violência física contra crianças: uma análise...

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Galileu – Revista de Direito e Economia // e‑ISSN 2184‑1845 // 1. o semestre 2018 // p. 128‑154 128 Violência física contra crianças: uma análise jurídica e crítica acerca do limite entre e o poder‑dever de educar e a prática do delito de maus tratos (artigo 152‑A do Código Penal) DIEGO GOMES ALVES 1 I. Introdução A execução de castigos corporais educativos contra crianças é um celeuma de elevada sen‑ sibilidade, dada a fragilidade com que os infantes ficam expostos quando submetidos à sobrepujança física de seus pais. Esses métodos físico‑disciplinares sempre foi uma prática amplamente legitimada nos mais diversos grupos sociais, razão pela qual, até o século XX, não havia sequer debates que sugerissem sua exclusão. Entretanto, hodiernamente, dada a gravidade dos casos insurgen‑ tes, bem como as pesquisas indicativas das sequelas deixadas por um paradigma educacio‑ nal com acentuado traço de agressividade, os organismos internacionais passaram a exigir de seus signatários a extinção dessa prática enraizada. Nesse contexto, Portugal, pressionado por diversas orientações e diretivas que con‑ denavam sua omissão na extirpação de castigos corporais contra menores, editou a Lei 1 Assessor Jurídico e Chefe de Gabinete de magistrado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (Brasília – Brasil). Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa.

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Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 128emsp

Violecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educar e a praacutetica do delito de maus tratos (artigo 152‑A do Coacutedigo Penal)

DIEGO GOMES ALVES1

I IntroduccedilatildeoA execuccedilatildeo de castigos corporais educativos contra crianccedilas eacute um celeuma de elevada sen‑sibilidade dada a fragilidade com que os infantes ficam expostos quando submetidos agrave sobrepujanccedila fiacutesica de seus pais

Esses meacutetodos fiacutesico‑disciplinares sempre foi uma praacutetica amplamente legitimada nos mais diversos grupos sociais razatildeo pela qual ateacute o seacuteculo XX natildeo havia sequer debates que sugerissem sua exclusatildeo Entretanto hodiernamente dada a gravidade dos casos insurgen‑tes bem como as pesquisas indicativas das sequelas deixadas por um paradigma educacio‑nal com acentuado traccedilo de agressividade os organismos internacionais passaram a exigir de seus signataacuterios a extinccedilatildeo dessa praacutetica enraizada

Nesse contexto Portugal pressionado por diversas orientaccedilotildees e diretivas que con‑denavam sua omissatildeo na extirpaccedilatildeo de castigos corporais contra menores editou a Lei

1 Assessor Juriacutedico e Chefe de Gabinete de magistrado no Tribunal de Justiccedila do Distrito Federal e Territoacuterios (Brasiacutelia ndash Brasil) Mestrando em Ciecircncias Juriacutedicas pela Universidade Autocircnoma de Lisboa

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma na legislaccedilatildeo criminal tornando autocircnomo o delito de maus tratos

Resta conflitante entretanto saber se os castigos corporais satildeo tolerados pelo ordena‑mento juriacutedico portuguecircs e em caso afirmativo quais devem sofrer o rigor da lei penal Nesse contexto o fim preciacutepuo deste trabalho eacute justamente analisar a fronteira que separa uma intervenccedilatildeo parental tolerada do crime previsto no artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal em especial diante da ausecircncia de criteacuterios objetivos para esta afericcedilatildeo

Inicialmente abordaremos a evoluccedilatildeo histoacuterica dos instrumentos de tutela da intatili‑dade fiacutesica das crianccedilas a niacutevel internacional e em Portugal de modo a demonstrar como ocorreu a alternacircncia de mentalidade do poder familiar autoritaacuterio para um padratildeo demo‑cratizado onde as crianccedilas passaram a ser vistas como legiacutetimas detentoras de direitos

Logo apoacutes analisaremos a hodierna legislaccedilatildeo lusitana de modo a verificar quais os principais argumentos favoraacuteveis e contraacuterios agrave manutenccedilatildeo dos castigos corporais disci‑plinadores procedendo ao fim um estudo da posiccedilatildeo doutrinaacuteria predominante em Por‑tugal

Por derradeiro em que pese natildeo desconheccedilamos ser incomum exprimir manifestaccedilotildees e opiniotildees pessoais em trabalhos acadecircmicos pedimos vecircnia para diante de todo o cenaacuterio analisado expor nossa acepccedilatildeo criacutetica acerca do tema Obviamente neste toacutepico embasa‑remos nossa perspectiva com bases cientiacuteficas sem esquecer contudo da evidente neces‑sidade de uma visatildeo socioloacutegica ndash e natildeo exclusivamente juriacutedica ndash do objeto em anaacutelise

Destacamos por oportuno que dada a limitaccedilatildeo de paacuteginas para este projeto de pes‑quisa limitaremos nosso estudo ao artigo 152ordm‑A1A do Coacutedigo Penal em especial na figura atinente aos castigos corporais contra menores de modo que natildeo nos percamos na estendida oacuterbita do tema em entrelinhas desnecessaacuterias ao fim pretendido

Este breve trabalho natildeo tem a menor pretensatildeo de esgotar o objeto de estudo mas tatildeo somente de trazer o leitor a uma anaacutelise criacutetica acerca da real necessidade de implementa‑ccedilatildeo de um modelo educacional livre de violecircncia e com meacutetodos pedagoacutegicos que exaltem a crianccedila enquanto ser humano digno de respeito e proteccedilatildeo juriacutedica

II Notas preambulares acerca da violecircncia fiacutesica contra crianccedilas conceitos e evoluccedilatildeo histoacuterica Os maus tratos fiacutesicos contra crianccedilas geralmente causam grande comoccedilatildeo social especial‑mente porque perpetrados contra seres imbuiacutedos de fragilidade natural e por aqueles que detecircm o que se chama de ldquonexo de evitaccedilatildeordquo ou seja o dever juriacutedico de evitar a produccedilatildeo de qualquer resultado danoso

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Eacute notoacuterio que alguns pais e cuidadores estatildeo habituados a impor suas vontades atraveacutes de meios fiacutesicos ou injuriosos acreditando muitas vezes que aquela eacute a forma mais eficaz de disciplinar e transmitir os preceitos morais que acreditam serem escorreitos Cuida‑se de uma concepccedilatildeo reproduzida desde a eacutepoca do modelo patriarcal onde o sistema estava saturado de ldquocarga ideoloacutegica do poder de domiacutenio ilimitado e arbitraacuterio do pai traduzido na completa sujeiccedilatildeo do filho aos seus desiacutegniosrdquo2

Esse pensamento arraigado eacute facilmente comprovado pelo doutrinador Eduardo Cor‑reia que em anaacutelise ao anteprojeto do Coacutedigo Penal de 1966 asseverou que a mens legis‑latoris era punir tatildeo somente os maus‑tratos mais chocantes a crianccedilas ou seja aqueles aptos a gerarem uma sobrecarga exacerbada descriminalizando portanto castigos fiacutesicos de natureza meacutedia ou irrelevante3

A professora Rosa Martins ensina que pouco a pouco ndash ainda que mais vagarosamente do que se espera ndash vem‑se superando essa mentalidade de poder familiar autoritaacuterio trans‑mutando‑se para um arqueacutetipo democraacutetico onde as crianccedilas satildeo vistas natildeo mais como um meras espectadoras das vontades alheias mas como sujeitas de direitos4 Passam entatildeo do papel de coadjuvantes para coparticipantes da relaccedilatildeo interparental onde satildeo reconheci‑das como portadoras de discernimento compatiacutevel com sua faixa etaacuteria e ldquocapacidade de desempenhar um papel ativo na determinaccedilatildeo dos seus interessesrdquo5

Tal fato eacute perfeitamente perceptiacutevel pelo artigo 1878ordm do Coacutedigo Civil6 que estabelece que os poderes dos pais satildeo exercidos para os filhos (em seu proveito e interesse) e natildeo por meio de uma forccedila sobrepujante deixando clara a intenccedilatildeo de se exaltar o protagonismo das crianccedilas no processo educativo Cria‑se assim uma relaccedilatildeo de igualdade e equiliacutebrio onde os pais reconhecem aos educandos ldquoautonomia na organizaccedilatildeo da proacutepria vidardquo7

Ocorre que nem sempre a crianccedila foi vista dessa forma tendo sido necessaacuterias deacutecadas de discussotildees e multiplicidades de diplomas legislativos (de acircmbito interno e internacio‑nais) para que assumissem o posto de legiacutetimos detentores de direitos sujeitos a uma pro‑teccedilatildeo especial

O tema foi normatizado pela primeira vez em domiacutenio mundial na Declaraccedilatildeo de Genebra tambeacutem conhecida como Declaraccedilatildeo dos Direitos das Crianccedilas de 1924 adotada

2 MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 p 2253 CORREIA Eduardo apud ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 2ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2010 p 463

4 MARTINS Rosa ndash Poder Paternal vs Autonomia da crianccedila e do adolescente In Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 1 Nordm 1 2004 p 65

5 MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 p 1096 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1883‑20867 Idem Ibidem (Artigo 1878 II)

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como paracircmetro pela Assembleacuteia da Liga das Naccedilotildees Nela reconheceu‑se o dever de prote‑ccedilatildeo agrave crianccedila independentemente de raccedila credo ou nacionalidade Aleacutem disso exaltou‑se como direito de toda crianccedila a alimentaccedilatildeo o auxiacutelio a educaccedilatildeo a proteccedilatildeo contra explo‑raccedilatildeo dentre outros

Entretanto segundo Catarina Albuquerque o diploma natildeo teve grande repercussatildeo praacutetica em face da cultura histoacuterica patriarcal ainda infiltrada na maioria dos paiacuteses do mundo e da inexistecircncia de mandamentos impositivos aos paiacuteses signataacuterios8

No ano de 1946 logo apoacutes Segunda Guerra Mundial foi criada a UNICEF (United Nations Childrenrsquos Fund) importante organismo internacional que em princiacutepio tinha o fulcro de salvaguardar as crianccedilas em estado de emergecircncia e posteriormente passou a tutelar os infantes de um modo geral garantindo‑lhes o apanaacutegio a uma vida digna e mini‑mamente existencial9

Em 20 de novembro de 1959 com a promulgaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas10 criou‑se um verdadeiro coacutedigo de conduta eacutetica para tutela de crianccedilas e adolescentes O diploma dentre diversos princiacutepios trazia uma enunciaccedilatildeo expressa de defesa agrave integridade e ao desenvolvimento fiacutesico dos menores (foco principal deste artigo) aleacutem de introduzir a convicccedilatildeo de que sempre deveria prevalecer a melhor conveniecircncia dos infantes (gecircnese da atual diretriz adotada pelo Codex civilista lusitano conforme verificado alhures)

Contudo em que pese tenha ganhado maior proporccedilatildeo que a Declaraccedilatildeo de Genebra reitera a professora Catarina Albuquerque a mesma criacutetica proferida contra o diploma pre‑teacuterito na acepccedilatildeo de que os dispositivos apesar de incentivarem a sociedade internacional a protegerem as crianccedilas eram meramente declarativos sem forccedila juriacutedico‑normativa11 Nesse sentido natildeo compeliam ao cumprimento das orientaccedilotildees tendo portanto um caraacute‑ter meramente simboacutelico e orientativo

Foi somente em 20 de novembro de 1989 com a elaboraccedilatildeo da Convenccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (CDC)12 adotada pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas que de fato passou‑‑se a enxergar as crianccedilas como titulares de direitos subjetivos tal qual os adultos

8 ALBUQUERQUE Catarina ndash As Naccedilotildees Unidas a Convenccedilatildeo e o Comitecirc Disponiacutevel em httpswwwgddcptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdf p 8

9 Informaccedilatildeo retirada de httpsnacoesunidasorgagenciaunicef sp10 Disponiacutevel em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesdeclaracao_universal_direitos_criancapdf sp11 ALBUQUERQUE Catarina ndash Op Cit p 28 12 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1990‑1994d99710htm

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Segundo Catarina Tomaacutes pela primeira vez foi criado um diploma com forccedila vinculante e obrigatoacuteria onde todos os 192 signataacuterios comprometeram‑se a promover alteraccedilotildees em suas legislaccedilotildees internas de modo a garantir a efetividade dos dispositivos nele expressos13

A Convenccedilatildeo prevecirc expressamente que os menores gozam de uma proteccedilatildeo especial que dentre outras prerrogativas prevecirc o crescimento em um ambiente normal digno livre e sadio Em termos gerais isso garante a idoneidade corporal dos filhos perante os pais que natildeo podem aplicar castigos que transmitam a visatildeo de crueldade ou exploraccedilatildeo

Outro marco fundamental foi a Recomendaccedilatildeo nordm 1666 da Assembleacuteia Parlamentar do Conselho Europeu14 de 23 de junho 2004 que coibiu de forma absoluta a praacutetica de castigo fiacutesico ou degradante contra crianccedilas elencando as medidas legislativas a serem tomadas pelos paiacuteses componentes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU)15 a fim de implemen‑tar concretamente as instruccedilotildees consignadas

Em idecircntico espeque o Comentaacuterio Geral nordm 8 da Convenccedilatildeo de Direitos das Crianccedilas da ONU16 do ano de 2006 jaacute em sua etapa preambular estabeleceu como objetivo primaacuterio a primordialidade de se eliminarem todos os castigos fiacutesicos crueacuteis ou humilhantes em desfavor de crianccedilas Com efeito estabeleceu propostas de modificaccedilotildees a serem efetua‑das em acircmbito legislativo pelos paiacuteses componentes de modo que as disposiccedilotildees tivessem forccedila normativa deixando de ser meras abstraccedilotildees escritas

Mais recentemente em dezembro de 2010 o Parlamento Europeu implementou uma Resoluccedilatildeo17 para disciplinar o Relatoacuterio Anual sobre Direitos Humanos no Mundo (2009) quando ao abordar a temaacutetica ora em apreccedilo falou da premente necessidade de se abolir todos os tipos de castigos corporais independentemente das circunstacircncias especialmente quando ocorridos dentro do nuacutecleo domeacutestico‑familiar

Nesse diapasatildeo diversos paiacuteses seguiram as recomendaccedilotildees18 supra e passaram a prever de forma expressa em seus ordenamentos a proibiccedilatildeo aos castigos fiacutesicos contra infantes

13 TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 p 102

14 Acessiacutevel em httpassemblycoeintnwxmlXRefXref‑XML2HTML‑enaspfileid=17235amplang=en15 Para fins deste ensaio as citaccedilotildees da entidade ldquoOrganizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidasrdquo seraacute feita atraveacutes de sua sigla

(ONU)16 Disponiacutevel em httpwwwnaobataeduqueorgbrdocumentosd9891e21b98d60dfce7318f013c0091dpdf sp17 Disponiacutevel em httpwwweuroparleuropaeusidesgetDocdopubRef=‑EPTEXT+TA+P7‑TA‑2010‑

0489+0+DOC+XML+V0PT sp18 Nesse ponto natildeo se olvida que haacute outros diplomas internacionais que tutelam direitos das crianccedilas tais como

a Convenccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) nordm 138 (trata da idade miacutenima de admissatildeo em emprego) as Regras para Proteccedilatildeo de Menores Privados de Liberdade (tutela as hipoacuteteses excepcionaliacutessimas de detenccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes) a Convenccedilatildeo de Haia de 1993 (tutela de direitos das crianccedilas em especial quanto a crimes de guerra genociacutedio violecircncia sexual e prostituiccedilatildeo) dentre outros Ocorre que o objeto deste ensaio eacute a violecircncia fiacutesica perpetrada com roupagem de castigo educativo razatildeo pela qual natildeo se aprofundaraacute nas normas retro de modo a evitar o desvio do fim proposto

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A Sueacutecia foi uma das pioneiras na vedaccedilatildeo expressa agrave violecircncia contra crianccedilas embora o processo de transiccedilatildeo natildeo tenha sido repentino Para tanto em ato preambular extir‑pou do Coacutedigo Penal ainda no remoto ano de 1957 o perdatildeo judicial concedido aos casti‑gos dos pais contra seus filhos Em 1966 retirou do ordenamento a prerrogativa ateacute entatildeo permitida aos genitores de empregarem castigos corporais desde que comedidos Mas foi somente no ano de 1979 que o legislador ordinaacuterio sueco consignou de forma expressa a vedaccedilatildeo ao castigo corporal em crianccedilas que era cotidianamente justificado por um falso manto de ldquonecessaacuteria atitude para fins educacionaisrdquo19

O exemplo acima eacute considerado um caso de sucesso (referencial case) uma vez que a sensibilizaccedilatildeo social alcanccedilou grandes iacutendices ao ponto de conforme ensina a professora Pernilla Leviner apenas dois anos apoacutes a modificaccedilatildeo mais de 90 (noventa por cento) da populaccedilatildeo ter pleno conhecimento de que a imposiccedilatildeo de castigos fiacutesicos estava terminan‑temente proibida pela lei20 Acresceu a professora ainda que a alteraccedilatildeo legislativa aliada agrave intensa campanha publicitaacuteria natildeo foram suficientes para banir completamente a praacutetica de castigos fiacutesicos contra crianccedilas mas contribuiacuteram de forma contundente para que a Sueacutecia tivesse iacutendices muito menores que outros paiacuteses do mundo21

