viva para contar

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NA noite de quinta-feira, a investigadora de polícia, sargento D. D. Warren, saiu para um encontro romântico. Não foi o pior encontro que já teve. Também não foi o melhor. Mesmo assim, foi a única opor- tunidade de um encontro romântico que lhe apareceu depois de muito tempo. Assim, a menos que Chip, o contabilista, se revelasse um com- pleto panaca, ela tinha planos de levá-lo para o seu apartamento para uma sessão rigorosa de balanço de fundos privados. Até o momento, eles haviam chegado até a metade de uma porção de pão italiano ensopado em óleo de oliva e metade de uma vaca, tos- tada por fora e malpassada por dentro. Chip não havia mencionado o fato de que a carne espalhava sangue por todo o prato de D. D., ou que era preciso molhar os pedaços de pão no caldo do assado. A maioria dos homens ficava espantada com o seu apetite. O desconforto resultava em piadas sem graça sobre a capacidade que ela tinha de esvaziar um prato após o outro. Depois, eles sentiam o desejo ainda mais desconfortável de comentar que nada daquilo parecia influenciar os contornos esbeltos da sua silhueta. Sim, sim, ela tinha o apetite de um lutador de sumô, mas o corpo era de uma supermodelo. Estava perto dos 40 anos, e, francamente, sabia como seu metabolismo funcionava. Não precisava que nenhum funcio- nário molenga de escritório lhe dissesse o que já sabia. Comida era a sua paixão. Especialmente porque o trabalho na divisão de homicídios do departamento de polícia de Boston não lhe dava muito tempo para o sexo. CAPÍTULO 1

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Resenha do livro da novo conceito Viva para Contar

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Na noite de quinta-feira, a investigadora de polícia, sargento D. D. Warren, saiu para um encontro romântico. Não foi o pior encontro que já teve. Também não foi o melhor. Mesmo assim, foi a única opor-tunidade de um encontro romântico que lhe apareceu depois de muito tempo. Assim, a menos que Chip, o contabilista, se revelasse um com-pleto panaca, ela tinha planos de levá-lo para o seu apartamento para uma sessão rigorosa de balanço de fundos privados.

Até o momento, eles haviam chegado até a metade de uma porção de pão italiano ensopado em óleo de oliva e metade de uma vaca, tos-tada por fora e malpassada por dentro. Chip não havia mencionado o fato de que a carne espalhava sangue por todo o prato de D. D., ou que era preciso molhar os pedaços de pão no caldo do assado. A maioria dos homens ficava espantada com o seu apetite. O desconforto resultava em piadas sem graça sobre a capacidade que ela tinha de esvaziar um prato após o outro. Depois, eles sentiam o desejo ainda mais desconfortável de comentar que nada daquilo parecia influenciar os contornos esbeltos da sua silhueta.

Sim, sim, ela tinha o apetite de um lutador de sumô, mas o corpo era de uma supermodelo. Estava perto dos 40 anos, e, francamente, sabia como seu metabolismo funcionava. Não precisava que nenhum funcio-nário molenga de escritório lhe dissesse o que já sabia. Comida era a sua paixão. Especialmente porque o trabalho na divisão de homicídios do departamento de polícia de Boston não lhe dava muito tempo para o sexo.

CaPítulo

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LisaGardner

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Ela devorou os pedaços de costela e depois começou a comer as batatas assadas. Chip era especializado em auditoria financeira. O encontro foi arranjado pela esposa de um amigo de um dos rapazes que trabalhava no departamento de homicídios. Sim, D. D. também achava que aquilo não fazia o menor sentido. Mas aqui estava ela, sentada em uma mesa bastante disputada na churrascaria Hilltop Steakhouse, e, em sua opinião, Chip era um cara legal. Um pouco acima do peso, com sinais de calvície, mas engraçado. D. D. gostava de homens engraçados. Quando ele sorria, os cantos dos seus grandes olhos castanhos se enru-gavam, e ela achava que aquilo era bom o bastante.

Ela estava se deliciando com a carne e as batatas no jantar, e, se tudo corresse como o planejado, Chip seria a sobremesa.

No entanto, é claro que o seu pager começou a tocar. Ela fez uma careta e o enfiou de volta no bolso de trás da calça,

como se isso pudesse fazer alguma diferença. — O que foi isso? — perguntou Chip ao ouvir o toque do aparelho. — Meu anticoncepcional — resmungou ela. O rosto de Chip ficou todo vermelho, até as raízes dos seus cabelos

castanhos que já rareavam. No minuto seguinte, sorriu de uma forma tão autodepreciativa que D. D. quase sentiu seus joelhos fraquejarem.

“É melhor que seja importante”, pensou D. D., “melhor que seja um massacre em grande escala. Não vou abrir mão da minha noite por nada menos do que isso.”

Ela leu a mensagem e se arrependeu por ter pensado daquela maneira. Chip, o contabilista engraçado, ganhou um beijo no rosto.

