de amealharem recursos no comrcio, parte

    significativa do grupo passava a investir em lavras e escravos, fixando-se, desta forma, em

    Minas.

    Depois de estar 10 ou 15 anos, em mdia, na regio, eles pediam a habilitao no

    Santo Ofcio: era o tempo que levavam para ascenderem economicamente. Quase todos os

    indivduos estudados eram solteiros no momento em que se tornaram agentes da Inquisio e

    pouqussimos se casaram, provavelmente porque tinham dificuldade de encontrar noivas em

    Minas que pudessem passar pelo processo de habilitao do Santo Ofcio. Alm disso, a

    historiografia revela que era comum os comerciantes permanecerem solteiros na Capitania.

    Quanto ao cabedal, os processos de habilitao do grupo mostram que os pretendentes

    eram relativamente abastados, embora, de modo geral, no fizessem parte da elite econmica

    da Capitania, j que a maioria dos agentes possua peclios que iam, em mdia, de 2 a 8

    contos de ris.

    O perfil sociolgico dos indivduos que compunham a rede de familiares do Santo

    Ofcio mineira revela-nos claramente um grupo em processo de mobilidade social ascendente.

    O primeiro passo dado pelos sujeitos em anlise foi a obteno de recursos econmicos. Se

    assim no fosse, por que no pediam a habilitao no Santo Ofcio logo que chegavam em

    Minas? Eles somente o faziam depois de estarem nesta zona 10 ou 15 anos, em mdia. Alguns

    candidatos ao cargo de familiar chegavam a justificar sua candidatura, dentre outros

    argumentos, dizendo que eram ricos. Cosme Martins de Faria cujo processo no teve

    desfecho , por exemplo, afirmou que ele suplicante deseja muito servir a Deus e a este

    Santo Tribunal no ministrio de familiar para aumento e exaltao da santa f e porque na

    pessoa do suplicante concorrem todos os requisitos necessrios e abastado de bens por ser

    um mercador rico (...).2

    Aps obterem o capital econmico, os sujeitos passavam a buscar o capital simblico,

    investindo em insgnias, privilgios, enfim, em formas de dignificao e distino social.3

    2Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Habilitaes Incompletas, m 15, doc. 31. Negrito nosso.

    3Sobre esta relao entre mobilidade social, capital econmico e capital simblico, as nossas referncias aqui so

    as anlises de Jorge Miguel de Melo Viana PEDREIRA, Os Homens de Negcio da Praa de Lisboa de Pombal

    ao Vintismo (1755-1822): diferenciao, reproduo e identificao de um grupo social, Lisboa, Universidade

    Nova de Lisboa, 1995. (Tese de Doutorado); Nuno Gonalo MONTEIRO, Elites e Poder: entre o Antigo

    Regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais ICS-UL, 2003, pp. 37-82. No que diz respeito a conceitos e termos como capital simblico e poder simblico, ambos os historiadores tratam a mobilidade social

    no contexto do Antigo Regime portugus inspirados no socilogo francs Pierre Bourdieu.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 3

    dentro desta estratgia adotada pelo grupo em processo de mobilidade social que a familiatura

    cumpre um papel relevante.

    Nascidos e criados em Portugal, os reinis em anlise nunca perdiam de vista os

    padres de estratificao e distino social do Antigo Regime. Depois de inseridos na

    sociedade escravista colonial4, eles adaptavam seus valores ao contexto envolvente. A matriz

    cultural continuava sendo portuguesa. Sobre esta questo, fazemos das palavras de Srgio

    Buarque de Holanda as nossas:

    sobretudo a diversidade de aptides bem ou mal afortunadas, que servir para

    distribuir os vrios elementos em camadas sociais, e foroso ento que essa hierarquia se

    estabelea segundo os padres ibricos e portugueses que so afinal os disponveis. Aquela

    massa, pouco menos do que indiferenciada, dos primeiros tempos, vai recompor-se, na terra

    de adoo, conforme tradies que lhes venham da ptria de origem.5

    A importncia que os indivduos de nossa amostragem davam s formas de distino

    social portuguesa fica patente em seus processos de habilitao. Depois de enriquecidos na

    Colnia, podemos encontr-los enviando dinheiro e plios para as irmandades de prestgio de

    suas freguesias natais. Uma testemunha das judiciais do processo de habilitao de Brs Dias

    da Costa, por exemplo, informou que ele do Brasil tem mandado para a confraria do

    Santssimo Sacramento desta freguesia 200 mil ris e este presente ano mandou um cofre e

    um plio. Brs era natural da freguesia de Monte Alegre, Comarca de Bragana, e morava na

    freguesia de So Sebastio, Termo de Mariana, tendo se tornado familiar em 1731.6

    Nos vnculos que os reinis das Minas continuavam mantendo com Portugal ao longo

    de suas vidas, as irmandades e as associaes leigas assistencialistas ocupavam sempre um

    papel importante. Mesmo que a maioria no voltasse para o Reino, essas questes estavam

    presentes at ao final de suas vidas e isso fica patente em vrios testamentos dos familiares do

    Santo Ofcio da regio de Mariana. Baltazar Martins Chaves, por exemplo, legou 100$000

    ris para a Santa Casa de Misericrdia da Vila de Chaves.7 Gonalo Rodrigues de Magalhes

    tambm deixou de esmola 200$000 ris, em seu testamento, para a Santa Casa de Chaves.8 J

    4Stuart SCHWARTZ, Segredos Internos: engenhos, e escravos na sociedade colonial (1550-1835), So Paulo,

    Companhia das Letras, 1988, pp. 211-213. 5Srgio Buarque de HOLANDA, Metais e Pedras Preciosas. In: Srgio Buarque de HOLANDA (org.). In: Histria Geral da Civilizao Brasileir, So Paulo, Difel, 1960, t. I, vol. II, pp. 259-310. p. 296. 6IANTT, HSO, Brs, m. 03, doc. 48.

    7AHCSM, Reg. Testamentos, livro 49, fl. 28v.

    8AHCSM, Reg. Testamentos, Livro 54, fl. 170v-174v

  • Aldair Carlos Rodrigues

    4 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    Domingos Fernandes deixou 400$000 ris para a Santa Casa da Ponte de Lima.9 E Joo

    Vieira Aleluia destinou 200$000 ris de esmolas para as obras pias da igreja de So Lzaro do

    Porto.10

    Voltando familiatura, a distino social oferecida pela insgnia estava associada a

    trs elementos que atraam o interesse do grupo que estudamos: (I) a prova pblica de limpeza

    de sangue que o ttulo oferecia (dado o rigoroso processo de habilitao exigido), (II) os

    potenciais privilgios inerentes ao ttulo, e (III) o fato de os familiares serem representantes e

    servidores em potencial de uma instituio metropolitana robusta como era a Inquisio.

    Segundo Veiga Torres, a Inquisio, pela figura do familiar, viu-se enredada pelas

    malhas dos interesses mais prosaicos e profanos de uma sociedade que ganhava mobilidade, e

    da qual, naturalmente, se sustentava e a quem servia.11

    importante situar a familiatura entre outras formas distintivas obtidas pelo grupo em

    estudo para, primeiramente, verificarmos as potencialidades e os limites da insgnia no

    processo de diferenciao e reconhecimento sociais; em segundo lugar, para saber, em termos

    de distino, o que era peculiar familiatura.