Na mesma linha de pensamento a Alemanha segundo liccedilatildeo do ilustre penalista Claus Roxin no ano 2000 ficou previsto de forma clarividente na legislaccedilatildeo o direito dos reben‑tos a uma instruccedilatildeo livre de crueldade ou selvajeria ficando excluiacuteda ateacute mesmo as peque‑nas lesotildees das causas justificantes22

Tambeacutem na Aacuteustria a evoluccedilatildeo ordenativa seguiu o caminho dos dois exemplos ante‑riores primeiramente em 1977 eliminando‑se a execuccedilatildeo de castigos corpoacutereos ainda que tecircnues ou eventuais logo apoacutes em 1989 desautorizou‑se de forma peremptoacuteria algum tipo de coima capaz de causar padecimento carnal ou mental ao paacutervulo23

Em direccedilatildeo idecircntica seguiram diversas outras naccedilotildees europeacuteias como Noruega Finlacircn‑dia Aacuteustria Suiacuteccedila Espanha Nova Zelacircndia dentre outros

Verificamos assim que a comunidade juriacutedica internacional passou por diversas eta‑pas para chegar agrave atual conjuntura normativa de exaltaccedilatildeo agrave integridade dos menores Em

19 ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917 e 920

20 LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

21 LEVINER Pernilla ndash Op cit p 15722 ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y

Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑23423 UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em http

wwwendcorporalpunishmentorgassetspdfsstates‑reportsAustriapdf

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

Coimbra Editora 2001 p 218‑219 e DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4 2008 (nota 6) p 96

26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb73fbe5ea419b9f71802577f1005497a7OpenDocument sp

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma na legislaccedilatildeo criminal tornando autocircnomo o delito de maus tratos

Resta conflitante entretanto saber se os castigos corporais satildeo tolerados pelo ordena‑mento juriacutedico portuguecircs e em caso afirmativo quais devem sofrer o rigor da lei penal Nesse contexto o fim preciacutepuo deste trabalho eacute justamente analisar a fronteira que separa uma intervenccedilatildeo parental tolerada do crime previsto no artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal em especial diante da ausecircncia de criteacuterios objetivos para esta afericcedilatildeo

Inicialmente abordaremos a evoluccedilatildeo histoacuterica dos instrumentos de tutela da intatili‑dade fiacutesica das crianccedilas a niacutevel internacional e em Portugal de modo a demonstrar como ocorreu a alternacircncia de mentalidade do poder familiar autoritaacuterio para um padratildeo demo‑cratizado onde as crianccedilas passaram a ser vistas como legiacutetimas detentoras de direitos

Logo apoacutes analisaremos a hodierna legislaccedilatildeo lusitana de modo a verificar quais os principais argumentos favoraacuteveis e contraacuterios agrave manutenccedilatildeo dos castigos corporais disci‑plinadores procedendo ao fim um estudo da posiccedilatildeo doutrinaacuteria predominante em Por‑tugal

Por derradeiro em que pese natildeo desconheccedilamos ser incomum exprimir manifestaccedilotildees e opiniotildees pessoais em trabalhos acadecircmicos pedimos vecircnia para diante de todo o cenaacuterio analisado expor nossa acepccedilatildeo criacutetica acerca do tema Obviamente neste toacutepico embasa‑remos nossa perspectiva com bases cientiacuteficas sem esquecer contudo da evidente neces‑sidade de uma visatildeo socioloacutegica ndash e natildeo exclusivamente juriacutedica ndash do objeto em anaacutelise

Destacamos por oportuno que dada a limitaccedilatildeo de paacuteginas para este projeto de pes‑quisa limitaremos nosso estudo ao artigo 152ordm‑A1A do Coacutedigo Penal em especial na figura atinente aos castigos corporais contra menores de modo que natildeo nos percamos na estendida oacuterbita do tema em entrelinhas desnecessaacuterias ao fim pretendido

Este breve trabalho natildeo tem a menor pretensatildeo de esgotar o objeto de estudo mas tatildeo somente de trazer o leitor a uma anaacutelise criacutetica acerca da real necessidade de implementa‑ccedilatildeo de um modelo educacional livre de violecircncia e com meacutetodos pedagoacutegicos que exaltem a crianccedila enquanto ser humano digno de respeito e proteccedilatildeo juriacutedica

II Notas preambulares acerca da violecircncia fiacutesica contra crianccedilas conceitos e evoluccedilatildeo histoacuterica Os maus tratos fiacutesicos contra crianccedilas geralmente causam grande comoccedilatildeo social especial‑mente porque perpetrados contra seres imbuiacutedos de fragilidade natural e por aqueles que detecircm o que se chama de ldquonexo de evitaccedilatildeordquo ou seja o dever juriacutedico de evitar a produccedilatildeo de qualquer resultado danoso

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Eacute notoacuterio que alguns pais e cuidadores estatildeo habituados a impor suas vontades atraveacutes de meios fiacutesicos ou injuriosos acreditando muitas vezes que aquela eacute a forma mais eficaz de disciplinar e transmitir os preceitos morais que acreditam serem escorreitos Cuida‑se de uma concepccedilatildeo reproduzida desde a eacutepoca do modelo patriarcal onde o sistema estava saturado de ldquocarga ideoloacutegica do poder de domiacutenio ilimitado e arbitraacuterio do pai traduzido na completa sujeiccedilatildeo do filho aos seus desiacutegniosrdquo2

Esse pensamento arraigado eacute facilmente comprovado pelo doutrinador Eduardo Cor‑reia que em anaacutelise ao anteprojeto do Coacutedigo Penal de 1966 asseverou que a mens legis‑latoris era punir tatildeo somente os maus‑tratos mais chocantes a crianccedilas ou seja aqueles aptos a gerarem uma sobrecarga exacerbada descriminalizando portanto castigos fiacutesicos de natureza meacutedia ou irrelevante3

A professora Rosa Martins ensina que pouco a pouco ndash ainda que mais vagarosamente do que se espera ndash vem‑se superando essa mentalidade de poder familiar autoritaacuterio trans‑mutando‑se para um arqueacutetipo democraacutetico onde as crianccedilas satildeo vistas natildeo mais como um meras espectadoras das vontades alheias mas como sujeitas de direitos4 Passam entatildeo do papel de coadjuvantes para coparticipantes da relaccedilatildeo interparental onde satildeo reconheci‑das como portadoras de discernimento compatiacutevel com sua faixa etaacuteria e ldquocapacidade de desempenhar um papel ativo na determinaccedilatildeo dos seus interessesrdquo5

Tal fato eacute perfeitamente perceptiacutevel pelo artigo 1878ordm do Coacutedigo Civil6 que estabelece que os poderes dos pais satildeo exercidos para os filhos (em seu proveito e interesse) e natildeo por meio de uma forccedila sobrepujante deixando clara a intenccedilatildeo de se exaltar o protagonismo das crianccedilas no processo educativo Cria‑se assim uma relaccedilatildeo de igualdade e equiliacutebrio onde os pais reconhecem aos educandos ldquoautonomia na organizaccedilatildeo da proacutepria vidardquo7

Ocorre que nem sempre a crianccedila foi vista dessa forma tendo sido necessaacuterias deacutecadas de discussotildees e multiplicidades de diplomas legislativos (de acircmbito interno e internacio‑nais) para que assumissem o posto de legiacutetimos detentores de direitos sujeitos a uma pro‑teccedilatildeo especial

O tema foi normatizado pela primeira vez em domiacutenio mundial na Declaraccedilatildeo de Genebra tambeacutem conhecida como Declaraccedilatildeo dos Direitos das Crianccedilas de 1924 adotada

2 MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 p 2253 CORREIA Eduardo apud ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 2ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2010 p 463

4 MARTINS Rosa ndash Poder Paternal vs Autonomia da crianccedila e do adolescente In Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 1 Nordm 1 2004 p 65

5 MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 p 1096 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1883‑20867 Idem Ibidem (Artigo 1878 II)

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como paracircmetro pela Assembleacuteia da Liga das Naccedilotildees Nela reconheceu‑se o dever de prote‑ccedilatildeo agrave crianccedila independentemente de raccedila credo ou nacionalidade Aleacutem disso exaltou‑se como direito de toda crianccedila a alimentaccedilatildeo o auxiacutelio a educaccedilatildeo a proteccedilatildeo contra explo‑raccedilatildeo dentre outros

Entretanto segundo Catarina Albuquerque o diploma natildeo teve grande repercussatildeo praacutetica em face da cultura histoacuterica patriarcal ainda infiltrada na maioria dos paiacuteses do mundo e da inexistecircncia de mandamentos impositivos aos paiacuteses signataacuterios8

No ano de 1946 logo apoacutes Segunda Guerra Mundial foi criada a UNICEF (United Nations Childrenrsquos Fund) importante organismo internacional que em princiacutepio tinha o fulcro de salvaguardar as crianccedilas em estado de emergecircncia e posteriormente passou a tutelar os infantes de um modo geral garantindo‑lhes o apanaacutegio a uma vida digna e mini‑mamente existencial9

Em 20 de novembro de 1959 com a promulgaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas10 criou‑se um verdadeiro coacutedigo de conduta eacutetica para tutela de crianccedilas e adolescentes O diploma dentre diversos princiacutepios trazia uma enunciaccedilatildeo expressa de defesa agrave integridade e ao desenvolvimento fiacutesico dos menores (foco principal deste artigo) aleacutem de introduzir a convicccedilatildeo de que sempre deveria prevalecer a melhor conveniecircncia dos infantes (gecircnese da atual diretriz adotada pelo Codex civilista lusitano conforme verificado alhures)

Contudo em que pese tenha ganhado maior proporccedilatildeo que a Declaraccedilatildeo de Genebra reitera a professora Catarina Albuquerque a mesma criacutetica proferida contra o diploma pre‑teacuterito na acepccedilatildeo de que os dispositivos apesar de incentivarem a sociedade internacional a protegerem as crianccedilas eram meramente declarativos sem forccedila juriacutedico‑normativa11 Nesse sentido natildeo compeliam ao cumprimento das orientaccedilotildees tendo portanto um caraacute‑ter meramente simboacutelico e orientativo

Foi somente em 20 de novembro de 1989 com a elaboraccedilatildeo da Convenccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (CDC)12 adotada pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas que de fato passou‑‑se a enxergar as crianccedilas como titulares de direitos subjetivos tal qual os adultos

8 ALBUQUERQUE Catarina ndash As Naccedilotildees Unidas a Convenccedilatildeo e o Comitecirc Disponiacutevel em httpswwwgddcptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdf p 8

9 Informaccedilatildeo retirada de httpsnacoesunidasorgagenciaunicef sp10 Disponiacutevel em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesdeclaracao_universal_direitos_criancapdf sp11 ALBUQUERQUE Catarina ndash Op Cit p 28 12 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1990‑1994d99710htm

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Segundo Catarina Tomaacutes pela primeira vez foi criado um diploma com forccedila vinculante e obrigatoacuteria onde todos os 192 signataacuterios comprometeram‑se a promover alteraccedilotildees em suas legislaccedilotildees internas de modo a garantir a efetividade dos dispositivos nele expressos13

A Convenccedilatildeo prevecirc expressamente que os menores gozam de uma proteccedilatildeo especial que dentre outras prerrogativas prevecirc o crescimento em um ambiente normal digno livre e sadio Em termos gerais isso garante a idoneidade corporal dos filhos perante os pais que natildeo podem aplicar castigos que transmitam a visatildeo de crueldade ou exploraccedilatildeo

Outro marco fundamental foi a Recomendaccedilatildeo nordm 1666 da Assembleacuteia Parlamentar do Conselho Europeu14 de 23 de junho 2004 que coibiu de forma absoluta a praacutetica de castigo fiacutesico ou degradante contra crianccedilas elencando as medidas legislativas a serem tomadas pelos paiacuteses componentes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU)15 a fim de implemen‑tar concretamente as instruccedilotildees consignadas

Em idecircntico espeque o Comentaacuterio Geral nordm 8 da Convenccedilatildeo de Direitos das Crianccedilas da ONU16 do ano de 2006 jaacute em sua etapa preambular estabeleceu como objetivo primaacuterio a primordialidade de se eliminarem todos os castigos fiacutesicos crueacuteis ou humilhantes em desfavor de crianccedilas Com efeito estabeleceu propostas de modificaccedilotildees a serem efetua‑das em acircmbito legislativo pelos paiacuteses componentes de modo que as disposiccedilotildees tivessem forccedila normativa deixando de ser meras abstraccedilotildees escritas

Mais recentemente em dezembro de 2010 o Parlamento Europeu implementou uma Resoluccedilatildeo17 para disciplinar o Relatoacuterio Anual sobre Direitos Humanos no Mundo (2009) quando ao abordar a temaacutetica ora em apreccedilo falou da premente necessidade de se abolir todos os tipos de castigos corporais independentemente das circunstacircncias especialmente quando ocorridos dentro do nuacutecleo domeacutestico‑familiar

Nesse diapasatildeo diversos paiacuteses seguiram as recomendaccedilotildees18 supra e passaram a prever de forma expressa em seus ordenamentos a proibiccedilatildeo aos castigos fiacutesicos contra infantes

13 TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 p 102

14 Acessiacutevel em httpassemblycoeintnwxmlXRefXref‑XML2HTML‑enaspfileid=17235amplang=en15 Para fins deste ensaio as citaccedilotildees da entidade ldquoOrganizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidasrdquo seraacute feita atraveacutes de sua sigla

(ONU)16 Disponiacutevel em httpwwwnaobataeduqueorgbrdocumentosd9891e21b98d60dfce7318f013c0091dpdf sp17 Disponiacutevel em httpwwweuroparleuropaeusidesgetDocdopubRef=‑EPTEXT+TA+P7‑TA‑2010‑

0489+0+DOC+XML+V0PT sp18 Nesse ponto natildeo se olvida que haacute outros diplomas internacionais que tutelam direitos das crianccedilas tais como

a Convenccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) nordm 138 (trata da idade miacutenima de admissatildeo em emprego) as Regras para Proteccedilatildeo de Menores Privados de Liberdade (tutela as hipoacuteteses excepcionaliacutessimas de detenccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes) a Convenccedilatildeo de Haia de 1993 (tutela de direitos das crianccedilas em especial quanto a crimes de guerra genociacutedio violecircncia sexual e prostituiccedilatildeo) dentre outros Ocorre que o objeto deste ensaio eacute a violecircncia fiacutesica perpetrada com roupagem de castigo educativo razatildeo pela qual natildeo se aprofundaraacute nas normas retro de modo a evitar o desvio do fim proposto

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A Sueacutecia foi uma das pioneiras na vedaccedilatildeo expressa agrave violecircncia contra crianccedilas embora o processo de transiccedilatildeo natildeo tenha sido repentino Para tanto em ato preambular extir‑pou do Coacutedigo Penal ainda no remoto ano de 1957 o perdatildeo judicial concedido aos casti‑gos dos pais contra seus filhos Em 1966 retirou do ordenamento a prerrogativa ateacute entatildeo permitida aos genitores de empregarem castigos corporais desde que comedidos Mas foi somente no ano de 1979 que o legislador ordinaacuterio sueco consignou de forma expressa a vedaccedilatildeo ao castigo corporal em crianccedilas que era cotidianamente justificado por um falso manto de ldquonecessaacuteria atitude para fins educacionaisrdquo19

O exemplo acima eacute considerado um caso de sucesso (referencial case) uma vez que a sensibilizaccedilatildeo social alcanccedilou grandes iacutendices ao ponto de conforme ensina a professora Pernilla Leviner apenas dois anos apoacutes a modificaccedilatildeo mais de 90 (noventa por cento) da populaccedilatildeo ter pleno conhecimento de que a imposiccedilatildeo de castigos fiacutesicos estava terminan‑temente proibida pela lei20 Acresceu a professora ainda que a alteraccedilatildeo legislativa aliada agrave intensa campanha publicitaacuteria natildeo foram suficientes para banir completamente a praacutetica de castigos fiacutesicos contra crianccedilas mas contribuiacuteram de forma contundente para que a Sueacutecia tivesse iacutendices muito menores que outros paiacuteses do mundo21

Na mesma linha de pensamento a Alemanha segundo liccedilatildeo do ilustre penalista Claus Roxin no ano 2000 ficou previsto de forma clarividente na legislaccedilatildeo o direito dos reben‑tos a uma instruccedilatildeo livre de crueldade ou selvajeria ficando excluiacuteda ateacute mesmo as peque‑nas lesotildees das causas justificantes22

