violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes ... · prof. dr. jorge alexandre barbosa...

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Luís Felipe Zilli do Nascimento Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes centros urbanos: um estudo de caso da Pedreira Prado Lopes Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia. Área de concentração: Sociologia e Antropologia Orientador: Prof. Dr. Cláudio Chaves Beato Filho Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG 2004

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Luís Felipe Zilli do Nascimento

Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes centros

urbanos: um estudo de caso da Pedreira Prado Lopes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia. Área de concentração: Sociologia e Antropologia Orientador: Prof. Dr. Cláudio Chaves Beato Filho

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

2004

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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Dissertação intitulada Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes centros urbanos: um estudo de caso da Pedreira Prado Lopes, de autoria do mestrando Luís Felipe Zilli do Nascimento, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

__________________________________________________

Prof. Dr. Cláudio Chaves Beato Filho Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG - Orientador

___________________________________________________________________________________ Profa. Dra. Alba Maria Zaluar

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

__________________________________________________________________________________ Profa. Dra. Corinne Davis Rodrigues

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFMG

Belo Horizonte, 21 de dezembro de 2004

__________________________________________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves

Coordenador do Curso de Mestrado em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

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Para Milton e Naide, exemplos de dignidade e amor.

A todos aqueles que acreditam que é, sim, possível fazer algo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram na elaboração desta dissertação, e, de forma especial, a algumas pessoas que foram fundamentais para a sua realização:

Aos moradores da Pedreira Prado Lopes, pela confiança, coragem, esperança e respeito.

Ao Professor Cláudio Beato, pela orientação, ajuda, confiança e, principalmente, pela

paciência.

À tenente-coronel Mírian Assumpção e Lima, que me faz ter fé em uma polícia melhor.

Aos muitos policiais militares que, apesar das adversidades, ainda acreditam que é possível

atuar de maneira digna, respeitosa e humana.

À Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – Urbel, pela solicitude com a qual me

cedeu o Plano Global Específico da Pedreira Prado Lopes.

A Martha Lourenço Vieira, pelo carinho, atenção, paciência e presteza com que me ajudou

na revisão e formatação deste estudo.

Ao amigo João Ribeiro, pelo apoio, incentivo e companheirismo.

A Milton, Naide e Fernanda, pelo apoio e carinho incondicionais.

A Absalão de Carvalho, Daniel Di Lorenzo, Diogo Pinheiro, Luiz Guedes e Rafael Alves,

pela amizade.

À Chyara Sales, pela, amizade, incentivo e pelas longas conversas.

À Isadora, pelo carinho, pela alegria e por me fazer acreditar em mim mesmo.

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“Vamos fazer uma longa viagem Não para o inferno, Tampouco ao paraíso. Mas uma viagem na vida dura, Na vida simples, na vida triste, De muitas pessoas que como nós, Vivem às margens da sociedade. Vivem sem voz, acuadas e oprimidas. Vamos fazer uma longa viagem A uma cidade que segue sofrendo Que sofre vivendo, que chora sorrindo, E que sangra sem choro Que tenta mudar O destino traçado Para os filhos seus Uma viagem de ida e volta A uma cidade chamada de Deus”.

(MV Bill)

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RESUMO

Neste estudo, propõe-se uma análise de fatores sociais envolvidos, direta ou

indiretamente, no surgimento e na consolidação de altas taxas de violência e criminalidade

em vilas e favelas dos grandes centros urbanos. Diversos estudos já demonstraram que a

criminalidade não se distribui de maneira uniforme pelas grandes cidades (ADORNO,

1999; BEATO et al., 2001). Existem determinadas regiões nestes centros, nas quais a

violência se manifesta com muito mais intensidade do que no restante do município.

Geralmente, tais regiões se caracterizam por serem vilas, favelas ou bairros pobres e

deteriorados destas cidades. São locais onde as comunidades se vêem assoladas por

gangues juvenis, tráfico de drogas, assaltos e vários outros tipos de crimes.

Nesta perspectiva, o presente estudo se propõe a identificar e analisar quais fatores

tornam tais regiões dos grandes centros urbanos áreas mais propícias à manifestação de

altas taxas de criminalidade violenta. Para realizar tal tarefa, foi efetuado um estudo do caso

da favela Pedreira Prado Lopes, aglomerado localizado na região Noroeste de Belo

Horizonte e que é considerada uma das áreas mais violentas da capital mineira. Tal estudo

foi efetivado sob a lente das teorias da “Desorganização Social”, de Shaw e Mckay (1942),

e da “Eficácia Coletiva”, de Sampson et al. (1997). Tais linhas de pensamento foram

escolhidas para a condução do presente trabalho porque, em última instância, ambas

defendem a idéia de que o surgimento e a consolidação de altas taxas de violência e

criminalidade em vizinhanças pobres e deterioradas dos grandes centros urbanos seriam

conseqüência direta ou indireta de como se articulam, dentro destas comunidades, uma

série de fatores históricos, sócio-econômicos, geográficos, culturais e estruturais.

Pretende-se demonstrar, enfim, que, através da análise sistêmica de como se articulam

tais fatores, pode-se alcançar um entendimento mais amplo das causas da violência e da

criminalidade, assim como obter indicadores que orientem a formulação de políticas

públicas de combate a tais problemas.

Palavras-chave: violência – criminalidade – vilas e favelas – tráfico de drogas – gangues – desorganização social – eficácia coletiva.

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ABSTRACT

This study aims at analyzing social factors which are directly or indirectly involved

in the sprouting and consolidation of high rates of violence and criminality in small villages

and slums in the urban centers. Several studies have already demonstrated that criminality

is not equally distributed in the big cities (ADORNO, 1999; BEATO et al., 2001).There are

certain regions in those centers where violence manifests itself with much more intensity

than in the remaining parts of the city. Usually, those regions are characterized by decaying

villages, slums and poor districts devastated by youth gangs, drug traffic, robbery and other

kinds of crimes.

Seen in this perspective, this study attempts to identify and analyze the factors

which interfere in such poor spaces in the big urban centers so as to make them more prone

to manifestations of high rates of violent criminality. In order to achieve this objective, a

case study was carried out in a slum – Pedreira Padro Lopes – in the northeast region of

Belo Horizonte. That slum is considered as one of the most violent areas in the capital of

Minas Gerais. The Social Disorganization theory (Shaw and Mckay, 1942), and the

Collective Efficacy (Sampson et al, 1997) made up the theoretical support for this study.

These theories were chosen because they defend the idea of the emergence and

consolidation of high rates of violence and criminality in decaying poor neighborhoods in

the big urban centers as a direct or indirect consequence of the way a series of historical,

socio-economical, geographical, cultural and structural factors interrelate.

Finally, this study attempts to demonstrate, by means of the systemic analysis of

how those factors are intertwined, that it is possible to achieve a wider understanding of the

causes of violence and criminality and to get indicators to guide the formulation of public

policies to face such problems.

Key words: Violence – Crime - shanty towns and slums - drug traffic – gangs - social

disorganization - collective efficacy.

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LISTA DE GRÁFICOS, MAPAS E FIGURAS

Gráfico 1 – PPL - número de pessoas por domicílio e faixa etária dos ocupantes........... 62 Gráfico 2 - PPL – Renda Total segundo número de domicílios e Renda per capita........ 63 Gráfico 3 – PPL – Renda dos responsáveis..................................................................... 64 Gráfico 4 - PPL – Escolaridade dos responsáveis e Escolaridade dos ocupantes............ 65 Gráfico 5 - PPL – Profissão dos responsáveis pelo domicílio.......................................... 66 Gráfico 6 - PPL – Profissão dos demais ocupantes.......................................................... 67 Gráfico 7 - PPL – Número de domicílios segundo regime de ocupação e Regime de ocupação de domicílios....................................................................................................

70

Gráfico 8 - PPL – Instituições que ajudam a comunidade............................................... 75 Gráfico 9 - PPL – Crimes contra a pessoa: incidência por bairro.................................... 79 Gráfico 10 - PPL – Crimes contra a pessoa na PPL em 2003 ......................................... 79 Gráfico 11 - PPL – Crimes de tóxicos e entorpecentes na da PPL no ano de 2003......... 80 Gráfico 12 - PPL – Crimes de tóxicos e entorpecentes: incidência por logradouro......... 80 Gráfico 13 - PPL – Crimes referentes a tóxicos e entorpecentes: incidência por bairro.. 80 Gráfico 14 - PPL – Crimes contra a patrimônio na região da PPL no ano de 2003......... 81 Gráfico 15 - PPL - Crimes contra a pessoa na região da PPL: incidência por faixa........ 82 Gráfico 16 - PPL - Crimes contra a pessoa na PPL: incidência por dia da semana......... 82 Gráfico 17 - PPL - Crimes de tóxicos e entorpecentes na PPL: incidência por hora....... 83 Gráfico 18 - PPL - Crimes de tóxicos e entorpecentes: incidência por dia da semana... 83 Gráfico 19 - PPL - Crimes contra a patrimônio na PPL: incidência por hora.................. 84 Gráfico 20 - PPL - Crimes contra a patrimônio na PPL: incidência por dia da semana.. 84 Gráfico 21 - PPL – Ações da PM na região da PPL no ano de 2003............................... 86 Gráfico 22 - PPL – Ações da PM na região da PPL: incidência por logradouro............. 86 Gráfico 23 - PPL – Ações da PM na região da PPL: incidência por bairro..................... 86 Mapa 1 - PPL – Concentração de Crimes contra a Pessoa.............................................. 79 Mapa 2 – PPL – Concentração de Crimes contra o Patrimônio....................................... 81 Figura 1 - Modelo de Desorganização Social proposto por Shaw e McKay.................... 24 Figura 2 - Modelo proposto por Sampson & Groves (1989)............................................ 29 Figura 3 - Estrutura hierárquica adotada por quadrilhas de traficantes da PPL............... 142

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 11 1 CONTEXTOS EMPÍRICO E TEÓRICO.......................................................................... 15 1.1. Contexto Empírico......................................................................................................... 15 1.2. Contexto Teórico........................................................................................................... 19 1.2.1. Comunidade X Criminalidade.................................................................................... 22 1.2.1.1. Desorganização Social............................................................................................. 22 1.2.1.2. Controle Social......................................................................................................... 22 1.2.1.3. Eficácia Coletiva...................................................................................................... 27 1.2.1.4. Gangues................................................................................................................... 34 1.2.1.4.1. Origens.................................................................................................................. 36 1.2.1.4.2. Características....................................................................................................... 38 1.2.1.4.3. Formas e Variações............................................................................................... 40 1.2.2. Tráfico de Drogas....................................................................................................... 41 1.2.2.1. Hipótese.................................................................................................................... 43 2. O PROCESSO METODOLÓGICO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA...........................................................................................................................

45

2.1. A construção do corpus da pesquisa.............................................................................. 45 2.2. A observação participante.............................................................................................. 50 2.3. Os relatos orais.............................................................................................................. 51 3 PASSADO E PRESENTE NA PEDREIRA PRADO LOPES.......................................... 54 3.1. A história da Pedreira.................................................................................................... 55 3.2. Diagnóstico social da Pedreira....................................................................................... 59 3.2.1. Caracterização da população...................................................................................... 59 3.2.2. Condições de habitação.............................................................................................. 66 3.3. Demandas e organizações.............................................................................................. 69 3.3.1. Demandas................................................................................................................... 69 3.3.2. As organizações.......................................................................................................... 72 3.4. A violência e a criminalidade........................................................................................ 75 3.4.1. Locais das ocorrências................................................................................................ 76 4. HISTÓRIA DA VIOLÊNCIA NA PEDREIRA PRADO LOPES................................... 86 4.1. A história do tráfico na Pedreira.................................................................................... 87 4.1.1. Décadas de 1970, 1980 e 1990................................................................................... 87 4.1.2. A queda de Roni Peixoto e a “guerra” de 1999.......................................................... 88 4.1.3 2003: A volta de Roni Peixoto e o início de uma nova “guerra”................................ 1015 O PANORAMA ATUAL DA CRIMINALIDADE E ESTRUTURA DO TRÁFICO DE DROGAS NA PEDREIRA PRADO LOPES................................................................

106

5.1. Relatos........................................................................................................................... 1095.1.1. Os moradores.............................................................................................................. 1095.1.2. A polícia...................................................................................................................... 1115.1.3. Os traficantes.............................................................................................................. 1125.2. O cenário........................................................................................................................ 1145.3. O envolvimento............................................................................................................. 1185.4. A organização interna.................................................................................................... 128

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5.4.1. As drogas.................................................................................................................... 1295.4.2. A venda....................................................................................................................... 1305.4.3. A segurança................................................................................................................ 1335.4.4. As funções e a hierarquia............................................................................................ 1355.4.5. As armas..................................................................................................................... 1405.5. Os moradores................................................................................................................. 1435.6. A polícia......................................................................................................................... 1475.6.1. Polícia e comunidade.................................................................................................. 1485.6.2. Polícia e traficantes..................................................................................................... 1526 ANÁLISE DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE NA PEDREIRA PRADO LOPES.....................................................................................................................................

154

6.1. Aspectos a serem analisados e estruturas de abordagem................................................. 1576.2. Localização geográfica, configuração ambiental e logística do tráfico........................... 1586.3. Desorganização Social e Eficácia Coletiva...................................................................... 1626.3.1. Histórico........................................................................................................................ 1626.3.2. A Falência das Instituições de Socialização e de Controle........................................... 1656.4. Subcultura da violência.................................................................................................... 1716.4.1. As gangues.................................................................................................................... 1716.4.2. A comunidade............................................................................................................... 1777. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 1848 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 1989 ANEXO 1............................................................................................................................. 20310 ANEXO 2........................................................................................................................... 20611 ANEXO 3........................................................................................................................... 21312 ANEXO 4........................................................................................................................... 230

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INTRODUÇÃO

Apenas durante os nove primeiros meses de 2004, cinqüenta pessoas haviam sido

assassinadas na favela Pedreira Prado Lopes (PPL), aglomerado localizado na região

Noroeste de Belo Horizonte. Na média, isso significa dizer que, a cada cinco dias, uma

pessoa tombava morta nas ruas daquela que é uma das vilas mais densamente povoadas da

capital mineira, com cerca de 12 mil moradores ocupando uma área de aproximadamente

142 mil metros quadrados. Estes números demonstram que, entre janeiro e setembro de

2004, a PPL possuía uma taxa de 4,16 homicídios por cada grupo de mil habitantes. Apenas

para efeito de comparação, basta observar que, durante o mesmo período, toda a cidade de

Belo Horizonte, que possui cerca de 2 milhões de habitantes, registrou cerca de 900

homicídios, de acordo com pesquisa estatística realizada em 2004 pela Divisão de Crimes

Contra a Vida (DCcV) da Polícia Civil. Estatisticamente, uma taxa de 0,45 assassinatos por

cada grupo de mil habitantes. Podemos afirmar, portanto, que na Pedreira Prado Lopes

matou-se, em 2004, quase dez vezes mais do que no restante da cidade1.

Apesar de apresentar taxas de homicídios desproporcionalmente altas, é preciso

ressaltar que a Pedreira Prado Lopes não constitui um caso atípico. Ao contrário, pode-se

dizer que as taxas de criminalidade registradas naquela localidade se enquadram em um

padrão que atualmente tem se tornado bastante comum em muitos dos grandes centros

urbanos do país. Em Belo Horizonte, por exemplo, estudos já demonstraram que, além da

PPL, outras cinco favelas da cidade também registram altíssimas taxas de violência e

criminalidade (BEATO et al., 2001). Seus índices de criminalidade são tão maiores do que

no restante da cidade que, juntas, estas seis localidades são palco de aproximadamente 20%

de todos os assassinatos cometidos em BH (BEATO et al., 2003). E não há qualquer razão

para acreditar que esta realidade seja diferente em outras grandes cidades do Brasil.

Portanto, é preciso trabalhar de antemão com a idéia de que, tanto em BH quanto em

muitos outros grandes centros urbanos, a violência e a criminalidade não se distribuem de 1 É preciso observar que, apesar de a PPL figurar entre as seis favelas mais violentas da capital há pelo menos seis anos, no ano de 2004 o aglomerado apresentou estatísticas de violência e criminalidade bem superiores às que costumava registrar em anos anteriores. Por exemplo: entre 1998 e 2002, 28 pessoas foram assassinadas na favela. Número bastante inferior aos 50 homicídios cometidos apenas nos nove primeiros meses de 2004. Como será demonstrado mais adiante, o grande número de mortos na Pedreira durante o ano de 2004 deveu-se à instauração de um conflito armado de grandes proporções entre as quadrilhas de traficantes daquela favela.

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maneira uniforme pelas cidades, como poderiam fazer crer a mídia e o senso comum.

Existem determinadas regiões nestas metrópoles onde a criminalidade se manifesta de

maneira infinitamente mais intensa. Diversos estudos2 já demonstraram que, devido a uma

série de fatores, tais áreas quase sempre se caracterizam por serem vilas, favelas ou regiões

bastante deterioradas destes grandes centros urbanos.

Justamente por isso, o presente trabalho tem como objetivo compreender o que existe

de específico nessas localidades das grandes cidades que faz com que elas sejam assoladas

por taxas de criminalidade muito maiores do que o restante do município nos quais estão

inseridas. Torna-se fundamental entender como é que, nestes locais, uma série de fatores

históricos, sócio-econômicos, geográficos, culturais e estruturais interagiram e interagem

entre si, no sentido de produzir um ambiente propício ao surgimento e à consolidação da

violência e da criminalidade.

Nesse sentido, este estudo analisa, em profundidade, o caso da favela Pedreira Prado

Lopes, aglomerado que, durante o ano de 2004, se constituiu na localidade mais violenta de

Belo Horizonte, devido a sua altíssima taxa de homicídios. Durante o período em que esta

pesquisa foi realizada duas quadrilhas de traficantes protagonizavam um grande conflito

armado na favela, numa tentativa de conquistar a hegemonia do comércio de drogas no

local. No segundo semestre de 2004, quando o presente estudo já estava em sua fase de

conclusão, uma terceira quadrilha surgiu na PPL, em razão de uma dissidência entre os

membros de um dos grupos que já existiam. Entre janeiro e outubro de 2004, 56 pessoas

haviam sido assassinadas na Prado Lopes, vítimas dos combates travados entre as gangues

de traficantes do morro.

Para dar viabilidade a este estudo de caso, foram realizadas 52 entrevistas com

moradores e lideranças comunitárias do aglomerado, além de traficantes e policiais que lá

atuam. Além disso, procurou-se traçar um perfil histórico e sócio-econômico daquela

comunidade, para tentar delinear com a maior precisão possível o cenário dentro do qual o

problema deste estudo se desenvolve. Além das entrevistas, esta pesquisa também contou

com dados das polícias Civil e Militar sobre a favela, além de informações da Prefeitura

Municipal de Belo Horizonte, que possui em seus arquivos um vasto e rico material sobre a

Pedreira Prado Lopes. Também foram utilizados dados de pesquisas do Centro de Estudos

2 ADORNO (1999); BEATO et al.(2001); entre outros.

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de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP), órgão vinculado à Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG).

Para tentar compreender a realidade da violência e da criminalidade da PPL, este

estudo se fundamentará em duas linhas teóricas bastante difundidas na Sociologia do

Crime. A primeira delas, conhecida como a “Teoria da Desorganização Social”, proposta

por Shaw e Mckay (1942), demonstra, em linhas gerais, que vizinhanças que apresentam

características como altas taxas de rotatividade residencial, heterogeneidade

populacional/étnica e baixa coesão social tendem a constituir ambientes socialmente

desorganizados e, conseqüentemente, extremamente criminógenos. A segunda linha teórica,

“Teoria da Eficácia Coletiva”, proposta inicialmente por Robert Sampson e Stephen

Raundenbush (1996), por sua vez, trabalha com a idéia de que, em determinadas

comunidades marcadas pela concentração de desvantagens estruturais, como notavelmente

é o caso de vilas e favelas, a falência de instituições formais e informais de socialização e

controle – como famílias, escolas, igrejas e associações de bairro – seria a principal

responsável pela desarticulação de todo o tecido social daquelas comunidades e,

conseqüentemente, pela completa incapacidade que estas populações demonstram de se

mobilizar para impedir ou controlar o surgimento da violência e da criminalidade.

Observa-se claramente, portanto, que ambas as linhas de pensamento trabalham com a

idéia de que o crime seria conseqüência direta ou indireta de como se articulam, dentro de

determinadas comunidades, uma série de fatores e elementos, históricos, estruturais,

demográficos, sócio-econômicos e culturais. E esta hipótese fundamental também será

adotada pelo presente estudo.

Para uma melhor compreensão do esquema geral de organização deste trabalho,

apresentamos, a seguir, a descrição dos conteúdos de cada um dos capítulos que o

compõem. O primeiro capítulo fará uma breve exposição das duas teorias mencionadas

anteriormente, e contextualizará o tema das gangues juvenis e do tráfico de drogas dentro

da Sociologia do Crime. O segundo capítulo, por sua vez, tratará dos aspectos

metodológicos desta pesquisa: qual linha e procedimentos metodológicos direcionaram o

processo de pesquisa e coleta dos dados e quais fontes de informações foram consultadas.

O terceiro capítulo apresentará uma visão detalhada do caso estudado: trata-se de um

levantamento histórico sobre o surgimento da Pedreira Prado Lopes, bem como uma

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descrição das principais características sócio-econômicas, estruturais e demográficas desta

comunidade.

No capítulo quatro faremos um histórico da violência e da criminalidade na PPL,

analisando como se deu o surgimento do tráfico de drogas na favela, por volta da década de

1970 e, mais do que isso, em qual situação ele se encontrava ao final do ano de 2004. No

quinto capítulo, faremos uma análise mais detalhada de toda a estrutura vigente no tráfico

de drogas da Pedreira Prado Lopes, assim como da organização interna das gangues ligadas

à sua exploração. Neste capítulo, serão abordados temas como a iniciação dos garotos da

favela no tráfico, a rotina seguida por eles, a hierarquia e as funções exercidas pelos

membros das gangues, as grandes quantias de dinheiro movimentadas pelos traficantes, as

armas que eles utilizam e toda a estrutura logística e simbólica envolvida na atividade do

tráfico. A partir deste cenário, no capítulo seis analisaremos toda a realidade de violência da

PPL, sob o prisma das teorias que fundamentam este trabalho.

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CAPÍTULO 1: Contextos Empírico e Teórico “Minhas palavras têm a força de uma bala e eu tenho muita munição” (Grafite pintado em um muro da rua Marcazita)

“A farda é informal: chinelo de dedo, bermuda e camiseta. As armas são pesadas: fuzis, pistolas e rifles. A idade é pouca, o risco é alto, e a trajetória de vida, curta demais” (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Folhateen, 10/03/2003). “Guerras do tráfico em pelo menos cinco pontos da cidade estão aterrorizando moradores da Zona Norte à Zona Sul. Em plena Sexta-Feira Santa, traficantes do Morro do Vidigal tentaram invadir a Rocinha. Doze pessoas foram mortas na guerra iniciada naquele dia. E os conflitos parecem não ter chegado ao fim” (Jornal O Globo, Primeiro Caderno, 08/07/2004). “Traficantes do complexo de favelas do vizinho morro do Alemão invadiram o local, mataram duas mulheres e dois homens e provocaram a fuga de dezenas de moradores. Os invasores são da facção criminosa CV - Comando Vermelho” (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, 05/07/2004). “Estudo mostra que uma em cada 14 crianças ou adolescentes envolvidos na venda de drogas é filho de pais que foram assassinados na guerra do tráfico” (Jornal O Globo, Caderno Especial, 04/07/2004).

1.1. Contexto Empírico

Os trechos transcritos acima foram retirados de jornais e revistas que, durante as duas

últimas décadas, acompanharam a verdadeira matança que está em vigor no Brasil.

Fragmentos de realidade que são, estes informes mostram o aspecto mais espetacular e

brutal de uma rotina de violência e mortes que, atualmente, sitia muitas das incontáveis

vilas e favelas dos grandes centros urbanos do Brasil. Para que se tenha uma idéia do

problema com o qual estamos lidando, basta observar que, somente entre os anos de 1980 e

2000, foram cometidos exatos 598.267 assassinatos no país, segundo dados do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2004. Isso corresponde a dizer que, nos

últimos 20 anos, uma pessoa foi morta a cada 20 minutos no Brasil. Baixas infinitamente

mais numerosas do que as que foram registradas na grande maioria das guerras ocorridas no

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planeta, durante o mesmo período. No entanto as autoridades são unânimes ao repetir o

discurso de que o Brasil não vive uma guerra civil. Justiça seja feita, já não faz mais

qualquer diferença se este genocídio tem ou não reconhecimento oficial. Os números falam

por si só.

As duas últimas décadas também deixaram bem claro que esta matança tem endereço,

idade, classe social, nome e sobrenome. De acordo com uma infinidade de pesquisas

estatísticas recentes realizadas pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime

(UNODCCP, 2004), a esmagadora maioria destes crimes acontece nas vilas e favelas dos

grandes centros urbanos, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,

Pernambuco e Espírito Santo. Também, na maioria das vezes, o sangue derramado nesta

guerra é de jovens pobres e negros, com idades que variam dos 14 aos 25 anos. As mesmas

pesquisas também demonstram que, pelo menos no Brasil, grande parte destas mortes pode

ser atribuída à sangrenta realidade que gira em torno do tráfico de drogas, dado que também

aparece em outros3 estudos e pesquisas.

Apesar de registrar números absolutos e relativos menores do que o sempre

emblemático estado do Rio de Janeiro, a “guerra” que se instaurou em Belo Horizonte

parece seguir a mesma lógica daquela que se vê em outros estados - tanto no que se refere à

distribuição geográfica dos homicídios, quanto naquilo que diz respeito à idade e ao perfil

sócio-econômico das vítimas. Nos últimos anos, grande parte dos crimes contra a vida

cometidos na capital mineira aconteceram em apenas seis favelas da cidade, o que

demonstra que a violência, definitivamente, não está homogeneamente distribuída por toda

BH. No ano de 2002, por exemplo, 36% dos homicídios registrados em Belo Horizonte

aconteceram em vilas e favelas da cidade, em um espaço que não representa nem 4,3% da

área total de BH. (BEATO et al., 2001). Aliás, no que tange à capital mineira, vale destacar

o impressionante aumento das taxas de homicídios registrados na última década. Em 1990,

274 pessoas foram assassinadas em Belo Horizonte. Em 2003, foram cerca de 1.100

assassinatos. Um crescimento de aproximadamente 400% no número de homicídios em

pouco mais de uma década, de acordo com informações da Divisão de Crimes contra a

Vida (DCcV), da Polícia Civil, em 2004.

3 ADORNO (1999); UNODCCP (2003) ; SOCIAL WATCH (2004), entre outros.

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17

Justamente por causa do alarmante crescimento da violência urbana no Brasil, e mais

especificamente em Belo Horizonte, mais do que nunca, torna-se importantíssimo tentar

entender quais elementos estão envolvidos neste processo. Até mesmo para que seja

possível elaborar políticas públicas de reversão deste quadro. E uma vez que grande parte

desta violência e criminalidade concentra-se nas vilas e favelas dos centros urbanos,

coloca-se diante de nós a necessidade fundamental de compreender quais mecanismos

históricos, geográficos, sociais, econômicos e culturais presentes especificamente nestas

regiões contribuíram e ainda contribuem para o desenvolvimento e a consolidação da

violência e da criminalidade.

Nesse sentido, o presente estudo escolheu como campo de trabalho a favela Pedreira

Prado Lopes, um aglomerado localizado na região Noroeste de Belo Horizonte e que,

segundo dados fornecidos pela Prefeitura Municipal, abriga hoje uma população de

aproximadamente 12 mil pessoas. De acordo com pesquisas recentes, a PPL (sigla pela qual

a favela é conhecida entre seus moradores) é uma das seis favelas mais violentas da capital

mineira, com altos índices relativos e absolutos de homicídios, além de uma presença

maciça de gangues ligadas ao tráfico de drogas.

Levantamentos realizados pelas polícias Civil e Militar de Minas Gerais indicam que

a PPL é hoje o principal ponto de tráfico de crack de Belo Horizonte, mercado que

movimenta muitos milhões de reais por ano. Há pelo menos quinze anos, grande parte do

comércio de entorpecentes desta favela é comandada pela quadrilha de um único traficante,

conhecido como Roni Peixoto. E este, por sua vez, de acordo com investigações da Polícia

Federal, seria o “braço direito”, em Minas, do narcotraficante Luiz Fernando da Costa, o

“Fernandinho Beira-Mar”. De tempos em tempos, a comunidade da PPL assiste a alguns

rearranjos de poder dentro da favela. Isso acontece devido ao surgimento ocasional de

novas quadrilhas, que tentam tomar o poder do grupo já instalado. Nas duas últimas

décadas, por exemplo, isso aconteceu duas vezes. A primeira, em 1999, causou uma guerra

que só terminou em 2001, deixando um rastro de 17 mortes. A segunda guerra,

infinitamente mais violenta do que a primeira, explodiu em 2003, justamente durante o

período de realização desta pesquisa. Foram 19 mortes durante o ano de 2003 e outras 35

até julho de 2004, segundo informações da Divisão de Crimes contra a Vida (DCcV), da

Polícia Civil, em 2004.

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18

De acordo com apurações preliminares da Polícia Civil, praticamente todos os

homicídios cometidos na PPL, nos últimos 10 anos, possuíam relação direta ou indireta

com o tráfico de drogas. Alguns foram mortos porque deviam pequenas quantias aos

traficantes, outros porque denunciaram a ação das quadrilhas à polícia, e outros tantos em

meio às guerras travadas entre os grupos durante este período. Houve, inclusive, casos de

crianças que foram mortas por balas perdidas, sempre disparadas à esmo no morro. Mas,

como foi dito anteriormente, em praticamente todos os casos, as vítimas eram homens,

jovens, negros e pobres. Em praticamente todos os casos, as vítimas eram soldados do

tráfico, mortos ou feridos por tiros de revólveres, pistolas semi-automáticas, metralhadoras,

escopetas, fuzis ou até mesmo granadas.

Apesar de ser considerada a favela mais antiga de Belo Horizonte, a PPL sempre foi

deixada de lado pelo poder público. Apesar de seus quase 100 anos de existência, os poucos

serviços básicos dos quais o aglomerado dispõe só vieram nas décadas de 60 e 70. As

associações de bairro nunca foram efetivamente capazes de mobilizar a comunidade em

torno das causas que realmente interessam aos moradores e a imensa maioria de sua

população sobrevive em situação de intensa miséria, amontoando-se em meio a uma

configuração ambiental caótica e deteriorada. E foi justamente neste cenário que o tráfico

de drogas se instalou com uma força e uma brutalidade que, arriscamos dizer, jamais foi

vista em Belo Horizonte.

Somente nos últimos dois anos, quando a matança na PPL se tornou impossível de ser

ignorada, as autoridades voltaram seus olhos para a realidade da favela. No entanto, a

resposta estatal só veio sob forma de repressão policial. O que se viu foi apenas um grande

número de confrontos armados, um alto número de denúncias envolvendo policiais

corruptos e violentos com o tráfico de drogas e uma população acuada e completamente

indefesa em meio ao fogo cruzado. Para cada jovem soldado morto em meio à guerra da

Pedreira, vários outros surgiam para tentar assumir o posto deixado vago. Nem mesmo as

prisões de vários supostos gerentes do tráfico nos últimos anos não surtiram qualquer efeito

no movimento financeiro das quadrilhas. Como um tiro que sai pela culatra, a saída de

circulação destes homens fortes apenas abriu espaço para a entrada de outras quadrilhas na

favela, o que só fez aumentar a violência.

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19

Por mais que se tente esconder os números desta carnificina, não há mais como deixar

de ver que a solução do problema da violência da PPL e, por que não dizer, da

criminalidade das demais favelas violentas das grandes cidades, não está apenas na

repressão, por mais qualificada que esta possa se tornar. Se existe alguma saída para a

situação de brutalidade e mortes que se instalou nestes guetos urbanos, ela certamente

começa no entendimento real das causas do problema. Começa na compreensão

aprofundada de todos os fatores históricos, culturais, econômicos e sociais que tornaram

possível a consolidação do atual regime de terror, medo e mortes imposto pelo tráfico

nestes locais.

1.2. Contexto Teórico

Dentro da Sociologia do Crime, vários são os modelos analíticos que se propõem a

explicar o surgimento e a consolidação da violência e da criminalidade nos bairros pobres e

degradados dos grandes centros urbanos. Por isso, antes de procurar fazer qualquer estudo

sobre o assunto, é necessário discutir e analisar muito daquilo que já foi dito a respeito

deste tema.

Logo de início, é possível observar que a grande maioria destes estudos se recusa a

trabalhar com a idéia de que as causas para o surgimento do crime devem ser procuradas

nas características individuais dos criminosos. Até porque, a partir do momento em que se

tem a comprovação estatística de que a imensa maioria dos homicídios é registrada em

meio às comunidades pobres das grandes cidades, fica bastante evidente que as causas da

violência e da criminalidade devem ser buscadas dentro destas próprias comunidades e das

mais diversas configurações ambientais, estruturais, sociais e até mesmo culturais

assumidas por elas. É no campo da análise social, e não da análise individual, portanto, que

as causas do crime devem ser buscadas.

Além de estabelecer dentro de qual campo esta discussão deve se desenvolver,

também é preciso, desde já, colocar de lado uma crença muito arraigada no imaginário

popular: a de que existiria uma relação causal direta entre pobreza e criminalidade, como se

a presença do primeiro fator levasse quase que invariavelmente ao surgimento do segundo.

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Apesar de ainda não haver um consenso pleno a respeito do assunto, diversos estudos4 já

demonstraram que não existe necessariamente qualquer relação causal diretamente positiva

entre pobreza e crime. Nesse sentido, o exemplo da própria cidade de Belo Horizonte

parece ser bastante emblemático. Existem na região metropolitana centenas de vilas e

favelas. No entanto, apenas uma minoria registra índices expressivos de criminalidade. Na

capital propriamente dita, temos apenas seis favelas violentas. Se houvesse necessariamente

qualquer relação causal direta entre pobreza e crime, esta proporção deveria ser, na melhor

das hipóteses, inversa àquela que se observa atualmente (BEATO & REIS, 2000).

A concentração de desvantagens econômicas e estruturais em uma comunidade pode,

sim, propiciar o surgimento de uma série de fatores e estes, por sua vez, contribuírem para

o aparecimento de altos índices de criminalidade. No entanto, não existe qualquer

comprovação empírica de que a pobreza em si seja um causador direto de altos índices de

violência, como demonstram os estudos de vários autores.

“Nesse nó de problemas, muitos fios têm que ser desembaraçados e metodicamente percorridos para que se retome a costura. Um deles é o da relação entre criminalidade e pobreza. As explicações deterministas e reducionistas vêem nos pobres sistematicamente os mais afeitos à criminalidade ou ao uso da violência. Se é inegável que crises econômicas e sociais podem ser associadas ao aumento de certos tipos de crime, a equação não se explica pela relação direta e imediata entre a baixa renda e a criminalidade. Essa equação assim posta, apesar de falsa, acaba por criar estereótipos fortes sobre quem são os criminosos potenciais ou os suspeitos número um, o que vem a se tornar um dos mecanismos mais eficazes na ampliação da criminalidade e no surgimento de uma certa solidariedade entre os que desrespeitam a lei eventualmente e mesmo os que já optaram por uma carreira criminosa, de um lado, e os trabalhadores, de outro. Do ponto de vista meramente estatístico, essa afirmação tem o efeito de uma profecia autocumprida, por serem objeto de suspeita sistemática, sendo presos para averiguação pelo simples fato de estarem perambulando pelas ruas. Desse modo, os trabalhadores pobres, mesmo quando fazem o esforço de manter a identidade de trabalhador no desemprego ou com baixos salários e ganhos, acabam sendo autuados por pequenos delitos. É esse o truque da super-representação dos pobres nas estatísticas ilegais ou criminosas” (ZALUAR, 1994: p 59).

4 COELHO (1978); PAIXÃO (1990); BEATO e REIS (2000); SAMPSON et al. (1997); entre outros Citar alguns exemplos desses estudos.

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Nas últimas décadas, observamos que vários estudos5 deixaram de seguir esta linha de

raciocínio: ao invés de atribuir o aparecimento de altas taxas de criminalidade a um fator

amplo e genérico como a pobreza, muitos pesquisadores passaram a refinar seu trabalho e a

defender a idéia de que o surgimento do crime em alguns bairros pobres seria conseqüência

direta de como se articulam, dentro destas próprias comunidades, uma série de fatores

sociais, econômicos e estruturais específicos. Passou-se a trabalhar com a hipótese de que o

crime teria sua origem na pouca coesão social de algumas destas comunidades, assim como

na falência de diversas instituições de socialização e de controle social informal, tais como

família, igrejas, associações comunitárias e escolas. Associados, todos estes fatores fazem

com que estas comunidades sejam incapazes de estabelecer valores comuns e de controlar

ou supervisionar o comportamento de seus membros. Isto, por conseqüência, causaria o

surgimento do crime.

Mais uma vez, é preciso ressaltar que todos os estudos que seguem esta linha de

análise procuram formular suas proposições em termos sistêmicos. Ou seja, a comunidade e

a vizinhança são vistas como um complexo sistema de amizades, afinidades e redes de

associação baseadas nas famílias e nas demais instituições comunitárias. A diferença destas

abordagens com relação às demais é que nenhuma proposição é feita de modo a levar em

consideração apenas o indivíduo. Todas as análises são feitas a partir das características do

sistema social, nunca do indivíduo.

Obviamente, existem várias restrições a este tipo de abordagem, uma vez que nem

sempre modelos macrossociológicos mostram-se capazes de fazer predições precisas a

respeito do comportamento individual, justamente por se referirem às propriedades dos

grupos, como destaca Short (1985). No entanto, teorias que trabalham em níveis sistêmicos

possuem a importante capacidade de apontar diversas dinâmicas comunitárias relacionadas

ao surgimento do crime. E se elas forem trabalhadas com a necessária acuidade, podem,

como aponta Bursik (1998), sempre tentar fazer uma análise não apenas da estrutura social,

como também do comportamento individual e, principalmente, das estruturas que fazem a

conexão de uma instância com a outra.

E é fundamentalmente dentro desta linha de raciocínio que o presente trabalho

pretende se desenvolver. A seguir, apresentaremos, em linhas gerais, estudos que se 5 SHAW e MCKAY (1942); BURSIK (1988); BURSIK e GRASMICK (1993); MORENOFF et al. (2001); SAMPSON et al. (1997); entre outros.

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propuseram a entender os mecanismos pelos quais determinadas comunidades pobres e

socialmente excluídas desenvolvem altíssimos índices de criminalidade. Acreditamos que,

colocados lado a lado, tais trabalhos são capazes de oferecer um painel bastante ilustrativo

daquilo que já foi pensado sobre a relação existente entre comunidade e crime. Mais do que

isso, tais estudos podem ajudar na construção de um modelo que nos permita entender

melhor o surgimento e a consolidação da violência e da criminalidade na favela Pedreira

Prado Lopes e, por que não dizer, em diversos outros aglomerados do país.

1.2.1 – Comunidade X Criminalidade

Não podemos dizer que seja recente na produção sociológica a idéia de que existe

uma estreita ligação entre a configuração caótica e desorganizada assumida por

determinados bairros dos grandes centros urbanos e o aparecimento de altas taxas de

criminalidade – especialmente no que se refere àqueles crimes praticados por gangues

juvenis.

1.2.1.1. Desorganização Social

Já durante a década de 1940, ganharam força, no pensamento sociológico do crime, os

trabalhos desenvolvidos pelo movimento intelectual da Escola de Chicago, principalmente

aqueles elaborados pelos sociólogos Clifford Shaw e Henry McKay (1942). A partir de um

grande survey aplicado na cidade de Chicago, ambos realizaram um estudo que atribui o

surgimento de altas taxas de violência e criminalidade à desorganização social de

determinadas comunidades e à incapacidade que elas têm de conceber valores comuns e,

conseqüentemente, de controlar de maneira efetiva o comportamento de seus membros.

Logo de início, o estudo de Shaw e McKay (1942) aponta duas tendências: a de que a

criminalidade violenta se manifestava com mais intensidade nos bairros pobres e

deteriorados de Chicago e a de que estas comunidades tendem a manter suas taxas de

delinqüência por longos períodos, mesmo apresentando um alto índice de rotatividade

residencial. Como foi dito anteriormente, isso apenas reforça a importância de se analisar

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de maneira sistêmica o desenvolvimento da criminalidade, assim como a história de

violência pregressa existente em determinadas vizinhanças.

Rompendo com o senso comum, Shaw e Mckay (Idem) também observaram que,

além da situação de pobreza e degradação, as vizinhanças de Chicago que possuíam altas

taxas de criminalidade também se destacavam por ser a moradia de uma infinidade de

minorias étnicas que, tão logo fosse possível, se mudariam para vizinhanças mais atrativas

e menos deterioradas. Ainda de acordo com Shaw e McKay, esta heterogeneidade étnica e a

alta rotatividade residencial impediam que estas comunidades fixassem raízes em seu local

de moradia, que estabelecessem um conjunto de valores e representações simbólicas

comuns e, conseqüentemente, que desenvolvessem um apreço mínimo pela vizinhança

onde viviam. Formava-se nessas comunidades, portanto, um cenário de completa

desorganização social, onde os moradores não eram capazes de conceber valores comuns,

nem se mostravam aptos a formar um corpo social suficientemente coeso para controlar

efetivamente o comportamento de seus membros e, conseqüentemente, impedir o

surgimento de altas taxas de criminalidade.

Ou seja, a teoria clássica da “Desorganização Social”, proposta por Shaw e Mckay

(1942), não propõe a idéia de que a privação econômica gera o crime. Ela propõe a idéia de

que, em um primeiro momento, o processo desordenado de urbanização e a pobreza geram

a desorganização social (concentração de desvantagens econômicas e estruturais, altas taxas

de rotatividade residencial e heterogeneidade étnica). Esta desorganização, como demonstra

Kornhauser (1978), por sua vez, diminui a integração e a coesão existentes entre os

membros de uma comunidade, o que acaba acarretando o baixo poder de manter um

controle social efetivo sobre o comportamento dos indivíduos e, conseqüentemente, sobre o

surgimento do crime.

Vários autores6 têm demonstrado em seus estudos que a violência e a criminalidade

surgiriam com mais intensidade nas comunidades pobres e degradadas das grandes cidades,

portanto, não devido à pobreza em si, mas, sim, devido ao altíssimo grau de

“desorganização social” das mesmas. Em uma vizinhança socialmente desorganizada, o

vínculo moral de um indivíduo com a sua comunidade diminui e, logicamente, também

diminuem os custos morais de se cometer um crime. Como afirma Bursik (1988: p 520) 6 SHAW e MCKAY (1942); BURSIK e GRASMICK (1993); BURSIK (1988); dentre outros.

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“In it’s purest formulation, social disorganization refers to the inability of local communities to realize the common values of their residents or solve commonly experienced problems. Population turnover and heterogeneity are assumed to increase the likelihood of disorganization for the following reasons: 1- Institutions pertaining to internal control are difficult to establish when many residents are “uninterested in communities they hope to leave at the first opportunity. 2- The development of primary relationships that result in informal structures of social control is less likely when local networks are in a continual state of flux. 3- Heterogeneity impedes communication and thus obstructs the quest to solve common problems and reach common goals”.

O modelo proposto por Shaw e Mckay (1942), na figura 1, a seguir, também

nos ajuda a visualizar as principais proposições da teoria da Desorganização Social:

FIGURA 1

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25

Apesar de ter atingido um bom nível de aceitação e de ter embasado vários outros

estudos subseqüentes, da década de 1940 para cá, a teoria de Shaw e McKay já sofreu

sérias críticas e propostas de revisão. Robert Bursik (1988), por exemplo, chama a atenção

para o fato de que a teoria original não fornece variáveis suficientemente detalhadas para

que se possa medir o grau de desorganização social de uma comunidade. Isso faria com que

muitos autores que se disponham a trabalhar com esta linha analítica confundam a

“Desorganização Social” propriamente dita com seu produto. Como ressaltam Bursik

(1998) e Kornhauser (1978), a teoria original deixaria, portanto, uma série de lacunas

teóricas e metodológicas a serem mais bem trabalhadas.

1.2.1.2. Controle Social:

O modelo teórico da “Desorganização Social” proposto por Shaw e McKay exerceu

tanta influência sobre o pensamento criminológico, que diversos estudos posteriores

passaram a adotar seus postulados como base para o desenvolvimento de novas teorias.

Bursik e Grasmick (1993), por exemplo, trabalham no sentido de dar maior precisão à tese

original da “Desorganização Social” e de depurar os mecanismos através dos quais a

concentração de desvantagens (tanto econômicas quanto sociais) em uma comunidade

poderia ser a detonadora de um processo que leva ao aumento das taxas de criminalidade.

De acordo com Bursik e Grasmick (Idem), a teoria de Shaw e McKay não especifica

através de quais processos ou meios a desorganização social de uma comunidade criaria um

ambiente propício para o surgimento de altas taxas de delinqüência. Depurando o que havia

sido tratado em linhas muitas vezes gerais por Shaw e McKay, Bursik e Grasmick propõem

a idéia de que, muito mais do que criar um ambiente criminógeno, a desorganização social

provocaria o enfraquecimento de instâncias formais e informais de controle (como família,

igrejas, escolas, associações comunitárias e diversas outras entidades representativas) em

determinadas comunidades, o que, por sua vez, diminuiria nestes locais o custo social

associado ao cometimento de crimes. Colocado desta maneira, observa-se que o modelo

proposto por Shaw e McKay nada mais é do que uma teoria do “controle social” elaborada

em nível de grupo. Para Bursik (1988:p 521):

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“The causal linkage between social disorganization and neighborhood delinquency rates was not clearly explicated by Shaw and McKay. In various sections of their work, they freely draw on elements of strain, cultural conflict, and control theories, but the logical implications of those frameworks are at times inconsistent. Given the intimate theoretical connection between processes of rapid ecological change and the social disorganization framework, a control theoretic approach offers perhaps the best general basis for understanding the process. That is, the dynamics of social disorganization lead to variations across neighborhoods in the strength of the commitment of the residents to group standards. Thus, weak structures of formal and informal control decrease the costs associated with deviation within the group, making high rates of crime and delinquency more likely. Framed in this manner, the Shaw and McKay model of social disorganization is basically a group-level analog of the control theory and is grounded in very similar processes of internal and external sources of control”.

Ainda dentro de uma visão sistêmica, Bursik e Grasmick (1993) reforçam a idéia de

que, nas comunidades, o controle social do comportamento dos indivíduos acontece em

dois níveis distintos: o primeiro nível de controle é exercido dentro dos grupos primários de

socialização (amigos, família, redes de afinidades), enquanto o segundo nível de controle é

exercido dentro de instituições formais que coabitam e atuam dentro das vizinhanças

(associações comunitárias, escolas, igrejas e até mesmo a polícia).

Nestas vizinhanças, a desestruturação de instituições como a família (grupo primário

de socialização), a igreja, as escolas e as associações de bairro (grupos formais de

socialização) acarretaria o enfraquecimento destas duas instâncias de controle social em

três esferas específicas: na esfera (a) privada, na esfera (b) paroquial e na esfera (c) pública.

A esfera privada refere-se às relações primárias e pessoais que se estabelecem entre amigos,

parentes e vizinhos. Em comunidades que apresentam altas taxas de rotatividade

residencial, tais relações encontram-se enfraquecidas, assim como o controle social que

deveria ser exercido por elas. A esfera paroquial, por sua vez, refere-se às relações que

moradores de uma determinada comunidade estabelecem com as associações e instituições

locais. Em comunidades onde a população é marcada por heterogeneidade étnica, observa-

se um baixíssimo grau de associativismo e, conseqüentemente, o enfraquecimento de tais

instituições e um baixo grau de controle social. Finalmente, a esfera pública diz respeito à

capacidade que uma comunidade tem de mobilizar aparelhos estatais em prol de si mesma.

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Ao contrário do que haviam proposto Shaw e McKay, o que está sendo colocado por

Bursik e Grasmick é que a concentração de desvantagens em determinadas comunidades

(tanto econômicas quanto estruturais e sociais) não seriam motivadores diretos do crime,

mas sim indiretos. Em um primeiro momento a pobreza e a desestruturação social minam

as instituições que são responsáveis pela socialização e pelo controle do comportamento

dos indivíduos. Somente então, estas comunidades perdem sua capacidade de estabelecer

uma gama de valores comuns e de resolver internamente seus problemas, criando assim o

cenário adequado para o surgimento da violência e da criminalidade. Como afirmam Bursik

e Grasmick (Idem; p 114):

“It is through these relational networks that the regulatory capacities of a neighborhood become actualized. (...) Most research has focused on two basics types of systemic control. The first, which has been called the private level of control, focuses on the networks that integrate residents into the intimate informal primary groups of a neighborhood. It is through these associations that information is transmitted concerning expectations of appropriate behavior. If those expectations are violated, these networks are utilized to impose various informal sanctions on the offending member. (...) The second or parochial level of control represents interpersonal networks in which communication among members of the system does not have the same degree of intimacy as at the private level. For example, a resident may informally keep an eye in the public activities of local children or may alert fellow neighbors to the presence of outsiders who might be considered threatening. Therefore, this dimension of systemic control in part represent the supervisory capacities of a local community. In addiction, it also represents residential participation in local institutions, such as churches, voluntary organizations, and schools”.

1.2.1.3. Eficácia Coletiva

Ainda na tentativa de elucidar a relação existente entre a configuração assumida por

determinadas comunidades e o surgimento do crime, vários outros estudos procuraram dar

maior consistência teórica e precisão à proposição original de Shaw e McKay. No final da

década de 1980, por exemplo, Sampson e Groves (1989) voltaram a trabalhar com a idéia

fundamental de que a manifestação de altas taxas de criminalidade em certas vizinhanças

seria conseqüência direta ou indireta de como se articulam, dentro destas comunidades,

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determinados fatores históricos, estruturais, sócio-econômicos, demográficos e culturais.

Ainda tomando como base o estudo original de Shaw e McKay (1942), Sampson e Groves

(1989) trabalham com a idéia de que o crime seria, em última instância, conseqüência da

pouca ou nenhuma capacidade que os moradores de determinadas comunidades possuem de

estabelecer um conjunto de valores e objetivos comuns (pouca coesão social), da falta de

capacidade dos mesmos de controlar ou supervisionar o comportamento mútuo e, além

disso, da pouca ou nenhuma predisposição que os membros destas comunidades têm de agir

em prol do bem comum.

Desta forma, outras duas variáveis foram adicionadas à teoria original de Shaw e

McKay, a fim de conferir a ela maior precisão. Se, na proposição original, a

“Desorganização Social” de uma comunidade seria caracterizada por basicamente três

fatores (baixo status sócio-econômico, heterogeneidade ética e alto nível de rotatividade

residencial), no trabalho de Sampson e Groves (1989), por sua vez, é proposta a idéia de

que outros dois fatores devem ser levados em conta neste processo e, conseqüentemente,

também precisam ser tomados como fomentadores de altas taxas de criminalidade: a

desestruturação das famílias – que minaria a capacidade de supervisão das crianças e dos

grupos juvenis - e o processo de urbanização rápido e desordenado – que, por sua vez,

tornaria praticamente impossível a formação de uma comunidade socialmente coesa e

atrelada a valores e metas comuns. Nas palavras de Sampson e Groves (1989:p 781)

“In a recent contribution to this journal, Sampson argued that marital and family disruption may decrease informal social controls at the community level. The basic thesis was that two-parent households provide increased supervision and guardianship not only for their own children and household property, but also for general activities in the community. From this perspective, the supervision of peer-group and gang activity is not simply dependent on one child’s family, but on a network of collective family control (Thrasher, 1963). In support of this theoretical model, Sampson (1987) showed that macro-level family disruption had large direct effects on rates of juvenile crime by both whites and blacks. (…) Although Shaw and McKay (1942) were primarily concerned with intracity patterns of delinquency, their theoretical framework is consistent with the idea that urban communities have a decreased capacity for social control, compared with suburban and rural areas. In particular, urbanization may weaken local kinship and friendship networks and impede social participation in local affairs” (SAMPSON & GROVES, 1989).

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A idéia proposta por esses autores pode ser melhor visualizada no modelo esquemático

apresentado na figura 2, a seguir:

FIGURA 2 Modelo originalmente proposto por Sampson e Groves (1989)

Já na década de 1990, ainda na tentativa de encontrar uma explicação mais precisa

para o fenômeno do surgimento do crime em comunidades pobres, Sampson, Raundenbush

e Earls (1997) passam a trabalhar com o conceito de “Eficácia Coletiva”. Segundo esses

autores, o conceito “Eficácia Coletiva” deve ser entendido como um complexo sistema

formado pela coesão social existente entre os membros de uma vizinhança, pela confiança

mútua que se estabelece entre seus moradores e pela disponibilidade que estes têm de

controlar o comportamento mútuo e agir em prol do bem comum. Trata-se de um processo

dinâmico que se manifesta de formas diferentes de uma comunidade para outra e exerce

papel fundamental no que se refere ao controle da violência e da criminalidade. Cabe

observar que, assim como foi feito por Shaw e McKay (1942), Bursik e Grasmick (1993) e

Low economic status Ethnic Heterogeneity Residential Mobility Family Disruption Urbanization

Sparse local friendship network Unsupervised teen-age peer groups Low organizational participation

Crime and Delinquency

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vários outros, Sampson, Raundenbush e Earls também desenvolvem uma teoria que

trabalha em termos sistêmicos. Ou seja, a comunidade e a vizinhança continuam a ser vistas

como um intrincado sistema de amizades, afinidades e redes de associação baseadas em

instituições como famílias e outras instâncias comunitárias. Nenhuma proposição é feita de

modo a levar em consideração apenas o indivíduo. As análises e proposições são feitas a

partir das características do sistema social, nunca do indivíduo.

Nesta nova proposta de refinamento do estudo original de Shaw e McKay, Sampson,

Raundenbush e Earls iniciam seu trabalho tratando da própria definição do conceito de

“comunidade” que, obviamente, também é analisada em termos sistêmicos. Tal retomada se

faz necessária porque, a partir do momento em que se está disposto a desenvolver uma

teoria que explique o surgimento do crime a partir das características sociais, econômicas,

culturais e estruturais de uma comunidade, é fundamental delimitar com a maior precisão

possível o cenário dentro do qual este estudo irá trabalhar. Tomando como base o conceito

de Sampson e Groves (1989), “Comunidade” seria o complexo sistema de amizades, redes

de afinidades e laços associativos baseado nas famílias e nos processos de socialização

vigentes dentro de uma determinada vizinhança.

Seguindo esta linha de raciocínio, Sampson, Raundenbush e Earls (1997) propõem a

idéia de que, empiricamente, a organização social de uma comunidade pode ser mensurada

em termos da interdependência sistêmica que as mais diversas instituições sociais (tanto as

informais - como a família e as redes de amizades -, quanto as formais – associações

comunitárias, escolas e igrejas) estabelecem entre si, dentro de uma determinada

vizinhança. Uma comunidade organizada seria, portanto, aquela onde a população local

consegue estabelecer um alto nível de coesão social e confiança mútua e,

conseqüentemente, exercer um controle social efetivo sobre seus membros. Ou seja, uma

comunidade que possui um alto grau de “Eficácia Coletiva”. Tal eficácia propiciaria a estas

comunidades a capacidade de supervisionar as atividades de suas crianças, assim como

controlar a formação de grupos juvenis. E, uma vez que o fenômeno da violência

manifesta-se principalmente através de dinâmicas grupais, a capacidade que uma

comunidade tem de controlar as atividades coletivas que se desenvolvem dentro dela torna-

se um elemento chave para o controle do crime e da delinqüência (THRASHER, 1927;

SHAW & MCKAY, 1942; SHORT & STRODBECK, 1965; REISS, 1986).

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31

Se, anteriormente, o surgimento do crime e da delinqüência em algumas vizinhanças

pobres e deterioradas era explicado apenas pela presença de uma vasta gama de fatores

estruturais e sociais - como a alta taxa de mobilidade residencial, o baixo status sócio-

econômico, a heterogeneidade étnica, a desestruturação das famílias e o processo acelerado

e desordenado de urbanização, na década de 1990, Sampson, Raudenbush e Earls (1997)

propõem a idéia de que, em termos gerais, as diferentes taxas de crime podem ser

explicadas pelas diferentes capacidades que as comunidades têm de conceber valores

comuns (como a vontade de viver em uma comunidade livre de crimes), de exercer um

controle social efetivo sobre seus membros (controle através de mecanismos informais e

também através da utilização de instituições externas como a polícia) e de solucionar

internamente seus próprios problemas. A diferença nas taxas de violência e Criminalidade

se deveriam, portanto, aos diferentes graus de “Eficácia Coletiva” existentes nas diversas

comunidades.

Assim, o conceito de “Eficácia Coletiva” ganha grande importância, pois remete

fundamentalmente a aspectos como a confiança mútua entre os moradores, o

estabelecimento de redes de afinidades e amizades, além da participação voluntária dos

moradores em associações comunitárias e entidades que visam à melhoria da vizinhança e o

bem estar comum – associativismo. Todos estes aspectos, que podem muito bem ser

entendidos como Coesão Social7, fazem com que se estabeleça, entre os membros de uma

determinada comunidade, a disposição de supervisionar o comportamento dos demais

residentes e, mais do que isso, de intervir em prol do bem comum. Como destacam

Sampson, Raudenbush e Earls (1997):

“We propose that the differential ability of neighborhoods to realize the common values of residents and maintain effective social controls is a major source of neighborhood variation in violence. Although social control is often a response to deviant behavior, it should not be equated with formal regulation or forced conformity by institutions such as the police and courts. Rather, social control refers generally to the capacity of a group to regulate its members according to desired principles – to realize collective, as opposed to forced, goals. One central goal is the

7 No caso, “Coesão Social” é definida por Sampson, Raundenbush e Earls como sendo a capacidade que os moradores de uma comunidade têm de estabelecer uma gama de valores comuns e de se orientar segundo eles.

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desire of community residents to live in a safe and orderly environments that are free of predatory crime, especially interpersonal violence. (…) In contrast to formally or externally induced actions (for example, a police crackdown), we focus on the effectiveness of informal mechanisms by which residents themselves achieve public order. Examples of informal social control include the monitoring of spontaneous play groups among children, a willingness to intervene to prevent acts such as truancy and street-corner ‘hanging’ by teenage peer groups, and the confrontation of persons who are exploiting or disturbing public spaces. (…) At the neighborhood level, the willingness of local residents to intervene for the common good depends in large part on conditions of mutual trust and solidarity among neighbors. Indeed, one is unlikely to intervene in a neighborhood context in which the rules are unclear and people mistrust or fear one another. It follows that socially cohesive neighborhoods will prove the most fertile contexts for the realization of informal social control. In sum, it is the linkage of mutual trust and the willingness to intervene for the common good that defines the neighborhood context of collective efficacy. Just as individuals vary in their capacity for efficacious action, so too do neighborhoods vary in their capacity to achieve common goals”.

De acordo com esta abordagem, todos aqueles fatores que eram apontados como

estimuladores do surgimento do crime e da delinqüência – baixo status sócio-econômico,

alta taxa de mobilidade residencial, heterogeneidade étnica, etc – passam a ser vistos como

elementos que minam o estabelecimento de “Coesão Social” (confiança mútua,

estabelecimento de valores comuns) e, conseqüentemente, de “Eficácia Coletiva” (conjunto

formado pela coesão Social e pela predisposição dos indivíduos de agir em prol do bem

comum). Comunidades socialmente desorganizadas e, conseqüentemente, com baixo grau

de “Eficácia Coletiva”, perdem a capacidade de controlar o comportamento de seus

indivíduos através de mecanismos formais e informais e de resolver internamente seus

problemas. Conseqüentemente, como ressaltam Morenoff et al. (2001), estes fatores criam

o terreno ideal para o surgimento de altas taxas de criminalidade.

Nota-se que, ao trabalhar com os conceitos de “Coesão Social” e “Eficácia Coletiva”,

Sampson também passou a lidar com o conceito de “Capital Social”, (COLEMAN, 1990;

PUTNAM, 1993; BURSIK, 1986). Ou seja, ele passa a tratar de aspectos da organização

comunitária - como confiança mútua entre os indivíduos, fortalecimento de instituições

comunitárias e coesão - que facilitam a coordenação e a cooperação entre os indivíduos

dentro de um determinado sistema (comunidade) para a produção de benefícios mútuos.

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Mais uma vez, é preciso ressaltar que esta análise não coloca sua ênfase no individuo, mas

sim no sistema, na estrutura social.

Observa-se que as construções teóricas anteriores ao conceito de “Eficácia Coletiva”

sempre encararam a comunidade como uma rede de sociabilidade primária, ou seja, um

sistema onde a maioria das pessoas se conhece pessoalmente, onde os contatos são feitos

face a face e onde as relações são, em sua grande maioria, pessoais. No entanto, o

crescimento das cidades e o processo cada vez mais acelerado de urbanização tornaram este

tipo de configuração cada vez mais difícil de ser observado.

Sampson et al. (1997,1999), por sua vez, trabalha com a idéia de que as pessoas não

precisam se conhecer pessoalmente, nem necessariamente desenvolver redes de

sociabilidade primária para formarem uma comunidade socialmente coesa e organizada.

Basta a elas compartilharem a mesma gama de valores (querer viver em uma vizinhança

livre de crimes, por exemplo) e dividirem a expectativa de que todos devem intervir em

prol do bem comum e ajudar a manter o controle social. A “eficácia”, no caso, refere-se à

eficiência que uma comunidade demonstra quando se dispõe a realizar uma tarefa como,

por exemplo, manter a ordem social.

Vista desta forma, a “Eficácia Coletiva” nada mais é do que uma construção teórica

que enfatiza as expectativas compartilhadas e o engajamento mútuo dos moradores de uma

comunidade em torno de uma determinada tarefa, que é a manutenção do controle social.

Como ressaltam Morenoff et al. (2001), a comunidade é vista como um conjunto de

moradores que se organizam para produzir um efeito desejado, ou seja, manter a

comunidade livre do crime e da delinqüência.

Além da coesão social, da confiança mútua e da expectativa compartilhada de que

todos agirão em prol do bem comum (elementos fundamentais para que uma comunidade

alcance um alto grau de eficácia coletiva), também é preciso ressaltar o importante papel

que as organizações e instituições comunitárias desempenham no combate ao crime e à

violência. São estas instituições que representam a comunidade politicamente e conseguem

exercer pressão para que instituições governamentais passem a cumprir suas funções

(saúde, escolas, policiamento) da maneira mais correta e eficiente possível, pois a presença

do Estado e de todos os seus serviços exerce papel fundamental na manutenção da

estabilidade e do controle social de uma vizinhança. Nas palavras de Morenoff et al.(2001):

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“Communities can exhibit intense private ties (among friends, kin), and perhaps even shared expectations for control, yet still lack the institutional capacity to achieve social control (Hunter, 1985). The institutional component of social capital is the resource stock of neighborhood organizations and their linkages with other organizations. Similar to the idea of ‘bridging’ social capital, Bursik and Grasmick (1993) also highlight the importance of public control, defined as the capacity of community organizations to obtain extralocal resources (police protection; block grants; health services) that help sustain neighborhood stability and control. It may be that high levels of collective efficacy come about because of such controls, such as strong institutional presence ad intensity of voluntary associations”.

