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VITAMINA CULTURAL 8º3ª Professora Lúcia Melo

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Poemas, contos, pinturas para partilhar em familia

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Page 1: Vitamina Cultural

VITAMINA CULTURAL

8º3ª

Professora Lúcia Melo

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PROSA

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Pág. 3

O AZEITEIRO E O BURRO

Dois estudantes encontraram, numa estrada, um azeiteiro com um

burro carregado de bilhas de azeite. Os estudantes estavam sem dinheiro; por

isso, decidiram roubar o animal. Enquanto o pobre homem seguia o seu

caminho, um deles tirou a *cabeçada do burro e colocou-a no pescoço. O outro

estudante fugiu com o animal e a carga. De repente, o azeiteiro olhou para

trás e viu um rapaz em vez do burro.

Nesse momento, o estudante exclamou: «Ah! senhor, quanto lhe

agradeço ter-me dado uma pancada na cabeça! *Quebrou-me o encanto que

durante tantos anos me fez ser burro!...» O azeiteiro tirou o chapéu e disse-

lhe: «Afinal, o meu burro estava enfeitiçado! Perdi o meu *ganha-pão! Peço-lhe

muitos perdões por tê-lo maltratado tanta vez - mas que quer? - o senhor era

muito teimoso!»

- Está perdoado, bom homem! - disse o estudante. O que lhe peço é

que me deixe em paz.

O pobre azeiteiro lamentou-se porque já não podia vender o azeite.

Então, foi pedir dinheiro a um compadre para ir à feira comprar outro burro.

Quando lá chegou, viu um estudante a vender o seu burro. O azeiteiro

pensou que o rapaz se tinha transformado, outra vez, num animal!

Aproximou-se do burro e gritou com toda a força: «Olhe, senhor burro,

quem o não conhecer que o compre.

(adaptado) Conto Tradicional Português recolhido por Adolfo Coelho

Glossário *cabeçada do burro (pop.). Peça de couro que se coloca na cabeça deste animal para o obrigar a seguir em frente. *Quebrou-me o encanto (pop.). Expressão que significa interromper um efeito mágico, um feitiço. *ganha-pão (pop.). Meio de subsistir e de viver.

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PERPLEXIDADE

A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes

do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas

breves. «Não percebo», disse.

Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a

maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia

tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite

recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina,

porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada

no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a

rugazinha e aquilo de não perceber.

«Não percebo», repetiu.

«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira,

aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava

alguém com requintes de malvadez.

«Isto, por exemplo.»

«Isto o quê»

«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.

O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava

tanto a filha de oito anos, tão subitamente.

Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas,

os de aritmética e os outros.

«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»

«Não percebo.»

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«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não

matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a

televisão...Nos filmes, nos anúncios...Como é a vida, afinal?»

A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como

quem se prepara para uma corrida difícil.

«Ora vejamos,» disse ele olhando para o teto em busca de inspiração.

«A vida...»

Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do

absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.

«A vida...», repetiu.

As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de

asas cortadas.

Maria Judite de Carvalho in «O Jornal», 2-10-81

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A AIA

Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante

em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando

solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço,

dentro das suas faixas.

A Lua-cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e

de fama, começava a minguar - quando um dos seus cavaleiros apareceu, com

as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a

amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, traspassado por sete

lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio. A rainha chorou

magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era

formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai que assim

deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida

e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e

forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei,

homem depravado e bravio, consumido de cobiças grosseiras, desejando só a

realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre

os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia

no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de

mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo

de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas este era um

escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe.

Ambos tinham nascido na mesma noite de Verão. O mesmo seio os criava.

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Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha

o cabelo louro e fino, beijava também por amor dele o escravozinho, que

tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras

preciosas. Somente, o berço de um era magnífico e de marfim, entre brocados

- e o berço do outro pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava

de carinho igual, porque se um era o seu filho - o outro seria o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus

senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei

morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a

vida da terra se continua no Céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora

reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em

searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham

subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo,

prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua

vassalagem. E ela um dia, por seu turno, remontaria num raio de luz a habitar

o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender

de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no Céu como fora na terra, e feliz

na sua servidão.

Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes,

com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância,

nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de

uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração

mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu

rochedo entre os alfanges da sua horda! Pobre principezinho da sua alma!