Tambeacutem na Aacuteustria a evoluccedilatildeo ordenativa seguiu o caminho dos dois exemplos ante‑riores primeiramente em 1977 eliminando‑se a execuccedilatildeo de castigos corpoacutereos ainda que tecircnues ou eventuais logo apoacutes em 1989 desautorizou‑se de forma peremptoacuteria algum tipo de coima capaz de causar padecimento carnal ou mental ao paacutervulo23

Em direccedilatildeo idecircntica seguiram diversas outras naccedilotildees europeacuteias como Noruega Finlacircn‑dia Aacuteustria Suiacuteccedila Espanha Nova Zelacircndia dentre outros

Verificamos assim que a comunidade juriacutedica internacional passou por diversas eta‑pas para chegar agrave atual conjuntura normativa de exaltaccedilatildeo agrave integridade dos menores Em

19 ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917 e 920

20 LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

21 LEVINER Pernilla ndash Op cit p 15722 ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

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26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb73fbe5ea419b9f71802577f1005497a7OpenDocument sp

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Eacute notoacuterio que alguns pais e cuidadores estatildeo habituados a impor suas vontades atraveacutes de meios fiacutesicos ou injuriosos acreditando muitas vezes que aquela eacute a forma mais eficaz de disciplinar e transmitir os preceitos morais que acreditam serem escorreitos Cuida‑se de uma concepccedilatildeo reproduzida desde a eacutepoca do modelo patriarcal onde o sistema estava saturado de ldquocarga ideoloacutegica do poder de domiacutenio ilimitado e arbitraacuterio do pai traduzido na completa sujeiccedilatildeo do filho aos seus desiacutegniosrdquo2

Esse pensamento arraigado eacute facilmente comprovado pelo doutrinador Eduardo Cor‑reia que em anaacutelise ao anteprojeto do Coacutedigo Penal de 1966 asseverou que a mens legis‑latoris era punir tatildeo somente os maus‑tratos mais chocantes a crianccedilas ou seja aqueles aptos a gerarem uma sobrecarga exacerbada descriminalizando portanto castigos fiacutesicos de natureza meacutedia ou irrelevante3

A professora Rosa Martins ensina que pouco a pouco ndash ainda que mais vagarosamente do que se espera ndash vem‑se superando essa mentalidade de poder familiar autoritaacuterio trans‑mutando‑se para um arqueacutetipo democraacutetico onde as crianccedilas satildeo vistas natildeo mais como um meras espectadoras das vontades alheias mas como sujeitas de direitos4 Passam entatildeo do papel de coadjuvantes para coparticipantes da relaccedilatildeo interparental onde satildeo reconheci‑das como portadoras de discernimento compatiacutevel com sua faixa etaacuteria e ldquocapacidade de desempenhar um papel ativo na determinaccedilatildeo dos seus interessesrdquo5

Tal fato eacute perfeitamente perceptiacutevel pelo artigo 1878ordm do Coacutedigo Civil6 que estabelece que os poderes dos pais satildeo exercidos para os filhos (em seu proveito e interesse) e natildeo por meio de uma forccedila sobrepujante deixando clara a intenccedilatildeo de se exaltar o protagonismo das crianccedilas no processo educativo Cria‑se assim uma relaccedilatildeo de igualdade e equiliacutebrio onde os pais reconhecem aos educandos ldquoautonomia na organizaccedilatildeo da proacutepria vidardquo7

Ocorre que nem sempre a crianccedila foi vista dessa forma tendo sido necessaacuterias deacutecadas de discussotildees e multiplicidades de diplomas legislativos (de acircmbito interno e internacio‑nais) para que assumissem o posto de legiacutetimos detentores de direitos sujeitos a uma pro‑teccedilatildeo especial

O tema foi normatizado pela primeira vez em domiacutenio mundial na Declaraccedilatildeo de Genebra tambeacutem conhecida como Declaraccedilatildeo dos Direitos das Crianccedilas de 1924 adotada

2 MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 p 2253 CORREIA Eduardo apud ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 2ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2010 p 463

4 MARTINS Rosa ndash Poder Paternal vs Autonomia da crianccedila e do adolescente In Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 1 Nordm 1 2004 p 65

5 MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 p 1096 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1883‑20867 Idem Ibidem (Artigo 1878 II)

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como paracircmetro pela Assembleacuteia da Liga das Naccedilotildees Nela reconheceu‑se o dever de prote‑ccedilatildeo agrave crianccedila independentemente de raccedila credo ou nacionalidade Aleacutem disso exaltou‑se como direito de toda crianccedila a alimentaccedilatildeo o auxiacutelio a educaccedilatildeo a proteccedilatildeo contra explo‑raccedilatildeo dentre outros

Entretanto segundo Catarina Albuquerque o diploma natildeo teve grande repercussatildeo praacutetica em face da cultura histoacuterica patriarcal ainda infiltrada na maioria dos paiacuteses do mundo e da inexistecircncia de mandamentos impositivos aos paiacuteses signataacuterios8

No ano de 1946 logo apoacutes Segunda Guerra Mundial foi criada a UNICEF (United Nations Childrenrsquos Fund) importante organismo internacional que em princiacutepio tinha o fulcro de salvaguardar as crianccedilas em estado de emergecircncia e posteriormente passou a tutelar os infantes de um modo geral garantindo‑lhes o apanaacutegio a uma vida digna e mini‑mamente existencial9

Em 20 de novembro de 1959 com a promulgaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas10 criou‑se um verdadeiro coacutedigo de conduta eacutetica para tutela de crianccedilas e adolescentes O diploma dentre diversos princiacutepios trazia uma enunciaccedilatildeo expressa de defesa agrave integridade e ao desenvolvimento fiacutesico dos menores (foco principal deste artigo) aleacutem de introduzir a convicccedilatildeo de que sempre deveria prevalecer a melhor conveniecircncia dos infantes (gecircnese da atual diretriz adotada pelo Codex civilista lusitano conforme verificado alhures)

Contudo em que pese tenha ganhado maior proporccedilatildeo que a Declaraccedilatildeo de Genebra reitera a professora Catarina Albuquerque a mesma criacutetica proferida contra o diploma pre‑teacuterito na acepccedilatildeo de que os dispositivos apesar de incentivarem a sociedade internacional a protegerem as crianccedilas eram meramente declarativos sem forccedila juriacutedico‑normativa11 Nesse sentido natildeo compeliam ao cumprimento das orientaccedilotildees tendo portanto um caraacute‑ter meramente simboacutelico e orientativo

Foi somente em 20 de novembro de 1989 com a elaboraccedilatildeo da Convenccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (CDC)12 adotada pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas que de fato passou‑‑se a enxergar as crianccedilas como titulares de direitos subjetivos tal qual os adultos

8 ALBUQUERQUE Catarina ndash As Naccedilotildees Unidas a Convenccedilatildeo e o Comitecirc Disponiacutevel em httpswwwgddcptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdf p 8

9 Informaccedilatildeo retirada de httpsnacoesunidasorgagenciaunicef sp10 Disponiacutevel em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesdeclaracao_universal_direitos_criancapdf sp11 ALBUQUERQUE Catarina ndash Op Cit p 28 12 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1990‑1994d99710htm

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Segundo Catarina Tomaacutes pela primeira vez foi criado um diploma com forccedila vinculante e obrigatoacuteria onde todos os 192 signataacuterios comprometeram‑se a promover alteraccedilotildees em suas legislaccedilotildees internas de modo a garantir a efetividade dos dispositivos nele expressos13

A Convenccedilatildeo prevecirc expressamente que os menores gozam de uma proteccedilatildeo especial que dentre outras prerrogativas prevecirc o crescimento em um ambiente normal digno livre e sadio Em termos gerais isso garante a idoneidade corporal dos filhos perante os pais que natildeo podem aplicar castigos que transmitam a visatildeo de crueldade ou exploraccedilatildeo

Outro marco fundamental foi a Recomendaccedilatildeo nordm 1666 da Assembleacuteia Parlamentar do Conselho Europeu14 de 23 de junho 2004 que coibiu de forma absoluta a praacutetica de castigo fiacutesico ou degradante contra crianccedilas elencando as medidas legislativas a serem tomadas pelos paiacuteses componentes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU)15 a fim de implemen‑tar concretamente as instruccedilotildees consignadas

Em idecircntico espeque o Comentaacuterio Geral nordm 8 da Convenccedilatildeo de Direitos das Crianccedilas da ONU16 do ano de 2006 jaacute em sua etapa preambular estabeleceu como objetivo primaacuterio a primordialidade de se eliminarem todos os castigos fiacutesicos crueacuteis ou humilhantes em desfavor de crianccedilas Com efeito estabeleceu propostas de modificaccedilotildees a serem efetua‑das em acircmbito legislativo pelos paiacuteses componentes de modo que as disposiccedilotildees tivessem forccedila normativa deixando de ser meras abstraccedilotildees escritas

Mais recentemente em dezembro de 2010 o Parlamento Europeu implementou uma Resoluccedilatildeo17 para disciplinar o Relatoacuterio Anual sobre Direitos Humanos no Mundo (2009) quando ao abordar a temaacutetica ora em apreccedilo falou da premente necessidade de se abolir todos os tipos de castigos corporais independentemente das circunstacircncias especialmente quando ocorridos dentro do nuacutecleo domeacutestico‑familiar

Nesse diapasatildeo diversos paiacuteses seguiram as recomendaccedilotildees18 supra e passaram a prever de forma expressa em seus ordenamentos a proibiccedilatildeo aos castigos fiacutesicos contra infantes

13 TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 p 102

14 Acessiacutevel em httpassemblycoeintnwxmlXRefXref‑XML2HTML‑enaspfileid=17235amplang=en15 Para fins deste ensaio as citaccedilotildees da entidade ldquoOrganizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidasrdquo seraacute feita atraveacutes de sua sigla

(ONU)16 Disponiacutevel em httpwwwnaobataeduqueorgbrdocumentosd9891e21b98d60dfce7318f013c0091dpdf sp17 Disponiacutevel em httpwwweuroparleuropaeusidesgetDocdopubRef=‑EPTEXT+TA+P7‑TA‑2010‑

0489+0+DOC+XML+V0PT sp18 Nesse ponto natildeo se olvida que haacute outros diplomas internacionais que tutelam direitos das crianccedilas tais como

a Convenccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) nordm 138 (trata da idade miacutenima de admissatildeo em emprego) as Regras para Proteccedilatildeo de Menores Privados de Liberdade (tutela as hipoacuteteses excepcionaliacutessimas de detenccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes) a Convenccedilatildeo de Haia de 1993 (tutela de direitos das crianccedilas em especial quanto a crimes de guerra genociacutedio violecircncia sexual e prostituiccedilatildeo) dentre outros Ocorre que o objeto deste ensaio eacute a violecircncia fiacutesica perpetrada com roupagem de castigo educativo razatildeo pela qual natildeo se aprofundaraacute nas normas retro de modo a evitar o desvio do fim proposto

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A Sueacutecia foi uma das pioneiras na vedaccedilatildeo expressa agrave violecircncia contra crianccedilas embora o processo de transiccedilatildeo natildeo tenha sido repentino Para tanto em ato preambular extir‑pou do Coacutedigo Penal ainda no remoto ano de 1957 o perdatildeo judicial concedido aos casti‑gos dos pais contra seus filhos Em 1966 retirou do ordenamento a prerrogativa ateacute entatildeo permitida aos genitores de empregarem castigos corporais desde que comedidos Mas foi somente no ano de 1979 que o legislador ordinaacuterio sueco consignou de forma expressa a vedaccedilatildeo ao castigo corporal em crianccedilas que era cotidianamente justificado por um falso manto de ldquonecessaacuteria atitude para fins educacionaisrdquo19

O exemplo acima eacute considerado um caso de sucesso (referencial case) uma vez que a sensibilizaccedilatildeo social alcanccedilou grandes iacutendices ao ponto de conforme ensina a professora Pernilla Leviner apenas dois anos apoacutes a modificaccedilatildeo mais de 90 (noventa por cento) da populaccedilatildeo ter pleno conhecimento de que a imposiccedilatildeo de castigos fiacutesicos estava terminan‑temente proibida pela lei20 Acresceu a professora ainda que a alteraccedilatildeo legislativa aliada agrave intensa campanha publicitaacuteria natildeo foram suficientes para banir completamente a praacutetica de castigos fiacutesicos contra crianccedilas mas contribuiacuteram de forma contundente para que a Sueacutecia tivesse iacutendices muito menores que outros paiacuteses do mundo21

Na mesma linha de pensamento a Alemanha segundo liccedilatildeo do ilustre penalista Claus Roxin no ano 2000 ficou previsto de forma clarividente na legislaccedilatildeo o direito dos reben‑tos a uma instruccedilatildeo livre de crueldade ou selvajeria ficando excluiacuteda ateacute mesmo as peque‑nas lesotildees das causas justificantes22

Tambeacutem na Aacuteustria a evoluccedilatildeo ordenativa seguiu o caminho dos dois exemplos ante‑riores primeiramente em 1977 eliminando‑se a execuccedilatildeo de castigos corpoacutereos ainda que tecircnues ou eventuais logo apoacutes em 1989 desautorizou‑se de forma peremptoacuteria algum tipo de coima capaz de causar padecimento carnal ou mental ao paacutervulo23

Em direccedilatildeo idecircntica seguiram diversas outras naccedilotildees europeacuteias como Noruega Finlacircn‑dia Aacuteustria Suiacuteccedila Espanha Nova Zelacircndia dentre outros

Verificamos assim que a comunidade juriacutedica internacional passou por diversas eta‑pas para chegar agrave atual conjuntura normativa de exaltaccedilatildeo agrave integridade dos menores Em

19 ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917 e 920

20 LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

21 LEVINER Pernilla ndash Op cit p 15722 ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

Coimbra Editora 2001 p 218‑219 e DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4 2008 (nota 6) p 96

26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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como paracircmetro pela Assembleacuteia da Liga das Naccedilotildees Nela reconheceu‑se o dever de prote‑ccedilatildeo agrave crianccedila independentemente de raccedila credo ou nacionalidade Aleacutem disso exaltou‑se como direito de toda crianccedila a alimentaccedilatildeo o auxiacutelio a educaccedilatildeo a proteccedilatildeo contra explo‑raccedilatildeo dentre outros

Entretanto segundo Catarina Albuquerque o diploma natildeo teve grande repercussatildeo praacutetica em face da cultura histoacuterica patriarcal ainda infiltrada na maioria dos paiacuteses do mundo e da inexistecircncia de mandamentos impositivos aos paiacuteses signataacuterios8

No ano de 1946 logo apoacutes Segunda Guerra Mundial foi criada a UNICEF (United Nations Childrenrsquos Fund) importante organismo internacional que em princiacutepio tinha o fulcro de salvaguardar as crianccedilas em estado de emergecircncia e posteriormente passou a tutelar os infantes de um modo geral garantindo‑lhes o apanaacutegio a uma vida digna e mini‑mamente existencial9

Em 20 de novembro de 1959 com a promulgaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas10 criou‑se um verdadeiro coacutedigo de conduta eacutetica para tutela de crianccedilas e adolescentes O diploma dentre diversos princiacutepios trazia uma enunciaccedilatildeo expressa de defesa agrave integridade e ao desenvolvimento fiacutesico dos menores (foco principal deste artigo) aleacutem de introduzir a convicccedilatildeo de que sempre deveria prevalecer a melhor conveniecircncia dos infantes (gecircnese da atual diretriz adotada pelo Codex civilista lusitano conforme verificado alhures)

Contudo em que pese tenha ganhado maior proporccedilatildeo que a Declaraccedilatildeo de Genebra reitera a professora Catarina Albuquerque a mesma criacutetica proferida contra o diploma pre‑teacuterito na acepccedilatildeo de que os dispositivos apesar de incentivarem a sociedade internacional a protegerem as crianccedilas eram meramente declarativos sem forccedila juriacutedico‑normativa11 Nesse sentido natildeo compeliam ao cumprimento das orientaccedilotildees tendo portanto um caraacute‑ter meramente simboacutelico e orientativo

Foi somente em 20 de novembro de 1989 com a elaboraccedilatildeo da Convenccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (CDC)12 adotada pela Assembleia Geral das Naccedilotildees Unidas que de fato passou‑‑se a enxergar as crianccedilas como titulares de direitos subjetivos tal qual os adultos

8 ALBUQUERQUE Catarina ndash As Naccedilotildees Unidas a Convenccedilatildeo e o Comitecirc Disponiacutevel em httpswwwgddcptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdf p 8

9 Informaccedilatildeo retirada de httpsnacoesunidasorgagenciaunicef sp10 Disponiacutevel em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesdeclaracao_universal_direitos_criancapdf sp11 ALBUQUERQUE Catarina ndash Op Cit p 28 12 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1990‑1994d99710htm

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Segundo Catarina Tomaacutes pela primeira vez foi criado um diploma com forccedila vinculante e obrigatoacuteria onde todos os 192 signataacuterios comprometeram‑se a promover alteraccedilotildees em suas legislaccedilotildees internas de modo a garantir a efetividade dos dispositivos nele expressos13