1.2.1.4. Gangues

Para tentar conceber um modelo analítico que dê conta de explicar de forma

razoavelmente eficiente o surgimento da violência e da criminalidade dentro de

comunidades pobres e deterioradas, torna-se fundamental analisar também, além das

características estruturais e sociais das próprias comunidades em si, a dinâmica dos

processos grupais que geralmente aparecem associadas à prática dos crimes. Especialmente

aqueles que dizem respeito ao surgimento e à atuação de gangues juvenis. Primeiro porque,

como foi dito anteriormente, o crime é, na maioria das vezes, um fenômeno grupal, uma

atuação coletiva. Segundo porque, no caso da favela Pedreira Prado Lopes, aglomerado que

servirá como campo de estudo do presente trabalho, pode-se dizer, sem medo de incorrer

em erro, que praticamente todas as práticas criminosas estão intimamente associadas à

atividade das gangues de traficantes de drogas que ali atuam.

Apesar de não haver até hoje dentro da Criminologia um consenso a respeito daquilo

que se entende como “gangue”, a imensa maioria das definições8 já propostas para o

problema ressaltam dois aspectos em especial: o primeiro é o de que o termo “gangue”

refere-se a um processo grupal. O segundo é o de que o processo social entendido como

“gangue” costuma referir-se à participação de um grupo de indivíduos em comportamentos

8THRASHER (1927); CHAIKEN & CHAIKEN (1990); KLEIN et al., (1991); DECKER & VAN WINKLE (1996);

WEISEL (2002); entre outros.

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ilegais. Ou seja, a grande maioria das definições dadas até hoje ao termo “gangue”

ressaltam sua natureza coletiva e seu caráter desviante.

Nas últimas décadas, diversos estudos9 propuseram explicações para o problema do

surgimento e da consolidação das gangues, uma vez que este é um processo que, na maioria

das vezes, aparece intimamente associado à manifestação de altas taxas de violência e

criminalidade. Apesar de fazerem uso de diversas formas de abordagem, tais estudos

possuem um traço em comum: trabalham sobre a convicção de que as gangues constituem

um problema tipicamente urbano e que se manifesta, em sua grande maioria, nas áreas mais

degradadas e socialmente excluídas dos grandes centros. Por isso, assim como acontece

com o fenômeno da violência e da criminalidade em si, torna-se fundamental entender as

gangues dentro do contexto das vizinhanças nas quais elas surgem. Como destacam, por

exemplo, Decker e Van Winkle (1996: p 230):

“We believe it is important to understand gang members and their families in the context of the neighborhood they live in. By and large, the members of our samples lived in neighborhoods with few resources. Schools were plagued with difficulties (created in part by members of our samples, housing stock had declined, jobs in the legitimate economy had vanished, and recreation opportunities were hard to find. But not only had the power of formal social institutions been eroded, other mechanisms had lost their ability to control the behavior of neighborhood residents as well. Key among this latter group were neighborhood social control and the family. Viable neighborhoods, with functioning legitimate opportunity structures, go a long way to provide effective controls on behavior, especially for young people. Within the context of declining neighborhoods, families – generally headed by poor single women – often stood alone in their efforts to control the behavior of their children. Living in neighborhoods with limited economic and social capital and generally lacking in these themselves, the families we observed fought a difficult battle up a steep hill”.

9 FAGAN (1989); KLEIN et al. (1991); SPERGEL (1992); DECKER e VAN WINKLE (1996); DECKER e REED (2002); entre outros.

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1.2.1.4.1. Origens

Entre os estudos já elaborados sobre o tema das gangues, podemos destacar aqueles

feitos pelo sociólogo Thrasher (1927) que, já na década de 1920, estabelecia uma

correlação direta entre as condições sócio-ambientais precárias sob as quais viviam os

jovens em comunidades pobres e o surgimento do crime – mais especificamente aquele

cometido por grupos delinqüentes ou gangues. De acordo com o autor, o processo de

formação de gangues juvenis e o conseqüente aumento das taxas de criminalidade se

manifestava mais efetivamente nestas vizinhanças, devido à falta de estruturas e instituições

sociais que garantissem uma socialização adequada às crianças. Sem a presença mais

efetiva de suas famílias, é justamente nas ruas degradadas dos bairros pobres que estes

jovens têm seus primeiros contatos com as rixas, com as afinidades, com as primeiras

turmas e disputas. A falta de instituições minimamente eficientes de socialização seria

suprida pelo surgimento das gangues, que se encarregariam de fazer este papel junto aos

jovens.

Assim como fizeram Shaw e McKay (1942), Bursik e Grasmick (1993), Sampson

(1997; 1999) e vários outros; Thrasher (1927) enxerga a falência de diversas instituições

sociais como uma das principais causas do surgimento das gangues e, conseqüentemente,

do crime. Nos bairros pobres e deteriorados das grandes cidades, é justamente na ausência

de uma família mais presente, na desestruturação de uma associação de moradores, na

deterioração de uma escola e na falta de atividades supervisionadas que as gangues ganham

seu espaço. Pois é dentro destes grupos que os jovens aprendem as primeiras regras de

convivência e as noções primárias de territorialidade. É dentro das gangues que se

desenvolve a solidariedade entre os membros. Nas palavras de Thrasher (1927:p 6):

“The gang is almost invariably characteristic of regions that are interstitial to the more settled, more stable, and better organized portions of the city. The central tripartite empire of the gang occupies what is often called “the poverty belt” – a region characterized by deteriorating neighborhoods, shifting populations, and the mobility and disorganization of the slum. (…) The beginnings of the gang can best be studied in the slums of the city where an inordinately large number of children are crowded into a limited area. On a warm summer evening children fairly swarm over

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areaways an sidewalks, vacant lots and rubbish dumps, streets and alleys. (…) In this ubiquitous crowd of children, spontaneous play-groups are forming everywhere – gangs in embryo. Such a crowded environment is full of opportunities for conflict with some antagonistic person or group within or without the gang’s own social milieu. The conflict arises on the one hand with groups of its own class in disputes over the valued prerogatives of gang land – territory, loot, play, spaces, patronage in illicit business, privileges to exploit, and so on; it comes about on the other, through opposition on the part of the conventional social order to the gang’s unsupervised activities. Thus, the gang is faced with a real struggle for existence with other gangs and with the antagonistic forces in its wider social environment. Play-groups easily meet these hostile forces, which give their members a ‘we’ feeling and star the process of ganging so characteristic of the life of these unorganized areas”.

Pode-se dizer, portanto, que as gangues emergem dos grupos ou turmas de amigos

formadas em brincadeiras de ruas entre vizinhos. No entanto, elas só passam a ser

caracterizadas como gangues, de fato, a partir do momento em que se envolvem em

comportamentos desviantes, como também consideram Decker e Van Winkle (1996) e

Zaluar (1994). Muitas vezes, isso acontece quando se coloca frente ao grupo algum tipo de

ameaça. Seja ela vinda de entidades da comunidade ou de alguma turma de um bairro

vizinho. Esta ameaça e os primeiros enfrentamentos fazem com que estes garotos adquiram

um sentimento maior de grupo e, conseqüentemente, de gangue. A essência destes grupos

acaba sendo forjada no confronto, na ameaça, no enfrentamento. O que, em um primeiro

momento, eram apenas turmas, acabam se tornando grupos de conflito com seus primeiro

líderes naturais e suas próprias regras de convivência. E é justamente destes grupos que

emergem as gangues.

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1.2.1.4.2. Características

Uma característica das gangues ressaltada por diversos autores10 diz respeito à sua

estrita noção de territorialidade. Como parte do processo de definição e até mesmo de

afirmação de suas identidades sociais, cada gangue delimita seu território e será dentro dele

que o grupo estabelecerá suas próprias leis, seus hábitos, suas atividades e condutas. Alguns

autores11 chegam a comparar o território das gangues a feudos modernos, dentro dos quais

vale a lei do senhor das terras. Como barões, os líderes das gangues se encarregam de

organizar a defesa de seu território, a manutenção de sua ordem e a punição dos traidores

ou inimigos. Tanto que, ocasionalmente, quando duas ou mais gangues se estabelecem em

um mesmo território, ocorrem conflitos e rearranjos de poder que podem gerar grandes

ciclos de violência entre os grupos. Geralmente, a contenda só é decidida quando um dos

grupos é eliminado.

Vale observar que, ainda que de forma subentendida, esta característica de conflito e

domínio territorial inerente às gangues acaba por constituir um estímulo muito forte para

que outros jovens de uma comunidade também queiram se tornar membros deste tipo de

grupo. Isso acontece porque, em uma comunidade marcada pela presença das gangues, a

vida pode ser muito difícil e perigosa para aqueles que não fazem parte de nenhuma delas.

Nos bairros pobres e degradados das grandes cidades, o simples fato de pertencer a uma

gangue pode não apenas garantir status, facilidades e regalias a seus membros, como

também proteção contra a ação arbitrária dos demais grupos. Tanto que alguns estudos12

demonstraram que, de maneira geral, as gangues não costumam exercer pressão direta para

que os jovens se unam a ela. Como demonstram Decker e Van Winkle (1996), geralmente,

o assédio acontece no sentido contrário. A pressão psicológica exercida pela ameaça que

vem das gangues de fora da comunidade faz com que a entrada para um destes bandos se

torne uma alternativa perfeitamente viável para garantir a própria segurança.

Além da proteção contra as ameaças externas, o pertencimento a uma gangue também

pode garantir a seus membros uma série de benefícios, tanto instrumentais quanto sociais.

As vantagens instrumentais incluem fatores como o ganho de dinheiro rápido e fácil –

10 CHAIKEN e CHAIKEY (1990); ZALUAR (1994); DECKER e VAN WINKLE (1996). 11 SOARES (2000). 12 ZALUAR (1994).

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oriundo da venda de drogas ou da prática de diversos outros crimes – e até mesmo a

conquista de moradia. Os benefícios sociais, por sua vez – talvez os que realmente

importam aos jovens que se filiam a uma gangue -, vão desde o poder e o prestígio que o

pertencimento a um dos grupos da vizinhança traz consigo, até o reconhecimento público

em meio a uma comunidade de excluídos.

Na visão de Zaluar (1994) e de Adorno (1999), todos estes fatores atuam como

atrativos para os jovens que, depois de filiados às gangues, acabam se afastando de

instituições como o mercado de trabalho, a família, a escola, a igreja e as associações de

bairro, o que, por sua vez, diminui sensivelmente os encargos sociais de se cometer um

crime. Zaluar (1994: p 143) ressalta a função de agência de socialização que desempenha a

quadrilha entre os jovens:

“Como agência de socialização, a quadrilha parece cumprir uma função sem par. É nela que os jovens iniciados podem passar por um ritual (de fogo) em que provam a sua audácia ou disposição para matar, desafiam o medo da morte e da prisão, enfrentam o perigo maior que pessoas dessa classe social podem enfrentar. Numa subcultura criminosa que marca o espaço exclusivo da masculinidade – o campo da guerra - , o uso da arma de fogo, o primeiro assalto, a primeira morte, são como rituais de passagem que marcam a entrada do menino no mundo dos homens. De fato, essa criminalidade demarca também os limites de uma cultura viril exclusiva, sem matizes, sem a dialética do feminino como contraponto. É um sistema simbólico criado sob o signo da masculinidade apenas. Neste imaginário, o uso de armas, o dinheiro no bolso, as roupas são apenas sinais exteriores que atraem as mulheres, ‘muitas mulheres’ para o homem que consegue adquirir esses sinais. A representação das mulheres, nesse sistema, é de seres inferiores, inaptas para a guerra, dependentes, que precisam ser conquistadas e mantidas como dinheiro e consumo de muitas roupas e jóias. (...) Mas a quadrilha, enquanto um dos centros de reprodução da criminalidade – do ensino das técnicas, da transmissão de valores e das estórias de seus personagens, do reconhecimento de papéis e grandes feitos, da internalização das regras de convívio – opõe-se à família por representar a cultura de rua. Na ótica dos trabalhadores, a quadrilha é uma agência de socialização de seus filhos que compete com a família e que encaminha os jovens para a violência e a morte prematura. Na ótica dos bandidos, a quadrilha é uma ‘escola do crime’, um aprendizado do vício, uma engrenagem da qual não se consegue sair. Todos os entrevistados se referiram aos crimes cometidos porque os ‘colegas chamam’, porque ‘se mistura’, porque ‘vê os outros fazer’, porque ‘se acostuma’, porque ‘só vê lance de tóxico e tiro”.

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1.2.1.4.3. Formas e Variações

Como destaca Weisel (2002), apesar de as gangues serem quase sempre definidas,

genericamente, como grupos delinqüentes, é preciso observar que elas se organizam de

formas diferentes, o que as torna, inclusive, um problema bastante difícil de ser combatido.

Além disso, muitos estudos já demonstraram que, com o passar das décadas, as gangues

acabaram por se tornar uma forma orgânica e adaptativa de organização, muitas vezes com

lideranças difusas, hierarquia pouco definida e envolvimento em várias frentes criminosas.

Isso fez com que elas se adaptassem às mais diferentes condições de vida, a ponto de serem

capazes de sobreviver em ambientes extremamente voláteis e competitivos.

Além disso, estudos de diversos autores13 demonstram que, tanto no Brasil quanto nos

Estados Unidos, algumas gangues têm se envolvido com atividades que as levam a assumir

contornos similares às quadrilhas do crime organizado. Com o passar dos anos, muitas

gangues deixaram de ser turmas desorganizadas para se tornarem quadrilhas com lideranças

formais, com definição e diferenciação de papéis entre seus membros, com organização de

encontros e reuniões formais, com comprometimento dos integrantes com regras

explicitamente estabelecidas e com objetivos criminosos claramente definidos. De acordo

com Weisel (2002), algumas delas chegam até mesmo a ter participação em negócios

lícitos, contatos com gangues de cidades diferentes, ramificações formalmente constituídas

em presídios e até mesmo envolvimento com políticos.

Nos grandes centros urbanos, é cada vez maior o número de gangues envolvidas com

o narcotráfico, com roubo de carros, com assaltos de grande porte e até mesmo com

contrabando de armas e bens de consumo em geral. Portanto, o que tem sido visto em

alguns casos é uma crescente profissionalização das gangues. Se antigamente os jovens se

uniam às gangues em busca de proteção e por causa de laços de afinidade pessoal e de

companheirismo, hoje em dia muitos destes grupos têm crescido porque representam uma

garantia de status e ganhos financeiros vertiginosos para seus membros.

13 FAGAN (1989); SPERGEL et al. (1991); KLEIN (1995); MISSE (1997); Weisel (2002); entre outros

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1.2.2. Tráfico de drogas

Tendo em vista que este estudo pretende analisar os mecanismos através dos quais a

violência e a criminalidade surgem e se consolidam no seio de comunidades pobres e

deterioradas das grandes cidades, não se pode deixar de abordar também o papel

determinante exercido pelo tráfico de drogas neste cenário. Em um primeiro momento,

torna-se necessário desfazer uma forte impressão que se formou no imaginário coletivo, de

que existiria uma relação causal direta entre o consumo de drogas e a criminalidade. De

acordo com esta impressão o uso de drogas levaria os jovens ao vício e, conseqüentemente,

à prática de crimes para garantir o sustento deste vício. No entanto, muitos estudos14 já

obtiveram sucesso em demonstrar que, excetuando-se o caso do crack, não existe

necessariamente uma relação direta entre a prática de atos desviantes e o consumo de

entorpecentes. Segundo Chaiken e Chaiken (1990: p 205), por exemplo:

“In short, no simple sequential or causal relationship is now believed to relate drug use to predatory crime. When the behaviors of large groups of people are studied in the aggregate, no coherent general patterns emerge associating drug use per se with participation in predatory crime, age at onset of participation in crime, or persistence in committing crime. Rather, different patterns appear to apply to different types of drug users. But research does show that certain types of drug abuse are strongly related to offenders’ committing crimes at high frequencies – violent crimes as well as other, income-producing”.

Ainda que essas pesquisas tenham demonstrado que não existe necessariamente

qualquer relação entre o consumo de drogas e a prática de crimes, naquilo que diz respeito

ao tráfico de entorpecentes, a questão se torna completamente diferente. No entanto, vários

estudos15 indicam que existe, sim, uma relação direta entre o tráfico (diferentemente do

consumo e do uso) de drogas e o aumento das taxas de criminalidade onde este comércio

acontece. E isso ocorre porque, por ser uma atividade ilegal e desproporcionalmente

lucrativa, a venda de drogas mobiliza uma grande estrutura para garantir sua eficiência.

Várias pessoas precisam trabalhar conjuntamente para cuidar de aspectos como a segurança

14 FAGAN (1989); KLEIN (1991); JOHNSON et al. (1990); CHAIKEN E CHAIKEN (1990); entre outros. 15 ZALUAR (1994); ADORNO (1999); CHAIKEN & CHAIKEN (1990); JOHNSON et al. (1990); entre outros.

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do negócio, vigilância sobre a polícia e possíveis inimigos, além da manutenção dos postos

de venda. Talvez seja por isso, nos grandes centros urbanos, o tráfico de drogas sempre

tenha aparecido como uma atividade intimamente ligada à atuação de gangues que se

formaram e atuam em bairros pobres e miseráveis. Como afirmam Chaiken e Chaiken

(1990: p 213):

“In all studies that have examined the issue, the relationship between drug use and criminality has been found to be substantially weaker than the relationship between drug sales and other forms of criminality. Most people who sell drugs do so occasionally and privately and are not likely to be involved in predatory crimes. But those who sell drugs publicly, for example in parks, streets, or back alleys, are likely to commit predatory crimes and to commit them at higher rates than people who commit the same type of offenses but do not sell drugs. Some of the robbery and other assaultive crimes committed by offenders who also sell drugs are systemic aspects of the drug trade. Given the highly competitive nature of drug distribution and the obvious lack of official regulation, violence and robbery are sometimes used to drive competitors out of business or to protect a dealer’s money, supplies, and connections. Other assaults and predatory crimes committed by drug dealers arise from their need for money for money for drugs and are opportunistically focused on the first available target – although many addicts are able to sustain their use by committing less serious crimes. However, many predatory crimes are committed by dealers who find vulnerable victims with cash, follow them to a secluded area, threaten or actually injure them, and take their money”.

Segundo Zaluar (1994), é precisamente através das gangues ligadas à exploração do

tráfico que a relação entre o comércio de drogas ilegais e o surgimento de altos índices de

criminalidade aparece de maneira mais evidente. De acordo com a autora (Idem), a partir do

momento em que uma gangue se propõe a atuar no ramo do comércio de entorpecentes,

toda a sua estrutura e modo de atuação precisam ser adaptados para tal fim. Na medida em

que a gangue vai tomando intimidade com a lida do tráfico, cada um de seus membros

começa a desempenhar determinadas funções necessárias para o bom funcionamento da

atividade. Alguns ficam responsáveis pela vigilância – armada ou não - da região onde o

“movimento” vai acontecer. Outros ficarão encarregados apenas da venda direta ao

consumidor, enquanto alguns serão responsáveis pela contabilidade da “firma”.

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Ainda na visão de Zaluar (Idem), gangues que antes se enfrentavam apenas por causa

de questões pessoais e pontuais, agora, já caracterizando-se como uma quadrilha, passam a

lutar entre si por causa de uma negócio que gera lucros rápidos e exorbitantes. E, por se

tratar de uma atividade ilegal que não possui qualquer instância constituída de mediação de

conflitos, o tráfico de drogas traz consigo verdadeiras guerras entre os grupos envolvidos

em sua lida. Dentro das próprias quadrilhas, qualquer desvio de conduta é punido com

muita brutalidade e, às vezes, até mesmo a morte. Ao redor das quadrilhas de traficantes,

montam-se esquemas de contrabando de armas, roubo de veículos, assaltos a bancos para o

financiamento do grupo, invasões de territórios das quadrilhas rivais e muitas mortes. Por

isso é que, nas comunidades onde o tráfico se instala, constitui-se também um verdadeiro

regime de terror e mortes, mediado pela brutalidade das quadrilhas, pela desorganização

dos constantes e sempre sangrentos rearranjos de poder.

1.2.2.1. Hipótese

Ainda que não nos seja possível esgotar aqui toda a discussão a respeito do

surgimento de altas taxas de criminalidade em favelas e bairros pobres dos grandes centros

urbanos, a exposição do presente quadro teórico pode nos ajudar a contextualizar o

desenvolvimento de tal discussão dentro da realidade específica que observamos em várias

vilas e favelas brasileiras. Isso porque, acreditamos, boa parte da violência que atualmente

se apresenta em tais lugares pode ser perfeitamente compreendida através do uso de uma

abordagem ecológica, mais precisamente, através do referencial colocado pelas teorias da

Desorganização Social e da Eficácia Coletiva.

Ou seja, pretendemos trabalhar com a hipótese de que boa parte da violência e da

criminalidade que observamos em algumas vilas e favelas das grandes cidades brasileiras

pode ser atribuída à pouca ou nenhuma capacidade que os moradores destas comunidades

possuem de estabelecer um conjunto de valores e objetivos comuns (pouca coesão social);

assim como à falta de capacidade dos mesmos de controlar ou supervisionar o

comportamento mútuo (baixo nível de eficácia coletiva). Esta incapacidade, por sua vez,

seria fruto da grande concentração de desvantagens estruturais presentes nestas

comunidades – falta de condições de habitação, alta rotatividade residencial, condições de

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vida precárias -, assim como do estado de falência e deterioração em que se encontram,

nestes locais, instituições como família, escolas, igrejas, associações de bairro e outras

entidades representativas que, em princípio, deveriam servir como fonte de coesão social e

de controle do comportamento. Esta situação faz com que tais vizinhanças se tornem locais

altamente propícios ao surgimento de gangues e quadrilhas criminosas.

Como já afirmamos, tomaremos como campo de estudo a favela Pedreira Prado

Lopes, localizada na região Noroeste de Belo Horizonte e considerada um dos aglomerados

mais violentos da capital. Ocorrências registradas diariamente nesta favela indicam

claramente que a imensa maioria dos crimes cometidos na PPL possui relação direta ou

indireta com as gangues de traficantes que lá se estabeleceram. Em um primeiro momento,

faz-se necessário traçar um breve histórico da favela, mostrando seu surgimento e seu

processo de ocupação, assim como a situação atual em que ela se encontra. Em seguida,

será preciso demonstrar como a criminalidade surgiu e se desenvolveu na PPL, até chegar

no estágio atual. Somente a partir daí, torna-se possível tentar fazer uma descrição

minuciosa do regime de terror e mortes imposto pelo tráfico de drogas na favela e as

conseqüências desta realidade no corpo social da sua comunidade.

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CAPÍTULO 2: O processo metodológico de desenvolvimento da pesquisa

“A gente aqui sobrevive no inferno” (D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes

2.1. A construção do corpus da pesquisa

Considerando que esta pesquisa se propõe a compreender o problema do surgimento

da violência e da criminalidade em comunidades pobres e deterioradas dos grandes centros

urbanos, torna-se necessário adotar uma metodologia de trabalho que permita a descrição

fiel e detalhada de todo o ambiente físico e social de tais vizinhanças, e uma vasta coleta de

dados qualitativos junto aos moradores destas regiões. Como este trabalho tomará como

campo de estudo a favela Pedreira Prado Lopes, aglomerado localizado na região Noroeste

de Belo Horizonte, decidiu-se fazer uso de formas de coleta de dados que permitissem uma

apreensão mais detalhada possível de todas as nuances da vida comunitária, do ambiente

físico, das relações sociais que se estabelecem naquele espaço e, fundamentalmente, das

formas de organização adotadas pelas gangues juvenis que se estabeleceram na PPL.

De antemão, observamos que o primeiro problema enfrentado seria a dificuldade de

inserção em meio ao campo de estudo escolhido. Conseguir permissão para estudar,

entrevistar ou acompanhar o dia-a-dia de gangues ligadas ao tráfico de drogas, por

exemplo, foi uma tarefa extremamente difícil, devido à própria atividade criminosa

exercida por elas e a enorme aversão a contatos externos manifestada pelos seus membros.

Durante quatro anos de trabalho jornalístico, lidei diariamente com a questão da violência e

da criminalidade, principalmente quando estes assuntos estavam relacionados com jovens

moradores de vilas e favelas de Belo Horizonte. Pela experiência que adquiri durante este

período, já sabia que os rapazes envolvidos com o tráfico de drogas seriam extremamente

resistentes a qualquer tipo de abordagem mais direta.

Justamente por isso, foi preciso optar, pelo menos em um primeiro momento, por

uma via indireta de acesso a eles. Foi preciso ganhar a confiança de diversos membros

daquela comunidade e fazê-los entender o objetivo principal deste trabalho. Não há como

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negar que estes primeiros contatos foram feitos ainda enquanto repórter, nas inúmeras

oportunidades que tive de freqüentar a Pedreira Prado Lopes. Durante estas incursões, fiz

contatos iniciais não apenas com um grande número de moradores, como também com

vários rapazes membros de gangues que atuavam no aglomerado. Cada vez que subia a

Pedreira, anotava telefones, endereços de contato e o nome de possíveis fontes a serem

entrevistadas em minha futura pesquisa.

Para fazer este trabalho, retomei estes contatos e, como foi dito anteriormente, optei

por chegar às quadrilhas de maneira indireta, utilizando não apenas moradores que

conviviam diretamente com os membros das gangues, como rapazes que já haviam feito

parte destes grupos e que, apesar de já terem deixado de atuar neles, ainda mantinham

contato com os atuais membros. Foram precisamente estas pessoas que, além de fornecer

importantes relatos sobre uma infinidade de temas inerentes à pesquisa, fizeram com que

fosse possível entrevistar diversos daqueles garotos envolvidos com o tráfico na Pedreira

Prado Lopes. Além do que, a questão da violência e da criminalidade na PPL é tão

marcante e tão presente no seu cotidiano, que qualquer entrevista realizada no aglomerado

sempre remetia a outros moradores, outras histórias de vida e, conseqüentemente, à

realização de novos contatos. A impressão que se tem é que cada um dos moradores da

Pedreira, por mais alheio que seja às questões da favela, possui uma vivência muito

marcante no que se refere à violência, à brutalidade e ao terror imposto pelas gangues. A

violência do tráfico permeia de tal forma a vida dos moradores, preenche de maneira tão

avassaladora a experiência diária daquelas pessoas, que qualquer entrevistado possui ao

menos um depoimento interessante a fornecer sobre o assunto.

Nesse sentido, foi fundamental a participação de um traficante que conheci apenas

pelo nome de “Fernando”. Em julho de 2002, este rapaz foi preso por policiais militares do

Batalhão Rotam, juntamente com um dos principais gerentes do tráfico da favela. Na

ocasião fiz uma reportagem sobre o caso e tive a oportunidade de realizar uma longa

entrevista com os dois traficantes. Tal entrevista foi publicada em um jornal de grande

circulação de Belo Horizonte e inevitavelmente chegou às mãos dos traficantes da PPL.

Meses depois, voltando à Pedreira pra realizar outra reportagem, me encontrei com

“Fernando” em uma das principais vias do aglomerado. Já livre da prisão, ele me procurou

para comentar que havia gostado muito da reportagem porque, pela primeira vez, um

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jornalista havia publicado com fidelidade o relato de um traficante da PPL. Batendo com a

mão em meu ombro, ele disse que, daquele dia em diante, eu havia ganhado seu respeito e

que, se dependesse dele, poderia ter livre acesso à favela. Como, na ocasião, “Fernando”

ocupava o cargo de braço-direito de um dos principais gerentes do tráfico da favela, foi

justamente através dele que tive acesso a vários integrantes das gangues da parte baixa da

PPL.

É claro que a metodologia ideal para a realização de tal pesquisa seria uma imersão

não revelada em meio às gangues. No entanto afirmamos, categoricamente, que, em meio

às quadrilhas da PPL, é impossível realizar qualquer tipo de observação participante com o

observador não revelado. Devido ao fato de serem formadas por jovens nascidos e criados

na favela, as gangues são capazes de detectar imediatamente a presença de qualquer pessoa

estranha àquele ambiente. E a presença de um observador, ainda mais um tão “externo”

quanto eu, jamais passaria desapercebida por eles.

O primeiro contato com as gangues da Pedreira aconteceu ainda no ano de 2000,

quando tive a oportunidade de subir o morro como jornalista. Como pesquisador, e já sob o

olhar desta pesquisa, os primeiros contatos foram estabelecidos em 2002, com moradores e

lideranças comunitárias já conhecidas. Com os traficantes propriamente ditos, as entrevistas

iniciais foram feitas de forma bastante esporádicas, uma vez que a sua desconfiança era

muito grande. No entanto, depois das primeiras entrevistas, alguns começaram a indicar

outros e assim por diante. Apesar de toda a resistência que demonstram ao contato externo,

percebe-se que praticamente todos eles sentem uma grande necessidade de falar sobre si

mesmos e sobre suas histórias de vida. Demonstram uma grande carência de falar para

quem realmente os ouça, para quem realmente queira saber de sua vida, de seu dia-a-dia

brutal e violento.

Apesar da rápida sensação de onipotência que o “fazer parte do tráfico” proporciona,

estes rapazes costumam se abrir de forma até mesmo surpreendente àqueles que conquistam

minimamente sua confiança e àqueles que demonstram querer compreender o mundo em

que eles vivem. Como repórter, mantive inúmeros contatos com estes jovens em delegacias,

em instituições para menores infratores e até mesmo nos locais onde eles atuam. A reação é

quase sempre a mesma. Em um primeiro momento, são arredios, ameaçadores e até mesmo

agressivos. Mas, a partir do momento em que o jornalista ou o pesquisador se despe de seus

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preconceitos e demonstra estar realmente interessado em ouvi-los, eles se desarmam e se

mostram bastante entusiasmados em contar suas aventuras, seus conflitos, seus crimes e sua

violenta rotina de confrontos armados, traições, medos e mortes.

No caso desta pesquisa, optei ser bastante direto com estes rapazes. Mostrar

claramente como pretendia trabalhar e que o estudo não iria trazer qualquer tipo de

constrangimento ou prejuízo aos demais membros daquelas gangues. Nesse sentido, foi

fundamental assegurar que nenhuma das informações obtidas ali seria repassada à polícia

ou a qualquer outra entidade. Foi necessário assegurar a eles que nenhum contato seria

exposto, nenhuma conversa seria gravada em qualquer mídia e nenhuma fotografia seria

feita. A única forma de registro que me foi permitida utilizar foi um bloco de anotações de

campo. Admito que este instrumento foi bastante impreciso e às vezes bastante incômodo.

Mas foi o único aceito pelos traficantes, devido ao tema de estudo, às informações que

estavam ali sendo tratadas e à desconfiança natural que um “estrangeiro” como eu provoca

entre eles.

Mesmo durante as entrevistas com moradores, o uso de um gravador acabava

constrangendo o entrevistado, que em geral era pessoa muito simples e praticamente nunca

conseguia se sentir à vontade para falar de temas ligados à violência quando era colocado

frente a frente com um gravador. Por fim, acabei utilizando apenas o bloco de anotações de

campo, que foi o que me pareceu o instrumento mais adequado ao registro de informações

conseguidas na PPL. Ainda assim, em vários momentos, fui proibido até mesmo de anotar

determinadas informações que iam sendo relatadas pelos entrevistados. Esta postura foi

adotada por moradores e traficantes, principalmente quando o assunto dizia respeito ao

possível envolvimento de policiais no tráfico da favela.

Depois de reiterados contatos e entrevistas, inicialmente realizadas em locais neutros,

como casas de moradores da Pedreira, bares da região central de Belo Horizonte e até

mesmo igrejas e escolas da região Noroeste da capital, conquistei o mínimo de confiança

dos membros de uma determinada gangue e tive autorização para freqüentar, durante um

único dia – e ainda assim com acompanhamento constante - os lugares onde acontecia a

venda de drogas de uma das quadrilhas.

Em uma das fases da pesquisa de campo, também foram feitos contatos com policiais

militares que trabalham de forma velada no aglomerado. Novamente, desta vez com o

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acompanhamento destes militares, foi possível observar de perto o funcionamento dos

pontos de venda de drogas e a atuação das gangues. Os policiais também foram

entrevistados, no sentido de tentar remontar sua rotina de trabalho, suas experiências na

Pedreira Prado Lopes, assim como as impressões e análises sobre a mecânica do tráfico de

drogas praticado naquele aglomerado.

Ao final do trabalho de campo, foram realizadas 52 entrevistas: 30 com moradores,

sendo 2 com líderes comunitários; 7 com policiais militares, além de 15 com traficantes e

membros de gangues que atuam no aglomerado – estes últimos com idades variando entre

14 e 24 anos, nenhum deles sequer com o segundo grau completo (algumas destas

entrevistas encontram-se em anexo no final deste trabalho). Como foi dito anteriormente, os

primeiros moradores a serem entrevistados foram aqueles com os quais tive contato como

jornalista. Depois de entrevista-los para a presente pesquisa, pedi a cada um deles que me

indicasse um parente, vizinho ou conhecido que também tivesse vivenciado alguma

experiência ligada à violência na Pedreira.

No que se refere aos traficantes, os primeiros contatos foram realizados através da

intervenção de “Fernando”, que me conduziu entre as gangues da parte baixa, me

apresentou para vários integrantes daqueles grupos e convenceu vários deles a conceder

entrevistas para este trabalho. Com os traficantes da parte alta da favela, por sua vez, os

primeiros contatos foram feitos em após uma reportagem que realizei sobre a prisão de um

deles, em outubro de 2003. Ao entrevistá-lo, para minha surpresa, ele disse que já havia

ouvido falar sobre minha presença a Pedreira e sobre a pesquisa que eu vinha realizando.

Rapidamente, expliquei a ele minha pesquisa e disse que tinha interesse de conversar

também com os membros de sua gangue. Sem que os policiais percebessem, ele me passou

um número de telefone e me recomendou que procurasse seu irmão. Dias depois, liguei

para o telefone que havia recebido e consegui falar com o irmão do traficante. Combinei

uma visita à casa dele, ocasião em que pude explicar minha pesquisa. Assim como

“Fernando” havia feito comigo junto aos traficantes da parte baixa da PPL, este rapaz, que

conheci apenas pelo nome de “Carlos”, me guiou entre os traficantes da parte alta da favela.

As entrevistas foram realizadas entre o primeiro semestre de 2000 e fevereiro de

2004, quase sempre dentro da própria Pedreira e, no caso de alguns traficantes que tinham

medo de serem vistos conversando comigo, em bares da região central de Belo Horizonte.

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Devido à delicadeza do tema pesquisado, as entrevistas não puderam seguir um cronograma

previamente planejado. Houve vezes em que consegui realizar até três entrevistas em um

único dia. Em compensação, houve vezes em que passei dois meses sem conseguir coletar

um único depoimento. Principalmente no que se refere aos traficantes, fui obrigado a

interromper meus trabalhos várias vezes, por conta dos intermináveis conflitos travados

entre as gangues. Somente quando a favela passava por períodos de calmaria, as chamadas

“tréguas”, pude ir até a favela para realizar as entrevistas.

Para garantir uma abordagem mais profunda e completa do tema, optamos por utilizar

conjuntamente duas formas de abordagem metodológica: a Observação Participante e os

Relatos Orais.

2.2. A Observação Participante

A observação participante consiste, basicamente, em coletar dados através da

participação direta na vida cotidiana do grupo ou organização que se pretende estudar. O

observador torna-se, portanto, parte do contexto que está sendo observado. Como afirmam

Schwartz e Schwartz (1995): O papel do observador pode ser formal ou informal, oculto ou

revelado; o observador pode passar muito ou pouco tempo no campo de observação; o papel do

observador participante também pode ser um elemento integrante ou periférico ao contexto

observado.

Ainda segundo Schwartz e Schwartz (Idem), por se tratar de um método em que é

praticamente impossível manter um distanciamento científico de seu objeto de estudo, o

pesquisador que faz uso da observação participante deve ficar atento aos métodos que

utiliza para registrar os dados observados. O tempo decorrido entre os processos de coleta e

registro de dados deve ser o mais breve possível para evitar que imprecisões sejam

cometidas. Como o processo da observação participante se dá em três momentos – registro,

interpretação e recodificação -, é necessário que se tenha uma atenção especial para que

muitas das informações coletadas não sejam adulteradas, perdidas ou interpretadas de

forma enganosa devido a preferências pessoais ou outras questões subjetivas.

Devido ao fato de forçar o pesquisador a conviver diretamente – e às vezes

diariamente - com seu objeto de estudo, a pesquisa feita através da observação participante

costuma obter uma quantidade enorme de dados. Por isso, é preciso que o pesquisador

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delineie com precisão qual será o fio teórico condutor de seu trabalho e quais aspectos

deverão ser abordados durante a pesquisa.

Outro problema que se coloca para o pesquisador que opta pela observação

participante é a inserção em meio ao objeto de estudo, no caso as gangues da Pedreira.

Resolvida a questão da inserção, como já afirmamos anteriormente, o pesquisador precisa

estar atento para os problemas advindos do próprio método de observação participante. Ou

seja, no caso de um tema de estudo cercado por várias histórias e fantasias promovidas pela

mídia, como é o caso deste estudo, o pesquisador deve ficar atento para não se deixar levar

pelo discurso fácil e proselitista dos membros das gangues pesquisadas.

Por experiência própria, sei que estes rapazes costumam dar contornos irreais a seu

cotidiano. Na tentativa de se colocarem como heróis de uma comunidade oprimida, estes

garotos tendem a criar narrativas fantasiosas e discursos fáceis sobre os motivos que os

levaram a entrar para o tráfico, sobre os confrontos nos quais se envolveram, sobre a

quantidade de dinheiro que ganham com o comércio de entorpecentes e sobre seu falso

domínio sobre uma população que, longe de respeitá-los, apenas os teme.

Na observação participante, de acordo com Becker (1993), as influências advindas da

relação “observador-objeto de observação” devem ser levadas em conta durante todo o

tempo de pesquisa para que não se incorra em erros primários de interpretação ou de coleta

de dados e informações que não sejam a melhor expressão do real. Deve-se tentar também

deixar bem claro até que ponto a presença do observador afeta a vida do grupo observado

nos seus mais diversos aspectos. Enfim, todas estes fatores devem ser considerados, a partir

do momento em que um pesquisador se propõe a fazer um estudo que utiliza uma

abordagem metodológica desta natureza e pretende construir modelos de análise que se

pretendam válidos para as Ciências Sociais.

2.3. Os Relatos Orais

Outra técnica utilizada durante a presente pesquisa foi a dos relatos orais, uma vez

que parte fundamental deste estudo se produziu a partir das entrevistas realizadas com

vários representantes de todos os setores da comunidade estudada, além dos adolescentes

membros de gangues envolvidas com o tráfico de drogas.

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Em Sociologia, a técnica dos relatos orais nada mais é do que uma forma de se

registrar, na íntegra, a narrativa dos próprios indivíduos pesquisados sobre determinados

assuntos pertinentes ao estudo que se desenvolve. Esta narrativa é colhida através da

realização de entrevistas em profundidade com pessoas que, acredita-se, sejam indivíduos

representativos de uma determinada comunidade ou organização.

No caso deste estudo de caso, as entrevistas foram realizadas com o auxílio de um

bloco de anotações de campo, sem um roteiro previamente construído. A única

preocupação que tivemos foi a de fazer uma lista de assuntos que deveriam ser abordados

para o desenvolvimento satisfatório da entrevista. No que se refere aos moradores e aos

líderes comunitários, as entrevistas trataram das experiências que eles tiveram, e ainda têm,

com a violência das gangues e do tráfico; das opiniões pessoais que cada um possui a

respeito do tráfico e da delinqüência juvenil; da relação que eles mantinham com os

traficantes; da experiência e opinião que cada um possuía com relação à polícia; e das

possíveis alternativas que cada um enxergava para a solução do problema.

Nas entrevistas realizadas com os traficantes, foram abordados temas como a escola,

a família, a entrada para o tráfico – motivações, provas de iniciação, expectativas -; a

vivência dentro do tráfico – rotina, modos de atuação, experiências mais marcantes -; a

questão da repressão e da corrupção policial, além da relação com os moradores.

Com os policiais, as entrevistas abordaram temas como o trabalho investigativo e

repressivo feito na Pedreira; a relação com a comunidade; a relação com os traficantes; a

corrupção policial e a visão que eles possuem sobre as mais diversas formas de violência e

de criminalidade que se instauraram na PPL. A maioria das entrevistas com policiais foi

realizada em locais neutros, ou seja, nem na Pedreira Prado Lopes, nem nos batalhões da

PM.

Devido à natureza do tema tratado e à necessidade de se conquistar um razoável grau

de confiança dos entrevistados, as entrevistas se desenvolveram de maneira bastante

informal, simples e direta. Apesar de sempre ressaltar a função das entrevistas e minha

posição de pesquisador, sempre que possível, tentei estabelecer com o entrevistado um tipo

de interlocução que se caracterizasse mais como um diálogo. Embora bastante amplo, o

roteiro de temas a serem abordados não constituiu uma amarra ao desenvolvimento da

conversa, ao contrário, serviu como um instrumento para o diálogo, uma forma de lembrar

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ao pesquisador os assuntos que não podiam deixar de ser tratados. Apesar de propiciar um

controle menos rígido da entrevista, acreditamos que esta forma mais solta de diálogo –

mas nem por isso menos orientada - tenha ajudado a revelar aspectos que não haviam sido

previstos em fases anteriores da pesquisa.

Como ressaltam Pereira (1991) e Queiroz (1987), uma das principais vantagens dos

relatos orais é a possibilidade de se estabelecer generalizações a partir do conhecimento

adquirido pelas entrevistas. Tal procedimento torna-se possível a partir do momento em que

se coleta um número suficientemente grande de depoimentos, até que se obtenha aquilo que

costuma ser chamado de “saturação”, ou seja, o momento em que os relatos das mais

diversas fontes ou informantes sobre um determinado assunto começam a se repetir. Assim,

não existe um número padrão que permita ao pesquisador saber quando deve encerrar seu

ciclo de entrevistas. Isso varia de acordo com o assunto pesquisado, com o universo

estudado e com a própria proposta da pesquisa. Cabe ao próprio estudioso perceber quando

os relatos começam a se repetir e já são passíveis de serem considerados generalizáveis.

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CAPÍTULO 3: Passado e Presente na Pedreira Prado Lopes

Pedreira Prado Lopes: quem hoje vê este nome escrito, quase que diariamente, em

descartáveis páginas de jornal não consegue sequer imaginar toda história de luta,

sofrimento, degradação e violência de uma comunidade que, há aproximadamente 100

anos, formava aquela que é considerada a primeira favela de Belo Horizonte. Presa aos

ditames do factual e à ânsia do espetacular, a imprensa sempre se contentou em apenas

relatar os mais sangrentos episódios da guerra do tráfico que tomou conta da PPL nos

últimos anos. Episódios estes que, definitivamente, não permitem a realização de uma

análise mais aprofundada sobre os mais diversos aspectos históricos e estruturais que, ao

longo dos anos, possibilitaram a consolidação desta realidade de violência e mortes na

favela.

Justamente por isso, antes de fazer qualquer proposição sobre as possíveis causas da

criminalidade na Pedreira, é fundamental analisar a história da formação do aglomerado.

Por si só, tal estudo já pode fornecer indícios bastante significativos de como, no decorrer

de seus 100 anos de existência, a favela veio a se tornar uma das regiões mais violentas de

Belo Horizonte. Uma análise mais aprofundada das origens da PPL, por exemplo, evidencia

que a favela sempre apresentou vários dos aspectos mencionados anteriormente como

elementos favoráveis ao surgimento da violência e da criminalidade. Devido às próprias

características de sua ocupação, a Pedreira sempre apresentou altas taxas de rotatividade

residencial, heterogeneidade populacional, além da extrema concentração de desvantagens

econômicas e estruturais, juntamente com a falência de instituições de controle formal e

informal e um baixíssimo grau de coesão social.

O estudo da história da favela demonstra que todos estes aspectos estão bastante

presentes na gênese do aglomerado, o que tornou a Prado Lopes um ambiente altamente

propício ao surgimento e à consolidação da criminalidade, principalmente aquela ligada ao

tráfico de drogas.

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3.1 A História da Pedreira

A verdade é que a história da Pedreira Prado Lopes se confunde com a própria

história da construção da capital mineira. Assim como aconteceu com outras regiões da

cidade, a área onde hoje fica a PPL foi ocupada por pessoas que vieram de várias regiões de

Minas e até mesmo de outros estados, atraídas por promessas de prosperidade e

oportunidades de trabalho que, na ocasião, surgiam juntamente com a construção planejada

de Belo Horizonte.

Segundo dados de 1998 fornecidos pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte

(URBEL), setor ligado à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a origem da Pedreira

Prado Lopes não se difere da origem das demais favelas da cidade:

“Como se sabe, esta foi a origem das primeiras favelas da cidade. Belo Horizonte era uma capital destinada às classes média e alta, não possuindo local para a instalação das pessoas de baixa renda que vinham do interior atrás de condições melhores de vida, seja saúde, emprego, educação, água e luz, ou para os que serviram de mão-de-obra na capital. Restava a elas a invasão de áreas públicas ou particulares, onde surgiram as primeiras vilas e favelas. A Pedreira não fugiu a esta regra, pois as pessoas que nela se instalaram não encontraram nada do que vieram procurar. No início de sua existência, ela não possuía nenhuma infra-estrutura. Não havia água, luz, esgoto, calçamento. As casas não eram ainda de alvenaria, mas de adobe, madeira, latão. Os moradores conseguiam água através de cisternas e minas, usavam fossas e lamparinas”.

Observa-se, portanto, que já em seus primeiros anos de existência, por volta de 1910,

a comunidade da PPL era formada por uma população bastante heterogênea que não

possuía qualquer tipo de identificação com seu novo local de moradia. Desde o primeiro

momento, o processo de formação de uma identidade comunitária se viu bastante

prejudicado, o que fez da Pedreira uma comunidade socialmente pouco coesa. É

interessante observar que tal característica de deterioração do tecido social observada na

Pedreira coincide com aquilo que se afirma na teoria da Eficácia Coletiva de Sampson et al

(1997), como sendo um dos principais fatores de fomento ao surgimento da criminalidade.

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De acordo com registros da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a origem do

nome “Pedreira Prado Lopes” remete, em primeiro lugar, à família Prado Lopes, que era

proprietária de vários terrenos naquela que hoje é a região Noroeste da cidade. Em segundo

lugar, à gigantesca pedreira em torno da qual se formaria a vila. E foi justamente nesta

pedreira onde centenas de operários trabalharam durante vários anos, para que o governo

conseguisse matéria-prima para realizar as obras necessárias à construção da recém-criada

capital mineira.

De sol a sol, centenas de operários se revezavam na extração das rochas que

formariam Belo Horizonte, em turnos de trabalho que duravam até 14 horas por dia. E,

somada às precaríssimas condições de salubridade do local, a exaustão de um dia de

trabalho semi-escravo fazia com que muitos deles não conseguissem sequer voltar para

casa. Ficavam por ali mesmo, espalhados em barracas improvisadas que acabariam se

tornando a moradia fixa de muitas famílias. Através desta ocupação, quase que

involuntária, nasceu aquela que é hoje uma das maiores e mais violentas favelas de Belo

Horizonte.

De acordo com os mesmos dados de 1998 fornecidos pela Companhia Urbanizadora

de Belo Horizonte (URBEL), já naquela época, eram bastante precárias as condições de

vida da população que se instalava ao redor da pedreira dos Prado Lopes. Apesar de já ser

uma área ocupada desde os primeiros anos do século XX, sua primeira fonte de água só foi

instalada na década de 20, quando a Prefeitura colocou uma torneira pública no

aglomerado. Durante as madrugadas, várias filas se formavam para que os moradores

conseguissem encher seus latões de água. Era pelo terreno extremamente íngreme da

Pedreira que várias senhoras de idade subiam, diversas vezes ao dia, com baldes de água à

cabeça, levando pela beirada de suas saias as crianças que não tinham com quem ficar em

casa. Devido à completa omissão do poder público, já se formava ali um dos cenários mais

miseráveis e degradantes de que se tinha notícia em toda a recém-criada Belo Horizonte. E

talvez seja justamente em razão deste descaso que se verifica, hoje, o grande descrédito da

população da Pedreira Prado Lopes com relação à política e às instituições públicas de

modo geral.

Nas suas primeiras décadas de existência, o espaço ocupado pela Pedreira Prado

Lopes era bem maior do que o que se observa hoje. Miseráveis barracos de madeira se

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espalhavam por uma área extensa, formando uma vila que, guardadas as devidas

proporções, lembrava uma cidade do interior. No entanto, o crescimento da capital mineira

fez com que várias mudanças fossem processadas na configuração ambiental da PPL. A

abertura de novas avenidas, como a Presidente Antônio Carlos e a José Bonifácio, e o

surgimento de diversas construções, como o Conjunto IAPI, o Colégio Municipal, o

Departamento de Investigações e o Hospital Odilon Behrens, acabaram por comprimir o

espaço anteriormente ocupado, provocando um grande adensamento populacional e a

reconfiguração de todo o espaço da favela. E isso só fez aumentar o cenário de miséria e

decadência da vila.

Por conta das alterações processadas naquela parte da cidade, várias famílias foram

indenizadas pela Prefeitura e tiveram que se mudar da favela, o que contrastava com a

chegada de centenas de novos moradores. A cada avenida que era aberta na região Noroeste

de Belo Horizonte, a comunidade da Pedreira era obrigada a se rearranjar de maneira cada

vez mais improvisada. Moradores mais antigos contam que, naquela época, centenas de

famílias foram embora do morro, o que descaracterizou a comunidade que vinha se

formando. Os antigos barracos de madeira deram lugar às primeiras construções de

alvenaria. Além disso, a sufocante proximidade das residências fez com que a Pedreira

adquirisse um aspecto ainda mais sujo e desorganizado do que o de antes.

Ainda segundo informações fornecidas pela Companhia Urbanizadora de Belo

Horizonte (URBEL):

“Estes remanejamentos e a freqüente chegada de pessoas na Pedreira, num espaço cada vez mais reduzido, fez com que a esta atingisse um nível de adensamento muito elevado. São comuns os becos com poucos centímetros de largura e moradias com dois ou três pavimentos, conformando-se um quadro de condições precaríssimas de ventilação e insolação. Estes fatores fazem com que as doenças do aparelho respiratório sejam a principal causa de mortalidade na vila - 18%, segundo dados do Distrito Sanitário Noroeste”.

Assim, a vila que, em um primeiro momento, lembrava uma pobre cidade do interior,

passou a se parecer mais com um deteriorado cortiço do que com qualquer outra coisa.

Crianças brincavam em meio ao lixo que se acumulava nas estreitas e opressivas ruas da

favela, enquanto vizinhos se desentendiam e resolviam suas diferenças em acaloradas

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discussões que o ambiente se encarregava de tornar públicas. Mais uma vez, observa-se que

a história da PPL é marcada por diversos aspectos que tornaram praticamente impossível a

consolidação de um corpo social coeso, como destacam Sampson e Groves (1989). As

péssimas condições de vida e a extrema concentração de desvantagens obrigavam muitas

mães a trabalharem fora, o que tornava impossível a supervisão das atividades

desenvolvidas pelas crianças e adolescentes da favela, que acabavam se criando nas ruas.

Todas estas mudanças estruturais, somadas às mais do que precárias condições de

vida, e o alto índice de migração de novas famílias para a área da PPL fizeram com que a

vila se tornasse uma das comunidades mais densamente povoadas e desorganizadas da

capital mineira. A chegada de novas famílias dia após dia e as constantes mudanças e

alterações do espaço físico da vila acabaram por enfraquecer o corpo social da Pedreira e

dificultaram o aparecimento de instituições de representação comunitária. Tanto que as

primeiras reivindicações populares das quais se tem notícia só vieram a ser feitas a partir da

década de 60 e diziam respeito apenas ao preenchimento de condições básicas de

sobrevivência.

Ainda assim, registros da Prefeitura (URBEL, 1998) demonstram que todas estas

movimentações populares aconteceram de forma fragmentada, uma vez que a comunidade

da PPL ainda não havia sido capaz de organizar uma única instituição representativa – fato

que, aliás, pode ser observado até os dias de hoje. As poucas benfeitorias que se

verificavam na vila, até então, eram conseguidas através da relação pessoal e clientelista

que alguns moradores da favela mantinham com políticos ou empresários.

Depois da instalação da primeira torneira pública, outras foram sendo colocadas aos

poucos mas, ainda assim, com o intervalo de vários anos entre uma e outra. Os primeiros

moradores a conseguirem luz elétrica foram aqueles que viviam nas bordas da vila, junto às

grandes avenidas que vinham sendo construídas na cidade. Ainda assim, a imensa maioria

destas primeiras instalações se deu de forma clandestina, assim como a sua futura

propagação. Alguns moradores simplesmente roubavam fiações de postes e conduziam a

eletricidade até os barracões que ficavam nos limites da vila.

Registros indicam que, depois de alguns meses, estes mesmos moradores começaram

a estender sua conquista aos vizinhos mais próximos, através de ligações igualmente

clandestinas, ou “gatos”, como a população chama esse tipo de procedimento. E foi desta

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forma que, em meados da década de 60, a maioria da população da PPL conseguiu ter, pela

primeira vez, o acesso à luz elétrica. Nada era feito de forma a atender às demandas da

comunidade, uma vez que não havia qualquer tipo de solidariedade ou coesão entre seus

membros.

O cenário que se via no aglomerado era de completa miséria e deterioração. Esgoto

não canalizado corria a céu aberto, transformando várias ruas da vila em grandes focos de

doenças. E o adensamento populacional servia apenas para agravar esta situação e tornar o

ambiente cada vez mais promíscuo e insalubre. Registros da Prefeitura (URBEL, 1998)

indicam que, na Pedreira Prado Lopes, a conquista sistemática de benefícios básicos, ainda

assim com várias restrições, só veio a acontecer por volta das décadas de 70 e 80, época em

que os moradores da vila começam a demonstrar um nível mínimo, mas ainda rudimentar,

de organização popular.

3.2. Diagnóstico Social da Pedreira

3.2.1. Caracterização da População

Apesar de ter quase cem anos de existência, a Pedreira Prado Lopes é, ainda hoje, um

dos maiores bolsões de pobreza de Belo Horizonte. Em 1998, um grande levantamento

feito pela Prefeitura Municipal demonstrou que aproximadamente nove mil pessoas viviam

no aglomerado, dividindo uma área de apenas 142 mil metros quadrados. O reflexo desta

aglomeração pode ser observado logo que se entra na PPL: ruas estreitas, margeadas por

pequenas e miseráveis casas justapostas. A deterioração do ambiente chama a atenção,

assim como a imensa quantidade de construções erguidas em espaços mínimos.

Ainda de acordo com esse estudo da Prefeitura, a maioria dos domicílios

contabilizados na PPL (63,7%) possui de 2 a 5 ocupantes, o que obedece à média brasileira.

No entanto, o número de moradias que contam com mais de seis ocupantes também é alto:

26,4%. Não é difícil notar que muitas das construções da favela comportam mais de um

domicílio. Conseqüentemente, tornou-se bastante comum na Pedreira a existência de casas

que abrigam duas ou três famílias, em espaços que não comportariam com dignidade nem

mesmo uma.

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O mesmo estudo desenvolvido pela Prefeitura demonstra, ainda, que a população da

PPL é bastante jovem, com 58,8% dos moradores possuindo 25 anos de idade ou menos, o

que também faz com que a favela seja um local bastante propício para o desenvolvimento

do tráfico de drogas. A juventude da população da PPL também é facilmente observável

nas ruas do aglomerado. Durante os dias, é muito comum ver grupos de crianças brincando

nas ruas, sem qualquer tipo de supervisão de um responsável. Muitas delas passam o dia

inteiro nas ruas da favela, uma vez que os pais trabalham fora e simplesmente não têm com

quem deixar os filhos. Estas crianças acabam sendo criadas nas ruas da comunidade, por

amigos, vizinhos ou por qualquer pessoa que faça parte do dia-a-dia da PPL.

O gráfico 1, a seguir, ilustra os aspectos anteriormente relatados, no que se refere ao

número de pessoas por domicílio e à faixa etária dos moradores:

GRÁFICO 1: Fonte: Urbel / PBH

Observa-se na Pedreira, portanto, um dos aspectos mais ressaltados pela teoria

criminológica de Sampson et al. (1997), que é a completa falência de instituições como a

família e a conseqüente ausência de controle comunitário sobre as atividades grupais

desenvolvidas por crianças e adolescentes daquela comunidade. Como já afirmamos

anteriormente, a falta de supervisão ou acompanhamento das atividades desenvolvidas

pelas crianças e adolescentes cria um terreno extremamente fértil para o surgimento das

gangues juvenis que, em certa medida, acabam por substituir instituições como a família e a

escola como orientadores do processo de socialização destes jovens, conforme indicam os

estudos de Thrasher (1997).

Número de pessoas por domicílio ( % )

0 a 1 Ocup.7,3%

>=10 Ocup. 2,6%

6 a 9 Ocup.26,4%

2 a 5 Ocup.63,7%

Faixa etária dos ocupantes

18 a 2517,6%

15 a 176,9%

11 a 148,0%

7 a 1010,9%

0 a 615,4%

>644,2%

26 a 4019,9%

41 a 6417,2%

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A mesma pesquisa da Prefeitura ainda demonstra que a imensa maioria da população da Pedreira Prado Lopes é composta por pessoas de baixíssima renda. Segundo o levantamento da Urbel, em 1998, a Pedreira poderia ser caracterizada como uma das regiões que abrigam a população com a pior renda média de toda Belo Horizonte, pior até mesmo do que várias outras favelas da capital. Enquanto em 1998 a renda média das famílias em BH era de aproximadamente R$1.300,00, a renda média da maioria das famílias da Pedreira, cerca de 66% delas, para ser mais exato, era de três salários mínimos, ou pouco mais de R$390,00 na ocasião, como revelam, a seguir, os trechos do relatório da pesquisa e o gráfico 2:

“Os dados levantados mostram que a população se dedica a atividades profissionais de baixa qualificação e remuneração tanto dos responsáveis quanto dos demais ocupantes, o que é confirmado pelo baixíssimo nível salarial da população: a renda média dos chefes de família em Belo Horizonte é de R$ 872,29 e a renda média familiar de R$ 1307,68, e, na Regional Noroeste, onde a vila está inserida, R$ 677,63 e R$ 1096,35, respectivamente. Na Pedreira, por sua vez, 66% das famílias têm renda de 0 a 3 salários mínimos, ou seja, até R$ 390,00, constituindo-se um quadro de extrema pobreza e exclusão social. Tal quadro pode ser visto ainda com a ajuda de outros gráficos relativos à renda, como o de renda per capita e renda dos responsáveis. O próprio fato da Administração Noroeste apresentar uma renda menor que a de Belo Horizonte talvez possa ser atribuído ao grande número de vilas e favelas que pertencem a ela. Pode-se perceber, ainda, que a renda dos moradores da Pedreira está ainda abaixo da de outras vilas de Belo Horizonte” (URBEL, 1998).

GRÁFICO 2: Fonte: Urbel / PBH

A baixa renda média observada nos domicílios da Pedreira Prado Lopes nada mais é

do que o reflexo da renda média dos responsáveis pelo domicílio, como ilustra, a seguir, o

gráfico 3. O estudo da Prefeitura demonstra que, entre a população economicamente ativa,

um alto número de pessoas trabalha por conta própria (20%), realizando biscates ou bicos.

Renda total segundo número de domicílios

1 a 3 S.M.36,6%

A té 1 S.M.29,0%

>10 S.M.2,0%5 a 10 S.M.

12,9%3 a 5 S.M.

19,5%

Renda per capita - Salário Mínimo por pessoa

0,6 a 1 28,0%

0,3 a 0,626,1%

0 a 0,327,4%

>24,6%1 a 2

13,9%

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Se forem observados os critérios do Dieese, em 1998, o índice de desempregados na

Pedreira Prado Lopes batia na casa dos 30%. Em BH, este índice era de 12,4% (URBEL,

1998). O reflexo desta situação pode ser facilmente observado nas ruas da PPL: é grande o

número de pessoas que, diariamente, ficam pelas ruas da favela sem qualquer tipo de

ocupação.

GRÁFICO 3: Fonte: Urbel / PBH

A mesma pesquisa também demonstra que a imensa maioria da população da Pedreira

Prado Lopes possui baixíssimo grau de instrução. Principalmente os mais velhos que, no

passado, não tiveram qualquer acesso à educação. Atualmente, cerca de 77% dos

moradores da vila possuem apenas o primeiro grau completo. Praticamente 15% dos

moradores não possuem qualquer tipo de escolaridade, enquanto o segundo grau foi

cursado por apenas 6,2% dos habitantes da PPL. Surpreendentemente, a Pedreira conta com

uma boa oferta de escolas públicas no seu entorno, o que provavelmente é suficiente para

atender à demanda de 1º grau da vila. No entanto, uma pesquisa da Prefeitura comprova

que ainda é baixíssimo o número de pessoas na PPL que chegam a completar o segundo

grau. Observa-se claramente que muitos jovens da Pedreira são criados dentro de uma

estrutura simbólica que não valoriza o estudo, o que faz com que, na imensa maioria das

vezes, eles interrompam seus estudos ainda no 1º grau, como podemos observar no gráfico

4, a seguir:

Renda dos responsáveis

1 a 3 S.M.27,5%

3 a 5 S.M.8,5%

5 a 10 S.M.3,0%

>10 S.M.0,2%

Até 1 S.M.60,8%

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GRÁFICO 4: Fonte: Urbel / PBH

Mais uma vez, observa-se na Pedreira exatamente aquilo que Bursik e Gramick

(1993) afirmam na teoria do Controle Social: em comunidades marcadas pela concentração

de desvantagens econômicas e estruturais, percebe-se a falência de instituições formais de

controle e socialização – escolas, igrejas, etc - o que, por sua vez, cria um ambiente

propício para o surgimento do crime.

O mesmo estudo da PBH (Urbel, 1998) também apontou que, entre os moradores da

PPL, prevalecem as ocupações de pouca qualificação, fato que obviamente está diretamente

ligado à baixa escolaridade da comunidade: observa-se a existência de um grande número

de moradores que exercem as profissões de faxineiro, pedreiro, empregada doméstica,

auxiliar de serviços gerais, vigia, etc. Ainda no que diz respeito à profissão, é fundamental

observar o grande número de mulheres do lar, que se dedicam exclusivamente às atividades

domésticas ou ganham a vida com pequenos serviços eventuais como o de lavadeira ou

costureira. Os gráficos 5 e 6, a seguir, ilustram e confirmam estes dados:

mais Suplet.

