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Os Programas Imagéticos na Arte Barroca Portuguesa e a sua Repercussão nos Espaços Coloniais Luso-Brasileiros Dr. Vítor Serrão Universidade de Lisboa 1. Conceitos operativos para uma investigação concertada No actual panorama de conhecimentos sedimentados a respeito da produção ar- tística ibero-americana ao longo da Idade Moderna, torna-se cada vez mais imperioso reflectir, em termos de conjunto, sobre o sentido, o carácter vernáculo e o encontro de culturas e de formas assumidos pelos focos de criação, pelos mercados, pelas clientelas e pelas instâncias de consumo durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Perante um acervo monumental e artístico que em muitos aspectos é revelador de vincada originalidade, tanto o que remanesce hoje nos espaços hispano-ameri- canos como no caso do espaço luso-brasileiro , é cada vez mais imperioso refor- mular linhas de conduta metodológica e de pesquisa integrada sobre a essência da chamada arte colonial ibero-americana e, no caso da arte luso-brasileira, assumir a prática de uma fortuna crítica adequada à análise tanto quanto possível global de tais realizações plásticas. São esses os grandes temas que devem suscitar investiga- ção aberta, com constantes problemáticas em cotejo. * O Autor manifesta um especial agradecimento a Adalgisa Arantes Campos, a José Meco, a Edu- ardo Pires de Oliveira, a Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, a Olinto Rodrigues dos Santos Filho, a Jaelson Bitran Trindade, a José Manuel Tedim, a Ramón Gutiérrez, a Consuelo Viñuales, a Luciano Figueiredo, a Percival Tirapeli, a Fernando António Baptista Pereira, a Ana Cannas, a Sílvia Barbosa Guimarães Borges, a Jorge Victor de Araújo Souza, e a Maria Adelina Amorim, pelas frutuosas trocas de impressões que conduziram à estrutura desta comunicação. Cfr. a importante síntese de Ramón Gutiérrez (coord.), Arquitectura, Escultura y Artes Útiles en Iberoamérica, 1500-1825, Cátedra, Madrid, 995.

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Os Programas Imagéticos na Arte Barroca Portuguesa e a sua Repercussão nos

Espaços Coloniais Luso-Brasileiros

Dr. Vítor Serrão Universidade de Lisboa

1. Conceitos operativos para uma investigação concertada

No actual panorama de conhecimentos sedimentados a respeito da produção ar-tística ibero-americana ao longo da Idade Moderna, torna-se cada vez mais imperioso reflectir, em termos de conjunto, sobre o sentido, o carácter vernáculo e o encontro de culturas e de formas assumidos pelos focos de criação, pelos mercados, pelas clientelas e pelas instâncias de consumo durante os séculos XVI, XVII e XVIII.

Perante um acervo monumental e artístico que em muitos aspectos é revelador de vincada originalidade, tanto o que remanesce hoje nos espaços hispano-ameri-canos como no caso do espaço luso-brasileiro�, é cada vez mais imperioso refor-mular linhas de conduta metodológica e de pesquisa integrada sobre a essência da chamada arte colonial ibero-americana e, no caso da arte luso-brasileira, assumir a prática de uma fortuna crítica adequada à análise tanto quanto possível global de tais realizações plásticas. São esses os grandes temas que devem suscitar investiga-ção aberta, com constantes problemáticas em cotejo.

* O Autor manifesta um especial agradecimento a Adalgisa Arantes Campos, a José Meco, a Edu-ardo Pires de Oliveira, a Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, a Olinto Rodrigues dos Santos Filho, a Jaelson Bitran Trindade, a José Manuel Tedim, a Ramón Gutiérrez, a Consuelo Viñuales, a Luciano Figueiredo, a Percival Tirapeli, a Fernando António Baptista Pereira, a Ana Cannas, a Sílvia Barbosa Guimarães Borges, a Jorge Victor de Araújo Souza, e a Maria Adelina Amorim, pelas frutuosas trocas de impressões que conduziram à estrutura desta comunicação.

� Cfr. a importante síntese de Ramón Gutiérrez (coord.), Arquitectura, Escultura y Artes Útiles en Iberoamérica, 1500-1825, Cátedra, Madrid, �995.

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Antes de mais, ao invés de se continuar a enfocar o fenómeno artístico do Mun-do Português como um conjunto de testemunhos de dimensão sempre periférica, com inevitáveis condicionalismos de criação e uma marca inevitavelmente abastar-dada face ao ‘centro’ de origem (Lisboa e outros pólos europeus de influência), pare-ce-me bem mais interessante e fecundo que, sem perder de vista o caudal de influên-cias que se manifestam no tecido produtor e receptor, o estudo de conjunto a empreender se posicione em termos de análise da produção autóctone, da mobilida-de de obras, da permutas artísticas, da repercussão de correntes estéticas, bem como sobre os anacronismos, as clivagens, as linhas de vanguarda e as respostas localiza-das que se verificam no campo da criação, a fim de melhor prescrutar as suas valên-cias estéticas. E é disso que se trata, sempre: empreender diálogos fecundos com as obras de arte, sem ideias preconcebidas ou redutoras, mas dentro de um complexo sistema de redignificação do seu sentido primeiro, sabendo-se que se busca algo que foi interrompido ou alterado pelas circunstâncias do tempo histórico.

A noção de Arte Ultramarina, explorada com maior ênfase para o caso do Brasil, mas que abarca também os patrimónios miscigenados dos territórios da an-tiga Índia portuguesa (Goa, Damão, Diu), estudados por Mário Tavares Chicó e Carlos de Azevedo, e bem assim do Extremo Oriente, de Macau e de Timor, de Marrocos e da costa africana, etc, tem dado origem, nos últimos sessenta ou seten-ta anos, a uma série de estudos que se caracterizaram e continuam a caracterizar por três vertentes principais e concomitantes:

�) a revalorização do pitoresco (ao nível das ‘artes decorativas’, por exemplo no caso do mobiliário e da escultura luso-indiana, da arte ‘nam-bam’, dos bronzes do Benim ou da talha barroca mineira),

2) a subvalorização das expressões locais (sob o estigma de um decadentismo que seria sempre inevitável, como se outra solução criativa não fosse possível, lon-ge da influência do ‘centro’), e

3) o realce para a contribuição de temas ‘de retorno’ que vêm enriquecer, numa espécie de mais-valia aberta pela Expansão ultramarina, os novos repertórios europeus (as figuras híbridas, as representações exóticas da fauna e da flora, as fi-gura do índio e do selvagem, etc)2.

Essas perspectivas sobre a arte colonial do Mundo Português, testemunho de um determinado modo de fazer História de Arte (que são por demais simplistas e redutoras pesem os altos méritos de alguns dos resultados obtidos)3, têm impedido

2 Cfr., a respeito do conceito de ‘retorno’, a visão de Pedro Dias, A Viagem das Formas. Estu-dos sobre as relações artísticas de Portugal com a Europa, a África, o Oriente e as Américas, Ed. Estampa, Lisboa, �995. 3 Não é de desprezar a actualidade dos estudos de Mário Chico, Carlos de Azevedo e Jorge Pais da Silva sobre a antiga Índia portuguesa, os de Vergílio Correia sobre Marrocos, os de Reynaldo dos Santos sobre o Benim, os de Pedro Dias sobre Marrocos e, em especial, a série de estudos altamente especializados de Maria Helena Mendes Pinto, quer sobre lacas e biombos japoneses (Biombos Nam-ban, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, �988) ou sobre mobiliário luso-

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as várias comunidades de saber olhar para o seu património artístico, de nele des-vendarem as verdadeiras qualidades dos focos de produção autóctones e de nele reavaliarem em exacta contextualização, por entre as redes de influências díspares que se abriram com os cursos da História, as pulsões originais e a força da criação�. É evidente que, num tão vasto campo de pesquisas como este, se impõe sempre estudar o ‘retorno’, e avaliar o ‘pitoresco’, mas numa dimensão integrada que, sem absurdas derivas neo-colonialistas, ou, no pólo oposto, ultra-chauvinistas, esteja apta a reavaliar os tecidos artísticos, que são sempre fruto das bravuras e das limita-ções, dos enriquecimentos e dos seguidismos, das ousadias e das retomas anacróni-cas, das constantes vernáculas e das fugas rupturais, etc etc, linhas essas que se en-trecruzam, por vezes de maneira extraordinária, numa mesma obra e num mesmo artista. Veja-se o caso de Manuel da Costa Ataíde, o melhor pintor de Mariana na transição do século XVIII para o XIX e companheiro do célebre António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em tantas obras de nomeada5, o qual não pode ser subvalori-zado como um intérprete anacrónico de moribundas linguagens europeias, antes terá de ser visto na sua dimensão exacta de artista dotado de carácter autóctone e com uma alta bitola de originalidade, precisamente porque as rotas de influência que o marcam são díspares, heterogéneas, misturadas com constâncias e continuidades, e tudo isso molda uma personalidade francamente acima da mediania, dotado de um poder sublime de convencimento através da cenografia larga. O mesmo diria do pintor, também de Mariana, José Nepomuceno Correia e Castro, quando a sua obra de pincel for finalmente estudada, como creio que ela francamente justifica�; neste caso, a fidelidade a gravuras maneiristas ítalo-flamengas no seu repertório composi-tivo, de forte orientação católico-tridentina, não exclui, antes destaca, as qualidades de pincel, o imaginoso de uma linguagem, a adequação de fontes exógenas, e a busca de um estilo pessoal apto a gerar epigonismos…

Parece-nos que, no campo de estudos da Arte Colonial luso-brasileira, muito está ainda por se cumprir no terreno, devido não só ao desconhecimento das obras remanescentes (faltam monografias, listagens de artistas e artífices, catálogos des-

oriental (Os móveis e o seu tempo, MNAA, Lisboa, �985-87), entre outros. � Embora restrito ao espaço da investigação espanhola e hispano-americana, o livro de Ra-món Gutiérrez Historiografia Iberoamericana. Arte y Arquitectura (s. XVI-XVIII), Dos lectu-ras, Buenos Aires, 200�, oferece amplo material de reflexão sobre os modos como, desde fins do século XIX até alvores do nosso século, os arquitectos e historiadores de arte anali-saram o património artístico da Ibero-América, segundo diversas perspectivas de enfoque, «una rica experiencia de aciertos y fracasos», diz o autor (p. �2), mas com abertura de novos caminhos interdisciplinares que «asumirá sin dudas la responsabilidad de una madurez que supere las coyunturas del desconcierto». 5 Adalgisa Arantes Campos (coord.), Manoel da Costa Ataíde: Aspectos históricos, estilísti-cos, iconográficos e técnicos, Coleção História e Arte, Belo Horizonte, 2005.� Este artista pintou (c. �777-�785) as tábuas que revestem o corpo do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo. Apenas Hannah Levy (no importante estudo «Modelos europeus na pintura colonial», Revista do SPHAN, nº 8, �9��, pp. 38-�8), dedi-cou alguma atenção a este pintor, cuja actividade remonta a �7��, e que faleceu em �795.