Com uma ternura maior o apertava então nos braços. Mas se o seu filho

chalrava ao lado - era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais

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feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear da vida. Desgraças, assaltos

da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do

mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que

resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e

digna de ser conservada do que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros

cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma

livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade

ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores - dos

beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava

uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no

cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e

aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade

tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais

altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma

espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha

desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e

chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura - como

se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma

cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer,

já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que

sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais.

Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou

ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e

rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre

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lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo

da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num

relance tudo compreendeu - o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo

roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma

dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre

berço de verga - e tirando o seu filho do berço servil, entre beijos

desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro

sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam

lanternas. Olhou - correu ao berço de marfim onde os brocados luziam,

arrancou a criança, como se arranca uma bolsa de ouro, e abafando os gritos

no manto, abalou furiosamente. O príncipe dormia no seu novo berço. A ama

ficara imóvel no silêncio e na treva. Mas brados de alarme atroaram de

repente o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os

pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha

invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho. Ao avistar o berço de

marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes, num choro,

despedaçada. Então calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o

pobre berço de verga... O príncipe lá estava, quieto, adormecido, num sonho

que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A

mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.

E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o

capitão dos guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais

tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a

cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, ele e vinte da

sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de

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sangue. Mas ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara

também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o

tinham esganado!... Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os

homens de armas - quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos,

ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava

junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva

sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe,

mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da

sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e

lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava

na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse

recompensada, magnificamente, a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolsas de ouro podem pagar um filho? Então um

velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao tesouro real, e

escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores

tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse... A rainha tomou a

mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um

andar de morta, como num sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos

Tesouros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam num respeito tão

comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas

portas do Tesouro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as

janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de

ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do

chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam,

cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões

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de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas

daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo ah,

lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve

um silêncio, ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a

ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham

erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era

lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e

já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o

seu peito!... Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem

respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que joia maravilhosa, que fio

de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?

A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho

de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado

de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando

para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a

multidão, e gritou:

- Salvei o meu príncipe, e agora - vou dar de mamar ao meu filho!

E cravou o punhal no coração.

A Aia, in Contos de Eça de Queirós

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UMA BARCA DO INFERNO

Um carro elétrico é uma barca do Inferno provisória, escreve num

dos seus poemas o poeta David Mourão ‐Ferreira.

Foi exatamente num carro elétrico de Lisboa que tudo se passou.

Superlotado, à hora de ponta, no princípio do Inverno e com chuva, o

carro ostentava ironicamente o letreiro de ”Prazeres”. O fim da linha fica

justamente à porta do cemitério do mesmo nome, onde, com a mesma ironia,

desembocam as ruas de André Brum e de Gervásio Lobato.

Passageiros sentados, passageiros de pé, sem distinção de classes,

idades ou sexos, como compete a uma boa barca do Inferno!..

No primeiro banco transversal da frente, chamado muito

apropriadamente «dos palermas», ia sentado, embora mal, um homem de

meia-idade, em cabelo, o rosto pálido, de feições marcadas, mas serenas.

A sua única beleza estava nos olhos, grandes, claros, líquidos, que

olhavam como os de uma criança que tivesse viajado por países de encanto,

onde existem castelos no ar e templos de jade, habitados em jardins de sonho,

onde a relva é de esmeralda e os pomos de ouro.

Ia bem vestido, talvez demasiado bem para a “barca”. Envergava um

sobretudo de pelo, quase branco, as bandas aconchegadas num “foulard” de

seda que lhe cingia o pescoço friorento, como as mãos, que as luvas

impecáveis escondiam completamente.

Na coxia do carro, desviando‐se para dar passagem, rindo apesar de

tudo com os companheiros, ia um adolescente de uns quinze ou dezasseis

anos, esgrouviado, de feições ainda sem características. Vestia, esse, calças de

ganga já sem cor, de tanta lavagem e tanta mancha de tinta seca, e camisa de

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quadrados, em cima da pele. Os sapatos estavam cortados, cambados e

acalcanhados, apenas aproveitáveis para o trabalho de moço de pedreiro.

Tendo que se encostar aos bancos para não impedir a saída dos passageiros

que vinham mais atrás, roçou no ombro da gabardina de um homem também

de meia-idade, meia classe, cara fechada, óculos e chapéu enterrado até aos

olhos, rematando a personalidade. A gabardina do homem era vulgar, os

óculos vulgares e ele próprio vulgar, porque se virou para o rapaz, e em

termos violentos, mandou‐o afastar‐se porque estava demasiado porco para

viajar de elétrico, e que aquilo devia ser proibido!