Em seguida, a sargento D. D. Warren, do departamento de inves-tigação de homicídios, saiu da churrascaria.

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D. D. era investigadora na polícia de Boston há quase doze anos. Começou investigando acidentes de trânsito envolvendo mortes e homicídios relacionados ao tráfico e consumo de drogas antes de pas-sar para eventos que geravam as maiores manchetes na mídia, como a descoberta de seis corpos mumificados em uma câmara subterrânea.

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VivaContar

para

Em seguida, e mais recentemente, o desaparecimento de uma bela pro-fessora primária na região sul de Boston. Seus superiores gostavam de colocá-la em frente às câmeras. Não havia nada melhor do que uma bela investigadora loira para agitar as coisas.

Ela não se importava. D. D. adorava o estresse. Gostava mais de um caso que lhe impusesse uma forte pressão do que um restau-rante com buffet farto. A única desvantagem era o desgaste que tudo aquilo causava em sua vida particular. No posto de sargento da unidade de homicídios, D. D. era a líder de uma equipe de três pessoas. Não era raro os três passarem o dia inteiro em busca de pistas, entrevis-tando informantes ou examinando cenas de crimes. Depois, passavam a maior parte da noite transcrevendo as entrevistas, os depoimentos, ou redigindo mandados de prisão. Cada um dos esquadrões também se alternava nos “plantões”, o que significava que deveriam assumir as investigações do próximo caso que chegasse à delegacia. Aquilo os mantinha presos em um turbilhão permanente de casos ativos e de alta prioridade, casos antigos ainda não resolvidos, e, pelo menos, uma ou duas chamadas para averiguação durante a semana.

D. D. não dormia muito. Nem namorava muito. E praticamente não fazia mais nada. Todo esse estilo de vida não fazia diferença até o ano passado, quando completou 38 anos e viu um ex-namorado se casar e começar uma família. Repentinamente, a sargento durona e audaciosa que se considerava casada com seu trabalho se apanhou lendo revistas como a Good Housekeeping, e até mesmo Modern Bride. Certo dia, ela pegou uma edição da Parenting1 para dar uma olhada. Não havia nada mais deprimente que uma investigadora de homicídios, solteira, sem filhos e com quase 40 anos lendo um exemplar da revista Parenting sozinha em seu apartamento na região do North End.

1 Revistas bastante populares nos Estados Unidos. A Good Housekeeping é uma revista feminina especializada em dicas para o lar, economia doméstica, relacionamentos e artigos em geral sobre celebridades e obras de ficção, e sua primeira edição foi publi-cada em 1885; A Modern Bride era uma revista especializada em vestidos de noiva, cerimônias e luas de mel, e foi publicada entre 1934 e 2009; e a revista Parenting é espe-cializada em informações para mães, focando em cuidados com os filhos. Sua primeira edição foi publicada em 1987. (N. T.)

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Especialmente quando percebeu que alguns dos artigos com dicas sobre como lidar com crianças pequenas também funcionariam se fos-sem aplicadas no trato com os investigadores da sua equipe.

Ela jogou as revistas no lixo e jurou que tentaria conhecer alguém e ter um encontro romântico. Aquilo a levou até Chip — o pobre Chip, aquele cujo cérebro quase entrou em colapso — e agora ela estava a caminho de Dorchester. Não era nem mesmo a sua equipe que estava de plantão, mas a notificação era do tipo “bola vermelha”. Esse era o código que indicava que algo muito grande e ruim havia acontecido, e todos os policiais disponíveis foram requisitados para auxiliar nas investigações.

D. D. entrou na rodovia interestadual I-93, e depois navegou pelo labirinto de ruas do bairro, uma área predominantemente de classe média. Entre os policiais daquele distrito, Dorchester era conhecida por suas drogas, tiroteios e festas barulhentas nas áreas mais afasta-das, que evoluíam para mais drogas e mais tiroteios. O distrito local do departamento de polícia de Boston, o C-11, instituíra um número de telefone para o qual as pessoas podiam entrar em contato e denunciar festas muito barulhentas, e também havia designado uma “viatura de festas” especial para verificar as denúncias nos fins de semana. Depois de quinhentas denúncias telefônicas e inúmeras prisões preventivas, Dorchester finalmente registrava um declínio nos homicídios, estupros e agressões graves. Por outro lado, o número de furtos estava aumen-tando. Difícil de entender.

Seguindo as orientações do sistema G.P.S. do carro, D. D. chegou a uma rua tranquila e bonita, ladeada por gramados bem-cuidados e casas com três andares. A maioria tinha belas varandas na fachada e, ocasionalmente, pequenas torres.

A maioria daquelas residências havia sido dividida em lares mul-tifamiliares no decorrer dos anos, e cada uma delas geralmente tinha entre seis e oito moradores. Ainda era um belo bairro, com gramados cuidadosamente aparados, e a tinta nas grades de proteção ao redor das varandas estava em boas condições. Aquele era o lado mais suave de Dorchester, decidiu ela, cada vez mais curiosa.