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critivos, etc), como à falta de programas de conservação e restauro aptos a devolver vida a obras que o tempo adulterou e – sobretudo – à falta de uma vertente de tra-balho verdadeiramente interdisciplinar que congregue historiadores de arte portu-gueses e brasileiros no estudo integrado de um património artístico comum, que impõe o conhecimento conjunto e a discussão alargada; nem o chauvinismo que extrapola a dimensão regional, negando o estudo do contexto histórico como se ele fosse inevitavelmente dotado de um estigma do domínio imperial passado, nem a visão paternalista (e neo-colonialista) de quem vê a ‘arte da margem’ inevitavel-mente marcada pelo decadentismo e pela mediocridade, constituem os caminhos a seguir. Por isso, uma visão micro-artística da produção no espaço português dos séculos XVI a XVIII me parece ser a via certa para que, sem exclusões redutoras nem destaques superlativos, as bolsas criativas regionais possam ser melhor ilumi-nadas e re-conhecidas7. A visão das artes coloniais da Ibero-América não pode continuar a ser vista apenas à luz da passagem de bons artistas europeus, do envio de boas obras europeias, da penetração de fórmulas e modelos europeus, e da ‘viagem de formas’ que, em situação de torna-viagem, influenciam em notas de pitoresco o grosso da produção artística e da cultura dominante, também esta eu-ropeia. Não perdendo nunca de vista a relação existente, impõe-se, todavia, alargar o enfoque e compreender as respostas autóctones, naquilo que trazem de refres-cante e de original a uma visão de modelos e formas que, tantas vezes, chegava já abastardada aos longínquos espaços colonizados…

Dentro deste âmbito, que é o da defesa de uma História de Arte eficaz para explicar os problemas e revalorizar o sentido das obras, parti da definição de dois conceitos operativos que me parecem dever ser considerados basilares no campo dos estudos do património barroco luso-brasileiro para a prática de uma História da Arte-ciência não só eficaz no diálogo a empreender com as obras de arte como, também, útil e socialmente comprometida para a prática desta disciplina:

a) em primeiro lugar, a noção de Programa Artístico, assente num olhar inter-disciplinar com visão globalizante (ou seja, uma visão histórica, estética, ideológi-ca, antropológica, contextual, etc) sobre as obras de arte à luz da compreensão daquilo a que Aby Warburg (�8��-�929)8, entre outros atentos estudiosos, já defi-nia como os seus ‘pontos de vista intrínsecos’, isto é, o conhecimento das condi-ções culturais, políticas, socio-económicas, laborais, memoriais, ideológicas, geo-gráficas, antropológicas, de perduração e de continuidade, etc, etc, para um pleno entendimento iconológico das mesmas;

7 As noções de poli-periferismo, avançada por Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo, adequa-se com grande utilidade programática aos estudos de História da Arte. Cfr. Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo, «Centro e periferia», Storia dell’arte italiano, Einaudi, Turim, �979; trad. portuguesa, A Micro-História e outros ensaios, de Carlo Ginsburg, ed. Difel, Lisboa, �989.8 Cfr., a respeito desta definição, a recente edição-colectânea de textos de Aby Warburg, El renacimiento del paganismo. Aby Warburg, tradução de Felipe Pereda e Elena Sánchez Vigil, ed. Alianza, Madrid, 2005.

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b) em segundo lugar, a noção de Trans-Memória Imagética, conceito proposto em data recente9, que busca (re)conhecer em todas as obras de arte as suas capaci-dades mais ou menos fortes de perpetuação memorial, tornando-as um elemento fundamental de percepção das suas potencialidades globais, numa base trans-tem-poral e trans-contextual, sempre aberta e, por isso, de inesgotável fascínio para os seus fruidores e para os historiadores de arte.

Um estudo dotado de olhar globalizante sobre a arte barroca luso-brasileira e atento à utilização destes dois conceitos, a nosso ver, permite entender melhor os tipos de comportamento do mercado nas periferias coloniais da época barroca, tanto ao nível da repercussão de correntes artísticas que dimanam força do centro (neste caso, Lisboa), como em termos de afirmação das vias criativas e dos progra-mas estéticos autóctones, sem esquecer a influência veiculada por instrumentos dotados de informação inovadora, como a gravura italo-flamenga, a estampa de livro, os debates no seio das organizações de trabalho e encomenda, etc. O fenó-meno de miscigenação nos dois sentidos tem de ter em conta, no caso da fixação de artistas na colónia, aspectos como os condicionalismos geográficos, climáticos ou alimentares, o novo tipo de relações humanas, os novos hábitos de vestuário, o maior isolamento, a falta de uma classe mais esclarecida e de um mercado empre-endedor, etc. Mas continua a existir toda uma pesquisa de arquivos que urge fazer de modo sistemático.

A arte luso-brasileira realizada nos séculos a que poderíamos designar por largo tempo do Barroco permite seguir de um modo especialmente relevante (nas soluções arquitectónicas ‘chãs’, na pintura, na escultura, na talha, no azulejo e em outras artes) algumas tendências e modos comportamentais das oficinas, dos mestres, dos circui-tos de encomendantes e dos meandros dos públicos destinatários para a definição dos programas artísticos das obras em apreço e para a sua valorização e fruição coe-tâneas. A História da Arte do Barroco luso-brasileiro tem algo a ganhar com uma vi-são de conjunto que, a esta luz, visione os comportamentos estéticos e as suas cau-sas, a força das imagens e das formas e o seu sentido.

2. Um percurso possível para experimentação de uma análise

O gradual re-conhecimento das bolsas de património artístico luso-brasileiro que se cria nos séculos XVII e XVIII permite compreender elementos fundamentais de caracterização e fortes resíduos memoriais conservados pelas obras de arte, que se tornam instrumento essencial de análise integrada desta realidade artística só aparentemente ultra-periférica.

9 Os conceitos operativos utilizados são desenvolvidos no nosso livro A Trans-Memória das Imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa (séculos XVI-XVIII), Lisboa, ed. Cos-mos, 2007.

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Recorrendo às muitas e singulares relações de similitudes que se pode seriar como adequado exemplo dos mecanismos de funcionamento nos circuitos imagéti-cos da época barroca no espaço colonial português, é interessante vermos – por exemplo – como uma fruste imagem em terracota da primeira metade do século XVIII, pertencente ao Convento de Santa Teresa de Salvador da Baía e hoje no Museu de Arte Sacra dessa cidade, representando D. João V na figura de São João Baptista Menino, atesta uma interpretação algo tosca, formalmente ingénua, mas de carinho-sa evocação beata e, como tal, poderosa nos seus evidentes simbolismos na interpre-tação que faz do Poder Imperial lusitano tal como podia ser visto (e sacralizado) em contexto brasileiro. Este exemplo, dado a conhecer por Luís de Moura Sobral, mostra bem como a arte religiosa dos séculos XVII e XVIII confunde deliberadamente, muitas vezes, a dimensão do sublime e a dimensão do sagrado, testemunhando de modo espontâneo, e eficaz, uma ideia unívoca de gosto vernacular�0.

Para se analisar justamente essa tendência dimanada nas periferias, em que a produção não-erudita e mais ingénua e essa outra vertente mais erudita e clássica da representação de aparato coabitam, respondendo no mesmo sentido a solicita-ções de mercados díspares, é sempre interessante saber ver em conjunto, como pólos de uma mesma atitude de representação, obras de distintos escalões; neste caso, pode ser útil olhar-se melhor uma tela erudita como a de Giovan Domenico Duprà com a figuração de D. João V Magnífico, de cerca de �725, existente na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, em cotejo com essa imagem de-vocional que, no mesmo horizonte temporal, um artista já de si anónimo moldou em barro para o altar de um convento de freiras de Salvador, dando à simbolização do poder régio uma ambígua dimensão de culto instituído! Há características e constantes da arte realizada nos espaços de influência portuguesa no tempo do Barroco, segundo observou, em oportuna síntese, o historiador de arte Yves Botti-neau��: «o lirismo decorativo, a clareza, a simplicidade e a tendência para a geome-tria unitária» são tópicos que determinam um primado de linguagens sui-generis no caso da nossa aventura artística. Veja-se, por exemplo, o chamado estilo chão arquitec-tónico. Desenham-se, comprovadamente, linhas de força comuns a toda a produção do fazer, do pensar e do sentir na cultura artística portuguesa dentro do espaço crono-lógico do tempo barroco e que nos colocam, a todos os níveis, perante uma das fases mais ricas e diversificadas da especificidade patrimonial portuguesa.

A noção acima referida de Programa Artístico torna-se, assim, o objectivo fun-damental de estudo por parte de uma História de Arte que se defina como moder-na, actuante, útil, operativa, metodologicamente estruturada e socialmente com-prometida. A História da Arte, vista sob esta perspectiva, será a investigação orientada do sabor e do saber encerrado nas obras de arte, partindo de uma base de análise forçosamente interdisciplinar e visando o entendimento globalizante (ou

�0 Sobre a imagem, cfr. Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na época barroca, ed. Estam-pa, Lisboa, �99�, fig. �2. �� Yves Bottineau, «Lyrisme et geometrie dans l‘architecture portugaise», Arquivos do Centro Cultural Português (da Fundação Calouste Gulbenkian), tomo XI, Paris, �978.