O rapaz avançou pela coxia do carro, sem responder, apenas corando

pelo vexame sofrido, e ficou em frente do homem dos olhos líquidos. Este

olhou para ambos com piedade, mas duas espécies de piedade bem diferentes,

descalçou as luvas impecáveis, de onde saíram duas mãos impecáveis também.

E enquanto despia o belo sobretudo, sem alterar as feições nem perder a

pureza do olhar, disse para o queixoso:

‐ O senhor espera certamente que, depois de morto, os anéis dos

vermes que o vão comer sejam todos de diamantes?! Não creia, não creia!

E pegando no sobretudo, pô‐lo sobre os ombros do adolescente, que

se limitou a olhar para ele com a simplicidade de quem encontra um irmão

que vê todos os dias. E retirando das costas o sobretudo, num gesto lento,

devolveu‐o ao dono, e disse apenas com voz branda, sem inflexões:

‐ Obrigada, não tenho frio.

Os passageiros da barca olharam todos em silêncio, como se alguma

coisa de sobrenatural tivesse acontecido, para o homem dos olhos líquidos,

agora mais líquidos, que saiu imediatamente do elétrico, cheio de vergonha

com certeza, por ter sido obrigado a tomar aquela atitude de revolta perante a

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ofensa à dignidade humana, infligida a um seu semelhante, por outro que a ele

não se assemelhava nada!...

E a barca do inferno seguiu, superlotada, a caminho do cemitério…

Ricardo Alberty, Relógio de Sol

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AGARRA! AGARRA!

De manhã, a rua tinha mais movimento. Mas sem interesse. Altas

árvores, nuas de folhas, mortas. Criadas de aventais claros e sacos de

compras. Um outro homem apressado. A mercearia do Soares na esquina e a

pequena tabacaria em frente com a montra cheia de embalagens vistosas

sempre iguais. Era uma rua calma, muito larga, batida pelo sol, onde ele havia

de passear num carro que ela própria empurraria, ou a Margarida.

Do outro lado do vidro, a manhã estava fria. As raparigas que

entravam e saíam da mercearia do Soares tinham o nariz vermelho,

esfregavam as mãos, corriam. Dois garotos descalços, que passaram por baixo

da janela a apregoar cautelas, tinham também os narizitos vermelhos. Mal

ouvia o pregão. Uma criada parou a tagarelar com os rapazes, não tinham fé

naquele número. (…) Mas, de súbito, a rua animou-se.

Um rapazelho saiu da mercearia como uma flecha e, logo a seguir, a

correr também e a gritar, o próprio Soares.

Que homenzinho ridículo, o Soares, assim a correr e a gritar. Porque

ele gritava! A rapariga loura reconheceu no rapazelho um dos garotos que

acabavam de subir a rua com as cautelas. E o Soares devia gritar com muita

energia porque, através do vidro, ela percebeu perfeitamente que dizia:

«Agarra! Agarra!»

Donde surgiu tanta gente? Tanta gente a correr e a gritar: «Agarra!

Agarra!?» Mesmo sem abrir a janela, a rapariga acompanhava a cena toda.

Pessoas acudiam as portas, juntavam‐se em grupos na esquina, a perguntar, a

comentar, muito excitadas, enquanto na mercearia um empregado novito, de

guarda‐pó, gesticulava, repetindo a quem ia chegando o que se tinha passado.

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Apanhariam o garoto? A rapariga começou a desejar que não.

Achava ridícula a figura do Soares, muito gordo e muito baixo, a

correr desajeitadamente, congestionado, aos gritos. E aquela fúria toda contra

uma criança punha‐a, sem saber porquê, do lado dela.

Mas já as cabeças se voltavam para o começo da rua. Um polícia trazia

o garoto bem seguro por um braço. E, um pouco atrás, rubro de indignação e

de cansaço, o Soares mostrava para a direita e para a esquerda um pequeno

objeto que explicava tudo. Era uma lata de conserva.

O garoto roubara. Como arranjara coragem para fazer aquilo?

Entrar numa loja, estender a mão, roubar. Quando vira o Soares, de

cabeça perdida, aos berros, não lhe ocorrera que poderia ir atrás dum ladrão.

Porque o garoto roubara. Aquele sujeitinho roubara, era um ladrão.

Faziam agora a porta da mercearia uma pequena reconstituição do

crime. Percebia que o rapaz queria dar qualquer explicação que ninguém

aceitava. Chorava, protestava, desfazia‐se em lágrimas. Mas que queria o

pobre explicar?

E, de repente, deu um sacão, tentou fugir. Então o guarda assentou-

lhe a mão no pescoço, sacudiu‐o e, afastando os curiosos, levou‐o pela rua

acima.