Escolaridade dos responsáveis

1ºGrau Suplet.0,9%

2º Grau

0,2%

Sup. ou

0,0%Nehuma 14,9%

1º Grau77,8%

2º Grau 6,2%

1

2

3

4

5

6

0 5 10 15 20 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75

1º Grau - 73,1%

2º Grau - 6,2%

1º Supletivo - 0,7%

2º Supletivo - 1,1%

Superior ou mais - 0,1%

Nenhuma - 18,8%

25

Porcentagem ( % )

Esco

larid

ade

Escolaridade dos ocupantes

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Núcleo: Pedreira Prado Lopes Profissão dos responsáveis pelo domicílio

Quadras: todas as quadras

Profissão dos responsáveis Quantidade

ABS %

Do Lar 155 33,4 Faxineiro ( a ) 31 6,6 Auxiliar de Serviços Gerais 23 4,9 Empregada ( o ) Doméstica ( o ) 21 4,5 Pedreiro ( a ) 19 4,0 Comerciante 18 3,7 Cozinheiro ( a ) 12 2,5

Vigilante 11 2,4

Vendedor ( a ) 11 2,4 Lavadeira 9 2,7 Ajudante de servente pedreiro 8 1,6 Vigia 7 1,4 Segurança 6 1,3 Porteiro ( a ) 6 1,3 Mecânico ( a ) 6 1,3 Motorista 5 1,1 Eletricista 5 1,1 Salgadeira ( o ) 4 0,9 Pintor ( a ) 4 0,9 Operador ( a ) de Máquina 4 0,9 Gari 4 0,9 Camelô 4 0,9 Soldado Militar 3 0,6 Servente de obra 3 0,6 Servente de limpeza 3 0,6 Montador ( a ) 3 0,6 Metalúrgico ( a ) 3 0,6 Marceneiro ( a ) 3 0,6 Costureira ( o ) 3 0,6 Copeiro ( a ) 3 0,6 OUTROS 68 14,5 Total de Responsáveis 465 100

GRÁFICO 5: Fonte: Urbel / PBH

Porcentagem ( % )

Profissão dos responsáveis pelo domicílio

Do Lar-33,4%

Emp.dom.-4,5%

Aux.Serv.G.-4,9%

Faxineiro (a )-6,6%

Vendedor (a)-2,4%

Pedreiro-4,0%

Comerciante-3,7%

Cozinheiro-2,5%

Vigilante-2,4%

Lavadeira-2,7%

Outros-14,5%

0 2,5 5 7,5 10 12,5 15 17,5 20 22,5 25 27,5 30 32,5 35 37,5

s

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65

Núcleo Pedreira Prado Lopes Profissão dos demais ocupantes Quadras: todas as quadras

Profissão demais ocupantes Quantidade

ABS % Estudante 381 59,6 Empregada ( o ) Doméstica ( o ) 25 3,9 Do Lar 22 3,4 Auxiliar de Serviços Gerais 18 2,8 Faxineiro ( a ) 17 2,7 Balconista 13 2,0 Office Boy 11 1,7 Ajudante de servente de pedreiro 10 1,6 Biscateiro ( a ) 9 1,4 Gari 7 1,1 Vendedor ( a ) 6 1,0 Secretária ( o ) 6 1,0 Soldado Militar 5 0,8 Babá 5 0,8 Auxiliar de Escritório 5 0,8 Reparador ( a ) eletro-domésticos 4 0,6 Professor ( a ) 4 0,6 Entregador ( a ) 4 0,6 Vigia 3 0,5 Pintor ( a ) 3 0,5 Mecânico ( a ) 3 0,5 Caixa 3 0,5 Vigilante 2 0,3 Vidraceiro ( a ) 2 0,3 Trocador ( a ) 2 0,3 Segurança 2 0,3 Operador ( a ) de Máquina 2 0,3 Metalúrgico ( a ) 2 0,3 Marceneiro ( a ) 2 0,3 OUTROS 61 9,5 Total de demais ocupantes 639 100

Fonte: Urbel / PBH

GRÁFICO 6: Fonte: Urbel / PBH

Profissão dos demais ocupantes

Outros-9,5%

Biscateiro(a)-1,4%

Ajd.Serv.Ped.1,6%

Estudante-59,6%

Emp.Dom.-3,9%

Do Lar-3,4%

Aux.Serv.G.-2,8%

Faxineiro(a)-2,7%

Balconista-2,0%

Office Boy-1,7%

0 4 8 12 16 20 24 28 32 36 40 44 48 52 56 60 64

10 P

rimei

ras P

rofis

.

Porcentagem

Gari-1,1%

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3.2.2. Condições de Habitação

No que diz respeito ao uso e à distribuição de seu espaço físico, observa-se que a

Pedreira Prado Lopes passa hoje por um processo de verticalização talvez nunca antes

observado em uma favela da região metropolitana de Belo Horizonte. Ocupando uma área

de aproximadamente 142 mil metros quadrados da região Noroeste da capital, a PPL é hoje

um aglomerado que não tem mais para onde se expandir. Limitada pela avenida Presidente

Antônio Carlos e cercada pelos bairros Santo André, Bonfim e Cachoeirinha, a PPL atingiu

sua extensão máxima já na década de 70 e atualmente passa por um processo de

verticalização de suas construções.

Este processo contribui para aumentar a densidade populacional e, ao mesmo tempo,

proporciona o surgimento de residências multifamiliares. Isso acaba por configurar um

ambiente socialmente promíscuo e bastante desorganizado. Observa-se que, devido ao fato

de as residências serem muito próximas umas das outras, não existe a menor possibilidade

de haver qualquer tipo de privacidade. Qualquer discussão é acompanhada por vizinhos e

acaba tornando-se pública. Qualquer assunto torna-se de domínio público, mesmo quando é

tratado entre quatro paredes. Todos sabem da vida de todos e acabam por interferir no

cotidiano alheio com muita freqüência, sem que isso se reflita, necessariamente, em

mecanismos de supervisão e controle. De acordo com o último censo realizado pela

Prefeitura (Urbel,1998), a Prado Lopes abrigava, já em 1998, uma população de

aproximadamente nove mil moradores. Atualmente, a Administração Regional Noroeste

estima que esta população esteja na casa dos 12 mil.

Ainda de acordo com os mesmos registros desse censo, a imensa maioria das casas da

Pedreira é própria (93,1%). Apesar disso, apenas pouco mais da metade da população

reside há mais de 20 anos na vila (57,4%). E, ainda assim, a maioria dos responsáveis pelos

domicílios não é de Belo Horizonte: 55,6% deles são oriundos de cidades do interior de

Minas ou de outros estados. Estes dados demonstram que, além de não oferecer até hoje

uma infraestrutura adequada de moradia à sua comunidade, é relativamente baixo o grau de

consolidação e enraizamento dos moradores na vila. Isso dificulta bastante o

desenvolvimento de laços afetivos dos moradores com a favela, o que acarreta um baixo

grau de coesão social, uma baixa capacidade de articulação da comunidade e,

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conseqüentemente, uma capacidade reduzida de controlar o comportamento dos membros

da mesma e de resolver internamente seus conflitos.

Uma rápida caminhada pela Pedreira permite ao observador constatar que a grande

maioria das moradias é muito simples e, na maior parte das vezes, está em péssimo estado

de conservação. Os muros de muitas casas, quando não estão sujos por algum tipo de

pichação, estão com a tinta gasta e descascando. Reformas improvisadas, muitas vezes

realizadas com materiais impróprios, deixam sua marca na arquitetura da Pedreira,

caracterizando um cenário de grande opressão, pobreza e decadência. Na citação e no

gráfico 7, do relatório da pesquisa da Prefeitura, a seguir, podemos confirmar estes dados:

“Pelos dados relativos às condições de habitabilidade, tais como nível de acabamento, número de cômodos, número de pavimentos e infra-estrutura, pode-se dizer que a Pedreira Prado Lopes sofre de quase todas as carências possíveis em relação à infra-estrutura. Os becos são quase todos cimentados, mas apresentam péssimo estado de conservação; a rede de esgotos não é oficial, mas comunitária, apresentando problemas constantes (o esgoto também corre a céu aberto em vários locais, devido a estes problemas); o sistema de drenagem convencional é precário ou inexiste; a sujeira e o depósito de lixo em algumas áreas também são problemáticos. Mais à frente desses males estão aqueles que talvez se constituam os mais sérios da vila: as moradias em áreas de risco, a precariedade do sistema viário e o grande nível de adensamento e verticalização das casas. Todas estas condições adversas de habitabilidade certamente contribuem para o processo de marginalidade e exclusão social da população. Não é possível uma vida digna sem condições razoáveis de moradia. Desse modo, quando o padrão de vida se deteriora, a criminalidade e os demais problemas sociais tendem a aumentar” (URBEL, 1998).

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Núcleo: Pedreira Prado Lopes Número de Domicílios, segundo regime de ocupação

Domicílios na quadra

Próprio Alugado Cedido Outros Quadra

Ocup. Vago ABS % ABS % ABS % ABS % 303 0 282 93,1 5 1,6 16 5,3 0 0,0

Total 303 0 282 93,1 5 1,6 16 5,3 0 0,0

GRÁFICO 7: Fonte: Urbel / PBH

Ainda segundo informações da mesma pesquisa da Prefeitura (Urbel,1998), mesmo

com uma grande população vivendo em uma área relativamente pequena, observa-se que,

dentro da Pedreira Prado Lopes, é muito baixo o número de estabelecimentos comerciais. E

os poucos que ainda existem são, em sua maioria, bares, pequenas vendas, salões de beleza

e outros tipos de pequenos comércios. Nota-se claramente que, além da situação de pobreza

vivida pela imensa maioria da população, a falta de espaço físico dentro da vila constitui-se

em um grande empecilho para o desenvolvimento comercial, assim como já o é para a

construção de novas residências. Mas aproveitando-se desta carência de estabelecimentos

comerciais, nota-se que muitas famílias de moradores prestam serviços informais dentro da

favela, até mesmo como forma de compensar o altíssimo índice de desemprego existente na

comunidade.

No que se refere aos serviços necessários ao bem estar de sua população, PPL é

relativamente bem servida, ainda que problemas ocorram com freqüência. Existe um posto

de saúde dentro da vila – localizado em uma praça que é cortada pela rua Escravo Isidoro -,

além de um grande hospital, o Odilon Behrens, bem a seu lado. Nos últimos anos, a

Próprio - 93,1%

A lugado - 1,6%

Cedido - 5,3%

Outros - 0,0%

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95

Porce ntage m ( % )

1

2

3

4

Reg

ime

de o

cupa

ção

Regime de ocupação do domicílio

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população da Prado Lopes tem enfrentado problemas com seu posto de saúde, uma vez que

muitos profissionais têm simplesmente se recusado a trabalhar nas dependências oferecidas

pela unidade. O medo da violência e das constantes ameaças por parte dos traficantes fez,

inclusive, com que o posto fosse fechado várias vezes durante os últimos anos.

A favela conta ainda com uma creche comunitária, com três escolas públicas em seu

entorno e uma escola profissionalizante dentro da própria vila. Apesar de as estreitas ruas

da PPL impedirem a circulação de ônibus em seu interior, a oferta de transporte coletivo

também é farta nos arredores da vila, devido à proximidade com a avenida Antônio Carlos,

um das principais vias arteriais de Belo Horizonte. Também existe um departamento da

Polícia Civil ao lado da favela: o Departamento de Investigações que abriga cinco

delegacias de homicídios, além de unidades especializadas em localização de pessoas

desaparecidas, fraudes eletrônicas e informática, falsificações e defraudações, ordem

econômica e vigilância geral.

3.3. Demandas e Organizações Comunitárias

3.3.1. Demandas

Em 1998, a mesma pesquisa estatística realizada pela PBH na região da Pedreira

Prado Lopes demonstrou que a principal reivindicação dos moradores do aglomerado dizia

respeito à questão da Segurança Pública. De acordo com este estudo, a violência imposta na

favela pelas gangues ligadas ao tráfico de drogas fez com que 21,5% da população local

colocasse como prioridade a construção de um posto policial dentro da vila. Segundo a

maioria dos moradores ouvidos pela pesquisa, a completa ausência de qualquer tipo de

policiamento ostensivo nas ruas do morro tornou possível a existência de gangues que,

constantemente, trocam tiros entre si, usam drogas em via pública e exibem armamento

pesado na tentativa de intimidar os moradores.

Esta realidade, por sua vez, fez com que o espaço público da vila fosse aos poucos

adquirindo uma característica opressiva e ameaçadora. Na Pedreira, é possível ver muros e

fachadas de casas cravejadas por rajadas de tiros. Algumas paredes também possuem

pichações que trazem ameaças à comunidade ou fazem alusão clara às gangues envolvidas

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70

com o tráfico. A presença de rapazes armados em alguns pontos da favela faz com que seja

extremamente arriscado circular em algumas regiões do morro, principalmente durante as

noites. Ao mesmo tempo em que impossibilitam uma visão mais ampla do local, os

intrincados e opressivos becos da favela também servem como esconderijo para os

traficantes, que não encontram qualquer dificuldade em se locomover em meio ao labirinto

de vielas e passagens. Ainda segundo informações da pesquisa realizada pela Prefeitura

(Urbel, 1998):

“Grande parte dos moradores da vila não sai à noite, adotando uma espécie de “toque de recolher”. O próprio direito de ir e vir está ameaçado na vila, assim como o desenvolvimento do lazer, da integração entre a população. Outro grande medo dos moradores é ver seus filhos ingressarem no tráfico. O dinheiro fácil gerado por ele e a falta de perspectivas de melhorias financeiras faz com que as drogas sejam um negócio tentador para os jovens. Por tudo isso, o combate ao tráfico e à violência constitui a principal demanda da vila, que caracteriza-se mais urgente inclusive que as melhorias urbanísticas, para a população. Apesar da gravidade do problema, todos os moradores concordam que o tráfico na Pedreira não se desenvolveu ao nível do Rio de Janeiro ou São Paulo; não atingiu ainda o mesmo patamar de criminalidade. No entanto, ele se desenvolve, devendo ser combatido agora, quando ainda é possível”.

Depois do posto policial, todas as reivindicações feitas pelos moradores têm

relação com melhorias urbanas e sanitárias. Ao que tudo indica, isso se deve às precárias

condições de moradia e urbanização da vila. Em alguns pontos da Pedreira, é comum ver

ruas não pavimentadas, com escoamentos de esgoto correndo a céu aberto. Isso se

constitui em um constante foco de doenças para crianças que brincam nestas ruas. Em

alguns outros pontos da favela, a pavimentação das vias é muito precária, o que cria um

ambiente de muita sujeira e aumenta ainda mais a insalubridade do local. Somada ao

adensamento populacional e ao processo de verticalização da favela, a estreiteza das ruas

da Pedreira torna a vila um local abafado e com pouca iluminação natural.

Assumindo a perspectiva de que o criminoso é movido por uma racionalidade que

o impele a cometer os crimes que exijam menor esforço, tragam maior benefício e o

exponham à menor taxa de risco, como demonstram, em seus estudos Clarke (1992) e

Clarke e Cornish (1985), não é possível deixar de observar quanto o ambiente interno da

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71

Pedreira Prado Lopes é favorável ao cometimento de atos delituosos. De acordo com

esta perspectiva racionalista do pensamento criminológico, os crimes possuem mais

chance de acontecer quando ofensores em potencial estão em contato com vítimas em

potencial, em um ambiente onde as chances de ele ser detido são mínimas ou, caso ele

seja detectado, possa fugir sem ser identificado ou apreendido, como confirma a

pesquisa de Taylor e Harrell (1996). Originalmente, cabe lembrar que tal tipo de teoria

se refere aos crimes chamados “predatórios”, ou seja, aqueles nos quais existem

ofensores e vítimas. No caso do tráfico, o ambiente da PPL torna-se amplamente

favorável porque privilegia a logística do comércio de drogas. Os intrincados becos e

vielas da favela ajudam os criminosos a se esconder com muita facilidade diante da

chegada da polícia. Por outro lado, os policiais não conseguem ter acesso a todos os

pontos do aglomerado, uma vez que a imensa maioria das ruas da PPL não permite a

subida de viaturas.

Cabe ressaltar, portanto, que o altíssimo grau em que os intrincados becos e vielas

que permeiam a Pedreira se tornaram assustadoramente favoráveis à proliferação do

tráfico de drogas. Nascidos e criados em meio àqueles labirínticos becos e ruas estreitas,

os traficantes podem expor sua mercadoria e, caso sejam surpreendidos com o

aparecimento de policiais ou gangues inimigas, podem desaparecer rapidamente sem

deixar rastros. Além disso, muitas são as ruas da Prado Lopes que, de tão estreitas, não

permitem a subida de carros ou qualquer tipo de veículo, o que dificulta imensamente o

combate aos traficantes, uma vez que toda a geografia e configuração ambiental os

beneficiam.

Ainda segundo informações da mesma pesquisa realizada pela Prefeitura (Urbel,

1998), logo após a construção de um posto policial da favela, as principais reivindicações

da população da Pedreira são as seguintes: 15,1% querem rede de esgoto, 12,5% exigem a

pavimentação de alguns pontos da vila, 12,1% pedem um posto médico – apesar de a vila já

ter um em seu interior -, 9,6% querem a abertura de novas vias e a ampliação das já

existentes e 9,1% reivindicam melhoria nos serviços de limpeza urbana. O fato de a

construção de um novo posto de saúde ter sido citada em quarto lugar na pesquisa pode ser

atribuído a uma questão peculiar da vila. Na década de 80, havia um posto na avenida

Carmo do Rio Claro, na parte baixa da Pedreira. No entanto, já na década de 90, esta

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unidade foi transferida para a rua Escravo Isidoro, bem no interior do aglomerado, em uma

parte mais elevada do morro. Isso causou muita revolta entre os moradores da parte baixa,

que nunca se conformaram em perder o posto e ter que caminhar para chegar à nova

unidade.

Na citação a seguir, que integra o relatório da pesquisa realizada pela Prefeitura,

podemos verificar quantos aspectos referentes às condições de vida na favela ainda

precisam ser revistos, melhorados e implementados, na tentativa de se acabar com o tráfico

e a violência:

“Deve-se observar que o modo mais eficaz de acabar com o tráfico é atacar suas causas, mais do que tentar abafá-lo. O posto policial citado na pesquisa, talvez não seja o melhor caminho para combatê-lo, pois o aumento da ação policial, dependendo da forma que for realizada, pode inclusive agravar a questão da violência. Alguns dos motivos que levaram o tráfico a se instalar com tamanha força na vila podem ser citados: as precárias condições de habitabilidade e o acesso restrito; a falta de perspectivas de inserção e/ou ascensão social; a população numerosa e jovem da vila, com potencial para ser explorada. Alguns moradores também reclamam do envolvimento da polícia com o tráfico e alegam que o seu desenvolvimento só foi possível com a conivência da instituição. (...) É necessário salientar, ainda, a importância que a abertura de vias pode ter no enfraquecimento do tráfico e na diminuição da violência: mais do que a instalação de um posto policial dentro da Pedreira, é fundamental garantir o acesso e a circulação da vigilância, seja policial ou não. Também as melhorias urbanísticas constituem uma importante arma, na medida em que elevam as condições de vida e de dignidade da população”.

3.3.2. As Organizações

O mesmo trabalho de pesquisa realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte em 1998

também observou que a população da Pedreira Prado Lopes possui um baixíssimo grau de

participação e envolvimento com questões que dizem respeito à própria vila. Mantendo

uma característica que remete à própria história de sua formação, os moradores da PPL

demonstram uma grande dificuldade de mobilização e, em sua maioria, mantêm a tradição

de não fortalecer as entidades representativas surgidas dentro da própria comunidade. O

desconhecimento das pessoas é grande, assim como a descrença nos políticos e nas

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73

instituições. E, por incrível que pareça, esta característica pode ser bem observada mesmo

nos moradores mais antigos. No gráfico 8, a seguir, nos ajuda a visualizar a situação da

Pedreira no que se refere à pouca representatividade das instituições que ajudam a

comunidade:

GRÁFICO 8: Fonte: Urbel / PBH

Observa-se nesta característica justamente aquilo que é colocado pelas teorias da

“Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”. Como foi dito anteriormente, o próprio

histórico de como se deu a ocupação da PPL concorreu para que a comunidade de lá se

tornasse socialmente pouco coesa e, conseqüentemente, mais vulnerável ao surgimento da

violência e da criminalidade (SAMPSON & GROVES, 1989; BURSIK & GRASMICK,

1993). A história da Pedreira é marcada pelo grande número de imigrantes vindos de várias

regiões do estado, o que tornou a população local extremamente heterogênea. Além disso,

as constantes reconfigurações dos limites da favela em suas primeiras décadas de existência

fez com que se tornasse alta no local a taxa de rotatividade residencial. Na ocasião das

aberturas das avenidas Antônio Carlos e José Bonifácio, por exemplo, várias famílias

tiveram que ser indenizadas e se mudar da favela. Alem disso, a configuração sempre

miserável da PPL faz com que um dos maiores desejos da comunidade seja se mudar de lá

tão logo seja possível (CRISP, 2002).

Instituições que ajudam a comunidade

Nenhuma38,9%

Outros0,7%

AssociaçãoMoradores

12,1%

Igreja4,2% URBEL

1,6%

Não sabe42,5%

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74

Ainda de acordo com a mesma pesquisa feita pela Prefeitura, todas as reivindicações

de melhorias para a PPL estariam concentradas em poucas pessoas ligadas à União Prado

Lopes, uma das únicas associações comunitárias ativas na favela, surgida somente na

década de 70. Nos últimos anos, várias melhorias foram conseguidas por esta associação,

principalmente naquilo que se refere às obras do Orçamento Participativo. Ainda assim, o

nível de informação e participação popular nas reuniões promovidas pela associação

continua muito baixo. Tanto que, de acordo com a Prefeitura, muitos deles não sabem

sequer quais foram as últimas conquistas da entidade, como podemos ver na citação a

seguir:

“Apesar de a população ter comparecido aos Orçamentos Participativos e ter obtido várias conquistas, a maioria da população parece desconhecer o processo do OP e suas motivações. A participação em maior escala nessas conquistas ocorreu provavelmente em função de um trabalho maciço de mobilização da Associação, que, por possuir credibilidade junto aos moradores, conseguiu reuní-los para eventos esporádicos e de maior porte, mas não por um período maior e sistematicamente, devido à sua resistência e acomodação. Por outro lado, os membros da associação reclamam muito da população que, segundo eles, está mal acostumada com processos paternalistas de ajuda, não possuindo o hábito de lutar por seus direitos. Campanhas que envolviam doações, como o ticket de leite, contavam com a presença maciça da população. Nas reuniões de associação, no entanto, a presença é baixíssima”.

Prova maior da desinformação e da desunião que permeiam a vida da comunidade da

Pedreira foi a grande dificuldade encontrada pela Prefeitura em implantar as primeiras

etapas do Plano Global Específico que prevê uma série de melhorias estruturais na vila. De

acordo com um relatório produzido pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte

(Urbel), em 1998, muitos moradores temem uma urbanização da vila, por medo de serem

removidos para locais distantes. Apesar de manifestarem desejo de deixar a vila devido as

suas precárias condições de habitação e todo o seu histórico de violência, a proximidade da

Pedreira Prado Lopes com relação ao centro da cidade é uma comodidade muito valorizada

pela comunidade local. Todos temem que a Prefeitura decida mudá-los para outro lugar ou

até expulsá-los, no caso de uma obra de ampliação das ruas da vila.

Nota-se, portanto, muito claramente na Pedreira a completa falência e deterioração de

instituições como família e escola, além da mais do que reduzida participação comunitária

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75

nas questões referentes à própria vila. O baixíssimo grau de coesão social, além da ausência

ou deterioração das instituições formais ou informais de socialização e controle do

comportamento, concorre sensivelmente para que a violência e a criminalidade continuem a

assolar a Prado Lopes da maneira como vem acontecendo nas últimas décadas. Observa-se,

portanto, que a favela possui um grau muito baixo de eficácia coletiva e não possui coesão

ou mobilização popular suficiente para conseguir lidar de forma satisfatória com seus

problemas, o que, novamente, confirma os estudos de Sampson et al. (1997).

3.4. A Violência e a Criminalidade

Palco de muitas histórias de sofrimento e conquistas durante a época de sua formação,

a partir da década de 80 a Pedreira Prado Lopes também passa a se destacar por seus altos

índices relativos de criminalidade, principalmente no que diz respeito a ocorrências ligadas

ao consumo e ao tráfico de drogas. Até hoje, diga-se de passagem, observa-se claramente

que, na PPL, toda a questão do crime e da violência está intimamente relacionada com a

rotina das gangues ligadas ao comércio de entorpecentes. Prova disso são os altíssimos

índices de ocorrências relacionadas ao uso, porte ou tráfico de drogas registrados na região

pela Polícia Militar, apenas durante o ano de 2003. E não há razões para acreditar que nos

anos anteriores tenha sido diferente.

Mas antes de analisar as estatísticas policiais na área da PPL, é preciso que se delimite

o espaço dentro do qual estes números foram colhidos. A região da favela Pedreira Prado

Lopes é formada pelo núcleo da favela em si, além de boa parte dos bairros Santo André e

São Cristóvão. Em sua análise, a Polícia Militar também colocou os bairros Bonfim e

Lagoinha como integrantes da região da PPL. No entanto, pode-se observar que estes dois

bairros já estão mais afastados da Pedreira em si, e já não apresentam a mesma

configuração ambiental que fez com que a favela fosse designada como tal. O bairro

Lagoinha, por exemplo, é quase que uma extensão do centro de Belo Horizonte. O bairro

Bonfim, por sua vez, possui características muito diferentes das da PPL, tanto sócio-

econômicas quanto ambientais. Visando dar maior especificidade aos dados da PM, este

trabalho irá considerar como sendo a região da Pedreira Prado Lopes, portanto, apenas a

zona formada pelos bairros Santo André, São Cristóvão, além do núcleo da favela em si.

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76

Além disso, apenas três modalidades de crimes serão levadas em conta, por serem

bastante representativas: os “crimes contra a pessoa” (homicídio consumado, homicídio

tentado, agressão, ameaça, estupro e atentado violento ao pudor), os “crimes contra o

patrimônio” (as mais diversas modalidades de furtos e roubos) e os “crimes relativos a

tóxicos e entorpecentes” (a saber, tráfico de drogas e uso ou posse de entorpecentes).

3.4.1. Locais das ocorrências

Se os delitos em questão forem analisados por seu local de ocorrência, observa-se que

61,7% dos “crimes contra a pessoa” registrados na região acontecem dentro da PPL

propriamente dita. Em compensação, apenas 40,5% dos “crimes contra o patrimônio” são

cometidos na região da favela, sendo que insignificantes 2,3% são registrados dentro do

aglomerado em si. Já os “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes”, por sua vez,

demonstram a verdadeira natureza do problema da violência e da criminalidade na favela:

85,7% das ocorrências de tráfico, posse ou uso de drogas são registradas na região da

Pedreira. A grande maioria deles, nas principais avenidas do aglomerado, como

demonstram os dados dos gráficos 9,10, 11, 12, 13 e 14 e os mapas 1 e 2, a seguir:

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77

CRIMES CONTRA A PESSOA - INCIDENCIA POR BAIRRO

146 29,1 29,1

96 19,2 48,3

96 19,2 67,5

95 19,0 86,4

68 13,6 100,0

501 100,0

BAIRRO

SANTO ANDRE

BONFIM

LAGOINHA

SAO CRISTOVAO

PRADO LOPES

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

CRIMES CONTRA A PESSOA NA REIGÃO DA PEDREIRA PRADO LOPES NO ANO DE 2003

230 45,9 45,9

173 34,5 80,4

72 14,4 94,8

24 4,8 99,6

1 ,2 99,8

1 ,2 100,0

501 100,0

NATUREZA

B32000 - VIAS DE FATO/AGRESSAO

B03000 - AMEACA

B04001 - HOMICIDIO TENTADO

B04002 - HOMICIDIO CONSUMADO

D01000 - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR

D04002 - ESTUPRO CONSUMADO

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

GRÁFICOS 9 e 10

2003 – Fonte: Crisp / PMMG

Prado Lopes

Senhor dos Passos

SANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRESANTO ANDRE

BONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIMBONFIM

CARAS

PEDRO II

AVE JOSE BONIFACIO

RUA PAU DARCO

BEC JOSE BONIFACIO

AVE PR

ESIDE

NTE AN

TON

IO C

ARLO

S

RUA GARCAS

PCA URUGUAIANARUA SERRA NEGRA

RUA PEDRO LESSA

RUA BEBERIBE

BEC SANTA LUZIARUA CARMO D

O RIO

CLA

RORU

A E

SCR

AVO

ISID

OR

O

BEC

JOSE

L AER

T E

RUA SEVERIANO

DE RESENDERUA ARARIBA

RUA

ALEX

ANDR

E ST

OCKLE

R

BEC VINTE E UM DE ABRIL

BEC

QUI

NZE

DE A

BRIL

ARUA FAGUNDES VARELA

RUA SETE LAGOAS

RU

A PR

ADO

LO

PES

RUA RESPLENDOR

RUA EVARISTO DA VEIGA

RUA CAPITOLIO

RUA ALEM PARAIBARUA TURVO

RUA

FORT

ALEZ

A

RUA RIO NOVO

RUA ITAPEVA

RU

A PE

DR

O L

EOPO

LDO

RUA

BOTE

LHO

S

RUA ITAPECERICA

RUA VASSOURAS

RUA SARACA

RUA CAPARAORUA PADRE EUSTAQUIO

RUA PATROCINIO

RUA PADRE EUSTAQUIO

SINHA SIGAUD

RUA FREDERICO CORNELIO

SAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAOSAO CRISTOVAO

LAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHALAGOINHA

CARLOS PRATES

NOVA ESPERANCA

C

Concentração de crimes contra pessoa

AltaMédiaBaixaInexistente

Crimes contra pessoa 2000

21a CIA PMMG

Bairros

Favelas

MAPA 1

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78

Crimes referentes a Tóxicos e Entorpecentes na Região da Pedreira Prado Lopes no ano de 2003

391 78,2 78,2

109 21,8 100,0

500 100,0

NATUREZA

M06000 - AQUISICAO/POSSE OU GUARDA PARA USOPROPRIO DE SUBSTANCIA ENTORPECENTE

M05000 - COMERCIO E/OU FORNECIMENTO GRATUITO(TRAFICO)

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

Crimes referentes a tóxicos e entorpecentes - incidência por Logradouro

70 14,0 14,0

65 13,0 27,0

60 12,0 39,0

44 8,8 47,8

34 6,8 54,6

23 4,6 59,2

22 4,4 63,6

19 3,8 67,4

11 2,2 69,6

11 2,2 71,8

141 28,2 100,0

500 100,0

LOGRADOURO

JOSE BONIFACIO

ARARIBA

CARMO DO RIO CLARO

SERRA NEGRA

PRESIDENTE ANTONIO CARLOS

MARCAZITA

POPULAR

PEDRO LESSA

DOS CARAJAS

ITAPECERICA

DEMAIS LOGRADOUROS

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

Crimes referentes a Tóxicos e Entorpecentes - Incidência por Bairro

214 42,8 42,8

164 32,8 75,6

54 10,8 86,4

51 10,2 96,6

17 3,4 100,0

500 100,0

BAIRRO

SAO CRISTOVAO

PRADO LOPES

LAGOINHA

SANTO ANDRE

BONFIM

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

GRÁFICOS 11, 12 e 13

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79

Crimes contra o patrimônio na região da Pedreira Prado Lopes no ano de 2003

211 14,9 14,9

211 14,9 29,7

198 13,9 43,7

169 11,9 55,6

168 11,8 67,4

97 6,8 74,2

83 5,8 80,1

70 4,9 85,0

65 4,6 89,6

34 2,4 92,0

33 2,3 94,3

15 1,1 95,4

13 ,9 96,3

12 ,8 97,1

10 ,7 97,8

7 ,5 98,3

7 ,5 98,8

6 ,4 99,2

4 ,3 99,5

3 ,2 99,7

3 ,2 99,9

1 ,1 100,0

1420 100,0

NATUREZA

C04009 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A PREDIO COMERCIAL

C04001 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A RESIDENCIA URBANA

C09004 - ROUBO `A MAO ARMADA CONSUMADO (ASSALTO) A ONIBUS/COLETIVO

C04004 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO EM VEICULO AUTOMOTOR

C05027 - ROUBO CONSUMADO A TRANSEUNTE

C02002 - FURTO CONSUMADO A TRANSEUNTE EM VIA PUBLICA

C04099 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO OUTROS

C02001 - FURTO CONSUMADO A RESIDENCIA

C09020 - ROUBO `A MAO ARMADA CONSUMADO (ASSALTO) A TAXI

C05004 - ROUBO CONSUMADO A ONIBUS/COLETIVO

C02003 - FURTO CONSUMADO A PESSOAS EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL

C05020 - ROUBO CONSUMADO A TAXI

C04015 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A DEPOSITOS EM GERAL

C04019 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A ESCOLA PARTICULAR

C04010 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A IGREJA/TEMPLORELIGIOSO

C04007 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A PADARIA

C04014 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A ESTABELECIMENTOPUBLICO

C04008 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO ASUPERMERCADO/MERCEARIA

C04005 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A PREDIO HABITACAOCOLETIVA

C05010 - ROUBO CONSUMADO A PREDIO COMERCIAL

C04018 - FURTO QUALIFICADO CONSUMADO/ARROMBAMENTO A ESCOLA PUBLICA

C05001 - ROUBO CONSUMADO A RESIDENCIA URBANA

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

GRÁFICO 14

2003 – Fonte: Crisp / PMMG

P rad o Lo pes

S enh or d os P assos

S AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R ES AN T O AN D R E

B O N F IMB O N F IMB O N F IMB O N FIMB O N FIMB O N FIMB O N FIMB O N FIMB O N FIM

C A R A S

P E D R O II

AVE JO SE BO NIFACIO

RUA PAU DARCO

BEC JOSE BONIFAC IO

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RUA SETE LAGOAS

RU

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R U A R ES PL E N D O R

R U A EVAR ISTO D A VE IG A

R U A C AP ITO LIO

RUA ALEM PARAIBA RUA TURVO

RUA

FORT

ALEZ

A

RUA RIO

NOVO

RUA ITAPEV A

RU

A P

EDR

O L

EO

POLD

O

RUA

BOTE

LHO

S

RUA ITAPECERICA

R U A V A S S O U R A S

R U A S A R A C A

RUA CAPARAORUA PADRE EUSTAQUIO

R U A P ATR OC IN IO

RUA PADRE EUSTAQUIO

S IN H A S IG A U D

RUA FREDERICO CORNELIO

S AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AOS AO C R IS T O V AO

L AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H AL AG O IN H A

C A R LO S P R A T E S

N O V A E S P E R A N C A

C

C oncentração de crim es con tra o pa trim ôn io

A ltaM éd iaB a ixaInex is tente

C rim es con tra o pa trim ôn io 2003

21a C IA P M M G

B airros

Fave las

MAPA 2

Page 80: Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes ... · Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves ... E que sangra sem choro Que tenta mudar O destino traçado Para os filhos

80

Crim es C ontra a Pessoa na Região da Pedreira

Incidências por Faixa

Período : 2003

Estatística - 8ª RP M

24 23222120191817161514131211109876 5 4 3 2 1

50

40

30

20

10

0

Crimes Contra a Pessoa na Região da Pedreira Prado Lopes

Incidências por Dia da Semana

Período: 2003

Estatística - 8ª RPM Sab SexQuiQuaTerSeg Dom

110 100

90 80 70

60 50

No que diz respeito aos horários em que tais ocorrências são registradas, nota-se que

os “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes” e os “crimes contra a pessoa” seguem um

padrão relativamente parecido. Talvez isso permita até mesmo inferir que ambas as

modalidades podem possuir alguma relação entre si. A maioria dos “crimes contra a

pessoa” (38,1%) acontece entre 18hs e 23hs e, mesmo assim, durante os finais de semana.

A maioria dos “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes” (58,5%), por sua vez, é

registrada entre 16hs e 0hs, principalmente às segundas, quartas e sextas-feiras. Já os

“crimes contra o patrimônio”, obedecem a um padrão completamente diferente dos que os

“contra a pessoa” e os “relativos a tóxicos e entorpecentes”. A maioria deles (30,8%)

acontece entre 7hs e 11hs e, ainda assim, aos domingos, segundas e terças-feiras. Vejamos

os gráficos 15 a 19:

GRÁFICOS 15 e 16

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81

Crim es Referentes a Tóxicos e Entorpecentes

na Região da Pedreira Prado Lopes - 2003

Incidência por Hora

Estatística - 8ª RP M

24 23 22 21 20191817161514131211109876 5 4 3 2 1

50

40

30

20

10

0

Crim es Referentes a Tóxicos e Entorpecentes

na Região da Pedreira Prado Lopes - 2003Incidência por Dia da Sem ana

Estatística - 8ª RPM

Sab SexQuiQuaTerSeg Dom

100

90

80

70

60

50

GRÁFICOS 17 e 18

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82

Crimes Contra o Patrimônio na Região da Pedreira

Período:2003 Incidência por Hora

Estatística - 8ª RPM

24 23 22 21 201918171615141312111098765 4 3 2 1

140

120

100

80

60

40

20

Crimes Contra o Patrimônio na Região da Pedreira Prado Lopes Período: 2003

Incidência por Dia da Semana

Estatística - 8ª RPM

Sab SexQuiQuaTerSeg Dom

260

240

220

200

180

160

GRÁFICOS 19 e 20

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83

As ações da PM, em compensação parecem priorizar o combate aos “crimes contra a

pessoa” e aos “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes”. Prova disso é que, durante o ano

de 2003, 79,6% das ações da Polícia Militar (batidas, incursões, operações de ocupação e

de presença) foram realizadas na região da Pedreira em si, locais onde se registram também

a maioria dos “crimes contra a pessoa e aqueles relativos às drogas”. A imensa maioria das

ações (78%) acontece de segunda a sexta, caindo drasticamente nos finais de semana –

lembrando que as principais ocorrências de “crimes relativos a tóxicos e entorpecentes”

acontece às segundas, quartas e sextas. A maioria das ações acontece entre 8hs e 10hs

(19,2%), para ser retomada entre 15hs e 20hs (36,5%). Vejamos os gráficos 21,22 e 23:

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84

Ações da PM na região da Pedreira Prado Lopes no ano de 2003

683 35,7 35,7

361 18,9 54,5

330 17,2 71,8

284 14,8 86,6

255 13,3 99,9

1 ,1 100,0

1914 100,0

NATUREZA

Y12005 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS INCURSAO EM FAVELA

Y12009 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS ORLA DO BOSQUE

Y12001 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS BATIDA POLICIAL

Y29013 - DISQUE-DENUNCIA REFERENTES A DROGAS

Y12004 - OPERACOES POLICIAIS DIVERSAS PRESENCA

Y04002 - OPERACOES DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO OPERACAOANTI-DROGAS

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

Ações da PM - Incidência por Logradouro

644 33,6 33,6

194 10,1 43,8

150 7,8 51,6

130 6,8 58,4

118 6,2 64,6

93 4,9 69,4

64 3,3 72,8

51 2,7 75,4

470 24,6 100,0

1914 100,0

LOGRADOURO

ARARIBA

JOSE BONIFACIO

PEDRO LESSA

SERRA NEGRA

PRESIDENTE ANTONIO CARLOS

CARMO DO RIO CLARO

DOM PEDRO II

ITAPECERICA

DEMAIS LOGRADOUROS

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

Ações da PM - Incidência por Bairro

911 47,6 47,6

398 20,8 68,4

239 12,5 80,9

183 9,6 90,4

152 7,9 98,4

31 1,6 100,0

1914 100,0

BAIRRO

SAO CRISTOVAO

PRADO LOPES

LAGOINHA

SANTO ANDRE

BONFIM

PEDREIRA PRADO LOPES

Total

FREQÜÊNCIA PERCENTUALPERCENTUALACUMULADO

GRÁFICOS 21, 22 e 23

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Antes de seguir adiante com esta análise, é preciso fazer algumas considerações sobre

a confiabilidade e a precisão das estatísticas coletadas pela PM. Evidentemente, não é

possível pretender que os números apresentados pela polícia traduzam de forma fiel a real

situação da violência e da criminalidade na Pedreira Prado Lopes. Com exceção dos

homicídios, todas as demais modalidades de crimes obrigam o pesquisador a trabalhar com

uma considerável margem de subnotificação. Principalmente aquelas relativas aos “crimes

relativos a tóxicos e entorpecentes”, que só chegam às estatísticas oficiais quando são alvos

da ação policial. Portanto, devem-se olhar com bastante reserva os números gerados pela

polícia na PPL. Assim como a grande maioria das estatísticas sobre violência e

criminalidade, eles não retratam de forma exatamente fiel toda a realidade de um

determinado cenário.

Mas, ainda que sua precisão e validade sejam questionáveis, tais números ajudam o

pesquisador a dar seus primeiros passos dentro de um cenário completamente

desconhecido. No caso da Pedreira, em especial, indicam caminhos a serem trilhados,

possíveis hipóteses a serem testadas e indicadores a serem levados em conta.

Uma conclusão óbvia a ser tirada dos números apresentados pela PM é a de que a

PPL enfrenta graves problemas com relação ao tráfico e ao uso de drogas. Principalmente

na favela em si, o que indica a forte presença de gangues ligadas ao comércio de

entorpecentes atuando na região. Coincidência ou não, a PPL também é palco de um alto

índice relativo de “crimes contra a pessoa”, o que também pode apontar na direção de uma

consolidação das gangues ligadas ao tráfico de drogas. Enfim, os úmeros registrados pela

Polícia Militar na favela permitem observar que, para entender a questão da violência e da

criminalidade na Pedreira Prado Lopes, é preciso entender a mecânica do tráfico na região,

assim como o modo de agir, as características e a configuração assumida pelas gangues que

lá controla esta atividade.

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CAPÍTULO 4: História da Violência na Pedreira Prado Lopes “A rebeldia não nos impede de sermos anjos” (Grafite pintado em um muro da rua Carmo do Rio Claro)

Como observamos anteriormente, um dos principais problemas enfrentados pela

comunidade da Pedreira Prado Lopes é a violência do tráfico de drogas e a brutalidade das

gangues ligadas à sua exploração. Prova disso são os altíssimos índices de ocorrências

relativas ao tráfico e ao uso de drogas registrados todos os anos na favela. E, por incrível

que pareça, este não é um quadro recente. Por questões que serão abordadas mais adiante,

pode-se dizer que, há pelo menos duas décadas, grande parte da violência registrada na PPL

mantêm uma relação muito íntima com a rotina das gangues que lá comandam o comércio

de entorpecentes. Justamente por causa desta estreita relação entre violência e tráfico

drogas, a Pedreira Prado Lopes figura desde a década de 1980 entre as regiões com maior

índice de criminalidade de Belo Horizonte.

No ano que esta pesquisa estava sendo concluída, acontecia na Prado Lopes um

confronto entre gangues de proporções jamais vistas em toda a história do aglomerado. Três

quadrilhas de traficantes disputavam o controle do comércio de entorpecentes no morro,

deixando para trás de si um rastro de dezenas de mortos e feridos. Somente nos nove

primeiros meses de 2004, 49 pessoas haviam sido assassinadas na favela, vítimas dos

enfrentamentos entre as gangues ou dos combates com a polícia. Na média, um assassinato

a cada seis dias.

O terror imposto na favela pelo tráfico era tão grande que começava a gerar cenas que

beiravam o surreal. Um destes episódios é bastante lembrado pelos moradores e, creio eu,

merece ser registrado por ilustrar com exatidão aquilo de que estou falando. O fato em

questão aconteceu em uma tarde de junho de 2004, durante um dos intermináveis

confrontos que ocorriam diariamente na favela. Na ocasião, um rapaz de apenas 17 anos

perdeu a vida em plena rua Escravo Isidoro, justamente onde fica o posto de saúde da PPL.

Antes que a polícia pudesse chegar ao local, traficantes encapuzados colocaram o corpo do

rival em um carrinho de mão e atravessaram mais da metade da favela carregando o

cadáver. Sob os olhares perplexos de uma verdadeira multidão, os criminosos jogaram o

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corpo do rapaz, como se fosse um saco de lixo, no meio da rua Pedro Lessa, na margem

Oeste da Pedreira, já fora dos limites do aglomerado. A polícia, quando chegou, não

precisou entrar na favela para recolher o cadáver e novos confrontos foram evitados. Até

hoje, a maioria dos assassinos daquele rapaz estão soltos, convivendo tranqüilamente em

meio à comunidade da Pedreira.

4.1. A História do Tráfico na Pedreira

4.1.1. Décadas de 1970, 1980 e 1990

Apesar de a Pedreira Prado Lopes ser hoje um dos maiores e mais organizados pontos

de tráfico de drogas de Belo Horizonte, registros da polícia indicam que esta nem sempre

foi uma realidade vivida pela favela. De acordo com um relatório interno produzido em

outubro de 2003 pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar, até o início da década de

1970, o comércio de drogas na PPL sempre havia sido explorado de forma desorganizada,

por várias pessoas diferentes e que não tinham necessariamente qualquer ligação entre si. A

atividade tinha como seu carro-chefe a venda de maconha e não possuía, nem de longe, o

caráter quase que empresarial que possui hoje.

No entanto, já em meados da década de 1980, a polícia começa a receber as primeiras

informações sobre a ação do traficante Roni Peixoto de Souza na favela. Em poucos anos,

já no início da década de 1990, ele conseguiria eliminar praticamente todos os seus

concorrentes e assumir o controle definitivo sobre o tráfico de drogas praticado na PPL. De

acordo com um relatório interno produzido pela PM em 2003, o diferencial de Roni com

relação a seus antecessores era a eficiente rede de contatos que ele havia conseguido

estabelecer com grandes fornecedores de drogas e, conseqüentemente, a grande quantidade

de entorpecentes que ele conseguia trazer para a Pedreira a preços relativamente baixos.

Seus contatos com criminosos do Rio de Janeiro e Nordeste teriam feito com que, em

poucos anos, ele se tornasse capaz de colocar todas as gangues do morro para trabalhar sob

suas ordens. Além disso, Roni Peixoto trazia para Belo Horizonte um tipo de droga que, até

então, ainda não havia se difundido entre os usuários da capital: o crack.

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Considerado pela Polícia Federal como sendo, em Minas Gerais, o braço direito do

narcotraficante Luiz Fernando da Costa, o “Fernandinho Beira-Mar”, Roni se tornou o

principal fornecedor de drogas para as quadrilhas da PPL, já no final da década de 80. Com

todos os contatos que conseguiu estabelecer em outros estados e até mesmo em outros

países da América Latina, Roni Peixoto passou quase uma década comandando com mão

de ferro a venda de drogas na Pedreira, até ser preso em 1995. Durante este tempo, seus

carregamentos abasteceram todas as quadrilhas da favela que, por incrível que pareça,

sempre foram obrigadas a deixar de lado antigas diferenças pessoais e atuar de forma

relativamente harmoniosa entre si. Diversos policiais civis e militares que trabalham na

região da PPL são unânimes em admitir que, sob o comando de Roni, o tráfico de drogas

que acontecia na Pedreira havia se tornado o mais bem organizado e próspero entre todos

aqueles que se observam nas demais favelas de BH. Considerado por muitos moradores

como um “pacificador” – uma vez que, sob seu comando, o tráfico de drogas da Prado

Lopes praticamente não registrava mortes -, Roni Peixoto continuou comandando o

“movimento” de dentro da cadeia. No entanto, a diminuição de sua interferência pessoal no

dia-a-dia do tráfico fez com que as gangues se desorganizassem e passassem a guerrear

entre si por maiores fatias do mercado das drogas.

4.1.2. A queda de Roni Peixoto e a “guerra” de 1999

Apesar de ter sido ser comandado com mão de ferro durante mais de quinze anos, o

tráfico na PPL não foi imediatamente abalado com a prisão de Roni Peixoto. De acordo

com investigações feitas pelo Serviço de Inteligência da PM, os esquemas de fornecimento

de drogas do velho chefe continuaram funcionando de forma eficiente durante

aproximadamente quatro anos após sua prisão. E toda a logística do tráfico continuou a ser

gerenciada por seus homens de confiança. Até pelo menos 1998, a Prado Lopes continuava

a viver a mesma calmaria dos tempos em que Peixoto comandava pessoalmente a venda de

drogas na região.

No entanto, foi em 1999 que a comunidade da Pedreira começou a sentir na pele os

efeitos mais perversos da prisão de Peixoto: sem a liderança pessoal do traficante, as

incontáveis diferenças pessoais existentes entre as gangues começaram a vir à tona. Ainda

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que continuasse a dar suas ordens de dentro da Penitenciária Nelson Hungria, em Nova

Contagem, Roni não conseguia mais aparar as arestas que se formavam entre as várias

quadrilhas do morro. A ganância, as acusações mútuas e as intrigas pessoais começaram a

falar mais alto e, ainda que não oficialmente, o grupo acabou se dividindo em várias

facções.

De acordo com um levantamento feito pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar,

quatro gangues distintas passaram a controlar o tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes

durante a década de 1990, poucos anos após a prisão do traficante Roni Peixoto: duas delas

se instalaram na parte alta do aglomerado, enquanto as outras duas consolidaram seu

domínio na parte baixa. Ao que tudo indica, esta divisão já existia antes mesmo de Peixoto

ser detido. No entanto, o comando forte do velho traficante mantinha todos os grupos

atuando sob uma só ordem. Com sua prisão, a divisão entre as quadrilhas ficou mais clara e

finalmente veio à tona uma rivalidade que, ainda que de forma camuflada, sempre existiu

entre os bandos da parte alta e os da parte baixa.

Para os rapazes mais novos no tráfico, especialmente para aqueles que haviam entrado

para o movimento após 1995 e não tiveram a oportunidade de “servir sob o comando do

velho patrão”, a liderança fraca e vacilante que era exercida pelos homens de Roni abriu

espaço para o surgimento de novas ambições. No que se refere aos quadrilheiros mais

velhos, a ausência de Peixoto fez com que se reascendessem antigas rivalidades. E como se

já não bastasse, novos fornecedores de drogas perceberam a crise que estava por se instalar

na PPL e também passaram a oferecer suas drogas às quadrilhas, concorrendo diretamente

com o esquema de distribuição mantido há vários anos por Roni.

Já no primeiro semestre de 1999, pelo que moradores da região contam, o grupo de

Roni Peixoto já estava visivelmente abalado por fortes divisões internas. As quadrilhas não

se entendiam entre si quanto à logística do tráfico, quanto à distribuição e à liderança das

“bocas-de-fumo” e o clima começava a ficar muito tenso na Pedreira. A PPL havia se

tornado um barril de pólvora, prestes a explodir ao menor sinal de fogo. E este sinal veio no

segundo semestre de 1999, quando um traficante da parte baixa da favela assassinou o

irmão de um traficante da parte alta, por causa de uma rixa pessoal. Desde aquele dia, um

grande conflito entre gangues explodiu nas ruas do aglomerado e obrigou a comunidade a

sobreviver em um verdadeiro campo de batalha. Moradores lembram-se da dificuldade que

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tinham para sair de casa e ir ao trabalho. Alguns contam ainda que, naquela época, a

Pedreira foi dividida em áreas bem delimitadas pelos grupos. Quem fosse morador da parte

baixa do aglomerado, por exemplo, estava proibido de ir até a parte alta. Alguns grupos

chegavam até mesmo a cobrar pedágio para que determinadas pessoas pudessem passar por

certas ruas. Além disso, diferentemente do que havia acontecido em décadas anteriores, as

quadrilhas do final dos anos 90 tinham em suas fileiras uma nova e muito mais violenta

geração de adolescentes, com idades variando entre 14 e 25 anos. Com uma imensa

variedade de armas de fogo em suas mãos e nenhum receio em usá-las, estes rapazes

tornaram o conflito de 1999 muito mais espetacular e sangrento do que os pequenos acertos

de contas que haviam acontecido em outras épocas.

Os grupos que haviam nascido e se criado na parte alta da favela consolidaram suas

bases na região que fica entre as ruas Pedro Lessa, Mariana, Serra Negra e parte da rua

Escravo Isidoro. Lá, eles conseguiram estabelecer pelo menos cinco lucrativos pontos de

venda de drogas, que acabaram por concorrer diretamente com as já tradicionais “bocas-de-

fumo” mantidas na parte baixa da favela. De acordo com os moradores da região, as

quadrilhas da parte alta haviam surgido alguns anos depois da formação daquelas que

atuam parte baixa, mas, devido à dedicação e ao profissionalismo demonstrado na lida com

o tráfico, conseguiram, em pouco tempo, uma clientela razoavelmente fiel e bons

armamentos para defender seu negócio. Sobre a obstinação demonstrada pelos integrantes

destes novos grupos, os próprios rivais costumavam dizer que as quadrilhas da parte alta

eram formadas por rapazes que não sabiam aproveitar o dinheiro, a fama e as mulheres que,

em meio a uma comunidade de excluídos, o narcotráfico é capaz de atrair para os garotos

que dele fazem parte.

“A grana que entra a gente gasta em carro e roupa. A gente tira onda, sabe cumé? O pessoal da parte alta não. Eles só gasta em arma e droga, arma e droga. Por isso é que tão mais bem armado do que a gente. Mas isso não quer dizer nada não, porque revólver não serve pra nada na mão de vacilão. Eu me garanto com qualquer 38” (D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 31/05/2002).

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As outras duas quadrilhas, talvez as maiores do morro, haviam se estabelecido há

mais tempo na parte baixa da Pedreira Prado Lopes e ainda mantiveram-se fiéis ao

comando de Roni Peixoto. Os rapazes que faziam parte delas viviam no setor mais

urbanizado do aglomerado, em barracões que se espalhavam pela avenida José Bonifácio e

pelas ruas Araribá, Carmo do Rio Claro e Guapé, vias estas que ficam próximo à entrada

principal da Prado Lopes, junto ao conjunto IAPI e o Hospital Odilon Behrens. Naquela

região, haviam conseguido estabelecer nove pontos de venda de drogas, locais que eram

tradicionalmente freqüentados pela imensa maioria dos viciados em crack de Belo

Horizonte. Foi inclusive esta altíssima movimentação de clientes que fez com que, no meio

policial, as “bocas” das ruas Araribá, Carmo do Rio Claro e avenida José Bonifácio

ganhassem o apelido de “crackolândia”.

Em 1999, foi justamente neste cenário que explodiu na Pedreira Prado Lopes um

conflito entre gangues que só terminaria três anos depois, e que deixaria atrás de si um

rastro de 18 mortes. Durante vários meses, as gangues da parte baixa enfrentaram as da

parte alta, dando uma mostra clara de que o tráfico não possuía mais um comando único e

que somente o mais forte sobreviveria naquele mercado. Até hoje, existem várias versões

diferentes quando se trata de apontar qual dos grupos teria dado o primeiro disparo daquele

confronto. O que se sabe é que a “guerra” – termo que os próprios traficantes costumam

usar para definir a abertura de um ciclo de violência e morte entre as gangues - começou

oficialmente no segundo semestre de 1999, quando o adolescente Renato Nunes de Souza,

mais conhecido como “Babão” e que trabalhava como “soldado” de uma gangue da parte

baixa da favela, matou um dos irmãos do traficante Cléber Pereira de Souza, conhecido

como “Coração”, líder de uma das gangues da parte alta do aglomerado. Apesar de não

saberem o real motivo do assassinato, muitos moradores lembram que, muito violento que

era, “Babão” teria cometido o crime por causa de um desentendimento corriqueiro. Se em

meio às gangues da Pedreira os ânimos já estavam exaltados devido à disputa pelo mercado

das drogas, este assassinato repercutiu como uma verdadeira declaração de guerra, e

constituiu-se no motivo de que todos vinham precisando para resolver suas já insuportáveis

diferenças. Além disso, em um cenário em que os laços de solidariedade entre os membros

das gangues se tornam tão fortes a ponto de suprir a ausência de uma estrutura familiar, não

existe assunto pessoal: o que afeta um afeta a todos. Uma ofensa praticada contra apenas

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um membro do grupo é tomada como insulto a todo o grupo, o que confirma os estudos de

Thrasher (1927) e Decker e Van Winkle (1996). Por isso, a morte de um adolescente

morador da parte alta, ainda que tenha sido por uma briga pessoal com um traficante da

parte baixa, tornou-se motivo mais do que suficiente para o começo de um enfrentamento

entre as turmas.

Antes de seguir adiante, é preciso esclarecer alguns pontos e terminologias

importantes para a compreensão do contexto descrito. Durante a realização do presente

estudo, muito me chamou a atenção o fato de os moradores da Pedreira, assim como os

traficantes e policiais que lá atuam, utilizarem constantemente o termo “guerra” para

designar o ciclo de enfrentamentos, violência e mortes que ocasionalmente se estabelece

entre as gangues. Evidências colhidas durante a realização desta pesquisa permitem afirmar

que tais ciclos de violência e enfrentamentos são relativamente comuns e, pelo menos no

caso das quadrilhas da PPL, ocorrem sempre quando existe alguma rixa entre os grupos ou

quando a estrutura do tráfico de drogas vigente no local precisa passar por algum rearranjo

de poder. Para as gangues da Prado Lopes, as chamadas “guerras” são, portanto,

instrumentos de resolução de conflitos e discordâncias e até mesmo de renegociação de

papéis dentro da estrutura de poder que o tráfico de drogas estabelece dentro do

microcosmo da favela. Como o comércio de entorpecentes é uma atividade ilegal e não

conta com qualquer instância de mediação de conflitos, a forma mais comumente utilizada

pelas quadrilhas para solucionar suas discordâncias ou inimizades é a via do enfrentamento

armado, da violência coletiva, a via da “guerra”.

Em um primeiro momento, o uso do termo “guerra” pode parecer um tanto quanto

inadequado para definir a rotina de enfrentamentos entre as gangues ou quadrilhas. Até

porque a própria definição de “guerra” é até hoje extremamente controversa. Ainda que se

trate de uma definição bastante genérica, a forma de violência coletiva que historicamente

se convencionou chamar de “guerra” é a do conflito entre nações, como define o Relatório

Mundial sobre Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2002.

Sociologicamente falando, aquilo que se chama de “guerra” seria a última instância de

resolução de discordâncias e renegociação de papéis políticos a ser utilizada por nações ou

Estados, enquanto comunidades humanas que reivindicam (com sucesso) o monopólio do

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uso legítimo de força física dentro de um determinado território, como afirma Weber

(1946).

Que fique bem claro, portanto, que, ao utilizar o termo “guerra” para nos referirmos

aos enfrentamentos travados pelas quadrilhas de traficantes da PPL, o presente estudo não

faz nenhum tipo de comparação ou analogia entre tais grupos e qualquer tipo de Estado

constituído. É bastante evidente que, excetuando-se o quase que completo monopólio dos

meios de coação e violência dentro de um determinado território, as gangues ou quadrilhas

da PPL não possuem qualquer semelhança com o Estado constituído e nem mesmo podem

ser comparadas a tal. Procura-se apenas uma explicação plausível para o fato de moradores,

traficantes e até mesmo policiais fazerem uso constante do termo “guerra”, para se referir

aos ciclos de violência que tais quadrilhas instauram entre si de tempos em tempos na

Pedreira.

Ao que tudo indica, os ciclos de enfrentamentos armados entre as gangues ou

quadrilhas é chamado de “guerra” porque, assim como acontece com os Estados, eles nada

mais são do que a última instância de resolução de discordâncias e de redefinição de papéis,

mantida entre pelas quadrilhas. Só que, ao invés de se desenrolar dentro do universo

político das nações ou estados, estes rearranjos de poder se desenvolvem dentro do universo

do tráfico de drogas e do microcosmo da favela. Observa-se, portanto, que apesar de serem

chamados de “guerra”, os enfrentamentos entre as gangues da Pedreira constituem somente

mais um tipo de “violência coletiva”, como destaca o trecho, a seguir, do Relatório

Mundial sobre Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (2002:p 213):

“A violência coletiva pode ser definida como: o uso instrumental da violência por pessoas que se identificam como membros de um grupo – independente de esse grupo ser transitório ou possuir uma identidade mais permanente – contra outro grupo ou um conjunto de indivíduos com o intuito de alcançar objetivos políticos, econômicos ou sociais”.

Em 1999, por exemplo, foi exatamente isso que aconteceu na Pedreira. O que os

moradores chamam de “guerra”, nada mais foi do que a abertura de um ciclo de “violência

coletiva” entre as quadrilhas para a resolução em última instância de todas as desavenças

pessoais que existiam entre vários membros daqueles grupos e também das discordâncias

que eles tinham com relação ao gerenciamento do tráfico de drogas naquela favela. Na

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ocasião, como foi dito anteriormente, o estopim para a explosão daquele confronto foi o

fato de o traficante “Babão”, que pertencia a uma quadrilha da parte baixa da favela, ter

assassinado o irmão do também traficante “Coração”, líder de uma das quadrilhas da parte

alta do morro. Moradores do aglomerado contam que, desde aquele dia, todos os

integrantes das quadrilhas passaram a ser vistos pelas ruas da PPL exibindo suas armas com

freqüência e sempre andando aos bandos. Devido ao fato de conviveram no mesmo espaço

geográfico do morro, as quadrilhas da parte baixa se uniram contra as da parte alta, sendo

que a recíproca também foi verdadeira. Aos poucos, determinadas esquinas e bares

tornaram-se pontos fixos de encontro entre os membros de uma destas turmas. Fato este

que, automaticamente, tornava o local proibido para os integrantes do outro grupo. Se as

divisões internas impostas pelo tráfico já haviam, de certa forma, repartido a Pedreira em

várias áreas, o início da “guerra” acabava por formalizar as demarcações que, até então,

eram apenas subentendidas.

De forma lenta e gradual, a Pedreira Prado Lopes começou a se ver sitiada pelo

confronto. Tornava-se cada vez mais difícil ver moradores nas portas de suas casas,

travando uma conversa de fim de noite com vizinhos. Todos se recolhiam ao anoitecer, para

evitar a possibilidade de se ver no local errado, na hora errada. E, apesar das poucas

informações confiáveis que se tinha, a “guerra” circulava de boca em boca pelos

intrincados e degradados becos da favela. Um comentário rápido, uma lamentação, tiros no

meio da noite. Moradores da parte baixa evitavam ir à parte alta, e qualquer movimentação

diferente era prenúncio dos confrontos que, apesar de sempre tão iminentes, aconteciam de

forma muitos mais esporádica do que costuma julgar a mídia e, conseqüentemente, o senso-

comum. Alguns muros da favela, bastante furados a bala, passaram, aos poucos, a ser

testemunhas silenciosas de um conflito que, apesar de abertamente declarado, registrava

relativamente poucas baixas, se comparado ao que se via em outras favelas da capital.