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seja, estético, histórico, ideológico, contextual, etc) das obras de arte particulares à luz da compreensão dos seus ’pontos de vista’ intrínsecos, isto é, das condições culturais e políticas, religiosas e espirituais, socio-económicas e laborais, de perdu-rações e de continuidades, etc – numa palavra, o entendimento iconológico das obras, tal como Aby Warburg já o definia há mais de um século.

O conceito de História da Arte aqui avançado funda-se numa teoria da memória e do código imagético articulados com o seu tecido social e ideológico. Para devolver memória e vitalidade estética a obras que o tempo histórico, a mudança de função e o esquecimento das gerações forçosamente descontextualizaram, a investigação em His-tória da Arte – e na de contexto luso-brasileiro muito em particular – deve saber focar esse pano de fundo complexo mas pleno de informações que podem explicar conflitos tipológicos e mudanças trans-históricas, deixando espaço para se fruírem as obras e se estudar melhor o que permanece (e não só aquilo que passou) à luz da historicidade intensiva do princípio da Nachleben, vida póstuma das imagens, conceito que legitima a sua imensa capacidade de gerar afectos, ontem, hoje e amanhã. Qualquer imagem é dotada dessa dimensão de vida póstuma e, na sua dinâmica, é produtora de símbolos descodificáveis. Cabe ao historiador de arte, por isso, empreender essa dimensão ico-nológica no enfoque das obras na sua essência primeira, estruturada em programas artísticos como tal reconhecíveis – e fruíveis�2... Estudando a teoria de que as Nachle-ben são sempre imagens dotadas de carga simbólica, Aby Warburg mostrou já que o símbolo, materializando a tensão entre passado e presente, quebra o continuum da história e obriga a rever conceitos fixos como os de «atavismo periférico», «centro», «vanguarda», etc etc. O conceito de História de Arte que nos pode interessar mais, na medida em que responde à problemática das obras de arte particulares sem arriscar desvios substanciais àquilo que são as suas essências funda-se inevitavelmente numa teoria da memória e do código imagético como bases de trabalho: a investigação deve, assim, focar conflitos tipológicos e trans-históricos, estudar tudo o que permanece (e também o que passou) à luz da historicidade intensiva da Nachleben.

O estudo de um período tão fascinante de propostas estéticas e rico de patrimó-nios remanescentes como é a arte luso-brasileira do largo tempo do Barroco permite utilizar estes modos de ver e estas primícias de investigação com outros frutos.

2.1. Novidade face a resistências e atavismos

A arte luso-brasileira do tempo barroco constitui um óptimo laboratório de estudos, dada a sua especificidade de encontro / reelaboração / recriação de fórmu-las plásticas comuns, para se analisarem comportamentos criativos sob o tónus vernáculo. Tomando de novo o olhar da iconologia warburghiana ao visionar a evolução histórica da humanidade como a história da instituição de um Denkraum

�2 Cfr. V. Serrão, A Trans-Memória das Imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa (séculos XVI-XVIII), Lisboa, ed. Cosmos, 2007, cit.

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– que Warburg definia como o espaço de pensamento que gradualmente insere o intervalo entre o homem e a natureza, conduzindo-o das formas arcaicas de iden-tidade mimético-corpórea com o mundo até ao estádio científico-racional, ou seja, da magia à lógica –�3, verificamos como a totalidade dos símbolos que as obras de arte de cada ‘tempo’ representam determina a sua vida social, preservando uma energia que dá às imagens enorme espessura. A História da Arte, e em especial a de enfoque luso-brasileiro, deve, assim, saber analisar questões como a moderni-dade das experiências que se afirmam à margem dos grandes centros, despidas de acesso aos caudais da informação erudita e à margem das flutuações de gosto que dominam nesses centros.

Assume-se a abordagem sob uma perspectiva micro-artística e tomando dois casos de irmandades decoradas a esmero em anos concomitantes, uma em Santa-rém, outra no Recife: contrariando a tese de que o centro é sempre lugar privilegia-do de criação artística e a periferia significa afastamento geográfico em relação àquele (ou seja, atraso), o estudo dos paradigmas de conhecimento estético deve ser empreendido sob diversas facetas de produção e recepção. O regionalismo de muitas manifestações de arte luso-brasileira que nascem em contexto de periferia (mas que nem sempre serão de gosto retardatário) constitui manancial cativador para uma História de Arte que se defina pelo estudo em globalidade do facto ar-tístico e esteja apta a sensibilizar-se pela resposta que brota dos contextos de produção regional. O caso da célebre Capela Dourada, anexa à igreja da Ordem Terceira de São Francisco, no Recife, assume um especial testemunho de boa utilização por uma irmandade encomendante do conceito de bel composto na arte religiosa do seu tempo��. Esse conceito, fixado no século XVII pelo famoso tratadista romano Gianpietro Bellori e alvo de estudos por autores como Germain Bazin, Flávio Gonçalves, Robert C. Smith, Jorge Henrique Pais da Silva e Natália Marinho Ferreira-Alves, foi caracterizado nas suas bases conceptuais por Luís de Moura Sobral, com exemplos equiparáveis, pelo espírito da decoração totalizada e unívoca, em obras portuguesas mais ou menos coetâneas, como sejam a igreja do Convento dos Cardais, o ante-coro do convento de Nossa Senhora da Quieta-ção das Flamengas, a Capela de Nossa Senhora da Doutrina na igreja de São Roque e a igreja da Encarnação das Comendadeiras de Avis, todas em Lisboa, bem como a igreja de São Vítor e a do Salvador em Braga, o Mosteiro de São Francisco do Porto, a igreja da Misericórdia de Viana do Castelo, a igreja do Ter-ço de Barcelos, a igreja matriz de Nossa Senhora da Encarnação na Ameixoeira, a igreja de Nossa Senhora da Ajuda em Peniche, a irmandade anexa à igreja de Santa Cruz da Ribeira de Santarém, as igrejas de Nossa Senhora dos Prazeres e da Senhora do Pé da Cruz em Beja, e a célebre Capela Dourada (igreja da Ordem

�3 Cfr. Aby Warburg, El renacimiento del paganismo. Aby Warburg, tradução de Felipe Pere-da e Elena Sánchez Vigil, ed. Alianza, Madrid, 2005. �� Cfr., sobre o conceito de totalidade aplicado à arte barroca nacional, Luís de Moura So-bral, «Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português», in Actas do Congresso Internacional Struggle for Synthesis. A obra de arte total nos séculos XVII e XVIII (Braga, �99�), ed. IPPAR, Lisboa, 2000, vol. I, pp. 303-3�5.

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Terceira de São Francisco) no Recife�5. Como diz a este propósito o historiador de arte Luís de Moura Sobral, foi «esta constante tensão entre diversidade plástica e busca de um sentido unitário» que marcou o «carácter verdadeiramente barroco» da arte portuguesa do reinado de D. Pedro II e dos alvores do reinado de D. João V, tanto na metrópole como nas possessões ultramarinas, da Índia ao Brasil, assim se definindo como «a mais significativa e caracterizada contribuição portuguesa ao património artístico do Ocidente»��.

O conceito de obra de arte total aplica-se com pleno rigor ao caso do progra-ma decorativo da Capela da Ordem Terceira de São Francisco, anexa à igreja do antigo Hospital franciscano de Jesus Cristo do Sítio, em Santarém. Este mal conhe-cido mas absolutamente esplendoroso espaço barroco foi ornado no primeiro quar-tel do século XVIII por uma equipa de artistas que actua entre �700 e �7�7, mais ou menos, incluía o mestre entalhador Manuel Álvares, uma série de pintores de óleo e dourado, e o pintor de azulejos Manuel de Oliveira Bernardes�7. No caso similar da Capela Dourada do Recife, também os vários ‘géneros’ artísticos (talha dourada, pintura de cavalete, azulejo, escultura, entarsia, etc) casam-se com a so-noridade da prédica de altar e do cântico litúrgico, com o cheiro do incenso, com os arranjos festivos de flores e com o poder estatutário dos mesários da irmandade para creditar localmente uma conduta, um exemplo, em suma, uma ideologia de classe. A história da vila de Santarém ao longo da Idade Moderna justificava a ri-queza ímpar de uma peça artística com esta importância – que só se estranha con-tinuar a ser tão pouco conhecida a nível das acções do turismo cultural – e ilumina-nos sobre os contornos do seu programa decorativo, escolhido ao pormenor, elaborado e custeado pelas elites da sociedade escalabitana na transição do século XVII para o XVIII. Um fenómeno em tudo similar ao que ocorre, nos anos de ��9� a cerca de �7�0, com a decoração da Capela Dourada da Ordem Terceira de São Francisco, no Recife, com programa decorativo do arquitecto António Fernandes de Matos, pinturas de José Pinhão de Matos e azulejos de António Pereira Ravasco, seguindo como mote inspirador, segundo a documentada, o programa ornamental da igreja de Nossa Senhora do Loreto, em Lisboa�8...

A esse respeito é interessante seguir os passos do capitão e pintor José Pinhão de Matos, mais um desses casos de artista, ainda mal estudado, com acção ambu-latória pelo Império, entre Goa e Lisboa, Pernambuco e Salvador, ora agindo como militar, ora como negociante, ora como cartógrafo, ora como pintor de óleo, bru-

�5 A respeito deste conceito e dos melhores exemplos na arte portuguesa dos séculos XVII e XVIII, cfr. o recente estudo de conjunto de Vitor Serrão, O Barroco, vol. IV de História da Arte em Portugal de Ed. Presença, Lisboa, 2002. �� Moura Sobral, op. cit., p.3��. �7 Vítor Serrão, «A Capela Dourada de Santarém. A Capela da Ordem Terceira de São Fran-cisco e o espectáculo da totalidade no Barroco nacional (c. �700-�7�7)», Homenagem a Jorge Henrique Pais da Silva, coord. de Pedro Gomes Barbosa, ed. Esquilo, Lisboa, 200�.�8 Cfr. a esse respeito V. Serrão «A pintura proto-barroca em Portugal (���0-�70�) e o seu impacto no Brasil Colonial», revista Barroco, nº �8, �997-2000 (Actas do Simpósio O Terri-tório do Barroco no Século XXI), pp. 2�9-292.