Vai levá‐lo, meu Deus! disse para consigo a rapariga loura. Para que

fez ele aquilo?

Os grupos dispersaram‐se. Cada um voltou a sua vida. Os passeios

ficaram novamente tranquilos. Novamente o silêncio, as árvores imóveis, a

mercearia do Soares na esquina com o aspeto de sempre, a tabacaria mesmo

em frente.

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Nos ouvidos da rapariga loura, o choro desesperado do rapaz das

cautelas não cessava. E pôs‐se inquieta. Ter‐lhe‐ia aquilo feito mal? O

Roberto dizia que ele seria o que ela fosse naqueles sete meses. Devia sentir‐

se forte, alegre, decidida. Devia evitar todos os choques, todos os

aborrecimentos. Qualquer emoção violenta poderia prejudicá‐lo. Passava as

mãos no ventre a acarinhá‐lo, a protegê‐lo. Para que fora a janela? Porque

não ficara a ler? Porque não telefonara ao Roberto? Que iria acontecer‐lhe

por causa de um garoto qualquer que andava a roubar as latas de conserva?

Mário Dionísio, O Dia Cinzento e os outros contos,

Publicações Europa‐América, 1967

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A OVELHA ‐ A FLOR

No quinto dia, ainda por causa da ovelha, foi‐me revelado o seguinte

segredo da vida do principezinho. Fez‐me uma pergunta súbita, sem

preâmbulos, como se fosse o fruto de um problema meditado em silêncio

durante longos dias:

‐ Se uma ovelha come arbustos, também pode comer flores?

‐ Uma ovelha come tudo o que encontra.

‐ Mesmo as flores que tem espinhos?

‐ Então para que servem os espinhos?

Eu não sabia. Estava ocupadíssimo com o motor, tentando desapertar

um parafuso. Estava preocupado, porque a avaria começava a parecer‐me

muito grave. A água para beber estava quase esgotada e isso fazia‐me temer o

pior.

‐ Para que servem os espinhos?

O principezinho, quando fazia uma pergunta, não mais desistia dela.

Irritado com o parafuso, respondi uma coisa qualquer:

‐ Os espinhos não servem para nada, e pura maldade da parte das

flores!

‐ Oh!

O principezinho ficou calado por um momento; depois atirou‐me,

com uma pontinha de rancor:

‐ Não acredito. As flores são fracas. São ingénuas. Tranquilizam‐se

como podem. Julgam‐se terríveis com os seus espinhos…

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Não respondi. Naquele instante dizia para comigo: «Se este parafuso

continua a resistir, rebento‐o com uma martelada». O principezinho

interrompeu outra vez os meus pensamentos:

‐ E julgas tu que as flores…

‐ Nada disso! Nada disso! Não julgo nada. Respondi a toa. Eu cá trato

de coisas sérias!

Olhou para mim espantado.

‐ De coisas sérias!

Via‐me com o martelo na mão e os dedos negros de óleo, inclinado

sobre um objeto que lhe parecia feiíssimo.

‐ Estás a falar como as pessoas crescidas!

Fiquei um tanto envergonhado. Mas ele acrescentou, impiedosamente:

‐ Estás a confundir tudo… a misturar tudo!

Estava deveras irritado. Sacudiu ao vento os cabelos dourados.

‐ Conheço um planeta onde existe um senhor de tez escarlate.

Nunca aspirou o perfume de uma flor. Nunca contemplou uma

estrela.

Nunca amou ninguém. Nunca fez nada a não ser adições. E passa o

dia a repetir como tu: «Sou um homem sério! Sou um homem sério!» e fica

inchado de orgulho. Mas aquilo não é um homem, é um cogumelo!

‐ Um quê?

‐ Um cogumelo!

O principezinho estava agora pálido de raiva.

‐ Há milhões de anos que as flores fabricam espinhos. Há milhões de

anos que, apesar disso, as ovelhas comem as flores. E não será uma coisa seria

procurar compreender porque e que elas tem tanto trabalho para fabricar

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espinhos que não servem de nada? Não será importante a guerra entre as

ovelhas e as flores? Não será uma coisa seria e mais importante que as adições

de um senhor gordo e encarnado? E se conheço, eu, uma flor única no

mundo que não existe em mais parte alguma senão no meu planeta e que uma

ovelhinha pode aniquilar de uma só vez, de repente, numa certa manha, sem

ter a noção do que faz, não será isso importante?

Corou, continuando depois.