Durante o segundo semestre de 1999, quatro rapazes morreram nessa disputa. No ano

seguinte, este número dobrou. Em todos os casos, o local onde havia sido cometido um

crime contava de uma forma até mesmo óbvia a história do que acontecera. Os corpos eram

sempre encontrados pela polícia em vias públicas bastante movimentadas. Quase todos

eram de rapazes muito novos, que tiveram a vida ceifada por dezenas de balas, geralmente

disparadas por armas semi-automáticas de calibres de uso restrito à polícia ou ao exército.

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Na grande maioria dos assassinatos, a vítima era executada com dezenas de tiros,

em frente a várias pessoas. Muitas vezes, logo após abater seu rival, os criminosos ainda

atiravam diversas vezes contra sua cabeça, como uma forma de confirmar o sucesso da

ação. Cometidas à luz do dia, estas execuções eram, ao mesmo tempo, um desafio aberto

aos membros da gangue rival e um aviso a todos os moradores da Pedreira para que

estes não tentassem interferir nos negócios do tráfico. Muito mais do que apenas uma

maneira drástica de se livrar dos inimigos, as execuções acabaram por se constituir em

grandes espetáculos públicos com a finalidade de reforçar no imaginário coletivo o

poder dos traficantes. Observa-se muito claramente que, para aqueles garotos, não basta

apenas matar seu rival. É preciso massacrá-lo. Imersos em uma subcultura que apregoa

os valores mais exacerbados da violência, do machismo e da virilidade, é preciso realizar

as execuções na frente de dezenas de pessoas, no meio da rua, em plena luz do dia e da

maneira mais brutal possível, fato que confirma os dados apresentados nos estudos de

Zaluar (1994) e Soares (2000).

Por isso, podemos dizer que os assassinatos praticados por aqueles garotos não são

apenas uma maneira extrema de resolver as rixas, as desavenças, ou as disputas. Não são

apenas um dos muitos instrumentos utilizados por eles nos constantes rearranjos de poder

pelos quais o tráfico de drogas passa na Pedreira. Muito mais do que isso, as execuções

cumprem um papel simbólico. Até mesmo por seu caráter claramente espetacular, elas

interferem diretamente na percepção da violência que se forma no imaginário coletivo da

comunidade. Os assassinatos, quando cometidos na frente de uma multidão, constituem-se

em importantíssimos reforços nas estruturas de poder simbólico do tráfico de drogas

perante a comunidade onde ele se instalou. As execuções são a instância última em que se

apóia todo o poder dos traficantes. A demonstração de que eles estão dispostos a ir até onde

for preciso para manter o seu monopólio da coerção física e dos meios de uso da violência

dentro daquele pequeno espaço que é a favela. Ao matarem um viciado que não pagou a

droga que consumiu, os traficantes estão dando um recado muito claro para os demais. O

mesmo acontece quando um inimigo tomba no meio a uma troca de tiros ou em uma

emboscada, ou ainda quando um morador é morto por ter delatado a quadrilha à polícia.

Em todos os casos, reforça-se o medo que a gangue impõe à comunidade e,

conseqüentemente, o poder que ela exerce sobre os moradores.

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Em 1999, mais do que em anos anteriores, os moradores da PPL se viram obrigados a

conviver com vários destes jovens assassinos. Eles estavam nos bares, nas ruas, nas vendas,

nos postos de saúde, nas escolas e nas festas. Estes rapazes andavam pelas ruas com armas

sob a camisa e cumprimentavam cada um dos conhecidos como se nada estivesse

acontecendo. Apesar de sempre serem vistos nas “bocas-de-fumo” gerenciando o tráfico da

favela, às vezes alguns deles demonstravam um comportamento tão cordial e prestativo

com vizinhos, amigos e familiares que muitos chegavam a duvidar da má fama que

começavam a carregar.

Com o passar dos meses, os primeiros nomes desta guerra começaram a figurar nos

arquivos da Polícia Civil, na imprensa16 e no imaginário dos garotos mais novos da própria

Pedreira. “Babão”, “Baby”, “Malandrinho”, “Fernando” e “Knorr” tornaram-se nomes

respeitados e temidos na parte baixa da favela, mais precisamente na região das ruas Carmo

do Rio Claro, José Bonifácio, Escravo Isidoro e Pedro Lessa. Na parte alta do morro, bem

onde fica uma antena de transmissão da Polícia Civil, na região das ruas Serra Negra,

Mariana e Marcazita, começavam a circular de boca em boca as histórias protagonizadas

por “Coração”, “Leozinho”, “Grande” e “Mauricinho”. Parte alta ou parte baixa, a

geografia não importava. Todos estes rapazes, alguns com 15, 16 ou 17 anos, começaram a

ganhar fama nas ruas da Prado Lopes pelos crimes bárbaros que passaram a cometer.

Em julho de 1999, por exemplo, um adolescente conhecido como “Baby”, que

começou trabalhando como “vapor” (vendedor de drogas) para a quadrilha de Roni

Peixoto, mas que subiu na hierarquia do grupo e se tornou “soldado” (segurança armado),

ganhou as manchetes dos principais jornais mineiros depois de fugir de um centro de

internação provisória que fica na cidade de Sete Lagoas. Dias após a fuga, ele voltou à

Pedreira para rever a família e executar com 12 tiros o padeiro José Vítor da Silva (21

anos), em plena rua Carmo do Rio Claro. Testemunhas contam que, na ocasião, o rapaz já

chegou à rua de arma em punho, como se surgido de lugar algum. Em alto e bom som, ele

gritou para o padeiro que passava distraído: “Cê me cagüetou, filho da puta?”. Antes que

José Vítor pudesse esboçar qualquer reação ou resposta, “Baby” descarregou todo um pente

de pistola calibre 380 sobre sua vítima. Já sem vida, o padeiro caiu encostado em um muro,

sob os olhares perplexos de dezenas de pessoas que por ali passavam. No local onde

16 Ver reportagens publicadas no jornal Estado de Minas dos dias 31 de julho e 10 de agosto de 1999.

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cometeu o assassinato, ainda sob os olhares aterrorizados de uma pequena multidão que se

formava, “Baby” utilizou uma lata de tinta spray para, tranqüilamente, escrever em um

muro a sua sentença: “Deus manda, a mãe cria, o Baby mata”. Meses depois, “Baby”

justificaria o crime dizendo que a vítima o havia denunciado à polícia e que, por isso,

estava recebendo o castigo que merecia. A inscrição feita por “Baby” no muro da PPL ficou

intocada durante meses, até que a polícia ordenou que ela fosse apagada.

Aos poucos, este tipo de crime começou a despertar a atenção da mídia que, já em

2000, passou a cobrar das autoridades uma solução para as mortes que vinham se tornando

cada vez mais freqüentes na Pedreira. Em meio àquela guerra, outro episódio em especial

ganhou muita repercussão nos os jornais da capital: a execução do traficante Renato Nunes

de Souza, o “Babão”, um dos principais “soldados” de Roni Peixoto e justamente aquele

que havia acendido de vez o estopim daquela guerra. Na ocasião, com apenas 17 anos, ele

já era apontado pela polícia como autor de pelo menos três assassinatos cometidos na PPL.

Já em 2000, na gíria usada pelos próprios rapazes do morro, dizia-se que “Babão estava

virando bicho”. Sempre armado e travando tiroteios com os adolescentes da parte alta, ele

começava a ganhar fama de “justiceiro” entre os moradores da parte baixa da Prado Lopes.

E, apesar de já existir na Divisão de Crimes contra a Vida (DCcV) três inquéritos que o

investigavam, a polícia não conseguia prendê-lo.

Em uma tarde de janeiro de 2000, no entanto, uma notícia chegou aos ouvidos da

Polícia Civil e foi imediatamente comemorada por vários policiais do Departamento de

Investigações (DI). De acordo com o plantão policial do Hospital Odilon Behrens, “Babão”

havia acabado de dar entrada naquela unidade, mortalmente ferido por 12 tiros, vários nas

costas, no peito e na cabeça. Em poucos minutos, estaria morto. Segundo relato de

testemunhas, o crime teria sido cometido por três rapazes, entre eles o traficante Cléber

Pereira de Souza (20 anos), o “Coração”, que finalmente vingava a morte de seu irmão. Na

época, “Coração” já era gerente de uma das “bocas” da parte alta da favela e tinha sob seu

comando vários “vapores” e “soldados”.

Moradores da Prado Lopes contam que, na ocasião, o confronto que culminou na

morte de “Babão” havia começado na manhã do dia 24 de janeiro, quando “Coração” e dois

de seus soldados - “Cabelinho” e “Leozinho” - tentaram executar “Babão” em uma

movimentada rua da parte baixa da favela. Na emboscada, houve uma grande troca de tiros

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e “Cabelinho” acabou ferido com um tiro na perna. “Babão”, muito hábil no manejo de sua

arma, mais uma vez saíra ileso.

Já durante a tarde, revoltado com a audácia demonstrada pelos inimigos, “Babão”

colocou sua arma na cintura, uma pistola semi-automática calibre 380, e subiu a Pedreira

para executar “Coração”. Moradores da favela contam que “Babão” ficou enfurecido com a

ousadia do grupo rival e, sem pedir ajuda a nenhum comparsa ou planejar sua ação, decidiu

acabar com aquela briga de uma vez por todas, matando aquele que era o cabeça da gangue

adversária e mentor intelectual do atentado sofrido por ele ainda naquela manhã. A notícia

de que “Babão” estava subindo a Pedreira para matar “Coração” correu a favela como um

raio. Dentro do mundo de representações simbólicas do tráfico, aquele ato tinha uma

significação sem precedentes. “Babão” era um “soldado” que estava indo sozinho até o

território inimigo, para assassinar o chefe do tráfico local. Uma ousadia que, se tivesse

sucesso, certamente garantiria a ele muito prestígio em meio ao tráfico e até mesmo, quem

sabe, no controle da “boca-de-fumo” então chefiada por “Coração” na parte alta da favela.

Até mesmo devido à grande repercussão que a ida de “Babão” até ao quartel general

de seu maior rival teve na Pedreira, naquela tarde, ele não chegou ao seu destino nem

cumpriu sua missão com o mesmo sucesso das outras vezes. Antes mesmo que pudesse

chegar até a casa onde “Coração” costumava se esconder, na parte alta da favela, ele foi

emboscado por dois rapazes na rua Serra Negra e assassinado com 12 tiros. Vários deles

nas costas, no peito e na cabeça. Temido por toda uma comunidade, e ao mesmo tempo

admirado por centenas de garotos carentes de ídolos e referências familiares, “Babão” caiu

em via pública e, praticamente morto, teve sua arma roubada pelos executores.

Na época, a morte de “Babão”, que apesar da pouca idade era um dos mais

importantes e violentos “soldados” de Roni Peixoto, ganhou muito espaço na imprensa17

local, devido à brutalidade da ação de seus executores – segundo exames periciais, Renato

Nunes teria recebido os primeiros tiros nas costas. Já caído no chão e agonizando perante

dezenas de testemunhas, ele tentou se arrastar para dentro de um bar para recobrar o fôlego

e se proteger dos inimigos. No entanto, foi perseguido e executado com uma série de

disparos no peito e na cabeça, em frente a várias de pessoas que passavam pela rua.

17 Ver reportagem publicada no jornal Estado de Minas do dia 25 de janeiro de 2000.

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Como sempre acontece, quando algum caso consegue grande destaque na mídia18, a

polícia passou a adotar uma postura mais incisiva com relação às quadrilhas da PPL. Em

dezembro de 2000, a gangue da parte alta da favela, justamente aquela que havia sido a

primeira a desafiar o comando de Roni Peixoto, foi desmantelada com a morte do traficante

conhecido como “Grande”, que ocupava o cargo de gerente de uma das “bocas-de-fumo”

daquela região da favela, e a prisão de Cléber Pereira de Souza, o “Coração”. Sem seus dois

principais gerentes, o grupo da parte alta ficou acéfalo e os soldados não souberam dar a

continuidade devida ao negócio. A principal quadrilha da parte baixa também sofreu perdas

consideráveis em dezembro de 2000, depois que “Baby” e “Pernalonga” fugiram do morro

e a polícia conseguiu prender o também traficante Douglas Luiz de Oliveira, o “Knorr”,

“gerente” de uma das mais lucrativas “bocas” daquela região da PPL.

Mesmo sem a presença de qualquer liderança significativa, a “guerra” ainda durou

alguns meses, até que alguns dos principais traficantes do morro foram presos pela polícia,

ou acabaram mortos nos intermináveis confrontos que travaram entre si. Gradativamente, a

paz voltou à Pedreira. Primeiro porque os principais líderes daquele confronto estavam

presos ou mortos. Segundo porque, aos poucos, as quadrilhas haviam resolvido suas

principais diferenças e também perceberam que, assim como na época em que Roni Peixoto

reinava absoluto no morro, todos os grupos poderiam conviver de forma harmoniosa e,

ainda assim, obter lucros exorbitantes.

Ainda hoje, quando são questionados sobre a “guerra” de 1999, vários moradores da

PPL contam que, além da disputa pelo mercado das drogas, uma série de pequenos fatos

pontuais teriam acabado por deflagrar o confronto. Pequenos atritos pessoais, que acabaram

sendo elevados à enésima potência e ganharam contornos catastróficos devido à presença

maciça das armas de fogo trazidas pelo tráfico. Talvez uma discussão mais acirrada em

uma partida de futebol, um tapa na cara, uma namorada perdida para um rapaz do outro

grupo, ou até mesmo um boato maldosamente espalhado na região. Motivos que, jogados

desta maneira em uma folha de papel, podem parecer esdrúxulos para justificar o início de

um ciclo de vinganças e mortes que duraria mais de dois anos. Mas todos são fatos que

adquirem uma significação gigantesca quando os adolescentes são membros de quadrilhas

concorrentes no mercado das drogas e, ao mesmo tempo, estão culturalmente inseridos em

18 Ver reportagem publicada no jornal Estado de Minas do dia 29 de dezembro de 2000.

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uma estrutura simbólica pautada pelo machismo, pela noção de virilidade, pela presença

ostensiva das armas de fogo e por uma concepção estereotipada da honra masculina, como

demonstra o estudo de Zaluar (1985).

Juízos de valor à parte, o que se observa de fato é que, após entrar para o tráfico de

drogas, todos aqueles garotos, que foram criados juntos brincando nas ruas da favela,

começaram a andar ostensivamente armados, como soldados que esperam a chegada do

inimigo em cada um dos intrincados becos e esquinas do morro. Fato é que a participação

de todos aqueles meninos em quadrilhas de traficantes potencializou antigas desavenças

pessoais. E em um meio que, devido à sua própria natureza ilegal, não possui qualquer

instância de mediação de conflitos, qualquer desavença ou disputa é resolvida com o cano

de uma arma de fogo. Armas estas que, aliás, acabam por ocupar no imaginário destes

jovens uma posição importantíssima no que se refere à definição de suas identidades.

Símbolos fálicos por excelência, as armas de fogo conferem ao jovem o status de “homem

feito”. Com ela na cintura, o rapaz adquire o poder de subjugar seu oponente e provar quem

é mais macho. Segundo Soares (2000: p 269):

“O tráfico de drogas e armas, estabelecido como despotismo territorial, desenvolveu uma subcultura do gueto, refratária aos valores universalistas e ao princípio da equidade, que dão sentido ao conceito de cidadania. É como se houvesse uma regressão ao estagio medieval de desenvolvimento das regras de sociabilidade. Quando o mundo europeu se dividia em baronatos feudais, a lógica da força determinava as alianças e as guerras entre os senhores dos vários territórios, sempre cobiçados e sujeitos a disputas militares. Os homens morriam muito jovens, viviam menos do que as mulheres, mas a sociedade os compensava, reservando-lhes o monopólio do poder, que era masculino” (SOARES, 2000).

Na Pedreira, a desconfiança que os grupos da partes alta e baixa da favela já nutriam

um pelo outro devido à competição que travavam no mercado das drogas se misturou às

antigas e novas desavenças pessoais e gerou um conflito que, a certa altura, ninguém mais

sabia por que havia começado. Durante os anos de 2001 e 2002, alguns remanescentes das

quadrilhas da parte baixa e da parte alta ainda continuaram no morro travando confrontos

ocasionais. No entanto, o tráfico na PPL havia sofrido baixas consideráveis e já não era

mais o mesmo de meados da década de 90. O “movimento” só voltaria a se reerguer no ano

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de 2003, justamente quando Roni Peixoto ganhou liberdade condicional e, segundo a

polícia, voltou a lutar pelo controle do tráfico da região.

4.1.3. 2003: A volta de Roni Peixoto e o início de uma nova “guerra”

No dia 15 de setembro de 2003, a Vara de Execuções Criminais de Belo Horizonte

expediu o mandado de liberdade condicional do traficante Roni Peixoto, por ele ter acabado

de cumprir dois terços de sua condenação. No mesmo dia em que foi solto, Peixoto foi

recebido na Pedreira Prado Lopes por um churrasco para aproximadamente mil pessoas,

que fechou as ruas Araribá e Carmo do Rio Claro em plena tarde de segunda-feira. Viaturas

da Polícia Civil que tentavam entregar uma intimação no alto do morro foram

simplesmente impedidas de entrar na favela. De acordo com um dos policiais que

participou desta ocorrência, alguns conhecidos traficantes do morro pararam em frente às

viaturas e disseram: “O patrão está de volta e hoje a polícia não entra no morro”.

Apesar de garantir que não possuía mais qualquer envolvimento com o tráfico da

PPL, informações recebidas pelo Serviço de Inteligência da PM dão conta de que, poucas

semanas depois de ser colocado em liberdade, Roni Peixoto já teria reassumido o controle

de praticamente todo o comércio de drogas realizado no aglomerado. O domínio de Roni

sobre as quadrilhas só não foi completo porque um grupo remanescente das antigas

quadrilhas da parte alta, e que mantinha suas “bocas-de-fumo” na região Nordeste da

favela, em uma área conhecida como “Terreirão”, não teria se sujeitado às ordens do velho

traficante. De acordo com membros deste bando, que na ocasião era comandado pelo

traficante Rodrigo Gomes da Fonseca, o “Rodriguinho”, Roni Peixoto teria tentado impor a

compra de seu crack ao preço de R$16,00 o grama, enquanto a quadrilha conseguia adquirir

a mesma quantidade, de um outro fornecedor, por apenas R$13,00. Vejamos, a seguir, o

depoimento de um dos entrevistados da pesquisa sobre Roni Peixoto:

“Cê ouve a gente falando assim e acha que é pagá mó vacilo entrá numa guerra ruim dessa por causa de três conto de diferença, né? Mas pensa comigo aqui, véio. Cada grama de crack rende pra nós quatro pedra. Cada pedra a gente tira a cinco conto. Tem final de semana aqui na boca que a gente vende é quase meio quilo de crack numa noite. Numa noite só véio! Dá umas duas mil pedra. Multiplica isso aí agora pra você vê quem é que tá de vacilão na história. Cê tá me entendendo? O safado do

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Roni tá querendo dá a maior volta em cima de nós. Ele acha que só tem otário aqui na Pedreira. Acha que todo mundo tem que pagá boi pra ele. Com nós né assim não, véio. Aqui no Terreirão nós é sinistro mesmo! (L. G. F. C., traficante da ‘Boca do Terreirão’, região Nordeste da Pedreira Prado Lopes, em 12/10/2003)

A prova de que a volta de Roni Peixoto à PPL interrompeu a relativa tranqüilidade

vivida há dois anos pelo tráfico pôde ser vista na verdadeira guerra que tomou conta da

favela na época da soltura do traficante. Nos últimos meses de 2003, apesar de a PM ter

reforçado o patrulhamento em toda a região do aglomerado, uma nova “guerra” explodiu na

PPL. Em apenas três meses, nove pessoas foram mortas na tentativa que Peixoto fazia de

retomar a hegemonia do tráfico na Pedreira. Ao final de todo o ano, a polícia Civil

contabilizou 19 assassinatos. Os primeiros enfrentamentos desta nova “guerra”

aconteceram na madrugada do dia 05/10/2003, quando uma das gangues supostamente

comandadas por Roni Peixoto se confrontou com a quadrilha do “Terreirão”, deixando um

saldo de uma pessoa morta e dez feridas. Durante o embate, policiais afirmam ter visto

munições traçantes cortando as ruas da PPL, prova definitiva de que os bandos faziam uso

de fuzis durante o confronto.

No dia 26 de novembro de 2003, acuado pela pressão da mídia e do Ministério

Público, o juiz da 3a Vara de Tóxicos de Belo Horizonte acatou um ofício da Promotoria de

Combate ao Crime Organizado e expediu um mandado de prisão temporária para Roni

Peixoto. Em uma megaoperação que mobilizou várias viaturas, dezenas de policiais e até

mesmo um helicóptero, o traficante foi preso na casa de familiares no bairro Justinópolis,

em Ribeirão das Neves. Mostrando tranqüilidade, Peixoto não resistiu à prisão e voltou a

garantir que não possuía mais qualquer envolvimento com o tráfico de drogas. Levado de

volta à Penitenciária Nelson Hungria, Roni permanecia preso pelo menos até setembro de

2004. No entanto, os enfrentamentos entre as gangues continuavam pelas ruas da PPL e não

davam indícios de que iriam terminar tão cedo. Nos nove primeiros meses de 2004, 50

pessoas já haviam sido mortas em meio aos combates que se tornaram quase que diários.

Para tentar abafar a péssima repercussão que a abertura de uma nova rodada de

enfrentamentos entre as gangues na Pedreira estava causando, a PM manteve a favela

ocupada 24 horas por dia durante os últimos dois meses de 2003, utilizando centenas de

homens e até mesmo caminhões táticos conhecidos como “brucutus”. No entanto, para

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lideranças comunitárias da PPL, a nova ocupação militar nada mais era do que a prova

definitiva de que as autoridades municipais e estaduais não possuíam qualquer política

pública consistente de combate ao tráfico de drogas que se instalou na favela, como

evidencia, a seguir, o relato de um dos informantes entrevistados pela pesquisa:

“Não vamo aceita isso não, aí. Quem que ele tá pensando que é, pô? Só porque o Roni foi o cara durante uns tempo aí tá achando que é chegar assim e empurrá o bagulho dele em nós? Né assim não véio... Não é assim mesmo. Tamo ligado que as outras quadrilhas tudo já pagaram boi pro cara. Mas com a gente não vai tê essa moleza não. Se quisé vai tê que vim aqui pegá. E vai tê guerra, sabe por que? Porque nós é sinistro mesmo, véio. Se vié aqueles cruza caminho pro nosso lado nós senta é o dedo mesmo, tá ligado? Se vié vai tê morte, vai tê guerra” (L. G. F. C., traficante da ‘Boca do Terreirão’, região Nordeste da Pedreira Prado Lopes, em 12/10/2003).

No primeiro semestre de 2004, mais uma vez acuada pelo crescimento vertiginoso das

taxas de criminalidade violenta na PPL, a Secretaria de Defesa Social implantou um

programa de policiamento comunitário na favela, intitulado “GEPAR” – Grupo

Especializado em Patrulhamento de Áreas de Risco -, além de incluir a Pedreira em um

programa de controle de homicídios intitulado “Fica Vivo”. Apelava-se para uma

experiência que já havia sido conduzida na favela Morro das Pedras, na região Oeste, e que

havia conseguido reduzir sensivelmente o índice de criminalidade naquela comunidade.

Em um primeiro momento, o policiamento comunitário surtiu certo efeito.

Praticamente todos os principais líderes da quadrilha do “Terreirão” foram presos, ainda

que muitos moradores da Pedreira insistam em dizer que tais prisões só aconteceram

porque os traficantes leais a Roni Peixoto passaram a trabalhar como informantes da

polícia, repassando aos militares valiosas informações sobre os rivais. Na guerra de

informações, verdadeiras ou não, traficantes do “Terreirão” disseram, na ocasião, que os

integrantes da quadrilha de Roni não eram presos porque pagavam vultosas somas aos

policiais que trabalhavam na favela.

Coincidência ou não, fato é que praticamente todos os líderes do “Terreirão” foram

tirados de circulação pela polícia, assim como a maioria do armamento da quadrilha. Isto

enfraqueceu sensivelmente o grupo e fez com que todos os seus membros tivessem que

deixar a Pedreira em meados de abril e maio de 2004. Por um curto período, a quadrilha de

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Roni Peixoto voltava a dominar praticamente todo o tráfico da PPL, matando apenas alguns

antigos desafetos que se atreveram a não deixar a favela. De acordo com moradores, várias

armas chegaram à Prado Lopes e a quadrilha ganhava dinheiro como nunca.

No entanto, a polícia não parou de investir contra o tráfico. Enquanto a quadrilha de

Roni Peixoto deixava para trás de si um rastro de sangue jamais visto na PPL, um a um

seus líderes começaram a ser detidos. Em maio e junho de 2004, a prisão de dois

importantes “gerentes” da quadrilha de Roni desestabilizou todo o grupo. O primeiro a ser

preso foi o traficante Daniel Acácio dos Santos, o “Malandrinho”, suspeito de vários

assassinatos e tido como o principal responsável pela vitória que o grupo tinha conseguido

meses antes sobre a quadrilha do “Terreirão”. O segundo a ser tirado de circulação foi

Wanderson da Silva Quirino, o “Som”, um dos mais antigos e importantes “gerentes” de

Roni Peixoto.

A prisão destes dois e a apreensão de um grande volume de armas pesadas deixou a

quadrilha vulnerável. Com isso, começaram a surgir as primeiras dissidências dentro do

próprio bando e até mesmo a quadrilha do “Terreirão” voltou ao aglomerado para tentar

reocupar os territórios perdidos meses antes. O principal grupo dissidente do bando de Roni

Peixoto instalou-se na região da rua Marcazita e Escravo Isidoro, parte Nordeste da favela,

próximo ao próprio “Terreirão”. Depois de declarar a sua independência, a “boca da

Marcazita” passou a ser comandada pelos irmãos “Nego” e “Fio”, este último morto pela

Polícia Militar em agosto de 2004, poucos minutos depois de comandar um ataque aos

traficantes da rua Carmo do Rio Claro, uma das mais importantes e lucrativas “bocas” de

Roni Peixoto.

Ainda em agosto de 2004, quando este estudo estava sendo concluído, um grande

confronto entre gangues estava instalado nas Pedreira. Os principais combates eram

travados quase que diariamente entre a quadrilha de Roni Peixoto e os dissidentes da rua

Marcazita. Por terem reconquistado seu espaço há relativamente pouco tempo, os

traficantes do “Terreirão” limitavam-se a observar os confrontos e a conseguir novas armas

para ter condições de defender seus pontos de venda contra novas investidas que

certamente viriam após ser resolvida a contenda entre a gangue da Marcazita e a de Roni

Peixoto, como podemos verificar no depoimento a seguir:

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“O pessoal da Carmo do Rio Claro (quadrilha fiel ao comando de Roni Peixoto) tá matando todos os nossos ‘atividade’ (olheiros ou vigias do tráfico) para poder pegar nossas boca de assalto na manha. Mas não vai tê boi pra eles não porque nós vamo revidá. Pra cada um que caí do lado de cá, vai tombá é dez do lado deles. Já mataram meu irmão na semana passada e isso não vai ficá barato. Vai corrê sangue, vai tê muita morte. O movimento aqui era bom pra todo mundo ficá na moral. Mas eles ficam com o olho grande porque nós tamo prosperando, sabe qualé? E eles não pode vê ninguém ficá bonito na fita que já qué tomá a boca, ao invés de aprendê a trabalhá. Tão vindo aqui direto e reto e zuando o plantão. Então agora não vai te sossego não. Agora vai sê é guerra mesmo” (Traficante conhecido como “Nego”, um dos líderes da gangue da rua Marcazita, em 12/08/2004).

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CAPÍTULO 5: O panorama atual da criminalidade e a estrutura do tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes

“É ‘pou’, ‘pou’, ‘pou’, três pipoco e o cara já deita” (F.P.E., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes)

Acreditamos que já tenha ficado claro que é quase impossível falar em violência e

criminalidade na PPL sem falar em tráfico de drogas. Justamente por isso, é preciso

entender como funciona esta atividade na Pedreira. É necessário compreender todos os

aspectos inerentes à sua logística, todos os seus mecanismos de atuação e todas as formas

pelas quais as quadrilhas ligadas à sua exploração exercem seu poder. Mais do que nunca, é

fundamental que se entenda como o tráfico de drogas se consolidou na Prado Lopes da

maneira como se vê nos dias de hoje.

Encravada na região Noroeste de Belo Horizonte e com uma área de pouco mais de

142 mil metros quadrados, a Pedreira é hoje, segundo levantamentos do Serviço de

Inteligência da Polícia Militar, um dos maiores centros de entrada e distribuição de drogas

da capital mineira - até porque está estrategicamente próxima ao centro da cidade e é

servida, em sua margem Leste, pela avenida Presidente Antônio Carlos, um dos maiores

corredores de trânsito de BH.

De acordo com informações recebidas pela polícia, todas as semanas, diversos

carregamentos de crack, cocaína e maconha chegam às mãos dos narcotraficantes da Prado

Lopes, vindos de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, além de países como a

Bolívia e o Paraguai. E, em seu rastro, estas drogas também trouxeram para a Pedreira as

armas, os enfrentamentos e as mortes de dezenas de pessoas nos últimos anos. Por isso,

torna-se fundamental, desde já, afirmar que a criminalidade na Pedreira possui, sim, ligação

com o tráfico e o consumo de drogas. Na PPL, todas as gangues se organizam em torno das

atividades inerentes à venda das drogas. E é justamente em função delas que se enfrentam e

se matam.

Portanto, mais uma vez, é preciso ressaltar que, talvez mais do que em qualquer outra

favela violenta de Belo Horizonte, não há como tentar entender a violência e a

criminalidade que se manifestam na Pedreira Prado Lopes, sem antes entender os mais

diversos aspectos assumidos pelo tráfico na região. E não apenas os aspectos monetários da

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atividade. Em momento algum será colocado aqui que o tráfico representa apenas uma

saída economicamente viável para as dezenas de adolescentes que dele participam na

Pedreira. Muito mais do que uma forma de ganhar dinheiro, o tráfico de drogas é, para estes

garotos, um estilo de vida. É uma maneira de deixar de ser socialmente anônimo e quebrar

o miserável ciclo de discriminação e preconceito aos quais eles são submetidos desde a

infância. Em meio a muitos garotos da PPL, fazer parte do tráfico de drogas tornou-se uma

forma de poder, de status; fazer parte do “movimento” significa ganhar visibilidade social,

ainda que pela força bruta das armas e pelo terror das ameaças.

Durante entrevistas realizadas com rapazes que fazem parte do tráfico a Pedreira,

observou-se claramente que, para eles, fazer parte de uma quadrilha de traficantes significa

fazer parte de uma família, significa ter respeito, admiração, visibilidade. Significa sair do

anonimato imposto pelo fato de viver em uma comunidade de miseráveis e ter uma vida

diferenciada. Uma vida de emoções, de aventuras, de poder, de glórias e lances heróicos.

Uma vida completamente diferente daquela que foi reservada a seus pais19.

Na PPL, o tráfico não se consolidou apenas como mais uma modalidade criminosa. O

“movimento” se arraigou a tal ponto na vida da comunidade que, sem risco de cometer

exageros, pode-se dizer que, entre muitos jovens, ele acabou por constituir-se em uma

subcultura do gueto. Uma subcultura que desestabiliza todas as instituições de sociabilidade

com as quais tem contato, como família, igreja e associações comunitárias, confirmando as

idéias de Soares (2000).

A tirania do tráfico na PPL fez com que todos os valores inerentes à sociabilidade

popular fossem substituídos pelas leis e valores dos grupos armados que atuam na favela.

Passou a valer a lei belicista do mais forte, com suas divisões feudais de território. Em

alguns períodos bastante recentes de sua história, a comunidade da PPL se viu como que

vassala de senhores feudais que, por disputarem o mesmo território, impuseram leis

recorrentes aos tempos em que os povos se orientavam pela barbárie. Afinal de contas,

onde mais, senão em uma favela sitiada pela guerra do tráfico, seria possível observar-se a

imposição de um “toque de recolher”? Onde mais é possível observar o fechamento de

postos de saúde e estabelecimentos comerciais por ordem daqueles que, hoje, se

assemelham a barões ou senhores feudais que exercem o mais tirânico domínio sobre suas

19 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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terras? Onde, senão em uma comunidade impregnada pelos valores de uma autêntica

subcultura da violência, seria possível ver garotos ostensivamente armados, postados em

determinadas esquinas, revezando-se em turnos fixos, como se fossem guardiões de um

castelo prestes a ser atacado?

Por isso, por mais que possa parecer insistente e repetitivo, é preciso que fique

bastante claro que não há a menor possibilidade de se tentar entender a violência a e

criminalidade na PPL sem antes compreender a dinâmica social e a logística do tráfico de

drogas que se instalou na região. Isso porque, ora de forma direta, ora de forma indireta, a

convivência com o tráfico permeia e controla todos os mais diversos aspectos da vida da

comunidade da PPL. Desde os aspectos mais básicos, como o direito à vida e o direito de ir

e vir, até as mais difíceis e trabalhosas conquistas comunitárias, como a implantação de um

posto de saúde na vila e a ampliação de becos e vielas da favela.

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5.1. Relatos

5.1.1. Os moradores (a) “Eu só fui saber que meu outro filho também tava metido com isso aí no dia que eles arrebentaram a porta da minha casa e entraram aqui pra dentro com as arma na mão. Aquele bando de menino sacudia um tanto de arma e perguntava onde é que tava meu filho. Eles quebraram a casa toda, chutou minha mesa, deu tiro na televisão, quebrou tudo que tinha na frente. Eu disse que não sabia do meu menino, que não via ele tinha uns três dias já. Mas não adiantou porque eles colocou a arma no meu peito e me arrastou para fora de casa. Me deram tapa na cara na frente de todo mundo, chute na barriga e bateram com as arma na minha cabeça. Foi muita humilhação, só eu é que sei. Eles falou que se meu menino não aparecesse para morrer que nem homem, eles ia voltar e matar a família toda. Eu fiquei lá no meio da rua, todo machucado, sem poder fazer nada. Ia fazer o que? E o pior é que todo mundo na rua viu, mas ninguém faz nada porque não tem jeito não. Se você fala qualquer coisa, eles fica sabendo e já vem pra cima de você com aquele tanto de arma e mata mesmo. Todo mundo sabe quem é, mas não adianta porque quando eles tão de guerra - é guerra que eles fala, né? – eles mata mesmo, não quer nem saber quem é. Todo dia o negócio é sair de casa e nem olhar pro lado, porque se eles cisma com você, você tá perdido. E todo mundo vive assim. Esse bando de menino fica no meio da rua de arma na mão e você tem que fingir que não tá vendo nada. Tem vez que, de noite mesmo, eles passa na rua tudo junto, com aquelas touca na cabeça e carregando umas arma grande assim. É tudo uns menino novo, tudo daqui da Pedreira mesmo, mas parece guerra, cê precisa de ver. O negócio é fechar a porta e a janela e fingir que não tá acontecendo nada. Porque quando eles tá assim, pode saber que eles vai matar alguém. E eles pega na covardia. Junta tudo num só e enche de tiro no meio da rua. E mata de graça. Mata porque falou uma coisa que o outro não gostou, mata porque é inimigo, mata por causa de mulher, mata porque ta vendendo droga pra eles. É assim mesmo que acontece e ninguém pode falar nada. Isso aqui é onde o filho chora e a mãe não escuta, moço... O pior disso tudo sabe o que que é, menino? É que as família não tem nada a ver com a guerra deles. Mas sempre é o filho é que faz e a família é que paga. Eu sou viúvo e tenho dois menino. Um, eu morri de tanto falar na cabeça dele, mas não adiantou. Um dia eles pegou meu menino e matou ele com um tanto de tiro no meio da rua. O outro tá preso. E eu acho que é até melhor tá assim mesmo, porque assim pelo menos ele fica vivo” (J. G. F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes, em 21/03/2003).

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(b) “Era mais ou menos umas dez e meia quando comecei a escutar os grito. Pela minha porta deu para ouvir que era um rapaz correndo de uns três que tavam atrás dele. Ele corria pelos beco gritando e batia desesperado nas porta pedindo pelo amor de Deus para abrir. Ele batia, batia, batia, pedia ajuda, pelo amor de Deus. Mas ninguém abria que ninguém é doido de acudir numa situação dessas, né? Os que tava atrás dele só gritava: ‘vai morrê, filho da puta, vai morrê!’ Ai comecei a ouvir só os pipoco. Parecia que eles corria atrás do coitado e atirava pelos beco. Pelo que deu pra ouvir, eles vieram tudo pelo Beco do Profeta e fecharam o rapaz no São Geraldo mesmo. Foi muito tiro, muito tiro, e bem perto da minha porta. Tava um silêncio danado na favela e só dava pra ouvir o cara pedindo pelo amor de Deus, pelo amor de Deus. Eles encheram ele de pipoco e um gritava sem parar: ‘viu mané? Viu mané?’ Foi uma coisa horrorosa, porque você não pode se meter. Tem que ouvir o cara morrê na sua porta e não pode fazer nada. Se entrar no meio, leva azeitona junto com quem eles tá caçando. Tem que ouvir tudo e fingir que não tá acontecendo nada. Às vez você até reconhece a voz de quem é que tá gritando, as voz de quem é que tá cobrando a parada. Aí você até encontra com eles na rua no dia seguinte. Mas tem que fingir que não ouviu nada, que não rolou nada. E assim vai levando a vida. Se o cara morrê cheio de bala na sua porta, você tem que deixar como tá porque senão eles cobra mesmo. E quando eles cisma que cagüetou ou chamou os homi, acabou procê. É caixão e vela preta” (W. S. C., 31 anos, desempregado, morador da Pedreira Prado Lopes em 11/02/2004).

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5.1.2. A Polícia:

(a) “Aquilo é uma guerra, meu irmão. A Pedreira é uma guerra. Eu me atrevo a dizer que é o tráfico mais organizado de Belo Horizonte. Tanto que cê nem vê muita morte por lá. Mas é aquela correria, aquele movimento o dia inteiro. Dia e noite, dia e noite, tem nêgo lá vendendo droga e movimentando na ‘boca’. A gente passa lá à paisana e fica só fragando o movimento. Pega a boca do Terreirão, por exemplo. Lá o movimento é feroz mesmo. Vendem o dia inteirinho... Sem parar. É entra e sai o dia inteiro, precisa de ver. Tem informante nosso que garante que eles movimentam lá é coisa de R$40 mil por dia. Por dia, velho! É por dia que eu to falando, saca? Não é brincadeira não, meu irmão. E as armas então? Tem nêgo lá com PT dourada, cê já viu alguma dessas? Só em filme americano, meu irmão. Outro dia passamos por lá e o Gulu tava lá com essa PT dourada na mão, mostrando pra quem quisesse ver. Tava debaixo do braço dele, parecia um canhão. Deve ser calibre 45 aquilo, nunca vi igual. E cê sabe o que começou a chegar pra eles há pouco tempo? Cê sabe o que? Baby, meu irmão. Fuzil baby calibre 556. Tá vindo tudo do Rio. Essa última leva os cara deram a fita pra gente que chegou numa Kombi., durante o final de semana. Os caras lá tão prontos pra uma guerra. Antes o movimento era todo do Roni Peixoto. Ele mandava em todas as bocas e controlava tudo. Depois que ele foi preso, começou aquela guerra das gangues de cima contra as gangues de baixo. Isso durou uns bons anos, até que sossegou de novo. Agora que o Roni saiu da cadeia, ele quer retomar todo o seu território. Tanto que ele já controla todas as bocas de novo, menos a do Terreirão, que é a única que não abriu as pernas pra ele. E vai ter guerra se esse povo não chegar num acordo lá. Porque ele já mandou avisar que a boca vai ser dele de qualquer jeito e não vai ter conversa, ele vai mandar matar mesmo” (cabo-PM R. S. L., agente do Serviço de Inteligência do 34o Batalhão da Polícia Militar, em 05/11/2003).

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5.1.3. Os Traficantes:

(a) “A Pedreira tá em guerra. Tem muita gente andando armada nas ruas, fazendo a segurança das bocas. O foda é que a Pedreira mesmo era pra ter só uma quadrilha comandando o movimento. Mas tem sempre que aparecer uns cruza caminho, sabe cumé? Cruza caminho é aquele cara que tenta tomar nossas bocas de assalto. Tenta invadir nossa área para tomar nossos pontos de venda. E não era pra ser assim, cara. Não era. A gente tá nessa tem um tempão já e não era para ter guerra. Esses cara da parte alta plantaram na boca tem pouco tempo e já tão querendo tomar nossos ponto de assalto? Qualé, veio? Né assim que funciona não. E o pior de tudo é que não precisava tá essa guerra porque foi todo mundo criado junto aqui mesmo. Não precisava ter guerra. Mas acaba que cada um segue seu caminho, né? É foda também porque a gente vê que eles tão mais bem armado do que nós. Eles têm metralhadora, fuzil, pistola e muita arma pesada. E tão sempre tentando tomar nossas boca de assalto. Direto eles tão descendo de oito ou dez, tudo de touca ninja na cabeça e arma na mão pra tomar nossos ponto. Só que tem que vê que arma na mão de vacilão não serve pra nada, né? O mais importante nessas hora é a disposição. Eu me garanto com qualquer revólver. E eu tenho amor à minha vida, né? Se não andar armado vai pro cemitério mesmo, véio. Meu revólver é meu parceiro e ele não me deixa na mão. Como é que eu comecei? Ah, veio... Comecei de bobeira. Cê sempre começa de bobeira. Comecei fumando maconha. Daí acabei entrando pra essa vida. Primeiro cê fuma, depois começa a vender um pouco, sabe cumé? Aprontando uma correria pra adiantar meu lado, né? Aí, véio, um dia cê acorda e já tá na boca de arma na mão. E o foda é que cê não pára. Não pára porque tira muita grana. Eu mesmo já cheguei a tirar R$900,00 por dia. Aí eu fiz minhas economia que é para última precisão mesmo, saca? Vou deixar tudo pro meu filho e pra minha mulher. Quero garantir o futuro do meu menino pra ele não seguir meu caminho. Mas a grana que entra a gente gasta em carro e roupa. A gente tira onda, sabe cumé? O pessoal da parte alta não. Eles só gasta em arma e droga, arma e droga. Por isso é que tão mais bem armado do que a gente. Medo de morrê? Tenho não, véio. Sei que o destino de quem ta nessa vida é algema ou cemitério. A única coisa que eu sinto falta é da vida que eu tinha antigamente. De poder andar pra todo canto sem preocupação, de poder ir em qualquer lugar, saca? Disso eu sinto falta” (D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 31/05/2002).

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(b) Dessas arma tudo aí só o oitão que é meu. Mas foi o pessoal do Vera Cruz que trouxe as arma pra gente. Na Pedreira arma é fácil, fácil. Com R$200,00 você descola um oitão. As PT são mais difícil. Mas com R$350,00 ou R$400,00 cê arruma uma. Não sei dizê se foi a polícia que arrumou pro pessoal do Vera Cruz. Porque isso tudo é arma de polícia, né? A guerra tinha parado no começo do ano, depois que o Babão morreu. Mas a gente agora tá de guerra de novo com o pessoal do Coração. Eu mesmo já troquei tiro com o Coração. E não tenho medo de morrê nessa vida não porque sei que bala perdida ou trocada não tem dono. Olha procê vê cumé que são as coisa. Na quarta passada os homi me pegou e me levô pra delegacia. Me levaram pro juizado e me colocaram na rua de novo. A coisa funciona é assim, véio” (M. F. S., 14 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, ao ser apreendido pela PM no dia 21 de dezembro de 2000, em um barracão da rua Carmo do Rio Claro. Com ele e mais três rapazes, os militares encontraram 200 pedras de crack, três revólveres calibre 38, duas pistolas semi-automáticas calibre 380, uma espingarda e duas submetralhadoras calibre 9 milímetros, em 21/12/2000). (c) “Entrei pro crime com uns 16 anos. Entrei porque era viciado em crack e tinha que sustentá o vício, né? Comecei e metê uns assalto e fazer uns aviões de vez em quando. Eu comprava o bagulho mais barato com o pessoal considerado aí e vendia mais caro pros bacana. Só que em 99 eles mataram meu irmão. Meu irmão que me deu o apelido. E eu corri atrás mesmo. Me vinguei. Matei ele também. Na favela, ou você mata ou você morre. E antes que me matem, eu mato. E a gente vive de guerra. Os contato leva as arma lá pra gente e a gente vive de guerra. Mas eu não tenho esse tanto de homicídio que tão querendo jogar pra cima de mim não. Muitos desses aí foi rival meu que matou e eles fica querendo jogar nas minhas costa. Um cara que a polícia fala que eu matei era meu parceiro. Vê se eu ia jogar parceiro meu pra trás? Eles precisa aprender a trabalhar direito e jogar nas costa de quem deve mesmo. Não é nas minha não” (C. P. S., 20 anos, conhecido como Coração, traficante da parte alta da Pedreira Prado Lopes, preso no dia 28/12/2000, depois de trocar tiros com seis policiais civis em uma rua da favela).

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5.2. O Cenário

Apesar de incontáveis investigações policiais já terem demonstrado que o tráfico de

drogas possui uma posição consolidada na PPL há mais de duas décadas, um aspecto em

especial chama a atenção nas entrevistas realizadas com moradores da região: praticamente

todos são unânimes ao reclamar que, durante todo este tempo, a opinião pública nunca

tomou pleno conhecimento do verdadeiro regime de terror e violência imposto na favela

pelas quadrilhas ligadas ao “movimento”. Justiça seja feita, durante os dias é muito difícil

notar qualquer movimentação anormal. Isso acontece porque, neste período, grande parte

das quadrilhas da favela se recolhe em seus esconderijos e, conseqüentemente, a

movimentação gerada pelo tráfico vive seu momento de maior calmaria.

Tanto que quem não é morador local é incapaz perceber qualquer tipo de

anormalidade. Durante os dias, os sinais do tráfico são muito discretos e pouco evidentes.

Observa-se um garoto ou ouro parado nas esquinas durante horas a fio sem fazer

aparentemente nada. Observa-se que alguns rapazes ficam simplesmente o dia inteiro

sentados em determinadas calçadas do morro, aparentemente sem qualquer atividade. São

os “olheiros” ou, como eles mesmo gostam de se chamar, os “atividade”. Garotos que

nunca carregam armas ou drogas. Mas que, em troca de pequenas somas em dinheiro ou

porções de drogas, se encarregam de avisar os traficantes de qualquer movimentação

estranha, seja ela da polícia ou de uma quadrilha rival.

Observa-se também que, discretamente, alguns táxis entram no morro sem

passageiros e, minutos depois, retornam igualmente vazios. São os chamados “mulas” do

tráfico, ou seja, taxistas que pegam carregamentos de drogas e ficam responsáveis por levá-

los a outras favelas da capital. Sem passageiros, eles nunca levantam suspeitas da polícias e

o risco de serem abordados em uma blitz é mínimo. Mas, salvo estas raríssimas exceções, o

que se vê é o que se vê em qualquer favela ou vila da capital: centenas de pessoas nas ruas,

ocupadas com seus afazeres e realizando suas tarefas cotidianas. Chama também a atenção

a imensa quantidade de adolescentes e crianças que, fora do período escolar, sem qualquer

ocupação ou atividade supervisionada, passam a maior parte de seus dias brincando pelas

ruas do aglomerado.

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Durante as noites, em compensação – justamente quando os olhos da opinião pública

se tornam completamente alheios à realidade das favelas -, é possível ver do que os

moradores reclamam durante as entrevistas. É como se a Pedreira se transformasse.

Obedecendo a um toque de recolher informal, a maioria da comunidade se tranca dentro de

casa, para dar lugar a um cenário completamente diferente daquilo que se vê durante os

dias. À noite, determinadas ruas da favela tornam-se proibidas para a população em geral.

Estas pequenas vias são tomadas por grupos de adolescentes ostensivamente armados, que

vigiam qualquer movimentação e determinam quem pode ou não passar por elas. Em sua

grande maioria, são todos garotos criados no próprio morro. Adolescentes que, de um dia

para o outro, se associaram às quadrilhas de traficantes da região e se tornaram o pesadelo

dos moradores da PPL.

É precisamente ao cair da noite, que a Pedreira Prado Lopes deixa de ser apenas o lar

de toda uma comunidade de trabalhadores para se transformar no “paraíso do crack” de

Belo Horizonte. Ao escurecer, as ruas da Pedreira são tomadas por toda sorte de pequenos

criminosos e viciados, que passam noites inteiras entrando e saindo dos becos da favela, em

busca de pequenas porções de droga.

Para garantir a segurança de seu negócio, as principais vias de acesso ao morro são

ocupadas por grupos de garotos que, através de assovios, gritos previamente combinados ou

até mesmo telefones celulares, encarregam-se de manter os traficantes informados sobre

qualquer movimentação suspeita dos inimigos, ou sobre a possível, mas sempre

improvável, chegada da polícia. Se durante os dias a Prado Lopes serve como lar para

milhares de trabalhadores honestos, que saem de suas casas tão logo o sol nasce e só

retornam a elas quando o mesmo se põe, durante as noites, uma verdadeira feira livre das

drogas se instala em suas ruas. Forma-se ali um mercado milionário que, segundo

traficantes e moradores, conta com a conivência ou até mesmo a participação de vários

policiais militares que fazem o patrulhamento da região20. Alguns poucos bares que ficam

nas principais ruas da favela transformam-se em freqüentadíssimos pontos de venda de

drogas, assim como várias esquinas do morro, principalmente aquelas que ficam próximas à

avenida Presidente Antônio Carlos.

20 Ver anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários; anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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Nos finais de semana, o movimento é muito maior do que durante os dias normais. Na

Pedreira, a grande festa das drogas começa na tarde de sábado e vara a madrugada até a

manhã de domingo. O cruzamento formado pela avenida José Bonifácio com o começo das

ruas Carmo do Rio Claro e Araribá torna-se o ponto mais movimentado da favela. Ao som

estridente de funks ou raps, dezenas de adolescentes circulam pela região, sob os olhares

atentos dos traficantes que controlavam a festa e toda a movimentação. As “bocas-de-

fumo” vendem como nunca e registram uma movimentação financeira assustadora.

Compradores formam filas indianas em frente aos pontos de venda e têm sua atenção

chamada pelos traficantes se provocam algum tipo de tumulto ou se desentendem entre si.

Por conta da intensa movimentação provocada por esta “feira livre das drogas”,

forma-se às margens da Pedreira um cenário de completa degradação e sujeira. Atraídos

pelo grande número de pessoas, pelas drogas e pela imensa quantidade de dinheiro que

circula nas regiões das “bocas-de-fumo”, centenas de mendigos e garotos de rua se instalam

nas adjacências das ruas Araribá e José Bonifácio, formando um dos mais explícitos e

degradantes quadros de miséria humana possíveis de serem vistos na capital mineira.

Completamente drogados de tanto cheirar pequenos panos embebidos de solventes, vários

garotos de rua passam a noite assaltando motoristas nos semáforos da região, como foi

demonstrado em capítulos anteriores. Tudo isso na esperança de conseguir dinheiro

suficiente para comprar algumas pedras de crack que, se obtidas, são avidamente

consumidas no meio da rua, em frente a quem quer que seja. O único cuidado tomado por

estes garotos é o de se afastar um pouco das “bocas-de-fumo”, para não sofrerem alguma

retaliação por parte dos traficantes, que sempre se preocupam com a imagem negativa que

este descontrolado e imprevisível tipo de viciado pode trazer para a porta de seu

“estabelecimento”.

Na gíria policial de Belo Horizonte, os viciados em crack são chamados de “noiados”,

uma referência clara à palavra “paranóia”. Tal termo foi provavelmente adotado porque

esta talvez seja a descrição mais aproximada que já se encontrou para definir o efeito

provocado pela droga. Assim como aqueles que manifestam algum estado paranóico, os

usuários de crack costumam ter reações imprevisíveis, intempestivas e até mesmo

violentas. Como tal comportamento pode atrair a presença da polícia, os traficantes fazem

questão de manter os “noiados” afastados das “bocas-de-fumo”, usando até mesmo de

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violência, se assim o for necessário. Os viciados também são chamados de “pedretes”, em

alusão às pedras de crack que eles consomem

Além de trazer problemas aos traficantes, sua mendicância por pequenas sobras de

drogas prejudica o movimento dos pontos de venda. Viciados crônicos, alguns “noiados”

rondam as filas de compradores, implorando alguma sobra de droga. E isso irrita os

traficantes que, não raramente, expulsam-nos a tapas, socos ou pontapés de perto das

“bocas”. Trata-se de um cenário de miséria humana dos mais contundentes. Reduzidos a

trapos imundos, os viciados crônicos simplesmente não conseguem se afastar das “bocas-

de-fumo”. Mesmo depois de escorraçados pelos traficantes, alguns continuam voltando aos

pontos de venda e não deixam de fazê-lo enquanto não levam uma surra mais violenta ou

até mesmo um tiro em algum membro do corpo. Alguns estabeleceram até mesmo

pequenos “acampamentos” nas calçadas da avenida Antônio Carlos, próximo a lojas e

postos de gasolina abandonados, para poderem ficar mais perto das “bocas” e tentar

conseguir alguma sobra de crack.

No caso da Prado Lopes, aliás, os “noiados” costumam tirar proveito da proximidade

estratégica que se estabeleceu entre a avenida Presidente Antônio Carlos e as “bocas-de-

fumo” da rua Araribá: basta cometer pequenos assaltos na avenida para conseguir dinheiro

suficiente para comprar o crack. Depois de adquirida nas mãos dos narcotraficantes, a

droga é consumida a aproximadamente 100 metros das “bocas” da Araribá, novamente nas

calçadas próximas à avenida Antônio Carlos. E foi justamente este cenário caótico e

degradado de uma autêntica praça de venda e consumo livre das drogas que fez com que a

região localizada entre a rua Araribá e a Avenida Antônio Carlos fosse ironicamente

batizada no meio policial como “crackolândia”.

Alguns traficantes que atuam na PPL garantem que, somente através do sistema de

varejo, todas as “bocas-de-fumo” da Pedreira juntas negociam, por noite, cerca de dois

quilos de crack. Para se ter uma idéia do poderio econômico deste comércio, deve-se levar

em conta que um grama de crack é o suficiente para confeccionar quatro pedras da droga.

Como cada pedra é vendida, geralmente, a R$5,00 ou R$10,00, chega-se à impressionante

soma de R$60 mil negociados por noite na PPL, em média, apenas em crack. Se esta

contabilidade informal estiver correta, chega-se a um mercado que movimentaria, por mês,

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a impressionante soma de R$1,8 milhão, ou o equivalente a US$600 mil. Por ano, pode-se

chegar à quantia de US$7,2 milhões movimentados apenas com a venda de crack.

Grande parte de todo este dinheiro é reinvestido na compra de drogas, assim como na

obtenção de armamentos cada vez mais pesados, que servem para garantir a segurança da

quadrilha. Em um mercado que não possui qualquer tipo regulamentação legal, não

sobrevive apenas aquele que consegue oferecer o melhor preço: sobrevive principalmente

aquele que, pela força das armas, consegue estabelecer e manter um ponto de venda em um

local seguro, porém de fácil acesso. Essa característica da territorialidade é fator

determinante porque, no caso da PPL pelo menos, o usuário contumaz de crack sempre

estabeleceu uma relação de fidelidade para com o local onde ele compra sua droga, não

necessariamente com quem a vende. Portanto, o estabelecimento de um bom ponto e,

principalmente, sua manutenção constituem prioridade para o traficante.

5.3. O Envolvimento

Ainda que hoje seja possível observar a participação de vários jovens nas quadrilhas

de traficantes da PPL, pode-se dizer que o envolvimento de todos eles com o tráfico não

aconteceu de forma repentina. Muito antes pelo contrário, a entrada destes garotos para as

quadrilhas foi um processo lento e gradual. Os que atualmente engrossam as fileiras das

gangues, por exemplo, começaram a se envolver com o “movimento” há vários anos, mais

precisamente no início da década de 1990, quando a maioria ainda estava entrando na

adolescência. Vejamos, a seguir, o depoimento de um dos entrevistados:

“Não consigo entender como é que esse bando de menino ficou desse jeito. Quando era pequeno, ficava tudo por aí, brincando junto no meio da rua. Agora fica esse negócio de guerra aí que não dá pra mim entender. Fica andando pra cima e pra baixo com arma na mão, tudo dando tiro um no outro como se fosse inimigo. Mas é tudo menino daqui mesmo, é tudo menino que a gente viu crescer aqui na Pedreira mesmo, como é que pode? Acho que é esse trem de droga que estraga tudo. É esse trem de droga que faz isso com esses menino aí” (J. G. F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes, em 21/03/2003).

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Em uma comunidade relativamente pequena como a Pedreira Prado Lopes, todos

sabem um pouco sobre da vida de todos. Por isso, quando são perguntados sobre os garotos

que hoje fazem parte do tráfico, muitos moradores são capazes de lembrar dos tempos em

que, longe de serem os criminosos temidos que são hoje, eles eram crianças que brincavam

pelas ruas da Pedreira. Muitos rapazes que foram capazes de resistir às tentações do poder e

do dinheiro fácil que o tráfico traz contam, inclusive, sobre as amizades que mantinham

com aqueles que hoje fazem parte do “movimento”. E são justamente estas histórias que

tornam possível tentar traçar, ainda que de forma incompleta e parcial, a história de vida

dos meninos que hoje fazem parte das gangues que atuam na Pedreira.

Observa-se que, assim como a imensa maioria dos garotos da Prado Lopes, todos os

rapazes que hoje fazem parte de alguma quadrilha de traficantes são filhos de famílias

extremamente pobres do aglomerado e, na infância, estudaram em alguma das três

deterioradas escolas públicas que ficam nas proximidades da favela. Moradores mais

antigos da comunidade comentam que, no início da década de 90, era muito comum ver

todos aqueles garotos juntos pela manhã, descendo as ruas da Pedreira para ir à escola.

No entanto, jovens que, naquela época, tiveram a oportunidade de estudar ao lado dos

atuais traficantes confirmam que, já no início da adolescência, praticamente todos eles já

apresentavam um histórico escolar bastante problemático. Com um rendimento muito

abaixo da média e várias repetências no currículo, a maioria deles ia deixando de ter

interesse pelos estudos seguindo aquela que parece ser a sina de quase todos os moradores

da PPL: de acordo com estudos realizados pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,

cerca de 80% dos moradores da Pedreira abandonam a escola tão logo completam o

primeiro grau, ou até mesmo antes disso21.

Quando perguntados sobre a razão de terem largado os estudos tão cedo, os rapazes

que hoje fazem parte do tráfico costumam oferecer as justificativas mais diversas. No

entanto, praticamente todas as explicações oferecidas dizem respeito à suposta inutilidade

do ensino, do estudo e da escola na melhoria das condições de vida dos favelados. A

imensa maioria destes garotos demonstra não acreditar na melhoria das condições de vida

pela via dos estudos. Todos também são unânimes em dizer que o processo de abandono da

escola aconteceu aos poucos. E que, quando de repente haviam dado por si, perceberam

21 Ver gráfico 4.

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120

que, apesar de ainda manterem o hábito de ir ao colégio, já não freqüentavam mais as aulas.

Ir à escola havia se tornado apenas mais uma forma de encontrar amigos e namoradas e, ao

mesmo tempo, de se ver livre das possíveis cobranças dos pais, como revela o depoimento

a seguir:

“Ah, véio... Larguei a escola porque não tinha saco pra aquilo não. As professora ficava falando uns lance que não tinha nada a ver, umas parada que não era a real, saca? Ia ficá lá perdendo meu tempo? Eu não! E você aí que é estudado, me fala o que que eu ia ganhar com escola? Aqui na Pedreira mesmo tá cheio de neguinho aí que ficou uma data ralando a bunda em banco de colégio, que tá cheio de diploma e o escambau aí e, quando vai ver, tá mais duro do que eu. Colégio só funciona pra filho de bacana, tá ligado? Aí o playboy vai pra faculdade, vira dotô e vai cuidar da empresa do papai, né não? Agora o negão aqui vai estudar pra que? Pra ficar me humilhando nessas fila de emprego que nem cachorro? Eu não! Esse negócio de escola não adianta nada pra preto e pobre não, véio. Sei lê e escrevê, tá bom. Meus bagulho eu consigo é no ferro mesmo, tá ligado? E consigo mais que muito neguinho que ralou bunda em banco de escola” (R. P. S. O, 15 anos, traficante da parte baixa da Pedreira, em 12/08/2003).

Mesmo nos primeiros contatos, não é difícil notar que estes rapazes nunca receberam

qualquer espécie de incentivo ou definição positiva que os estimulasse a continuar com os

estudos. Sem poder contar com qualquer tipo de incentivo pedagógico, econômico, social

ou até mesmo cultural, observa-se que, desde muito cedo, todos eles desenvolvem uma

completa descrença no papel exercido pelas instituições de ensino. Com toda a certeza,

pode-se dizer que o próprio fato de serem filhos de um lar historicamente sem estudo

dificulta a criação de imagens e definições positivas com relação ao papel da escola22.

Pareceu-me que estes garotos lidam tão de perto com tantos mecanismos de exclusão social

que, já na infância, forma-se em seu imaginário a idéia de que não será a escola ou o estudo

que os impedirão de repetir a massacrante sina de vida dos pais, que sempre foi de muitas

lutas, mas de pouquíssimas conquistas. Não será a escola que irá melhorar sua vida

miserável e dar a ele a tão sonhada visibilidade social.

A partir do momento em que se observa na PPL a falência da instituição escolar

enquanto instância de socialização, confirma-se exatamente aquela que é uma das

22 Ver anexo 3: Entrevista com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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121

principais proposições das teorias da “Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”. A

profunda descrença no papel dos estudos enquanto instrumento de melhoria de vida, de

crescimento pessoal e de projeção social faz com que centenas de crianças e adolescentes

da Pedreira se tornem extremamente vulneráveis ao assédio financeiro e moral do tráfico de

drogas que, por sua vez, encontra neles a mão-de-obra mais do que ideal. As escolas, por

seu turno, não constituem qualquer tipo de atrativo para os garotos da favela, uma vez que

são mal equipadas, completamente deterioradas e trabalham no limite da precariedade em

todos os sentidos23.

Aliás, no que se refere aos jovens da Pedreira, a formulação de uma imagem negativa

não se restringe apenas aos estudos. Outros valores bastante difundidos entre a comunidade

também parecem ter adquirido uma significação bastante pejorativa para estes garotos.

Durante as entrevistas, observa-se, por exemplo, que muitos deles estabelecem um vínculo

direto entre a rotina diária de um trabalhador com a idéia que usualmente se tem de

escravidão. Conversando com alguns destes rapazes, é possível perceber que, apesar de

todos os valores que lhes são ensinados e dos exemplos de retidão moral que possam ter

tido dentro da própria casa, aos poucos, uma imagem bastante negativa da própria rotina do

trabalho foi se formando no imaginário de alguns deles. Em alguns casos, estes meninos

chegam a estabelecer uma relação quase que direta entre o trabalho humilde e a escravidão.