    Para tanto, escolhemos tratar, mais detidamente, a entrada dos habitantes de Minas que

    se tornaram familiares em duas instituies: as Ordens Terceiras e a Ordem de Cristo. No

    caso da primeira, a anlise ser recortada para o Termo de Mariana e, em relao segunda,

    trataremos de todos os familiares de Minas que se tornaram Cavaleiros do hbito de Cristo.

    Alm dessas duas instituies, abordaremos tambm o trnsito do grupo enfocado nas

    cmaras e ordenanas do termo marianense.

    Ordens Terceiras

    O estabelecimento das irmandades em Minas e a sua configurao social relacionam-

    se ao movimento de sedimentao e estratificao da sociedade mineradora, cujo processo

    ganha fora na dcada de 1730 e atinge seu pice em meados da centria.12

    Com efeito, se nos

    9AHCSM, Reg. Testamentos, livro 51, fl. 203v.

    10AHCSM, Reg. Testamentos, livro 64, fl. 80.

    11Jos Veiga TORRES, Da represso promoo social: a Inquisio como instncia legitimadora da promoo social da burguesia mercantil, Revista Crtica de Cincias Sociais, 40 (Outubro de 1994), pp. 105-35. p. 131. 12

    Para compreendermos o papel das associaes religiosas leigas em Minas, como as Ordens Terceiras do Carmo

    e So Francisco, a nossa referncia Caio Csar BOSCHI, Os leigos e o poder: irmandades leigas e poltica

    colonizadora em Minas Gerais, So Paulo, tica, 1986; Fritz Teixeira SALLES, Associaes religiosas no ciclo

    do ouro, Belo Horizonte, UFMG, Centro de Estudos Mineiros, 1963. (Coleo Estudos, 1).

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 5

    primeiros decnios do sculo XVIII, os brancos se concentravam principalmente na

    irmandade do Santssimo, Rosrio e So Miguel e Almas, a partir do ano de 1750, devido

    maior complexidade do processo de estratificao social, os mais abastados vo se aglutinar

    sobretudo nas ordens terceiras do Carmo e de So Francisco.13

    Por adotar critrios de admisso tnicos, sociais e econmicos mais rigorosos, as

    ordens terceiras ofereciam mais prestgio e distino social aos seus membros, fazendo com

    que pertencer a elas significasse integrar um estrato superior da sociedade escravista

    colonial.14

    nesse contexto de maior sedimentao e assentamento da sociedade das Minas

    que devemos compreender a entrada e a distribuio dos familiares do Santo Ofcio da regio

    de Mariana nas irmandades leigas.

    Atravs dos testamentos dos familiares, datados, em sua maioria, da segunda metade

    do sculo XVIII, encontramos informaes concernentes filiao s irmandades para 35

    oficiais de nossa amostragem. Observando a distribuio dos agentes inquisitoriais em tais

    instituies, a primeira constatao que nos salta aos olhos a forte presena dos familiares

    nas ordens terceiras de um total de 35 agentes, apenas 3 no pertenciam s ordens terceiras

    do Carmo ou de So Francisco.

    Quanto aos demais 32 familiares de nossa amostragem, todos destacavam em seus

    testamentos a filiao a uma das ordens terceiras carmelitas ou franciscanas, seja no que toca

    ao amortalhamento e/ou sepultamento e, at mesmo, na escolha dos testamenteiros.

    James Wadsworth afirmou a presena em Vila Rica da irmandade de So Pedro

    Mrtir, o santo de invocao dos agentes da Inquisio, a qual agregava os familiares de

    Minas.15

    Na verdade, os familiares da regio de Mariana, em seus testamentos, no fazem

    qualquer meno existncia da irmandade de So Pedro Mrtir na zona mineradora, o que

    indica que naquela Capitania ela no existiu.

    Nesta regio interior da Colnia, apesar do grande nmero de agentes inquisitoriais,

    no houve esforo para fundar uma irmandade especfica para os familiares, como ocorrera

    em Salvador, Rio de Janeiro e Pernambuco.16

    Para os familiares de Minas, era mais

    importante pertencer s irmandades locais, sobretudo as que agregavam a elite da regio. Eles

    apenas celebravam a festa de So Pedro Mrtir, que foi instituda em Vila Rica pelo

    13

    Jnia Ferreira FURTADO, Homens de negcio: a interiorizao da metrpole e o comrcio nas Minas

    Setecentistas, So Paulo, Hucitec, 1999, pp. 136-142. 14

    F. T. SALES, Associaes...cit, p. 126, C. C. BOSCHI, Os Leigos... p. 20. 15James WADSWORTH, Celebrating St. Peter Martyr: The Inquisitional Brotherhood in Colonial Brazil, In: Colonial Latin American Historical Review, vol. 12, no. 02 (spring, 2003), pp. 173-227. James WADSWORTH,

    Agents of Orthodoxy: inquisitional power and prestige in colonial Pernambuco, Brazil, University of Arizona,

    2002, (Tese de doutorado), pp. 228-253. 16J. WADSWORTH, Celebrating cit; J. WADSWORTH, Agentscit.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    6 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    Comissrio Manuel Freire Batalha, no ano de 1733, ocasio em que os familiares vindos de

    fora17 se reuniram para celebrar seu santo de invocao.

    Por meio dos testamentos dos familiares, notamos que as ordens terceiras ganhavam

    mais importncia entre os agentes que habitavam a cidade de Mariana, pois era nas capelas

    daqueles sodalcios que eles queriam ser sepultados. Como as Ordens Terceiras do Carmo e

    So Francisco agregavam as elites locais tinham condies de oferecer um ritual fnebre mais

    pomposo, bem ao gosto da sociedade barroca das Minas. No caso dos familiares que

    habitavam as freguesias mais afastadas do ncleo urbano principal, apesar de, em sua grande

    maioria, tambm pertencerem s ordens terceiras, em geral, reivindicavam os sepultamentos

    nas matrizes ou capelas das irmandades locais; porm, o corpo deveria ser amortalhado

    sempre com o hbito terceiro de So Francisco ou de Nossa Senhora do Monte do Carmo.

    No encontramos caso algum em que um membro da ordem terceira de So Francisco

    pertencesse simultaneamente do Carmo.

    Como podemos observar no quadro abaixo, 2/3 dos familiares estavam na ordem

    Terceira de So Francisco, sobretudo na de Mariana nos casos em que foi possvel verificar

    a sede da irmandade. A ordem terceira do Carmo apetecia menos aos agentes leigos da

    Inquisio, pois apenas 1/3 se filiou a ela.18

    Os familiares do Santo Ofcio de Mariana nas Ordens Terceiras19

    Ocupao Ordem

    Terceira de So

    Francisco

    Ordem Terceira

    do Carmo

    Homem de negcio 16 05

    Vive de seu negcio 02 00

    Vive de sua fazenda 00 01

    Escultor 01 00

    Mestre carpinteiro 00 01

    Boticrio 01 00

    Mineiro 03 01

    Militar 01 00

    Total 24 08

    Fonte: Testamentos do AHCSM e AEAM.

    17

    IANTT, CGSO, m 04, doc. 12. 18

    A localidade das ordens terceiras s quais os familiares pertenciam era a seguinte: Ordem Terceira de So

    Francisco: Mariana, 06; Vila Rica, 03; Rio de Janeiro, 01; e sem mencionar a localidade, 15. No caso destes no

    mencionaram a localidade, suspeitamos que quase todos estavam na de Mariana.