‐ Se alguém gostar de uma flor da qual apenas existe um único

exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso bastará para que se sinta feliz

quando as contempla. Diz para consigo: «A minha flor esta la, em qualquer

parte…» Mas se a ovelha come a flor, e como se, de súbito, todas as estrelas

se apagassem. E não é isso importante?

Não pôde dizer mais nada. Desatou subitamente a soluçar.

Anoitecera. Larguei as ferramentas. Queria lá saber do martelo, do

parafuso, da sede e da morte. Havia uma estrela, num planeta, o meu, a Terra,

um principezinho a consolar. Tomei‐o nos braços. Embalei‐o. Dizia-lhe:

«A flor que tu amas não corre perigo… Vou desenhar um açaimo para

a tua ovelha. Vou desenhar uma armadura para a tua flor… Eu…» Não sabia

que mais dizer. Sentia‐me desastrado. Não sabia como havia de chegar até

ele… É tão misterioso o país das lágrimas.

Antoine de Saint‐Exupery, O Principezinho,

Editorial Aster, Lisboa, s/d

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POESIA

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POEMA À MÃE

No mais fundo de ti

Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou

O menino adormecido

No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras

Que há leitos onde o frio não se demora

E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

São duras, mãe,

E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas

Que apertava junto ao coração

No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,

Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;

Esqueceste que as minhas pernas cresceram,

Que todo o meu corpo cresceu,

E até o meu coração

Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -

Às vezes ainda sou o menino

Que adormeceu nos teus olhos;

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Ainda aperto contra o coração

Rosas tão brancas

Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:

Era uma vez uma princesa

No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,

E todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro

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AMIGO

Mal nos conhecemos

Inaugurámos a palavra amigo!

"Amigo" é um sorriso

De boca em boca,

Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,

Um coração pronto a pulsar

Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,

Escrupulosos detritos?)

"Amigo" é o contrário de inimigo!

"Amigo" é o erro corrigido

Não o erro perseguido, explorado,

É a verdade partilhada, praticada!

"Amigo" é a solidão derrotada!

"Amigo" é uma grande tarefa,

É um trabalho sem fim,

Um espaço sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,

"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca

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URGENTEMENTE

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,

Ódio, solidão e crueldade,

Alguns lamentos,

Muitas espadas.

É urgente inventar a alegria,

Multiplicar as searas,

É urgente descobrir rosas e rios

E manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz

Impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

Permanecer.

Eugénio de Andrade, Antologia Breve

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O SONHO

Pelo sonho é que vamos,

Comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não frutos,

Pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo

Que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

Com a mesma alegria, ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

-Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama, Pelo Sonho é que Vamos

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LETRA PARA UM HINO

É possível falar sem um nó na garganta.

É possível amar sem que venham proibir.

É possível correr sem que seja a fugir.

Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão.

É possível viver sem que seja de rastos.

Os teus olhos nasceram para olhar os astros.

Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

É possível viver de outro modo.

É possível transformar em arma a tua mão.

É possível viver o amor. É possível o pão.

É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.

É possível viver sem fingir que se vive.

É possível ser homem.

É possível ser livre, livre, livre.

Manuel Alegre, O Canto e as Armas

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ÍNDICE

PROSA ....................................................................................................................... 2

O azeiteiro e o burro ............................................................................................. 3

Perplexidade ........................................................................................................... 4

A aia ......................................................................................................................... 6

Uma barca do inferno ......................................................................................... 12

Agarra! agarra! ...................................................................................................... 15

A ovelha ‐ a flor ................................................................................................ 18

POESIA ................................................................................................................... 21

Poema à mãe ........................................................................................................ 22

Amigo .................................................................................................................... 24

Urgentemente ...................................................................................................... 25

O sonho ................................................................................................................ 26

Letra para um hino .............................................................................................. 27

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Questionário dirigido à família

Dê-nos a sua opinião, por favor:

1. Relativamente ao interesse desta iniciativa. Considera-a:

muito interessante □

interessante □

nada interessante □

2. Gostaria que fossem incluídos no saco, por uma semana, um

filme e um CD de música?

sim □

não □

3. Gostaria de partilhar com outros pais da turma experiências

culturais – leitura em conjunto, visionamento de um filme, ida

ao teatro, museu, jardim, piquenique, …?

sim □

não □

sim, mas não tenho disponibilidade □

não vejo interesse nessa atividade □

4. Tem alguma sugestão, para a turma, este ano letivo, que

gostaria de ver concretizada?

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Obrigada!

Biblioteca Escolar

Disciplina de Português

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