Apesar de ser sempre cercado de dignidade, o exemplo de vida esforçada - porém

miserável - que estes garotos possuem dentro da própria casa serve, em muitos casos, para

fazer com que muitos deles percam a crença na melhoria de sua condição pela via dos

estudos e do trabalho e procurem soluções alternativas para o futuro. Embora diversas

pesquisas já tenham demonstrado que apenas uma minoria ínfima destes jovens opta pela

via criminosa como forma de ganhar a vida, observa-se claramente que o modelo de um pai

esforçado, digno e que se mata de trabalhar durante dez horas por dia para ganhar dois

míseros salários mínimos exerce infinitamente menos atração sobre alguns destes garotos

do que o modelo do traficante que, além de trabalhar pouco, vive cercado de mulheres e

amigos e tem sempre grandes quantidades de dinheiro à mão. Ao contrário do trabalhador,

que se apresenta sempre humilde e resignado, o traficante é capaz de impor, ainda que

23 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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através da exibição ostensiva de armas de fogo, um misto de medo e admiração sobre o

restante da comunidade.

Para muitos destes garotos, a imagem do pai está associada à do escravo, à do “otário”

que trabalha uma vida inteira de forma subserviente e humilhante para fatalmente morrer

anônimo e à míngua24. Ao contrário de tudo isso, a figura do traficante não reproduz no

imaginário destes meninos apenas a imagem do sucesso financeiro. Apesar de moralmente

condenável, o traficante representa, para alguns destes garotos, alguém da comunidade que

deu certo. Alguém da comunidade que conseguiu deixar de ser socialmente anônimo, que

conseguiu o respeito e a admiração dos demais. Alguém que não se sujeitou à uma vida de

escravidão e humilhação. O traficante é alguém forte. Em meio a todas as adversidades de

uma vida sofrida, difícil e miserável, ele é o homem que tomou para si mesmo as rédeas do

próprio destino. Ele é alguém que viverá intensamente, que colecionará aventuras e terá

uma vida repleta de histórias emocionantes para contar, como podemos observar no

depoimento a seguir:

“Minha mãe fica chateada, não gosta que eu mexa com isso não. Mas eu que sô peixe pequeno consigo levantar quase R$300,00 por mês. Quem é forte na boca consegue muito mais. Além disso a gente impõe o terrô, né não? Precisa de vê como é que a mulherada fica doida quando vê a gente com arma na mão, véio. Precisa de vê. E quando a gente sai de uma troca então? Nossa, véio! A gente se sente o bicho. Quando a gente chega num lugar, todo mundo comenta, todo mundo olha com medo. A gente é o terrô, véio. O terrô! Nós é sinistro mesmo” (M. F. S., 14 anos, traficante da parte baixa da Pedreira, em 21/12/2000).

Rapazes que conseguiram continuar nos estudos contam que, já ao final da década de

90, praticamente todos aqueles que hoje fazem parte do tráfico já estavam fora da escola.

Sem poder contar com qualquer atividade que lhes preenchesse o tempo livre, era bastante

comum ver estes garotos todos os dias se divertindo pelas ruas da favela. Sempre em

grupos, jogavam futebol na quadra do Colégio Municipal, freqüentavam os bares, as festas

e começavam a arranjar as primeiras namoradas. Mesmo aqueles garotos que seguiram com

os estudos contam que freqüentavam a escola apenas em meio horário. No restante do dia,

24 Ver anexo 3: Entrevista com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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o tempo era livre e eles também ficavam nas ruas da favela, participando das brincadeiras

juntamente com os colegas que já não estudavam.

Como a maioria dos pais destes garotos trabalhava fora e não tinha qualquer condição

de supervisionar as atividades desenvolvidas pelos filhos, pode-se dizer que muitos

daqueles rapazes foram completamente socializados nas ruas da PPL, em companhia dos

amigos mais próximos ou de alguns vizinhos que, sem ter emprego fixo, passavam vários

dias da semana sem ocupação nas ruas da favela25.

Observa-se na Pedreira, portanto, mais dois dos principais aspectos mencionados

pelas teorias da “Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”, que são a completa

ausência de recreações supervisionadas para as crianças e a falta de controle das atividades

grupais que são desenvolvidas por elas nas ruas da favela. Como foi visto anteriormente, a

violência é, na maioria das vezes, um fenômeno grupal; e é justamente a partir da

socialização das ruas, do contato diário com os traficantes mais velhos e das atividades

grupais não supervisionadas que surgem, entre os becos da favela, as primeiras gangues ou

grupos delinqüentes.

Nota-se também, em muitos casos, a completa ausência de uma estrutura familiar que

seja minimamente responsável pela socialização das crianças e pela supervisão das

atividades que ela desenvolve. Isso porque, na Pedreira, não é raro constatar que muitas

famílias não possuem a figura paterna e são chefiadas por mães que trabalham o dia inteiro

fora de casa. Isso faz com que muitas crianças sejam criadas nas ruas da favela, ou deixadas

nas casas de parentes e vizinhos que mal têm tempo de tomar conta de seus próprios

filhos26. Observa-se a existência de uma infinidade de lares multifamiliares, o que propicia

a formação de um ambiente de muita desorganização e promiscuidade, o que se evidencia

no depoimento a seguir.

“O pai e a mãe sai para trabalhar e não têm com quem deixar os meninos. Aí fica tudo por aí, jogado no meio da rua aprendendo coisa errada, convivendo com esses malandro aí. É porque, se você for ver, aqui na Pedreira tem muita gente boa, mas também tem muito malandro ensinando coisa errada para esses menino aí. (...) E não é que o pai e a mãe sejam largado com eles não. É porque se não trabalhar fora, os filho morre de fome. Aí fica tudo o dia inteiro na rua, brincando por conta

25 Ver anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes. 26 Ver anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes.

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deles mesmo e tudo que eles aprende é por conta deles mesmo. (...) Vira e mexe você vê uns menino de nove, dez, onze ano tomando conta dos irmão mais novo. E isso não tá certo não, porque é justamente nessa idade é que começa a se envolver com essas malandragem aqui da Pedreira” (M. A. F. J., 42 anos, dona-de-casa e moradora da Pedreira Prado Lopes, em 21/03/2003).

Por isso, ao que tudo indica, é justamente no início da adolescência que muitos deles

começam a se envolver de forma mais direta com os traficantes do morro. Utiliza-se a

expressão “se envolver de forma mais direta” porque, quer seja por ação voluntária ou por

omissão forçada, não há como não reparar que sempre existe algum tipo de envolvimento

entre a comunidade da PPL e os traficantes que atuam naquela localidade27. Situada

próxima à região central de Belo Horizonte e disposta às margens de um dos mais

movimentados corredores de trânsito da capital, a Pedreira Prado Lopes é, há pelos menos

três décadas, um dos principais pontos de venda de drogas de BH. E apesar de a

esmagadora maioria da população local não manter qualquer tipo de envolvimento direto

com a atividade, há muitos anos a comunidade da PPL é obrigada a conviver com a

presença ostensiva de criminosos ligados ao comércio de entorpecentes. Além disso,

sempre foi precisamente nos becos e vielas da Prado Lopes que as quadrilhas ligadas ao

tráfico trataram de recrutar seus membros e de renovar seus quadros. Prova disso é que

todos os grupos criminosos envolvidos com o narcotráfico na Pedreira são compostos por

jovens da própria comunidade. Não há morador que não conheça algum traficante ou que

não assista calado o desfile de vários jovens ostensivamente armados pelas ruas da favela.

No caso dos rapazes que hoje fazem parte do tráfico, o envolvimento aconteceu

gradualmente. Ainda novos, mas sempre atraídos pelo misto de medo e admiração que os

traficantes despertaram em muitos adolescentes de comunidades pobres, vários destes

garotos contam que começaram a se aproximar do “movimento” de maneira informal e

muitas vezes até desapercebida. Aparentemente, isso acontece porque, muito mais do que

uma solução para os problemas financeiros, a entrada para o tráfico é encarada por vários

destes garotos como um novo e fascinante estilo de vida28. A participação em uma

quadrilha de traficantes significa para eles a obtenção de respeito e visibilidade social em

27 Ver anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários da Pedreira Prado Lopes; anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes 28 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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meio a uma comunidade de miseráveis e excluídos. Colocar uma arma na cintura e fazer a

segurança de uma “boca-de-fumo” garantirá a eles a certeza de serem reconhecidos nas

ruas da favela. Garantirá a eles uma presença marcante junto às mulheres do morro e o

restante da comunidade.

Moradores da PPL também confirmam que o envolvimento dos meninos com os

traficantes acontece sempre aos poucos, de forma bastante lenta e gradual. Apesar dos

avisos insistentes e até mesmo das proibições muitas vezes impostas pelos pais mais

atentos, muitos daqueles garotos começam a freqüentar os pontos de venda de drogas,

movidos pela curiosidade e pelo fascínio que os traficantes sempre fortemente armados

despertam. Longe da vigilância sempre precária dos pais e com bastante tempo livre, as

conversas com os traficantes, que antes eram rápidas e ocasionais, começam a se tornar

mais demoradas e freqüentes. Ainda que não sejam consumidores de qualquer tipo de

droga, muitos daqueles garotos começam a freqüentar os pontos de venda na curiosidade de

ver como funciona o negócio.

Em meio à comunidade da Pedreira, o simples fato de ser cumprimentado na rua por

um traficante ou poder dizer que é “considerado” de um deles já é suficiente para conferir

status ao rapaz. No campo de futebol que existe dentro da vila, existe um dia que é

reservado apenas para as partidas do pessoal do “movimento”. Nestes dias, não é raro ver

muitos destes garotos colados às margens do terreno, comentando alguma jogada ou até

mesmo torcendo para algum dos times.

Parece que a presença sempre ostensiva de armas de fogo e de muito dinheiro fascina

aqueles meninos, assim como a imagem de prestígio e força que os traficantes emanam.

Moradores contam que, aos poucos, muitos rapazes começam a ganhar a confiança dos

criminosos que passam a lhes pedir pequenos favores. Um recado que é levado de forma

rápida e precisa, a compra de um maço de cigarros ou de um marmitex são recompensados

com pequenas quantias de dinheiro ou até mesmo com algumas buchas de maconha – droga

que é amplamente difundida entre os jovens. Alguns daqueles rapazes contam que é difícil

precisar quando é que alguém deixa de ser um colaborador eventual e passa a ser um

traficante. Muitos chegam a dizer que, quando dão por si, já conhecem de perto toda a

movimentação de uma “boca-de-fumo” e passam a exercer funções definidas na quadrilha.

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Na maioria das vezes, a aquisição de uma arma de fogo é o símbolo definitivo de que

aquele garoto deixou de ser um prestador de pequenos serviços eventuais e passou a ser um

membro da quadrilha. A posse de uma arma de fogo por parte de um desses rapazes possui

uma força simbólica sem precedentes entre seu grupo de amigos e principalmente entre a

comunidade da favela. No meio da comunidade, uma arma na cintura significa o mesmo

que dizer que o rapaz optou definitivamente pelo estilo de vida do crime, um caminho que,

na maioria das vezes, não tem volta. A partir do momento em que um destes meninos

coloca uma arma na cintura, ele está automaticamente anunciando a todos os seus

conhecidos que deixou de ser apenas um menino. Ele agora é homem feito e como tal irá

ganhar a própria vida pela via criminosa.

Ao colocar uma arma na cintura, aquele adolescente também está anunciando a todo

os seus desafetos que ele está definitivamente pronto para entrar naquele interminável ciclo

de trocas de tiros, mortes e vinganças que se promovem nas favelas entre vários grupos de

adolescentes. Em uma comunidade cujo imaginário muitas vezes ainda é pautado por uma

versão estereotipada da honra masculina, do machismo e da lei do mais forte, empunhar o

“ferro” significa que o menino passou definitivamente para o mundo do crime e, mais do

que isso, que deixou de ser um garoto para se tornar homem.

Aliás, no que se refere à questão da masculinidade, observa-se que a participação em

quadrilhas envolvidas com o tráfico de drogas tornou-se, pelo menos na Pedreira Prado

Lopes, a maneira que alguns jovens encontram de se afirmarem enquanto “homens feitos”

perante os moradores do local. Contribuíram para isso toda a simbologia das quais as

próprias quadrilhas estão imbuídas: a virilidade, a masculinidade, a imposição de suas leis

pela força física e a presença sempre ostensiva das armas de fogo, símbolos fálicos por

excelência. A partir do momento em que fazem parte de uma quadrilha de traficantes, estes

garotos se sentem mais homens, mais fortes, mais viris.

E toda esta sensação de poder e virilidade também parece ser alimentada por algumas

mulheres da comunidade, uma vez que muitas delas demonstram-se atraídas pela aura de

força e masculinidade que emana da figura do quadrilheiro29. Vários destes garotos relatam

que, entre outras coisas, o pertencimento a uma quadrilha fez com que fosse mais fácil

conseguir namoradas ou amantes. Em meio a uma comunidade historicamente violenta e

29 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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composta por miseráveis e fragilizados pais de família, a figura do bandido fanfarrão, do

macho forte que tem condições de sustentar e proteger várias mulheres parece exercer

grande atração sobre algumas garotas do local.

Mais uma vez, nota-se que, no seio de toda esta discussão, talvez esteja colocada a

questão da invisibilidade social da qual estes garotos são vítimas. Nascidos e criados em

meio a uma comunidade de excluídos, a impressão que se tem é que estes meninos

convivem, desde muito cedo, com a nítida sensação de serem socialmente invisíveis. Tanto

que, quando perguntados sobre o motivo que os levaram a entrar para quadrilhas de

traficantes, as respostas mais comuns são “dinheiro fácil” e “respeito da comunidade”30.

Observa-se claramente que, mais do que “dinheiro fácil” e “respeito”, talvez estes garotos

estejam apenas querendo deixar de ser “apenas mais um miserável”, em meio a tantos

outros de sua comunidade. Parece que o envolvimento com o tráfico faz com que estes

adolescentes tenham a nítida sensação de serem temidos, respeitados e, por que não dizer,

admirados.

E essa hipótese ganha força quando se observa que, apesar de sempre utilizarem a

desculpa do dinheiro fácil para tentar justificar sua entrada para o tráfico, a imensa maioria

destes rapazes sabe que, assim como “vem fácil”, o lucro obtido com a venda de drogas

também “vai fácil”. O próprio discurso dos traficantes desmonta, portanto, uma das

principais explicações que eles costumam oferecer para justificar a sua entrada no

“movimento”. Aliás, “vem fácil e vai fácil” é uma expressão muito utilizada por eles. Por

incrível que pareça, chegam até mesmo a admitir que, financeiramente, o tráfico só traz

lucros reais para aqueles que conseguem atingir o status de fornecedor atacadista.

Contraditoriamente, quando são questionados de forma mais incisiva e paciente sobre os

reais atrativos e benefícios financeiros do tráfico, estes rapazes demonstram ter plena

consciência de que, se conseguirem sair vivos desta vida, dificilmente terão obtido lucros

expressivos.

Parece estar difundida entre estes garotos um culto a um estilo de vida que, ainda que

breve, é intenso, perigoso e emocionante. Muito mais do que uma rotina regrada, humilde e

parcimoniosa, estes meninos querem viver, de uma só vez, tudo aquilo que há para ser

vivido. Querem conquistar o respeito e a admiração de sua comunidade pela força das

30 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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armas, das demonstrações públicas de coragem. Muito mais do que trabalhar de sol a sol

por um salário de fome, querem encher os bolsos de dinheiro e gastá-lo no dia seguinte em

roupas caríssimas, mulheres, bebidas e armas mais poderosas. Quando questionados sobre

os reais motivos de terem entrado para o tráfico, estes garotos demonstram claramente que

não se tratou apenas de uma opção financeira. Ainda que uns pareçam ter mais consciência

do que outros, praticamente todos eles sabem que, no fundo, foi uma decisão moral, uma

decisão relativa à construção de uma identidade social. A entrada para o tráfico não

representa apenas a possibilidade de ganhar dinheiro. Representa a possibilidade de viver

intensamente, de despertar medo e admiração, de obter poder, de fazer parte de um grupo

onde se é a própria personificação da lei, dos juízes e dos executores. Para estes meninos,

muito mais do que “dinheiro fácil”, o tráfico passou a representar a possibilidade real de

conquistar visibilidade social.

5.4. A Organização Interna

Como acontece em muitas empresas tradicionais, na maioria das vezes a entrada de

um garoto para uma quadrilha de traficantes acontece através de funções consideradas

“menores”. E, assim como no mercado formal, as promoções dentro da “empresa” também

irão acontecer à medida que ele demonstrar eficiência e confiabilidade. Ganhar a confiança

de membros bem colocados na quadrilha significa, muitas vezes, a conquista de um posto

mais alto na hierarquia do grupo.

No caso das quadrilhas de narcotraficantes que atuam na Pedreira Prado Lopes,

observa-se que, apesar de serem rivais, todas adotaram formas de organização bastante

semelhantes no que se refere à manutenção de seu negócio. Pelas informações que a polícia

conseguiu, estas organizações ocupam-se, basicamente, de três frentes distintas: a obtenção

das drogas junto a um fornecedor atacadista, a venda das mesmas no esquema de varejo e a

segurança do negócio.

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5.4.1. As Drogas

Em um primeiro momento, todas as quadrilhas tratam de conseguir um grande

fornecedor de drogas – no caso da PPL, a polícia acredita que a maioria das drogas ainda

venha através dos antigos contatos mantidos pelo traficante Roni Peixoto. Somente no

início de 2003, uma gangue que se estabeleceu em uma área conhecida como “Terreirão”,

na parte nordeste da favela, teria conseguido um fornecedor diferente dos demais e estaria

comprando crack a preços menores dos que aqueles que são cobrados pelos fornecedores

ligados a Roni Peixoto. No final de 2003, uma investigação sigilosa realizada na PPL pelo

serviço de inteligência do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam) apontou que

fornecedores ligados a Roni Peixoto estariam trazendo para a Pedreira drogas do Rio de

Janeiro, de São Paulo e de países como Bolívia e Paraguai. Em compensação, a PM ainda

não havia conseguido rastrear de onde estaria vindo a droga que abastece a quadrilha do

“Terreirão”.

Muito pouco se sabe sobre as rotas de entrada da droga na favela, assim como as

“mulas” que a trazem. Muitas chegam a bordo de táxis, ou dentro de carros que não

possuem qualquer impedimento ou queixa de furto. Sabe-se apenas que, para não correr o

risco de perder grandes carregamentos para a polícia ou para os grupos adversários, os

traficantes fazem chegar ao morro vários carregamentos por dia, sempre em quantidades

menores. Tanto que, dificilmente, a PM consegue apreender “mulas” que transportam mais

de meio quilo de crack para os narcotraficantes da PPL.

As armas chegam da mesma maneira, sempre em carregamentos menores, trazidas em

veículos que não levantam suspeitas. No primeiro semestre de 2004, por exemplo, durante a

finalização desta pesquisa, um traficante da gangue da rua Marcazita chegou a me

confidenciar que, em um sábado à tarde, Roni Peixoto teria enviado cerca de R$50 mil em

armas para membros da quadrilha da rua Carmo do Rio Claro. Para encobrir a chegada do

arsenal, que vinha em uma Kombi, os traficantes daquele grupo teriam forjado um tiroteio

na parte alta da favela, para atrair a polícia toda para lá e garantir a chegada segura das

armas à parte baixa do morro.

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5.4.2. A Venda

Depois de receber seus carregamentos, os grupos que atuam na Prado Lopes tratam de

organizar todos os aspectos inerentes à venda do material. Ou seja, mobilizam seus esforços

no sentido de conseguir uma forma de estocar a droga, prepará-la para o consumidor final e

estabelecer pontos de venda em locais de fácil acesso. Alguns barracões localizados no

interior da favela servem como centros de estocagem e preparo. E assim como fazem as

quadrilhas do Rio de Janeiro, os traficantes da PPL, chamam de “endolação” o trabalho de

preparo e acondicionamento da droga em pequenos sacos plásticos que serão repassados

aos consumidores finais.

Em geral, os carregamentos são guardados em casas de moradores honestos – que

mantêm uma relação de conivência forçada com os criminosos -, ou em barracões que não

levantam a suspeita da polícia31. E, ainda assim, o material é escondido dentro de caixas

d´água, enterrado nos quintais, colocado em forros de sofá ou em qualquer lugar que não

levante suspeita no caso de uma improvável batida policial. O “bom traficante” jamais é

apanhado com drogas ou armas dentro da própria casa. Aliás, durante as entrevistas, uma

frase, em particular, foi capaz de resumir toda a logística do acondicionamento das drogas.

Questionado sobre o esconderijo dos entorpecentes que vendia, um dos traficantes se

recusou a indicar onde armazenava suas drogas. No entanto, fez questão de afirmar que não

estocava em sua casa absolutamente nada que o comprometesse. Segundo ele, “o bom

malandro não dorme com o ‘flagoroso’ dentro de casa”.

Depois de preparadas, as drogas são distribuídas pelas diversas “bocas-de-fumo”,

onde os “vapores” se encarregarão de vendê-las aos usuários. Na Pedreira, cada “vapor”

recebe uma carga de 90 pedras de crack para vender de cada vez. A pequena quantidade de

drogas entregue a cada vendedor obedece a uma lógica de segurança: se ele for preso pela

polícia, estará com relativamente pouco dinheiro nas mãos e, se já tiver vendido boa parte

da carga, poderá ser autuado apenas pelo crime leve e afiançável de uso de drogas – artigo

16 do código penal brasileiro. Se estivesse com uma grande quantidade de entorpecentes,

31 Ver Anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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poderia ser preso por tráfico – artigo 12 do código penal, ilícito penal infinitamente mais

grave.

No caso da Pedreira, parece nunca ter havido a preocupação de camuflar a existência

dos pontos de venda de droga – característica que, aliás, levanta séria suspeita quanto à

participação da polícia no negócio32. As principais e mais lucrativas “bocas-de-fumo” ficam

na parte baixa do aglomerado, justamente devido à proximidade da avenida Presidente

Antônio Carlos, uma via que dá acesso fácil e rápido a toda a região central de Belo

Horizonte. Conhecidos pontos de venda estabeleceram-se na avenida José Bonifácio e nas

ruas Araribá e Carmo do Rio Claro. Durante as noites, é fácil ver a intensa movimentação

de carros e pedestres nestas regiões, assim como dos traficantes que conseguiram organizar

uma verdadeira feira livre das drogas no local.

Na parte alta da favela, as principais “bocas-de-fumo” foram organizadas nas ruas

Serra Negra, Pedro Lessa, Marcazita e Mariana, três vias de fácil acesso e que delimitam a

região Noroeste e Nordeste do aglomerado. Assim como na parte baixa, organizaram-se ali

vários pontos de venda que recebem a visita diária de centenas de viciados. Acredita-se

que, assim como acontece com os pontos de venda da parte baixa, as “bocas-de-fumo” da

parte alta tenham conseguido prosperar devido à localização estratégica que possuem: as

ruas Pedro Lessa e Serra Negra fazem divisa com o bairro Bonfim e oferecem acesso fácil e

rápido ao Centro de BH. Além disso, também ligam a PPL à favela Sumaré, outro

importante ponto de entrada das drogas em Belo Horizonte, principalmente de cocaína e

derivados como o crack.

Entre o final de 2002 e início de 2003, uma quadrilha se instalou na área conhecida

como “Terreirão”, um ponto localizado na região nordeste do morro e que faz divisa com o

bairro Cachoeirinha. Relatórios internos da PM dão conta de que, apesar de ter se

estabelecido na favela depois das outras quadrilhas e de estar localizado em um ponto de

mais difícil acesso para os usuários, este grupo vem crescendo e ganhando boa freguesia

devido aos baixos preços que vem praticando. Informações recebidas pela polícia indicam

ainda que esta quadrilha vem trabalhando com um fornecedor de drogas diferente dos

demais e que, por isso, estaria sendo capaz de revender seu produto a preços mais

acessíveis.

32 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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132

Na Pedreira, o contato entre usuários e traficantes acontece de forma bastante direta e

ostensiva. Com razoáveis quantidades de drogas guardadas nos bolsos ou em pequenas

bolsas, os traficantes ficam parados em pontos estratégicos localizados próximos às “bocas-

de-fumo” e, sem qualquer constrangimento, oferecem o produto a qualquer pessoa que

passe por seu campo de visão. Em geral, os consumidores mais assíduos reconhecem com

facilidade um “vapor” e não esperam nem mesmo sua abordagem. Já tratam de se

aproximar deles com perguntas do tipo “tem aí?”. A negociação geralmente é rápida,

porque os consumidores já conhecem a qualidade da droga vendida na PPL e os preços lá

praticados.

Quando a droga de um “vapor” acaba, ele vai até a “boca-de-fumo” ou até mesmo ao

barraco da “endolação” para pegar uma nova carga. Este trabalho também pode ser feito

pelos “aviões”, que são rapazes encarregados de transportar pequenas cargas de drogas

entre os pontos de estocagem e os pontos de venda direta. Os “aviões” também podem fazer

o transporte da droga entre uma favela e outra. No caso da Pedreira, alguns “aviões”

também são encarregados de levar cargas de drogas para vendedores que atuam na região

central de BH. Geralmente, garotos menores de idade são usados para este trabalho, para

evitar prisões desnecessárias de membros mais importantes da quadrilha.

Um fato curioso que pode ser facilmente observado na região da PPL é a grande

movimentação de taxistas nos pontos de venda de drogas. Investigações do serviço de

inteligência da PM indicam que, além de prestar serviços aos traficantes de lá, os motoristas

também são compradores assíduos de grandes quantidades de drogas, que geralmente são

levadas para outras favelas da capital e revendidas a preços mais altos. Não se sabe se eles

compram a droga por conta própria para revendê-la ou se eles já vão à Pedreira a mando de

criminosos de outras favelas. No entanto, o movimento de entra e sai de taxistas sem

passageiros na Pedreira acontece dia e noite, de forma ostensiva e bastante clara. O que,

mais uma vez, levanta graves suspeitas de que exista a participação ou, na melhor das

hipóteses, a omissão de policiais quanto ao esquema.

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133

5.4.3. A Segurança

Como se trata de um mercado ilícito e sem qualquer tipo de regulamentação formal,

todas as leis do tráfico de drogas tiveram que ser impostas pelo poder das armas de fogo e

pela medição de forças entre as quadrilhas. Nesse sentido, observa-se que a territorialidade

ou a noção de território tornou-se um fator de fundamental importância entre os grupos que

atuam na Pedreira Prado Lopes. Cada quadrilha vigia o seu terreno de forma ostensiva

contra a ação de possíveis inimigos ou concorrentes. Como que em um acordo tácito, um

bando não vende drogas na área do outro, até mesmo para evitar conflitos desnecessários

que certamente atrairiam a presença da polícia e afastariam os clientes.

Aliás, parece que toda a atividade do tráfico de entorpecentes na Pedreira Prado

Lopes está intimamente permeada pela noção de territorialidade. No que se refere à

segurança, por exemplo, a vigilância dos pontos de venda de drogas não é feita apenas

junto às “bocas-de-fumo” propriamente ditas. Para garantir o funcionamento adequado do

negócio, os traficantes posicionaram um grande grupo de informantes em várias vias de

acesso à favela. Usando telefones celulares ou através de gritos previamente combinados,

os vigilantes são os responsáveis por avisar os traficantes da presença da polícia ou de

grupos rivais. Para que se tenha uma idéia da importância do serviço dos chamados

“olheiros” ou “atividades”, basta dizer que até mesmo rádios-comuicadores de baixa

freqüência já foram apreendidos com traficantes da PPL. Geralmente, este serviço é feito

por adolescentes ou até mesmo crianças que recebem pequenas quantias em dinheiro ou

buchas de drogas para consumo próprio.

Na parte baixa do aglomerado, os “olheiros” ficam em três regiões distintas: no

cruzamento da avenida Presidente Antônio Carlos com rua Araribá, na avenida José

Bonifácio junto à Igreja São Cristóvão e nas imediações do Hospital Odilon Behrens,

próximo ao Departamento de Investigações. Desta forma, o esquema de vigilância

consegue cobrir todas as entradas da parte baixa da favela.

Por sua vez, os traficantes que atuam na parte alta da favela também estabeleceram

postos de vigilância em três pontos distintos: na esquina formada pela parte sul da rua

Pedro Lessa com rua Guapé, nas pequenas ruas que ficam próximas à extremidade norte da

rua Pedro Lessa, já no bairro Santa André, e por praticamente toda a extensão da rua Serra

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Negra, principal via de acesso à parte alta do aglomerado. Também existem “atividades”

trabalhando na esquina da rua Marcazita com beco Bom Jesus. Vejamos o depoimento de

um dos policiais entrevistados:

“É sempre complicado a gente fazer qualquer incursão na PPL porque os traficantes têm um monte daqueles olheiros espalhados na região. É até engraçado, sabia? A gente chega com a viatura e vê aquele tanto de menino parado nas esquinas. Quando eles vêem que é polícia, começam a gritar ‘Galo’ sem parar. Parece até que é véspera de jogo Atlético e Cruzeiro, mas é o código que eles usam para avisar da chegada da polícia. Quando a gente sai fora, eles gritam ‘Zêro’, que é para avisar que a barra tá limpa. Alguns deles já conhecem todos os policiais pela cara. Por isso, não adianta a gente ir à paisana que dá na mesma. Eles avisam mesmo” (cabo-PM R. S. L., agente do Serviço de Inteligência do 34o Batalhão da Polícia Militar, em 05/11/2003).

Nas imediações dos pontos de venda de drogas, vários rapazes ficam responsáveis

pela segurança armada das “bocas-de-fumo” propriamente ditas. Por uma questão de

segurança, os “soldados”, que é como são chamados os vigilantes armados do tráfico, não

costumam ficar exatamente no mesmo lugar que os vendedores de drogas. Na PPL pelo

menos, eles ficam nas proximidades dos pontos de venda, sempre em uma distância que os

permita, de forma segura, garantir o andamento normal dos negócios e fugir da polícia em

caso de alguma batida na área da “boca”.

Aliás, nota-se que, pelo menos na PPL, as quadrilhas desenvolveram toda uma

logística para tentar minimizar o prejuízos causados pelas possíveis prisões em flagrante. É

claro que existem exceções, mas na maioria dos casos, aquele que vende drogas não

costuma andar armado e está sempre com uma quantidade relativamente pequena de

entorpecentes nas mãos. A recíproca também é verdadeira: quem anda armado raramente

carrega drogas consigo. Isso ajuda a minimizar os prejuízos do grupo, caso algum membros

seja preso. No caso de passarem por qualquer dificuldade com clientes ou com

concorrentes, os “vapores” podem sempre recorrer aos soldados, que invariavelmente

estarão nas proximidades para resolver qualquer problema.

Nas “bocas” consideradas mais problemáticas, que são aquelas que ficam mais

próximas ao território da quadrilha rival ou mais para o interior da favela, alguns

“soldados” fazem questão de mostrar ostensivamente suas armas, para dissuadir qualquer

tentativa de invasão ao seu território. Durante as noites na Pedreira, não é difícil notar a

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presença de rapazes armados nas ruas Pedro Lessa, Carmo do Rio Claro, Araribá,

Marcazita, Escravo Isidoro e nas imediações da rua Serra Negra.

5.4.4. As Funções e a Hierarquia

Sempre que se refere às quadrilhas de traficantes de droga que atuam nas vilas e

favelas dos grandes centros urbanos, a polícia utiliza a expressão “crime organizado”.

Apesar de todo o exagero que naturalmente acompanha esta definição, observa-se que os

grupos envolvidos com o tráfico na Pedreira Prado Lopes realmente adquiriram, ainda que

de forma primária, um certo nível de organização. Apesar de não haver um único comando

gerenciando todo o comércio de entorpecentes da região – como foi dito anteriormente,

existem cerca de três grupos envolvidos com o tráfico na região e, ainda assim, somente um

deles parece não operar sob as ordens do traficante Roni Peixoto – observa-se que todas as

quadrilhas se organizaram através de uma certa divisão de funções.

Existem membros responsáveis pela venda das drogas, existem membros

responsáveis pela vigilância – armada ou não – do negócio, assim como existem membros

responsáveis pelo transporte das drogas entre os pontos de venda da favela e até mesmo

entre a Pedreira e outras regiões de Belo Horizonte. Em grupos que, em sua imensa

maioria, são formados por adolescentes ou rapazes muito jovens, quem geralmente se torna

líder e acaba por distribuir as funções entre os membros do bando é o “gerente”, ou seja:

aquele que consegue estabelecer um contato permanente com o fornecedor de drogas e,

conseqüentemente, garante o abastecimento de drogas necessário para as atividades do

grupo. Este “gerente”, por sua vez, distribui as tarefas entre os demais membros da

quadrilha, de acordo com o nível de amizade e confiança que possui para com eles. Na

PPL, a polícia estima que cada uma das três quadrilhas possua um “gerente”.

Como foi dito anteriormente, a entrada de novos membros na quadrilha acontece de

forma lenta e gradual, na medida em que estes consigam conquistar a confiança dos

integrantes mais antigos. Em um primeiro momento, estes rapazes recebem tarefas sem

qualquer importância, em troca de “consideração”, ou ainda pequenas somas em dinheiro

ou drogas. Buscam comida, bebidas e cigarros para os quadrilheiros que estão de serviço na

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“boca”, organizam as filas de clientes, levam recados e qualquer outro tipo de serviço

eventual que não exija responsabilidade ou comprometa o “movimento”.

O “degrau seguinte” a ser galgado por aquele que pretende entrar para uma quadrilha

é o de receber uma função fixa dentro do bando. Assim que consegue conquistar a

confiança dos membros mais antigos, os adolescentes passam efetivamente a realizar um

trabalho dentro do grupo e a receber dinheiro de forma mais regular. Evidentemente que, no

começo, estes rapazes continuam exercendo funções de menor importância. Mas o simples

fato de já terem sido aceitos no grupo significa para estes garotos uma possibilidade real de

crescimento dentro da hierarquia da quadrilha.

Na PPL, é possível observar que um dos primeiros cargos conseguidos pelos novos

membros é o de “olheiro”. Em turnos que podem chegar a até seis horas de “trabalho”,

estes rapazes ficam sentados nas principais entradas do aglomerado, vigiando toda a

movimentação da região. A passagem de qualquer pessoa ou carro suspeito é rapidamente

identificada por estes garotos, que tratam de imediatamente avisar os traficantes do

ocorrido. Alguns deles possuem telefones celulares, outros ligam de telefones públicos ou

emitem gritos previamente combinados com os criminosos. A verdade é que, em um

ambiente como o da Pedreira Prado Lopes, onde praticamente todas as vias são muito

estreitas e todos os moradores são bastante conhecidos, qualquer presença estranha chama

logo a atenção dos olheiros que, dependendo do tempo de atividade na “boca”, conseguem

até mesmo identificar com relativa facilidade a chegada de policiais não fardados ao morro.

Na PPL, a imensa maioria dos olheiros não recebe uma remuneração fixa em troca de seus

serviços. Como quase todos estes rapazes são viciados, eles recebem grande parte de seu

pagamento em pequenas porções de drogas e, ocasionalmente, algum dinheiro. Alguns

deles chegam a trabalhar em troca de roupas e refeições diárias.

Aos garotos de maior confiança, os traficantes da Pedreira delegam o transporte de

pequenos carregamentos de drogas. São os chamados “aviões” ou “mulas”. Na gíria das

gangues da PPL, um rapaz que faz um “avião” ou “correria” é aquele encarregado de

transportar pequenas quantidades de drogas dentro da própria favela. Geralmente, ele leva

os pequenos pacotes de drogas entre as casas que são usadas para armazenar o produto –

que ficam no interior da favela, e as “bocas-de-fumo” que funcionam nas ruas que

margeiam o aglomerado.

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Ainda na gíria dos traficantes da Prado Lopes, as “mulas”, por sua vez, são aqueles

rapazes que transportam carregamentos um pouco maiores de drogas, até determinados

pontos fora da favela. Recentemente, a polícia conseguiu informações que dão conta de que

muitos taxistas são utilizados para este serviço. Eles pegam os pacotes nas “bocas-de-

fumo” da PPL e levam a droga até receptadores no centro de Belo Horizonte ou até mesmo

para outras favelas da região metropolitana. Este expediente é considerado mais seguro

pelos traficantes porque os taxistas sem passageiros raramente são parados pela polícia. No

primeiro semestre de 2003, uma investigação da Corregedoria da Polícia Civil descobriu

que vários traficantes que atuam no centro de BH são abastecidos com drogas que vêm da

Pedreira. Na PPL, tanto os “aviões” quanto os “mulas” não possuem “salário” fixo. Eles

ganham por serviço prestado à “boca”.

Outra função que também consome os esforços de vários membros da quadrilha está

ligada ao processo de preparação da droga que será vendida ao consumidor final. Para

render mais, a cocaína é misturada a fermento, bicarbonato de sódio e anestésicos. O crack,

que é o produto mais vendido na PPL e a grande fonte de lucro dos traficantes de lá, é

fervido junto a bicarbonato de sódio e novamente cortado em pequenas pedras. Depois de

serem “malhadas”, as drogas são acondicionadas em pequenos embrulhos plásticos, que

serão repassados ao consumidor final. Este processo de embalagem das drogas é chamado

pelos traficantes de “endolação” e é realizado por pessoas de extrema confiança dos chefes

da quadrilha. A escolha dos “endoladores” tem que ser cautelosa, para que a quadrilha não

sofra nenhum “derrame” – furto uma pequena quantidade da droga que está sendo

embalada. Na Pedreira, um “endolador” pode chegar a ganhar R$500,00 por mês,

trabalhando em turnos de seis horas diárias.

Outro cargo existente dentro da hierarquia do tráfico da PPL é o de “vapor”, ou seja,

aquele que será responsável pela venda direta das drogas ao consumidor final. Na Pedreira,

os “vapores” também são criteriosamente escolhidos, uma vez que é ele que, em última

instância, ficará responsável pelo comércio direto dos entorpecentes. Nesse sentido, existe

um rígido controle sobre a quantidade de drogas que ele tem nas mãos para vender e o

dinheiro que deverá arrecadar com a transação ao final de um turno de trabalho, que

também chega a ser de seis horas. Comenta-se na Prado Lopes que a expressão “vapor” foi

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importada dos traficantes cariocas que, por sua vez, teriam dado este nome aos vendedores

porque eles “evaporam” com a chegada da polícia.

Atualmente, o cargo de “vapor” é um dos mais visados pelos jovens que querem

entrar para o tráfico. Isso acontece porque, além de ganhar a confiança do chefe da “boca” e

receber um salário-base de aproximadamente R$900,00 por mês, um “vapor” possui

chances reais de subir na hierarquia da quadrilha, se trabalhar com disciplina e eficiência.

Além disso, se ele conseguir clientes fiéis, pode aumentar sua margem de lucros.

Finalmente, um dos “cargos” mais respeitados da quadrilha é o de “soldado”. Estes

rapazes são o braço armado do bando. Com suas pistolas semi-automáticas, suas

metralhadoras e até mesmo fuzis, eles são os principais responsáveis pela segurança de todo

o grupo. Na PPL, um “soldado” ganha, em média, R$1.500,00 por mês, para desempenhar

a tarefa que talvez seja a que mais desperta medo e admiração entre os rapazes da

comunidade. Em uma atividade cuja rotina é tão nitidamente permeada pela violência, o

“soldado” é a personificação do instrumento sobre o qual repousa, em última instância,

todo o poder da quadrilha: a força e a ameaça das armas de fogo.

Geralmente, a segurança das “bocas-de-fumo” é feita por garotos que demonstram ter

o que os adolescentes da Pedreira chamam de “disposição”. “Disposição”, no caso,

significa ter “disposição” para matar um inimigo ou um devedor ou, se for o caso,

“disposição” para se arriscar em um tiroteio com quadrilheiros rivais ou até mesmo com a

polícia. O “soldado” é aquele que tem “disposição” para, quando necessário, colocar em

uso o instrumento que é a representação simbólica máxima do poder de coação e destruição

da quadrilha: as armas de fogo. Em algumas ruas da PPL, principalmente naquelas que

ficam próximas aos locais onde funcionam as “bocas-de-fumo”, é possível ver, mesmo

durante os dias, rapazes andando ostensivamente armados. Esta postura, apesar de

arriscada, é o símbolo maior de que aquela área pertence a uma determinada quadrilha e

que este grupo está pronto para enfrentar qualquer um que se atreva a desafiar seu domínio

naquela região.

O escalão seguinte dentro da hierarquia da quadrilha é o de “gerente”. Assim como

aconteceu entre as gangues do Rio de Janeiro, na Pedreira é ele quem controla os soldados,

os vapores e, em última instância, todos os demais membros do grupo. Durante a realização

desta pesquisa, fui informado por mais de uma fonte que, na PPL, um gerente pode chegar

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a faturar cerca de R$3.500,00 por mês a título de salário e, às vezes, até mesmo uma

pequena participação sobre os lucros da “boca”. Para ser gerente, a pessoa precisa saber

controlar toda a movimentação financeira da “boca”, precisa organizar os turnos de

trabalho dos soldados e vapores, controlar a disponibilidade e o uso das armas da quadrilha,

ter controle sobre o processo de endolação e, mais importante, precisa cuidar para que a

polícia fique longe dos negócios da gangue. Durante as entrevistas feitas na Pedreira, vários

traficantes garantiram que são os gerentes que providenciam, semanalmente, o pagamento

de propinas aos policiais que trabalham na favela33.

No topo da hierarquia do tráfico da PPL, estão os chamados “donos das bocas”, que

são aqueles traficantes que possuem contato direto com os fornecedores atacadistas e

abastecem de drogas e armas todas as gangues do morro. Em última instância, toda a

estrutura das quadrilhas depende dos “donos de bocas”, que fornecem aos garotos todas as

drogas vendidas no morro, assim como as armas necessárias à manutenção do negócio.

Apesar de praticamente nunca se envolverem diretamente nos negócios das “bocas”, os

donos, ou “patrões” são as figuras mais respeitadas dentro do mundo do tráfico.

Na Pedreira, o maior “dono de bocas” do qual se tem notícia é Roni Peixoto de Souza.

Durante o trabalho de pesquisa, ficou muito claro que o respeito e o terror impostos por

Roni na PPL são tão grandes, que os traficantes pertencentes às suas quadrilhas evitam

sequer pronunciar seu nome. Somente os quadrilheiros que não trabalham em bocas

mantidas por ele falam abertamente de toda a sua influência e poder no tráfico da Prado

Lopes. De acordo com policiais que trabalham na favela, Roni seria dono da maioria das

“bocas” da favela, exceção feita somente à do “Terreirão”, mantida por Rodrigo Gomes da

Fonseca, o “Rodriguinho”, e da rua Marcazita que, na ocasião da realização desta pesquisa,

pertencia aos irmãos “Nêgo” e “Fio”.

Vejamos na figura 3, a seguir, um quadro que exemplifica a estrutura hierárquica

adotada por quadrilhas de traficantes da Pedreira:

33 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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FIGURA 3: Estrutura hierárquica adotada por quadrilhas de traficantes da PPL

5.4.5. As Armas

Outro aspecto das gangues da Pedreira Prado Lopes que chama a atenção é a imensa

quantidade e variedade de armas que todas elas possuem. Em outubro de 2003, um relatório

reservado produzido pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar apontou que, na

ocasião, existiam pelo menos cinco fuzis nas mãos de quadrilhas do morro. Além destas

armas, os traficantes também teriam dezenas de pistolas semi-automáticas, revólveres,

metralhadoras, espingardas de grosso calibre e até mesmo granadas, como ressalta o

depoimento do Tenente-Coronel José Anísio Moura, a seguir:

“Recentemente, uma equipe de nosso batalhão estava em uma das principais ruas da Pedreira, quando se viu no meio de um fogo cruzado entre gangues de lá. Era uma noite de sábado e esta equipe teve que se esconder em um dos becos porque a munição que eles usavam acabou. Um sargento conta que, no meio daquela confusão, eles viram tiros de munição traçante cortando os becos da favela. Munição traçante só é

DONO DA

BOCA

GERENTE

VAPORES

GERENTE

SOLDADOS

OLHEIROS

AVIÕES E

MULAS

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usada em fuzis de guerra. Para que se tenha uma idéia do poder de uma arma destas, basta dizer que um projétil disparado por ela pode atravessar uma chapa de aço com uma polegada de espessura. Em uma favela, um tiro de fuzil como este poderia atravessar quatro barracos na seqüência” (tenente-coronel José Anísio Moura, comandante do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas – Rotam -, falando sobre um confronto entre traficantes ocorrido na madrugada do dia 05/10/2003, que terminou com uma pessoa morta e dez feridas).

Por mais que tenham feito investigações a respeito, até hoje as polícias ainda não

conseguiram detectar de onde vêm as armas que abastecem o tráfico na Pedreira Prado

Lopes. De acordo com o Serviço de Inteligência da PM, o armamento dos traficantes viria

de várias fontes diferentes, atraído pela grande quantidade de dinheiro e drogas que circula

na favela. Informes da PM dão conta de que as armas quase nunca chegam em grandes

carregamentos. Elas são repassadas aos traficantes no regime de varejo, em um mercado

informal difícil de combater.

Alguns traficantes, por sua vez, contam que muitas das armas que possuem seriam

fruto de apreensões feitas por equipes corruptas das polícias Civil e Militar na região

metropolitana de Belo Horizonte. Segundo eles, alguns policiais já conhecidos no morro

estariam apreendendo armas de gangues de outras favelas e revendendo o material aos

traficantes da PPL34. Os rapazes envolvidos com as gangues contam ainda que um revólver

calibre 38 pode ser adquirido por cerca de R$200,00. Uma pistola semi-automática calibre

380 custaria cerca de R$350,00 às quadrilhas. Uma submetralhadora calibre 9 milímetros

pode ser comprada por R$500,00. Vejamos o depoimento de um dos entrevistados:

“As arma que a gente usa vem de vários lugares. Mas na maioria das vez é os cara mesmo que vai lá oferecer pra gente comprar. Todo dia tem neguinho oferecendo arma lá pra gente comprar. Os cara já tem as manha que lá funciona a boca e vai lá oferecer as arma pra gente. Aí a gente junta uma grana de cada um e compra o que der. A arma fica lá pra segurança nossa mesmo. Nossa gangue tem macaquinha, oitão, doze e PT. O pessoal da parte baixa já tá até com fuzil também” (J. M. M. A., 25 anos, traficante da ‘boca do Terreirão’, preso no dia 07/10/2003, em uma casa da rua Serra Negra. No local, a PM encontrou duas submetralhadoras calibre 9 milímetros, duas escopetas calibre 12, um revólver calibre 38, uma granada, três balanças de precisão, cinco tabletes de maconha, 200 gramas de crack e cerca de R$2.500,00 em dinheiro).

34 Ver anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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Além de exercer a função óbvia de impor o poder da quadrilha, observa-se que a

posse de armas de fogo acabou por se tornar por si só uma espécie de “coqueluche” em

meio a muitos destes rapazes da Pedreira Prado Lopes. Tanto que praticamente todos os

garotos que se envolvem com as gangues acabam também por se tornar especialistas em

armas de fogo. Apesar de não saber manuseá-las com perícia, pois, obviamente, nenhum

deles teve a oportunidade de freqüentar um curso de tiro, todos sabem na ponta da língua a

marca de várias destas armas, sua nacionalidade, a potência que possuem, o alcance de seus

projéteis, o custo da munição, a capacidade de tiros por minuto e outros detalhes que

somente deveriam ser conhecidos por especialistas em armamentos.

Como que se estivessem comparando brinquedos uns com os outros, alguns destes

rapazes exibem como troféus as armas que conseguiram adquirir e se orgulham de poder

andar com uma boa pistola semi-automática na cintura. Nesse sentido, as preferidas são as

pistolas da marca Taurus calibre 380 – a famosa PT-380 - e as da marca Glock calibre 9

milímetros – a “quadrada”. Recentemente, também têm feito muito sucesso entre os

traficantes as pistolas calibre .40, uma versão mais leve, precisa e mortal do famoso

revólver Magnum. Além de conhecerem tudo sobre as armas de fogo, alguns destes rapazes

chegam, inclusive, a manifestar abertamente suas preferências por determinados tipos de

armamento, dependendo da ação que pretendem realizar, como ilustra o depoimento de um

dos traficantes:

“Essa munição aqui tem ponta oca, ó. É melhor de usar porque derruba o cara na hora. Diz que a bala entra no corpo do cara e abre dentro dele. Arrebenta o cara por dentro e joga no chão na hora, tem a manha? Quando a ponta é fechada que nem a dessa daqui, ó... É a jaquetada. A bala atravessa o cara. É bom porque você pode acertar um tanto de mané que tá de fileira igual soldadinho, né não? (risos) Mas é ruim porque o cara não cai. Aí é foda porque ele já levou caroço, mas continua atirando em você. Eu prefiro com ponta oca mesmo. É ‘pou’, ‘pou’, ‘pou’, três pipoco e o cara já deita” (F. P. E., 17 anos, traficante que atua na parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 17/07/2003).

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5.5. Os Moradores

“Medo e impotência”. Estas talvez sejam as duas palavras que melhor definem a

relação que, atualmente, a imensa maioria dos moradores da Pedreira Prado Lopes mantém

com os traficantes da região. Em entrevistas realizadas no aglomerado ou até mesmo em

conversas informais, observa-se facilmente que a questão das gangues, do tráfico e da

violência é uma presença constante no imaginário da comunidade da PPL. A presença do

tráfico, das armas e dos confrontos acabou tornando-se uma rotina com a qual os moradores

simplesmente aprenderam a conviver, ainda que de maneira forçada. A impressão que se

tem é que, no decorrer das duas últimas décadas, a violência das gangues acabou por se

tornar parte do próprio corpo social e cultural da vila. A comunidade parece ter se

resignado com sua existência e praticamente todos os aspectos da vida cotidiana são

permeados por sua brutalidade. A impressão que se tem é que a realidade perversa e

violenta do tráfico parece ter corrompido e se entranhado todas as instituições sociais da

Pedreira.

No imaginário de muitos moradores – inclusive no dos mais antigos -, é como se a

violência sempre tivesse existido e estivesse condenada a existir para sempre na Pedreira. É

como se fosse uma característica talhada na própria gênese da favela e nada pudesse ser

feito com relação a isso. Os únicos aspectos que variam nessa história são a intensidade

com a qual esta violência se manifesta, seus arautos, métodos e motivações. Tanto que,

quando são questionados sobre a violência na PPL, muitos dos moradores mais antigos

comentam que ela sempre existiu. Só que, nas décadas de 50, 60 e até mesmo em parte da

de 70, figurava no morro aquilo que muitos chamam de “malandragem”. Uma espécie

saudosista e quase caricatural de “bom malandro” que, apesar de ter envolvimento com

atividades criminosas, respeitava os moradores da região. Vejamos o depoimento de um

dos moradores entrevistados:

“Ah, meu filho... Sempre teve malandragem aqui na Pedreira. Só que não era isso que todo mundo vê aí hoje não. Na minha época mesmo, tinha aí os malandro. Mas eles respeitava a gente. Eles ficava aí com as coisas deles e não mexiam com ninguém. Quando tinha problema, era só entre eles mesmo, por coisa deles mesmo. E resolvia tudo pra lá, não tinha esse negócio de prejudicar o povo da Pedreira que nem esses menino que tão aí hoje não. Hoje é que fica ai essa meninada que não respeita ninguém,

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que não quer saber se é morador da Pedreira ou não” (J.T.S., 71 anos, marceneiro e morador da Pedreira Prado Lopes, em 12/07/2002).

Um aspecto muito ressaltado pelos moradores durante as entrevistas diz respeito à

nova geração de criminosos da Pedreira Prado Lopes e seu comportamento de completo

desrespeito para com a comunidade. Quando são incentivados a contrapor a violência que

existia em décadas anteriores e a que existe hoje, a imensa maioria dos entrevistados refere-

se diretamente aos vetores desta violência. Muitos não hesitam em comparar as motivações

e características da antiga geração de “malandros” – às vezes lembrada até mesmo com

bom humor - com a brutalidade e a falta de qualquer tipo de limites ou regras das atuais

gangues de traficantes. A maioria dos moradores ouvidos afirma que, enquanto os

“malandros” eram adultos que possuíam um comportamento razoavelmente coerente e

respeitavam os moradores, a “nova geração” de criminosos é completamente imprevisível e

marca sua presença pelas demonstrações públicas de violência extrema e pela exibição

ostensiva das armas de fogo.

A impressão que se tem ao ouvir alguns depoimentos é a de que, enquanto o antigo

“malandro” fazia questão de ter um bom relacionamento com a comunidade e de não

envolvê-la em seus negócios escusos – até mesmo porque precisava do apoio desta

comunidade para se esconder da polícia-, os traficantes que atualmente agem na Pedreira

não se importam muito com a repercussão de seus atos. A diplomacia sedutora e até mesmo

um pouco romântica dos antigos “malandros” foi explicitamente substituída pela “lei do

mais forte” e pela brutalidade das armas de fogo. Inclusive, talvez venha deste sentimento a

origem de uma expressão muito usada na Pedreira: “dedos moles”. Enquanto o “malandro”

de antigamente resolvia boa parte de suas pendências na conversa – e, ainda assim, estas

pendências costumavam se dar apenas entre os próprios “malandros” -, os traficantes de

hoje não dialogam, não discutem, eles “sentam o dedo” – atiram. Demonstrando que estão

dispostos a usar suas armas ao menor sinal de contrariedade, diz-se na Pedreira que eles

têm o “dedo mole”, que o dedo “coça no gatilho”. O depoimento de um dos moradores

evidência essa relação com as armas:

“O problema é esse negócio de droga. Antigamente, a malandragem nem mexia tanto com isso não até porque o morador nem sabia direito como é que funcionava esse negócio de tráfico aí. Agora cê vê que é tudo

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menino mexendo com esse negócio de tráfico. Tudo menino novo. É arma, é droga, é guerra... Ninguém mais tem sossego aqui na Pedreira... O problema é que esses menino não respeita ninguém. Se eles cisma com você, acabou. Se alguém compra coisa na mão deles e não paga, eles vem em cima mesmo. E não tem perdão, não tem conversa. Eles arrasta no meio da rua, eles coloca arma na cara, dão surra mesmo. Isso quando não mata o sujeito que é pra dar exemplo. Eles dão tiro no meio da rua, queima as lâmpada da rua tudo, fica mostrando arma pra quem quisé ver... E não tem respeito com morador daqui não. Tem dia que eles cumprimenta você e até trata bem, mas tem dia que, se você olha demais, eles perguntam que que tá querendo, se perdeu alguma coisa lá, que é pra sair fora logo que eles acha que tá querendo cangüetá. O negócio aqui é levar a vida e não mexer com eles. Tem que fingir que eles não tão lá e nem querer saber o que ta acontecendo” (J.T.S., 71 anos, marceneiro e morador da Pedreira Prado Lopes, em 12/07/2002).

Em decorrência da violência quase que gratuita demonstrada pela nova geração de

traficantes, observa-se que a relação que a comunidade mantém com estes garotos é de

muito medo e impotência. Nada além disso. Não existe qualquer tipo de relação de

companheirismo, solidariedade ou responsabilidade de um para com outro. Na PPL, a

comunidade não se envolve com os negócios do tráfico. No entanto, a mesma regra não é

seguida pelo tráfico que, com toda a sua brutalidade, costuma se envolver com os assuntos

da comunidade e interferir em vários aspectos da vida cotidiana dos moradores da PPL.

No segundo semestre de 2003, por exemplo, traficantes supostamente ligados a Roni

Peixoto provocaram o fechamento do único posto de saúde da vila, assim como de um

sacolão que é mantido pela Prefeitura na região e vende gêneros alimentícios a preços

simbólicos à comunidade da Prado Lopes. Outra prova da interferência dos traficantes na

vida da população pôde ser sentida pelos membros da Associação Recreativa Comunitária

Amigos da Pedreira Prado Lopes – Arca-PPL. Há vários anos, a entidade desenvolve um

trabalho social dentro da PPL, que consiste em manter escolinhas de futebol e handebol

para os garotos da favela. As aulas são ministradas nas quadras do Colégio Municipal e, até

o final de 2003, beneficiavam cerca de 320 crianças e adolescentes moradoras da vila. Estas

mesmas crianças também costumavam praticar esportes em um campo de futebol que existe

dentro da vila. No entanto, moradores relatam que, desde 2002, este campo vem sendo

muito usado pelos traficantes da região, o que acabou afastando muitas crianças do local.

Os criminosos teriam, inclusive, separado um dia da semana para que o espaço seja usado

apenas pelo pessoal do “movimento”.

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Em suma, a comunidade é obrigada a conviver com os traficantes e todo o seu regime

de terror. E qualquer possível mal-entendido que possa surgir entre as duas partes é

resolvida sempre pela ameaça, pela violência e pela arbitrariedade dos traficantes e suas

armas. Sem qualquer apoio de entidades governamentais, a comunidade da PPL demonstra-

se completamente impotente frente à ameaça imposta pelo tráfico.

E ainda que os traficantes procurem coibir a ocorrência de violências gratuitas e de

pequenos crimes na região da Pedreira, isso não acontece por qualquer tipo de preocupação

social. Através de seu farto armamento, as gangues exercem o controle sobre a violência

naquela comunidade, simplesmente porque a ocorrência de pequenos crimes poderia levar a

polícia até o local e atrapalhar os negócios. Como “xerifes” de sua área, na PPL os

traficantes não permitem estupros, não permitem roubo aos pequenos estabelecimentos

comerciais, assim como procuram, cada vez mais, afugentar os pequenos viciados que

consomem drogas nas ruas da favela. Mas este papel exercido por eles não pode, em

momento algum, ser confundido com uma possível preocupação social. Uma certa ordem é

imposta apenas para que o negócio da venda de drogas não seja prejudicado35.

E, apesar de se constituírem como um poder local, é preciso que fique claro que não é

possível atribuir a eles a legitimidade de um “Estado Paralelo”. Ainda que, de forma

semelhante ao Estado, seu poder repouse, em última instância, na força das armas que

possui e no monopólio da violência institucionalizada, não é possível atribuir às gangues o

papel de poder legitimamente constituído. O poder das gangues é mantido apenas pelo uso

constante e cada vez mais brutal da violência. Seu domínio é consolidado através da

ameaça e traz consigo toda a efemeridade que esta característica acarreta. Longe de

conseguirem se constituir em poder legítimo em meio à comunidade onde atuam, as

gangues da Pedreira simplesmente reproduzem uma versão torpe da relação dominador-

dominado com a qual todas elas algum dia tiveram contato ao lidar com o aparelho estatal.

35 Ver Anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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5.6. A Polícia

Como foi dito anteriormente, a PPL se viu novamente em meio a uma guerra de

gangues em outubro de 2003, devido à libertação do traficante Roni Peixoto e a sua

conseqüente tentativa de retomar o comando do tráfico de drogas no aglomerado. Na

ocasião, os traficantes da “boca-de-fumo” conhecida como “Terreirão” eram os únicos da

favela que ainda resistiam ao domínio dos homens de Roni e, por isso, vinham travando

combates quase que diários pelas ruas da Pedreira. Assim como aconteceu com a série de

conflitos ocorrida em 1999, a guerra de 2003 também começava a ganhar espaços na mídia

e, por conseqüência, a despertar a atenção da polícia. Já em setembro de 2003, o Comando

de Policiamento da Capital ordenou o reforço do patrulhamento em toda a área da PPL e os

agentes do serviço de inteligência voltaram a produzir relatórios quase que diários sobre a

movimentação das gangues no aglomerado.

Prova disso é que, no dia 7 de outubro daquele ano, duas equipes do Batalhão de

Rondas Táticas Metropolitanas – Rotam - convocaram a imprensa para anunciar que

haviam feito uma incursão bastante proveitosa na Pedreira Prado Lopes, mais precisamente

na área do “Terreirão”. Bastante orgulhosos, os PMs exibiam um suposto traficante preso e

um pequeno arsenal que teria sido encontrado em sua casa: eram duas submetralhadoras

calibre 9 milímetros, duas escopetas calibre 12, um revólver calibre 38, uma granada, três

balanças de precisão, cinco tabletes de maconha, 200 gramas de crack e cerca de

R$2.500,00 em dinheiro. Como sempre acontece, a imprensa registrou o fato e, no dia

seguinte, todos os jornais noticiavam a grande apreensão feita pela polícia.

O que nunca chegou às páginas dos periódicos foi a seguinte declaração, feita ainda

naquele dia, pelo suposto traficante preso. Já longe da presença dos militares, ele revelou a

ponta de um esquema de corrupção, cobrança de propinas, extorsão e favorecimento ao

tráfico que estaria sendo promovido por alguns militares no aglomerado. Vale ressaltar que

as informações dadas por ele foram posteriormente confirmadas por vários outros

traficantes e até mesmo moradores da Pedreira, como revela o depoimento a seguir:

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“Eu tô rodando de laranja. Os homi chegaram lá no ‘Terreirão’e falaram assim, esses mesmo aí que armaram o fragoroso: ‘Aí, vou mandá a real procês. A guerra docês tá chamando atenção demais, aí. A imprensa tá em cima e sabe cumé, né? Nós vamo tê que mostrá alguma coisa pra eles. Então cês separa aí umas arma e umas parada aí que a gente tá levando mesmo. E pode arrumá aí um docês pra rodá junto com as parada e pra segurá o flagrante’. A parada foi essa. Me pegaram de laranja porque eu só tinha um 10 na ficha. O resto ia tudo sê reincidente no 12 ou tava pedido de 121. A gente ainda jogô na cara deles que a gente já tinha feito o acerto com eles essa semana, mas eles falaram que não tava nem aí, que a imprensa tava de cima e que eles ia tê que mostrá serviço” (J. M. M. A., 25 anos, traficante da ‘boca do Terreirão’, preso no dia 07/10/2003).

A imagem que se tem da polícia parece ser o único ponto de convergência entre os

moradores da Pedreira Prado Lopes e os traficantes que lá atuam: para ambos, a polícia é

corrupta, desrespeitosa e extremamente violenta. Durante as entrevistas realizadas no

aglomerado, tanto moradores como traficantes manifestaram grande repúdio à postura

adotada por algumas equipes da PM que trabalham de forma mais constante na favela. De

acordo com eles, alguns policiais do 34o Batalhão e do Batalhão Rotam teriam participação

ativa nos negócios do tráfico. Através do pagamento semanal de propinas, os traficantes

estariam conseguindo ter acesso a informações confidenciais da polícia como, por exemplo,

as datas das operações que a PM pretende realizar no morro. O pagamento de propinas

também garantiria aos traficantes o direito de operar suas “bocas-de-fumo” sem serem

importunados pelos militares. Os PMs também são acusados de apreender armas e drogas

de uma gangue e revendê-las para outra dentro da própria favela36. Alguns poucos relatos

também dão conta de extorsões praticadas por policiais civis. No entanto, estas seriam

apenas ocasionais.