A Convenccedilatildeo prevecirc expressamente que os menores gozam de uma proteccedilatildeo especial que dentre outras prerrogativas prevecirc o crescimento em um ambiente normal digno livre e sadio Em termos gerais isso garante a idoneidade corporal dos filhos perante os pais que natildeo podem aplicar castigos que transmitam a visatildeo de crueldade ou exploraccedilatildeo

Outro marco fundamental foi a Recomendaccedilatildeo nordm 1666 da Assembleacuteia Parlamentar do Conselho Europeu14 de 23 de junho 2004 que coibiu de forma absoluta a praacutetica de castigo fiacutesico ou degradante contra crianccedilas elencando as medidas legislativas a serem tomadas pelos paiacuteses componentes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU)15 a fim de implemen‑tar concretamente as instruccedilotildees consignadas

Em idecircntico espeque o Comentaacuterio Geral nordm 8 da Convenccedilatildeo de Direitos das Crianccedilas da ONU16 do ano de 2006 jaacute em sua etapa preambular estabeleceu como objetivo primaacuterio a primordialidade de se eliminarem todos os castigos fiacutesicos crueacuteis ou humilhantes em desfavor de crianccedilas Com efeito estabeleceu propostas de modificaccedilotildees a serem efetua‑das em acircmbito legislativo pelos paiacuteses componentes de modo que as disposiccedilotildees tivessem forccedila normativa deixando de ser meras abstraccedilotildees escritas

Mais recentemente em dezembro de 2010 o Parlamento Europeu implementou uma Resoluccedilatildeo17 para disciplinar o Relatoacuterio Anual sobre Direitos Humanos no Mundo (2009) quando ao abordar a temaacutetica ora em apreccedilo falou da premente necessidade de se abolir todos os tipos de castigos corporais independentemente das circunstacircncias especialmente quando ocorridos dentro do nuacutecleo domeacutestico‑familiar

Nesse diapasatildeo diversos paiacuteses seguiram as recomendaccedilotildees18 supra e passaram a prever de forma expressa em seus ordenamentos a proibiccedilatildeo aos castigos fiacutesicos contra infantes

13 TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 p 102

14 Acessiacutevel em httpassemblycoeintnwxmlXRefXref‑XML2HTML‑enaspfileid=17235amplang=en15 Para fins deste ensaio as citaccedilotildees da entidade ldquoOrganizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidasrdquo seraacute feita atraveacutes de sua sigla

(ONU)16 Disponiacutevel em httpwwwnaobataeduqueorgbrdocumentosd9891e21b98d60dfce7318f013c0091dpdf sp17 Disponiacutevel em httpwwweuroparleuropaeusidesgetDocdopubRef=‑EPTEXT+TA+P7‑TA‑2010‑

0489+0+DOC+XML+V0PT sp18 Nesse ponto natildeo se olvida que haacute outros diplomas internacionais que tutelam direitos das crianccedilas tais como

a Convenccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) nordm 138 (trata da idade miacutenima de admissatildeo em emprego) as Regras para Proteccedilatildeo de Menores Privados de Liberdade (tutela as hipoacuteteses excepcionaliacutessimas de detenccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes) a Convenccedilatildeo de Haia de 1993 (tutela de direitos das crianccedilas em especial quanto a crimes de guerra genociacutedio violecircncia sexual e prostituiccedilatildeo) dentre outros Ocorre que o objeto deste ensaio eacute a violecircncia fiacutesica perpetrada com roupagem de castigo educativo razatildeo pela qual natildeo se aprofundaraacute nas normas retro de modo a evitar o desvio do fim proposto

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A Sueacutecia foi uma das pioneiras na vedaccedilatildeo expressa agrave violecircncia contra crianccedilas embora o processo de transiccedilatildeo natildeo tenha sido repentino Para tanto em ato preambular extir‑pou do Coacutedigo Penal ainda no remoto ano de 1957 o perdatildeo judicial concedido aos casti‑gos dos pais contra seus filhos Em 1966 retirou do ordenamento a prerrogativa ateacute entatildeo permitida aos genitores de empregarem castigos corporais desde que comedidos Mas foi somente no ano de 1979 que o legislador ordinaacuterio sueco consignou de forma expressa a vedaccedilatildeo ao castigo corporal em crianccedilas que era cotidianamente justificado por um falso manto de ldquonecessaacuteria atitude para fins educacionaisrdquo19

O exemplo acima eacute considerado um caso de sucesso (referencial case) uma vez que a sensibilizaccedilatildeo social alcanccedilou grandes iacutendices ao ponto de conforme ensina a professora Pernilla Leviner apenas dois anos apoacutes a modificaccedilatildeo mais de 90 (noventa por cento) da populaccedilatildeo ter pleno conhecimento de que a imposiccedilatildeo de castigos fiacutesicos estava terminan‑temente proibida pela lei20 Acresceu a professora ainda que a alteraccedilatildeo legislativa aliada agrave intensa campanha publicitaacuteria natildeo foram suficientes para banir completamente a praacutetica de castigos fiacutesicos contra crianccedilas mas contribuiacuteram de forma contundente para que a Sueacutecia tivesse iacutendices muito menores que outros paiacuteses do mundo21

Na mesma linha de pensamento a Alemanha segundo liccedilatildeo do ilustre penalista Claus Roxin no ano 2000 ficou previsto de forma clarividente na legislaccedilatildeo o direito dos reben‑tos a uma instruccedilatildeo livre de crueldade ou selvajeria ficando excluiacuteda ateacute mesmo as peque‑nas lesotildees das causas justificantes22

Tambeacutem na Aacuteustria a evoluccedilatildeo ordenativa seguiu o caminho dos dois exemplos ante‑riores primeiramente em 1977 eliminando‑se a execuccedilatildeo de castigos corpoacutereos ainda que tecircnues ou eventuais logo apoacutes em 1989 desautorizou‑se de forma peremptoacuteria algum tipo de coima capaz de causar padecimento carnal ou mental ao paacutervulo23

Em direccedilatildeo idecircntica seguiram diversas outras naccedilotildees europeacuteias como Noruega Finlacircn‑dia Aacuteustria Suiacuteccedila Espanha Nova Zelacircndia dentre outros

Verificamos assim que a comunidade juriacutedica internacional passou por diversas eta‑pas para chegar agrave atual conjuntura normativa de exaltaccedilatildeo agrave integridade dos menores Em

19 ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917 e 920

20 LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

21 LEVINER Pernilla ndash Op cit p 15722 ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

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26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb73fbe5ea419b9f71802577f1005497a7OpenDocument sp

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Segundo Catarina Tomaacutes pela primeira vez foi criado um diploma com forccedila vinculante e obrigatoacuteria onde todos os 192 signataacuterios comprometeram‑se a promover alteraccedilotildees em suas legislaccedilotildees internas de modo a garantir a efetividade dos dispositivos nele expressos13

A Convenccedilatildeo prevecirc expressamente que os menores gozam de uma proteccedilatildeo especial que dentre outras prerrogativas prevecirc o crescimento em um ambiente normal digno livre e sadio Em termos gerais isso garante a idoneidade corporal dos filhos perante os pais que natildeo podem aplicar castigos que transmitam a visatildeo de crueldade ou exploraccedilatildeo

Outro marco fundamental foi a Recomendaccedilatildeo nordm 1666 da Assembleacuteia Parlamentar do Conselho Europeu14 de 23 de junho 2004 que coibiu de forma absoluta a praacutetica de castigo fiacutesico ou degradante contra crianccedilas elencando as medidas legislativas a serem tomadas pelos paiacuteses componentes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU)15 a fim de implemen‑tar concretamente as instruccedilotildees consignadas

Em idecircntico espeque o Comentaacuterio Geral nordm 8 da Convenccedilatildeo de Direitos das Crianccedilas da ONU16 do ano de 2006 jaacute em sua etapa preambular estabeleceu como objetivo primaacuterio a primordialidade de se eliminarem todos os castigos fiacutesicos crueacuteis ou humilhantes em desfavor de crianccedilas Com efeito estabeleceu propostas de modificaccedilotildees a serem efetua‑das em acircmbito legislativo pelos paiacuteses componentes de modo que as disposiccedilotildees tivessem forccedila normativa deixando de ser meras abstraccedilotildees escritas

Mais recentemente em dezembro de 2010 o Parlamento Europeu implementou uma Resoluccedilatildeo17 para disciplinar o Relatoacuterio Anual sobre Direitos Humanos no Mundo (2009) quando ao abordar a temaacutetica ora em apreccedilo falou da premente necessidade de se abolir todos os tipos de castigos corporais independentemente das circunstacircncias especialmente quando ocorridos dentro do nuacutecleo domeacutestico‑familiar

Nesse diapasatildeo diversos paiacuteses seguiram as recomendaccedilotildees18 supra e passaram a prever de forma expressa em seus ordenamentos a proibiccedilatildeo aos castigos fiacutesicos contra infantes

13 TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 p 102

14 Acessiacutevel em httpassemblycoeintnwxmlXRefXref‑XML2HTML‑enaspfileid=17235amplang=en15 Para fins deste ensaio as citaccedilotildees da entidade ldquoOrganizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidasrdquo seraacute feita atraveacutes de sua sigla

(ONU)16 Disponiacutevel em httpwwwnaobataeduqueorgbrdocumentosd9891e21b98d60dfce7318f013c0091dpdf sp17 Disponiacutevel em httpwwweuroparleuropaeusidesgetDocdopubRef=‑EPTEXT+TA+P7‑TA‑2010‑

0489+0+DOC+XML+V0PT sp18 Nesse ponto natildeo se olvida que haacute outros diplomas internacionais que tutelam direitos das crianccedilas tais como

a Convenccedilatildeo da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) nordm 138 (trata da idade miacutenima de admissatildeo em emprego) as Regras para Proteccedilatildeo de Menores Privados de Liberdade (tutela as hipoacuteteses excepcionaliacutessimas de detenccedilatildeo de crianccedilas e adolescentes) a Convenccedilatildeo de Haia de 1993 (tutela de direitos das crianccedilas em especial quanto a crimes de guerra genociacutedio violecircncia sexual e prostituiccedilatildeo) dentre outros Ocorre que o objeto deste ensaio eacute a violecircncia fiacutesica perpetrada com roupagem de castigo educativo razatildeo pela qual natildeo se aprofundaraacute nas normas retro de modo a evitar o desvio do fim proposto

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A Sueacutecia foi uma das pioneiras na vedaccedilatildeo expressa agrave violecircncia contra crianccedilas embora o processo de transiccedilatildeo natildeo tenha sido repentino Para tanto em ato preambular extir‑pou do Coacutedigo Penal ainda no remoto ano de 1957 o perdatildeo judicial concedido aos casti‑gos dos pais contra seus filhos Em 1966 retirou do ordenamento a prerrogativa ateacute entatildeo permitida aos genitores de empregarem castigos corporais desde que comedidos Mas foi somente no ano de 1979 que o legislador ordinaacuterio sueco consignou de forma expressa a vedaccedilatildeo ao castigo corporal em crianccedilas que era cotidianamente justificado por um falso manto de ldquonecessaacuteria atitude para fins educacionaisrdquo19

O exemplo acima eacute considerado um caso de sucesso (referencial case) uma vez que a sensibilizaccedilatildeo social alcanccedilou grandes iacutendices ao ponto de conforme ensina a professora Pernilla Leviner apenas dois anos apoacutes a modificaccedilatildeo mais de 90 (noventa por cento) da populaccedilatildeo ter pleno conhecimento de que a imposiccedilatildeo de castigos fiacutesicos estava terminan‑temente proibida pela lei20 Acresceu a professora ainda que a alteraccedilatildeo legislativa aliada agrave intensa campanha publicitaacuteria natildeo foram suficientes para banir completamente a praacutetica de castigos fiacutesicos contra crianccedilas mas contribuiacuteram de forma contundente para que a Sueacutecia tivesse iacutendices muito menores que outros paiacuteses do mundo21

Na mesma linha de pensamento a Alemanha segundo liccedilatildeo do ilustre penalista Claus Roxin no ano 2000 ficou previsto de forma clarividente na legislaccedilatildeo o direito dos reben‑tos a uma instruccedilatildeo livre de crueldade ou selvajeria ficando excluiacuteda ateacute mesmo as peque‑nas lesotildees das causas justificantes22

Tambeacutem na Aacuteustria a evoluccedilatildeo ordenativa seguiu o caminho dos dois exemplos ante‑riores primeiramente em 1977 eliminando‑se a execuccedilatildeo de castigos corpoacutereos ainda que tecircnues ou eventuais logo apoacutes em 1989 desautorizou‑se de forma peremptoacuteria algum tipo de coima capaz de causar padecimento carnal ou mental ao paacutervulo23

Em direccedilatildeo idecircntica seguiram diversas outras naccedilotildees europeacuteias como Noruega Finlacircn‑dia Aacuteustria Suiacuteccedila Espanha Nova Zelacircndia dentre outros

Verificamos assim que a comunidade juriacutedica internacional passou por diversas eta‑pas para chegar agrave atual conjuntura normativa de exaltaccedilatildeo agrave integridade dos menores Em

19 ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917 e 920

20 LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

21 LEVINER Pernilla ndash Op cit p 15722 ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y

Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑23423 UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em http

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

Coimbra Editora 2001 p 218‑219 e DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4 2008 (nota 6) p 96

26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb73fbe5ea419b9f71802577f1005497a7OpenDocument sp

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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A Sueacutecia foi uma das pioneiras na vedaccedilatildeo expressa agrave violecircncia contra crianccedilas embora o processo de transiccedilatildeo natildeo tenha sido repentino Para tanto em ato preambular extir‑pou do Coacutedigo Penal ainda no remoto ano de 1957 o perdatildeo judicial concedido aos casti‑gos dos pais contra seus filhos Em 1966 retirou do ordenamento a prerrogativa ateacute entatildeo permitida aos genitores de empregarem castigos corporais desde que comedidos Mas foi somente no ano de 1979 que o legislador ordinaacuterio sueco consignou de forma expressa a vedaccedilatildeo ao castigo corporal em crianccedilas que era cotidianamente justificado por um falso manto de ldquonecessaacuteria atitude para fins educacionaisrdquo19

O exemplo acima eacute considerado um caso de sucesso (referencial case) uma vez que a sensibilizaccedilatildeo social alcanccedilou grandes iacutendices ao ponto de conforme ensina a professora Pernilla Leviner apenas dois anos apoacutes a modificaccedilatildeo mais de 90 (noventa por cento) da populaccedilatildeo ter pleno conhecimento de que a imposiccedilatildeo de castigos fiacutesicos estava terminan‑temente proibida pela lei20 Acresceu a professora ainda que a alteraccedilatildeo legislativa aliada agrave intensa campanha publicitaacuteria natildeo foram suficientes para banir completamente a praacutetica de castigos fiacutesicos contra crianccedilas mas contribuiacuteram de forma contundente para que a Sueacutecia tivesse iacutendices muito menores que outros paiacuteses do mundo21

Na mesma linha de pensamento a Alemanha segundo liccedilatildeo do ilustre penalista Claus Roxin no ano 2000 ficou previsto de forma clarividente na legislaccedilatildeo o direito dos reben‑tos a uma instruccedilatildeo livre de crueldade ou selvajeria ficando excluiacuteda ateacute mesmo as peque‑nas lesotildees das causas justificantes22

Tambeacutem na Aacuteustria a evoluccedilatildeo ordenativa seguiu o caminho dos dois exemplos ante‑riores primeiramente em 1977 eliminando‑se a execuccedilatildeo de castigos corpoacutereos ainda que tecircnues ou eventuais logo apoacutes em 1989 desautorizou‑se de forma peremptoacuteria algum tipo de coima capaz de causar padecimento carnal ou mental ao paacutervulo23

Em direccedilatildeo idecircntica seguiram diversas outras naccedilotildees europeacuteias como Noruega Finlacircn‑dia Aacuteustria Suiacuteccedila Espanha Nova Zelacircndia dentre outros

Verificamos assim que a comunidade juriacutedica internacional passou por diversas eta‑pas para chegar agrave atual conjuntura normativa de exaltaccedilatildeo agrave integridade dos menores Em

19 ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917 e 920

20 LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

21 LEVINER Pernilla ndash Op cit p 15722 ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y

Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑23423 UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em http

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

Coimbra Editora 2001 p 218‑219 e DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4 2008 (nota 6) p 96

26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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E JURISPRUDEcircNCIA

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vieacutes anaacutelogo em Portugal o processo de internalizaccedilatildeo normativa e em especial da modi‑ficaccedilatildeo cultural tambeacutem foi moroso

O Coacutedigo Civil portuguecircs (DL nordm 4734466 de 25 de novembro)24 em sua versatildeo origi‑nal previa no artigo 1884ordm o denominado ldquopoder de correccedilatildeordquo onde os pais poderiam disci‑plinar comedidamente os filhos nas suas falhas ou seja o ordenamento entatildeo vigente legi‑timava expressamente a viabilidade de execuccedilatildeo castigos corporais repreensores em caso de insubordinaccedilatildeo dos filhos O doutrinador Guilherme Oliveira em anaacutelise do instituto consigna natildeo entender os motivos que levaram o legislador a incluir esse artigo no Codex quando disposiccedilatildeo idecircntica (poder correcional) foi refutada pela Assembleia Constituinte de 1976 que sabiamente optou por preservar o que hoje se percebe como prerrogativa das crianccedilas enquanto seres humanos25