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tesco e perspectiva… Apurei que seu filho, o escravo pardo Simão Gomes dos Reis, vivia em Lisboa em �739 e seguia, já alforriado e liberto pelo testamento paterno, a actividade pictórica que lhe fora ministrada por seu defunto pai�9. O Panorama da Cidade de Goa (com medalhão da Chegada de S. Francisco Xavier à Índia), pintado para o Colégio jesuítico da Cotovia e hoje no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa, é obra da autoria de José Pinhão de Matos e de seu filho, em associação, tal como uma grande tela do Panorama de Lisboa (com medalhão da Partida de S. Francisco Xavier para a Índia), com que emparceira.

2.2. Formas metamorfoseadas, entre resistência, inovação, busca da novidade e manutenção do traço vernáculo

Examinam-se algumas peças de arte luso-brasileira que traduzem com toda a clareza a referida metamorfose de formas e em que só o conhecimento profundo de realidades distintas que dialogam através de uma determinada encomenda per-mite devolver outro sentido.

Um desses testemunhos merece aqui uma especial referência: trata-se do ex-traordinário programa de decoração barroca que preenche a totalidade da capela-mor da igreja matriz de Tiradentes (a antiga Vila de S. José), na comarca de Rio das Mortes, em Minas Gerais, com o seu retábulo principal de talha barroca joanina, obra dos entalhadores bracarenses João Ferreira Sampaio e Pedro Monteiro de Sou-sa (c. �735-�7�0)20, complementada com o tecto decorado com vasta decoração pictural de brutesco de ouro, da autoria do pintor António Caldas (c. �730-�739)2�. Tudo nesta obra atesta uma sedimentação morosa, e segura, de formulários artísti-cos torna-viagem, em que o desejo de actualização, no caso do figurino escolhido para a obra de talha, e a fidelidade a soluções decorativas estabilizadas no gosto regional, no caso da pintura de brutesco, atestam uma atitude de mercado só aparen-temente contraditória. Para Myriam Ribeiro, que vê nesta obra «o mais importante retábulo bracarense da história da talha luso-brasileira», as qualidades de estilo que o conjunto reflecte, dentro da boa tradição da «talha gorda» do Minho e «sem equi-valentes em outras igrejas de Minas Gerais»22, com só podem ser ponderadas à vista

�9 Em �739, estando à hora da morte, o Capitão José Pinhão de Matos passou carta de alforria, em notário de Lisboa, a seu filho pardo Simão Gomes dos Reis, pintor (Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Cartório Notarial nº �2, Lº �59, fls. �8 vº a 72. 20 Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, «Entalhadores bracarenses e lisboetas em Minas Gerais setecentista», Imagem Brasileira, Revista do Centro de Estudos da Imaginária Brasilei-ra, nº 3, 200�, pp. ���-�5�. 2� Olinto Rodrigues dos Santos Filho, «Manuel Victor de Jesus, pintor mineiro do ciclo ro-cocó», revista Barroco, nº �2, �982-83, pp. 23�-2�2, e «A talha da matriz de Tiradentes», Minia, �993, pp. ��7-�39. 22 Myriam Ribeiro, art. cit., pp. ���-��5.

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da obra de Marceliano de Araújo em Braga, designadamente face a trabalhos exacta-mente contemporâneos, o retábulo da Misericórdia (�73�-�739) e a caixa de órgãos da Sé (�737)23. Aliás, e não por coincidência, esse grande escultor-entalhador bracarense executou, em �738, esculturas com destino ao mercado religioso de São José de Rio das Mortes (actual Tiradentes), as quais, embora perdidas ou inlocalizadas, explicam bem o peso da sua influência dos seus modelos estilísticos nessa região2�.

A verdade é que o próprio conceito de poli-periferismo ajuda a situar uma solu-ção de equipamento retabulístico como a que a fábrica da matriz de Tiradentes en-tendeu ser a mais adequada e moderna para o fim em vista. Trata-se de um exemplo óptimo de arte barroca viajeira em que a execução, a cargo de compententíssimos mestres reinóis, ajuda, pelo peso referencial de modelos que cada um transporta, a uma reinterpretação de soluções estéticas de origem metropolitana que, sendo exó-gena, não deixa de acentuar o seu traço de grande modernidade e, no caso da região, o seu alto valor de obra de viragem.

2. 3. Redimensionação do modelo pictórico do Brutesco

O reconhecimento dos acervos patrimoniais brasileiros tem permitido revelar nos últimos anos, a par do muito conhecido conjunto de forros de pintura perspéc-tica, uma série de testemunhos de utilização tardia da linguagem decorativa de brutesco, que a partir da metrópole se iria espalhar por todo o espaço lusófono, de Angola a Macau, à Índia e, naturalmente, ao Brasil25. A singularidade desta lingua-gem, tipicamente vernácula e de exclusiva utilização em espaços portugueses, abriu o interesse para que, há muito, tentasse uma primeira caracterização artística, tipológica e funcional deste gosto, o denominado Brutesco Nacional, género exclu-sivo da arte do Mundo Português.

A partir da reavaliação de uma série de decorações mal estudadas e com a revelação arquivística de um vasto elenco de contratos de obras de brutesco em igrejas, conventos, ermidas, colégios, palácios, solares, engenhos e outros espaços do reino português e do seu território imperial de influência durante os séculos XVII e XVIII2�. Recordo o forro da Capela do Sítio Santo António, em São Roque (São Paulo), decoração datada de ��8�, ou o tecto com nove caixotões brutescados da sacristia da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Embu, de �720, onde é curiosís-sima a decoração de brutesco com ‘ferronerie’, cartelas com símbolos da Paixão de

23 Robert C. Smith, Marceliano de Araújo, Porto, Nélita editora, �970. 2� Eduardo Pires de Oliveira, «Revisitar Marceliano de Araújo», comunicação ao VIII Coló-quio Luso-Brasileiro de História da Arte, Porto, 200� (publicado no Boletim da Santa Casa da Misericórdia de Braga, 200�). 25 Vítor Serrão, «A Pintura de Brutesco do Século XVII em Portugal e as suas repercussões no Brasil», revista Barroco, nº �5, �990-92, pp.��3-�35. 2� Idem, ibidem, pp. ��3-�35.

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Cristo e, ainda, lacados com ‘chinoiserie’, uma obra que pode ter sido patrocinada pelo Padre Belchior de Pontes, segundo as pesquisas de Percival Tirapeli27. Ao ve-rem-se ciclos de brutesco em igrejas como a já referida decoração da capela-mor e do corpo da igreja matriz de Tiradentes, por António Caldas28, onde o motivo bru-tesco se associa tão bem a programas de talha lavrada, órgãos, fingimentos marmó-reos e pintura de cavalete ou até de azulejo, observamos que o aparente anacronis-mo formal se sabe dotar de insuspeitas potencialidades criativas. Recorda, pelo uso do brutesco de ouro, tectos como o da igreja da Misericórdia de Torres Novas (��7�) ou o da igreja de São João de Deus de Montemor-o-Novo (��72). Prevalece a consciência moderna no uso do brutesco compacto, numa época em que o cen-tro substituía esse gosto pela pintura de perspectiva arquitectónica, à maneira dos grandes tectos italianos.

A pintura de brutesco no Brasil oferece excelente barómetro desta questão. Se nos lembramos como, mesmo em Lisboa, o mercado artístico vai continuar a aceitar (e a fomentar !) a linguagem do Brutesco até datas avançadas do século XVIII (com mestres da modalidade como Francisco e José Ferreira de Araújo, António da Serra, Oliveira Bernardes, Miguel dos Santos, Lourenço Nunes Varela, Santos Marques, Pedro Peixoto), é certo que a avaliação sobre a impossibilidade de actualização de modelos tem de ser revista. A unicidade de respostas, o modelo único, nunca existiu nem existe. O gosto pelo brutesco atingiu o seu o auge com D. Pedro II – época de estabilidade, em que se procede à renovação de modelos estéticos. O brutesco, tão afastado da pintura erudita que nesses anos se realiza no «centro» (Lisboa) com Vin-cenzo Baccherelli e seguidores, mostra decadentismo inevitável; mas é forçoso saber ver essa bitola para se resgatarem as valências que também existem e que, num con-fronto reduzido a categorias obsoletas (como a de «património não relevante»), esva-ziam o debate científico. A verdade é que a modéstia de recursos que advém da falta de horizontes coabita com a ousadia de intervenção cenográfica, expressa no modo como o brutesco preenche largas superfícies, o que tem de ser visto menos como reflexo de um anacronismo fruto do isolamento cultural, e mais como factor de mo-dernidade possível, ligada a uma resistência à novidade entendida por comunidades e, como tal, inaceitáveis para a sua sensibilidade.

A questão central que colocam estas linguagens contrastantes (antagónicas) tem de ser reflectida noutros moldes pela História de Arte: considerar esta deriva pela decoração brutesca em igrejas e palácios como parcela de uma tendência de resistência renovada que se mantém nos espaços de periferia como modo de actu-alizar modelos vernáculos, redimensionados por uma visão mais esclarecida – mais

27 Cfr. o excelente estudo descritivo de Percival Tirapeli, Igrejas Paulistas. Barroco e Rococó, UNESP, São Paulo, 2003, pp. ���-��8 e 232-235. 28 O muito injustamente desconhecido António Caldas pintou de brutesco de ouro o texto da capela-mor (c. �730-�739) e voltou a Tiradentes em �75�-�752, pintando então, segundo a mesma lógica ornamental do presbitério, o forro de caixotões da nave. A sugestão primeira remete para obras portuguesas do século XVII, como certas decorações de Lourenço Nunes Varela no Alentejo ! O grande tradicionalismo desta decoração, com uso de «ferroneries» maneiristas, é absolutamente singular.

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barroca... Parece-nos que foi precisamente esse o caso, em claro desejo de superar os limites da linguagem tradicional, tornando-a mais apelativa, sem deixar de cor-responder ao gosto dos mercados do vasto espaço lusófono. A realidade é que o brutesco (tectos de caixotões, forros lisos, abóbadas a fresco) dobra o ano de �700 e entra mesmo no reinado de D. João V como prática artística, na metrópole e no Brasil, com energias revitalizadas.