5.6.1. Polícia e Comunidade

Segundo alguns moradores, sempre circulou de boca em boca na Pedreira a

informação de que as gangues contavam com a conivência da polícia, principalmente a da

Militar. No entanto, a prova definitiva desta “parceria” teria vindo no início do segundo

36 Ver Anexo 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes; e Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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semestre de 2003, quando uma emissora de televisão divulgou, em rede nacional, imagens

da venda e do consumo de drogas praticadas nas ruas da PPL, fatos que ocorriam em plena

luz do dia, nas imediações das ruas Araribá, Carmo do Rio Claro e avenida José Bonifácio

– mais precisamente na região da “crackolândia”. Nas imagens exibidas, viaturas das

polícias Civil e Militar passavam pelo local, sem sequer importunar traficantes e viciados

que realizavam seus negócios em plena luz do dia, como se estivesse em uma feira livre das

drogas.

A reportagem, que finalmente mostrava a realidade que tomava conta de algumas ruas

da Pedreira, caiu como uma bomba na cúpula da Segurança Pública do Estado. Um dia

depois da exibição das imagens, a Prado Lopes foi ocupada pela PM e a chefia da Polícia

Civil recomendou que, daquele dia em diante, todos os seus agentes prestassem especial

atenção a qualquer movimentação suspeita na região da “crackolândia”. Durante três

semanas, o tráfico da parte baixa do aglomerado viu suas atividades sensivelmente

prejudicadas pelo acirramento da ação policial. No entanto, o caso acabou caindo no

esquecimento e, aos poucos, a PM deixou as ruas do morro para voltar a realizar seu

ineficiente patrulhamento habitual.

Mas foi um episódio que veio logo depois que deu à população da Pedreira a real

dimensão do envolvimento de policiais com o tráfico da aglomerado. Tão logo a PM

desarmou seu esquema especial de policiamento, militares que já trabalham há anos na

favela teriam se reunido com os principais traficantes do morro e anunciado que, daquele

dia em diante, todas as “bocas-de-fumo” teriam que pagar uma quantia semanal, a título de

“proteção”37. Evidentemente, não há como oferecer provas materiais de que tal fato tenha

realmente ocorrido. No entanto, a mesma informação foi obtida durante entrevistas

realizadas separadamente, tanto com moradores, quanto com traficantes da Pedreira Prado

Lopes. O fato é que, em todas as falas, a participação de policiais no tráfico é muito

ressaltada, como podemos verificar no depoimento de um dos moradores da Pedreira:

37 Ver Anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários da Pedreira Prado Lopes.

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“Lembra daquele episódio da ‘crackolândia’, quando a Globo mostrou aquelas imagens de um tanto de noiados na Araribá? Pois é, a imprensa caiu em cima e choveu de polícia na Pedreira durante mais de um mês. Mas foi só a poeira baixar que a polícia saiu. Aí, uma turma de policiais que trabalha há muito tempo aqui na Pedreira sentou com os traficantes e negociou com eles um pagamento semanal pra dar sossego. Cada ‘boca’ iria ter que pagar uma quantia X para não ser incomodada pela polícia de novo. Desde esse dia, tem ‘boca’ na Pedreira que paga coisa em torno de R$10 mil por semana. E todo mundo sabe quem são esses policiais. Tem um lá que fala claramente pra quem quiser ouvir que quem manda ali é ele. Que ele é o príncipe e que a mulher dele vai ter casamento de princesa. E que quem vai pagar são os traficantes. Essa é a polícia que a gente tem na Pedreira” (S. A., 28 anos, funcionário público e morador da Pedreira Prado Lopes, em 20/09/2003).

Por mais absurda que esta consideração possa parecer, é preciso ressaltar que o

fortalecimento das gangues e sua ação praticamente livre não são o principal problema

decorrente da participação de alguns policiais no tráfico da PPL. O maior estrago

provocado por esta conivência policial para com os traficantes é de natureza moral. Digo

isso porque, ainda que de forma arbitrária ou violenta, a polícia foi, ao longo dos anos, o

único braço do Estado a subir a Pedreira. E, a partir do momento em que até mesmo este

segmento do Governo se torna cúmplice da brutalidade das gangues, qualquer resto de

esperança se perde e, ao povo, só resta o silêncio e a resignação.

Em todas as entrevistas em que o tema da corrupção policial é abordado – de forma

espontânea ou estimulada – observa-se que o envolvimento de alguns policiais com o

tráfico acaba por destruir a já desgastada imagem que esta instância do poder público

possui na favela. A população sente-se completamente abandonada, chegando ao ponto de

preferir negociar pessoalmente com os traficantes algumas condições básicas de

convivência. Prova disso pôde ser obtida em dezembro de 2003, quando lideranças

comunitárias se reuniram com os chefes das gangues de Roni Peixoto e do “Terreirão” e

simplesmente imploraram uma trégua nos combates que ambas as facções vinham travando

desde outubro. O acordo, que foi negociado em um território neutro dentro da favela,

estipulava que os combates deveriam ser suspensos pelo menos até o início de 2004, depois

das festas de final de ano38, como confirma o depoimento a seguir:

38 Ver Anexo 1: Entrevistas com líderes comunitários da Pedreira Prado Lopes.

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“Não estava mais dando para suportar a situação que estava aqui na Pedreira. O pessoal se reuniu com os meninos do movimento e pediu para eles pararem pelo menos até passar Natal e Reveillon. Do jeito que tava não dava pra sair de casa, não dava mais nem pra sair pra trabalhar. Era tiro dia e noite, dia e noite, ninguém mais tava agüentando. Outro dia mesmo, um tanto de gente foi ferida com bala perdida. Uma pegou até mesmo em uma funcionária lá do Odilon Behrens. E a gente sabe que a polícia não tá nem aí porque, enquanto for pobre que estiver morrendo, pra eles tá bom. Isso fora os que levam grana, né? Aí o pessoal achou por bem procurar os meninos e pedir uma trégua pelo menos pra gente poder curtir o Natal em paz” (S. A., 28 anos, funcionário público e morador da Pedreira Prado Lopes, em 19/12/2003).

Obviamente, este acordo entre traficantes e moradores também chegou às páginas dos

jornais e, mais uma vez, repercutiu de forma catastrófica na cúpula da Segurança Pública.

No mesmo dia em que os principais jornais da capital publicaram a notícia, o Comando de

Policiamento da Capital ordenou uma nova ocupação da PPL, desta vez com 125 homens

revezando-se em turnos de 24 horas. Até mesmo um “Brucutu” – veículo militar com

blindagem reforçada, geralmente utilizado para dispersar multidões - foi colocado na

entrada da rua Araribá, para coibir a ação das principais “bocas-de-fumo” da favela.

Como das outras vezes, a ocupação durou pouco mais de uma semana e não produziu

qualquer resultado expressivo. Ao contrário disso, a violência e a arbitrariedade de alguns

militares colocou boa parte da população contra a ação da PM e gerou várias denúncias de

espancamentos, agressões e torturas. Ao responder de forma reativa, como aliás sempre faz,

a polícia apenas aumentou o abismo que existe entre ela e a população da Pedreira. A cada

ação como esta, nota-se que diminui a já pouquíssima confiança que a comunidade da PPL

deposita na aplicação de políticas públicas para resolução dos problemas ligados à violência

e à criminalidade.

Atualmente, graças a vários anos de ações intempestivas, mal planejadas e

simplesmente reativas às pressões da mídia, a imagem que a polícia parece ter junto à

comunidade da Pedreira é a de um órgão meramente repressor, violento e corrupto. Ao

invés de realizar seu trabalho com inteligência e aumentar sua credibilidade junto à

população local, a polícia acaba por se tornar apenas mais um agente de desagregação

social.

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5.6.2. Polícia e Traficantes

Se, por um lado, a desorganizada e corrupta ação policial no morro serve para acabar

de desmobilizar e calar a voz da comunidade da Pedreira, por outro, ela alimenta de forma

sem igual a estrutura física, financeira e moral das quadrilhas envolvidas com o tráfico.

Durante entrevistas realizadas com traficantes, vários relataram a existência de alguns

poucos grupos de PMs que convivem quase que diariamente com as gangues, em uma

rotina de total promiscuidade. Segundo eles, é muito comum a prática de extorsão das

quadrilhas, e isso acontece aos moldes do que fazia a máfia ao vender sua inoperância a

título de “proteção”. Esta cobrança já teria, inclusive, se tornado uma relação consolidada

entre os dois grupos, com valores previamente acertados e datas de pagamento acertadas

com antecedência.

A venda das armas apreendidas com uma quadrilha para outro grupo rival também é

muito relatada pelos rapazes que participam das gangues. Segundo eles, quando uma equipe

corrupta apreende uma arma com o membro de um grupo, vende-a para o integrante de

outra quadrilha ao invés de levá-la para uma delegacia. O mesmo estaria acontecendo com

pequenas quantidades de drogas, que acabam não saindo do morro. Vejamos o depoimento

de um traficante:

“É tudo uma cambada de safado véio... Esses verme só qué sabê de mordê nós. E morde mesmo! Morde toda semana, todo dia, direto e reto! Chega aqui tudo viradão perguntando ‘cadê o da semana’, querendo sabê onde é que tá as onça – notas de cinqüenta reais. É porque se você dá pra eles mixaria ainda leva tapa na cara. Eles esculacha mesmo, véio, qué nem sabê não... Eles fala que se num quisé roda no 12 tem que pagá. E mesmo quando eles num pega trepado com nada, eles planta a droga e ferra mesmo. Agora, quando eles vem na boca é diferente. É diferente porque eles fica mais coei, tá ligado? Porque aí eles sabe que se esculachá demais o tempo fecha mesmo pro lado deles. Mas se pegá sozinho na rua aí é só humilhação. Eles leva mesmo! E é tudo na mão grande. E a gente tem que pagá, tá ligado? Porque se não pagá eles fica de embaça e não tem jeito de descolá o nosso. E nosso negócio é só descolá o nosso, a gente não qué fazê mal pra ninguém não. Só que esses polícia é tudo um bando de verme, de safado. É tudo safado, véio, tudo safado, ladrão. Tinha é que sentá o dedo neles tudo!” (W. R. O., 21 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes, em 13/08/2003).

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Se na população de um modo geral o envolvimento de alguns policiais com o tráfico

alimenta a descrença no poder público e mina qualquer tipo de iniciativa que a comunidade

poderia ter no sentido de se organizar contra as quadrilhas, nos traficantes, essa

participação desperta o sentimento de completa impunidade e onipotência. A partir do

momento em que as quadrilhas sentem que são capazes de corromper e aliciar o único

braço institucionalizado que poderia combatê-las, elas se sentem intocáveis.

A participação ativa de alguns policiais no tráfico faz com que as quadrilhas da

Pedreira rompam completamente o último fio de respeito que ainda poderia haver pelo

poder público constituído. Elas se tornam senhoras de seu território e sentem-se livres para

impor suas leis, seus caprichos e sua brutalidade. A partir do momento em que as

quadrilhas passam a contar com a omissão, a conivência e, até certo ponto, o apoio do

único braço do Estado que chega à favela, elas se tornam imbatíveis. Uma vez que a

população local está completamente aterrorizada e socialmente desmobilizada, a polícia

significaria a única ameaça real que poderia haver ao poderio das quadrilhas. No entanto,

até ela foi comprada, aliciada e corrompida.

A própria maneira como os garotos do tráfico se referem à polícia já é um indicativo

claro da relação que se estabeleceu entre as duas partes. Durante as entrevistas, aparecem

muito expressões como “verme”, “safado”, “bandido”, “gambé”, “porco fardado”, entre

outras. Longe de representarem o Estado de Direito, os policiais são vistos simplesmente

como um inimigo ou um inconveniente do qual as gangues não podem se livrar. Uma

espécie de “mal necessário”, um “osso do ofício”. Entre os traficantes da PPL, é muito

difundida a idéia de que o dinheiro pode comprar a impunidade; circula no imaginários dos

traficantes a idéia de que só vai preso quem não tem dinheiro para “dar um boi pros homi”.

Entre policiais corruptos e as gangues, acaba por estabelecer-se um promíscuo jogo de

poder, cujas regras são reajustadas à medida em que a quadrilha cresce e ganha poderio

econômico e ascendência sobre a comunidade. Quanto maior e mais poderosa a quadrilha,

mais ela tem que pagar para a polícia. Para o membro de uma grande gangue, tudo é

possível, uma vez que o único empecilho que poderia existir à realização de qualquer

impulso é facilmente manipulável pelo dinheiro.

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CAPÍTULO 6: Análise da Violência e da Criminalidade na Pedreira Prado Lopes

“Aqui é onde o filho chora e a mãe não escuta, moço”. (J.G.F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes).

Uma vez colocado todo este cenário, faz-se necessário investigar quais seriam as

possíveis causas do surgimento e da consolidação do atual regime de violência e medo

imposto pelo tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes. Mais do que isso, torna-se

fundamental explicitar agora em qual medida determinados mecanismos históricos,

ambientais, sociais e culturais presentes na PPL interagiram entre si, no sentido de tornar

possível a existência da realidade que foi anteriormente descrita.

Como afirmamos, ainda no primeiro capítulo deste trabalho, acreditamos que todos

estes fatores precisam ser levados em conta porque, após observar de perto a realidade do

tráfico e das gangues da Pedreira, torna-se impossível explicar o surgimento da violência e

da criminalidade naquela localidade, simplesmente estabelecendo uma relação direta entre

pobreza e criminalidade, como se uma coisa levasse necessariamente à outra. Por mais

tentadora que esta explicação possa parecer, acreditar que dezenas de jovens da PPL foram

levados ao crime unicamente pelo fato de serem pobres significa deixar de enxergar as

milhares de crianças e adolescentes que vivem em condições mais do que precárias naquela

favela e, ainda assim, não optaram pela via criminosa como saída para seus problemas.

Além disso, também significa desprezar todo um universo de significações e representações

simbólicas do qual o mundo do tráfico e das gangues está imbuído naquela localidade

O tráfico de drogas e as quadrilhas ligadas à sua exploração não surgiram na Prado

Lopes apenas porque ali vivia uma comunidade pobre. Tanto que qualquer conversa um

pouco mais demorada com os garotos que optaram por esta via criminosa mostra, de

maneira inapelável, que a entrada para o “movimento” não representa para eles apenas uma

forma de ganhar dinheiro fácil. É óbvio que a possibilidade de lucro rápido também atrai

estes garotos. Mas, se apenas isto fosse fator determinante, creio que cada uma das

incontáveis vilas e favelas de Belo Horizonte enfrentaria problemas nesse sentido. E não é

o que se observa, uma vez que vários levantamentos estatísticos já demonstraram que a

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capital mineira possui apenas seis favelas efetivamente violentas e assoladas pela

brutalidade das gangues ligadas ao tráfico – entre elas a própria PPL (BEATO et al., 2001).

Além de desmistificar a idéia de que existiria uma ligação direta entre pobreza e

criminalidade, é preciso deixar bem claro que, por mais incrível que pareça, também não é

possível estabelecer um vínculo direto entre a presença do tráfico de drogas em uma

localidade e a ocorrência de crimes violentos. O maior exemplo disso é a favela Sumaré -

que assim como a Pedreira está localizada na região Noroeste de BH. De acordo com

levantamentos da Polícia Civil e do Serviço de Inteligência da Polícia Militar, a Sumaré é

hoje um dos maiores pontos de tráfico de cocaína de Belo Horizonte. Só que,

diferentemente do que ocorre na PPL, uma única facção criminosa gerencia todo o

“movimento” naquela localidade e cuida para que a droga que chega ali seja distribuída

para vários outros aglomerados da capital. Na Sumaré, passam-se vários meses sem que a

polícia registre qualquer tipo de ocorrência de crimes violentos. Ou seja, o exemplo da

Sumaré constitui um claro indicativo de que vários fatores devem ser analisados antes que

se estabeleça uma relação direta entre a presença do tráfico de drogas em uma localidade e

a existência de criminalidade violenta na mesma. Parece-me que a ocorrência de crimes

violentos está muito mais associada à desorganização do tráfico e à existência de várias

quadrilhas que disputam seu domínio do que a sua mera presença em meio a uma

comunidade, como indicam estudos realizados por Misse (1997) e Zaluar (1994).

A própria Pedreira Prado Lopes, que é notoriamente o maior centro de vendas de

crack de BH, registrava relativamente poucos homicídios até pouco tempo atrás, se

comparada com as demais favelas violentas da capital. Entre os anos de 1998 e 2003, por

exemplo, 45 pessoas foram assassinadas na PPL. No mesmo período, foram 160 mortes na

favela do Cafezal, 123 no Morro das Pedras, 141 no Morro do Papagaio, 126 na favela do

Taqüaril e 87 na Cabana do Pai Tomás. Ainda de acordo com levantamentos da Polícia

Civil, praticamente todos estes crimes foram cometidos por membros de gangues ligadas ao

tráfico de drogas, em meio às intermináveis guerras que estes grupos travam entre si pelo

controle da atividade em suas respectivas vilas e favelas (DCCV, 2002). Portanto, parece-

nos bastante coerente dizer que não é simplesmente o tráfico de drogas em si o grande

responsável pela imensa quantidade de homicídios registrados nas favelas citadas

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anteriormente, mas sim a grande desorganização muitas vezes inerente a este mercado que,

quando não possui um comando único, é sempre disputado a bala por várias gangues.

Ainda que não exista bibliografia específica sobre o assunto, não é difícil inferir que o

número relativamente baixo de homicídios registrado na Pedreira Prado Lopes até 2003

deveu-se justamente ao alto nível de organização atingido pelas gangues que traficam

drogas naquele morro. Na PPL, diferentemente do que aconteceu nas demais favelas

violentas de BH, as gangues sempre tiveram lideranças fortes e conseguiram demarcar, de

forma razoavelmente bem definida, suas áreas de atuação. Isso faz com que o aglomerado

fosse palco de relativamente poucos confrontos entre os grupos e, conseqüentemente, de

poucas mortes. Nas demais favelas violentas da capital, as quadrilhas não conseguiram

atingir um nível mínimo de organização e entraram em uma rotina de enfrentamentos que

deixa para trás de si um rastro de centenas de assassinatos todos os anos.

Nas demais favelas violentas, parece que os grupos não possuem lideranças capazes

de dialogar entre si e não conseguiram delimitar suas áreas de atuação – o que faz com que

os membros de uma gangue invadam constantemente o território da outra. Na PPL, por

exemplo, o tráfico sempre foi dominado por uma só grande quadrilha, que era comandada

pelo traficante Roni Peixoto. Ocasionalmente, assistiu-se ao surgimento de alguns grupos

dissidentes, que se organizaram em novas quadrilhas e tentaram impor seu próprio domínio.

Mas, pelo menos da Pedreira, tal fato é exceção e não regra. Nas demais favelas violentas, a

desorganização do tráfico faz com que a polícia tenha que lidar com o aparecimento de

várias gangues que, dividindo o espaço mínimo de um aglomerado, mantêm entre si

intermináveis ciclos de violência e morte. Um exemplo disso pode ser visto em um

relatório interno produzido pelo serviço de inteligência do Batalhão Rotam que apontava, já

em 2001, a existência de cinco gangues diferentes atuando apenas na favela Cabana do Pai

Tomás.

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6.1. Aspectos a serem analisados e estruturas de abordagem

Considerando-se especificamente o caso da Pedreira, faz-se necessário identificar e

explicitar como e em qual medida determinados fatores históricos, ambientais, sociais e

culturais presentes na favela interagiram e ainda interagem entre si no sentido de tornar

possível o surgimento de gangues ligadas ao tráfico de drogas naquela localidade e a

consolidação das mesmas nos moldes de como se vê nos dias de hoje. Durante o trabalho

de pesquisa, ficou muito claro que o surgimento e a consolidação do tráfico de drogas e das

quadrilhas envolvidas na sua exploração não ocorreu do dia para a noite naquela localidade.

Ao contrário, foi um processo lento e gradual, cuja configuração consumiu pelo

menos três décadas. Nesse sentido, é possível observar que uma série de fatores e

circunstâncias operaram conjuntamente, no sentido de tornar possível a realidade que se

observa hoje na PPL. E, quando digo diversos fatores, refiro-me especificamente a todas

aquelas características históricas, geográficas, culturais, sociais e estruturais que, segundo

as teorias da “Desorganização Social” e da “Eficácia Coletiva”, acabam por constituir um

ambiente amplamente favorável para o surgimento da violência e da criminalidade em

comunidades pobres dos grandes centros urbanos(SHAW & MCKAY, 1942; BURSIK &

GRASMICK, 1993; SAMPSON et al., 1997).

Como já afirmamos no início deste trabalho, a teoria da “Desorganização Social”

defende a idéia de que o crime tende a se manifestar com mais intensidade em comunidades

que apresentam concentração de desvantagens econômicas e sociais, altas taxas de

rotatividade residencial e uma grande heterogeneidade populacional. Todos estes fatores

concorreriam para diminuir a coesão social daquela comunidade e, conseqüentemente, a

capacidade de resolver internamente seus próprios problemas e controlar o surgimento da

violência e da criminalidade. De acordo com Shaw e McKay, em uma vizinhança

socialmente desorganizada, os indivíduos possuem um baixíssimo grau de vínculo moral

para com a sua própria comunidade. Conseqüentemente, os custos morais de se cometer um

crime também diminuem sensivelmente.

Por sua vez, a teoria da “Eficácia coletiva”, pode ser considerada uma extensão ou

um refinamento da idéia original proposta por Shaw e McKay. Nela propõe-se a idéia de

que o crime se manifestaria com mais intensidade em comunidades que possuem um baixo

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grau de coesão social e, principalmente, um baixo grau de eficácia coletiva. Ou seja, a

violência e a criminalidade seriam fruto da incapacidade que uma comunidade tem de

estabelecer uma gama de valores comuns entre seus membros e da incapacidade que esta

mesma comunidade tem de controlar o comportamento de seus indivíduos. Coloca-se a

idéia de que a falência de instâncias de socialização primária e controle informal como a

família, a escola, a igreja e as associações comunitárias impossibilitem a comunidade de

controlar o comportamento de seus indivíduos, o que acaba facilitando o surgimento do

crime.

Antes de seguir adiante, é preciso fazer uma ressalva. Ambas as teorias que

fundamentam este trabalho foram elaboradas dentro do contexto histórico, cultural e social

norte-americano de várias décadas atrás. A teoria da “Desorganização Social”, por

exemplo, teve seu embrião gerado na década de 1930, pelos sociólogos Clifford Shaw e

Henry McKay. A teoria da “Eficácia Coletiva”, por sua vez, é mais recente: data das

décadas de 80 e 90. Mas ainda assim foi elaborada levando em conta o contexto social

urbano dos Estados Unidos.

Desta maneira, acreditamos que será necessário fazer todo um trabalho de

transposição e adaptação, no sentido de tornar estas teorias plausíveis para o atual contexto

sócio-cultural brasileiro, mais precisamente para o cenário que se observa hoje na Pedreira

Prado Lopes. De ambas as teorias, alguns aspectos serão deixados de lado, enquanto outros

ganharão mais importância ou serão adaptados para nossa realidade. No entanto, ainda

acredito que as idéias que fundamentam ambas as linhas de raciocínio podem abalizar uma

análise bastante frutífera do processo de surgimento e consolidação da violência do tráfico

de drogas e das gangues na PPL.

6.2. Localização geográfica, configuração ambiental e logística do tráfico

Em um primeiro momento, não há como deixar de abordar a localização privilegiada

que a PPL oferece para a atividade do tráfico. Como já descrevemos anteriormente, a favela

fica na região Noroeste de Belo Horizonte, muito próxima ao centro da capital, entre os

bairros Santo André, São Cristóvão, Lagoinha e Concórdia. Em sua margem Leste, a PPL é

tocada pela avenida Presidente Antônio Carlos, um dos mais movimentados corredores de

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trânsito da cidade e que faz a ligação entre as regiões Norte e Central de BH. Assim que os

carregamentos de droga chegam à Pedreira, eles encontram escoamento fácil para qualquer

localidade da capital.

Além de a localização geográfica da PPL favorecer a distribuição dos carregamentos

de drogas que chegam à favela, a própria configuração ambiental assumida pela parte

interna da favela estimula a proliferação do tráfico no regime de varejo e torna

extremamente difícil o seu combate. Para a polícia, fica muito difícil reprimir a venda de

drogas, uma vez que o interior da Prado Lopes assemelha-se a um intrincado labirinto

formado por vielas bastante estreitas e mal iluminadas. Grande parte das ruas não possui

mais do que dois metros de largura, o que não possibilita a passagem de veículos ou

viaturas. Além disso, a infinidade de barracões e casebres existentes na favela faz com que

seja praticamente impossível saber quais imóveis servem de esconderijo para traficantes,

armas e drogas.

Para as quadrilhas de traficantes, em compensação, a configuração da PPL oferece

todas as condições adequadas para a manutenção de um negócio ilegal. As poucas e

estreitas entradas da favela podem ser facilmente monitoradas, o que faz com que os

criminosos saibam exatamente quem entra e quem sai do morro. As vielas e ruas estreitas,

ao mesmo tempo em que impedem a subida de viaturas, possibilitam fugas rápidas no caso

da chegada de policiais ou traficantes inimigos. Nesse sentido, aliás, o conhecimento de

todas as entradas, saídas, passagens e atalhos da favela oferecem aos traficantes uma

vantagem considerável sobre a ação policial. O próprio ambiente da favela, com toda a sua

configuração opressiva, miserável, caótica e desorganizada cria um ambiente altamente

criminógeno e oferece uma vantagem psicológica considerável às gangues que ali nasceram

e foram criadas.

Dentro da Pedreira, as gangues ou quadrilhas estão em seu ambiente natural. Foi lá que

elas surgiram e é ali o seu território. Os traficantes se movimentam dentro da favela com

uma facilidade e rapidez incríveis. Eles conhecem com muita precisão cada atalho, cada

passagem, cada esconderijo e cada barracão que pode servir como refúgio em um

momento de perigo. Cada família da favela é conhecida e pode ser coagida a servir

como aliada, no caso de uma entrada repentina da polícia. Durante o trabalho de

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pesquisa, aliás, vários foram os relatos que apontaram nesse sentido39, ocasionalmente,

muitas famílias da favela são obrigadas a guardar armas e drogas em suas casas, uma

vez que, por estarem acima de qualquer suspeita, não terão seus barracões revistados no

caso de uma batida policial.

Os pouquíssimos telefones públicos que existem na região, justamente aqueles que

poderiam servir para a população denunciar à polícia a atividade das gangues, ficam no

entorno da vila. Ainda assim, alguns deles foram propositalmente danificados pelos

traficantes e, os que sobraram, ficam instalados ao lado de determinadas “bocas-de-fumo”,

o que impede o seu uso como instrumento de denúncia. É o caso de telefones públicos

instalados nas proximidades da rua Serra Negra, na parte alta da favela, e nas ruas Carmo

do Rio Claro e na esquina da avenida José Bonifácio com rua Araribá, principais pontos de

venda de drogas das gangues da parte baixa do aglomerado. Ou seja, os poucos telefones

públicos que existem na PPL acabam por ser de maior serventia aos traficantes do que à

população.

O mesmo pode-se dizer com relação à iluminação pública da favela. Além de a

Pedreira já ser um local naturalmente mal iluminado e abafado, em alguns pontos do morro,

os traficantes ainda se deram ao trabalho de estourar as lâmpadas dos postes, para dificultar

a visibilidade do local. Pode-se observar que determinados becos dentro da favela são

completamente escuros à noite, devido a este expediente. Durante o trabalho de pesquisa na

favela, muitas foram as reclamações neste sentido. Moradores dizem que não é raro ver

alguns rapazes atirando nas lâmpadas, logo que elas são trocadas por agentes da Companhia

Elétrica. Isso prejudica sensivelmente a locomoção da polícia nestes pontos da favela, o

que, em contrapartida, não acontece com as gangues, que já conhecem minuciosamente

estes locais.

Em suma, pode-se dizer que a localização estratégica com relação ao centro de Belo

Horizonte e própria configuração ambiental interna da PPL favorecem bastante a

proliferação do tráfico de drogas e das gangues ligadas à sua exploração. Em medida

inversamente proporcional, também se pode dizer que estes dois fatores prejudicam

sensivelmente o trabalho de repressão, tanto ao tráfico quanto às gangues.

39 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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Além de beneficiar as gangues do tráfico e prejudicar a ação da polícia, a

configuração ambiental caótica e desorganizada da PPL também oferece graves empecilhos

à formação de um corpo social mais coeso, um dos principais aspectos ressaltados pela

teoria da “Eficácia Coletiva”. Não existem na favela muitos espaços de convivência

comum, o que dificulta muito a integração entre os moradores e torna muito prejudicada a

noção de espaço público. O conjunto formado pela avenida José Bonifácio e pela rua

Araribá, por exemplo, tornou-se um dos mais movimentados pontos de tráfico de drogas da

favela, o que afugentou os moradores que lá costumavam se encontrar. O campo de futebol

que existe dentro da vila, que antigamente servia como espaço de confraternização de

famílias e grupos de crianças, atualmente é visto como um ponto de encontro da

marginalidade da favela e evitado pela maioria dos moradores.

O prédio no qual a Prefeitura estuda a implantação de um centro de referência do

cidadão, localizado na rua Araribá, fica justamente em frente ao local que acabou se

tornando o principal campo de batalhas entre os traficantes da região. Devido ao fato de

ficar bem na fronteira entre o território ocupado pelas quadrilhas da parte baixa e as da

parte alta, o local é palco de enfrentamentos diários. Não raramente, a fachada do abrigo

municipal é metralhada em plena luz do dia, por adolescentes que trocam tiros sem se

importar com quem possa estar nas ruas da favela.

A própria praça Escravo Isidoro, que fica em uma região central da favela e abriga o

posto de saúde, vem sendo evitada pelos moradores, uma vez que suas imediações são

palco constante de enfrentamentos entre as quadrilhas do morro. O local ainda é bastante

movimentado, mas os moradores garantem que, aos poucos, vem deixando de sediar as

festas que em outros tempos eram feitas na favela. Aos poucos, devido ao crescimento da

violência do tráfico e ao processo de verticalização da favela, assiste-se na Pedreira o

recrudescimento dos espaços de convivência comum, o que restringe a noção simbólica de

lugar público ou vizinhança e faz com que os moradores sejam praticamente alijados do

sentimento de pertencimento a uma comunidade. Na Pedreira, a violência do tráfico e a

extrema concentração de desvantagens estruturais e sócio-econômicas faz com que seja

praticamente impossível a formação de um corpo social coeso e, conseqüentemente, de uma

comunidade capaz de resolver internamente seus próprios problemas.

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6.3. Desorganização Social e Eficácia Coletiva

6.3.1. Histórico

Além de fatores geográficos e ambientais, diversos fatores históricos e sociais

também contribuíram para que a realidade do tráfico e das quadrilhas tomasse conta da

Pedreira Prado Lopes. Pode-se até mesmo dizer que a própria história de como a favela se

formou e os traços culturais adquiridos por sua comunidade fizeram com que a violência do

tráfico encontrasse um terreno fértil para se proliferar.

Como já descrevemos anteriormente, a PPL surgiu nas primeiras décadas do século

XX, como uma espécie de vila-dormitório para os operários que trabalhavam na imensa

pedreira que fornecia matéria prima para a construção de Belo Horizonte. Vindos dos mais

diversos cantos do estado e do país, estes operários acabaram por constituir uma vila que,

historicamente, sempre foi marcada pelas condições subumanas de moradia e pela desunião

de sua comunidade. Estudos sobre a história da PPL demonstram claramente que os

primeiros moradores do local não se fixaram ali com a intenção de construir uma

comunidade. Não se estabeleceram naquele terreno íngreme querendo constituir uma

vizinhança. Eles simplesmente levantaram ali uma moradia improvisada, onde poderiam

descansar após um massacrante dia de trabalho semi-escravo na Pedreira que pertencia à

família Prado Lopes. Esta característica vai ao encontro daquilo que é colocado pela teoria

da “Desorganização Social”, segundo a qual a violência e a criminalidade encontrariam um

terreno mais fértil para se manifestar em comunidades marcadas pela baixa coesão social,

que seria provocada pelas altas taxas de rotatividade residencial e pela heterogeneidade da

população local. Nas primeiras décadas do século XX, era exatamente este quadro que se

via na PPL.

Justamente por isso, pode-se dizer que, durante os primeiros anos de sua formação,

nunca houve na Pedreira nenhum movimento por parte da comunidade no sentido de

constituir associações de moradores ou qualquer tipo de entidade representativa. Tanto que

as primeiras conquistas obtidas pela população local se deram através de relações pessoais

e clientelistas que determinados moradores mantinham com políticos da época, que já se

aproveitavam da oportunidade para constituir seus currais eleitorais na recém criada capital

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mineira. A instalação de torneiras públicas, a chegada de luz elétrica e a pavimentação das

primeiras ruas da vila não se deram em decorrência da mobilização da comunidade. Todas

estas conquistas vieram de forma esporádica e desordenada, tanto que, até hoje, nem todos

os moradores tiveram acesso pleno a estas benfeitorias. Várias famílias da PPL ainda

sofrem com esgotos correndo a céu aberto, com ruas não pavimentadas, com instalações

elétricas improvisadas e diversos outros problemas que afetam sensivelmente as condições

de salubridade da vila.

E toda esta realidade fez com que, historicamente, a comunidade da Pedreira se

tornasse profundamente descrente com relação à atuação do poder público, das entidades

representativas e da força do associativismo. Ela se tornou descrente de si mesma. O

próprio processo de formação das associações comunitárias da Pedreira conta de forma bem

clara a história de desunião, desmobilização e desorganização social daquela comunidade.

Apesar de ter se formado já nas primeiras décadas do século XX, a PPL só vê nascer sua

primeira associação comunitária – A União Prado Lopes - já nos anos 70, mais

precisamente em 1974. Ainda assim, o surgimento desta entidade no morro esteve

intimamente ligado à atuação da Igreja Católica que, com muitas dificuldades, procurava

conscientizar a população local sobre a importância de sua maior participação nos assuntos

da vila. Coloca-se aqui, portanto, justamente um dos aspectos mais importantes apontados

por Sampson et al. (1997) na teoria da “Eficácia Coletiva”, quando ele afirma que a

falência de instituições de socialização e controle como as associações de bairro criariam

um terreno fértil para o surgimento do crime.

No que se refere aos aspectos evidenciados anteriormente, vejamos, a seguir, a citação

de um trecho do relatório da pesquisa realizada pela Prefeitura (Urbel, 1998):

“Na década de 70 foi criado pelo governo estadual o PRODECOM - Programa de Desenvolvimento de Comunidades. O programa teve larga atuação na Pedreira Prado Lopes ao longo dos anos 70 e 80, trazendo muitas melhorias. Ele funcionava através das associações comunitárias locais, transferindo verbas para elas, que deveriam ser revertidas em prol da comunidade. A União Prado Lopes recebeu muitas verbas desse programa. As melhorias ocorridas incluem alargamento e pavimentação de becos, rede de esgotos feita pelos moradores, convênios para ligação de água e luz e outras. Só neste período os moradores puderam fazer sua rede de esgotos, através de mutirão dos moradores e verbas do PRODECOM. Apesar das melhorias, a população faz muitas

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reclamações a respeito da associação neste período, alegando incompetência e corrupção na administração dos recursos recebidos. De fato, de acordo com todos os entrevistados, o envolvimento e a participação da população como um todo nas questões da vila sempre foi baixo, o que demonstra que a associação nunca obteve uma boa representatividade. Havia também muito estranhamento e desconfiança em relação ao contato que era estabelecido entre os membros da associação e o PRODECOM, inclusive pelo fato de existir remuneração para os representantes comunitários. O já citado descrédito da população à política reforçava a desconfiança e a apatia da maioria, o que fica claramente visível pelas pesquisas realizadas - canais de reivindicação da comunidade: 57,4 % não reivindica; 28,4 % não sabe. Participação em instituições e movimentos locais: 86 % não participa ou freqüenta” (URBEL, 1998).

Observa-se claramente que todo o histórico de desunião e desmobilização da

população da Pedreira Prado Lopes tem grande parte de sua origem na experiência de lidar

com o completo abandono de um Estado que, longe de oferecer as condições básicas para a

consolidação daquele povo, sempre mostrou sua faceta mais omissa, clientelista e

opressiva. Na medida em que foram se consolidando enquanto uma comunidade de fato, os

moradores da PPL sempre obtiveram suas conquistas de forma descoordenada e

independente de qualquer ajuda governamental. Mas, ao contrário do que era de se esperar,

esta vida de lutas e sofrimento não serviu para unir a população local em torno de um ideal

comum. A experiência extremamente negativa com o Estado fez com que os moradores da

Prado Lopes se tornassem descrentes, desesperançosos e visivelmente desmobilizados. Não

se pode falar em coesão social na Pedreira.

E razão não lhes falta para isso. Nota-se que os únicos braços do Estado a subir as

intrincadas ruas da Pedreira são as polícias Civil e Militar. E, como foi dito anteriormente, a

experiência diária dos moradores da favela com os policiais não é das melhores. Durante o

trabalho de pesquisa, a grande maioria dos entrevistados tinha uma história de corrupção

policial para contar. São casos que vão desde a mais simples abordagem desrespeitosa nas

ruas da favela até denuncias gravíssimas de torturas, humilhações, invasões de domicílios,

extorsões, roubos, participação no tráfico de drogas e até mesmo execuções sumárias. E, a

partir do momento em que o único braço do Estado presente na favela deixa de ser uma

entidade minimamente confiável, não resta mais a quem recorrer.

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A imagem corrupta e violeta que a polícia adquiriu na Prado Lopes tem o poder de

destruir, de antemão, qualquer tipo de iniciativa que a população local pudesse pensar em

ter contra as quadrilhas que lá gerenciam o tráfico de drogas. A partir do momento em que

corre no imaginário da comunidade que só é preso aquele traficante que deixa de pagar as

propinas semanais, como é possível convencer os moradores a denunciar a ação dos grupos

armados à polícia? Como é possível querer que a comunidade se posicione contra os

traficantes, quando corre na favela a história de que existem policiais militares fardados

fazendo escolta para carregamentos de drogas que chegam ao morro? Os moradores

simplesmente não têm a quem recorrer. Não encontram o suporte necessário a qualquer

iniciativa que possam vir a propor para combater o problema das gangues e do tráfico.

É muito fácil perceber que qualquer programa de combate à violência que venha a ser

implantado na PPL deverá, antes de mais nada, combater a corrupção de alguns policiais

que trabalham na favela e investir na reconstrução da imagem da polícia. Logo nos

primeiros contatos com moradores da região, nota-se facilmente que as polícias não

possuem qualquer credibilidade junto à comunidade local. Arraigou-se no imaginário da

população da Pedreira uma imagem extremamente negativa da ação policial, o que,

conseqüentemente, acarretará em uma resistência muito grande a qualquer programa de

segurança que venha a se propor naquele local.

6.3.2. A Falência das Instituições de Socialização e de Controle

Em suma, observa-se que toda a história de desmobilização da população da Pedreira

abriu, naquela favela, lacunas sociais que possibilitaram o surgimento e o fortalecimento de

gangues ligadas ao tráfico de drogas. Hoje, a PPL é uma comunidade minada pela desunião

e sitiada pelo medo. Apesar de viverem colados uns aos outros, amontoando-se em

miseráveis casebres multifamiliares, os habitantes da PPL não participam de muitas

atividades comuns, festas ou confraternizações; atividades estas que, entre outras, deveriam

incutir neles sentimentos de união e pertencimento a uma comunidade. Conseqüentemente,

enfraquecem-se todos os mecanismos de coesão social e, em contrapartida, fortalecem-se

todos os fatores que fazem da Pedreira Prado Lopes uma das comunidades mais

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socialmente desorganizadas de Belo Horizonte e, conseqüentemente, uma das mais

propícias à manifestação de altos índices de criminalidade.

E toda esta desorganização social mina ainda mais os já cambiantes e combalidos

mecanismos e instituições que deveriam ser responsáveis pela socialização e pelo controle

informal do comportamento popular. Assim como as associações comunitárias, que

historicamente nunca conseguiram mobilizar a população da PPL, outras instâncias e

valores como família, igreja e escola também se vêm extremamente desagregadas naquela

favela. E é curioso notar como toda esta realidade de desorganização social da Pedreira

funciona hoje como um mecanismo que se auto-alimenta: se, em um primeiro momento, a

falência de instituições como a família, a igreja, a escola e as associações comunitárias

serviu como um terreno fértil para a proliferação das quadrilhas e do tráfico na Prado

Lopes, nos dias de hoje é justamente a brutalidade do comércio de entorpecentes que atua

como principal mantenedor de toda a falência social da PPL. O tráfico e toda a sua

brutalidade minam qualquer possibilidade de associativismo, corrompem em todas as

escalas a capacidade de mobilização popular e acabam por decretar a falência de todas as

instituições de socialização e controle de uma comunidade.

Os exemplos desta realidade são muito claros e saltam aos olhos de qualquer

observador que se dispuser a subir as ruas da Pedreira. Como foi dito anteriormente, em

muitas famílias do morro, simplesmente não existe a figura paterna, o que faz com que os

lares sejam chefiados por mulheres que, diariamente, são obrigadas a sair para trabalhar e

não têm com quem deixar os filhos. Estas crianças são socializadas nas ruas da favela, sem

qualquer supervisão ou restrição. O convívio com os traficantes é rotineiro e muitos

começam a se envolver com o “movimento” sem que os pais sequer percebam. Nota-se que

não existe nenhum controle ou supervisão sobre as atividades desenvolvidas pelos grupos

juvenis, o que acaba se constituindo em um terreno extremamente fértil para o surgimento

das gangues.

As igrejas que se instalaram na Pedreira não exercem um papel de liderança ativa,

nem primam pela realização de trabalhos de cunho social. Nota-se que, historicamente, os

padres ou pastores que lá trabalham simplesmente não foram capazes de mobilizar a

comunidade da PPL em torno de um corpo comum de ideais ou projetos. Os poucos padres

que tentaram a tomar as rédeas de algumas iniciativas sociais enfrentaram a resistência de

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associações comunitárias ou dos traficantes. O último exemplo deste tipo de procedimento

pôde ser visto no final de 2003, quando um pároco local, que possuía uma ascendência

muito grande sobre a comunidade, simplesmente teve que se mudar da Prado Lopes,

supostamente depois de receber várias ameaças da marginalidade local.

Enfim, existem vários indícios que apontam no sentido de que a população da PPL

simplesmente não foi capaz de se constituir enquanto comunidade. Ao longo de seus quase

100 anos de existência, os moradores da Pedreira não foram capazes de assimilar um

conjunto de valores comuns que os permitisse julgar e resolver internamente os problemas

que vivenciam. As instituições sociais que deveriam, pelo menos teoricamente, reforçar o

controle informal sobre o comportamento dos indivíduos encontram-se completamente

falidas ou desestruturadas naquela favela. As famílias, sempre sobrevivendo em condições

miseráveis e completamente carentes de qualquer tipo instrução ou orientação, não

socializam as crianças; as escolas, sempre deterioradas, mal equipadas e sem condições

mínimas de funcionamento, não educam os jovens da comunidade; e as igrejas,

historicamente alheias às questões sociais, não mobilizam a população em torno de ideais e

projetos comuns. Salta aos olhos a incapacidade que a comunidade da PPL tem de se auto-

regular. É muito patente a mais completa incapacidade daquela vizinhança em exercer um

controle minimamente eficiente sobre o comportamento de seus membros, devido à

falência de todas as instituições sociais que deveriam ajudar nesta tarefa. Abandonada à

própria sorte, a PPL é hoje o mais perfeito cenário que se poderia encontrar em Belo

Horizonte para a proliferação da violência e da criminalidade do tráfico de drogas.

A prova da mais completa deterioração de todas as instituições e representações

coletivas que deveriam incentivar a comunidade da Pedreira a exercer o controle formal e

informal sobre o comportamento de seus membros pode ser vista em uma pesquisa

realizada em 2002, pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp).

De acordo com os dados coletados por essa pesquisa, 55% dos moradores da Prado Lopes

se mudariam para outro bairro se tivessem oportunidade. Questionados sobre os limites de

sua vizinhança, 90% responderam que consideram como sendo sua vizinhança apenas as

cinco ou seis casas mais próximas ou, no máximo, os cinco quarteirões mais próximos de

sua casa. Não existe, portanto, o mínimo senso de coletividade ou comunidade, elementos

fundamentais para que uma vizinhança possua um grau mínimo de eficácia coletiva, ou

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capacidade de controlar o comportamento de seus indivíduos e resolver internamente seus

próprios problemas.

Vale lembrar que, em uma favela entrecortada por becos e vilelas de toda espécie,

delimitar como sua vizinhança o espaço de cinco ou seis quarteirões, significa não abranger

mais do que 100 metros. Ou seja, observa-se que, na PPL, cada morador está disposto a

tomar conta apenas da própria casa, quando muito das casas muito próximas às dele. A

noção de pertencimento comum a uma vizinhança é extremamente restrita, o que faz com

que todos os mecanismos de vigilância informal sejam enfraquecidos. Tomando-se como

parâmetro este tipo de representação, um morador que vê um traficante vendendo drogas no

final de seu próprio quarteirão não se sente compelido a tomar qualquer providência contra

ele, uma vez que tal delito não está acontecendo dentro de sua restrita noção de vizinhança .

Ainda de acordo com os dados dessa pesquisa, ao serem questionados sobre os

trabalhos voluntários que teriam realizado na comunidade durante o último mês, 94,7% dos

entrevistados responderam que não realizaram nenhum tipo de trabalho neste período.

Particularmente, não vejo porque pensar que tenha sido diferente nos meses anteriores. A

pesquisa demonstra ainda o pouco contato que os moradores locais mantêm com seus

vizinhos, apesar da proximidade quase que promíscua das residências: 55% fazem e/ou

recebem menos de uma visita de vizinhos por semana ou não fazem e/ou recebem

praticamente nunca. Mais uma vez, pode-se observar o baixíssimo grau de coesão e

solidariedade social que existe entre os moradores da Pedreira, o que também ajuda a

enfraquecer todo tipo de mecanismo de controle social e de Eficácia Coletiva.

No que se refere à violência propriamente dita, os dados da pesquisa também

comprovam que a população da Prado Lopes é obrigada a conviver cotidianamente com as

gangues ligadas ao tráfico. Tanto que a percepção da criminalidade na favela manifesta-se

através dos elementos mais explícitos como a constatação de pessoas armadas andando pela

vizinhança e a presença de tiroteios nas ruas da PPL. Ainda de acordo com os dados dessa

pesquisa, 60% dos entrevistados constatam usualmente a presença de pessoas armadas nas

ruas da Pedreira. Quando questionados sobre a constatação de tiros na vizinhança, esse

percentual sobe para inacreditáveis 95%. Questionados sobre a presença de pessoas

quebrando janelas, pichando ou fazendo arruaça na vizinhança, 70% dos entrevistados

respondeu que já viu ou já ouviu falar. No que diz respeito a pessoas xingando, ofendendo

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ou insultando outras pessoas na vizinhança, 65% dos entrevistados também afirmaram que

já viram ou ouviram falar.

Mas é justamente naquilo que se refere às gangues e ao tráfico de drogas que os dados

da pesquisa demonstram de maneira clara o problema vivenciado pela comunidade da PPL:

95% dos entrevistados já viram ou ouviram falar de pessoas consumindo drogas na

vizinhança, enquanto 90% já viram ou ouviram falar de pessoas vendendo drogas nas ruas

da favela. Outros impressionantes 85% já viram ou ouviram falar de criminosos ou

bandidos circulando nas ruas da vizinhança.

Ou seja, a pesquisa evidencia que a percepção da violência e da criminalidade é uma

realidade extremamente viva no cotidiano da comunidade da Pedreira Prado Lopes. As

representações simbólicas e o imaginário dos moradores são claramente permeados pela

questão da brutalidade das gangues, da violência física e moral do tráfico, da deterioração

da vizinhança, do risco de se sair de casa durante as noites e da mais completa falta de

expectativa de mudanças a curto, médio e até mesmo longo prazo. Esta realidade prejudica

sensivelmente o estabelecimento de laços de sociabilidade e solidariedade entre os vizinhos

e, conseqüentemente, enfraquece os mecanismos de controle informal dos quais a

comunidade poderia dispor. O medo das gangues e de sua violência, além da acanhada

noção de vizinhança que tomou conta do imaginário da população, afeta diretamente a

participação popular em questões da comunidade, enfraquecendo o poder de regulação e

controle que poderiam ter instituições como a igreja, a família, a escola e as associações de

bairro.

Por outro lado, a consolidação de toda esta realidade de desmobilização e

desorganização social da comunidade da Pedreira também faz com que cresça o poder

territorial e psicológico das gangues que lá se envolveram com o tráfico de drogas. A partir

do momento em que o grupo percebe que se instalou no seio de uma comunidade que não

consegue se mobilizar de maneira minimamente satisfatória para combatê-la, ela sente-se

segura para ampliar seus domínios e conquistar mais poder. Ainda que de forma

subentendida, é patente a sensação de controle sobre a favela da qual estes garotos

desfrutam. Após décadas de inércia popular, formou-se na cabeça dos traficantes da PPL a

idéia de que o território do morro pertence única e exclusivamente a eles. Como senhores

feudais que dividiram a Prado Lopes em sítios bem demarcados, eles se dão ao direito de

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cobrar pedágios e até mesmo de inspecionar mochilas de crianças e sacolas de homens e

mulheres que vão de uma parte a outra do morro.

A falência dos mecanismos ou instituições de controle social, sejam eles formais ou

informais, é tão explícita que, para os jovens ligados ao tráfico na PPL, parece não haver

mais qualquer tipo de custo social vinculado à prática do crime. Aos poucos está se

arraigando naqueles rapazes a percepção de que não é mais necessário esconder suas armas,

de que as casas invadidas não são mais reclamadas pelos antigos proprietários e de que seus

desmandos passam a ganhar legitimidade entre os moradores. O terror imposto pelo tráfico

é tão grande, que a comunidade não tem mais coragem de repreender os adolescentes

ligados às gangues. A presença deles é temida e, muitas vezes, até admirada por outros

garotos que não fazem parte do “movimento”. Como afirma Zaluar (1994:p 9):

“Sem serem formados por escola ou religião que lhes passe uma ética rígida de trabalho, esses jovens aprendem cedo os valores do machismo, o que exacerba ainda mais o caráter humilhante da submissão, negação da marca do homem. Como fazê-los, portanto, admirar e tomar como modelo o pai que se curva a esta árdua rotina, à exploração e ao autoritarismo? Seus heróis são outros. Na falta de um movimento operário forte de onde saíam líderes operários com fama, eles se voltam para os eternos valentes da nossa cultura popular que desafiam, passam rasteira e se negam a este mundo do trabalho. Se antes, por lá, os valentes eram os simpáticos malandros, hoje são os perigosos armados bandidos. A navalha foi substituída pelo “oitão” ou minimetralhadora, o leal corpo a corpo pela tocaia traiçoeira, a lei do mais valente pela lei do mais armado”.

Para aqueles garotos, parece haver cada vez menos custo social em se fazer parte das

quadrilhas ligadas ao tráfico na PPL. Naquela favela, a desagregação de instituições como a

família, a escola, a igreja e as associações de bairro fez com que caíssem por terra uma

infinidade de mecanismos de controle informal que poderia fazer com que fosse

socialmente mais difícil e custoso entrar para o tráfico. Justamente por isso, parece-me tão

pertinente o estabelecimento de uma relação muito estreita entre a desorganização social de

uma comunidade e o surgimento e à manutenção da criminalidade dentro da mesma.

Durante o trabalho de entrevista, pareceu-nos muito claro que os garotos ligados às

quadrilhas percebem de forma muito perspicaz o cenário que se configura ao seu redor.

Ainda que não tratem especificamente disto ou que não tenham transformado este

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sentimento em um discurso racional, observa-se que eles percebem de forma muito clara a

deterioração do ambiente que os cerca. A percepção de que as paredes, janelas e portas da

vizinhança que foram crivadas de balas não são consertadas, assim como a constatação de

que os moradores já não chamam mais a polícia quando vêm o funcionamento de um ponto

de venda de drogas em plena luz do dia faz com que cresça o cenário de caos e desordem

da favela e, conseqüentemente, o poder do tráfico.

Ainda que de forma intuitiva, os traficantes percebem rapidamente que, naquele local,

ninguém se preocupa ou se atreve a combatê-los. Muitos falam que, há alguns anos,

costumavam “pedir” a alguns moradores honestos que escondessem momentaneamente

carregamentos de drogas dentro de suas casas. O expediente servia para despistar a polícia,

que nunca invadia estes barracões até então acima de qualquer suspeita. Atualmente, não é

raro ouvir relatos de moradores que foram simplesmente expulsos de suas casas, que hoje

servem como armazéns da drogas. Alguns dizem que, nas primeiras vezes em que isso

aconteceu, houve muita discussão e os traficantes precisaram usar de violência para manter

sua posição. No entanto, isso não acontece mais e a resignação tomou conta do aglomerado.

Observa-se que o mesmo acontece com os muros de barracões que foram pichadas por

membros de gangues: ninguém se atreve a limpá-los. Como que se alimentasse um círculo

vicioso, este abandono da Pedreira Prado Lopes por parte de sua população só gera mais

abusos e violência por parte das gangues.

6.4. Subcultura da Violência

6.4.1. As Gangues

Como vimos anteriormente, todo o histórico de desmobilização e de desorganização

social da comunidade da Pedreira Prado Lopes parece ter contribuído de forma decisiva

para que a realidade do tráfico de drogas e das gangues surgisse e se consolidasse naquele

aglomerado da maneira como se vê nos dias de hoje. No entanto, existe outro fator, este de

ordem psicológica e cultural, que parece fazer com que as gangues daquela favela

continuem a ganhar cada vez mais força em meio àquela comunidade. Durante o trabalho

de pesquisa na PPL, pareceu-me bastante claro que o tráfico de drogas que se organizou

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naquela favela não atrai dezenas de garotos para si apenas por causa da promessa de lucros

rápidos e exorbitantes que ele representa. Para muitos adolescentes e crianças da Prado

Lopes, entrar para o tráfico significa colocar um ponto final na mais massacrante forma de

opressão que eles experimentam desde muito novos: a invisibilidade social.

É óbvio que a promessa de dinheiro fácil chama muito a atenção dos jovens da

Pedreira, principalmente dos adolescentes, sempre tão ávidos por possuir objetos e roupas

de grife que irão conferir a eles um certo destaque em meio a seus pares. Mas, durante as

entrevistas que realizei no morro, pareceu-me muito nítido que fazer parte de uma das

quadrilhas ligadas “movimento” significa muito mais do que isso. Para aqueles rapazes,

fazer parte de uma gangue significa construir uma identidade das mais importantes e

representativas dentro da favela. Significa ser reconhecido nas ruas do aglomerado. Em

meio a uma comunidade formada por milhares de miseráveis anônimos, por inúmeras

pessoas que vivem sem qualquer tipo de perspectivas, ganhar um olhar de respeito, de

medo e de reconhecimento significa muito. E fazer parte de uma gangue garante tudo isso

àqueles garotos.

Na Pedreira, ninguém se atreve a repreender os atos de um jovem traficante. A

ameaça sempre subentendida das armas de fogo garante a eles imunidade contra qualquer

tipo de contrariedade. Bem ou mal, cedo ou tarde, todos se curvam à sua passagem, todos

cedem aos seus desejos e desígnios, por mais absurdos que eles sejam. As meninas do

morro os olham para os traficantes com um misto de admiração, medo, respeito e desejo.

No opressivo e degradado microcosmo da favela, eles são a defesa, a acusação, o juiz, o júri

e o executor. Tudo é possível aos traficantes. São eles que vestem as melhores roupas, usam

as melhores jóias, os melhores tênis e têm os melhores carros. Quem sobe na hierarquia do

“movimento” ganha mais dinheiro e, conseqüentemente, passa a poder exercer de maneira

mais visível o seu poder. A visibilidade exacerbada de todos os signos de poder adquire

uma importância fundamental para aqueles jovens, que fazem questão absoluta de exibir

suas armas, suas jóias e suas roupas caras.

Durante as entrevistas realizadas com os adolescentes que fazem parte do tráfico,

chamou-nos muito atenção a imagem de força e onipotência que emana daqueles garotos.

Dentro de seus territórios, naqueles becos e ruelas imundas, eles se assemelham a senhores

feudais. Eles são os donos do dinheiro, das armas e do próprio direito de ir e vir. Por

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algumas ruas, só passam aqueles que os traficantes deixam passar. Em determinados

horários, só saem de casa aquelas pessoas que os traficantes deixam sair. O terror imposto

por estes rapazes na Prado Lopes é tão grande que, por maior que sejam as atrocidades por

eles cometidas, ninguém se atreve a denunciá-los, ninguém se atreve a desafiá-los, ninguém

se atreve sequer a levantar a voz para eles.

Filhos de famílias desestruturadas ou, quando muito, chefiadas apenas pela mãe, fazer

parte de uma gangue confere a estes rapazes miseráveis o sentimento de pertencimento a

algo. Confere a estes jovens uma identidade que eles nunca conseguiram formar dentro de

casa ou na escola. Entrar para o movimento dá a eles uma visibilidade social sem

precedentes, ainda que seja apenas dentro do decadente e miserável microcosmo da favela.

E isso é importantíssimo para eles porque, por mais que a Pedreira seja um lugar pobre,

deteriorado e cuja maioria da população vive em condições subumanas, aquele é o espaço

no qual eles vivem. É o lugar em que nasceram, se criaram e constituíram toda sua rede de

relações sociais. Seu mundo de significações e todas as suas representações coletivas estão

ligadas à PPL e à sua comunidade. Para aqueles rapazes, é importantíssimo desfilar pelos

becos e vielas com roupas de marca e jóias vistosas. É importantíssimo fazer parte de uma

turma que, naquele meio, garante a ele proteção contra os inimigos.

Ficou muito claro que a própria formação das identidades de muitos daqueles rapazes

esteve intimamente ligada a todo o processo de socialização oferecido a eles pelas

quadrilhas. Foi em meio a estes grupos que eles aprenderam as gírias que usam. Foi junto a

seus companheiros de gangues que eles aprenderam as mais diversas tarefas ligadas à

atividade do tráfico. Foi em meio às quadrilhas que eles formaram toda a sua personalidade.

Por isso, acredito que não se possa dizer que a entrada de um daqueles jovens para uma

gangue e, conseqüentemente, para o tráfico, tenha sido apenas uma escolha motivada pela

eterna promessa de dinheiro fácil. Parece que entrar para uma quadrilha do “movimento”

foi uma decisão que muitos deles nem mesmo chegaram a ter consciência de que tomaram.

Envolvidos pelo convívio diário com os traficantes, muitos dos garotos mais novos

entraram para as gangues, fascinados com o estilo de vida que os criminosos levam. Tanto

que é precisamente entre as crianças e adolescentes do morro que esta socialização pautada

por valores violentos mostra sua faceta de maneira mais evidente. Toda a realidade de

violência imposta pelo tráfico parece ser rapidamente incorporada pelas crianças do

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aglomerado que, desde muito cedo, “brincam” de ser traficantes. Não é incomum ver, nas

ruas da PPL, meninos com pouco mais de cinco ou seis anos de idade, empunhando

revólveres e pistolas de madeira, armas com as quais simulam os combates que

ocasionalmente vêem na favela. O próprio linguajar e as gírias utilizadas pelos rapazes do

“movimento” são rapidamente incorporadas pelas crianças que, desde muito cedo, falam

com desenvoltura sobre os “bondes”, as “trocas”, as “PTs”, as “macaquinhas”, as “pedras”

e as “tomadas de assalto”40.

Após entrevistar vários rapazes ligados ao tráfico naquela favela, pareceu-nos que,

entre eles, todas as leis, valores, símbolos e representações coletivas acabaram por se

constituir em uma forma muito particular de subcultura, cujos principais aspectos

normativos emergem da violência e convergem para ela. Vivendo sob a égide das gangues

ligadas ao tráfico, todos os aspectos das vidas destes rapazes são permeados pela violência.

As práticas brutais do tráfico de drogas impregnaram desde as práticas mais banais de sua

rotina até a mais sutil de suas representações coletivas.

Parece que o convívio diário em meio às quadrilhas fez nascer entre os jovens ligados

ao comércio de entorpecentes um sistema de valores sociais e leis que, ao mesmo tempo em

que são uma parte, estão aparte de todo o complexo de leis e valores do resto da sociedade.

Esta subcultura segue preceitos bastante particulares e também possui suas próprias formas

de auto-regulação. Tanto que a violação de suas normas implica punições severas por parte

dos demais membros do grupo, o que acaba por conferir às quadrilhas uma identidade

bastante marcada e distinta. Conversando com os rapazes que fazem parte das gangues da

PPL, percebe-se com muita facilidade que, entre eles, parece existir uma potencialização da

violência enquanto estilo de vida.

Na Pedreira, entrar para uma das quadrilhas do morro é optar pelo pertencimento a

um grupo, cuja socialização se dará através da violência. O próprio processo de formação

das identidades dos membros de uma quadrilha se dará por oposição à dos membros da

outra quadrilha. Os jovens que hoje fazem parte da quadrilha do “Terreirão” se definem, em

primeiro lugar, como inimigos dos jovens que fazem parte das quadrilhas subordinadas ao

traficante Roni Peixoto. E o contrário também é verdadeiro.

40 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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Torna-se bastante curioso ver como, na Pedreira, o fato de pertencer a uma gangue

tornou-se para alguns jovens um processo de definição da própria identidade. É em meio

aos seus comparsas o crime que ele irá definir seu lugar no mundo. A gangue é a instância

que terminará por socializá-lo, dentro dos moldes de uma subcultura pautada pela violência,

pelo machismo de uma visão estereotipada da honra masculina, pela lei das armas de fogo e

do mais forte. As gangues e o tráfico constituem-se enquanto um mundo particular para

estes jovens. Um mundo com leis, linguagem, costumes, vestimentas, representações e

símbolos próprios, cujos princípios são constantemente reafirmados pelos membros mais

antigos das gangues, ao mesmo tempo em que são assimilados pelos novos, através do

convívio e das relações interpessoais.

Em meio a alguns jovens da Pedreira, mais do que uma forma de se defender de seus

inimigos, o uso das armas de fogo e da intimidação parece ter se tornado uma das mais

autênticas e legítimas manifestações dos valores de uma subcultura impregnada e pautada

pela violência. O constante uso da violência que se vê entre as gangues daquela favela é

uma parte integrante do sistema normativo desta subcultura, o que, por sua vez, também

reflete o perfil psicológico dos membros da mesma. Percebe-se com muita clareza que, na

favela, justamente por causa dos preceitos e leis que regem esta subcultura da violência,

fatos como a percepção de uma atitude de desprezo, um olhar mais demorado ou o

aparecimento de uma arma nas mãos de um adversário tornam-se estímulos que devem ter

uma resposta violenta à altura.