    Ordem Terceira do Carmo: Mariana, 03; Vila Rica, 03; e sem mencionar o local, 02. 19

    Obs.: em 03 casos, dos 35 testamentos localizados, o testador no pertencia a nenhuma das ordens terceiras.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 7

    Embora no possamos precisar exatamente, o momento de entrada nas ordens terceiras

    coincidiu mais ou menos com o pico da expedio de cartas de familiar para os habitantes das

    Minas. Isto significa que, para o grupo focado em nossa anlise, tanto a obteno da

    familiatura, como a entrada nas irmandades de maior prestgio, fazia parte de um movimento

    maior: a busca por distino social.

    A predominncia dos familiares de Mariana na ordem terceira de So Francisco pode

    ser explicada por dois fatores. O primeiro se relaciona ao perfil ocupacional dos familiares, j

    que 80% estavam ligados ao setor mercantil quando se habilitaram. No dispomos, na

    historiografia, de trabalho detido sobre o perfil ocupacional dos membros das ordens terceiras

    de Minas. Sales sugeriu que a Ordem Terceira de So Francisco era a irmandade dos

    intelectuais e altos funcionrios, ao passo que a Ordem Terceira do Carmo englobava ou

    aglutinava em seu seio, de preferncia, a classe de comerciantes.20 Jnia Furtado e Caio

    Boschi endossam esta mesma tese de Sales.21

    No caso de So Paulo, Maria Aparecida de

    Menezes Borrego verificou significativa participao dos comerciantes na Ordem Terceira

    da Penitncia de So Francisco e na Irmandade do Santssimo Sacramento. Na primeira, a

    autora observou que os agentes mercantis correspondiam a 46,29 % do total de irmos que

    ocuparam importantes cargos administrativos no sodalcio.22

    Na regio de Mariana,

    acreditamos que havia uma tendncia entre os comerciantes para estarem predominantemente

    na ordem terceira de So Francisco. No estatuto deste sodalcio ficava estabelecido que a

    entrada dos irmos teria como condio essencial a posse de bens de ofcio ou agncia de que

    se possa comodamente sustentar. E no as tendo sero admitidos, exceto as pessoas que forem

    caixeiros de lojas de fazenda seca, ou molhados, porque estes, ainda que ao presente no

    tenham, contudo esto aptos para estabelecer negcio de que se possam sustentar, contanto,

    que neles concorram os mais requisitos.23

    A ateno dedicada aos caixeiros pelos redatores do estatuto do sodalcio um reflexo

    da presena dos comerciantes, sobretudo reinis, na Ordem Terceira de So Francisco. Era

    20

    F. T. SALES, Associaes... cit. p. 71. Apesar do autor colocar essa afirmao na concluso do captulo em que

    so analisados os aspectos sociais e econmicos da irmandade, na pgina 50, ele afirma que devido polarizao

    social alcanada pelas Minas em meados dos setecentos, j existiam classes estratificadas como a dos comerciantes, a qual pertencia Ordem 3 de So Francisco. 21

    J. FURTADO, Homens...cit. pp. 146-147. A autora acrescenta que essa diviso nunca foi totalmente rgida, pois dois comerciantes (...) afirmaram em seus testamentos fazer parte da Ordem Terceira de So Francisco da

    Bahia ou Rio de Janeiro. p. 147; C. BOSCHI, Os Leigos... cit. p 164. 22

    Maria Aparecida de MENEZES, A teia mercantil: negcios e poderes em So Paulo Colonial (1711-1765), So

    Paulo, FFLCH-USP, 2007 (Tese de doutorado), pp. 152-153. 23

    F. T. SALES, Associaes... cit. p. 51.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    8 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    fato comum os imigrantes portugueses iniciarem a carreira mercantil como representantes de

    outros comerciantes ou de casas mercantis estabelecidas nas praas h mais tempo.

    O segundo fator que explica a predominncia dos familiares na ordem terceira de So

    Francisco a atuao desse grupo na fundao da irmandade. Na verdade, este fator se liga ao

    primeiro, j que os agentes inquisitoriais que se destacaram na criao do sodalcio eram

    homens de negcio. Entre os sete irmos que compunham a mesa administrativa, estava o

    familiar Tom Dias Coelho. Ele apresentava o tpico perfil de um familiar de Minas: era

    minhoto, identificava-se como homem de negcio na petio enviada ao Santo Ofcio, embora

    tambm vivesse de minerar, e era solteiro. Depois de cerca de 25 anos nas Minas, habilitou-se

    como familiar, em 175424, tendo afirmado em seu testamento, 20 anos, depois que (...) meu

    corpo ser sepultado na capela do glorioso Serfico S. Francisco da Ordem Terceira da cidade

    de Mariana na qual sou irmo (...).25

    A mesa dirigente da ordem Terceira de So Francisco, da qual o familiar Tom Dias

    Coelho fazia parte, elegeu Miguel Teixeira Guimares e Francisco Soares Bernardes para

    serem os redatores do estatuto da irmandade. E aqui, mais uma vez, um agente leigo da

    Inquisio teve destaque, pois o primeiro era familiar do Santo Oficio. 26

    Miguel Teixeira

    Guimares habilitou-se como familiar em 1747, quando tinha 32 anos; era minhoto e homem

    de negcio; vivia de lojas de fazenda molhada e de minerar.27

    Anos depois de redigir o

    estatuto da mesma Ordem Terceira de So Francisco de Mariana, tal familiar voltaria a atuar

    na mesma como ministro.28

    A influncia exercida pelos irmos familiares na ordem terceira de So Francisco de

    Mariana acabou se refletindo no seu estatuto, no qual se esclarecia que os familiares do Santo

    Ofcio, juntamente com os Cavaleiros do Hbito de Cristo estavam dispensados dos

    interrogatrios.29

    Isso era possvel tambm porque os processos de habilitao exigidos, tanto

    para a familiatura como para entrar na Ordem de Cristo, eram considerados pela sociedade do

    Antigo Regime portugus como os mais rigorosos, sobretudo no que toca limpeza de

    sangue.

    O fato de os familiares estarem isentos dos interrogatrios para a entrada na ordem

    terceira de So Francisco deve ter contribudo para a atrao que esta irmandade exerceu

    24

    A informao de que ele era membro do Definitrio da Ordem Terceira de So Francisco obtivemos em F. T.

    SALES, Associaes... cit. p. 50. Os dados da sua habilitao em IANTT, HSO, Tom, m 05, doc. 68. 25

    Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana. Registro de Testamento. Livro 47; fls 147v. 1 ofcio.

    1774. 26

    Citado em F. T. SALES, Associaes... cit. p. 50. 27

    IANTT, HSO, Miguel, m 12, doc 202. 28

    AEAM, Testamentos, 1109. 29

    F. T. SALES, Associaes... cit. p. 51. Documento transcrito.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 9

    sobre eles, em detrimento da ordem terceira do Carmo. Apesar de reconhecermos a influncia

    desta iseno, acreditamos que o fato de a maioria dos familiares de Mariana ser homens de

    negcio o fator que mais explica a predominncia deles na ordem terceira franciscana. Mais

    do que familiares que se tornaram membros das ordens terceiras, tratava-se de arrivistas

    reinis, sobretudo homens de negcio, que se tornaram agentes leigos da Inquisio e

    membros da Ordem Terceira de So Francisco. Em outras palavras, os motivos que levavam

    os portugueses que moravam em Mariana a procurarem a familiatura eram os mesmos que os

    levavam a estar predominantemente nas ordens terceiras, sobretudo a de So Francisco. Ser

    familiar e membro de tais sodalcios, portanto, faziam parte de um mesmo jogo: a busca por

    distino e prestgio social.