2.4. Um sentido vernáculo de decoração pelo azulejo.

As soluções de padronagem utilizadas pela aplicação integral de azulejo de cor, ao longo do século XVII e ainda do XVIII, constituem um modo assaz original de criar uma expressão espacial transfiguradora da rígida espacialidade da arqui-tectura chã dominante.

Esse figurino tipológico de padronagem organizado em jogos de «tapetes» pa-rietais q ue contribuem para o inexcedível efeito cenográfico desses espaços reli-giosos e civis assim revestidos, mereceu a atenção especializada de Santos Simões e de José Meco29 e encontra no Brasil testemunhos de altíssima ousadia. Merece ser citado como um exemplar testemunho o programa cerâmico que reveste, com azu-lejos de padronagem, a capela-mor e a cúpula da igreja do Convento de Santo António, no Recife, obra do início do séc. XVIII, a lembrar soluções metropolitanas como, por exemplo, a capela de São Sebastião da Ericeira e a igreja do convento de freiras domínicas de Elvas. A arte do azulejo português dos séculos XVII-XVIII assume-se assim, na variedade de soluções empregue, e dentro da dimensão de decorativismo que a caracteriza, como uma exemplo de arte maior, articulada com a volumetria austera da arquitectura chã numa poética de refulgências de assombro-sos efeitos, que sobrevive nos vários espaços do Mundo Português como se fizesse parte activa de um saber fazer nacionalizado... Que os clientes e artistas de um e outro lado do Império o sentissem com idêntico frémito, recorrendo a uma unívoca solução de aplicações, torna óbvia a necessidade de um estudo de conjunto.

2.5. A mobilidade de artistas entre Portugal e o Brasil no tempo barroco

A farta documentação compulsada tanto em Portugal como no Brasil mostra que, como seria natural, existiu uma forte mobilidade de artistas, oriundos sobretudo

29 J. M. dos Santos Simões, Azulejaria Portuguesa do Século XVII, Fundação Calouste Gul-benkian, 2 tomos, �97�; e José Meco, Azulejaria Portuguesa, Livraria Bertrand, Lisboa, �985; e idem, «Lisboa Barroca: da Restauração ao Terramoto de �755. A Talha e o Azulejo na valori-zação da Arquitectura», O Livro de Lisboa (coordenação de Irisalva Moita), Lisboa, �99�.

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de Lisboa e do Minho (Braga e Guimarães) a tomarem o caminho de Salvador, do Rio, do Pernambuco e, depois, de Minas30. Sendo o Minho uma das zonas de mais densa população do reino, a tradição de certas artes como a escultura, a talha e o dourado, e o excesso demográfico, quando não a necessidade de fugir a persegui-ções inquisitoriais, foram razão para que muitos artistas, alguns deles de manifesto primeiro plano, tomassem o caminho do Brasil em busca de mercados prósperos.

Só do Minho setecentista, com destino a Minas Gerais, o historiador de arte Eduardo Pires de Oliveira recenseou nada menos de oitenta e oito nomes, entre eles personalidades como o Engenheiro José Fernandes Pinto de Alpoim, que era de Viana do Castelo, o arquitecto Sousa Calheiros, e o famoso pintor de perspecti-vas José Soares de Araújo, o Guarda-Mor de Diamantina, que era natural da fregue-sia de S. Vítor em Braga. Além de entalhadores como Manuel de Brito e de Francis-co Xavier de Brito, que de Lisboa seguem para o Rio e daí para Minas, ou do escultor Simão da Cunha, que era de Braga, conhece-se bem o caso dos pintores que, de Lisboa, seguem para o Brasil, buscando ambiente onde possam reinar como pequenos astros, caso de António Simões Ribeiro em Salvador, de João de Deus Sepúlveda no Nordeste e de Caetano da Costa Coelho no Rio.

Mas o movimento inverso – ainda muito mal estudado – também se documen-ta: de Sabará vem para Braga aprender pintura e dourado o moço Pedro Perreira, cuja família tem meios para o pôr a aprender na oficina do prestigiado mestre José Lopes da Maia, e que por Braga se deve ter quedado depois, com oficina aberta e fartura de encomendas e dourado e de brutesco3�. A presença deste pintor brasilei-ro de Sabará no seio do melhor Barroco bracarense dá-nos uma ideia precisa de como a mobilidade artística, nestes tempos, era menos impeditiva do que geral-mente supomos; não se sabe, porém, se Pedro Pereira regressou a Minas, já que não possuímos dados nesse sentido, mas é natural que se quedasse num ‘centro’ que lhe oferecia outras possibilidades de êxito32.

30 Cfr. Judith Martins, Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, 2 vols., Rio de Janeiro, �97�; e Eduardo Pires de Oliveira, «Artistas minhotos que tra-balharam em Minas Gerais (Brasil) no Século XVIII», Estudos sobre o Século XVIII em Braga, Edições APPACDM, Braga, �993, pp. 207-228. 3� Yvone da Paz Soares, «Pedro Pintor», Minia , 3ª série, nº �, �993. 32 No rol de pintores-douradores publicado por Natália Marinho Ferreira-Alves, «A acti-vidade de pintores e douradores em Braga nos séculos XVII e XVIII», Actas do Congresso Internacional comemorativo do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, �990, pp. 3�3-37�, o nome de Pedro Ferreira não aparece, o que pode sugerir que o moço de Sabará tenha voltado à sua terra findo o aprendizado com José Lopes da Maia, ao tempo um pintor prestigiadíssimo (Eduardo Pires de Oliveira, A Capela de São Miguel-o-Anjo, Braga, 200�, p. ���, publica um documento de �783 que dele diz ter sido «celebre pintor morador que foi na Rua da Praça a cujo pincel deve a posteridade e as aclamações de Apeles»). Ainda não sabemos o que se passou; a verdade é que nos exaustivos levantamentos de documentação setecentista bracarense realizados por Eduardo Pires de Oliveira não constam referências a esse artista mineiro.

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A mobilidade de obras artísticas também se documenta em grande extensão e envolve artistas de primeira plana. Em �70�, o famoso pintor régio de D. Pedro II, Bento Coelho da Silveira (fal. �708), recebe o encargo, que lhe é feito em Lisboa pelo desembargador Cristóvão de Burgos, de pintar vinte e cinco telas, ao preço de 72.000 rs, para revestimento dos caixotões do tecto da capela de Nossa Senhora do Rosário no engenho de Paripe, em Salvador. Anos mais tarde, cerca de �735, André Gonçalves (��85-�7�2) pinta na sua oficina de Lisboa, para decoração da boca da tri-buna do retábulo-mor da Sé de Mariana, uma magnífica tela de Nossa Senhora da Conceição, obra que executa a esmero, com preciosismos de pincel, como se se tratas-se de encomenda para um espaço nobre da capital, o que indicia o respeito com que estas obras eram assumidas, prestigiando os mestres escolhidos. Já nas primícias do século XVII os pintores Simão Rodrigues, Fernão Gomes, António Carvalho Teixelo, André Reinoso, e outros, tinham trilhado a mesma via laboral. No fim do século XVII, sabemos que António de Oliveira de Louredo enviou para igrejas e palácios de Per-nambuco carregamentos de pinturas para aí serem vendidas33), e que nessa actividade se seguirá António de Oliveira Bernardes (���2-�732), notável pintor de óleo, fresco e azulejo. Em Maio de �727, o pintor fez procuração para cobrar certas dívidas que se lhe deviam da «venda de painéis nas partes do Brasil», e em Março de �729 nomeia procurador seu genro António Correia Barreto para que recebesse o dinheiro devido da venda de «huma carreguação de Painéis que desta Cidade remeteo para a de Rio de Janeiro», pinturas a óleo que Bernardes enviava para igrejas não discriminadas dessa cidade, senão também para outras partes do Brasil. Resta descobrir, entre as centenas de pinturas anónimas da época barroca que continuam por estudar, restaurar e identi-ficar e se conservam, meio esquecidas, em esconsas sacristias e dependências de igre-jas e capelas, ou em depósitos de museus e colecções privadas, obras destes artistas lisboetas enviadas para a colónia brasileira. Também se enviavam esculturas dos cen-tros portugueses: vimos já que o famoso escultor bracarense Marceliano de Araújo, autor do triplo retábulo da Misericórdia e das célebres caixas de órgão da Sé de Braga (�737-�739), enviava para Minas Gerais, em �738, uma série de imagens por si lavra-das, com destino ao mercado religioso de São José de Rio das Mortes3�. Embora tais peças se tenham perdido (ou estejam inlocalizadas), não custa imaginar-se o impacto que a chegada ao coração de Minas de esculturas com uma qualidade previsivelmente tão alta provocaria em termos de recepção nos círculos artísticos locais, sugerindo novas influências e actualizações. Faziam-se então os retábulos da matriz dessa cidade mineira, curiosamente por entalhadores oriundos do Minho, e é notória o eco, nessas obras, das novidades do Barroco joanino tal como entretanto era imaginizado pelo escopro dos melhores mestres bracarenses, caso de Marceliano.

33 Documentos citados em V. Serrão, «Contributos para o estudo da pintura maneirista e barroca no Brasil: contactos artísticos entre Lisboa e os centros brasileiros no século XVII», Actas do Congresso Internacional de Arte Luso-Brasileira, Ouro Preto-Diamantina, revista Barroco, nº �7, �997, pp. 23-30..3� Eduardo Pires de Oliveira, «Revisitar Marceliano de Araújo», cit ; idem, Estudos sobre os séculos XVII e XVIII no Minho. História e Arte, Braga, APPASCDM, �99�, pp. 2��-22�.