Ou seja, muito mais do que apenas gerar condições adequadas para o surgimento de

uma atividade ilícita, que é o tráfico de drogas, todo o cenário de desmobilização popular e

desorganização social presente na Pedreira abriu espaço para que surgisse, entre muitos

jovens daquele aglomerado, uma verdadeira subcultura pautada por valores violentos. Ao

entrar para as fileiras do tráfico, aqueles jovens não estão apenas optando por uma via

criminosa que irá garantir a eles a conquista de dinheiro fácil. Muito mais do que isso, creio

ser possível dizer que, ao se alistar em uma das quadrilhas do morro, aqueles jovens estão

aderindo a todo um estilo de vida que é permeado pela violência em todas as suas

instâncias. A partir do momento em que aqueles meninos colocam uma arma na cintura e

juram fidelidade a uma das facções da favela, eles estão, de uma certa maneira, se

comprometendo a falar, a andar, a pensar, a agir, a vestir e a se comportar de uma forma

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coerente com os valores, leis e representações simbólicas impostas por esta autêntica

subcultura da violência que é o tráfico de drogas na PPL41.

Durante a pesquisa, foi possível observar, ainda, que esta subcultura possui alguns

parâmetros bem definidos. Alguns destes preceitos já foram, inclusive, bastante citados por

determinadas vertentes da literatura criminológica. Os sociólogos Wolfgang e Ferracuti, por

exemplo, já em 1967, colocavam aqueles que, para eles, eram os aspectos mais marcantes

das subculturas da violência nascidas em vizinhanças pobres dos Estados Unidos. Apesar

de todas as diferenças históricas, sociais e culturais presentes entre uma realidade e outra,

acredito ser possível, pelo menos neste caso, estabelecer um paralelo bastante satisfatório

entre o cenário americano e aquele que se observa hoje na Pedreira Prado Lopes. De acordo

com Wolfgang e Ferracuti (1967:p 158), as subculturas da violência possuiriam as

seguintes características principais:

1- Nenhuma subcultura pode ser totalmente diferente ou totalmente conflitante em relação à sociedade da qual faz parte. 2- Para que seja estabelecida a existência de uma subcultura da violência não é necessário que seus atores compartilhem os mesmos valores básicos e que se expressem através da violência durante todo o tempo. Até porque, caso contrário, qualquer outro tipo de função social se tornaria virtualmente impossível. Membros de uma subcultura da violência precisam carregar armas para se protegerem uns dos outros. Mas eles afirmam que apenas o ato de estarem carregando estas armas se torna um componente simbólico que significa estar disposto a participar da violência. Significa que se está esperando por esta violência e que se está pronto para reagir a ela. 3- A disposição potencial de recorrer à violência em uma variedade de situações enfatiza o caráter penetrante e difuso do tema central desta cultura. O grau e a intensidade com a qual um indivíduo está disposto a recorrer à violência, em resposta à provocação, depende do quanto ele adotou os valores culturais associados à violência. 4- A essência subcultural da violência pode ser compartilhada em todas as idades dentro de uma subsociedade. Mas esta essência é mais proeminente em um grupo etário limitado, que engloba o fim da adolescência e o começo da idade adulta. 5- A contra-norma é a não-violência. A violação da violência normativa é punida com sanções que incluem o ostracismo. 6- O desenvolvimento de atitudes favoráveis à violência em uma subcultura usualmente envolve comportamentos aprendidos e um processo de aprendizado, associação e identificação diferencial. Nem todas as pessoas expostas à presença de uma subcultura da violência absorvem ou

41 Ver Anexo 3: Entrevistas com traficantes da Pedreira Prado Lopes.

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compartilham estes valores em igual quantidade. Variáveis de diferentes personalidades precisam ser levadas em conta quando se faz uma abordagem psicossociológica da subcultura da violência. Agressão é uma resposta aprendida, socialmente facilitada e integrada como um hábito, na personalidade do agressor. 7- O uso da violência em uma subcultura não é necessariamente visto como uma conduta ilícita. Desta maneira, os usuários não precisam necessariamente lidar com sentimentos como culpa por causa das agressões que cometem.

Apesar de achar que os postulados desses autores podem, por si só, ser aplicados de

maneira muito confortável à realidade das quadrilhas da PPL, podemos ir um pouco além

do que foi colocado por eles. Ao que tudo indica, os valores, leis e representações que

constituem a subcultura da violência não fazem parte apenas da realidade dos subgrupos

que a ela aderiram de forma visível, no caso em questão, as gangues. Pelo menos na

Pedreira, os valores violentos do tráfico já penetraram em todos os segmentos daquela

comunidade. Pelo teor dos depoimentos da população, observa-se que, há muito tempo, a

violenta realidade das quadrilhas deixou de ser apenas um problema pontual para a

comunidade da Prado Lopes. O tráfico e toda a brutalidade de suas quadrilhas, de seus

confrontos, de suas guerras e de suas disputas territoriais já se tornaram um dos mais

expressivos elementos constitutivos de todo o manancial simbólico e cultural da

comunidade da Pedreira.

6.4.2. A Comunidade

Durante a elaboração deste estudo, foram coletados diversos indícios de que o tráfico

de drogas e todo seu sangrento rastro de arbitrariedades, mortes, violações e torturas já

constituem não somente uma subcultura vigente entre as gangues, mas já fazem parte da

própria rede de representações simbólicas de toda a comunidade da PPL. Obviamente, não

no sentido de que todos os moradores compartilham dos valores violentos do tráfico. Mas

observa-se que a violência das gangues está presente em simplesmente todas as situações

de vida daquele povo. Ao longo do trabalho de pesquisa realizado naquela favela, chamou-

nos muito a atenção o fato de praticamente todas as experiências cotidianas da população

local serem intimamente permeadas pela violência do tráfico. Desde a mais insuspeita

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conversa com vizinhos de muro até a mais abstrata noção de cidadania, todas as

representações coletivas dos moradores da Pedreira parecem ter sido contaminadas pela

simbologia brutal e pelos valores violentos das gangues ligadas ao tráfico de drogas.

O próprio cenário da favela foi transformado por esta simbologia. Inúmeros muros da

PPL carregam pinturas ou grafites que fazem referências claras à brutalidade do tráfico.

Como se já não bastasse a exibição ostensiva das armas de fogo, as gangues também

escrevem mensagens ameaçadoras nos muros das casas, desenham adolescentes

empunhando armas e usando fardas de guerra. Até mesmo os grafites e as pinturas que são

feitas por aqueles que não se envolvem com a criminalidade só expressam a violência e os

conflitos armados protagonizados pelas quadrilhas. Os muros do Colégio Municipal Belo

Horizonte, por exemplo, trazem mensagens de desespero, descrença e desilusão, misturadas

com frases que pedem o fim dos enfrentamentos e das “guerras” na favela.

A impressão que se tem é de que, de maneira lenta e gradual, abate-se sobre o povo da

Pedreira um silêncio bastante opressivo quando o assunto é o tráfico de drogas e as

quadrilhas do morro. É preciso uma boa dose de paciência para fazer com que cada um

aceite relatar suas experiências diárias com os traficantes. O toque de recolher imposto

durante o anoitecer pelos criminosos já parece ser aceito com naturalidade pela população,

como se fosse apenas mais uma “coisa da vida”. O fato de alguns moradores serem parados

no meio da rua e revistados pelos traficantes quando vão de uma parte da favela a outra já

não causa mais tanta estranheza ao povo, quanto mais qualquer tipo de revolta.

Silenciosamente, a comunidade da PPL vai aprendendo a conviver com o tráfico, como se

ele fosse uma força inexpugnável que se abateu sobre a vida de cada um. Como se toda a

sua violência, o seu desrespeito e a sua brutalidade fossem uma realidade irreversível.

Diversos estudos relatam a possível existência de uma relação de reciprocidade entre

moradores de vilas e favelas e quadrilhas de traficantes que atuam nestes locais. O

pesquisador Luke Dowdney (2003), por exemplo, cunhou o termo “reciprocidade forçada”,

para se referir à relação de cumplicidade que, ainda que pela força das armas, se

estabeleceu entre algumas comunidades pobres da cidade do Rio de Janeiro e gangues de

narcotraficantes que agem em seus territórios. Em troca do silêncio dos moradores e da

aceitação de que alguns pontos da favela se tornem pontos de venda de drogas, os

traficantes ofereceriam a manutenção da ordem social local, incentivo econômico ao

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comércio do aglomerado e fariam investimento em atividades de lazer. Ainda que pela

coerção das armas e pela adoção de uma política de aproximação rasteiramente populista

por parte dos traficantes, estabeleceria-se uma relação de cumplicidade, de “reciprocidade

forçada”. entre criminosos e comunidade.

Na Pedreira Prado Lopes, em compensação, não conseguimos colher qualquer

informação ou indício que aponte no sentido de que o tráfico foi capaz de se aproximar da

comunidade. Muito antes pelo contrário, todos os depoimentos indicam no sentido de que,

longe de ter se estabelecido uma relação de “reciprocidade forçada” entre comunidade e

traficantes, talvez tenha surgido na PPL uma situação de “convivência forçada”. Moradores

e criminosos são obrigados a conviver em um mesmo ambiente, mas pareceu-me bastante

claro que ambos os lados fazem um esforço muito grande para não interferir na vida do

outro. Os moradores, por razões óbvias, procuram não cruzar o caminho do tráfico. Os

traficantes, por sua vez, também procuram não se envolver com moradores, desde que estes

não interfiram em seus negócios.

Na Pedreira, ao contrário daquilo que os estudos mencionados anteriormente

conseguiram atestar em favelas do Rio de Janeiro, não foi possível constatar a existência de

nenhuma política de aproximação por parte dos traficantes em relação à comunidade. Os

criminosos não fazem doações à população local, não investem em atividades de lazer para

a comunidade, nem mesmo se preocupam em preservar os moradores nos constantes

tiroteios que acontecem na favela. Prova disso é que, de acordo com registros da Polícia

Civil, somente durante os primeiros nove meses de 2004, pelo menos três pessoas haviam

morrido na favela vítimas de balas perdidas e várias outras haviam ficado feridas. No

entanto, vale ressaltar que todos estes indícios foram colhidos a despeito do discurso dos

traficantes, que aponta justamente para o contrário, como podemos perceber, a seguir, no

relato de um dos traficantes entrevistados:

“Como é que é nossa relação com morador daqui? Ah, véio... Morador não tem nada a ver com as nossas parada não, tá ligado? Tipo assim, eles tá ligado que a nossa vida é errada mesmo. Que a gente tá no movimento mesmo e que é parada errada. Mas ninguém fica pagando pau nem nada não... Sei lá... A gente não mexe com ninguém não porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, né não. Um dia cê paga o mó vacilo pro cara e, quando vai vê, tá precisando escondê no barraco dele, tá precisando plantá uns bagulho na casa dele que é pros homi não te pegá trepado... É

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osso, véio, não dá pra ficar sem respeito com morador, tem a manha? Porque se esculachá demais, ao invés de te ajudar, é mais um inimigo que cê ganha. E também porque todo mundo tem família aqui na Pedreira, então tem que respeitar, né não? Ninguém qué a mãe passando perrengue. Por exemplo, não dá pra deixá ficá esses noiado tudo jogado no meio da rua com a sua mãe vendo isso, né não? Não dá pra deixá tê assalto aqui porque os homi fica tudo de cima... A gente toma conta do pedaço por causa da gente mesmo e por causa de família da gente que também mora aqui. (...) Às vez tem morador que chega pra pedir uma ajuda. Sabe que no movimento circula as onça mesmo então vem na gente pedir uma força. E se for morador considerado a gente ajuda. Não tem porque não ajudá, tá ligado? A gente dá força pra comprar um arroz, pra consertá uma porta, um barraco, pra fazê umas compra no sacolão, pra comprá um remédio... Isso se for morador considerado, né? Aquele que não fica de vacilo. (...) Acho que é só cada um ficá na sua. É só não ficá de cangüete que não tem erro. Porque não tem coisa pior do que ficá pagando uma de X-9 pros homi. Porque eu vou te mandar a real, véio: se Xnová a gente passa o cerol mesmo, não tem perdão não. E faz pra todo mundo vê mesmo que não tem ninguém pagando comédia aqui não” (C.C.B., 19 anos, traficante da parte baixa da favela, em 21/08/2003).

Apesar de o discurso dos traficantes insinuar uma possível relação de cumplicidade

entre comunidade e criminosos na PPL, depoimentos colhidos junto a moradores da favela

apontam justamente no sentido contrário. Ao que tudo indica, as quadrilhas de traficantes

da Pedreira não se preocuparam em estabelecer uma política de “boa vizinhança” com os

moradores da favela. Sua presença em meio à comunidade foi conquistada e é mantida pela

brutalidade e pelo constante ameaça das armas de fogo. Nem mesmo nas entrevistas

realizadas com familiares de garotos envolvidos com o tráfico consegui encontrar uma

única palavra de apoio ou menção positiva que fosse sobre os traficantes. Diferentemente

do que se poderia pensar, as gangues ligadas ao tráfico parecem não possuir qualquer forma

de legitimidade entre os moradores da PPL.

Sua presença é imposta no local através de constantes demonstrações públicas de

brutalidade, pelos atos de tortura e morte de miseráveis viciados que, devedores da boca, se

vêem obrigados a trabalhar como “olheiros” para os criminosos e se tornam as vítimas

preferenciais das guerras entre as gangues. Acuados e impotentes frente à violência das

quadrilhas, aqueles que moram em barracões localizados nas proximidades das bocas-de-

fumo se tornam obrigados a desenvolver uma falsa relação de cordialidade com os

traficantes, na tentativa de não atrair para si qualquer tipo de desfavor. Aqueles que não

vivem próximo às “bocas”, por sua vez, parecem tentar suprimir de sua rotina a existência

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do tráfico. Depoimentos colhidos na favela durante a elaboração deste estudo apontam com

muita firmeza no sentido de que praticamente todos os moradores da PPL se viram

obrigados a desenvolver uma infinidade de mecanismos comportamentais que os

permitissem conviver de forma pacífica com os traficantes. No entanto, todos eles os fazem

passar longe de poder dizer que existe qualquer relação de reciprocidade entre os dois

lados.

Particularmente, acredito ser bastante plausível dizer que, atualmente, todos os

moradores da PPL têm plena consciência de todo o prejuízo trazido a eles pela presença do

tráfico. Mas eles se vêem completamente impotentes para tentar mudar esta realidade.

Aliás, a prova da completa ausência de qualquer espaço de negociação entre comunidade e

traficantes pôde ser vista em dezembro de 2003, quando as quadrilhas de Roni Peixoto e do

“Terreirão” se enfrentavam pelas ruas da favela. Acuada pelas muitas mortes que vinham

acontecendo no morro, uma comissão de moradores se dirigiu ao comando de ambas as

gangues e pediu uma trégua, pelo menos durante as comemorações do Natal e do Reveillon.

O pedido foi acatado, mas o fim dos festejos de fim de ano marcou também a volta dos

enfrentamentos na favela e, desta vez, sem qualquer margem para negociação de uma

trégua. Vejamos, a seguir, o depoimento de uma moradora:

“Morei aqui na Pedreira minha vida inteira, mas tem uns três meses só que tô morando aqui no beco Bom Jesus. E hoje eu posso te falar com certeza que meu maior sonho é sair daqui da Pedreira. Cê pode ver que eu tomo conta de cinco menino novo aqui dentro de casa e que nenhum deles tá na rua. Eu não deixo sair porque com essa guerra deles aí pode sobrar bala a qualquer hora pra quem não tem nada a ver com a história. Porque antigamente eles avisavam quando ia ter tiroteio, né? Hoje eles não avisam ninguém não, não tem respeito com ninguém mais. Quem tiver na rua que se dane pra lá. Se pegar, pegou, eles nem olham pra onde é que tá atirando, se tem gente inocente na rua... Eles querem é dar tiro um no outro. Então não dá pra ficar deixando menino na rua não, ainda mais aqui que é pertinho da Marcazita. Coloco aí um desenho na televisão e eles ficam aqui o dia inteiro vendo. (...) Ah, não dá pra ficar envolvendo com eles não, né? Tem até gente que pede umas bobagem ou outra aí pra eles, mas eu nunca pedi não e a maioria também não pede não porque depois o preço é alto, né? Acho que é mais cada um no seu canto mesmo. (...) Por exemplo, eu já vi eles falando por aí que eles não deixam ter roubo aqui na favela, que aqui não vai ter malandro pra atrasar a vida de ninguém. Mas é porque se tiver roubo chove de polícia e atrapalha o movimento deles. Não é porque eles querem o bem de ninguém que mora por aqui, cê tá me entendendo? Eles não fazem nada

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pela Pedreira não. Aliás, só prejudicam, porque a Pedreira tem essa fama toda por causa deles. Aí, se você vai caçar emprego na rua e diz que mora na Pedreira, já era. Eles pensam que é tudo bandido que mora aqui. Mas a maioria é trabalhador. Por causa de uma meia dúzia de menino que fica andando armado aí, todo mundo paga o pato. E é um inferno, porque cê não arruma emprego, não pode sair de casa depois que fica de noite. Se saiu de casa, tem que voltar antes de ficar de noite porque senão é perigoso demais. Isso aqui é um inferno por causa desse trem de droga, mas a gente vai fazer o que? Polícia que é polícia não faz nada, às vezes fica até de acordo com eles, a gente vai fazer o que?” (J.M.S.B., 25 anos, dona de casa, moradora da parte alta da Pedreira, em 13/08/2004).

Também ao contrário do que se poderia pensar em um primeiro momento, nem

mesmo as famílias que foram obrigadas a conviver com o tráfico de drogas dentro da

própria casa demonstram qualquer tipo de condescendência com o papel exercido pelas

quadrilhas. Durante a realização desta pesquisa, me vi impedido de entrevistar praticamente

todas as mães dos traficantes dos quais colhi depoimentos. No entanto, existem indícios

muito claros de que nenhuma delas aprova a atividade desenvolvida pelo filho, ainda que

ele traga sempre muito dinheiro para a casa. Nas próprias conversas com os garotos do

tráfico, a figura da mãe é sempre citada com muito respeito. A maioria, inclusive, se recusa

a falar sobre os pais ou a família, dizendo sempre que tais pessoas não possuem qualquer

relação com a vida que eles escolheram. Em todos os discursos, a figura da mãe é sempre

mencionada como aquela que aconselha, que tenta fazer com que o garoto saia do tráfico e

que nem sempre aceita as benfeitorias que o dinheiro sujo do filho traz para a família.

Segundo Zaluar (1994):

“Essa visão masculina do mundo do crime é matizada pela referência constante à mãe como freio ao envolvimento com o crime. A descoberta que a mãe pode fazer da origem do dinheiro trazido para casa, a vergonha e preocupação subseqüentes, o sofrimento que ela tem quando o filho está preso são parte de um discurso moral e sentimental que fala das raízes para deixar a vida do crime. A mãe na família desestruturada pela ausência de uma figura paterna não é, portanto, aos olhos dos que vivem a opção entre crime e trabalho, uma causa da criminalidade, mas, ao contrário, é um freio para a continuidade da ação criminosa, ou seja, um estímulo à regeneração” (ZALUAR, 1994:p ).

Pelo que foi possível observar, mais uma vez, abate-se também sobre as famílias uma

grande impotência perante a entrada de algum de seus filhos para o tráfico de drogas. Por

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mais que as mães procurem manter seus meninos longe das gangues, a partir do momento

em que algum deles se une a elas, muito pouco há para se fazer. Não foi possível localizar

um único caso sequer de mãe que não sabia que o filho estivesse envolvido com o tráfico.

No entanto, elas parecem não ter à sua disposição qualquer mecanismo de combate a esta

realidade. Durante a realização deste estudo, ficou-me uma impressão muito forte de que,

para as famílias da Pedreira, a entrada de um filho para o tráfico de drogas assemelha-se

muito a um fardo imposto pelo destino. Uma vez consumado o envolvimento do rapaz com

uma das gangues da favela, nada mais pode ser feito para mudar esta realidade. Em

pouquíssimo tempo, o garoto passa a ganhar muito mais dinheiro do que o pai – isto

quando a figura paterna é presente em casa. Conseqüentemente, o rapaz envolvido com o

tráfico se livra de qualquer amarra financeira que poderia lhe ser imposta pela família. Em

uma cultura fortemente impregnada por valores machistas, na qual figura do provedor da

casa ocupa uma posição de destaque, este rapaz passa a ter todas as condições que

precisava para ir contra as recomendações de seus familiares e permanecer no tráfico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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De acordo com os registros da Polícia Militar de Minas Gerais, aproximadamente

20% dos 3256 homicídios cometidos em Belo Horizonte, entre os anos de 1998 e 2002,

aconteceram em apenas seis favelas da capital – a saber, Pedreira Prado Lopes, Cafezal,

Taqüaril, Morro das Pedras, Cabana do Pai Tomaz e Morro do Papagaio. Ou seja, um em

cada cinco assassinatos cometidos em BH acontece em localidades que, se tiverem suas

áreas somadas, correspondem a apenas 4,3% da área total da cidade. Estes números se

tornam mais significativos ainda, se observarmos que, apenas em 2002, 36% dos

homicídios registrados na capital aconteceram nestas seis vilas e favelas. Não há como

negar, portanto, que existe uma altíssima concentração de crimes violentos em poucas áreas

de Belo Horizonte. O fato é que a violência e a criminalidade não se distribuem pela cidade

de maneira uniforme.

A primeira hipótese na qual este estudo se ancorou foi a de que não se pode estudar o

fenômeno do crime sem analisar, também, o local e o ambiente onde ele se manifesta.

Diversos indícios nos levam à concluir que existe, sim, uma relação muito íntima entre a

configuração ambiental e social assumidas por determinadas localidades e as taxas de

criminalidade que elas apresentam, como propõem estudos apresentados por Shaw e Mckay

(1942); Bursik (1998); Bursik e Grasmick (1993); Sampson et al. (1997) e Morenoff et al.

(2001). No caso específico das seis favelas mais violentas de Belo Horizonte, parece-nos

muito coerente dizer que existem nelas algumas particularidades que as fazem ter os

maiores índices de criminalidade da capital. Nestes locais, diversos fatores históricos,

estruturais, culturais e sócio-econômicos interagem entre si no sentido de produzir um

ambiente altamente propício ao surgimento e à consolidação de altas taxas de violência e da

criminalidade. Particularmente, acreditamos que é justamente na identificação destes

fatores e na análise precisa de como eles interagem entre si no sentido de produzir um

ambiente criminógeno que se encontram os principais pilares do presente estudo.

Por outro lado, não se pode tampouco ceder à tentação de proceder com

generalizações simplistas e fazer uma associação direta entre pobreza e criminalidade.

Ainda utilizando Belo Horizonte como exemplo, basta observar que existem dezenas de

outras favelas na capital que, apesar de apresentarem os mesmos índices de pobreza que as

seis citadas anteriormente, não registram altas taxas de violência e criminalidade. Portanto,

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há indícios suficientemente fortes para afirmar que, especificamente nestas favelas,

determinados elementos históricos, culturais, estruturais e sócio-econômicos se articularam

no sentido de produzir tais níveis de violência.

Tendo em vista que o quadro teórico de referência adotado neste estudo fundamentou-

se, basicamente, nas teorias da “Desorganização Social” (SHAW & MCKAY, 1942) e da

“Eficácia Coletiva” (SAMPSON et al., 1997), além de outros estudos que se baseiam em

tais teorias, faz-se necessário explicitar aqui de que forma esse referencial se relaciona com

o objeto de estudo desta pesquisa, com a hipótese inicial de trabalho e com os dados

coletados e analisados ao longo desta dissertação. Inicialmente, é possível afirmar que os

dados coletados na favela indiciam, claramente, a presença de todos os fatores apresentados

nas teorias, confirmando a idéia de que, em função dessas características, determinadas

comunidades tornam-se ambientes altamente propícios ao surgimento e à consolidação de

altos índices de criminalidade. Os dados coletados e analisados indiciam, portanto, que a

Pedreira é hoje uma comunidade com alto índice de desorganização social e baixa eficácia

coletiva, o que, historicamente, permitiu a forte entrada do tráfico de drogas em seu

território e a consolidação de várias gangues ligadas à sua exploração.

Como foi demonstrado em capítulos anteriores, a própria história da formação da

Prado Lopes já nos fornece indícios bastante precisos de como a favela se tornou o que é

hoje: o seu surgimento a partir de uma espécie de acampamento para centenas de operários

vindos das mais diversas regiões do estado, que trabalhavam em uma gigantesca pedreira

localizada às margens de onde hoje é a favela; o fato de algumas famílias estabelecerem

residências no local, de forma improvisada e provisória, na expectativa de se mudar para

um lugar melhor; o fato de terem- se passado anos até que houvesse ali a real intenção de

se formar uma comunidade; o fato de que somente depois de algumas décadas de sua

existência é que a favela passou a receber moradores com a real intenção de constituir um

lar. Ou seja, durante muitos e muitos anos, a PPL nada mais foi do que um dormitório

provisório para operários que vinham do interior e, ainda, não tinham condições de viver

em um bairro melhor. Esta altíssima rotatividade residencial caracteriza exatamente um dos

principais fatores apontados pela teoria da “Desorganização Social”, de Shaw e Mckay

(1942), como sendo um empecilho à coesão social e, conseqüentemente, um fomentador da

violência e do crime.

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Além da extrema concentração de desvantagens estruturais e sócio-econômicas, ao

final desta pesquisa, podemos também concluir que as alterações feitas no espaço físico da

Pedreira, durante suas primeiras décadas de existência, como a abertura de avenidas, ruas,

além da construção do Departamento de Investigações e do Hospital Municipal Odilon

Behrens, fizeram com que a favela tivesse sua área bastante comprimida. Isso, por sua vez,

causou um grande adensamento populacional e aumentou ainda mais o ambiente de

desorganização e promiscuidade da favela.

Essa reconfiguração do espaço da Pedreira fez com que várias famílias deixassem

suas casas, para se mudar para outros pontos do aglomerado. O ambiente de extrema

miséria e precariedade que se agravava a cada dia favoreceu o surgimento das primeiras

casas multifamiliares, que hoje são bastante comuns no aglomerado. Além disso, a

exigüidade do espaço da Pedreira fez com que a favela passasse por um processo de

verticalização nunca visto antes em nenhuma vila da capital. Enfim, todos estes fatores

concorreram para que a Pedreira abrigue uma comunidade socialmente pouco coesa e

extremamente desorganizada. Uma comunidade onde nenhum dos moradores orienta sua

ação no sentido de promover o bem coletivo e zelar pela segurança e preservação de sua

vizinhança.

Dados coletados e analisados nesta pesquisa também nos possibilitaram ver que toda

esta concentração de desvantagens estruturais e sócio-econômicas contribuiu para que a

comunidade da Prado Lopes demorasse várias décadas para organizar suas primeiras

entidades representativas e, conseqüentemente, para começar a formalizar suas

reivindicações de maneira mais sistemática. A primeira associação de moradores surgiu

apenas em meados da década de 70, quando a população começou a ter consciência de que

precisava agir em conjunto para conseguir promover melhorias na favela, mas, ainda assim,

a imensa maioria dos moradores do aglomerado continuou sem tomar qualquer

conhecimento dos canais de participação popular que começavam a se instalar no seio da

PPL, fato que confirma que a população da Pedreira está muito longe de constituir uma

comunidade socialmente coesa. Além disso, a grande descrença por parte da maioria dos

moradores com relação aos meios de reivindicação reafirma a idéia da falta de coesão

social e da capacidade de mobilização da comunidade.

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Atualmente, existem apenas duas associações comunitárias na Pedreira Prado Lopes –

A União Prado Lopes e a Associação Recreativa Comunitária dos Amigos da Pedreira

Prado Lopes, a ARCA-PPL. No entanto, representantes de ambas as entidades fazem

exatamente a mesma reclamação: não conseguem mobilizar a população local no sentido de

produzir qualquer reivindicação sistemática que traga melhorias à favela. O próprio

programa do Orçamento Participativo, promovido pela Prefeitura, conta com baixíssima

presença dos moradores, que não se envolvem nas decisões acerca do dinheiro público que

será aplicado na própria comunidade.

Ao final da realização desta pesquisa, os dados coletados e analisados indicaram

também que praticamente todas as instituições que deveriam promover a socialização e a

coesão social entre os indivíduos da Pedreira encontram-se em estado de extrema

deterioração e falência. As escolas públicas que atendem às crianças do aglomerado, por

exemplo, não possuem instalações minimamente dignas, nem mesmo condições

financeiras, estruturais ou sociais de ministrar um ensino de qualidade e manter as crianças

nas salas de aula. Tudo isso, somado à falta de uma estrutura familiar mais definida – é

extremamente comum na Pedreira a existência de famílias que não contam com a presença

da figura paterna e são chefiadas por mães que se vêem obrigadas a trabalhar o dia inteiro

fora – e o histórico de um lar de baixíssima escolaridade, concorre para que as crianças não

contem com qualquer tipo de supervisão e, conseqüentemente, não desenvolvam o hábito

do estudo.

Vale lembrar, ainda, que o nível de escolaridade dos moradores é baixíssimo – 77%

dos possuem apenas o primeiro grau completo, enquanto 15% não possuem qualquer tipo

de escolaridade – o que indica que o estudo não é valorizado entre as famílias da PPL. Em

meio à miserável e difícil vida da favela, observa-se que as crianças são criadas dentro de

uma estrutura simbólica que confere muito mais valor ao trabalho braçal, que garantirá o

sustento da família no final do mês, do que aos estudos formais que não propiciam retorno

prático a curto prazo. Criados em um ambiente de extrema carência e pobreza, as crianças

da Pedreira já nascem representando um “peso” para os pais que, geralmente, não ganham

mais do que um salário mínimo mensal. Portanto, toda a estrutura sócio-econômica e

cultural na qual estas crianças estão inseridas contribui para que elas sejam empurradas

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rapidamente para fora da escola e dos estudos, em direção ao mercado de trabalho informal

ou ao subemprego.

Filhos de famílias que muitas vezes não contam com a figura paterna e vivendo

amontoados em miseráveis casas que não raramente abrigam várias famílias, as crianças e

adolescentes da Pedreira acabam por se criar por conta própria no degradado ambiente da

favela. Como foi colocado anteriormente por este estudo, vários indícios nos levam a crer

que grande parte do processo de socialização e aprendizado de crianças e adolescentes da

PPL acontece nas ruas do aglomerado, sem qualquer tipo de supervisão por parte dos pais.

Devido à deterioração de praticamente todas as instituições formais e informais de

socialização e controle, todas as atividades grupais desenvolvidas por aqueles jovens

seguem curso sem que a família tome sequer conhecimento delas.

Outro aspecto a ser ressaltado na finalização desta pesquisa é constatação de que,

assim como diversos estudos já demonstraram (SAMPSON et al., 1997; THRASHER,

1927), parece ter sido precisamente a partir das primeiras turmas de amigos e dos

inofensivos grupos de brincadeiras que se formaram os embriões das gangues juvenis que

hoje são responsáveis pela maioria dos crimes cometidos na Pedreira. Brincando em turmas

pelas ruas da favela e sempre longe dos olhos dos pais, foi nas ruas que as crianças fizeram

seus primeiros contatos com os traficantes da região e começaram, gradativamente, a

formar novas gangues e a se envolver com aquelas que já existiam. Assim, os dados desta

pesquisa nos permitem concluir que, na Pedreira, a prática dos primeiros atos delinqüentes

e o envolvimento das crianças e adolescentes com as quadrilhas do tráfico de drogas foram

extremamente facilitados pela falta de supervisão e controle dos processos de socialização e

das dinâmicas grupais desenvolvidas por eles nas ruas da favela.

Sem contar com a presença de uma estrutura familiar mais rigidamente definida e de

qualquer atividade supervisionada que lhes preenchesse o tempo livre, muitos jovens da

Prado Lopes foram socializados pelas próprias quadrilhas do “movimento” que,

simbolicamente, acabaram por se constituir em verdadeiras famílias para aquelas crianças.

E, ao que tudo indica, uma vez dentro das quadrilhas, dá-se início a um processo que é tão

bem descrito por autores como Frederic M. Thrasher (1927), Decker e Van Winkle (1996) e

Alba Zaluar (1994): as crianças e adolescentes acabam sendo criadas em meio a uma

estrutura simbólica pautada pelo machismo, pela virilidade, pela submissão de toda uma

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comunidade ao despotismo das armas de fogo e da lei do mais forte. Através de um

processo de completa imersão, os jovens da PPL rapidamente incorporam todos os hábitos,

valores e representações simbólicas das quadrilhas. Com armas cada vez mais perigosas na

cintura, todos eles acabam sendo criados dentro de uma verdadeira subcultura da violência.

Todos eles se tornam parte de uma entidade, de uma instituição que acaba por potencializar

todo o seu rancor, todo o seu ódio às humilhações que sofrem desde muito cedo, à

invisibilidade social que experimentam em cada esquina da cidade, à completa falta de

perspectivas e a toda uma vida de submissão e servilismo.

Imersos em uma sociedade consumista e avessos ao exemplo de submissão,

humildade e resignação que possuem dentro das próprias casas, esses garotos se tornam

poderosos dentro das gangues. Ainda que seja apenas dentro do microcosmo social da

Pedreira Prado Lopes, eles se tornam mais do que visíveis, eles passam a ser admirados,

temidos, desejados. Apesar da pouca idade, despertam o medo por onde passam, graças à

ameaça constante das armas de fogo, símbolos fálicos por excelência. Seu modo de falar,

de agir, de andar passa a ser imitado pelos mais novos, que trilham exatamente o mesmo

caminho que anteriormente foi percorrido por eles. Dentro das quadrilhas, tudo é mais fácil

para os jovens da Pedreira. Todas as mulheres do morro estão ao simples alcance de um

olhar, as melhores e mais caras roupas passam a ser sua vestimenta diária e nada lhes é

negado. Dentro do pequeno feudo favelado, eles se tornam absolutos, eles se sentem os

senhores da vida e da morte de toda uma comunidade, uma vez que e a ameaça da

brutalidade das quadrilhas está sempre presente para garantir o seu poder. Além disso, fazer

parte de uma das gangues do morro é a garantia de que ele terá proteção contra as

arbitrariedades das demais quadrilhas.

Outro aspecto que não podemos deixar de ressaltar é a relação que, nos grandes

centros urbanos, se estabeleceu entre as gangues dos bairros pobres e favelas e a atividade

do tráfico de drogas. No imaginário popular brasileiro, sem dúvida alguma com uma boa

dose de razão, a expressão “tráfico de drogas” adquiriu um significado tão ligado à

violência. Entretanto, os dados e as informações teóricas que fundamentaram esta pesquisa

desmistificam esta associação tão direta. Se adotássemos uma definição literal, meramente

denotativa, do que se chama “tráfico de drogas” nada mais teríamos do que a definição de

comércio clandestino de uma substância psicoativa natural ou sintética. No entanto, por se

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tratar de uma atividade ilegal, e talvez até mesmo por isso exorbitantemente lucrativa, este

comércio adquiriu, em qualquer lugar onde se estabeleceu, um caráter muitas vezes

violento. Sem qualquer tipo de regulamentação ou instância que pudesse mediar conflitos

advindos da concorrência, nas grandes cidades, o tráfico varejista passou a ser controlado

por grupos que, não raramente, passaram a se enfrentar para garantir o controle de fatias

cada vez maiores do mercado.

Nos grandes centros urbanos, estabeleceu-se uma relação muito próxima, portanto,

entre o chamado “trafico de drogas” e as gangues que se formaram nos bairros pobres e

favelas. Aos poucos, muitas destas turmas começaram a perceber o potencial financeiro

desta atividade e se organizaram no sentido de explorá-la. Por outro lado, por ser ilegal, a

venda de tóxicos no regime de varejo se viu sensivelmente beneficiada pela realidade

sócio-econômica que encontrou em guetos e, mais precisamente, pela estrutura adotada

pelas gangues. Por isso, esta relação entre gangues e tráfico de drogas acabou por constituir

uma dinâmica de mão dupla. Se, por um lado, as gangues se organizaram e adaptaram suas

estruturas para explorar o lucrativo mercado varejista dos tóxicos, por outro, toda a

logística necessária à venda de drogas, que é uma atividade ilegal desde a sua produção até

a sua chegada ao consumidor final, só pode se realizar por meio de uma organização de

caráter igualmente fora-da-lei.

As gangues, com toda a sua estrutura verticalizada de poder, com seu caráter

territorial, despótico e violento, acabam por constituir quadrilhas, que são as entidades mais

adequadas para garantir a fluidez de seu negócio. E é justamente a partir da junção destes

dois fatores - o caráter violento, despótico e territorial das quadrilhas e os exorbitantes

ganhos financeiros trazidos pelo comércio de tóxicos - que se consolidou nas favelas das

grandes cidades a perversa dinâmica social que conhecemos hoje como “tráfico de drogas”.

Tanto que, atualmente, aquilo que se convencionou chamar de “tráfico” e todas as suas

disputas territoriais travadas pelas quadrilhas ligadas à sua exploração são hoje uma das

principais causas das mortes violentas registradas nos centros urbanos. Em Belo Horizonte,

por exemplo, dados da Polícia Civil demonstram que aproximadamente 65% dos

homicídios registrados possuem ligação direta ou indireta com o “tráfico de drogas” – a

saber, as disputas entre as quadrilhas de traficantes, as cobranças de dívidas de drogas, etc

(Divisão de Crimes contra a Vida – DCcV / Polícia Civil, 2003).

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Considerando os dados coletados e analisados na pesquisa, é possível concluir,

também, que a existência das gangues da PPL está intimamente ligada à rotina e à logística

do comércio de tóxicos e entorpecentes, sendo que a recíproca também é verdadeira. Esta

ligação é tão forte, que fica muito difícil dissociar uma instância da outra. Nota-se, com

muita clareza, que é em torno do tráfico de drogas e de sua sempre presente possibilidade

de ganhos financeiros exorbitantes que as gangues se organizam da forma como vemos

hoje. Todo o caráter territorial, violento, despótico e belicista das gangues da Prado Lopes

foi potencializado a partir do momento em que elas assumiram, naquela comunidade, a

frente do comércio varejista de entorpecentes.

Além das mortes de pelo menos 87 pessoas na PPL, durante os últimos quatro anos,

fato que constitui o lado mais visível de sua violência, o tráfico de drogas também acabou

por desorganizar todos os poucos e ineficazes processos associativos e estruturas

simbólicas instituídos naquela comunidade. Se, em um primeiro momento, seu surgimento

e sua consolidação foram facilitados pela desorganização social e estrutural da favela, em

um estágio avançado de sua instalação, o tráfico acabou por inverter nesta dinâmica e

passou a ser, ele próprio, fomentador desta desorganização e da falência das estruturas e

instituições sociais presentes no aglomerado. Assim, é possível concluir, com base nesta

pesquisa, que, onde se instala, o tráfico corrompe policiais, destrói ou desestrutura

associações comunitárias, escolas, famílias, igrejas e todos os valores e representações

simbólicas que estão por trás destas instituições.

Na Pedreira, é através da ameaça constante das armas de fogo, dos espancamentos,

das violências arbitrárias e das execuções sumárias que as quadrilhas cerceiam a liberdade

das associações comunitárias, assim como limitam ou até impossibilitam o trabalho social

que diversas outras entidades se propõem a realizar. Para garantir o andamento eficiente do

tráfico, os quadrilheiros acabam por submeter toda a comunidade ao seu domínio territorial,

impedindo a livre circulação de pessoas por alguns pontos do aglomerado. Algumas

famílias também chegam a ser expulsas de suas casas, porque vivem em pontos

considerados estratégicos da favela. Muitos policiais que trabalham na PPL, por sua vez,

acabam por ganhar a fama de corruptos e violentos, uma vez que constantemente são vistos

aceitando dinheiro de traficantes e negociando pagamento de propinas para que os pontos

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de venda de drogas possam funcionar livremente, O que contribui sensivelmente para que a

população local perca a confiança na única face que o Estado mostra na favela.

Nas escolas da Prado Lopes, o tráfico impede o trabalho de professores, muitas vezes

chega a impedir o acesso de alguns alunos às aulas, promove rivalidades entre turmas e

chega até mesmo a determinar o fechamento dos colégios, prática que é igualmente adotada

com os pequenos comércios do morro e com o único posto de saúde existente na região.

Além disso, os traficantes determinam quais festas podem ser realizadas na favela e onde

elas podem acontecer, dividem o morro em regiões, algumas das quais não podem ser

freqüentadas pelos moradores depois de certa hora da noite. Enfim, pode-se concluir que,

na Pedreira, as quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas conseguiram estabelecer um domínio

territorial que mais se assemelha ao que era mantido pelos antigos barões feudais. Dentro

de seu território, amparados pela ameaça das armas de fogo, eles detêm o poder sobre o

direito de ir e vir, sobre o funcionamento dos estabelecimentos comerciais e das

associações de bairro. Impotente, a população local simplesmente não tem a quem recorrer.

Entretanto, o maior prejuízo trazido pela consolidação do tráfico de drogas na PPL

não é de ordem prática ou cotidiana, mas, sim, moral e simbólica. Na Pedreira, a afirmação

das gangues e de toda a sangrenta realidade do tráfico dissemina entre os jovens toda a

sorte de valores inerentes a uma verdadeira subcultura da violência. O fortalecimento das

quadrilhas ligadas ao comércio de tóxicos expõe todas aquelas crianças e adolescentes a um

grande manancial de representações simbólicas pautadas por valores belicistas; coloca-os

frente a frente com modalidades de relações interpessoais marcadas pelo machismo, pela

imposição do mais forte, pela ameaça das armas de fogo, pelo culto a uma vida de excessos

e pela subversão de todos os valores democráticos do associativismo popular.

Devido ao contato diário com os traficantes, cresce entre os jovens da Prado Lopes

uma visão negativa do trabalho humilde e assalariado, em contraposição à valorização do

ganho rápido e fácil do tráfico de drogas. Causa fascínio o estilo de vida desregrado e

emocionante dos quadrilheiros - sempre cheios de dinheiro, mulheres, armas, roupas de

marca, carros, jóias -, rotina esta que acaba sendo exatamente o contrário da vida humilde,

subserviente, cheia de privações, tediosa e sem a menor expectativa de sucesso à qual está

submetida a massa de trabalhadores que vive na favela. Para os jovens da PPL, o traficante

acaba sendo aquele que tem acesso às melhores roupas, às mais belas mulheres da favela e

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ao respeito temeroso de toda uma comunidade. O traficante será aquele que, na maioria das

vezes, não precisará temer uma abordagem violenta da polícia. Será aquele que não

precisará se submeter aos desmandos e arbitrariedades das quadrilhas. Para muitas crianças

e adolescentes da favela, a figura do traficante emana poder, força, masculinidade,

capacidade de tomar o destino nas próprias mãos e fazer dele o que bem entender. Ao

contrário do exemplo paterno que vem de dentro de casa, que constitui a própria imagem da

derrota, da sujeição, da humildade, da subserviência e da incapacidade fundamental de se

impor enquanto macho, como ressalta, em seu estudo, Zaluar (1994).

A disseminação dos valores violentos e machistas do tráfico e das gangues incute na

cabeça dos jovens uma definição estereotipada de honra masculina, segundo a qual não

pode haver ofensa sem uma resposta. E, na imensa maioria das vezes, a resposta é a

agressão, a humilhação e muitas vezes a ameaça ou até mesmo o uso da arma de fogo. Esta

estrutura simbólica machista do revide deteriora a capacidade de discernimento e

julgamento dos jovens, que passam a não analisar mais uma determinada ação sob o prisma

do certo ou do errado. Nenhuma ação é julgada por si só como má, criminosa ou errada. O

ato de matar, agredir ou roubar, por exemplo, passa a ser julgado segundo os padrões

morais da subcultura vigente no local. Entre os jovens da PPL, por exemplo, é bastante

comum não ser considerado um criminoso aquele rapaz que vinga a morte de um parente.

Dentro de uma subcultura machista e violenta, o uso de recursos violentos é plenamente

justificável enquanto elemento de manutenção da honra do macho.

Portanto, muitos indícios revelados nesta pesquisa nos levam a concluir que, se em

um primeiro momento a violência das gangues acabou por permear todos os aspectos

práticos da vida na Pedreira, no estágio atual, a consolidação da dinâmica perversa do

tráfico de drogas vem sendo incorporada ao cotidiano dos jovens daquela comunidade, a

ponto de institucionalizar entre eles uma verdadeira subcultura da violência. Os valores, as

estruturas simbólicas e as representações coletivas das gangues e do tráfico vêm se

disseminando de tal forma entre crianças e adolescentes, que todas as suas atrocidades, suas

arbitrariedades e inversões de valores já passaram a ser aceitos como perfeitamente naturais

entre muitos deles. Instalada na PPL por meio da brutalidade das quadrilhas, a estrutura

perversa do tráfico de drogas já começa a se constituir como agência de socialização que

concorre diretamente com as famílias do aglomerado.

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Dentro das gangues, cada vez mais crianças começam a se pautar por uma cultura

machista, belicista sectária e antidemocrática. A força das armas e a intimidação das

gangues começam, aos poucos, a substituir o poder da palavra, da negociação e dos

princípios mínimos de civilidade. Na Pedreira Prado Lopes, a dinâmica do tráfico de drogas

seduz as crianças, brinca com suas fantasias, subverte toda a estrutura de valores

personificados por instituições como família, escola e igreja. O tráfico intimida e corrompe

agências governamentais, faz surgir na favela uma autêntica subcultura do gueto, contrária

a todos os pressupostos do livre associativismo comunitário. Se, em um primeiro momento,

as gangues e o tráfico conseguiram se instalar na PPL, porque lá encontraram um cenário

de completa desestruturação sócio-econômica, no estágio atual, este processo se

potencializou. Como um mecanismo que se retro-alimenta, hoje em dia é a brutalidade das

gangues e a dinâmica do tráfico que configura o cenário adequado para se corromper,

intimidar, desorganizar e subverter valores ou instituições de socialização e de controle

como família, igrejas, escolas e associações de bairro.

A Pedreira Prado Lopes está hoje sob o domínio do tráfico de drogas e das gangues

ligadas à sua exploração. Todos os aspectos da sua vida comunitária estão impregnados

pela violência das quadrilhas, por suas disputas territoriais e pelos seus valores

antidemocráticos, despóticos e belicistas. Está sendo criada uma geração de crianças e

adolescentes que nunca soube o que é viver em uma comunidade sem medo, sem mortes,

sem confrontos armados. Uma geração que fala as gírias do tráfico, que opera com

representações simbólicas do tráfico, que compartilha todos os valores violentos das

quadrilhas e, mais do que isso, que começa a enxergar nas gangues uma alternativa viável

para a falta de perspectivas sócio-econômicas às quais eles estão fadados desde o

nascimento.

Justamente por isso, qualquer política pública que se disponha a tentar solucionar este

problema não poderá lidar apenas com aspectos estruturais ou legais. Muito mais do que

simplesmente combater as quadrilhas através de um trabalho de repressão qualificada –

intervenção infinitamente mais trabalhosa e precisa do que as sempre violentas, arbitrárias e

corruptas “ocupações” ou “incursões” - será preciso lidar com aspectos simbólicos,

arquitetônicos, culturais, educativos, econômicos, urbanísticos e estruturais da Pedreira.

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No que se refere à economia local, por exemplo, ficou muito evidente que o dinheiro

do tráfico, apesar de não ser aplicado diretamente na própria PPL, movimenta e aquece o

comércio de diversos estabelecimentos naquela comunidade. Tomemos como base a

estimativa feita em capítulos anteriores, segundo a qual o tráfico de drogas na Pedreira

movimenta pelo menos US$7,2 milhões por ano. Suponhamos que metade deste montante

seja reinvestido no próprio tráfico, para financiar a compra de novos carregamentos de

droga, a compra de armas, o pagamento de propinas à polícia e o pagamento de todas as

pessoas envolvidas com sua logística. Restam pelo menos US$3,5 milhões ao ano nas mãos

dos traficantes que, em sua imensa maioria, vivem na própria PPL e se vêem obrigados a

gastar boa parte deste dinheiro dentro da favela. Portanto, pode-se dizer com boa margem

de segurança que parte da verba do tráfico circula dentro da própria Pedreira, através dos

bares, das vendas, nos barracões que são construídos ou reformados, nas festas que o tráfico

promove e em todos os tipos de comércios e serviços informais existentes dentro do

aglomerado.

Mais uma vez, faz-se necessário ressaltar que durante toda a realização desta

pesquisa, não nos foi possível detectar qualquer tipo investimento direto feito pelos

traficantes em melhorias e benfeitorias para a Prado Lopes. Mas fato é que, ano após ano, o

tráfico movimenta uma soma milionária na Pedreira. E, direta ou indiretamente, este

dinheiro tem que circular. Desta forma, torna-se bastante válido o questionamento de como

ficaria a economia local da PPL, se o dinheiro do tráfico desaparecesse repentinamente da

favela. Justamente por isso, acreditamos que qualquer iniciativa a ser tomada para combater

as gangues e o tráfico da Prado Lopes deverá também contar com um programa de geração

de renda, para que a comunidade não sinta de forma negativa o desaparecimento do

dinheiro das drogas.

Voltando nosso olhar para aspectos eminentemente sociais e tomando como base a

análise feita em capítulos anteriores, concluímos que é preciso intervir de forma a promover

o resgate de instituições como a família, as escolas, as associações comunitárias, as igrejas,

os clubes esportivos e recreativos, a fim de estimular o fortalecimento de instâncias de

socialização e vigilância informal.

Durante a realização desta pesquisa na Pedreira, observamos que existem associações

comunitárias bastante dedicadas a realizar seu trabalho na favela, mas elas não conseguem

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mobilizar os moradores em torno de questões referentes à própria Pedreira. Isso significa

dizer, portanto, que os moradores não chegam ao ponto de colaborar com os traficantes,

mas também não fazem praticamente nada de efetivo para reprimir sua atuação. Justamente

por ser tão desmobilizada, a comunidade da PPL nunca se envolve diretamente em

nenhuma iniciativa que pretenda a desestruturação das quadrilhas. Desta maneira, seria

extremamente necessário desenvolver na Prado Lopes um trabalho de fortalecimento de

instituições primárias de sociabilidade e socialização. Até mesmo para dar sustentação local

a qualquer iniciativa de combate ao tráfico de drogas que venha a ser tentada.

É necessário também recuperar a pouca ou quase nenhuma confiança que a população

deposita no trabalho policial. É fundamental mudar a imagem violenta e corrupta que a

polícia adquiriu no morro, não injustamente, diga-se de passagem. As constantes ocupações

militares da Pedreira, sempre realizadas para satisfazer as cobranças esporádicas da

imprensa, fizeram com que a população da PPL percebesse a falta de interesse da polícia

em realmente tirar de circulação os verdadeiros traficantes da favela. Nestas grandes

operações, sempre são presos rapazes que ocupam funções menores no tráfico e

apreendem-se sempre pequenas “buchas” de drogas e algumas armas velhas. Por omissão,

vazamento de informações ou até mesmo conivência, nunca se chega aos grandes

criminosos. Criminosos estes que são vistos diariamente nas ruas da favela, conversando

tranqüilamente com os mesmos policiais que sempre participam destas ocupações.

Os dados coletados e analisados durante a elaboração desta pesquisa deixaram muito

claro que é preciso fortalecer não o poder de fogo das polícias, mas sim seu poder de

inteligência e investigação, para que elas passem finalmente a realizar um trabalho de

repressão efetivamente qualificado. É preciso, enfim, fazer com que as polícias se pautem

por uma intervenção mais precisa e menos truculenta. Até porque durante a realização desta

pesquisa, foram colhidos vários relatos de torturas, extorsões, humilhações, invasões de

domicílio e até mesmo vandalismo praticados por policiais. Fato é que a população da

Pedreira não confia na polícia, seja ela Civil ou Militar. E a partir do momento em que a

comunidade não acredita na integridade do único braço do Estado que sobe à favela,

qualquer iniciativa que se proponha a solucionar o problema da violência e da

criminalidade na PPL estará irreversivelmente fadada ao fracasso.

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É necessário, portanto, recuperar a auto-estima e o sentimento de unidade daquela

população, para que ela se torne, pela primeira vez em toda a sua história, uma comunidade

de fato. Através de uma atuação efetivamente positiva, é fundamental apagar do imaginário

da comunidade a imagem corrupta, despreparada, violenta e oportunista que por lá adquiriu

não apenas a polícia, mas todas as instâncias do Estado. Por mais simplista e óbvia que esta

conclusão possa parecer, não há como deixar de dizer que será preciso que o Estado entre

na Pedreira Prado Lopes. Não com as armas e a violência da polícia, como tem feito há

décadas sem alcançar qualquer resultado, mas com a real intenção de promover ali a

cidadania, o associativismo, a participação popular e a dignidade humana em seu sentido

mais amplo.

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ANEXO 1: Entrevistas com lideranças comunitárias da Pedreira Prado Lopes Entrevistado 1: S. A., 28 anos, funcionário público e morador da Pedreira Prado Lopes. É membro da ARCA-PPL (Associação Recreativa Comunitária Amigos da Pedreira Prado Lopes). Entrevista realizada em 19/12/2004. P: Você vive na Pedreira Prado Lopes há quanto tempo? R: Desde que nasci. Meus pais moram lá há muitos anos e sempre morei lá na Pedreira. P: Por que decidiu desenvolver trabalhos comunitários? R: Porque eu cresci lá e sempre vi a dificuldade daquele povo. Tem muita coisa que precisa ser feita lá, mas ninguém se dispõe a fazer. Aí, quando a Prefeitura começou a fazer o Orçamento Participativo, eu comecei a participar das votações e fui me envolvendo com os assuntos da comunidade mesmo. Depois disso eu comecei a trabalhar na Regional Noroeste, que é quem cuida da área da Pedreira, coordenando o setor do Orçamento Participativo. Mas também faço parte da Arca-PPL (Associação Recreativa Comunitária Amigos da Pedreira Prado Lopes), que organiza escolinhas de esporte para as crianças da Pedreira. Aí foi mais ou menos assim que eu comecei a fazer trabalho comunitário. Porque se você não pegar pra fazer, ninguém faz, né? P: Como avalia o envolvimento dos moradores da Pedreira Prado Lopes em questões da própria comunidade? R: Olha, se você for pensar em como é que era antes, agora é melhor. Mas infelizmente a participação do povo ainda é muito fraca. Já foi bem pior. Como eu te falei, hoje melhorou muito se você for pensar como era antes. Mas ainda dá muito trabalho conscientizar a comunidade da Pedreira que ela precisa se mobilizar pra conseguir as coisas. Hoje o pessoal participa mais do Orçamento Participativo, as escolinhas de esporte também dão muito certo porque os meninos vão mesmo, mas podia ser muito melhor. Parece que muita gente ainda não aprendeu que só a gente mesmo é que pode mudar aquela situação ali. Se ficar esperando de Governo só não vai mudar nada nunca. Mas ainda é muito difícil, muito difícil. Tem que ficar insistindo para o povo participar de reunião, tem que ficar explicando porque é importante cada um ir. É muito complicado porque o povo parece que não acredita muito que pode mudar alguma coisa, sabe como é que é? É complicado pra gente, mas não dá pra desistir não. A gente vai levando. P: Quais são as principais dificuldades enfrentadas por você no trabalho comunitário? R: É que nem eu te falei antes. A dificuldade é convencer os moradores que a participação de cada um é importante. E é um trabalho meio de formiguinha mesmo, porque você fala com um aqui, fala com outro ali, e às vezes tem que ficar pedindo para o povo participar das decisões, para votar no orçamento participativo, para tentar trazer melhorias para a Pedreira. E outra dificuldade também é a situação que a Pedreira vive, né? A coisa das

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drogas, das gangues que tem lá que traz muita dificuldade pra gente. Porque é mais uma coisa contra a qual você tem que lutar, né? P: Como é a relação das lideranças comunitárias com os traficantes? R: Ah, é complicada demais. É complicada porque ao mesmo tempo em que não dá pra bater de frente com esse pessoal, a gente tem que trabalhar pra tentar tirar os meninos dessa, né? Porra, é muito complicado... Só tem menino da comunidade nas gangues, então a gente fica numa situação difícil. Fora que é muita guerra entre eles lá, muita gente andando armada pra cima e pra baixo. E isso coloca medo na comunidade. Todo mundo fica com medo de sair de casa, com medo de chamar a polícia, com medo de tudo. Então isso acaba dificultando demais o trabalho da gente porque fica todo mundo com medo e é complicado você pedir a participação de quem tem medo. A coisa tinha melhorado um pouco, mas com essa volta do Roni agora a situação ficou insuportável de novo. Muita gente morre, a polícia volta pra Pedreira, apronta com todo mundo, esculacha morador, o povo fica com medo e fica muito difícil. Ficou tão ruim que há pouco tempo mesmo a gente parou de esperar a polícia e teve que tomar uma providência. Não estava mais dando para suportar a situação que estava aqui na Pedreira. O pessoal se reuniu com os meninos do movimento e pediu para eles pararem pelo menos até passar Natal e Reveillon. Do jeito que tava não dava pra sair de casa, não dava mais nem pra sair pra trabalhar. Era tiro dia e noite, dia e noite, ninguém mais tava agüentando. Outro dia mesmo, um tanto de gente foi ferida com bala perdida. Uma pegou até mesmo em uma funcionária lá do Odilon Behrens. E a gente sabe que a polícia não tá nem aí porque, enquanto for pobre que estiver morrendo, pra eles tá bom. Isso fora os que levam grana, né? Aí o pessoal achou por bem procurar os meninos e pedir uma trégua pelo menos pra gente poder curtir o Natal em paz. P: Como é a relação da comunidade com a polícia? R: É complicado a gente falar disso... Tem certeza que não vai sair meu nome nisso aí, né? Qualquer coisa eu não te falei nada disso não, viu? Mas cê quer ver como é que funciona a coisa da polícia lá na Pedreira? Lembra daquele episódio da ‘crackolândia’, quando a Globo mostrou aquelas imagens de um tanto de noiados na Araribá? Pois é, a imprensa caiu em cima e choveu de polícia na Pedreira durante mais de um mês. Mas foi só a poeira baixar que a polícia saiu. Aí, uma turma de policiais que trabalha há muito tempo aqui na Pedreira sentou com os traficantes e negociou com eles um pagamento semanal pra dar sossego. Cada ‘boca’ iria ter que pagar uma quantia X para não ser incomodada pela polícia de novo. Desde esse dia, tem ‘boca’ na Pedreira que paga coisa em torno de R$10 mil por semana. E todo mundo sabe quem são esses policiais. Tem um lá que fala claramente pra quem quiser ouvir que quem manda ali é ele. Que ele é o príncipe e que a mulher dele vai ter casamento de princesa. E que quem vai pagar são os traficantes. Essa é a polícia que a gente tem na Pedreira. E quando tem ocupação é pior. Quando não tem imprensa perto eles bordam mesmo. Teve um dia lá que um grupo de PMs pegou um menino no meio da rua e deu uma geral nele. Não encontraram nada com o rapaz lá, mas ficaram humilhando ele. Fizeram ele tirar a roupa no meio da rua e descer a Pedreira quase toda pelado, no meio da rua, pra todo mundo ver. Essa é a polícia que a gente tem na Pedreira. Quando a polícia sobe é pra humilhar morador, pra invadir casa, arrebentar porta, esculachar os outros e arrancar dinheiro de traficante. É complicado.

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P: Qual seria a solução para os altos índices de criminalidade da Pedreira Prado Lopes? R: Na minha opinião, o único jeito de acabar com esse negócio de droga é investir nas crianças. É dar lazer, educação, coisa pra fazer mesmo. Pra tirar aqueles meninos da rua, pro tráfico não ficar enchendo a cabeça deles como enche hoje em dia. Você pega os meninos que vão nas nossas escolinhas de esporte, por exemplo. Só pode freqüentar quem está na escola. E a gente sempre tá martelando na cabeça deles a importância de ser uma pessoa de bem, de não se envolver com essas coisas erradas, de não cair nessa ilusão de tráfico. Porque isso é uma ilusão. Ninguém que entra pra essa vida passa dos 20 anos. Mas é muito difícil porque eles crescem ali dentro e ficam vendo só isso pela frente, é complicado. Acho que é isso. Tem que dar perspectiva pras crianças que estao ali na Pedreira.

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ANEXO 2: Entrevistas com moradores da Pedreira Prado Lopes

Entrevistado 1: J. G. F., 65 anos, catador de papel, morador da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 21/03/2003.

P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Ah, meu filho... Tem uns 30 anos já... É... É por aí... Uns 30 anos já. P: Na sua opinião, quais são os principais problemas da comunidade? R: Problema? Ah, é a pobreza, né? É muita miséria, é muita gente sem trabalho. E essas guerra desses menino aí, né? Isso aqui já foi bom de morar. Hoje não é bom mais não. Hoje tem muita gente com arma, muito desses menino andando armado e muito tiro. É muita violência. P: Como é a relação dos moradores da Pedreira Prado Lopes com os traficantes? R: Ah, meu filho... Não tem muita relação não... Não dá pra ficar mexendo com esses menino não, porque qualquer coisa que cê faz eles já acha que tá querendo problema. Aí não dá pra ficar mexendo com eles não. Você vê que eles tá tudo lá mexendo com aquelas coisa deles lá mesmo, mas finge que não vê que é melhor, né? P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Teve dois meninos meus que acabou mexendo com isso, sim senhor. Infelizmente teve sim. E não foi porque faltou nada pra eles aqui dentro de casa não que você pode ver que é casa humilde, mas eu sempre trabalhei e nunca deixei faltar nada pra aqueles menino não. Mas eles acabaram entrando pra essa vida sim. P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: É que nem eu tô te falando dos meus menino mesmo. Os dois acabou mexendo com isso. E acaba trazendo a desgraça pra dentro de casa, né? Porque chega numa hora que não tem mais jeito de não vê que o menino tá mexendo com coisa errada. Cê vê que ele tá andando demais com esses menino aí, que só sai na companhia deles. Um deles, o mais velho, eu já sabia que tava mexendo com esse trem de droga. O outro eu demorei pra descobrir porque eu ficava de cima dele pra não cair nessa vida. Mas também não teve jeito não. Eu só fui saber que meu outro filho também tava metido com isso aí no dia que eles arrebentaram a porta da minha casa e entraram aqui pra dentro com as arma na mão. Aquele bando de menino sacudia um tanto de arma e perguntava onde é que tava meu filho. Eles quebraram a casa toda, chutou minha mesa, deu tiro na televisão, quebrou tudo que tinha na frente. Eu disse que não sabia do meu menino, que não via ele tinha uns três dias já. Mas não adiantou porque eles colocou a arma no meu peito e me arrastou para fora de casa. Me deram tapa na cara na frente de todo mundo, chute na barriga e bateram com as arma na minha cabeça. Foi muita humilhação, só eu é que sei. Eles falou que se meu menino não aparecesse para morrer que nem homem, eles ia voltar e matar a família toda. Eu fiquei lá no meio da rua, todo machucado, sem poder fazer nada. Ia fazer o que?