    Apesar de os familiares do Santo Ofcio de Mariana terem se aglutinado nas ordens

    terceiras, elas no eram as nicas associaes religiosas leigas s quais pertenciam. Devemos

    relembrar que as ordens terceiras do Carmo e de So Francisco s passaram a existir em

    Mariana a partir da segunda metade do sculo XVIII. Antes disso, eles estavam presentes nas

    diversas irmandades de brancos da regio, aparecendo com maior freqncia na irmandade da

    Terra Santa de Jerusalm e na do Santssimo Sacramento seja a da S ou das freguesias

    mais afastadas de Mariana. Outras irmandades, como, por exemplo, as do Rosrio, So

    Miguel e Almas, eram mencionadas nos testamentos de uma forma secundria.

    De modo geral, se um mesmo indivduo pertencia a vrias irmandades e s ordens

    terceiras ao mesmo tempo, ele tendia a dar destaque, em seu testamento, s ordens terceiras.

    Isto indica que, pelos motivos j mencionados acima, elas eram as associaes religiosas

    leigas que ofereciam maior estima social aos seus irmos, pelo menos no momento de maior

    assentamento da sociedade das Minas.

    Cmaras e Ordenanas30

    Diferentemente das ordens terceiras, onde os indivduos de nossa amostragem

    penetraram em larga escala, nas cmaras e nas companhias de ordenanas da regio de

    Mariana, eles tiveram uma baixa presena. A entrada nestas instituies dependia de uma boa

    posio dentro dos jogos de poder poltico locais e no apenas da limpeza de sangue.

    No caso dos familiares de Mariana, apenas 05 deles, em algum momento de suas

    vidas, chegaram a ocupar cargos importantes na cmara: Caetano Alves Rodrigues (vereador,

    30

    Diferentemente do que ocorreria nas capitanias do Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia, em Minas no se

    constituiu uma companhia militar especfica para os familiares servirem.

    Sobre a organizao das companhias dos familiares no Brasil, ver J. WADSWORTH, Agents...Cit pp. 253-264.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    10 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    em 1718, e presidente, em 1721), Nicolau da Silva Bragana (vereador, em 1726), Antnio

    Duarte (procurador em 1747), Paulo Rodrigues Ferreira (procurador, em 1771) e Francisco

    Pais de Oliveira Leite (presidente, em 1780).31

    Todos eram muito abastados no momento das

    habilitaes no Santo Ofcio, possuindo, respectivamente 200 mil, 30 mil, 100 mil e 25 mil

    cruzados. Quanto ao ltimo, as testemunhas apenas informam que ele era muito rico. Suas

    fortunas advinham de grandes plantis de escravos, vrias lavras e roas. Os comerciantes de

    nossa amostragem quase no tiveram insero na Cmara de Mariana. Dos 5 citados apenas

    Antnio Duarte tinha envolvimento com essa atividade.

    Diferentemente da Cmara de Mariana, a de Vila Rica parecia ser mais aberta aos

    comerciantes, pelo menos aos que se tornaram familiares. Manoel Jos Veloso, comerciante

    de fazendas secas, serviu de vereador da cmara e aos mais cargos distintos dela que no

    ocupara seno pessoas graves.32 Jos Veloso Carmo, mercador de fazendas secas, e, mais

    tarde, mineiro, serviu de vereador da cmara da dita vila [Rica], que capital e de maior

    autoridade de toda a capitania.33 Alm desses, encontramos cerca de uma dezena de

    familiares de Vila Rica que eram comerciantes na poca em que se habilitaram no Santo

    Ofcio e entraram na cmara daquela cidade.34 Alguns agentes mercantis de outras regies

    das Minas tambm conseguiram participar das Cmaras. Foi o caso do familiar Joo Furtado

    Leite, habilitado em 1750, que foi algum dia comboieiro de negros, foi o ano passado

    vereador na vila do Caet e, de presente, vive de minerar nas lavras em que scio de seu

    primo.35 Ele seguiu aquela trajetria comum a muitos comerciantes das Minas que, em

    meados do sculo XVIII, se tornaram familiares, ou seja, concomitante sua insero social,

    ele abandonou a atividade mercantil e passou a viver de minerar.

    31

    Baseamos, aqui, na lista de vereadores, presidentes e procuradores da Cmara de Mariana publicada em:

    Salomo VASCONCELOS, Vida Poltica e Social da Vila do Carmo in Revista Brasileira de Estudos Polticos, Belo Horizonte, n. 20 (jan./ 1966), pp. 195-234. Esta listagem inclui apenas os cargos de presidente,

    vereador e procurador.

    Sobre a relao entre prestgio social e ocupao de cargos camarrios, ver Maria Beatriz Nizza SILVA, Ser

    Nobre na Colnia, So Paulo, Editora da Unesp, 200, pp. 138-148. Sobre o papel das cmaras em Minas, ver:

    Russel A. J. R. WOOD, O Governo Local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural, Revista de Histria da USP, So Paulo, ano 25, v. 55 (1977), pp. 25-80. 32

    IANTT, HOC, Letra M, m. 19, doc. 13; IL, Livro de Registro de Provises, Liv. 117, FL. 52v. 33

    IANTT, HOC, Letra J, m. 40, doc. 04; IL, Livro de Registro de Provises, Liv. 111, Fl. 352v. 34

    IANTT, IL, Livro de Registro de Provises. Obtivemos a listagem de todos os ocupantes de cargos na cmara

    de Vila Rica em: Memorial Histrico-Poltico da Cmara Municipal de Ouro Preto, Ouro Preto, Ouro Preto

    Ilimitada, 2004. (Memorial realizado pela Cmara Municipal de Ouro Preto).

    No caso de So Paulo, durante a primeira metade do sculo XVIII, Maria Aparecida Borrego verificou uma

    significativa participao dos comerciantes na cmara. M. A. M. BORREGO, A teia... cit, pp. 128-167. 35

    IANTT, HSO, Joo, m. 93, doc. 1586.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 11

    Quanto s ordenanas e outras foras militares da regio de Mariana, notamos a

    entrada de uma pequena parcela dos familiares.36

    Em parte, a obteno de tais postos

    coincidia com a ocupao de cargos na Cmara: dos 05 familiares que foram vereadores, 03

    tiveram tambm cargos nas foras militares da regio de Mariana. Alm desses, mais 08

    indivduos de nossa amostragem ocuparam cargos nas foras militares do Termo de Mariana,

    principalmente, nas companhias de ordenana.37

    Nessas instituies marianenses, diferentemente do que ocorria na cmara,

    observamos uma maior penetrao dos comerciantes. Dos 11 familiares que entraram nas

    companhias militares, sobretudo nas de ordenanas, 06 exerciam alguma atividade mercantil,

    enquanto os demais viviam de minerar e de suas fazendas.38

    Os familiares que ocuparam cargos nas cmaras e nas ordenanas pertenciam elite

    das Minas. Fato que podemos confirmar quando observamos que muitos dos que ocuparam

    estes postos tambm se habilitaram na Ordem de Cristo, j que o desempenho daqueles

    ofcios os ajudava a criar um histrico de servios prestados Coroa.