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É muito elucidativo, em suma, lembrar o que em ��70 escreve o poeta Antó-nio Leitão de Faria, na Homenagem da Academia dos Singulares feita então ao pintor Bento Coelho da Silveira, a respeito da procura incessante de boa pintura, junto aos melhores pintores da corte, para serem enviadas para o Brasil e também a Índia, assim atestando o valor altamente prestigiante de tais aquisições: «os Esta-dos da Índia e Brasis, despresando as riquezas que têm debaixo do seu domínio e fazendo pouco cazo do metal luzente que em suas entranhas se cria, só fazem caso do precioso destes quadros e só se prezam de possuir o sublime destas obras. E assim destes Estados, como das mais remotas terras, se estão vindo buscar continu-amente para se colocarem nos templos e igrejas de melhor fama»35…

2.6. As fontes gravadas

A atitude revelada por artistas e encomendantes luso-brasileiros na época bar-roca perante a imagem oferecida pela gravura italiana, alemã, flamenga e holande-sa foi, salvo em raras circunstâncias, de estrita dependência, dado o papel de indi-cador iconográfico privilegiado de tais estampas, utilizadas nas nossas oficinas de pintores, escultores e entalhadores como referenciais temático-compositivos exac-tos, ademais livres de qualquer contra-indicação em termos doutrinários por parte de algum visitador da Igreja mais escrupuloso. A listagem de autores e obras que se inspiram em gravados maneiristas nórdicos, sejam de Cornelis Cort, dos Wierix, dos Sadeler, de Dirk Coornhert, de vários gravadores segundo Maerten de Vos, ou ou-tros, sem esquecer Durer e Raimondi, que continuarão a ser fonte inspiradora até ao século XVIII, nem Vorstermann II, P. Pontius e outros difusores da obra de Ru-bens, é por demais extensa e com ecos importantes na produção conhecida, mas não esgota as fontes de pesquisa e informação dos nossos artistas.

Resta estudar melhor, entretanto, o circuito das fontes gravadas no mercado brasileiro, a disponibilidade dos mecenas (confrarias, irmandades e burgueses abastados), e o papel de mais ou menos consciente modernidade que é lícito tribu-tar aos orientadores de programas iconográficos nas obras artísticas3�. A posse de bons repertórios de estampas era considerada uma mais-valia para um artista: o já referido pintor marianense João Nepomuceno Correia e Castro, no seu testamento de �79�, deixava aos seus aprendizes o mais precioso dos bens que lhes poderia fornecer, ou seja, os seus ‘desenhos’, ‘riscos’ e ‘colecções de gravados’, para assim poder ser perpetuada a herança escolar desejada. Mas o gravado não era sempre si-nónimo de cópia silenciosa: pode observar-se ainda, neste caso, que os melhores artistas do século XVII e XVIII, fosse no estrito labor anónimo das parcerias e oficinas

35 Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na época barroca, cit., p. �39.3� Estudo a citar, de novo, é o artigo pioneiro de H. Levy, «Modelos europeus na pintura colonial», Revista do SPHAN, nº 8, �9��, pp. 38-�8. Estudo interessante, recente, é o de Sílvia Barbosa Guimarães Borges e Jorge Victor de Araújo Souza, «Espelho da fé», Revista de História da Biblioteca Nacional, nº �3, Outubro de 200�, pp. �2-�7.

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colectivas, ou no labor mais individualizado de produtores emancipados, e quem lhes encomendava as obras, fugiram por regra à réplica directa -- evitando que a «citação» de temas artísticos internacionais se não transformasse em entediantes có-pias, com perda da sua originalidade de criação. Estamos perante um campo de pesquisa que se revela frutuoso, permitindo cruzamentos de dados com outras linhas de investigação histórico-artística. Era útil reconstituir, por exemplo, os fundos de bibliotecas conventuais e palacianas, e reflectir sobre os circuitos de estampas e a sua dominância, por exemplo, em sedes de confrarias e livrarias de ordens religiosas.

Os exemplos são imensos. Vendo-se a série de azulejos executados em �737 pelos pintores lisboetas Nicolau de Freitas e Bartolomeu Antunes no claustro da igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, em Salvador, onde são utilizadas gravuras maneiristas nórdicas de Otto Van Veen, em que os artistas se inspiraram, é notória a similitude com ciclos metropolitanos37. A tábua da Expulsão de Adão e Eva do Paraíso, atribuída ao Irmão Domingos Rodrigues (?), de cerca de ��83-��9�, nas paredes da Sacristia da igreja do Colégio jesuítico de Salvador, segue modelo de uma gravura de ���9 pelo francês Nicolas Chaperon (segundo estampas renascentistas de Tommaso Vincidor e do rafaelesco Giovanbattista Pen-ni), em que se inspirou38; a mesma gravura influencia azulejos bahianos tal como indfluencia as pinturas do arcaz sacristia da igreja matriz de Vila Alva, em Cuba, no Alentejo. O tema de Santo António de Lisboa e a Tentação do Diabo, um dos me-dalhões pintados no tecto da igreja do convento de Santo António de Igarassu, no Estado de Pernambuco, pelo pintor José Rabelo de Vasconcelos, de �7�9, segue com fidelidade uma gravura de Martin Engelbrecht editada em Aubsburgo em �7�0, pertencente a um ciclo também utilizado em decorações metropolitanas coevas39. O São Miguel e as Almas do Purgatório, pintado por António Simões Ri-beiro, c. �7�0, num dos caixotões do forro da Sacristia do Convento de Nossa Se-nhora do Desterro em Salvador, segue fontes iconográficas bem reconhecíveis, a partir de um gravado maneirista de Hieronimus Wierix, de �587, muito utilizado em baixos-relevos e em pinturas retabulares portuguesas do século XVII. A listagem de gravuras comumente utilizadas nos mercados luso-brasileiros levaria a estrutu-rar um vasto ‘corpus’ de preferências, com dados acaso significativos para se com-preenderem tendências e soluções de continuidade.

37 José Meco, in catálogo The Blue and White Baroque Festival. - The Cloister and Consistory Tile Panels of the Third Order of São Francisco, São Salvador da Bahia, coord. de José de Monterroso Teixeira, Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, Lisboa, 200�; e Percival Tirape-li, Barroco Memória Viva. Arte Sacra Colonial, UNESP, S. Paulo, 200�, pp. �39-��3.38 Aliás, toda essa série bahiana de temas vetero-testamentários da Sacristia da actual Sé de Salvador segue, como bem demonstrou Moura Sobral, sugestões compositivas a partir de séries de gravados reconhecíveis. 39 Igreja de Santo António de Igarassu. Conservação e Restauro, ed. Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, coordenação de José Monterroso Teixeira, Lisboa, 2000, pp. ��-��.

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2.7. Novas iconografias de convencimento.

Falta estudar no campo da arte brasileira o eco de algumas soluções iconográ-ficas que adquirem, em todo o Mundo Português, grande popularidade. É o caso da iconografia narrativa de São Francisco Xaver, que como hoje bem se sabe foim defi-nida pela primeira vez com as telas de André Reinoso na Sacristia da igreja de São Roque, em ���9, três anos antes da santificação de Francisco Xavier, em ��22, e que serão o principal modelo para tantas representações no Mundo Ibero-Americano, e na Europa�0. Sobre a construção da iconografia do Apóstolo das Índias no Brasil, há que lembrar também o papel informativo aberto pela difusão das estampas de Jean-Baptiste le Barbé e de Philippe Thomassin (��05-��0�) e os relatos dos livros de João de Lucena e de Orazio Torsellino, bem como as cartas de jesuítas no Oriente, o livro de Linschotten, e ainda os relatos de coevos que conheceram ou ouviram quem co-nheceu Francisco Xavier. Mas o conhecimento de uma iconografia xavieriana em pintura, nos Colégios brasileiros, ainda não foi devidamente estudada.

No caso da utilização da linguagem simbólica do bodegón (natureza-morta), em que a arte portuguesa do século XVII atinge um tão elevado brilho com as obras de Baltazar Gomes Figueira (��0�-��7�) e sua filha Josefa de Óbidos (��30-��8�), sa-bemos que esse ‘género’ também seduziu o mercado do Brasil, desde Olinda (onde a sacristia de Sã Francisco possui aplicações de floreiros e bodegones na boa tradição barroca portuguesa)�� a Salvador da Baía, onde trabalha, na transição do século XVII para o XVIII, o frade Eusébio de Matos, que a tradição diz ser bom especialista nesse tipo de representação, apto a explorar o naturalismo e o simbolismo dos elementos, à luz do conceito da ut ars rhetorica divina. Infelizmente, não conhecemos nenhum quadro deste Eusébio de Matos com figuração bodegonística�2.

Como se sabe, a palavra dita e a imagem assumiram nos anos da Restauração, e nos de D. Pedro II, um papel de grande relevo através da representação – fervor messiânico, profetismo militante, discurso catequético e nacionalismo anti-caste-lhano. Na arte de propaganda católica, que o Mundo Português consome em larga escala durante os séculos XVII e XVIII, a colónia brasileira produziu, tanto por com-pra na metrópole como, de modo crescente, por produção local autonomizada, quadros e ciclos de pintura que, sob signo dos cânones moralizantes da Contra-

�0 Cfr. «A iconografia de São Francisco Xavier na pintura portuguesa do século XVII», catálo-go da exposição São Francisco Xavier: a sua vida e o seu tempo (1506-1552), V Centenário do Nascimento de São Francisco Xavier, coordenação de Natália Correia Guedes, Lisboa, 200�, pp. �57-��8. �� Informação de Fernando António Baptista Pereira, que muito agradeço; este ciclo de ‘bo-degones’ e ‘floreros’ aplicados a um tecto, raríssimo no Brasil, justifica, só por si, um estudo monotemático. �2 É certo que no Arquivo Reis-Santos da Fundação Calouste Gulbenkian se assinala, numa das capilhas organizadas pelo historiador de arte Luís Reis-Santos, uma Natureza-Morta com Flores, datada de ��92 e atribuída a Frei Eusébio de Matos, mas nem se indicam o paradei-ro dessa tela nem as razões da atribuição, parece que baseadas num pretenso monograma aposto à composição.