Na Reforma de 1977 subtraiu‑se das incumbecircncias dos genitores a possibilidade expressa de castigos corporais nas crianccedilas transformando‑o simplesmente em ldquodever de educarrdquo que consistia na conduccedilatildeo dos comportamentos do infante alicerccedilada em uma disciplina consciente e desprovida de violecircncia

No acircmbito penal naquele espectro temporal tambeacutem natildeo havia a coibiccedilatildeo do exerciacutecio de forccedila fiacutesica dos pais contra seus filhos

Conforme verificado alhures o Anteprojeto de Coacutedigo Penal de 1966 natildeo pretendia tute‑lar todas as espeacutecimes de maus tratos contra menores mas tatildeo somente as extremados aptos a gerarem uma consequecircncia fiacutesica notaacutevel e ao menos parcialmente incapacitante

O Codex Penal de 1982 sob influecircncia da reforma do Coacutedigo Civil de 1977 criminalizou a conduta de maus tratos Entretanto previu como elemento subjetivo do tipo a obrigato‑riedade de que a praacutetica viesse acompanhada de ldquomalvadez e egoiacutesmordquo26 o que dificultava a caracterizaccedilatildeo do delito dada a elevada subjetividade dos conceitos (extirpados da legisla‑ccedilatildeo somente na Revisatildeo de 1995)

Ademais previu como conditio sine qua non agrave materializaccedilatildeo do tipo a reiteraccedilatildeo de con‑dutas Com isso o ilustre professor Taipa de Carvalho consigna que o delito de maus tratos natildeo poderia ser caracterizado se executado de forma isolada mas tatildeo somente se as accedilotildees tiacutepicas fossem cometidas mais de uma vez27

24 PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66) p 1886‑2086 25 OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra

Coimbra Editora 2001 p 218‑219 e DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4 2008 (nota 6) p 96

26 Assim denominado por parte da doutrina portuguesa Vide CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012 p 330

27 CARVALHO Ameacuterico Taipa de ndash Opcit p 334

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Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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Naquele contexto portanto havia um cenaacuterio em que os maus tratos previam concep‑ccedilatildeo extremamente aberta mesclada com a violecircncia domeacutestica conduzida a destinataacuterios diversos e desprovida de uma poliacutetica legislativa especiacutefica para menores de idade

Com efeito merece destaque o fato de que em que pese tenha sido suprimida da legis‑laccedilatildeo ciacutevel entatildeo vigente a prerrogativa de exerciacutecio do poder disciplinar fiacutesico sobre meno‑res natildeo havia nenhuma vedaccedilatildeo expressa agrave violaccedilatildeo de castigos corporais Mutatis mutan‑dis a ordem normativa vigente natildeo autorizava mas tambeacutem natildeo proibia de forma pontual a sobrepujanccedila corporal dos progenitores na conduccedilatildeo do projeto pedagoacutegico dos filhos

Conforme verificado supra esse entendimento ia contra a cultura de proteccedilatildeo agraves crian‑ccedilas em diversos paiacuteses desenvolvidos onde se previa de forma literal a impossibilidade de efetuar castigos fiacutesicos enquanto instrumento educativo

Em face disso em 2003 a Organizaccedilatildeo Mundial Contra a Tortura (OMCT) protocolou uma queixa contra Portugal no Conselho da Europa ao argumento de que o paiacutes lusitano estava violando o artigo 17ordm da Carta Social Europeacuteia28 do Conselho Europeu que previa a proteccedilatildeo social fiacutesica juriacutedica e econocircmica das crianccedilas Nesse diapasatildeo a queixa argu‑mentava que natildeo existia na legislaccedilatildeo nacional uma proibiccedilatildeo eficaz dos castigos corporais aplicados contra crianccedilas nem tampouco sanccedilotildees penais e ciacuteveis adequadas para trata‑mento de casos concretos

Em sua defesa Portugal apresentou seus contrapontos aduzindo que toda possibili‑dade de castigos corporais estava terminantemente proibida pelo Coacutedigo Penal aleacutem do fato de que a Constituiccedilatildeo previa o ldquodireito agrave protecccedilatildeo da sociedade e do Estado [] especialmente contra [] o exerciacutecio abusivo da autoridade na famiacuteliardquo29

Tratando do conteuacutedo a professora Ana Laura Fernandes Madeira traz um pequeno tre‑cho da defesa apresentada pelo governo portuguecircs que assim delineou seus argumentos

28 ldquoArtigo 17ordm ndash Direito das crianccedilas e adolescentes a uma protecccedilatildeo social juriacutedica e econoacutemica Com vista a assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes o exerciacutecio efectivo do direito a crescer num ambiente favoraacutevel ao desabrochar da sua personalidade e ao desenvolvimento das suas aptidotildees fiacutesicas e mentais as Partes comprometem‑se a tomar quer directamente quer em cooperaccedilatildeo com as organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas todas as medidas necessaacuterias e apropriadas que visem 1a) Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes tendo em conta os direitos e os deveres dos pais os cuidados a assistecircncia a educaccedilatildeo e a formaccedilatildeo de que necessitem nomeadamente prevendo a criaccedilatildeo ou a manutenccedilatildeo de instituiccedilotildees ou de serviccedilos adequados e suficientes para esse fim 1b) Proteger as crianccedilas e adolescentes contra a negligecircncia a violecircncia ou a exploraccedilatildeo 1c) Assegurar uma protecccedilatildeo e uma ajuda especial do Estado agrave crianccedila ou adolescente temporaacuteria ou definitivamente privados do seu apoio familiar 2 Assegurar agraves crianccedilas e aos adolescentes um ensino primaacuterio e secundaacuterio gratuitos assim como favorecer a regularidade da frequecircncia escolarrdquo Disponiacutevel em httpwwwcnpcjrptpreview_documentosaspr=3475ampm=PDF

29 Artigo 69ordm Constituiccedilatildeo ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 Diaacuterio da Repuacuteblica nordm 86 Seacuterie I Parte A (10041976)

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ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

ldquoA previsatildeo especiacutefica de uma norma sobre castigos corporais contra crian‑ccedilas no Coacutedigo Penal poderia ter o efeito inverso ao desejado nomeadamente a exclusatildeo do escopo da norma de outras categorias de pessoas vulneraacuteveis Aleacutem do mais eacute quase impossiacutevel garantir que uma lei norma ou um Coacutedigo prevecircem todas as situaccedilotildees concretas do dia‑a‑dia Esta eacute a razatildeo pela qual o escopo da lei portuguesa se foca em comportamentos e natildeo nas viacutetimas Este eacute o motivo pelo qual o legislador portuguecircs cria normas que de forma segura e rigorosa protegem todas as viacutetimas incluiacutendo as crianccedilas de qualquer agressatildeo fiacutesicardquo30

Entendemos que o fragmento supra representou uma confissatildeo portuguesa de que agrave eacutepoca inexistia uma disposiccedilatildeo normativa que tutelasse especificamente os maus tratos fiacutesicos e psicoloacutegicos contra crianccedilas porquanto admitiu a proteccedilatildeo da integridade fiacutesica das mesmas apenas de forma ampla Nesse escopo todas as categorias eram abarcadas pela mesma legislaccedilatildeo que natildeo excepcionava as minorias na medida de suas desigualdades

Justamente em face disso no iniacutecio do ano de 2005 o Conselho Europeu atraveacutes do Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS) condenou Portugal por violaccedilatildeo ao artigo 17ordm da Carta o que o impulsionou a iniciar as tratativas poliacuteticas para mudanccedilas na legislaccedilatildeo nacional

Ocorre que pouco mais de um ano depois da condenaccedilatildeo o Supremo Tribunal de Jus‑ticcedila analisou um caso emblemaacutetico (processo 06P468) onde uma encarregada de um esta‑belecimento agredia fisicamente jovens com deficiecircncia mental (amarrava agrave cama dava bofetadas deixava‑os em quartos sem nenhuma luminosidade) que laacute estavam internados tendo decidido por unanimidade inexistir o delito de maus tratos ao argumento de que diminutos castigos fiacutesicos natildeo se enquadrariam no tipo penal em apreccedilo

O referido Acoacuterdatildeo considerou que um adequado ldquopai de famiacuteliardquo faria o mesmo com seus filhos tendo aduzido que ldquoumas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeordquo31 (neste ponto pedimos vecircnia para transcrever nas notas de rodapeacute um longo

30 laquoObservations from the Portuguese Government on the meritsraquo Collective Complaint nordm 202003 World Organization Against Torture v Portugal apud FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015 p 85

31 ldquoA arguida AA foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setuacutebal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB p e p pelo art 152 ordm nordm 1 a) do C Penal na pena de dezoito meses de prisatildeo Tendo tal pena sido suspensa por um ano Desta decisatildeo interpuseram recurso directamente para este STJ quer o MordmPordm quer a arguida Vejamos primeiro o recurso do MordmPordm[] II ndash O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos fiacutesicos considerados como aqueles que afectam a integridade fiacutesica das pessoas aiacute mencionadas os maus tratos psiacutequicos considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competecircncia social do dependente entre os quais se incluem as humilhaccedilotildees

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 145emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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provocaccedilotildees e molestaccedilotildees e ainda os tratamentos crueacuteis estes considerados como aqueles que sejam desumanos de forma inadmissiacutevel[] 2 Considera‑se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolviccedilatildeo integram o conceito de tratamento cruel pois envolvem a reprimenda em situaccedilotildees educacionais de pessoas especialmente vulneraacuteveis onde a sua dependecircncia educativa e emocional eacute vincada[]1 A partir de 1992 ateacute 12 de Janeiro de 2000 a arguida por vaacuterias vezes fechou o BB agrave chave na despensa com a luz apagada quando este estava mais activo chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora 2 No mesmo periacuteodo por duas vezes de manhatilde em dias coincidentes com o fim‑de‑semana amarrou os peacutes e as matildeos do BB agrave cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para natildeo perturbar o descanso matinal da arguida 3 Tambeacutem durante o referido periacuteodo a arguida dava bofetadas no BB 4 O BB eacute menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave sendo uma crianccedila com comportamentos disfuncionais hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade 5 A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo agrave CC quando esta natildeo queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca[]III ndash Esta gravidade inerente agraves expressotildees ldquomaus tratos ldquoe ldquotratamento cruel ldquoconstitui ela sim o elemento que nos leva agrave improcedecircncia deste recurso Eacute que quanto a estes menores natildeo soacute natildeo se atinge tal gravidade como os actos imputados agrave arguida devem a nosso ver ser tidos como liacutecitosNa educaccedilatildeo do ser humano justifica‑se uma correcccedilatildeo moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros Seraacute utoacutepico pensar o contraacuterio e cremos bem que estatildeo postas de parte no plano cientiacutefico as teorias que defendem a abstenccedilatildeo total deste tipo de castigos moderados[]Este poder‑dever de correcccedilatildeo levanta todavia problemas delicadiacutessimos de fronteiraHaacute que saber ateacute onde pode ir considerando consequentemente insusceptiacutevel de preenchimento de qualquer iliacutecito criminal o que fica aqueacutem []A linha de fronteira passa por dois pontos Um reportado agrave finalidade da correcccedilatildeo Outro agrave sua dequaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo do menor O bem do menor concretizado na sua educaccedilatildeo teraacute se ser sempre a finalidade da correcccedilatildeo De fora ficam pois os casos muito frequentes em que o agente procura (conscientemente ou natildeo) projectar no educando os seus proacuteprios problemas encontrando neste elemento de descarga emocional Para aferimento da adequaccedilatildeo ousamos chamar a figura do ldquobom pai de famiacutelia ldquo agora curiosamente investido das funccedilotildees que directamente resultam da consagrada expressatildeo Indagamos entatildeo se o bom pai de famiacutelia agiria como agiu o agenteIV ndash E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma perguntaQual eacute o bom pai de famiacutelia que por uma ou duas vezes natildeo daacute palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola que natildeo daacute uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que natildeo manda um filho de castigo para o quarto quando ele natildeo quer comerQuanto agraves duas primeiras pode‑se mesmo dizer que a abstenccedilatildeo do educador constituiria ela sim um negligenciar educativo Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem ndash pela sua primacial importacircncia ndash que ser imposta com alguma veemecircncia Claro que se se tratar de fobia escolar reiterada seraacute aconselhaacutevel indagar os motivos e ateacute o aconselhamento por profissionais Mas perante uma ou duas recusas umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educaccedilatildeoDo mesmo modo o arremessar duma faca para mais a quem o educa justifica numa educaccedilatildeo satilde o realccedilar perante o menor do mal que foi feito e das suas possiacuteveis consequecircncias Uma bofetada a quente natildeo se pode considerar excessivaQuanto agrave imposiccedilatildeo de ida para o quarto por o EE natildeo querer comer a salada pode‑se considerar alguma discutibilidade As crianccedilas geralmente natildeo gostam de salada e natildeo havia aqui que marcar perante elas a diferenccedila Ainda assim entendemos que a reacccedilatildeo da arguida tambeacutem natildeo foi duma severidade inaceitaacutevel No fundo tratou‑se dum vulgar caso de relacionamento entre crianccedila e educador []Natildeo tem razatildeo pois a recorrenterdquo (Joatildeo Bernardo relat ndash Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila [Em linha] Processo 06p468 Consult 28 Ago 2017] Disponiacutevel em httpwwwdgsiptjstjnsf954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814 7b3cde591793c8b18025714d002b118c OpenDocumentampHighlight=006P468)

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

Editora 2012 p 33237 Diaacuterio da Assembleia da Repuacuteblica II Seacuterie ndashA nordm 10 de 18‑10‑2006 httpwwwdgsiptjtrcnsf

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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excerto do julgado sem o qual seria impossiacutevel ilustrar os pontos mais marcantes e polecirc‑micos do decisum) contrariando por conseguinte todas as orientaccedilotildees exaradas pelo na queixa coletiva julgada pelo Comitecirc Europeu de Direitos Sociais (CEDS)

O Acoacuterdatildeo gerou tanta repercussatildeo que motivou os parlamentares a apressarem as alte‑raccedilotildees legislativas exigidas pela comunidade internacional

Entatildeo pouco mais de um ano apoacutes o imbroacuteglio supramencionado entrou em vigor a Lei nordm 592007 de 4 de setembro que promoveu mais uma reforma no Coacutedigo Penal sepa‑rando tipos penais ateacute entatildeo condensados Nesse sentido deixou o artigo 152ordm tatildeo somente para a violecircncia domeacutestica autonomizando os maus tratos que ficaram dispostos no artigo 152ordm‑A dispositivo o qual passaremos a analisar

III Anaacutelise juriacutedica dos castigos corporais contra crianccedilas e as soluccedilotildees trazidas pela doutrina No ano de 1996 o Third National Incidence Study de forma pioneira condensou as acep‑ccedilotildees geneacutericas acerca de castigos fiacutesicos contra crianccedilas e assim os definiu ipsis literis ldquouma forma de maus‑tratos em que uma lesatildeo eacute infligida agrave crianccedila por um cuidador atra‑veacutes de diversos meios e de forma natildeo acidental de forma a provocar‑lhe dor ou mau estar fiacutesico incluindo bater com a matildeo com um pau correia ou outros objetos socos pontapeacutes abanotildees empurrotildees queimaduras etcrdquo32

O Comitecirc dos Direitos da Crianccedila Oacutergatildeo integrante do Conselho Europeu tambeacutem conceituou o castigo corporal como ldquoa accedilatildeo tomada para penalizar uma crianccedila que se fosse perpetrada contra um adulto constituiria uma violecircncia ilegiacutetimardquo33 Podemos dizer entatildeo que se trata de uma atitude violenta com fins de gerar um desconforto fiacutesico supos‑tamente para repreender didaticamente um comportamento inadequado

Edificada por essas acepccedilotildees conforme verificamos no capiacutetulo antecedente apoacutes grande pressatildeo do Conselho Europeu a proibiccedilatildeo agrave integridade fiacutesica das crianccedilas em Por‑tugal ganhou nova tutela atraveacutes do artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal34Com isso foram silen‑

32 SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

33 CONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007 Disponiacutevel em httphubcoeint

34 ldquoArtigo 152ordm‑AMaus tratos1 ndash Quem tendo ao seu cuidado agrave sua guarda sob a responsabilidade da sua direcccedilatildeo ou educaccedilatildeo ou a trabalhar ao seu serviccedilo pessoa menor ou particularmente indefesa em razatildeo de idade deficiecircncia doenccedila ou gravidez e a) Lhe infligir de modo reiterado ou natildeo maus tratos fiacutesicos ou psiacutequicos incluindo castigos corporais privaccedilotildees da liberdade e ofensas sexuais ou a tratar cruelmente