    Ordem de Cristo

    Dos smbolos de distino social obtidos pelos sujeitos em foco, o de mais difcil

    acesso foi o hbito da Ordem de Cristo. Do total de 457 familiares, 23 se habilitaram para

    receber o hbito de cavaleiro.39

    O reduzido percentual se liga ao fato dos requisitos exigidos

    para a habilitao na Ordem de Cristo serem mais restritivos do que os do Santo Ofcio.

    Alm da limpeza de sangue, exigncia comum s duas instituies, outros dois

    requisitos, difceis de serem transpostos, eram cobrados pela primeira. Um deles era que os

    candidatos tivessem prestado servios Coroa, a qual, como recompensa/remunerao,

    36

    Estudando as elites de Portugal do Antigo Regime, Nuno Monteiro afirmou que as ordenanas constituam outra das instituies relevantes da sociedade local portuguesa, certamente uma das mais originais. Nuno Gonalo MONTEIRO, Elites e Poder.... cit. p. 46. Para compreendermos a importncia da ocupao de postos nas ordenanas como uma forma de distino social

    em Minas, baseamos, sobretudo, em: Ana Paula Pereira COSTA, Atuao de poderes locais no Imprio

    Lusitano: uma anlise do perfil das chefias dos Corpos de Ordenanas e de suas estratgias na construo de sua

    autoridade. Vila Rica, 1735-1777, Rio de Janeiro, UFRJ, 2006. (Dissertao de Mestrado). Segundo a

    historiadora, a ocupao de postos nas ordenanas significava produo ou reproducao de prestgio e posio de comando, bens no negligenciveis no Antigo Regime, bem como isenes de impostos e outros privilgios. p. 35. Sobre as ordenanas, ver tambm: Christiane Figueiredo Pagano MELLO, Os Corpos de Auxiliares e de

    Ordenanas na Segunda Metade do Sculo XVIII: as Capitanias do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais e a

    Manuteno do Imprio Portugus no Centro-Sul da Amrica, Niteri, UFF, 2002 (Tese de Doutorado). 37

    IANTT, HSO, HOC, AHU/ Resgate-MG. 38

    IANTT, HSO, HOC, AHU/ Resgate-MG. 39

    IANTT, HOC; Chancelaria da Ordem de Cristo. Sou muitssimo grato a Fernanda Olival por ter pesquisado,

    em seu banco de dados sobre as ordens militares, o nome de todos os 457 familiares de Minas para saber quais

    deles tinham se tornado cavaleiros do hbito de Cristo.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    12 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    concedia a merc do hbito de Cristo.40

    Depois de concedido o hbito, para serem armados

    Cavaleiros, os sditos precisavam passar pela habilitao da Mesa de Conscincia e Ordens.

    Pelo processo, eles tinham que provar que no tinham defeito de mecnica, ou seja, que no

    tinham vivido do trabalho de suas prprias mos, exigncia esta estendida tambm aos pais e

    avs dos candidatos.41

    Os habitantes de Minas, que se tornaram familiares e tambm

    cavaleiros do hbito de Cristo, enfrentaram problemas tpicos de grupos em mobilidade social

    ascendente quando se submeteram ao processo de habilitao da Mesa de Conscincia e

    Ordens, sobretudo no que se refere limpeza de mos.

    Na rampa da distino social escalada pelos 23 habitantes das Minas que obtiveram a

    familiatura e o hbito da Ordem de Cristo, 16 se tornaram primeiramente agentes da

    Inquisio para depois se tornarem cavaleiros do hbito de Cristo. Ser familiar era um passo

    importante para se tornar cavaleiro, primeiro, porque essa insgnia funcionava como um

    atestado de limpeza de sangue, o que dava garantia ao candidato de que ele atenderia

    tranquilamente, na ordem militar, ao requisito de ser cristo-velho. Segundo Fernanda Olival,

    no se conhece, por ora, nenhum caso de familiar que tivesse reprovado nas Ordens Militares

    por questes de sangue.42 E, segundo, porque, com a familiatura, eles aumentavam a sua

    considerao e estima social, diferenciao esta que acabava tendo repercusso positiva

    quando as testemunhas depunham a seu respeito na habilitao da Ordem de Cristo, ajudando

    a compor o modo de vida que no contexto envolvente era considerado o viver lei da

    nobreza.

    Os poucos que conseguiram o hbito da Ordem de Cristo antes de obter a familiatura

    ocupavam postos importantes nas companhias de ordenanas como o de sargento-mor e de

    capito-mor ou nas outras companhias militares de Minas ou ainda cargos nas cmaras.

    Devido ao exerccio destes cargos, era mais fcil conseguir a merc do hbito de Cristo

    atravs de servios prprios Coroa43

    , pois os que conseguiam a familiatura antes do hbito

    de Cristo, levavam mais tempo para darem entrada na habilitao da Ordem militar, j que,

    geralmente precisavam negociar a compra dos servios Coroa de terceiros.

    40

    Sobre a economia da merc, ver Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Merc e Venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001, pp. 15-38. 41

    Sobre os procedimentos para se habilitar na Ordem de Cristo, ver F. OLIVAL, Fernanda. As Ordens

    Militares... cit. pp. 107-137. 42

    Fernanda OLIVAL, Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal in Cadernos de Estudos Sefarditas, n 4(2004), pp. 151-182, P. 166. Ainda, segundo a autora, muitos dos que no sculo XVIII tinham necessidade de dispensa de mecnica, fosse nos prprios ou nos ascendentes, eram j familiares do Santo

    Ofcio quando lutavam pelo hbito. Como eram cristos-velhos, comeavam por aquela distino que,

    teoricamente, no averiguava das mecnicas. In: Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares... cit. p. 377. 43

    Alm de contribuir no quesito servios, a ocupao destes postos era importante porque ajudava o indivduo a exibir publicamente, ao nvel local, um viver nobremente ou viver lei da nobreza, exigncia importante para se entrar na Ordem de Cristo. Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares... cit. p. 374.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 13

    No caso dos que se tornavam cavaleiros antes de se tornarem familiares, o fato de

    possurem servios prprios no significava que teriam uma habilitao tranqila na Ordem

    de Cristo. Caetano lvares Rodrigues, por exemplo, que era guarda-mor em Mariana e fora

    vereador na cmara da mesma vila, enfrentou problemas com o defeito de mecnica, que

    recaa sobre si e seus progenitores seu pai foi caixeiro e depois mercador de loja e o av

    materno alfaiate vestimentrio. Depois de muita insistncia, atravs do envio de vrias

    peties e certides que comprovavam seus servios Coroa sobretudo seu apoio ao

    Governador Assumar na represso do motim de Vila Rica ocorrido em 172044

    -, em 1731, ele

    teve o seu defeito dispensado pelo Rei. 45

    De modo geral, daqueles para os quais dispomos de dados referente ao defeito de

    mecnica, verificamos que apenas um candidato no enfrentou as dispensas. Em virtude

    daquela mcula, os 12 restantes tiveram que solicitar a dispensa do Rei para se habilitarem.