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Reforma, desenvolviam os conceitos tridentinos de culpa, obediência, pecado, cas-tigo, submissão e arrependimento, explorando também, dentro de verdadeiras es-tratégias de convencimento pela imagem, diversas formas de expressão da crueldade e da violência, a saber: – obras em que os temas de martírio reforçam o sentido da pedagogia tridentina (os temas da Paixão de Cristo e do hagiológio cris-tão), como em tantas telas lisboetas de André Reinoso, Avelar Rebelo, Marcos da Cruz ou Bento Coelho, e de pintores activos em Salvador, como António Simões Ribeiro, e do Rio, como Caetano da Costa Coelho; – obras em que a alegoria moral legitima o combate sem tréguas ao protestantismo, ao judaísmo, à heresia e ao grosso das minorias religiosas, como a Alegoria com Nossa Senhora do Carmo e S. Simão Stock de Pedro Nunes (c. ��20) na igreja do Carmo em Évora, e outras do mesmo tónus catequético que se produziram em solo brasileiro; – obras em que o temário de confronto político-militar acentua o valor da ‘guerra justa’ e a afirmação parenética do combate anti-castelhano, como cenas das Batalhas da Restauração; – obras em que a flagelação e castigo afirmam uma moral auto-punitiva e um ca-minho de purificação interior, como as cenas de penitência de arrependimento e de arrebatamento místico; – obras de testemunho da «guerra santa» sob o signo da Cruzada, como as cenas da Batalha de Ourique e a Batalha do Salado, de claro sentido parenético, ou as subtis alegorias à Conquista de Lisboa aos mouros, legiti-mação do Portugal Restaurado�3. As ideias do convencimento cristão e o sentido da catequização tridentina cruzam-se em todos estes painéis segundo claros pressu-postos doutrinários-imagéticos.

2.8. Parenética político-restauracionista

A arte luso-brasileira dos séculos XVII e XVIII não podia deixar de acentuar a sua vertente nacionalista e de fortalecimento da união imperial com recurso à sua histó-ria e à resistência contra os inimigos espanhol e holandês, entre outros. Numa depen-dência do Convento de Santo António do Rio de Janeiro, existe uma grande tela que representa uma Alegoria à Imaculada Conceição pelo Papa Alexandre VII e por D. João IV, executada em 1656��. Peça de apreciáveis qualidades, esta tela demonsta o alto poder de convencimento das imagens tomadas como símbolo de resistência política, e deve ser uma encomenda dos franciscanos, campeões do culto imaculista, nas suas associações ao apoio à causa da Restauração portuguesa. Assim, diversas figuras de santos e santas franciscanas acompanham as figuras genuflexionadas do Papa e do Rei, identificado como R. P. Rex Portugalis, adorando a Imaculada, com uma plêiade de anjinhos e os símbolos das litanias, e um dístico alegórico onde se lê, em castelhano, «Es mi pureza escogida / De estos braços apoyada / Por el uno pre-

�3 Ainda não se encontrou nenhuma pintura deste tipo de resistência nacionalista no Brasil, o que não significa que no século XVII não tivessem existido… �� Hannah Levy, «A Pintura Colonial do Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes e alguns dos seus aspectos», Pintura e Escultura I, São Paulo, �978, p. 77-80 e fig. �.

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servada / Por el otro defendida». Difícil seria encontrar-se um tão directo referencial à protecção do Império português pela Imaculada Conceição, recém-instituída como Protectora do Reino, nas suas diversificadas significações e objectivos.

Uma pintura como esta mostra que existiram mo Brasil peças de retórica polí-tico-parenética, o que não espanta se se lembrar que, com a saga de conflitos mili-tares com o inimigo holandês, era imperioso afirmar a unicidade do império sob ceptro luso. O mesmo que sucede na metrópole com as numerosas séries de pintu-ras com Tróia em chamas, da autoria de Diogo Pereira, pintor muito estimado pelos círculos de poder brigantino, que aí representa Eneias como anti-herói redentor, em ciclos da Guerra de Tróia muito procurados pelos mais influentes membros do partido restauracionista, o que indicia claras motivações políticas na opção temáti-ca: de facto, o tema assumia funções moralizantes e afirmava o Amor piedoso de Eneias (precursor de Jesus, nas interpretações da �ª écloga do poema de Virgílio) que salva Anquises e os deuses Lares, simbolizando a fraternidade cristã; depois, justificava a ideia da resistência dos povos face à tirania, a retórica cristã-brigantina à luz do espírito de ���0; encarnava a tese da ancianidade de Portugal legitimado-ra da Restauração, através da lenda da fundação de cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias, fugidos de Tróia (livros de Gabriel Pereira de Castro e Sousa de Macedo); enfim, simbolizava as virtudes do monarca tal como a empresa XXVI da Idea do Principe Cristiano de Diego Saavedra Fajardo (Madrid, ���0), ao ligar o cavalo de Tróia à astúcia face ao inimigo e ao alerta contra o perigo da falta de unidade nos reinos�5. É muito possível que tenham chegado ao mercado brasileiro, trazidos por responsáveis políticos ligados à corte restauracionista, quadros de Dio-go Pereira com este singular discurso político-moralizante. Também a este nível, creio que um reconhecimento de existências por estudar vai revelar, oportunamen-te, gratas surpresas a quem estuda arte luso-brasileira do tempo barroco.

2.9. Iconoclastia e iconofilia

As obras de arte, durante a Contra-Reforma, eram não só uma mais-valia pro-pagandística em nome da fé e do convencimento, como se viu, mas também uma ameaça, um instrumento de iconoclasma. O seu uso por parte das clientelas incluía indicadores por vezes polémicos: na célebre visitação do Santo Ofício realizada em Salvador em �59�, sendo visitador o Padre Heitor Furtado de Mendonça em nome da Inquisição portuguesa, foram visados não só os actos de natureza judai-zante, de bruxaria, de ’desvario sexual’ ou de erros na prática religiosa cristã, mas também actos de agressão esconjuratória contra as «imagens sagradas», a exemplo do que sucedia na metrópole e de que se atestam muitos testemunhos. Em Salva-dor, foi denunciado nessa altura um colono de nome Álvaro Sanches, cristão-novo,

�5 Vítor Serrão, Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, ��2�-��8�, in Catálogo da Exposição Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacque-mart-André, Paris, 200�, pp. 5�-77.

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a quem caía a suspeita de picar com agulhas as imagens de um Flos Sanctorum��. Devem ter existido no Brasil pinturas como a de Francisco Fernández, de c. ��30 (hoje no Ayuntamiento de Setados, Pontevedra) que representa judeus a vandaliza-rem a imagem de Cristo, que diz: PORQVE ME MALTRATAN, SIENDO VUESTRO DIOS VERDADERO?, ou a de Pedro Nunes existente na igreja do Carmo de Évora, Nossa Senhora do Carmo e São Simão Stock combatendo a iconoclastia, de c. ��25, onde se alude a escândalos de iconoclasma ocorridos contra as imagens, actos esses ao tempo violentamente reprimidos pela Igreja tridentina�7. Para além do seu grande interesse como discurso político-parenético de combate aos «des-vios heterodoxos», quadros como estes constituem um esclarecedor testemunho dessa arte pedagógica apta a sensibilizar as populações e a reforçar o combate contra o «falso dogma» dos inimigos da Igreja.

Não pode ter deixado de existir, no Brasil, uma pintura de combate com estas características; resta descobrir, e identificar, testemunhos remanescentes. Se é certo que, como afirmou o saudoso historiador de arte e iconólogo Flávio Gonçalves, «os temas em defesa do culto das imagens e de glorificação do Papado, desnecessários num país católico, só epigonalmente nos chegaram»�8, a verdade é que o discurso assumido em algumas pinturas do século XVII, como a citada tábua eborense, se insere precisamente no quadro de uma veraz propaganda em prol das imagens sacras como instrumento mediador de cultuação e arma de combate aos dogmas protestantes e às heresias que ameaçavam as estruturas da Igreja. De certo modo, o conceito tridentino de pittura senza tempo, ou seja, uma arte católica ao serviço do «fim da História» proclamado pelos teólogos contra-reformistas, encontra nestes casos um eco incondicional. É de crer, portanto, que as estratégias católicas na defesa incondicional dos seus valores doutrinários tivessem, também no Brasil, gerado representações pedagógicas deste teor.

O debate em torno do sentido das imagens e dos seus possíveis desvios estava, aliás, no auge. Atesta-o, por exemplo, um escândalo ocorrido em �593 em Pernam-buco por causa de uma estampa da Santíssima Trindade que se encontrava no quar-to de um denunciado pela Inquisição, Luís Mendes de Thoar, que vem revelar o grande poder de convencimento que as imagens (pintadas, esculpidas ou gravadas) assumiam numa política de conquista pela fé. As dúvidas levantadas perante outras pessoas sobre a identidade e hierarquia, nessa estampa, das três figuras da Santíssima

�� Ronaldo Fainfas, Confissões da Bahia, Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, São Paulo, �997. �7 V. Serrão, «Pintura e Propaganda em Évora nos alvores do século XVII: um panfleto contra a iconoclastia e um caso de repressão», Congresso Internacional Inquisição Portuguesa. Tempo, Razão e Circunstância, Reitoria da Universidade de Lisboa, Lisboa, 200�. �8 Flávio Gonçalves, «Breve Ensaio sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal», sep. de Belas-Artes, nº 27, �973, p. ��.

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Trindade (acaso uma representação proibidíssima da Trindade Trifonte…�9) levaram o denunciado a ter de depôr no tenebroso tribunal50.

2.10. Um exemplo de moralização pela imagem: a pintura do forro da igreja jesuítica de Viçosa do Ceará, no Nordeste do Brasil

Terminamos esta breve viagem de cotejos admirando um forro de pintura barroca numa esquecida igreja cearense, no Nordeste do Brasil. Dada a conhecer por José Liberal de Castro5�, a igreja matriz de Viçosa de Ceará é um dos poucos edifícios de interesse patrimonial da região cearense, razão porque o seu estudo se foi protelando; segundo revelou aquele autor, essa igreja de ‘estilo chão’ preserva um interessante forro pintado, de cerca de �720-�730, que pode ter sido programa-da pelo Padre João Guedes (���0-�7�3), um membro influente da Companhia de Jesus que era, ao tempo, destacado membro da milícia no Ceará, tendo sido reitor do Colégio de Olinda até �7�7. O nome do pintor (vindo de Olinda ?) é ignorado, mas as pinturas têm muito interesse iconográfico, como adiante se verá.