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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ciados os gritos criacuteticos que diziam que o legislador havia inserido em um uacutenico tipo penal condutas tiacutepicas tatildeo diversas (violecircncia domeacutestica laboral e maus tratos)

O dispositivo em comento confere proteccedilatildeo a distintos contextos familiares sempre se voltando agrave violaccedilatildeo da integridade corporal por aqueles que tem o dever de garante (tem ao seu cuidado guarda responsabilidade dentre outros) Neste ensaio conforme jaacute tratado apoacutes serem abordados os aspectos gerais do delito nos limitaremos agrave figura tiacutepica do artigo 152ordm‑A inciso I aliacutenea ldquoardquo mais especificamente no ponto que disciplina os maus tratos fiacutesicos perpetrados com roupagem de castigos educacionais e disciplinadores

Os maus tratos estatildeo elencados no Tiacutetulo I Capiacutetulo III do Coacutedigo Penal constituindo uma infraccedilatildeo contra a integridade fiacutesica

Percebemos entretanto que o bem juriacutedico tutelado vai muito aleacutem da integridade fiacutesica em si mesma abrangendo segundo professor Fernando Silva a sauacutede e a dignidade humana35 Em idecircntico diapasatildeo o doutrinador Taipa de Carvalho consigna que o objeto de tutela eacute a sauacutede fiacutesica e mental a dignidade aleacutem do ldquonormal e saudaacutevel desenvolvimento da personalidade da crianccedilardquo36 Trata‑se portanto de um bem juriacutedico complexo onde eacute notoacuteria a pluriofensividade da conduta tiacutepica

A mais clarividente alteraccedilatildeo trazida pela nova abordagem penal do delito eacute a exclusatildeo do dolo especiacutefico ou seja para a consumaccedilatildeo do crime natildeo haacute mais a primordialidade de que o iter criminis seja executado com malvadez ou egoiacutesmo Verificamos aqui uma grande evoluccedilatildeo uma vez que a abrangecircncia do tipo foi alargada aleacutem de ter sido excluiacutedo o alto teor de subjetividade nele contido

Outra mudanccedila relevante refere‑se ao entendimento de que natildeo eacute necessaacuteria a repeti‑ccedilatildeo de condutas para que seja caracterizado o delito de maus tratos Com efeito era essa a mens legislatoris consignada na exposiccedilatildeo de motivos da Proposta de Lei nordm 98X que deu origem agrave Lei nordm 592007 de 04 de setembro assim dispondo ldquo[] na descriccedilatildeo tiacutepica da violecircn‑cia domeacutestica e dos maus tratos recorre‑se em alternativa agraves ideias de reiteraccedilatildeo e intensidade para esclarecer que natildeo eacute imprescindiacutevel uma continuaccedilatildeo criminosardquo37

b) A empregar em actividades perigosas desumanas ou proibidas ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos eacute punido com pena de prisatildeo de um a cinco anos se pena mais grave lhe natildeo couber por forccedila de outra disposiccedilatildeo legal 2 ndash Se dos factos previstos no nuacutemero anterior resultar a) Ofensa agrave integridade fiacutesica grave o agente eacute punido com pena de prisatildeo de dois a oito anos b) A morte o agente eacute punido com pena de prisatildeo de trecircs a dez anosrdquo (Coacutedigo Penal ndash DL nordm 4895 de 15 de Marccedilo)

35 SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 p 31736 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra

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Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Logo podemos concluir que hodiernamente natildeo haacute necessidade que o delito de maus tratos seja continuado bastando uma uacutenica accedilatildeo ou omissatildeo tiacutepica para que o sujeito ativo seja criminalmente responsabilizado38

Passamos na oportunidade agrave apreciaccedilatildeo da classificaccedilatildeo do delito em comentoO crime previsto no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal natildeo pode ser praticado por qualquer

pessoa mas tatildeo somente por agente que tenha o dever de garante ou de cuidado com a viacutetima ou seja o agressor necessariamente precisa ter alguma responsabilidade sobre o sujeito passivo seja ela decorrente de obrigaccedilotildees legais ou contratuais (previstas no proacuteprio tipo penal)

Cuida‑se portanto de um delito especiacutefico na maioria das vezes improacuteprio uma vez que a relaccedilatildeo de interdependecircncia estabelecida entre viacutetima e agressor natildeo fundamenta a ilicitude mas apenas intensifica o niacutevel de culpa e a sanccedilatildeo respectiva Entretanto Taipa de Carvalho preceitua que haacute hipoacuteteses em que o delito de maus tratos pode ser proacuteprio como no caso de submissatildeo das viacutetimas a atividades perigosas e trabalhos excessivos jaacute que inexiste previsatildeo de um delito autocircnomo para estas condutas Acresce ainda que no caso de violecircncia fiacutesica a tiacutetulo educativo certas humilhaccedilotildees (como por exemplo fazer o menor lamber o chatildeo ou obrigaacute‑la a se rastejar na lama) poderiam constituir um delito especiacutefico proacuteprio39

Impende salientarmos tambeacutem que na modalidade de castigos corporais os maus tra‑tos podem ser classificados como crimes de resultado ou seja exigem a produccedilatildeo de uma consequecircncia naturaliacutestica danosa

Delineadas as classificaccedilotildees do tipo em estudo urge levantar o nuacutecleo desta pesquisa existem castigos fiacutesicos legiacutetimos Em caso afirmativo qual o liame entre a execuccedilatildeo legal do poder parental de educar e a infraccedilatildeo prevista no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal

Jaacute de iniacutecio podemos dizer que haacute opiniotildees fundamentadas em diversos sentidos justa‑mente porque o liame entre a correccedilatildeo educativa considerada proporcional e o abuso fiacutesico eacute espesso Formam‑se assim essencialmente duas correntes doutrinaacuterias antagocircnicas

A primeira sustenta a impossibilidade total e absoluta de qualquer penitecircncia corpo‑ral contra infantes independentemente do caraacuteter educativo ou do grau de lesividade do mesmo

Uma das grande defensoras dessa vertente socioloacutegica e doutrinaacuteria eacute a professora Clara Sottomayor que sustenta ser inviaacutevel definir criteacuterios objetivos para verificar quando

38 Conforme analisaremos mais adiante (ainda neste capiacutetulo) trata‑se de uma constataccedilatildeo da interpretaccedilatildeo literal da lei uma vez que a doutrina majoritaacuteria tem entendido que em casos de lesotildees irrisoacuterias ainda eacute necessaacuteria a reiteraccedilatildeo

39 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 335

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

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Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 147emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

um castigo corporal eacute proporcional ou socialmente adequado razatildeo pela qual as crianccedilas ficam absolutamente expostas agraves relaccedilotildees de domiacutenio paternais40

Em niacutetida criacutetica agrave majoritaacuteria toleracircncia social aos castigos fiacutesicos contra crianccedilas a autora pugna pela busca de meios alternativos agrave violecircncia elencando o amor e o exemplo como diretrizes a uma criaccedilatildeo saudaacutevel e construtiva41

Sustenta ainda que aceitar castigos corporais com propoacutesito pedagoacutegico pode nos levar a um terreno sombrio onde os maus tratos satildeo vistos como algo natural Para tanto preconiza a impossibilidade peremptoacuteria de se valorizar qualquer excludente de ilicitude ou tipicidade quando se trata de violecircncia fiacutesica contra menores mesmo quando o estaacutegio de agressividade da conduta eacute diminuto (como por exemplo em um leve beliscatildeo) jaacute que que o desvalor da conduta deve ser anaacutelogo ao praticado contra adultos onde natildeo se tolera por exemplo para fins disciplinares que um superior agrida seu funcionaacuterio42 Sustenta portanto ser inconcebiacutevel que ldquoa ilicitude penal se inicie apenas com a sova de cinto de pau ou com a vergastadardquo43

Nessa anaacutelise a autora somente admite a intervenccedilatildeo fiacutesica dos pais ldquopara proteger a crianccedila contra si proacutepria por exemplo porque se recusa a colocar o cinto de seguranccedila no automoacutevel se atira para o chatildeo num centro comercial e recusa levantar‑se coloca os dedos na tomadas ou para evitar que caia de uma janela ou varandardquo44 Assim qualquer hipoacutetese que fuja dessa concepccedilatildeo poderaacute subsumir‑se ao delito de maus tratos

Em siacutentese preconiza a inviolabilidade da integridade dos menores que enquanto seres extremamente vulneraacuteveis necessitam de uma legislaccedilatildeo forte e imperativa que vede qualquer modalidade de castigos corporais45

Posiccedilatildeo semelhante pode ser percebida nos estudos do professor Armando Leandro que repugna a educaccedilatildeo agressiva enxergando no diaacutelogo responsaacutevel a uacutenica possibilidade de que os filhos cresccedilam de forma autocircnoma em um ambiente harmonioso mas natildeo livre de regras46 Nesse diapasatildeo defende o autor que o poder‑dever parental de correccedilatildeo deve ter caraacuteter orientador e natildeo punitivo de modo que possa ser exercido em proveito absoluto da crianccedila Isso natildeo quer dizer obviamente que os pais natildeo possam exercer seu papel disci‑

40 SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑112

41 Idem Ibidem42 SOTTOMAYOR Maria Clara Op Cit p 113‑11443 Idem Op Cit p 12444 Idem Ibidem45 Idem Op Cit p 125‑12846 LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica

judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 126

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

2008 p 9651 COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946 p 14852 FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999

p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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E JURISPRUDEcircNCIA

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plinar mas esse necessita ser feito com parcimocircnia respeitando a autonomia a sauacutede e a seguranccedila dos filhos47

Em sentido convergente Maria de Faacutetima Abrantes sustenta a legitimidade do poder de correccedilatildeo de modo que o infante seja compelido a acatar as ordens dos pais (ou quem o tenha ao seu cuidado guarda ou responsabilidade) mesmo contra sua vontade (o que denomina de ldquoobediecircncia coercivardquo48) Mas salienta que esse poder natildeo pode ultrapassar a barreira da pretensatildeo educativa e dos interesses da crianccedila razatildeo pela qual caso os genito‑rescuidadores se valham de meacutetodos violentos poderatildeo ser enquadrados no artigo 152‑A do Coacutedigo Penal49

Em breve siacutentese a linha de pensamento dos defensores da impossibilidade absoluta de castigos corporais contra crianccedilas pode ser resumida pela frase da professora Cristina Dias que assim preceitua ldquoo poder de correcccedilatildeo deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder‑dever dos pais de educar e proteger a crianccedila de respeitar a sua autonomia e a sua diferenccedila em relaccedilatildeo aos pais O dever de educaccedilatildeo dos pais deve substituir a correcccedilatildeo com caraacutecter punitivo O que natildeo nos parece que afaste a correcccedilatildeo com caraacutecter educativo e eacute [tatildeo somente] esta que deve admitir‑serdquo50

Em niacutetido contraponto agraves acepccedilotildees supramencionadas surge uma segunda vertente que defende que os escarmentos corpoacutereos moderados satildeo legiacutetimos desde que preenchi‑das determinadas condiccedilotildees essenciais

A ideia de permissividade de pequenas lesotildees fiacutesicas daqueles que deteacutem o dever de garante sobre seus responsabilizados remonta a tempos longiacutenquos

Jaacute no seacuteculo IV aC na Greacutecia antiga o filoacutesofo e dramaturgo ateniense Menandro afir‑mava convictamente que ldquoquem natildeo eacute accediloitado natildeo eacute educadordquo51

Tambeacutem o teoacuterico social Michel Foucault grande formador de opiniotildees do seacuteculo XX defendia que ldquoos castigos fiacutesicos tecircm a funccedilatildeo de reduzir os desviosrdquo52 Trata‑se do que o professor Anthony Graziano chamou de ldquoviolecircncia sub‑abusivardquo contra crianccedilas ou seja aquela que eacute socialmente aceitaacutevel por ter natureza meramente disciplinar53

47 Idem Op Cit p 127‑12848 DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994 p 7149 Idem Op Cit p 71‑7450 DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4

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p 149‑150 53 ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal

Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑463

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Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra Coimbra Editora 2001 p 218‑219

ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑242

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SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 ISBN 978972724563‑5

SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑129

TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 ISBN 9789723611939

UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpwwwendcorporalpunishmentorgassetspdfsstates‑reportsAustriapdf

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Disponiacutevel em httphubcoeintPORTUGAL Diaacuterio da Repuacuteblica ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 nordm 86

Seacuterie I Parte A (10041976)PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66)

COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Os defensores desta linha de pensamento costumam trazer agrave baila algumas justifica‑tivas teacutecnico‑juriacutedicas para a descriminalizaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Para tanto aduzem que embora haja lesatildeo ao bem juriacutedico eacute salutar que natildeo seja ela punida ldquopor razotildees de interesses que se consideram superioresrdquo54 Analisemos neste ponto as teses encampadas por esta corrente doutrinaacuteria

Para fundamentar as lesotildees disciplinadoras o professor Eduardo Correia utiliza‑se de conceitos basilares da Teoria da Imputaccedilatildeo Objetiva aduzindo que um ato (comissivo ou omissivo) que eacute imposto autorizado ou permitido natildeo pode ser simultaneamente antijuriacute‑dico e puniacutevel Logo franqueada a autoridade parental pela legislaccedilatildeo civil aduz estarmos diante da causa justificante do exerciacutecio de um direito (artigo 31ordm2b do Coacutedigo Penal)55 Em vieacutes anaacutelogo Jorge Dias preceitua que eacute possiacutevel em casos de ofensa corporal leve com propoacutesito educativo e exercido no interesse da prole justificar a sanccedilatildeo fiacutesica com fulcro no ldquopoder‑dever de educarrdquo56

Haacute ainda os que defendam ancorado nos mesmos fundamentos (previsatildeo na legislaccedilatildeo vigente) que a prerrogativa de conduzir a educaccedilatildeo dos filhos justificaria leves castigos corporais em garantia ao cumprimento de um dever legal (artigo 31ordm2c do Coacutedigo Penal)

Natildeo nos parece serem as diretrizes mais acertadas porque conforme amplamente visto no primeiro capiacutetulo a crianccedila haacute muito deixou de ser vista como um mero objeto mani‑pulado para ser tratada como um autecircntico detentor de direitos onde os compromissos dos pais foram revistos excluindo‑se da legislaccedilatildeo civil o poder de correccedilatildeo Assim natildeo vislumbramos autorizaccedilatildeo legal aos castigos corporais mas tatildeo somente a medidas disci‑plinadoras outras que natildeo envolvam intervenccedilatildeo fiacutesica

Noutro ponto um grupo minoritaacuterio utiliza‑se do ldquoconsentimentordquo como causa exclu‑dente de antijuridicidade (artigo 31ordm2d do Coacutedigo Penal) para legitimar os castigos cor‑porais

Em sua obra Filipe Monteiro bem delineia o tema preconizando que na hipoacutetese em anaacutelise estatildeo adimplidas as condiccedilotildees essenciais a fim de que o consentimento possa afas‑tar a ilicitude a) disponibilidade do bem juriacutedico (integridade fiacutesica) nos termos do artigo 149ordm do Coacutedigo Penal e b) ausecircncia de ofensa aos bons costumes (artigo 38ordm do Coacutedigo Penal) Neste toacutepico disciplina que para verificaccedilatildeo da aceitaccedilatildeo social do costume deve ser levado em conta a causa e o propoacutesito da accedilatildeo do agente ofensor aleacutem dos meacutetodos

54 MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 p 46

55 CORREIA Eduardo Op Cit p 356 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007 p385‑390

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

dos Tribunais 2011 p 229

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑2267 FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina

Coimbra 2005 p 104‑10568 BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa

AAFD 2008 p 1969 FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista do CEJ

Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 30770 FARIA Maria Paula Ribeiro de Op Cit p 330

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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utilizados Com isso garante que se o fim do castigo corporal for educacional e a sanccedilatildeo empreendida for moderada eacute plenamente possiacutevel que sejam considerados liacutecitos57

Entendemos que in casu o consentimento do menor deve ser desprezado Ora se a pes‑soa natildeo possui capacidade juriacutedica para realizar por si soacute atos da vida civil por que teria para consentir em sofrer intervenccedilotildees fiacutesicas violentas Noutro ponto dada a sobrepujanccedila fiacutesica e moral dos pais sobre os filhos ainda que tivesse capacidade acreditamos que ela estaria viciada

Ressaltamos ainda que Taipa de Carvalho defende a alternativa de que quando a moti‑vaccedilatildeo do agente natildeo for execraacutevel e os castigos natildeo forem revestidos de grande intensidade eacute possiacutevel a aplicaccedilatildeo da exculpante de falta de consciecircncia da ilicitude natildeo censuraacutevel Aduz o autor que natildeo haveria potencial consciecircncia da ilicitude do bem por acreditarem os genitores estarem no exerciacutecio de um direito a eles conferido58