    Joo Gonalves Fraga conseguiu a dispensa de seu defeito devido ao relevante servio

    porque foi despachado, dando porm dois marinheiros para a armada, em 1732.46 Manoel

    Borges da Cruz, que foi tanoeiro no Reino, ourives do ouro quando chegou em Minas, depois

    comboieiro de escravos e, por fim, vivia de minerar, em 1769, conseguiu ser dispensado dos

    impedimentos assim pessoais como de pais e avs dando o donativo de seis mil cruzados por

    serem impedimentos muitos e alguns de grande abatimento e outros srdidos.47

    A negociao que os indivduos de nossa amostragem travaram na Mesa de

    Conscincia e Ordens para terem seus defeitos de mecnica dispensados revela mais uma

    vez um tpico grupo em processo de mobilidade social ascendente e vidos por nobilitao.

    Alguns, sobretudo aqueles que no tinham servios prprios, alm de arcar com custos do

    processo de habilitao, ainda tinham que pagar as altas multas para terem seus defeitos de

    mecnica dispensados.

    A trajetria de vida dos indivduos que se habilitaram na Ordem de Cristo e tambm

    no Santo Ofcio, grosso modo, muito parecida com aquela dos que se habilitaram somente

    nesta ltima48

    : eram, em sua maioria, naturais do norte de Portugal, filhos de lavradores e/ou

    oficiais mecnicos, vinham para a Colnia apoiados em redes de parentesco e eram solteiros.

    Ao chegar a Minas, atuavam sobretudo no setor mercantil em geral, no comrcio de

    escravos e fazendas secas e depois passavam a investir na minerao. Em nmeros, o perfil

    44

    Laura de Mello e SOUZA. Norma e Conflito: Aspectos da Histria de Minas no sculo XVIII, Belo

    Horizonte, Editora da UFMG, 1999, pp. 30-45. 45

    IANTT, HOC, Letra C, m. 12, doc. 06. 46

    IANTT, HOC, Letra J, m. 09, doc. 64. 47

    IANTT, HOC, Letra M, m. 23, doc. 13. 48

    claro que isto se deve tambm ao fato de nossa amostragem s incluir os Cavaleiros que, em algum

    momento de suas vidas, se tornaram familiares do Santo Ofcio.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    14 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    ocupacional dos 23 familiares que se tornaram Cavaleiros era o seguinte: 15 eram

    comerciantes, 02 eram mineiros, 02 eram militares, 01 vivia de sua fazenda e 01 era senhor de

    engenho; para 02, no consta a ocupao.49

    No caso dos habilitandos que eram homens de negcio, eram comuns os problemas na

    habilitao por causa do defeito de mecnica, geralmente adquirido no incio de suas

    carreiras, quando tinham sido caixeiros ou exercido algum ofcio mecnico, como ocorreu

    com Manoel Jos Veloso, por exemplo.50

    Ele conseguiu a merc do hbito de Cristo, com 12 mil ris de tena, por ter quintado

    15 arrobas e 23 marcos de ouro na Real Casa de Fundio de Vila Rica desde 01/08/1755 at

    31/07/1756. Quando a Mesa de Conscincia e Ordens realizou as provanas para habilit-lo

    como cavaleiro do hbito de Cristo, constatou que ele teve loja de panos e baetas e,

    assistindo em casa de um tio que era contratador de livros [no Rio de Janeiro], tambm vendia

    alguns, o que resultou em defeito de mecnica. Alm disso, uma testemunha de seu processo,

    o Pe. Manuel lvares Ribeiro, informou que ele era homem de negcio de escravos que

    comprava no Rio de Janeiro para vender nas Minas (...). Outras testemunhas negaram que ele

    tivesse sido comboieiro, seja de escravos ou de suas prprias mercadorias, ao declararem que

    no teve o trato de comboieiro porque as fazendas que do Rio mandava para as Minas eram

    nas tropas que alugava aos homens de caminho, como se pratica e estilo nas mais partes da

    Amrica. Manoel Jos Veloso recorreu da deciso da Mesa de Conscincia e Ordens em

    reprovar seu processo de habilitao, apoiado na quantidade de quinto pago por ele em Vila

    Rica. Acatando seu argumento, o Rei concordou em dispensar o seu defeito de mecnica

    em 20 de julho de 1768. 51

    Outro comerciante que enfrentou semelhante impedimento por causa do incio da

    carreira foi Antnio de Abreu Guimares, habilitado no Santo Ofcio em 1753 e na Ordem de

    Cristo em 1765. Quando chegou s Minas, na freguesia de Carijs, comarca do Rio das

    Mortes, foi trabalhador de enxada e foice e que depois comboiara pretos algum tempo do Rio

    de Janeiro para as Minas e que para isto vendera as plantas que tinha roado. Depois de obter

    49

    IANTT, HOC.

    A ocupao considerada aqui foi aquela declarada na petio ao Conselho Geral do Santo Ofcio quando eles se

    candidataram ao cargo de familiar. Portanto, no consideramos a diversificao de seus investimentos ou a

    mudana de ocupao ao longo de suas vidas.

    No caso dos 15 comerciantes, a maioria deles atuava no comrcio de escravos e fazendas secas. Dos 15, quando

    foi possvel saber, 6 diversificaram seus investimentos investindo em minerao.

    50

    Esta no era uma caracterstica peculiar aos cavaleiros de Minas, parece ter sido comum ao longo do sculo

    XVIII: segundo Olival, o tipo ideal de cavaleiro com mecnica nele prprio estava geralmente ligado ao comrcio; era quase sempre, homem de negcios do grande trato ou caixeiro, quando recebia o hbito. Tinha, em

    regra, bons recursos financeiros. Fernanda OLIVAL, As Ordens Militares...cit. p. 376. 51

    IANTT, HSO, Letra M, m. 19, doc. 13.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 15

    lucro com o comrcio de escravos, ele passou tambm a ter loja de fazendas secas no arraial

    dos Carijs no qual assistia e tinha outra por sua conta no Serro, para as quais ia comprar

    fazendas para sortimento ao Rio de Janeiro. Esses defeitos de mecnica adquiridos no

    incio da vida foram dispensados mediante o fato de ser interessado em dez aes originais

    na Companhia do Gro-Par e Maranho, conforme previa o alvar pombalino de 1757.52

    Como os dois comerciantes acima, Jos Veloso do Carmo enfrentou problemas em sua

    habilitao na Ordem de Cristo por causa do defeito de mecnica, uma vez que iniciara sua

    carreira numa loja de fazendas secas em Vila Rica, onde vendia por si e seus caixeiros.