Através de pesquisas realizadas no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, detectaram-se algumas úteis referências à igreja de Viçosa do Ceará, desde a constru-ção da “igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção”, que ocorre em ��95, em uníssono com a fundação da aldeia de Ibiapaba, em �70052. Já em ��9� surgem nas Consulta do Conselho Ultramarino a D. Pedro II notícias sobre a relação do padre Ascenso Gago e sobre as missões do Ceará53. Em ��98, uma carta de Olinda emitida pelo Bispo de Pernambuco a D. Pedro II evoca o estado material e espiritual em que se encontra a capitania do Ceará; a sua situação depois que passou para a jurisdição

�9 Sobre este tema que com a Contra-Reforma se torna heterodoxo, cfr. o ensaio de Flávio Gon-çalves «A Trindade Trifonte em Portugal», sep. de O Tripeiro, �ª série, ano II, Porto, �9�2. Neste interessantíssimo estudo, revela-se a existência de uma Trindade Trifonte num retábulo seiscen-tista na igreja de São Martinho do Campo (zona de Santo Tirso), o que mostra como as normas sinodais nem sempre eram respeitadas, ou, antes, eram inconscientemente desrespeitadas à luz de fidelidades subterrâneas, trans-memoriais, que nada têm a ver com actos de heresia. Posso acrescentar que no ciclo de frescos seiscentistas do convento de Santa Mónica de Velha Goa, na antiga Índia Portuguesa, volta a aparecer uma representada Trindade Trifonte. Resta saber se também existiu no Brasil a representação do tema da Trindade Trifonte. 50 Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, São Paulo, Companhia das Letras, �98�. 5� José Liberal de Castro, Igreja Matriz de Viçosa do Ceará. Arquitetura e pintura de forro, ed. Cadernos de Arquitetura Cearense, 200�.52 Agradeço à senhora Doutora Ana Cannas, directora do Arquivo Histórico Ultramarino, as facilidades e apoios para esta pesquisa.53 Cfr. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo III, pp. 38-5�. Ver Ar-quivo Histórico Ultramarino-CEARÁ, cx. �, docs. �2 e �7.

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de Pernambuco e a falta de sacerdotes e de igrejas bem ornamentadas5�. De �708, uma carta da Ribeira de Jaguaribe, do desembargador Cristóvão Soares Reimão a D. João V, trata da vistoria feita à terra da aldeia dos tapuias Acoansus e índios Tabajaras na Serra da Ibiapaba e mostra um incentivo ao povoamento do sertão cearense55. Uma consulta do Conselho Ultramarino ao rei, de �709, trata da carta do desembar-gador Cristóvão Soares Reimão a informar acerca da medição dos padres da Compa-nhia de Jesus, missionários na região da serra da Ibiapaba5�. Entre muita outra docu-mentação recenseada deste teor, importa destacar uma consulta de 29 de Agosto de �727 do Conselho Ultramarino dirigida ao rei D. João V, onde se trata especifica-mente de um requerimento do padre Alexandre da Fonseca em que pede ornamentos para a igreja matriz do Ceará, de que é vigário, juntando-se a lista de objectos litúr-gicos pedidos para Lisboa e indiciando que o templo tivera grandes obras recentes57. Estes elementos permitem atestar que a igreja matriz de Viçosa de Ceará foi decorada nos anos de �720 a �730, estando em �727 pronta para funcionar em termos cultu-ais, pelo que o seu pároco pedia à corte, na longínqua Lisboa, a doação de peças li-túrgicas e outros ornamentos fundamentais para servir a comunidade. Tudo aponta, pois, que as pinturas se fizeram neste decénio.

Os nove painéis do forro desta igreja, meio perdida em terras do Ceará mos-tram uma singular derivação de modelos iconográficos europeus, acaso anacróni-cos na sua origem (com fontes maneiristas), mas de grande significado no contexto da sua região, como testemunho de um complexo programa moralizante em ima-gens, apto a sensibilizar uma comunidade de primeiros colonos, índios e escravos. Desenvolvem um complexo programa de iconografia das Quatro Virtudes Carde-ais, das Três Virtudes Teologais e dos Cinco Sentidos, assente num discurso icono-lógico de moralização das estruturas de povoamento, com grandes ingenuidades de factura que levam o artista, por exemplo, na interpretação livre que fez das fon-tes clássicas de que se serviu, a substituir os ornatos de grottesche por representa-ções ingénuas da fauna e da flora tropical, com frutas e outros pormenores exóti-cos, de deliciosa factura. Tudo mostra, na força da sua expontaneidade, que no património luso-brasileiro permanecem nichos de investigação histórico-artística muito cativadores, que recomendam um franco alargamento da metodologia, dos conceitos, dos objectivos e dos modos de ver da nossa disciplina.

5� AHU-CEARÁ, cx.�, doc. 53; AHU_CU_CEARÁ, Cx. �, D. �0. 55 AHU-CEARÁ, cx.�, doc. 70; AHU_CU_CEARÁ, Cx. �, D. 5�. 5� AHU_CU_MARANHÃO, Cx. ��, D. ��07. 57 AHU-CEARÁ, cx. 2, doc. 2�.AHU_CU_CEARÁ, Cx. 2, D. 93.

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3. Cinco pistas de análise para um programa comum de investigação em História da Arte luso-brasileira

A terminar este balanço de conjunto sobre as artes da imagem dos séculos XVII e XVIII em espaço luso-brasileiro, avançam-se algumas pistas para um estudo mais vasto (que terá de ser forçosamente inter-disciplinar, com acento nas pesquisas de arquivo, de laboratório e de campo58) sobre o poder de comprometimento, de im-pacto trans-memorial, de dimensão simbólica e de uso social aplicado às obras de arte colonial do tempo barroco.

A análise da arte luso-brasileira do tempo barroco não pode continuar a ser limitada à figura sublime do Aleijadinho, pese a sua importância excepcional no contexto mineiro e não só59, quando o que se impõe cumprir é uma visão de con-junto sobre os aspectos mais importantes que a caracterizam, e de que destaco os seguintes:

a) O estudo da iconografia da arte barroca no Brasil permite vantajosamente destacar o conceito de narratividade policénica dos programas artísticos (sejam hagiológicos, políticos, gratulatórios, ou de temário privado), tendo em conta a distribuição, estatística, definição de códigos e atributos simbólicos, peso da influ-ência mais ou menos fiel da gravura ítalo-flamenga, e especificidade de artistas e escolas. A abordagem abre pistas sedutoras em termos estilísticos, formais, defini-ção de gostos dominantes na época em apreço e caracterização da identidade e, recorrendo à Iconologia, permite analisa as imagens segundo procedimentos que iluminam o panorama das estratégias da representação imagética e suas implica-ções sociais.

b) O estudo dos actos de iconoclastia praticados e das suas razões profundas, tanto na dimensão pública justificada pelos seus ideólogos (repintura de quadros, picagem de frescos, destruição de templos pagãos, enterro de esculturas ‘impró-prias’, alterações de pinturas e esculturas, proibição de determinadas estampas, etc), como na dimensão inconsciente e expontânea (casos de imagens, pintura,

58 A pesquisa de arquivo continua por ser cumprida de maneira sistemática. Um exemplo do desconhecimento das existências, e do muito que se encontra ainda por desbravar em termos de cruzamento de informações sobre a vida, a cultura, a história e a arte luso-brasi-leiras, se vista em perspectiva globalizante, relaciona-se com a recente descoberta no ANTT, por Maria Adelina Amorim, do códice intitulado Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo ereta na feegª de N. Sª da Conceição de Villa Rica, Minas Gerais, com belíssimo frontispício iluminado e datado de �725, exemplo da utilização da gramática barroca, e estatutos apro-vados em �737, com referência a «obras e ornatos da capela», sendo juiz o Dr. Félix Simões de Paiva. Este altar ainda existe íntegro, tal como foi concebido e decorado nesta campanha de obras dos anos 30 do século XVII. 59 Cfr. o recentíssimo estudo de conjunto de Fábio Magalhães e Ana Maria Ciccacio (coord.), Aleijadinho e seu tempo. Fé, Engenho e Arte, catálogo de exposição, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 200�.

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azulejos onde as figuras do demónio e do judeu, por exemplo, são aspadas pelos fiéis num gesto de esconjuração mágica dos seus inimigos), abre caminho para se analisarem estratégias de convencimento e linhas de clivagem estético-ideológica. Explicam-se melhor as razões da manutenção e alteração de códigos imagéticos, à margem do contrôlo rígido da iconografia oficial, de temas, formas e representa-ções proibidas ou não toleradas, o que coloca a questão de coexistirem mecanis-mos de continuidade de representação, a par de um mais que provável afrouxa-mento do contrôlo inquisitorial em muitas zonas rurais, onde as velhas fórmulas cultuais se mantiveram.

c) O estudo das linhas de estratégia moralizadora utilizadas pela organizada militância de círculos de propaganda de vigilância da Igreja e da sociedade em geral, confrarias, irmandades e outros níveis e estruturas, para combater a icono-clastia dos protestantes e judeus, e outras minorias com práticas ancestrais de ritu-alidades de feitiçaria, bem como de «formosura dissoluta» (imoralidade, pornogra-fia) e as suas manifestações de hostilidade contra as imagens religiosas (como atestam tantos esclarecidos exemplos de propaganda em larga escala. Os critérios de censura que presidem a cada ‘tempo’ histórico explicam com nitidez os pressu-postos de fortalecimento das imagens à luz do poder vigente.

d) O estudo dos níveis de articulação entre a imagem pintada, a escultura de culto, a palavra dita, a prédica, a oração, os textos morais e institucionais, as carti-lhas devocionais, o cântico devocional, a música sacra e profana, a planimetria dos locais sagrados, etc, etc, permite caracterizar as razões que levaram a instituir, no seu conjunto e na ligação entre si, uma linguagem única de apropriação das obras de arte ao serviço de uma estratégia de catequização (não apenas religiosa) em larga escala.

e) Enfim, o estudo de determinados tipos comportamentais, como a melanco-lia, ‘estado de alma’ usado como signo (e símbolo) de trauma, de medo colectivo, de postura social crítica, de arrebatada espiritualidade, ou seja, uma das matrizes identitárias do homem da Idade Moderna, época estremada de contradições. A essa luz pode processar-se com outra perspectiva mais ampla a análise das estraté-gias visando a renovação do modelo artístico apresentado e os fundamentos dessa viragem, que explicam o abandono gradual de formas e a opção por linguagens novas com fórmulas de criação / invenção articuladas com o sentido do convenci-mento, do apelo à oração e à unidade identitária; e o elogio parangonal da vida contemplativa, que tende a legitimar poderes instituídos.