Por derradeiro mas natildeo menos importante um grupo defende que os castigos corpo‑rais podem ser justificados por serem atiacutepicos (causa extintiva de tipicidade) em face da Teoria da Adequaccedilatildeo Social

A teoria em apreccedilo registra que um ato doloso pode subsumir‑se ao tipo penal mas em face da ampla aceitaccedilatildeo social da mesma natildeo ser materialmente tiacutepica O doutrinador Gui‑lherme de Souza Nucci bem destrincha suas caracteriacutesticas conforme se verifica in verbis

ldquoCom relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo social pode‑se sustentar que uma conduta aceita e aprovada consensualmente pela sociedade ainda que natildeo seja causa de justifi‑caccedilatildeo pode ser considerada natildeo lesiva ao bem juriacutedico tutelado

[]Parece‑nos que a adequaccedilatildeo social eacute sem duacutevida motivo para exclusatildeo

da tipicidade justamente porque a conduta consensualmente aceita pela so‑ciedade natildeo se ajusta ao modelo legal incriminador tendo em vista que este possui como finalidade preciacutepua proibir condutas que firam bens juriacutedicos tutelados Ora se determinada conduta eacute acolhida como socialmente adequa‑da deixa de ser considerada lesiva a qualquer bem juriacutedico tornando‑se um indiferente penalrdquo59

57 MONTEIRO Filipe Silva ndash Op Cit p 45‑4858 CARVALHO Ameacuterico Taipa Op Cit p 53959 NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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Especificamente quanto aos castigos corporais contra menores Joseacute Francisco Neves preconiza que existe uma toleracircncia social e cultural de ponderados flagelos fiacutesicos em Por‑tugal razatildeo pela qual eles continuam constituindo um meacutetodo de coerccedilatildeo juridicamente aceitaacutevel60 Mutatis mutandis os adeptos desse ponto de vista entendem que inexiste ofen‑sividade na puniccedilatildeo corporal perpetrada pelos genitores uma vez que apesar de constituir conduta tipificada em lei natildeo contraria o sentimento social geneacuterico de justiccedila

Embora a tese pareccedila atrativa parece‑nos que o entendimento supra opotildee‑se agrave tentativa da comunidade internacional bem como das recentes alteraccedilotildees legislativas do conjunto normativo portuguecircs (exaustivamente tratados no primeiro capiacutetulo deste ensaio) em pro‑pagar a ideia de inadmissibilidade de castigos fiacutesicos contra crianccedilas Entendemos por con‑seguinte impertinente falar em descriminalizaccedilatildeo das condutas pela toleracircncia com que a sociedade trata essas praacuteticas criminosas uma vez que o fato de parte da populaccedilatildeo admitir a praacutetica desse tipo de ato natildeo o generaliza culturalmente e nem tampouco tem o condatildeo de impedir a sua incidecircncia penal

Essas satildeo as principais correntes que tratam da aceitaccedilatildeo ou natildeo da intervenccedilatildeo fiacutesica disciplinadora dos pais sobre os filhos Conhecidos os apontamentos de cada uma resta‑‑nos questionar qual a concepccedilatildeo adotada pela doutrina majoritaacuteria portuguesa

O professor Fernando Silva explica que atualmente vem‑se entendendo que a legiti‑midade do castigo fiacutesico natildeo estaacute estritamente atrelada agrave descriccedilatildeo objetiva da accedilatildeo per‑petrada mas sim agrave caracterizaccedilatildeo da gravidade da lesatildeo resultante Com isso a doutrina preponderante vem dando tratamentos distintos conforme o tipo de violaccedilatildeo corporal pois que para efetivaccedilatildeo do tipo penal em comento eacute necessaacuterio que haja uma sobrecarga fiacutesica que corresponda a uma forma grave de cometimento ou a reiteraccedilatildeo de uma conduta que se verificada isoladamente eacute desprovida de lesividade61 Vejamos

ldquo[] sempre poderemos dizer que a proacutepria expressatildeo lsquomaus tratosrsquo pressu‑potildee lesotildees que pela forma como satildeo cometidas ou pelos efeitos que produzem atingem graves proporccedilotildees ou entatildeo esse maior desvalor adveacutem do caraacutecter repetido com que as mesmas satildeo inflingidas nas viacutetimasrdquo62

60 NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

61 SILVA Fernando ndash Op Cit p 31462 Idem Ibidem

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

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rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Percebemos portanto que pelo entendimento do autor castigos corporais educativos de baixa proporccedilatildeo se natildeo cometidos com habitualidade satildeo plenamente legiacutetimos Nou‑tras palavras natildeo haacute proibiccedilatildeo agraves intervenccedilotildees corpoacutereas iacutenfimas

Em norte idecircntico Taipa de Carvalho preceitua que para lesatildeo ao bem juriacutedico sauacutede haacute necessidade de que a agressatildeo se revista de alta magnitude ou em caso de baixa gravi‑dade que seja feita de forma repetida Acresce por oportuno que embora tenha o legisla‑dor retirado a obrigatoriedade de reiteraccedilatildeo deve esse aspecto ser levado em consideraccedilatildeo no crime de maus tratos sempre que a conduta extremamente leve por si soacute natildeo preencher nenhum tipo penal ou puder ser abarcada pelo princiacutepio da bagatela63

Nessa linha sustenta que os diminutas intervenccedilotildees fiacutesicas com fins educativos satildeo atiacutepicos por serem socialmente aceitaacuteveis em face do direito parental de correccedilatildeo Entre‑tanto eacute primordial que sejam preenchidos quatro requisitos que deveratildeo ser analisados com percuciecircncia pelo julgador necessidade do castigo razoabilidade da medida propor‑cionalidade agrave accedilatildeo indisciplinada e adequaccedilatildeo dos meios utilizados64

Maria Paula Faria acresce ainda um uacuteltimo requisito que seria a finalidade educativa da accedilatildeo65 A autora considera esse criteacuterio essencial tendo em vista que medidas austeras dos pais com intento finaliacutestico de extravasar a ira ainda que sem elevada intensidade natildeo poderiam deixar de ser punidos agrave luz da legislaccedilatildeo vigente

Logo objetivando o tema podemos dizer que para configuraccedilatildeo do crime previsto no artigo 152‑A eacute preciso a gravidade de condutas (intensidade elevada) ou a reiteraccedilatildeo das mesmas (quando as accedilotildees forem aparentemente inofensivas)

De fato essa parece ser o entendimento acadecircmico lusitano que prepondera jaacute que em sentido convergente manifestaram‑se Nuno Brandatildeo66 Elizabete Ferreira67 Teresa Beleza68 Conde Fernandes69 e Paula Faria70

Percebemos assim que em que pese o esforccedilo dos oacutergatildeos internacionais para aboli‑ccedilatildeo absoluta dos castigos fiacutesicos na educaccedilatildeo das crianccedilas ainda haacute um predomiacutenio na comunidade juriacutedica portuguesa da ideia de que pequenas medidas disciplinadoras corpo‑

63 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 51964 CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Op Cit p 53565 FARIA Maria Paula Ribeiro de ndash Op Cit p 60466 BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853

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Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 147emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

rais natildeo possuem grande repercussatildeo devendo portanto serem relevadas juridicamente e absolvidas

IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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IV Anaacutelise criacutetica e opinativa do hodierno cenaacuterio portuguecircs e propostas para erradicaccedilatildeo dos castigos corporais educativos Neste uacuteltimo capiacutetulo esboccedilaremos de forma muito sinteacutetica nossa visatildeo acerca do tema tratado no cenaacuterio juriacutedico portuguecircs e ousaremos analisar medidas que eventualmente poderatildeo ajudar a incutir na mentalidade da populaccedilatildeo uma visatildeo alternativa agrave enraizada necessidade de se educar com violecircncia Destacamos natildeo desconhecer que natildeo eacute comum emitir opiniatildeo em trabalhos acadecircmicos contudo por se tratar de um projeto a niacutevel de mestrado nos permitiremos essa ousadia

Pelo estudo supra restou evidente que ainda predomina a mentalidade de que os pais podem castigar seus filhos fisicamente como forma de controle da socializaccedilatildeo desde que natildeo cometam excessos

Pessoalmente filiamo‑nos agrave jaacute vergastada opiniatildeo de Armando Leandroque sustenta que o poder‑dever de educaccedilatildeo dos pais por oacutebvio continua a existir mas o processo corre‑tivo deve fugir da abusividade Nesse diapasatildeo os castigos corporais devem ser evitados ao maacuteximo uma vez que a caracterizaccedilatildeo do que ultrapassa os limites da razoabilidade natildeo eacute objetiva Natildeo por outro motivo ainda haacute grande divergecircncia acerca da resposta para o ques‑tionamento ldquoo que constitui maus tratosrdquo Seria uma leve equimose uma vermelhidatildeo uma marca duradoura ou somente aquela que deixa sequela permanente

Portugal continua ainda sem paracircmetros para distinguir as formas aceitaacuteveis de cas‑tigos corporais Aleacutem disso como ensina o professor Cardoso os limites de intensidade e formas de castigo aceitos variam exponencialmente entre os distintos grupos sociais e familiares71 razatildeo pela qual consideramos temeraacuterio deixar a livre arbiacutetrio dos pais inter‑pretar o que eacute uma intervenccedilatildeo corporal proporcional

Ateacute porque como exara Bessa o castigo fiacutesico muitas vezes eacute utilizado como uma vaacutel‑vula ao descontrole emocional servindo mais como um aliacutevio aos pais do que como um meacutetodo correcional72

71 CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

72 BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989 p115‑24

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

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crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

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Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Salientamos ainda o argumento sufragado no capiacutetulo antecedente de que se cons‑tituem crimes alguns comportamentos agressivos executados entre adultos soa contradi‑toacuterio que natildeo o sejam quando praticados pelos pais em relaccedilatildeo aos filhos menores Afinal hoje as crianccedilas satildeo liacutedimas detentoras de direitos

Isso natildeo significa natildeo obstante que o regime educativo deva se basear em ideais de liberdade irrestrita e incondicionada Ao contraacuterio crianccedilas precisam de limites imposi‑ccedilotildees de horaacuterios estabelecimento de haacutebitos e ateacute mesmo de castigos que vatildeo desde medi‑das de limitaccedilatildeo de liberdade (proibir a ida a algum evento ou que jogue videogame) ateacute a intromissatildeo compulsoacuteria quando necessaacuterio na privacidade

Nesta seara devem os genitores optarem pelas medidas que melhor mantenham a dig‑nidade dos menores que os amoldem agraves necessidades das relaccedilotildees sociais e que os permi‑tam tornarem‑se cidadatildeos honestos e aptos a lidarem com as adversidades iacutensitas agrave vida cotidiana Isso porque o modelo educacional deixou de ser hierarquizado e passou a pau‑tar‑se pela cooperaccedilatildeo (vide primeiro capiacutetulo) onde a crianccedila colocada no mesmo niacutevel de seus pais protagoniza opiniotildees em conformidade com a autonomia permitida pela sua idade A funccedilatildeo familiar portanto eacute proteger e orientar natildeo mais se impor de forma des‑poacutetica

Com essa mentalidade o Tribunal de Relaccedilatildeo de Coimbra jaacute declarou que o modelo cor‑recional deve pautar‑se por criteacuterios de disciplina positivos embasados na palavra incenti‑vadora e no exemplo73

Ocorre que incutir essa mentalidade na populaccedilatildeo eacute um processo extremamente moroso Ateacute porque a violecircncia exarada por pais muitas vezes eacute uma mera reproduccedilatildeo de experiecircncias sofridas o que demanda mais que uma simples norma que os impeccedila de continuar persistindo nesse tipo de comportamento

Com efeito jaacute na deacutecada de 70 em estudo realizado na Universidade de Oxford a pro‑fessora Margareth Lynch identificou alguns denominadores comuns aos pais que se utili‑zam da sobrepujanccedila fiacutesica para castigar seus filhos como a falta de confianccedila em si (que gera uma tentativa de transferir o descontentamento ao infante) a baixa toleracircncia agrave frus‑traccedilatildeo a solidatildeo a imaturidade as expectativas supervalorizadas depositadas nos menores e a crendice de que eacute extremamente valorosa uma educaccedilatildeo severa74

Logo percebemos que a agressatildeo contra menores muitas vezes eacute a externalizaccedilatildeo de alguma frustraccedilatildeo do adulto que natildeo consegue administrar bem suas proacuteprias sensaccedilotildees Com isso o castigo fiacutesico deixa de ldquoser visto como uma resposta normativa agrave lsquomaldadersquo da

73 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra de 28‑01‑09 Relator Jorge Raposo in wwwdgsipt74 LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed

Martin 1976 p 43‑46

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 149emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 150emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 149emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

crianccedila para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comporta‑mentos infantis normaisrdquo75

Impende frisarmos ainda que aleacutem de lento a alternacircncia de mentalidade eacute extre‑mamente complexa dada a ampla propagaccedilatildeo cultural de que castigos satildeo essenciais agrave educaccedilatildeo formadora Tal fato eacute comprovado pela Associaccedilatildeo Portuguesa de Apoio agrave Viacutetima (APAV) que registrou no ano de 2016 (ou seja muito recentemente e jaacute sob a eacutegide da atual legislaccedilatildeo de maus tratos) 826 casos de violecircncia fiacutesica contra crianccedilas a jovens o que cor‑responde a uma meacutedia de dois casos diaacuterios e dezesseis semanais Ficou constatado ainda que em mais de 70 dos casos assinalados a violecircncia perpetrada era continuada ou seja natildeo se restringiu a uma praacutetica isolada76

Salientamos aleacutem do mais que estatisticamente falando o nuacutemero de casos desco‑nhecidos por falta de denuacutencia eacute possivelmente muito maior do que se imagina (podemos afirmar com certa serenidade que se aplica agrave hipoacutetese em estudo a teoria criminoloacutegica da ldquocifra oculta da criminalidaderdquo77) Isso se deve a fatores diversos os quais podemos supor apenas a tiacutetulo exemplificativo a resistecircncia agrave imputaccedilatildeo de fato criminoso a familiares ou vizinhos a retroacutegrada cultura de que uma educaccedilatildeo eficaz precisa estar alicerccedilada por praacute‑ticas violentas a resistecircncia social agrave interferecircncia no modelo pedagoacutegico aplicado por cada grupo familiar o receio de represaacutelias a crendice de ineficaacutecia da Justiccedila dentre outros A ideia eacute simples o poder parental deve valer‑se da correccedilatildeo para educar e natildeo simplesmente para penalizar

Natildeo podemos deixar de levantar tambeacutem que os castigos fiacutesicos deixam marcas que vatildeo muito aleacutem da lesatildeo fiacutesica prejudicando a confianccedila reforccedilando a inseguranccedila e abrindo lacunas para que na vida adulta haja a reproduccedilatildeo dos comportamentos contra ela impe‑lidos na infacircncia

75 MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

76 ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

77 Cifra oculta da criminalidade eacute em breve siacutentese a diferenccedila entre a criminalidade real e a efetivamente perseguida isto eacute o grande degrau existente entre a quantidade de crimes praticados e os que seratildeo de fato inscritos nas estatiacutesticas oficiais Vera Regina Pereira de Andrade bem delineia o instituto ldquoOs delitos natildeo perseguidos que natildeo atingindo o limiar conhecido pela poliacutecia (pois natildeo se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer como fato estatiacutestico constituem a propriamente cifra oculta latente ou natildeo‑oficial E embora se reconheccedila a dificuldade de fornecer nuacutemeros precisos a seu respeito ainda que parciais satildeo suficientemente representativas para concluir que essa cifra negra ldquoeacute consideraacutevelrdquo e que ldquoa criminalidade real eacute muito maior que a oficialmente registradardquo ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 p 263

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 150emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 151emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 152emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

BIBLIOGRAFIAALBUQUERQUE Catarina ndash As Naccedilotildees Unidas a Convenccedilatildeo e o Comitecirc Disponiacutevel em httpswwwgddc

ptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdfALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e da

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

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DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

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COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 150emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Face ao exposto para que um dia em um futuro ainda incerto seja possiacutevel erradicar os castigos fiacutesicos disciplinadores contra menores mister que algumas medidas sejam toma‑das de forma eloquente em distintas aacutereas de atuaccedilatildeo

O documento ldquoA aboliccedilatildeo dos castigos corporais infligidos agraves crianccedilasrdquo78 elaborado pelo Conselho da Europa em setembro de 2008 como parte do programa ldquoConstruir uma Europa para e com as crianccedilasrdquo79 elenca trecircs frentes de accedilotildees principais para eliminaccedilatildeo da violecircncia educativa infantil quais sejam reforma legislativa reforma poliacutetica e sensibiliza‑ccedilatildeo Passaremos a tratar de cada uma

A reforma legislativa envolve a desautorizaccedilatildeo e a desaprovaccedilatildeo puacuteblica de castigos cor‑porais contra crianccedilas na legislaccedilatildeo diretriz o que engloba uma alteraccedilatildeo da hodierna lei civil portuguesa Nesse turno eacute preciso que deixe de existir espaccedilos normativos para apli‑caccedilatildeo de justificantes exculpantes ou causas extintivas de tipicidade aptas a impedirem a penalizaccedilatildeo de reprimendas parentais truculentas