    Como aconteceu com outros comerciantes, aps a lei de 03 de dezembro de 1750, ele

    conseguiu a dispensa de seu defeito porque, seis anos antes de peticionar sua habilitao na

    Ordem de Cristo, abandonou o negcio e passou a minerar, o que permitiu que ele fundisse

    em um s ano mais de 11 arrobas de ouro na Casa de Fundio de Vila Rica. Cotejando seu

    processo de habilitao na Mesa de Conscincia e Ordens e no Santo Ofcio, percebemos que

    Jos Veloso Carmo manipulou as informaes de seu passado de modo a enfrentar menos

    defeitos de mecnica na Ordem de Cristo. Para esta ltima, ele informou que era filho e

    neto de lavradores de suas prprias terras, porm, na habilitao do Santo Ofcio onde no

    se exigia limpeza de ofcio constatamos que, na verdade, ele era filho de um

    carpinteiro/serrador de madeira, neto paterno de lavrador e carpinteiro e neto materno de

    fazedor de telhas e rodzios de moinho. Alm de esconder a mecnica de seus ascendentes,

    ele omitiu que tinha sido alfaiate em Braga, antes de partir para o Brasil.53

    Outro que escondeu a sua mecnica na Ordem de Cristo foi Manoel Dias Pereira, cujo

    processo teve desfecho em 1760. Nas suas provanas para se tornar Cavaleiro, constatou-se

    que seus pais e avs eram lavradores de seus bens, porm na habilitao do Santo Ofcio,

    concluda em 1753, as testemunhas informaram que seu pai viveu do ofcio de alfaiate e

    depois de rendas, seu av paterno era lavrador e o materno era rendeiro e tecelo. Alm disso,

    no seu processo da Ordem de Cristo procurou-se enfatizar que ele vivia de minerar com seus

    escravos. J no Santo Ofcio, ele aparecia como mercador de fazenda seca ocupao que,

    provavelmente, teria constitudo um defeito de mecnica, j que era comum aos

    52

    IANTT, HOC, Letra A, m. 16, doc. 11.

    Sobre o Alvar, ver Fernanda OLIVAL, O Brasil, as companhias pombalinas e a nobilitao no terceiro quartel do Setecentos in Mafalda Soares CUNHA (org.), Do Brasil Metrpole: efeitos sociais (sculos XVII-XVIII), Separata da Revista Anais da Universidade de vora, vora, n. 8 e 9 (dezembro 1998/1999), pp 47-72, pp. 73-

    98. 53

    IANTT, HOC, Letra L, m. 40, doc. 04. HSO, Jos, m. 106, doc. 1485.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    16 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    comerciantes desse gnero venderem por si prprios em suas lojas, pelo menos no incio da

    carreira.54

    No caso de grupos em processo de mobilidade social ascendente, parece ter sido usual

    este tipo de manipulao para tentar esconder o passado mecnico diante da Mesa de

    Conscincia e Ordens ou, pelo menos, para buscar diminuir a incidncia do defeito, com

    vistas a facilitar a obteno da dispensa rgia. Em relao aos que se tornavam familiares

    antes de se tornarem Cavaleiros, caso da maioria, eles solicitavam ao Conselho Geral do

    Santo Ofcio certides de como eram familiares para provar Mesa de Conscincia e

    Ordens que eram cristos-velhos ou para comprovar suas filiaes. Como na Inquisio a

    mecnica no era um entrave, os Comissrios registravam, com alguma exatido, a ocupao

    dos pais e avs dos familiares, fato que tinha conseqncias negativas quando da habilitao

    na Ordem de Cristo.55

    Alguns eram bem sucedidos e conseguiam esconder o passado

    mecnico declarado no Santo Ofcio, mas outros no.

    Outra caracterstica da habilitao na Ordem de Cristo do grupo em anlise o fato de

    a maioria ter comprado de terceiros os servios que geraram a merc do hbito de Cristo pela

    qual lutavam. Segundo Olival, os principais compradores de hbitos, sobretudo no sculo

    XVIII, eram pessoas cuja ascenso se esboara recentemente; tinham, por isso, como mcula

    alguma mecnica na gerao dos pais e/ ou dos avs; por vezes at o prprio candidato era

    acusado pela Mesa de Conscincia e Ordens de ser portador do defeito de mecnica.56

    Pelos dados obtidos quanto aos servios que geraram a merc do hbito para 13 cavaleiros,

    verificamos que 08 compraram os servios Coroa; 04 obtiveram a merc do hbito por

    servios prprios e 01 a obteve atravs de servios prprios e alheios.57

    Quanto distribuio dos hbitos da Ordem de Cristo por comarca, a de Vila Rica foi

    a que mais contou com cavaleiros: 17, o que representa quase do total sendo que 10

    residiam no termo de Vila Rica e 07 no de Mariana. No que se refere s outras comarcas, Rio

    das Mortes aparece com 04 cavaleiros, Serro com 01 e Rio das Velhas tambm com 01.

    *****

    Apesar das barreiras colocadas diante de um grupo em processo de mobilidade social

    ascendente, verificamos que vrios indivduos de nossa amostragem conseguiram atingir o

    54

    IANTT, HOC, Letra M, m. 10, doc. 97; IANTT, HSO, Manoel, m. 154, doc. 1575. 55

    Sobre a manipulao das instituies do Antigo Regime portugus por indivduos em busca de distincao e

    nobilitao, ver Evaldo Cabral de MELLO, O Nome e o Sangue: uma fraude genealgica no Pernambuco

    Colonial, So Paulo, Companhia das Letras, 1989. 56

    OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares...cit, p. 269. Sobre a venalidade/ mercado de hbitos das ordens militares, ver tambm pp. 237-282. 57

    IANTT, HOC; Chancelaria da Ordem de Cristo.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 17

    topo da hierarquia das insgnias que ofereciam distino social em Minas colonial. Dadas as

    caractersticas do conjunto que logrou sucesso, o que mais nos chama a ateno o papel

    exercido pelo comrcio de abastecimento da regio mineradora enquanto mola propulsora da

    mobilidade social e a minerao como fator de acomodao do indivduo na regio, pelo

    menos at meados do sculo XVIII.

    Da mesma forma que a atividade mercantil possibilitou que os indivduos de nossa

    amostragem obtivessem a familiatura, permitiu tambm que uma pequena parcela deles

    alcanasse o topo da hierarquia dos smbolos de distino social na zona mineradora. A

    maioria daqueles que entraram na Ordem de Cristo, por exemplo, dedicavam-se ao comrcio,

    pelo menos at conseguirem recursos suficientes para se estabelecerem localmente atravs da

    minerao.

    As estratgias de afirmao social adotadas pelo grupo passavam por um pesado

    investimento no parecer. Procurava-se tratar lei da nobreza, era assim que o esforo

    para incrementar a aparncia e o modo de vida era traduzido nas habilitaes ao Santo Ofcio

    e ordem de Cristo. Em Minas, o viver lei da nobreza era entendido como andar a cavalo,

    servir-se de escravos, usar casaca, cabeleira, espadim, ser asseado e ocupar os cargos da

    governana local. A construo da boa reputao nesse nvel regional era importante para a

    obteno de ganhos no centro quando se candidatava s insgnias emitidas pelas instituies

    tpicas do Antigo Regime portugus. Como afirmou Olival, analisando o caso das Ordens

    Militares, a ascenso protagonizada ao nvel concelhio podia ter efeitos nas pretenses

    defendidas no centro. (OLIVAL, 2001: 374)

    O ideal de estilo de vida referido aparece nos depoimentos das testemunhas filtrado,

    obviamente, pelos agentes que realizavam os interrogatrios e/ ou nos pareceres que os

    comissrios davam a cada etapa das diligncias58

    . Por exemplo, um dos depoentes do

    processo de Antonio Pinto dos Santos, habilitado em 1753, afirmou que ele trata com

    limpeza, com seus cavalos e pajem. Na habilitao de Manoel Francisco Peixoto consta que

    ele vivia com bom trato, de cavalo e pajem. J no processo de Andr Ferreira Fialho, lemos

    que ele vive limpamente com seus cavalos de estrebaria e escravos que o acompanham.