D. D. percebeu um amontoado de viaturas de polícia, e diminuiu a velocidade, procurando um lugar para estacionar. Eram oito e meia

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para

na noite de quinta-feira. O Sol de agosto estava começando a se pôr no horizonte. Ela conseguiu identificar o veículo branco do depar-tamento de medicina legal logo adiante, assim como o laboratório móvel de investigação. Os furgões estavam cercados pelo aglomerado tradicional de veículos das emissoras de rádio e televisão, além dos vizinhos curiosos.

Quando D. D. soube do local da chamada, presumiu que o caso envolvia drogas. Provavelmente algum tiroteio entre gangues. Algo muito ruim, já que o delegado local requisitou que todos os dezoito investigadores comparecessem à cena do crime. Provavelmente algo que envolvia danos a outras pessoas ou ao patrimônio. Talvez uma velha senhora que estivesse sentada na varanda de casa, ou crianças que estivessem brincando na calçada. Infelizmente, esse tipo de coisa acon-tecia, e não ficava mais fácil conviver com isso no decorrer dos anos. Mas era preciso lidar com os crimes, porque Boston era assim, e esse era o trabalho de um investigador de Boston.

Agora, entretanto, enquanto D. D. saía do carro, prendia seu dis-tintivo na cintura do jeans preto justo e pegava uma camisa branca para vestir por cima da blusa decotada que colocara especialmente para o jantar com Chip, ela começou a pensar: “Não teve a ver com drogas”. Agora, ela pensava que devia ser algo pior. Jogou uma jaqueta leve por cima do coldre que guardava a sua arma e andou pela calçada em dire-ção à toca dos leões.

D. D. abriu caminho por entre a primeira onda de adultos que se acotovelavam e crianças curiosas. Fez o melhor que podia para se concentrar, mas ainda ouviu expressões como “tiros disparados...”, e “ouvi alguém gritar como se fosse um porco...”, e “ora, eu a vi tirando as sacolas do supermercado do carro há menos de quatro horas...”.

— Com licença, com licença, abram caminho. Sargento da polícia. Senhor, saia do caminho, por favor.

Ela conseguiu atravessar a multidão e se agachou para passar por baixo da fita amarela que cercava uma parte da calçada, até finalmente chegar ao epicentro do caos, na cena do crime.

A casa à sua frente tinha três andares e era pintada em um tom de cinza. A varanda era cercada por colunas grossas e um mastro onde

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tremulava uma grande bandeira dos Estados Unidos. A porta dupla de entrada estava escancarada, facilitando o fluxo dos investigadores e policiais, assim como a maca metálica dos legistas.

D. D. percebeu que as janelas amplas que ladeavam a porta de entrada tinham cortinas delicadas de renda. Além da bandeira norte--americana, a varanda tinha também quatro vasos de gerânios vermelhos que alegravam o lugar, cinco ou seis cadeiras azuis e uma declaração pintada em amarelo-vivo: Bem-vindos.

Sim, definitivamente, era algo pior do que traficantes armados. D. D. suspirou, assumiu uma expressão mais séria e se aproximou

do policial uniformizado que estava de prontidão ao lado da escada que levava até a varanda. Recitou seu nome e o número do distintivo. Por sua vez, o policial registrou a informação no livro de assassinatos, e apontou para um caixote que estava a seus pés com um meneio de cabeça.

Obedientemente, D. D. pegou um par de galochas plásticas e uma touca para os cabelos. Então esse era o tipo de cena do crime com a qual ela teria que lidar.

Ela subiu os degraus lentamente, mais próxima de um dos corri-mões laterais. Os degraus pareciam ter sido envernizados recentemente, um tom acinzentado típico de Cape Cod2 que combinava com o resto da casa. A varanda era aconchegante e bem-cuidada. Tão limpa que ela suspeitou ter sido varrida recentemente. Talvez um dos moradores tivesse feito uma faxina depois de guardar as compras.

Teria sido melhor se a fachada estivesse suja, coberta de pó. Se fosse assim, poderia haver pegadas. Poderia ajudar a capturar quem quer que tenha feito as coisas ruins que D. D. estava prestes a encon-trar dentro da casa.

Ela tomou fôlego mais uma vez do lado de fora da porta e sentiu o cheiro de serragem e sangue ressecado. Ouviu um repórter chamá--la para que desse uma declaração. Ouviu o barulho de uma câmera disparando, o rugido de um helicóptero de alguma agência de notícias,

2 Cape Cod (Cabo Cod) é uma península no estado de Massachusetts, e um ponto turís-tico muito concorrido nos meses de verão por conta de suas praias. Turistas de Boston, devido à proximidade, estão entre os que mais procuram o local. (N. E.)

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e ruídos indistintos por toda a parte. Curiosos atrás, investigadores à frente e repórteres acima.

Caos: muito barulho, muitos cheiros, muita pressão. Seu trabalho, agora, era endireitar as coisas. E ela entrou de cabeça.

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