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E o pior é que todo mundo na rua viu, mas ninguém faz nada porque não tem jeito não. Se você fala qualquer coisa, eles fica sabendo e já vem pra cima de você com aquele tanto de arma e mata mesmo. Todo mundo sabe quem é, mas não adianta porque quando eles tão de guerra - é guerra que eles fala, né? – eles mata mesmo, não quer nem saber quem é. Todo dia o negócio é sair de casa e nem olhar pro lado, porque se eles cisma com você, você tá perdido. E todo mundo vive assim. Esse bando de menino fica no meio da rua de arma na mão e você tem que fingir que não tá vendo nada. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Ah, meu filho... A gente aqui vê coisa que até Deus duvida... Tem vez que, de noite mesmo, eles passa na rua tudo junto, com aquelas touca na cabeça e carregando umas arma grande assim. É tudo uns menino novo, tudo daqui da Pedreira mesmo, mas parece guerra, cê precisa de ver. O negócio é fechar a porta e a janela e fingir que não tá acontecendo nada. Porque quando eles tá assim, pode saber que eles vai matar alguém. E eles pega na covardia. Junta tudo num só e enche de tiro no meio da rua. E mata de graça. Mata porque falou uma coisa que o outro não gostou, mata porque é inimigo, mata por causa de mulher, mata porque ta vendendo droga pra eles. É assim mesmo que acontece e ninguém pode falar nada. Isso aqui é onde o filho chora e a mãe não escuta, moço... O pior disso tudo sabe o que que é, menino? É que as família não tem nada a ver com a guerra deles. Mas sempre é o filho é que faz e a família é que paga. Eu sou viúvo e tenho dois menino. Um, eu morri de tanto falar na cabeça dele, mas não adiantou. Um dia eles pegou meu menino e matou ele com um tanto de tiro no meio da rua. O outro tá preso. E eu acho que é até melhor tá assim mesmo, porque assim pelo menos ele fica vivo. E sabe o que me dá raiva, menino? É que eu não consigo entender como é que esse bando de menino ficou desse jeito. Quando era pequeno, ficava tudo por aí, brincando junto no meio da rua. Agora fica esse negócio de guerra aí que não dá pra mim entender. Fica andando pra cima e pra baixo com arma na mão, tudo dando tiro um no outro como se fosse inimigo. Mas é tudo menino daqui mesmo, é tudo menino que a gente viu crescer aqui na Pedreira mesmo, como é que pode? Acho que é esse trem de droga que estraga tudo. É esse trem de droga que faz isso com esses menino aí P: Como você vê o trabalho da polícia? R: Ah, isso aí nem é bom a gente ficar falando demais não. Sabe por que? Porque é muita coisa errada que a gente vê, né? Esses polícia vem aqui, sabe quem é que faz as coisa errada mas nunca prende quem tem que prender. Então dá pra pensar que tem coisa errada , não é? Aí você não entende porque vê uns polícia aí conversando com uns menino que você sabe que anda na vida errada. Mas eles conversa junto, tudo junto. Então essas coisa é melhor a gente não falar muito não, né?

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Entrevistado 2: W. S. C., 31 anos, desempregado, morador da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 11/02/2004. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Moro aqui tem uns 10 anos. P: Quais são os principais problemas da comunidade? R: Com certeza é o tráfico. Com certeza. A gente não tem sossego pra nada. É muito aperto que a gente passa aqui com esses meninos aí, você nem imagina. P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Não tem muita relação não. Cada um fica na sua. É só não mexer com eles que eles não mexe com você. Tem que fingir que não tá vendo nada dessas coisa aí porque senão fica feio pro seu lado. P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Graças a Deus não. P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Contato direto assim não. É que nem eu te falei, né? A gente não mexe com eles e eles não mexe com a gente. Todo mundo faz que não tá vendo e cada um cuida da sua vida. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Ah, meu irmão... Já vi coisa que até Deus duvida aqui. Aliás, todo mundo que mora aqui já viu. Teve um dia que era mais ou menos umas dez e meia quando comecei a escutar os grito. Pela minha porta deu para ouvir que era um rapaz correndo de uns três que tavam atrás dele. Ele corria pelos beco gritando e batia desesperado nas porta pedindo pelo amor de Deus para abrir. Ele batia, batia, batia, pedia ajuda, pelo amor de Deus. Mas ninguém abria que ninguém é doido de acudir numa situação dessas, né? Os que tava atrás dele só gritava: ‘vai morrê, filho da puta, vai morrê!’ Ai comecei a ouvir só os pipoco. Parecia que eles corria atrás do coitado e atirava pelos beco. Pelo que deu pra ouvir, eles vieram tudo pelo Beco do Profeta e fecharam o rapaz no São Geraldo mesmo. Foi muito tiro, muito tiro, e bem perto da minha porta. Tava um silêncio danado na favela e só dava pra ouvir o cara pedindo pelo amor de Deus, pelo amor de Deus. Eles encheram ele de pipoco e um gritava sem parar: ‘viu mané? Viu mané?’ Foi uma coisa horrorosa, porque você não pode se meter. Tem que ouvir o cara morrê na sua porta e não pode fazer nada. Se entrar no meio, leva azeitona junto com quem eles tá caçando. Tem que ouvir tudo e fingir que não tá acontecendo nada. Às vez você até reconhece a voz de quem é que tá gritando, as voz de quem é que tá cobrando a parada. Aí você até encontra com eles na rua no dia seguinte. Mas tem que fingir que não ouviu nada, que não rolou nada. E assim vai levando a vida. Se o cara morrê cheio de bala na sua porta, você tem que deixar como tá porque senão eles cobra mesmo. E quando eles cisma que cagüetou ou chamou os homi, acabou procê. É caixão e vela preta

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P: Como você vê o trabalho da polícia? R: (Entrevistado sorri e abaixa a cabeça) Tem certeza que cê quer falar disso mesmo? É meio foda pra gente esses trem de polícia. Mas tá aí pra quem quiser ver. Ocê mesmo se vier aqui uma noite, é só ficar ali naquela área da Araribá, da Carmo, da Marcazita ali que cê vê o que eu tô falando. Não precisa nem eu te responder isso aí não. Mas pensa bem. Todo mundo sabe quem é que mexe com tráfico, todo mundo tá vendo porque eles não escondem de ninguém. E por que que os ‘homi’ não pega ninguém? Aí você tira suas conclusões. Entrevistado 3: M. A. F. J., 42 anos, dona-de-casa e moradora da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 21/03/2003. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Moro aqui há uns oito anos, mais ou menos. Acho que é isso mesmo. P: Quais são os principais problemas da comunidade? R: Pra mim é esse negócio dessas gangue aí. É droga, né meu filho. É tudo droga. Esses meninos começam a mexer com isso e começa a desgraça toda. Isso é a desgraça aqui da Pedreira. P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Cruz credo, Deus me livre! Ninguém aqui mexe com eles não, meu filho. Cê tá doido? Deus me livre e guarde! Mexer com esse pessoal é morte certa. Cê não vê o tanto de menino que tá morrendo aqui esse ano não? E você ainda acha que alguém de bem vai ficar envolvendo com eles? Não dá não. Eu mesmo faço que nem vejo. Passo reto e nem cumprimento direito. P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Graças a meu bom Jesus não. Fico em cima dos meus menino pra eles nem olhar pra esse lado aí. Se eu souber que tá envolvendo com esses malandro eu corto no couro. Aliás, eu acho que todos esses menino que começa a envolver com isso é porque o pai e a mãe não olhou direito. O pai e a mãe sai para trabalhar e não têm com quem deixar os meninos. Aí fica tudo por aí, jogado no meio da rua aprendendo coisa errada, convivendo com esses malandro aí. É porque, se você for ver, aqui na Pedreira tem muita gente boa, mas também tem muito malandro ensinando coisa errada para esses menino aí. E mãe não pode bobear que quando vê menino já tá mexendo com esse trem de droga. E não é que o pai e a mãe sejam largado com eles não. É porque se não trabalhar fora, os filho morre de fome. Aí fica tudo o dia inteiro na rua, brincando por conta deles mesmo e tudo que eles aprende é por conta deles mesmo. E o meu pai que falava que ‘cabeça vazia é oficina do diabo’. Vira e mexe você vê uns menino de nove, dez, onze ano tomando conta dos irmão mais novo. E isso não tá certo não, porque é justamente nessa idade é que começa a se envolver com essas malandragem aqui da Pedreira

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P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Cruz credo, Deus me livre! To te falando que eu nem olho pro lado deles não. Passo reto e finjo que nem vejo que eles tão ali. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Eu não vi nada, meu filho. Não vi nada, não sei de nada. Se me perguntar eu não falo porque esse povo tem ouvido até onde Deus duvida. E eles cobra mesmo esse tipo de coisa se ficar conversando fiado por aí. Chega de noite eu fecho a porta da minha casa, fecho a janela, coloco meus menino pra dentro e não sei de mais nada. P: Como você vê o trabalho da polícia? R: Ah, menino... Aqui vive cheio de polícia. Mas só na hora que não precisa. Porque na hora que precisa mesmo não vem. Quando tá cheio desses malandro aí no meio da rua, eles não vem. Só vem mesmo depois que já teve tiro, depois que já matou. Aí enche de polícia e de reportagem. Aí não precisa aparecer mais não porque a desgraça já tá feita, não é não? E quer saber? De polícia também eu quero distância porque quem se mistura com os porcos, come lavagem. Era meu pai que falava isso e ele tá mais é certo. Entrevistado 4: J.T.S., 71 anos, marceneiro e morador da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 12/07/2002. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Ih, tem muito tempo. Moro aqui desde que eu nasci. A Pedreira era muito diferente de hoje, não tinha posto de saúde, não tinha nem o D.I. (Departamento de Investigações) lá em baixo pra você ter uma idéia. Eu to velho de casa (risos). P:Quais são os principais problemas da comunidade? R: Ah, problema aqui é o desemprego, né? Tem muito pai de família aqui que tá sem trabalho. Tenho um monte de vizinho que não consegue trabalhar pra colocar comida dentro de casa, que fica vendo os filho e a mulher aí passando necessidade. Acho que o problema aqui é a falta de trabalho. A falta de trabalho e essas malandragem aí, né? Esses menino que fica com essas coisa que eles chama de gangue aí. P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Aí você começou a falar de uma coisa complicada... Ah, meu filho... Sempre teve malandragem aqui na Pedreira. Só que não era isso que todo mundo vê aí hoje não. Na minha época mesmo, tinha aí os malandro. Mas eles respeitava a gente. Eles ficava aí com as coisas deles e não mexiam com ninguém. Quando tinha problema, era só entre eles mesmo, por coisa deles mesmo. E resolvia tudo pra lá, não tinha esse negócio de prejudicar o povo da Pedreira que nem esses menino que tão aí hoje não. Hoje é que fica ai essa meninada que não respeita ninguém, que não quer saber se é morador da Pedreira ou não.

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P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Tive não. Graças a Deus tive não... P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Não tive também não. Não mexo com esses menino não, meu filho... P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: (Silêncio) Já vi de tudo, meu filho... Já vi de tudo aqui nessa Pedreira. Coisa que se eu contar até Deus duvida. O problema é esse negócio de droga. Antigamente, a malandragem nem mexia tanto com isso não até porque o morador nem sabia direito como é que funcionava esse negócio de tráfico aí. Agora cê vê que é tudo menino mexendo com esse negócio de tráfico. Tudo menino novo. É arma, é droga, é guerra... Ninguém mais tem sossego aqui na Pedreira... O problema é que esses menino não respeita ninguém. Se eles cisma com você, acabou. Se alguém compra coisa na mão deles e não paga, eles vem em cima mesmo. E não tem perdão, não tem conversa. Eles arrasta no meio da rua, eles coloca arma na cara, dão surra mesmo. Isso quando não mata o sujeito que é pra dar exemplo. Eles dão tiro no meio da rua, queima as lâmpada da rua tudo, fica mostrando arma pra quem quisé ver... E não tem respeito com morador daqui não. Tem dia que eles cumprimenta você e até trata bem, mas tem dia que, se você olha demais, eles perguntam que que tá querendo, se perdeu alguma coisa lá, que é pra sair fora logo que eles acha que tá querendo cangüetá. O negócio aqui é levar a vida e não mexer com eles. Tem que fingir que eles não tão lá e nem querer saber o que ta acontecendo P:Como você vê o trabalho da polícia? R: Polícia? Cê tá é brincando comigo, né? (silêncio) A gente tá sozinho aqui, meu filho... Sozinho... Polícia aqui é o terror. Tem um vizinho meu aqui que a polícia já entrou na casa dele, já bateu nos menino tudo, revirou a casa toda, jogou lata de arroz no chão, chamou todo mundo de ladrão, de preto... É chato a gente ficar falando isso porque tem uns polícia de bem também. Mas é muito pouco. Na maioria das vez é quase tudo malandro igual a esses menino que fica por aí. Às vez você até vê eles andando junto “coliado” um com o outro. Como é que pode isso? É difícil pra mim entender como é que pode. Aí a gente fica sozinho aqui, não tem pra quem pedir ajuda. Entrevistado 5: J.M.S.B., 25 anos, dona de casa, moradora da parte alta da Pedreira. Entrevista realizada em 13/08/2004. P: Mora há quanto tempo na Pedreira Prado Lopes? R: Morar na Pedreira eu moro minha vida inteira. Mas tem pouquinho tempo que eu mudei aqui pra essa casa. P: Quais são os principais problemas da comunidade? R: Uai, é isso aí que todo mundo tá vendo, né? Violência que tá demais. Essas gangues aí que não deixam a gente nem sair de casa.

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P: Como é a relação dos moradores com os traficantes? R: Ah, não dá pra ficar envolvendo com eles não, né? Tem até gente que pede umas bobagem ou outra aí pra eles, mas eu nunca pedi não e a maioria também não pede não porque depois o preço é alto, né? Acho que é mais cada um no seu canto mesmo. Acho que o povo não envolve muito não até porque eles também não fazem por onde. Por exemplo, eu já vi eles falando por aí que eles não deixam ter roubo aqui na favela, que aqui não vai ter malandro pra atrasar a vida de ninguém. Mas é porque se tiver roubo chove de polícia e atrapalha o movimento deles. Não é porque eles querem o bem de ninguém que mora por aqui, cê tá me entendendo? Eles não fazem nada pela Pedreira não. Aliás, só prejudicam, porque a Pedreira tem essa fama toda por causa deles. Aí, se você vai caçar emprego na rua e diz que mora na Pedreira, já era. Eles pensam que é tudo bandido que mora aqui. Mas a maioria é trabalhador. Por causa de uma meia dúzia de menino que fica andando armado aí, todo mundo paga o pato. E é um inferno, porque cê não arruma emprego, não pode sair de casa depois que fica de noite. Se saiu de casa, tem que voltar antes de ficar de noite porque senão é perigoso demais. Isso aqui é um inferno por causa desse trem de droga, mas a gente vai fazer o que? Polícia que é polícia não faz nada, às vezes fica até de acordo com eles, a gente vai fazer o que? P: Tem algum familiar que se envolveu com o tráfico? R: Meu ex-marido já mexeu com isso uma vez, mas já pagou o que devia e hoje é trabalhador. Não mexe mais com isso não. P: Já teve alguma experiência com o tráfico ou contato direto com os traficantes? R: Eu, não. Nunca mexi com isso não e nem olho pro lado deles não. P: O que você já viu os traficantes fazerem? R: Ah, já vi praticamente tudo que cê pode imaginar. É que nem eu te falei. Morei aqui na Pedreira minha vida inteira, mas tem uns três meses só que tô morando aqui no beco Bom Jesus. E hoje eu posso te falar com certeza que meu maior sonho é sair daqui da Pedreira. Cê pode ver que eu tomo conta de cinco menino novo aqui dentro de casa e que nenhum deles tá na rua. Eu não deixo sair porque com essa guerra deles aí pode sobrar bala a qualquer hora pra quem não tem nada a ver com a história. Porque antigamente eles avisavam quando ia ter tiroteio, né? Hoje eles não avisam ninguém não, não tem respeito com ninguém mais. Quem tiver na rua que se dane pra lá. Se pegar, pegou, eles nem olham pra onde é que tá atirando, se tem gente inocente na rua... Eles querem é dar tiro um no outro. Então não dá pra ficar deixando menino na rua não, ainda mais aqui que é pertinho da Marcazita. Coloco aí um desenho na televisão e eles ficam aqui o dia inteiro vendo. P: Como você vê o trabalho da polícia? R: Ah, tem até uns polícia bom aqui que até tenta fazer uma coisa ou outra. Tanto que eles já prenderam uns caras aí que eram o terror aqui na Pedreira. Mas a maioria não presta não. Tem uns que trabalham aqui na Pedreira quase todo dia e que já tão de rolo com esses menino aí. E todo mundo sabe. Mas nós vamos fazer o que? Chamar a polícia pra polícia? Não dá... Não dá...

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ANEXO 3: Entrevistas com traficantes que atuam na Pedreira Prado Lopes Entrevistado 1: D. A. S., 17 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 31/05/2002. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde sempre. Fui criado aqui mesmo. P: Mora com pai e mãe? R: Moro mais não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo também mais não. Larguei quanto tinha 15. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Como é que eu comecei? Ah, veio... Comecei de bobeira. Cê sempre começa de bobeira. Comecei fumando maconha. Daí acabei entrando pra essa vida. Primeiro cê fuma, depois começa a vender um pouco, sabe cumé? Aprontando uma correria pra adiantar meu lado, né? Aí, véio, um dia cê acorda e já tá na boca de arma na mão. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Ah, véio... Cê entra pra essa vida por causa de tudo um pouco. É grana, é mulher, é pra andá só nos pano fino, tá ligado? Cê acaba entrando pra ganhar moral. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? P: Como é seu dia-dia dentro do tráfico? O que você faz todos os dias? R: Depende... A gente faz de tudo um pouco. Já fiquei na atividade, na escolta... Agora tô na contenção. Fico perto das boca pra sentá o dedo nuns curza caminho aí. Fico meu turno e depois vô pra zuá. Mas muda muito. Depende O lance é ficá na moral com o patrão e ganhar respeito. Aí as “onça” (notas de R$50,00) começa a rolá no seu bolso. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: A Pedreira tá em guerra. Tem muita gente andando armada nas ruas, fazendo a segurança das bocas. O foda é que a Pedreira mesmo era pra ter só uma quadrilha comandando o movimento. Mas tem sempre que aparecer uns cruza caminho, sabe cumé? Cruza caminho é aquele cara que tenta tomar nossas bocas de assalto. Tenta invadir nossa área para tomar nossos pontos de venda. E não era pra ser assim, cara. Não era. A gente tá nessa tem um tempão já e não era para ter guerra. Esses cara da parte alta plantaram na boca tem pouco tempo e já tão querendo tomar nossos ponto de assalto? Qualé, veio? Né assim que funciona não.

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E o pior de tudo é que não precisava tá essa guerra porque foi todo mundo criado junto aqui mesmo. Não precisava ter guerra. Mas acaba que cada um segue seu caminho, né? É foda também porque a gente vê que eles tão mais bem armado do que nós. Eles têm metralhadora, fuzil, pistola e muita arma pesada. E tão sempre tentando tomar nossas boca de assalto. Direto eles tão descendo de oito ou dez, tudo de touca ninja na cabeça e arma na mão pra tomar nossos ponto. A gente não. A gente é da tranqüilidade, tá ligado? A grana que entra a gente gasta em carro e roupa. A gente tira onda, sabe cumé? O pessoal da parte alta não. Eles só gasta em arma e droga, arma e droga. Por isso é que tão mais bem armado do que a gente. Mas isso não quer dizer nada não, porque revólver não serve pra nada na mão de vacilão. Eu me garanto com qualquer 38. O mais importante nessas hora é a disposição. Eu me garanto com qualquer revólver. E eu tenho amor à minha vida, né? Se não andar armado vai pro cemitério mesmo, véio. Meu revólver é meu parceiro e ele não me deixa na mão. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: É que nem eu te falei. Cada um na sua. A gente só coloca o terrô em quem fica de embaça pra nós. Se não ficá nas parada errada, se não ficá de leva-e-traz pros homi, tem erro não, tá ligado? A nossa não é atrasar a vida de ninguém. A gente sabe que tá nessa vida, que tá do lado errado mesmo, mas isso é com a gente, tá ligado? O nosso negócio é só descolar o nosso mesmo e não atrasar a vida de ninguém. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: De polícia eu não falo não. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Mãe nunca gosta, né véio? Mas vai fazer o que? Chega numa hora que cada um tem que seguir seu destino mesmo. Uns vai pra vida direita e outros vai pra vida errada mesmo. Eu não tô afim de ficá na pindura minha vida inteira. Ficá nessa miséria aqui? Nem fudendo, tá ligado? É assim que funciona. E o foda é que depois que entrou cê não pára. Não pára porque tira muita grana. Eu mesmo já cheguei a tirar R$900,00 por dia. Aí eu fiz minhas economia que é para última precisão mesmo, saca? Vou deixar tudo pro meu filho e pra minha mulher. Quero garantir o futuro do meu menino pra ele não seguir meu caminho. O que você pensa para o futuro? R: Como assim? P: Para seu futuro. O que pensa em fazer no futuro? Como acha que será sua vida no futuro? R: Cê tá querendo saber se eu tenho medo de morrê? Tenho não, véio. Sei que o destino de quem ta nessa vida é algema ou cemitério. E vô te falar que a única coisa que eu sinto falta é da vida que eu tinha antigamente. De poder andar pra todo canto sem preocupação, de poder ir em qualquer lugar, saca? Disso eu sinto falta. Mas é que nem eu te falei. Não rola de ficá nessa pindura pra sempre. Tenho que tentar descolá o meu e vazá daqui, sei lá. Saí fora e arrumá uns trem direito aí. Sei não, véio...

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Entrevistado 2: L. G. F. C., traficante da ‘Boca do Terreirão’, região Nordeste da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 12/10/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Tem uns cinco anos já. P: Mora com pai e mãe? R: Não. P:Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: To estudando mais não. Estudei até a quinta-série e larguei quando tava com 15. Tinha mais saco praquilo não. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Quando eu cheguei aqui na Pedreira já tinha o movimento. Na época era tudo do Roni mesmo. Aí eu via como era a vida do pessoal. Porra, todo mundo nos pano, todo mundo cheio das onça no bolso, a mulherada só pagava madeira pros cara do movimento mesmo. Aí eu fraguei que o lance era cê ficá considerado dos cara. Aí cê começa a aprontar umas correria aí pra agilizá seu lado... Pra descolá um também. Aí quando cê vê já tá no movimento também. Vai pegando consideração, consideração e acaba ficando com os cara mesmo porque o pessoal do outro lado da Pedreira começa a te sacar e se vacilá eles senta o dedo mesmo porque já acha que cê tá fechado com os daqui. Então o negócio é entrá mesmo e foda-se, né não? P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Uai, é que nem eu acabei de te falar... Envolve porque senão não tem jeito de conseguir as coisa aqui dentro. E fica tudo mais fácil mesmo, vem tudo na mão. As muié tudo vê que cê tá armado e olha diferente. Quer chegar perto, quer vê a arma, daqui a pouco quer dá procê e assim vai. Todo mundo te respeita, todo mundo te olha com medo. É doido demais. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Uai, a gente fica no movimento mesmo. Direto e reto na atividade. Vendemo nossas parada mesmo e só ligado nos atividade pra vê se os “homi” vão aparecê. Agora eu tô na frente de uma das “boca” e tenho que prestá conta pro patrão. Mas é tranqüilo. Se não tivesse uns embaça aí o movimento ia tá presidente. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Tá aí essa guerra que todo mundo tá vendo... Nós aqui do Terreirão contra os verme do Roni. Mas a parada é que nós tamos vendeno muito mais do que as boca dele e aquele otário tá neurado, tá ligado? Já mandou aqui uns recado que vai passá o rodo, que vai sentá o dedo em todo mundo, que vai fazê isso, que não sei que lá mais... Mas vai tê essa parada não porque a gente não vai abrir as perna praquele vacilão não. Tá achando que aqui só tem aqueles paga-pau que tem do lado de lá? Tá achando que a gente vai ficá dando a bunda pra tomá tiro pra ele tirá grana em cima de nós? Nem fudendo!

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Ele quer empurrar cada grama da pedra dele pra nós por 16 conto. Só que tem que a gente consegue é por R$13,00. E isso tá deixando o cara neurado demais porque a gente tá é quebrando a banca daquele otário... Cê ouve a gente falando assim e acha que é pagá mó vacilo entrá numa guerra ruim dessa por causa de três conto de diferença, né? Mas pensa comigo aqui, véio. Cada grama de crack rende pra nós quatro pedra. Cada pedra a gente tira a cinco conto. Tem final de semana aqui na boca que a gente vende é quase meio quilo de crack numa noite. Numa noite só véio! Dá umas duas mil pedra. Multiplica isso aí agora pra você vê quem é que tá de vacilão na história. Cê tá me entendendo? O safado do Roni tá querendo dá a maior volta em cima de nós. Ele acha que só tem otário aqui na Pedreira. Acha que todo mundo tem que pagá boi pra ele. Com nós né assim não, véio. Aqui no Terreirão nós é sinistro mesmo! P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: A gente num treta com eles e eles num treta com a gente. Fica assim. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: (risos) Só tem verme de farda, véio... Só verme. Eu, se eu pudesse, sentava o dedo naqueles vagabundo tudo! Tudo uma cambada de covarde, de vagabundo. Tem é que queimá eles tudo, passá é o rodo. Aparece tudo aqui com aqueles oio vidradão só querendo mordê a gente. E leva mesmo! Leva mesmo! Se pegá trepado leva os ferro, leva o bagulho e ainda esculacha. Tem uma turma aí que eu vô te falar... Se levá menos de R$15 mil por semana eu atravesso essa Pedreira de saia, que nem mulherzinha... P: Você já teve que pagar policiais para ser liberado de um flagrante? R: Eu não. Mas o patrão paga os homi direto, aí, ó... Quem quisé vê, que vê. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Minha família não tá aqui não. Minha família tem nada a vê com minhas coisa não. P: O que você pensa para o futuro? R: Não quero embaçá a vida de ninguém, tá ligado. Quero só fazê o meu aqui na paz. Essa guerra vai tê que acabá e aquele fedaputa do Roni vai tê que aceitá que já era, já passou o tempo dele. Agora aqui é nós mesmo e se vié vai levá azeitona na cabeça mesmo! Não vamo aceita isso não, aí. Quem que ele tá pensando que é, pô? Só porque o Roni foi o cara durante uns tempo aí tá achando que é chegar assim e empurrá o bagulho dele em nós? Né assim não véio... Não é assim mesmo. Tamo ligado que as outras quadrilhas tudo já pagaram boi pro cara. Mas com a gente não vai tê essa moleza não. Se quisé vai tê que vim aqui pegá. E vai tê guerra, sabe por que? Porque nós é sinistro mesmo, véio. Se vié aqueles cruza caminho pro nosso lado nós senta é o dedo mesmo, tá ligado? Se vié vai tê morte, vai tê guerra

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Entrevistado 3: Traficante conhecido como “Nego”, um dos líderes da gangue da rua Marcazita. Entrevista realizada em 12/08/2004. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Tem uns dez anos já. P: Mora com pai e mãe? R: Só com mãe. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo mais não. Tirei a oitava série e parei. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Meu irmão começou a movimentar na Marcazita e eu acabei entrando também. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Porque dá grana, porque via meu irmão cheio de mulher, de pano fino, tem a manha? Por que não? Por que que eu também não posso conseguir o meu que nem todo mundo? P: Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? O que eu faço no movimento? P: Isso. R: Já falei, uai. Eu agora só gerencio. O bagulho chega na mão e eu coloco a molecada pra fazê a correria. Jogo os ferro na mão dos mais considerado, as carga na mão dos mais esperto e fico na supervisão. Antes era eu e meu irmão. Agora não sei como é que vai ser não. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Uai, cê não tá vendo não? Tá aí pra quem quiser vê. Tá essa porra de guerra aí. Achei que ia ficá numa boa depois que nós passamo o rodo nos cara do “Terreirão” mas só tem cobra aqui nessa Pedreira. Só tem traíra de olho grande.Agora o pessoal da Carmo do Rio Claro (quadrilha fiel ao comando de Roni Peixoto) tá matando todos os nossos ‘atividade’ (olheiros ou vigias do tráfico) para poder pegar nossas boca de assalto na manha. Mas não vai tê boi pra eles não porque nós vamo revidá. Pra cada um que caí do lado de cá, vai tombá é dez do lado deles. Já mataram meu irmão na semana passada e isso não vai ficá barato. Vai corrê sangue, vai tê muita morte. O movimento aqui era bom pra todo mundo ficá na moral. Mas eles ficam com o olho grande porque nós tamo prosperando, sabe qualé? E eles não pode vê ninguém ficá bonito na fita que já qué tomá a boca, ao invés de aprendê a trabalhá. Tão vindo aqui direto e reto e zuando o plantão. Então agora não vai tê sossego não. Agora vai sê é guerra mesmo

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P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Morador tudo gosta da gente, véio. Cê não viu eu chegando aqui agora. Todo mundo cumprimenta, todo mundo respeita. Todo mundo vem me dá força por causa do lance do meu irmão... É assim. A gente faz bem pra comunidade, ajuda o lado deles e eles ajudam o nosso lado. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: De polícia eu não falo... Desculpa aí, na moral. Mas tô te recebendo na boa, cê tá sendo educado comigo, na moral. Mas dos homi a gente não conversa. Aí cê pergunta pra eles mesmo. Só te falo o que todo mundo sabe: tem polícia bom e tem polícia mau. O resto cê tira suas conclusão aí com seu caderninho. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: A mãe sabe que a gente tá no movimento. Sabe que a gente tá na vida errada, que a gente é errado... Sofre. Mas não embaça não. Agora com essa do meu irmão tá foda... Tá foda... P: O que você pensa para o futuro? R: Sei de mais nada não, véio... Sei de mais nada não... Entrevistado 4: M. F. S., 14 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada no dia 21/12/2000, ocasião em que o adolescente foi apreendido pela PM. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde que eu nasci. P: Mora com pai e mãe? R: Moro sim senhor. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo sim senhor. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Uai, envolvendo... Pega conceito com os cara e acaba entrando pro movimento. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Por que? Uai, porque era o que eu queria. Porque é bom... Minha mãe fica chateada, não gosta que eu mexa com isso não. Mas eu que sô peixe pequeno consigo levantar quase R$300,00 por mês. Quem é forte na boca consegue muito mais. Além disso a gente impõe o terrô, né não? Precisa de vê como é que a mulherada fica doida quando vê a gente com arma na mão, véio. Precisa de vê. E quando a gente sai de uma troca então? Nossa, véio! A

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gente se sente o bicho. Quando a gente chega num lugar, todo mundo comenta, todo mundo olha com medo. A gente é o terrô, véio. O terrô! Nós é sinistro mesmo. P:Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? P: O que você faz durante o dia e durante a noite? R: Uai, fico na correria, na atividade. Arrumo minhas correria aí e tiro o meu. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Tá essa guerra aí, né? Esses polícia trepado, a gente sentando o dedo mesmo. E tá o terrô, a Pedreira tá o terrô. Por que que cê acha que eu tava trepado? Por que se não andá trepado eles joga pra trás mesmo. P: Todas estas armas são suas? R: Né não, né não. Dessas arma tudo aí só o oitão que é meu. Mas foi o pessoal do Vera Cruz que trouxe as arma pra gente. P: Como foi que você consegui esta arma? R: Na Pedreira arma é fácil, fácil. Com R$200,00 você descola um oitão. As PT são mais difícil. Mas com R$350,00 ou R$400,00 cê arruma uma. Não sei dizê se foi a polícia que arrumou pro pessoal do Vera Cruz. Porque isso tudo é arma de polícia, né? P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Como assim? P: Como é que os moradores da Pedreira tratam vocês e como é que vocês tratam eles? R: Uai, normal, aí. Eles repeita a gente e a gente respeita eles. Queremo atrasá a vida de ninguém não. Mas também não pode atrasá a nossa, né? P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: A gente é bandido, eles é polícia, uai... (risos) P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Minha mãe não gosta não. Mas eu ganho meu dinheiro e ela não pode falar nada não... P: O que você pensa para o futuro? R: Ah... Penso nada não senhor. Tipo assim... Tem que acabá essa guerra, né? A guerra tinha parado no começo do ano, depois que o Babão morreu. Mas a gente agora tá de guerra de novo com o pessoal do Coração. Eu mesmo já troquei tiro com o Coração. E não tenho medo de morrê nessa vida não porque sei que bala perdida ou trocada não tem dono. Olha procê vê cumé que são as coisa. Na quarta passada os homi me pegou e me levô pra delegacia. Me levaram pro juizado e me colocaram na rua de novo. A coisa funciona é assim, véio.

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Entrevistado 5: C. P. S., 20 anos, conhecido como Coração, traficante da parte alta da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 28/12/2000, na ocasião de sua prisão por policiais da Delegacia Seccional Norte. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde que nasci. P: Mora com pai e mãe? R: Não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Estudo mais não. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Entrei pro crime com uns 16 anos. Entrei porque era viciado em crack e tinha que sustentá o vício, né? Comecei e metê uns assalto e fazer uns aviões de vez em quando. Eu comprava o bagulho mais barato com o pessoal considerado aí e vendia mais caro pros bacana. Só que em 99 eles mataram meu irmão. Meu irmão que me deu o apelido. E eu corri atrás mesmo. Me vinguei. Matei ele também. Na favela, ou você mata ou você morre. E antes que me matem, eu mato. E a gente vive de guerra. Os contato leva as arma lá pra gente e a gente vive de guerra. Mas eu não tenho esse tanto de homicídio que tão querendo jogar pra cima de mim não. Muitos desses aí foi rival meu que matou e eles fica querendo jogar nas minhas costa. Um cara que a polícia fala que eu matei era meu parceiro. Vê se eu ia jogar parceiro meu pra trás? Eles precisa aprender a trabalhar direito e jogar nas costa de quem deve mesmo. Não é nas minha não. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Tem tráfico assim também não, véio... É só umas correria aí... É mais é guerra mesmo. Mais é guerra... P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Tem as guerra aí que cê tá vendo, ué. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Sei não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: (sorri) Sei também não... P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Não pensa nada não

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P: O que você pensa para o futuro? R: Penso em sair da cadeia. Porque de dentro da cadeia não dá pra pensar nada não. Entrevistado 6: R. P. S. O, 15 anos, traficante da parte baixa da Pedreira. Entrevista realizada em 12/08/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde que eu nasci. P: Mora com pai e mãe? R: Moro. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Graças a Deus já larguei. P: Por que graças a Deus largou? R: Ah, véio... Porque sim... Larguei a escola porque não tinha saco pra aquilo não. As professora ficava falando uns lance que não tinha nada a ver, umas parada que não era a real, saca? Ia ficá lá perdendo meu tempo? Eu não! E você aí que é estudado, me fala o que que eu ia ganhar com escola? Aqui na Pedreira mesmo tá cheio de neguinho aí que ficou uma data ralando a bunda em banco de colégio, que tá cheio de diploma e o escambau aí e, quando vai ver, tá mais duro do que eu. Colégio só funciona pra filho de bacana, tá ligado? Aí o playboy vai pra faculdade, vira dotô e vai cuidar da empresa do papai, né não? Agora o negão aqui vai estudar pra que? Pra ficar me humilhando nessas fila de emprego que nem cachorro? Eu não! Esse negócio de escola não adianta nada pra preto e pobre não, véio. Sei lê e escrevê, tá bom. Meus bagulho eu consigo é no ferro mesmo, tá ligado? E consigo mais que muito neguinho que ralou bunda em banco de escola P: Como se envolveu com o tráfico? R: Como? Uai... Cê vai entrando, entrando, entrando, quando vê já tá movimentando também, ué... Vai envolvendo com os cara, pegando uns bagulho aí pra fazê umas correria... Cê vai se virando... P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Por que? Porque senão ia sê um fudido igual todo mundo aqui. Ia ficá fazendo o que aqui? Trabalhando pra levantá uma merreca? Eu não! Eu consigo no ferro mesmo, véio! E consigo é muito. P: Como é sua rotina no tráfico? O que você faz todos os dias? R: Uai, eu fico vendendo. Pego meu turno e fico vendendo. Os patrão joga o bagulho na minha mão e um pouco do que eu vendê é meu. Quando acaba as pedra eu volto na boca e pego mais pra vendê. E fico nessa correria a noite inteira. É isso que eu faço.

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P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: É boa. É boa... O movimento é violento. Eu mesmo vendo é três sacolé de pedra por turno. Dá pra descolá uns 100 conto por noite. O movimento é bom. Só quando tá com guerra que embaça um pouco. Mas os nóia nem liga muito não, eles compra mesmo. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Uai, é normal. A gente não treta com ninguém de bem não. É só não tretá com a gente que não garra nada. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Depende do polícia. Tem uns que sabe que não garra nada pra mim porque eu sô de menor. Então eles nem vem enchê o saco não porque se me levá pra Dopcad eu já to aqui no dia seguinte. Então eles nem perde tempo comigo não. Mas tem uns que leva as pedra e as onça da gente. E fala mesmo que se não levantá grana pra eles, eles vão dá de cima mesmo e sumi com a gente. Aí é foda... Desses aí tem que corrê porque senão não dá pra levantá nada. Eles morde tudo. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Meu pai eu nem vejo direito e minha mãe não sabe não. Tipo assim, eu acho que ela tá ligada, tem a manha? Mas ela não fala nada não. E eu fico na miúda também... P: O que você pensa para o futuro? R: Quero fazer muito dinheiro pra podê saí daqui com minha família. Só isso mesmo. Entrevistado 7: J. M. M. A., 25 anos, traficante da “boca do Terreirão”. Entrevista realizada em 07/10/2003, por ocasião de sua prisão. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Tem uns dez anos já. P: Mora com pai e mãe? R: Não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Não estudo não. Fiz até a quarta-série. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Entrei tem pouco tempo. Tava morando do lado da boca, via o movimento e direto eles empurrava bagulho pra mocá lá em casa, que os homi não dava geral lá. Aí cê começa a tirá um por fora, né não?

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P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Porque dá grana, uai... P: Como é sua rotina no tráfico? R: Tem rotina não. Eu só emprestava a casa pra mocá as parada lá. E eles me dava uma grana e uns bagulho por conta. Eu mesmo não vendia nada não. Só tomava conta do barraco mesmo, que era onde ficava as parada. P: E estas armas que a polícia diz ter apreendido com você? R: Aí cê falou bem! Diz que apreendeu, né? Vou te mandar a real que isso aí não tava comigo não... P: Mas vocês não usam armas para proteger o negócio de vocês? Você não usa alguma arma para proteger o barraco onde ficam as drogas? Como é que conseguem as armas? R: Claro que eu uso. Mas não são essas aí não... As arma que a gente usa vem de vários lugares. Mas na maioria das vez é os cara mesmo que vai lá oferecer pra gente comprar. Todo dia tem neguinho oferecendo arma lá pra gente comprar. Os cara já tem as manha que lá funciona a boca e vai lá oferecer as arma pra gente. Aí a gente junta uma grana de cada um e compra o que der. A arma fica lá pra segurança nossa mesmo. Nossa gangue tem macaquinha, oitão, doze e PT. O pessoal da parte baixa já tá até com fuzil também P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Uai, as parada chega na mão da gente e a gente movimenta, uai. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Morador não incomoda não. Eles fica na deles mesmo e não incomoda ninguém não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Como assim? P: Como a polícia trabalha com vocês e o que vocês fazem com a polícia? R: Na polícia só tem safado, véio. Tudo safado. Tá tudo no bolso do Roni porque só vem dá de cima de nós aqui. E não cumpre nem o que é combinado. Cê qué sabê a real mesmo? Tem a manha de colocar isso no papel mesmo? Eu tô rodando de laranja. Os homi chegaram lá no ‘Terreirão’e falaram assim, esses mesmo aí que armaram o fragoroso: ‘Aí, vou mandá a real procês. A guerra docês tá chamando atenção demais, aí. A imprensa tá em cima e sabe cumé, né? Nós vamo tê que mostrá alguma coisa pra eles. Então cês separa aí umas arma e umas parada aí que a gente tá levando mesmo. E pode arrumá aí um docês pra rodá junto com as parada e pra segurá o flagrante’. A parada foi essa. Me pegaram de laranja porque eu só tinha um 10 na ficha. O resto ia tudo sê reincidente no 12 ou tava pedido de 121. A gente ainda jogô na cara deles que a gente já tinha feito o acerto com eles essa semana, mas eles falaram que não tava nem aí, que a imprensa tava de cima e que eles ia tê que mostrá serviço. Essa é a polícia que tá me levando pra delegacia. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Não pensa nada não. Eu não moro com minha família não.

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P: O que você pensa para o futuro? R: Agora não tem mais futuro pra mim não, ué. Olha só as parada que os homi tão me colocando pra segurar. Vou rodar no 12 e no 10 e agora vão me colocar pra garrar mesmo. Agora eles acabaram com minha vida. Entrevistado 8: F. P. E., 17 anos, traficante que atua na parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 17/07/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Vim pra cá com uns dez anos. P: Mora com pai e mãe? R: Não moro mais não. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Também não estudo mais não. Fiz até a quinta-série e depois larguei. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Como? Que nem todo mundo começa. Devagar, né? Fumando um baseado com o pessoal do movimento mesmo, ficando amigo dos cara. Aí cê começa a movimentar um pra descolá uma grana e quando vê já tá na função. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Porque é bom. Porque dá grana, porque cê pode andá nuns pano da hora, pode comprá uns tênis massa, pode colocá uma corrente doida. E a mulherada respeita, né não (risos). Mulherada vem em cima mesmo, qué nem sabê não. Dá até briga (risos). E com a grana que eu descolei deu pra saí de casa também, né não? Pra não ficá ouvindo aluguel de mãe na cabeça da gente. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Como assim? O que eu faço? P: Isso. R: Eu sou soldado. P: E o que você faz como soldado? R: Uai, eu fico de escolta na boca. Quando é meu turno, os atividade dá o toque e eu fico na segurança. Quem subi pra cruzá caminho eu sento é o dedo. Os menino fica lá vendendo e eu fico na vigia. É isso.

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P: Você está sempre armado? R: Lógico. Se eu não ficar ferrado neguinho passa o rato em mim rapidinho. Tem que tá trepado, na mão não segura nada, né não? P: Você entende de armas? R: Não sei se entendo. Sei mexê com elas. Sei atirá, sei escolhê qual é boa, qual é ruim... Sei escolher qual bala dá pra usar melhor na arma. Tipo isso. P: Como assim? R: É porque não é qualquer bala que dá pra usar. Tem que escolhê direito porque senão ela masca e te joga pras cobra. Quer vê? Olha aqui. Essa munição aqui tem ponta oca, ó. É melhor de usar porque derruba o cara na hora. Diz que a bala entra no corpo do cara e abre dentro dele. Arrebenta o cara por dentro e joga no chão na hora, tem a manha? Quando a ponta é fechada que nem a dessa daqui, ó... É a jaquetada. A bala atravessa o cara. É bom porque você pode acertar um tanto de mané que tá de fileira igual soldadinho, né não? (risos) Mas é ruim porque o cara não cai. Aí é foda porque ele já levou caroço, mas continua atirando em você. Eu prefiro com ponta oca mesmo. É ‘pou’, ‘pou’, ‘pou’, três pipoco e o cara já deita. É isso. P: Onde você aprendeu? R: Uai, aprendi mexendo mesmo. Atirando. Quem tá na pista tem que ter essas manha, né não? Senão vai pro saco rapidinho. P: Como vocês conseguem estas armas? R: Chega pra gente aí. As vez é até os polícia que traz mesmo... P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Situação você diz assim, se tem guerra, se não tem? P: Pode ser. R: Tá mais ou menos. Já teve pior. Já teve melhor. Muda muito. Agora tá dando pra levantá o caixa legal. Mas sempre tem uns cruza-caminho, né não? Sempre tem. Mas normal. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: É tranqüila. Morador respeita a gente. Vê que a gente só quer tirar o nosso, não quer atrasar a vida de ninguém. Então respeita. E a gente também não fica zuando plantão de ninguém não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Polícia é verme, é inimigo. Se subir aqui na Pedreira toma tiro. Com nós não tem arrego não. Se subir leva caroço na idéia. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Não pensa mais nada não, porque já saí de casa. Eu que me sustento, então não tem que pensar mais nada, nem ficá falando na minha oreia.

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P: O que você pensa para o futuro? R: Pro futuro? (silêncio) Ah, véio... Tipo assim... Eu tô ligado que quem tá nessa vida vai pra vala cedo. Então eu penso em juntar aí uma grana e sair daqui da Pedreira. Ir pra um lugar melhor pra mim ter minhas coisas aí, pra poder movimentar meus lances, aprontar minhas correrias aí, sei lá... Entrevistado 9: W. R. O., 21 anos, traficante da parte baixa da Pedreira Prado Lopes. Entrevista realizada em 13/08/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde criança. Num lembro a idade não, mas é desde criança mesmo que eu moro aqui. P: Mora com pai e mãe? R: Nada. Já saí de casa desde que tinha uns 17 assim. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Também não estudo mais não. Larguei pouquinho antes de sair de casa. P: Como se envolveu com o tráfico? R: (Sorriso) A gente vai te que falá dessas parada mesmo, né? (silêncio) Tá valendo... Como é que eu entrei é que cê qué sabê? P: Isso. R: Entrei vendendo. Tava precisando levantá uma grana aí, tinha uns 15 anos, mais ou menos. E eu tinha uma chegado que já movimentava aqui na boca. Aí eu peguei uma carga com ele e fiquei vendendo ali na Araribá mesmo. Ele me deu os canal e eu fiquei ali de quequé. Aí cê já sacou qual é a parada, né? Dinheiro vem fácil e vai fácil. Aí cê acaba ficando. P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Já falei, ué... Porque tava precisando acertá umas parada aí. P: Como é sua rotina no tráfico? R: Cê qué sabê o que que eu faço hoje? P: Isso. R: Aí cê me compromete, né camarada... Tem certeza que essas parada aí não vai ferrá pro meu lado não né? Olha lá, hein véio... Tô recebendo na consideração do meu parceiro aqui, hein?

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P: Posso garantir que seu nome não será revelado. R: Então tá, mas olha lá, hein... Cê qué sabê o que que eu faço agora, né? Agora tô de soldado. Tem a manha qual é? P: Não. Como é? R: Fico na escolta, ué. O pessoal fica na atividade, agilizando as correria aí e eu fico na vigia. É isso que eu faço. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Como assim? Cê qué sabê quem é que tá de guerra com quem? P: Pode ser. R: A Pedreira tinha sossegado. Desde aquelas parada lá do Baby, cê tá ligado nisso ai? Tinha dado um tempo. Mas agora tem uns otário aí que tão querendo plantá uma boca aí lá no “Terreirão”. E aquela área é nossa, sabe cume? Aí tá rolando umas treta aí... P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Morador não tem nada a vê com nossas parada não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Polícia? É tudo uma cambada de safado véio... Esses verme só qué sabê de mordê nós. E morde mesmo! Morde toda semana, todo dia, direto e reto! Chega aqui tudo viradão perguntando cadê o da semana, querendo sabê onde é que tá as onça (notas de cinqüenta reais). É porque se você dá pra eles mixaria ainda leva tapa na cara. Eles esculacha mesmo, véio, qué nem sabê não... Eles fala que se num quisé roda no 12 tem que pagá. E mesmo quando eles num pega trepado com nada, eles planta a droga e ferra mesmo. Agora, quando eles vem na boca é diferente. É diferente porque eles fica mais coei, tá ligado? Porque aí eles sabe que se esculachá demais o tempo fecha mesmo pro lado deles. Mas se pegá sozinho na rua aí é só humilhação. Eles leva mesmo! E é tudo na mão grande. E a gente tem que pagá, tá ligado? Porque se não pagá eles fica de embaça e não tem jeito de descolá o nosso. E nosso negócio é só descola o nosso, a gente não qué fazê mal pra ninguém não. Só que esses polícia é tudo um bando de verme, de safado. É tudo safado, véio, tudo safado, ladrão. Tinha é que sentá o dedo neles tudo! P: Você já teve que pagar propina para policiais? R: Eu mesmo não que eles sabe que eu sô caixa ruim. Eles vão é nos patrão, né? Que lá é que rola a verba. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Minha família não pensa mais nada não. Minha mãe já é falecida e meu pai eu não vejo mais. P: O que você pensa para o futuro? R: Pro futuro? Eu queria que a Pedreira ficasse em paz pra nós podê movimentá aqui na moral, tá ligado? Isso aqui é área boa pra todo mundo. É só joga na consideração, na moral que dá pra todo mundo ganha o seu.

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Entrevistado 10: C.C.B., 19 anos, traficante da parte baixa da favela. Entrevista realizada em 21/08/2003. P: Há quantos anos você mora na Pedreira Prado Lopes? R: Desde sempre. Eu nasci aqui. P: Mora com pai e mãe? R: Moro. P: Ainda estuda ou estudou até quantos anos? R: Parei de estudá já. Tinha paciência praquilo não. P: Como se envolveu com o tráfico? R: Comecei movimentando umas parada aí. Agora tô na atividade (vigilância). P: Por que se envolveu com o tráfico? R: Uai, pra ficá bonito na fita, né não? Andá com os pano arrumado, ganha o meu, tê moral com todo mundo. Qué mais? P: Como é sua rotina no tráfico? R: Já falei. Fico na atividade. Fico vendo se vai subi polícia, se tem P2 na área, se tem os inimigo fragando nós. Essas coisa. E se vié eu sento o dedo. P: Como é a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Agora tá osso porque tem uns vacilão aí que tá dando os ataque na nossa boca, querendo tomá nossas boca de assalto. Mas não vai demorá não e nós vai passa o rodo neles tudo. P: Como é a relação dos traficantes com os moradores? R: Como é que é nossa relação com morador daqui? Ah, véio... Morador não tem nada a ver com as nossas parada não, tá ligado? Tipo assim, eles tá ligado que a nossa vida é errada mesmo. Que a gente tá no movimento mesmo e que é parada errada. Mas ninguém fica pagando pau nem nada não... Sei lá... A gente não mexe com ninguém não porque a gente nunca sabe o dia de amanhã, né não. Um dia cê paga o mó vacilo pro cara e, quando vai vê, tá precisando escondê no barraco dele, tá precisando plantá uns bagulho na casa dele que é pros homi não te pegá trepado... É osso, véio, não dá pra ficar sem respeito com morador, tem a manha? Porque se esculachá demais, ao invés de te ajudar, é mais um inimigo que cê ganha. E também porque todo mundo tem família aqui na Pedreira, então tem que respeitar, né não? Ninguém qué a mãe passando perrengue. Por exemplo, não dá pra deixá ficá esses noiado tudo jogado no meio da rua com a sua mãe vendo isso, né não? Não dá pra deixá tê assalto aqui porque os homi fica tudo de cima... A gente toma conta do pedaço por causa da gente mesmo e por causa de família da gente que também mora aqui. (silêncio) Às vez tem morador que chega pra pedir uma ajuda. Sabe que no movimento circula as onça mesmo então vem na gente pedir uma força. E se for morador considerado a gente ajuda. Não tem porque não ajudá, tá ligado? A gente dá força pra comprar um arroz, pra

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consertá uma porta, um barraco, pra fazê umas compra no sacolão, pra comprá um remédio... Isso se for morador considerado, né? Aquele que não fica de vacilo. Tipo que todo mundo tem família... Acho que é só cada um ficá na sua. É só não ficá de cangüete que não tem erro. Porque não tem coisa pior do que ficá pagando uma de X-9 pros homi. Porque eu vou te mandar a real, véio: se Xnová a gente passa o cerol mesmo, não tem perdão não. E faz pra todo mundo vê mesmo que não tem ninguém pagando comédia aqui não. P: Como é a relação dos traficantes com a polícia? R: Polícia é safado. Polícia é safado. Tem que senta o dedo nesses polícia safado. Tipo assim, tem uns que tem a moral, saca? Que não esculacha não, que chega pra você na moral, que se anda errado e ele pegá, ferra mesmo. Mas também não planta nada , não dá tapa, e fala direito com a gente. Agora tem uns que é safado mesmo, véio. Que planta os bagulho mesmo, que toma da sua mão pra movimenta depois ou planta mesmo. Só procê tê uma idéia, cê sabe o que já teve um que fez comigo? Me pegou com as parada mesmo, aí, tomô da minha mão e só devolveu depois que eu paguei pra ele. Porque se eu fico sem as parada e volto de mão vazia eu tô no sal, né véio. Ai tive que pagá do meu bolso o fedaputa. É isso aí a polícia. P: O que sua família pensa de você fazer parte do tráfico? R: Ah... Mãe enche meu saco. Mas tá bom... Mãe é isso mesmo. P: O que você pensa para o futuro? R: Penso em juntá uma grana legal aí, tá ligado? E sei lá... Arrumar minhas parada aí...

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ANEXO 4: Entrevistas com policiais que trabalham na Pedreira Prado Lopes Entrevistado 1: Cabo-PM R. S. L., agente do Serviço de Inteligência do 34o Batalhão da Polícia Militar. Entrevista realizada em 05/11/2003. P: É policial há quanto tempo? R: Tem uns onze anos já... É por aí... Uns onze anos já P: Trabalha na região da Pedreira Prado Lopes há quanto tempo? R: Tem dois anos. Fiquei um ano ostensivo e agora tem um ano já que tô paisano. P: Como você vê a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: Aquilo é uma guerra, meu irmão. A Pedreira é uma guerra. Eu me atrevo a dizer que é o tráfico mais organizado de Belo Horizonte. Tanto que cê nem vê muita morte por lá. Mas é aquela correria, aquele movimento o dia inteiro. Dia e noite, dia e noite, tem nêgo lá vendendo droga e movimentando na boca. A gente passa lá à paisana e fica só fragando o movimento. Pega a boca do Terreirão, por exemplo. Lá o movimento é feroz mesmo. Vendem o dia inteirinho... Sem parar. É entra e sai o dia inteiro, precisa de ver. Tem informante nosso que garante que eles movimentam lá é coisa de R$40 mil por dia. Por dia, velho! É por dia que eu to falando, saca? Não é brincadeira não, meu irmão. E as armas então? Tem nêgo lá com PT dourada, cê já viu alguma dessas? Só em filme americano, meu irmão. Outro dia passamos por lá e o Gulu tava lá com essa PT dourada na mão, mostrando pra quem quisesse ver. Tava debaixo do braço dele, parecia um canhão. Deve ser calibre 45 aquilo, nunca vi igual. E cê sabe o que começou a chegar pra eles há pouco tempo? Cê sabe o que? Baby, meu irmão. Fuzil baby calibre 556. Tá vindo tudo do Rio. Essa última leva os cara deram a fita pra gente que chegou numa Kombi., durante o final de semana. Os caras lá tão prontos pra uma guerra. Antes o movimento era todo do Roni Peixoto. Ele mandava em todas as bocas e controlava tudo. Depois que ele foi preso, começou aquela guerra das gangues de cima contra as gangues de baixo. Isso durou uns bons anos, até que sossegou de novo. Agora que o Roni saiu da cadeia, ele quer retomar todo o seu território. Tanto que ele já controla todas as bocas de novo, menos a do Terreirão, que é a única que não abriu as pernas pra ele. E vai ter guerra se esse povo não chegar num acordo lá. Porque ele já mandou avisar que a boca vai ser dele de qualquer jeito e não vai ter conversa, ele vai mandar matar mesmo. E é sempre complicado a gente fazer qualquer incursão na PPL porque os traficantes têm um monte daqueles olheiros espalhados na região. É até engraçado, sabia? A gente chega com a viatura e vê aquele tanto de menino parado nas esquinas. Quando eles vêem que é polícia, começam a gritar ‘Galo’ sem parar. Parece até que é véspera de jogo Atlético e Cruzeiro, mas é o código que eles usam para avisar da chegada da polícia. Quando a gente sai fora, eles gritam ‘Zêro’, que é para avisar que a barra tá limpa. Alguns deles já conhecem todos os policiais pela cara. Por isso, não adianta a gente ir à paisana que dá na mesma. Eles avisam mesmo

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P: Como é a relação entre moradores e polícia? R: Depende. Tem morador que gosta, que ajuda a gente. E tem morador que não coopera muito não. Depende. Depende do morador e depende do polícia. P: Como é a relação entre traficantes e polícia? R: Uai, pra mim não tem relação não. Eu sou polícia e eles são bandidos. Não tem relação nenhuma não. Mas pra quem faz um trabalho que nem eu faço, tem muita coisa que cê tem que ficar na miúda, saca? Tem que ver e fingir que não tá nem aí... Senão não levanta informação. Senão não faz serviço bom. Cê acaba tendo que se misturar um pouco com aquele povo. Mas eles são bandidos e eu sou polícia. Isso tá sempre na minha cabeça. P: Existem policiais envolvidos com o tráfico? R: Olha, meu irmão... Eu tenho família, tenho mulher, tenho filho. (Silêncio) Disso aí eu não falo não... P: Como seria a melhor forma de combater a criminalidade na Pedreira Prado Lopes? R: A melhor forma? Olha meu irmão... Não tem jeito de ser só polícia, né? Isso não é trabalho só de polícia. Porque cê vai lá, mata um menino daqueles que nem eu vejo que tem colega nosso que fica doido pra fazer, e não resolve nada porque no dia seguinte tem outro no lugar dele. E prender também não tá adiantando porque eles usam muitos menores e eles não ficam presos. E quando ficam, voltam pior do que quando foi. Então não é só trabalho de polícia. Tem é que dar educação pra aquele povo todo, tem que abrir aquelas ruas, tem que colocar a meninada na escola, tem que dar trabalho pra aquele povo. Acho que é isso. Quer dizer, eu faria dessa forma se eu fosse esses políticos aí. Entrevistado 2: Cabo-PM P. S. S. R., agente do serviço de inteligência do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam). P: É policial há quanto tempo? R: Há nove anos. P: Trabalha na região da Pedreira Prado Lopes há quanto tempo? R: Tem uns seis meses já, desde que o comando do batalhão começou a fazer um novo levantamento sobre o tráfico de lá. P: Como você vê a situação do tráfico na Pedreira Prado Lopes? R: É uma situação difícil. Muita arma, muita droga, muito dinheiro rolando por lá. Nesse tempo que a gente tá por lá fazendo levantamento, tirando foto, pegando informação sobre

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o tráfico, a gente tá descobrindo que a situação é um bem pior do que a gente imagina. Porque geralmente você pensa que é só um bando de menino com arma na mão, dando tiro um no outro, vendendo um pouco de droga. Mas nesse tempo que a gente tá lá, nós já vimos cada coisa que cê nem imagina... P: O que, por exemplo? R: Coisa de tráfico mais organizado mesmo. Rádio comunicador, casas que servem só para guardar a droga, muita arma pesada, até fuzil eles têm por lá. E você vê claramente também que eles têm liderança, que têm quem manda, quem vigia, quem vende, quem gerencia e por aí vai. Essas coisas assim que eu pelo menos não imaginava que iria encontrar na Pedreira como encontrei. P: Como é a relação entre moradores e polícia? R: É boa. Pelo menos nós nunca tivemos problema com morador. Alguns até percebem que a gente é polícia. Porque lugar pequeno cê sabe como é que é, né? Todo mundo sabe quem é da área, quem não é. Então alguns até sacam que a gente é P-2, mas até hoje pelo menos ninguém criou problema não. É bem tranqüilo assim. P: Como é a relação entre traficantes e polícia? R: Aí você tem que perguntar com quem lida diretamente com eles. A gente só levanta informações mesmo. Às vezes a gente até chega a trocar uma idéia com os traficantes porque a gente precisa levantar informações. E não tem jeito, né? Alguns acabam sacando que a gente é da P-2. Mas fica na boa, não costuma ter problema não. Até porque nossa função não é muito fazer prisão de ninguém não. A gente levanta informação pra polícia conseguir os mandados de prisão. P: Existem policiais envolvidos com o tráfico? R: Que eu saiba, não... P: Como seria a melhor forma de combater a criminalidade na Pedreira Prado Lopes? R: Na minha opinião tinha que fazer um trabalho mais inteligente ali dentro. Tinha que dar condição pra gente trabalhar direito. Dar viaturas descaracterizadas mesmo, mais tempo pra gente fazer levantamento, pra gente dar o pulo certo mesmo. Não adianta ficar ocupando a favela que nem o pessoal tem feito não, porque isso não resolve nada. Nunca prende ninguém de peso mesmo. Acho que é isso, tem que fazer um trabalho mais inteligente.

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Entrevistado 3: Tenente-coronel José Anísio Moura, comandante do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam). Entrevista realizada em 05/10/2003.

P: Como é o trabalho que vocês vêm desenvolvendo na Pedreira Prado Lopes?

R: Estamos desenvolvendo um trabalho de inteligência na Pedreira, para tentar coletar o máximo de informações possíveis sobre as gangues que atuam no aglomerado. Justamente para podermos desenvolver ações mais pontuais e eficientes contra estes criminosos. Existem agentes à paisana coletando informações que serão devidamente analisadas por nossa unidade a fim de planejar e de dar mais eficiência ao policiamento que fazemos na região.

P: E o que este levantamento apontou até agora? R: Apontou o que a própria imprensa vem divulgando. Que a saída do Roni Peixoto da prisão fez explodir uma nova guerra entre as gangues porque, ao que tudo indica, ele está tentando reorganizar sua antiga quadrilha e reassumir o poder no tráfico da Pedreira. É justamente por isso que estamos fazendo este trabalho de inteligência. Para identificarmos os líderes e os principais traficantes e tirá-los de circulação o quanto antes. P: Que tipo de estrutura do tráfico vocês encontraram na Pedreira? R: É um tráfico que está muito bem armado. Que está muito bem armado e que movimenta muito dinheiro, porque aquele comércio de crack que eles têm por lá é algo que não existe em nenhum outro lugar de Belo Horizonte. Pelo menos não da maneira que vemos na Pedreira. Para você ter uma idéia, vou te contar um caso. Recentemente, uma equipe de nosso batalhão estava em uma das principais ruas da Pedreira, quando se viu no meio de um fogo cruzado entre gangues de lá. Era uma noite de sábado e esta equipe teve que se esconder em um dos becos porque a munição que eles usavam acabou. Um sargento conta que, no meio daquela confusão, eles viram tiros de munição traçante cortando os becos da favela. Munição traçante só é usada em fuzis de guerra. Para que se tenha uma idéia do poder de uma arma destas, basta dizer que um projétil disparado por ela pode atravessar uma chapa de aço com uma polegada de espessura. Em uma favela, um tiro de fuzil como este poderia atravessar quatro barracos na seqüência. É este o tipo de armamento que os traficantes da Pedreira estão usando. E para combater este tipo de bandido, é preciso uma ação enérgica e inteligente. P: O senhor tem conhecimento de algum possível envolvimento de policiais militares com os traficantes da Pedreira? R: Do Batalhão Rotam posso lhe assegurar que não. Não existe qualquer denúncia contra qualquer policial daqui nesse sentido. E se tal tipo de informação chegar ao nosso conhecimento, posso lhe garantir que será investigada com o máximo de rigor.