    Outra testemunha acrescentou que ele tinha pajens. Ter criados como acompanhante (ou

    escravos nas mesmas funes) dava notrio status, patente aos olhos de todos na rua. Atravs

    da habilitao de Amaro Romeiro da Costa, sabemos que ele possua seu cavalo para andar.

    58

    No caso do Santo Ofcio, as menes ao estilo de vida dos candidatos aparecem relacionadas ao item do

    interrogatrio que perguntava se o habilitando pessoa de bons procedimentos, vida e costumes, capaz de ser encarregado de negcios de importncia e segredo e de servir ao santo ofcio no cargo de familiar, se vive

    limpamente e com bom trato, que cabedal ter de seu ou sido, se o negcio de que trata tira lucros para passar

    com limpeza e asseio, se sabe ler e escrever e que anos ter de idade. ANTT, TSO/CG/HSO.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    18 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    Um depoente, em 1754, referindo-se ao comerciante Tom Dias Coelho, afirmou que ele era

    rico e trata lei da nobreza. O comissrio Geraldo Jos de Abranches, de forma muito

    perspicaz, afirmou, no parecer que deu ao fim das diligncias de capacidade do processo de

    habilitao de Antonio Gonalves Pereira, mercador de secos e molhados, que este ltimo se

    tratava com limpeza, ainda que havera dois anos somente que principiou a tratar-se de

    casaca, cabeleira e espadim 59. Portanto, o minhoto Antonio Gonalves Pereira, filho de

    lavradores, depois de ter amealhado recursos atravs do comrcio de fazendas secas e

    molhadas em Minas, procurou tratar-se lei da nobreza, usando casaca, cabeleira e

    espadim. Foi justamente nesse momento de sua trajetria que ele se candidatou ao cargo de

    familiar do Santo Ofcio.

    Colocadas as principais formas de distino social obtidas pelo grupo que analisamos

    dentro de uma hierarquia, conclumos que, na sua base estava a participao nas associaes

    religiosas leigas, sobretudo as ordens terceiras, e, logo acima, a familiatura.

    Comparando a obteno da familiatura com a entrada nas ordens terceiras, conclumos

    que esta ltima era acessvel a todos os indivduos da nossa amostragem que quisessem ser

    irmos terceiros do Carmo ou de So Francisco. Portanto, de todas as formas de distino

    consideradas aqui, a entrada nesses sodalcios era a que possua menos valor simblico.

    Para ser apenas familiar do Santo Ofcio, teoricamente, o candidato no precisava

    estabelecer relaes polticas ao nvel local, como no caso das ordenanas ou cmaras, nem

    ter limpeza de ofcio, como na Ordem de Cristo.

    Numa posio intermediria, ficava a ocupao de postos nas ordenanas e nas

    Cmaras. No topo desta hierarquia, estava o hbito da Ordem de Cristo que, por ser o mais

    difcil de se conseguir, era tambm o que oferecia maior distino social.

    Em termos de projeo social, alm da inegvel repercusso local, a familiatura e o

    hbito da Ordem de Cristo ofereciam distino ao nvel do Imprio portugus. J a distino

    obtida atravs da entrada nas ordens terceiras, da ocupao de postos nas companhias de

    Ordenanas e nas cmaras teria uma eficcia mais local.

    Embora variassem na escala do valor simblico, todas essas formas de distino

    faziam parte de um mesmo jogo social e, por isso, uma acabava influenciando a obteno da

    outra, sobretudo no que dependia da considerao pblica do indivduo. Quem tinha ocupado

    cargo nas cmaras, por exemplo, aproveitava o fato de ter servido os cargos da repblica

    59

    Respectivamente: ANTT, TSO/CG/HSO, Antonio, m 118, doc 2028; Manoel, m 124, doc 1951; Andr, m

    11, doc. 174; Amaro, m 03, doc 49; Tom, m 05, doc. 68; Antnio, m. 128, doc. 2157. Negrito nosso.

  • Viver lei da nobreza

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 19

    para argumentar que vivia limpamente e lei da nobreza. A familiatura era utilizada para,

    alm da estima pblica que oferecia, provar que o indivduo era bem reputado na limpeza de

    sangue. No mundo com valores de Antigo Regime, o parecer, a forma de tratamento

    desempenhavam um papel fundamental na demarcao dos lugares dos indivduos na

    sociedade.

    Enfocando a familiatura dentro da constelao de insgnias e smbolos de distino

    social em voga nas Minas setecentistas, conclumos que, para o grupo em anlise, ela era

    relativamente acessvel, j que o principal requisito para a habilitao no Santo Ofcio era ser

    limpo de sangue.

    Pensando nas insgnias ao longo da vida dos indivduos, temos a medalha de familiar

    do Santo Ofcio, o hbito das Ordens Terceiras e o hbito da Ordem de Cristo como aquelas

    que poderiam durar para o resto da vida dos que as obtivessem. Por outro lado, a ocupao de

    cargos nas cmaras e nas ordenanas tinham prazo determinado para acabar. Portanto, desse

    ponto de vista, a familiatura oferecia uma distino estvel, que no ficava merc da

    configurao do poder local, fato que certamente acrescentava-lhe valor simblico.

    A familiatura diferenciava-se de todas as insgnias acima porque ela era a nica que

    oferecia aos seus postulantes a autoridade de uma instituio metropolitana do porte da

    Inquisio. Alm do prestgio de representarem aquela instituio, os familiares poderiam

    manipular a autoridade inquisitorial, de forma indevida, a favor de seus interesses prprios. O

    ttulo dava-lhes poder no mbito local.

    Quanto hierarquia de insgnias e smbolos de distino social, de modo geral, a

    tendncia era que, primeiramente, os habitantes das Minas em anlise entrassem nas ordens

    terceiras; depois obtivessem postos nas ordenanas, a familiatura, cargos nas cmaras; por

    fim, a Ordem de Cristo. Podemos considerar os poucos indivduos que conseguiram percorrer

    todo esse percurso como aqueles que pertenciam elite local da zona mineradora.

    A escalada da distino social em Minas, de maneira geral, no se diferenciava muito

    do resto da Colnia. No Recife, entre 1713 e 1738, segundo Maria Beatriz Nizza da Silva

    apoiada no trabalho de Jos Antnio Gonalves de Mello podemos constatar um certo

    padro no processo de nobilitao: postos de ordenana, familiatura, cargo municipal e,

    ocasionalmente, Ordem de Cristo.60

    Por fim, podemos dizer que a maioria dos indivduos de nossa amostragem se

    contentou com a familiatura e a entrada nas irmandades de prestgio. As outras formas de

    distino social, nomeadamente, o ingresso nas cmaras, nas ordenanas e na Ordem de

    60

    SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser Nobre na Colnia. So Paulo: Editora da Unesp, 2005. p. 161.

  • Aldair Carlos Rodrigues

    20 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    Cristo, dependia de uma boa relao com o poder poltico local e de uma posio econmica

    mais elevada. Como vimos, a maioria dos familiares que estudamos no esteve em condies

    de atender quelas exigncias: eles eram pequenos e mdios comerciantes, com cabedais

    variando, em mdia, de 02 a 08 contos de ris. Os poucos indivduos que galgaram aquelas

    posies ligadas ao poder poltico cmaras, ordenanas e hbito da Ordem de Cristo eram

    os mais ricos de nossa amostragem e talvez estivessem entre os mais abastados das Minas.