Busca‑se portantouma ldquoalteraccedilatildeo qualitativa na percepccedilatildeo das crianccedilas e da infacircncia e da violecircncia contra as crianccedilasrdquo80 de modo que seja construiacutedo um arcabouccedilo juriacutedico isonocircmico que estenda agraves relaccedilotildees entre adultos e crianccedilas o mesmo tratamento dado agravequelas perpetradas exclusivamente entre adultos Afinal como ensina a professora Sot‑tomayor ldquoa lei deve contribuir para uma cultura de afeto e de respeito interpessoal nas relaccedilotildees familiares81

A segunda diretriz eacute a reforma poliacutetica que engloba medidas de prevenccedilatildeo e repressatildeo dos castigos corporais com fulcro na proteccedilatildeo do menor Tem por objetivo o estabeleci‑mento de medidas que envolvam cooperaccedilatildeo entre diversos setores sociais e organismos estatais nacionais e internacionais de modo que haja a formaccedilatildeo de um todo unitaacuterio vol‑tado agrave erradicaccedilatildeo das intervenccedilotildees fiacutesicas disciplinadoras contra infantes

A ideia eacute que estejam interligados os setores privados e puacuteblicos as organizaccedilotildees natildeo governamentais e os protagonistas do sistema poliacutetico (envolvidos com planejamento exe‑cuccedilatildeo e destinaccedilatildeo orccedilamentaacuteria de poliacuteticas sociais) Desta forma eacute possiacutevel a criaccedilatildeo de um programa uniforme e conjunto onde possam ser traccediladas metas e criados programas de avaliaccedilatildeo de desempenho aptos a aprimorarem as medidas poliacuteticas de estiacutemulo agrave cul‑tura de respeito pelas crianccedilas

78 Pode ser visualizado em httpsrmcoeint16806a456a79 Pode ser visualizado em wwwcoeintchildren80 CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

81 SOTTOMAYOR Clara ndash Op Cit p 128

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 151emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 152emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2011 ISBN 9788520338766

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 154emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra Coimbra Editora 2001 p 218‑219

ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑242

SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 ISBN 978972724563‑5

SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑129

TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 ISBN 9789723611939

UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpwwwendcorporalpunishmentorgassetspdfsstates‑reportsAustriapdf

ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917‑926

Fontes documentaisCONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007

Disponiacutevel em httphubcoeintPORTUGAL Diaacuterio da Repuacuteblica ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 nordm 86

Seacuterie I Parte A (10041976)PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66)

COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 151emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Por derradeiro mas natildeo menos importante chegamos agrave terceira diretriz que eacute a sen‑sibilizaccedilatildeo populacional de intoleracircncia agraves reprimendas coercitivas contra menores ainda que diminutas ou aparentemente inofensivas

A comoccedilatildeo da sociedade civil quanto agrave essencialidade da parentalidade positiva deve ser ampla e irrestrita indo desde a incursatildeo de disciplinas escolares que empoderem as crianccedilas como sujeitos de direitos ateacute a implementaccedilatildeo de campanhas publicitaacuterias cons‑cientizadoras Aleacutem disso mister se faz o acompanhamento de famiacutelias onde haacute indiacutecios de praacuteticas educacionais violentas Busca‑se assim que a aversatildeo agrave intervenccedilatildeo fiacutesica infantil e o estiacutemulo a meios pedagoacutegicos construtivistas chegue agrave maior quantidade de cidadatildeos possiacutevel de modo a incutir a ideia ndash ainda que vagarosamente ndash de que eacute plenamente pos‑siacutevel educar sem agressotildees

Diante de todo o exposto acreditamos ser possiacutevel na relaccedilatildeo pai‑filho o uso de uma abordagem natildeo coercitiva onde prepondere a disciplina afaacutevel com limites e puniccedilotildees que respeitem a integridade da crianccedila Eacute preciso natildeo obstante que a mudanccedila inicie dentro de cada pessoa de modo que seja possiacutevel fazer prevalecer sobre qualquer ensinamento ou preconceito radicado a dignidade da pessoa humana

V Conclusatildeo A tutela dos direitos da crianccedila em especial diante da praacutetica culturalmente aceita de apli‑caccedilatildeo de castigos corporais educativos passou por diversas etapas de evoluccedilatildeo ateacute que a comunidade juriacutedica internacional percebesse a importacircncia de que as legislaccedilotildees internas dos paiacuteses previssem a proibiccedilatildeo expressa dessa praacutetica com a cominaccedilatildeo da respectiva sanccedilatildeo penal

Em Portugal tambeacutem natildeo foi repentina a transmutaccedilatildeo da crianccedila como mera receptora das vontades e imposiccedilotildees parentais para uma legiacutetima detentora de direitos Esse processo iniciou‑se com a supressatildeo no ordenamento juriacutedico civil do chamado ldquopoder de correccedilatildeordquo prerrogativa que ainda que implicitamente garantia aos pais o direito de corrigir fisica‑mente A partir daiacute em especial diante das pressotildees exercidas pelo Conselho Europeu e pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas Portugal viu‑se obrigado a autonomizar um delito que tutelasse com propriedade as violecircncias contra crianccedilas oportunidade em que surgiu o crime de maus tratos (artigo 152ordm‑A do Coacutedigo Penal)

Esse tracircmite indubitavelmente foi essencial agrave consagraccedilatildeo de uma educaccedilatildeo voltada finalisticamente aos interesses dos menores Entretanto verificamos que somente ele natildeo foi suficiente

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 152emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

BIBLIOGRAFIAALBUQUERQUE Catarina ndash As Naccedilotildees Unidas a Convenccedilatildeo e o Comitecirc Disponiacutevel em httpswwwgddc

ptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdfALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e da

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 2ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2010 ISBN 9789725402955

ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997

ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑419

ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa AAFD 2008 ISBN 5606939000743

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 153emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989

BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑22

CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012

COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

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DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores

de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista

do CEJ Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 293‑340

FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina Coimbra 2005 ISBN 978‑9898835116

FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999 ISBN 853260508‑7

LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 111‑164

LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed Martin 1976 p 43‑56

MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 ISBN 9789723215915

Poder Paternal vs Autonomia da crianccedila e do adolescente In Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 1 Nordm 1 2004

MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 ISBN 9789729853241

NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2011 ISBN 9788520338766

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 154emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra Coimbra Editora 2001 p 218‑219

ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑242

SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 ISBN 978972724563‑5

SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑129

TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 ISBN 9789723611939

UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpwwwendcorporalpunishmentorgassetspdfsstates‑reportsAustriapdf

ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917‑926

Fontes documentaisCONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007

Disponiacutevel em httphubcoeintPORTUGAL Diaacuterio da Repuacuteblica ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 nordm 86

Seacuterie I Parte A (10041976)PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66)

COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 152emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

Com efeito a ausecircncia de um artigo na legislaccedilatildeo civil que proiacuteba de forma expressa e veemente os castigos fiacutesicos corporais ainda deixa brechas para que a doutrina majoritaacuteria avente exculpantes justificantes e causas extintivas de tipicidade para fundamentar a pos‑sibilidade de reprimendas educativas moderadas

Acreditar que a crianccedila iraacute assimilar as orientaccedilotildees com o uso de meios violentos eacute um grande equiacutevoco em especial em Portugal onde a sufragada razoabilidade dos castigos eacute analisada com um altiacutessimo grau de subjetividade deixando ao criteacuterio dos pais e dos julga‑dores a decisatildeo do que constitui castigo legiacutetimo Fica o menor assim refeacutem do bom senso alheio o que soa extremamente temeraacuterio agrave sua seguranccedila e sua dignidade

Por oacutebvio conforme verificamos a mera proibiccedilatildeo dos castigos tambeacutem natildeo seraacute sufi‑ciente a sua erradicaccedilatildeo sendo essencial a adoccedilatildeo de medidas de sensibilizaccedilatildeo e propa‑gaccedilatildeo de uma cultura que entenda os castigos corporais como danosos Somente atraveacutes da mudanccedila de mentalidade seraacute possiacutevel garantir um mundo em que as crianccedilas sejam educadas atraveacutes de castigos construtivos baseados no exemplo e na conscientizaccedilatildeo

Consideramos nesse contexto que este eacute um tema que ainda carece de longos deba‑tes envolvendo opiniotildees profissionais multidisciplinares que sejam guiadas a um fim que garanta agraves crianccedilas no miacutenimo uma igualdade de direitos com os adultos

Natildeo nos iludimos seja a aboliccedilatildeo total dos castigos fiacutesicos contra menores uma tarefa simples A estrada eacute longa e espinhosa mas o resultado seraacute florido em especial para as futuras geraccedilotildees de crianccedilas cujo exemplo adquirido em casa de relaccedilotildees alicerccediladas no diaacutelogo e no respeito muacutetuo poderaacute surtir efeitos na construccedilatildeo de um futuro livre de praacute‑ticas sociais violentas

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ptactividade‑editorialpdfs‑publicacoes8384criancapdfALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e da

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 2ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2010 ISBN 9789725402955

ANDRADE Vera Regina Pereira de ndash A ilusatildeo da seguranccedila juriacutedica do controle da violecircncia agrave violecircncia do controle penal Porto Alegre Livraria do Advogado 1997

ANTHONY Graziano ndash Why we should study sub abusive violence against children In Journal of Interpersonal Violence Thousand Oaks ISSN 0886‑2605 V 9 1994 p 412‑419

ASSOCIACcedilAtildeO PORTUGUESA DE APOIO Agrave VIacuteTIMA (APAV) ndash Estatiacutesticas APAV relatoacuterio anual 2016 [Consultado em 17 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpswwwapavptapav_v3imagespdfEstatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016pdf

BELEZA Teresa Pizarro ndash Violecircncia Domeacutestica Coletacircnea de Textos da Parte Especial do Direito Penal Lisboa AAFD 2008 ISBN 5606939000743

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 153emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989

BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑22

CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012

COHEN A ndash Proverbs London Soncino Press 1946CONSELHO EUROPEU ndash Directrizes do Conselho da Europa sobre as estrateacutegias nacionais integradas

de protecccedilatildeo das crianccedilas contra a violecircncia Disponiacutevel em httphappyslideorgdoc65148directrizes‑do‑conselho‑da‑europa‑sobre‑as

DIAS Cristina ndash A crianccedila como sujeito de direitos e o poder de correccedilatildeo In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 4 2008 p 87‑101

DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Penal Parte Geral Tomo I 2ordf ed Coimbra Coimbra Editora 2007DUARTE Maria de Faacutetima Abrantes ndash O Poder Paternal mdash Contributo para o Estudo do seu Actual Regime

Lisboa AAFDL 1994FERNANDES Ana Laura ndash Responsabilidades Parentais Poder de Correccedilatildeo na Educaccedilatildeo dos Filhos Menores

de Idade Coimbra Universidade de Coimbra 2015FERNANDES Plaacutecido Conde ndash Violecircncia Domeacutestica ndash Novo quadro penal e processual penal In Revista

do CEJ Lisboa ISSN 1645‑829X Nordm 8 (Especial ndash Jornadas sobre a revisatildeo do Coacutedigo Penal) 2008 p 293‑340

FERREIRA Maria Elizabete ndash Da intervenccedilatildeo do Estado na questatildeo da violecircncia conjugal em Portugal Almedina Coimbra 2005 ISBN 978‑9898835116

FOUCAULT Michael ndash Vigiar e Punir a histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 19ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1999 ISBN 853260508‑7

LEANDRO Armando ndash Poder paternal natureza conteuacutedo exerciacutecio e limitaccedilotildees Algumas reflexotildees de praacutetica judiciaacuteria In Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 1986 p 111‑164

LEVINER Pernilla ndash The Ban on Corporal punishment of children In Journal of Family Law Vol 32 1993‑1994 p 156

LYNCH Margareth ndash Risk factors in the child a study of abused children and their siblings Cambridge Ed Martin 1976 p 43‑56

MALTA Wilson Filipe da Silva ndash Castigo vs Abuso na Crianccedila a propoacutesito de trecircs casos 2013 Disponiacutevel em httpsrepositorio‑abertoupptbitstream10216622082Tese20Mestrado2020Wilson20Filipe20da20Silva20Maltapdf

MARTINS Rosa ndash Menoridade (in)capacidade e cuidado parental Coimbra Coimbra Editora 2008 ISBN 9789723215915

Poder Paternal vs Autonomia da crianccedila e do adolescente In Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 1 Nordm 1 2004

MONTEIRO Filipe Silva ndash O Direito de Castigo ou o direito dos pais baterem nos filhos Porto Colecccedilatildeo Minho Universitaacuteria 2002 ISBN 9789729853241

NEVES Joseacute Francisco Moreira das ndash Os maus tratos infantis na jurisdiccedilatildeo criminal Disponiacutevel em wwwverbojuridicocomdoutrinapenalmaustratosinfantishtml

NUCCI Guilherme de Souza ndash Manual de Direito Penal parte geral e parte especial 7ordf Ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2011 ISBN 9788520338766

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 154emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

OLIVEIRA Guilherme ndash A crianccedila maltratada In Temas de Direito da Famiacutelia 2ordf ediccedilatildeo aumentada Coimbra Coimbra Editora 2001 p 218‑219

ROXIN Claus ndash La calificacioacuten juriacutedico‑penal de la correccioacuten paterna In Revista de Derecho Penal y Criminologia Madrid ISSN 1132‑9955 Nordm 16 2005 p 233‑242

SEDLAK AJ Broadhurst DD ndash Third National Incidence Study of Child Abuse and Neglect (NIS‑3 Final Report) US Dept of Health and Human Services Contract No 105‑ 94‑1840 1996

SILVA Fernando ndash Direito Penal Especial ndash Crime contra as pessoas 3ordf Ed Lisboa Quid Juris Editora 2011 ISBN 978972724563‑5

SOTTOMAYOR Maria Clara ndash Existe um Poder de Correccedilatildeo dos Pais ndash A propoacutesito do Acoacuterdatildeo do STJ de 05‑04‑2006 Lex Familiae ndash Revista Portuguesa de Direito da Famiacutelia Coimbra ISSN 1645‑9660 A 4 Nordm 7 2007 p 111‑129

TOMAacuteS Catarina ndash Haacute muitos mundos no mundo Cosmopolitismo participaccedilatildeo e direitos da crianccedila Porto Ediccedilotildees Afrontamento 2011 ISBN 9789723611939

UNICEF ndash Corporal punishment of children in Aacuteustria [Consultado em 27 Agosto 2017] Disponiacutevel em httpwwwendcorporalpunishmentorgassetspdfsstates‑reportsAustriapdf

ZIEGERT Klaus A ndash The Swedish Prohibition of Corporal Punishment A Preliminary Report Journal of Marriage and Family ISSN 0022‑2445 V 45 Nordm 4 1983 p 917‑926

Fontes documentaisCONSELHO DA EUROPA ndash Abolishing corporal punishment of children Questions and answers 2007

Disponiacutevel em httphubcoeintPORTUGAL Diaacuterio da Repuacuteblica ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 nordm 86

Seacuterie I Parte A (10041976)PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66)

COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

E JURISPRUDEcircNCIA

Galileu ndash Revista de Direito e Economia e‑ISSN 2184‑1845 1o semestre 2018 p 128‑154 153emsp

DIEGO GOMES ALVESViolecircncia fiacutesica contra crianccedilas uma anaacutelise juriacutedica e criacutetica acerca do limite entre e o poder‑dever de educarhellip

BESSA et al ndash Abordagem psicoloacutegica da crianccedila In Pediatria ambulatorial 2ordf ed Belo Horizonte Cooperativa Editora e de Cultura Meacutedica 1989

BRANDAtildeO Nuno ndash A tutela penal especial reforccedilada da violecircncia domeacutestica In Julgar Lisboa ISSN 1646‑6853 Nordm 12 (Especial) 2010 p 21‑22

CARDOSO Antonio Carlos Alves ndash Maus tratos infantis estudo cliacutenico social e psicoloacutegico de um grupo de crianccedilas internadas no Instituto da Crianccedila do Hospital das Cliacutenicas da FMUSP [Tese de Doutorado] Satildeo Paulo Faculdade de Medicina da Universidade de Satildeo Paulo 2002

CARVALHO Ameacuterico Taipa ndash Comentaacuterio Conimbricense do Coacutedigo Penal Volume II Coimbra Coimbra Editora 2012

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Disponiacutevel em httphubcoeintPORTUGAL Diaacuterio da Repuacuteblica ndash Decreto de Aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo nordm CRP 1976 de 10‑04‑1976 nordm 86

Seacuterie I Parte A (10041976)PORTUGAL Diaacuterio do Governo ndash Decreto‑Lei nordm 47344 (Coacutedigo Civil) Nordm 274 (25‑11‑66)

COMENTAacuteRIOS DE LEGISLACcedilAtildeO

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