violência e ilusão de poder - o corpo como instrumento

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1 Mesa-redonda: VIOLÊNCIA E PODER: REPERCUSSÕES NO FEMININO Coordenação: Profa. Dra. Rita Maria Manso de Barros Violência e ilusão de poder: o corpo como instrumento Cintia Rita de Oliveira Magalhães 1 Rita Maria Manso de Barros 2 Resumo: A anorexia é definida pelos manuais psiquiátricos como um transtorno caracterizado por recusa da alimentação, cuja causa é o medo de ganhar peso, mesmo quando o sujeito está abaixo do nível considerado normal. Isso acontece em conseqüência da distorção da imagem corporal. Acredita-se que esses pacientes, por estarem inseridos em um contexto cultural marcado por um padrão em que o belo é sinônimo de magreza, tornam esse padrão um ideal a ser alcançado a todo custo. Visto como um mal contemporâneo, ele ganha cada vez mais visibilidade na Internet. Os blogs pró “Ana” e pró “Mia” se multiplicam e se transformam em pontos de encontro e espaço de discussão. Porém, apesar de acompanhar o discurso social de nossa época, a anorexia não é uma problemática contemporânea. Ela não é um mal exclusivo de modelos, atrizes ou daqueles que querem alcançar um determinado padrão estético. Nosso trabalho consiste em uma breve reflexão acerca da dessas questões a partir de pesquisa que vem sendo realizada no Programa de Especialização em Psicanálise e Saúde Mental da UERJ. Palavras-chave: Anorexia, psicanálise, contemporaneidade, clinica, beleza. A anorexia é definida pelos manuais psiquiátricos como um transtorno caracterizado por uma recusa da alimentação, cuja causa é o medo do indivíduo de ganhar peso, apesar deste, na maioria das vezes, estar abaixo de seu nível normal. Isso acontece em conseqüência de uma distorção da imagem corporal. Acredita-se que esses pacientes, por estarem inseridos em um contexto cultural marcado por um padrão em que o belo é sinônimo de magreza, tornam esse padrão um ideal e tentam a todo custo alcançá-lo. Atualmente, vivemos um momento de valorização de uma vida saudável. Tudo deve ser feito para que o corpo permaneça jovem por mais tempo. É importante ser magro, se exercitar e se alimentar bem, a fim de se alcançar, mais do que a saúde, a 1 Psicanalista, psicóloga. Aluna do Curso de Especialização em Psicanálise e Saúde Mental da UERJ. 2 Psicanalista. Professora Adjunta do Programa de Psicanálise da UERJ.

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A anorexia é definida pelos manuaispsiquiátricos como um transtornocaracterizado por recusa da alimentação, cuja causa é o medo de ganhar peso, mesmoquando o sujeito está abaixo do nível considerado normal. Isso acontece emconseqüência da distorção da imagem corporal. Acredita-se que esses pacientes, porestarem inseridos em um contexto cultural marcado por um padrão em que o belo ésinônimo de magreza, tornam esse padrão umideal a ser alcançado a todo custo. Vistocomo um mal contemporâneo, ele ganha cadavez mais visibilidade na Internet. Osblogs pró “Ana” e pró “Mia” semultiplicam e se transformam em pontos de encontro eespaço de discussão. Porém, apesar de acompanhar o discurso socialde nossa época, aanorexia não é uma problemática contemporânea. Ela não é um mal exclusivo demodelos, atrizes ou daqueles que querem alcançar um determinado padrão estético.Nosso trabalho consiste em uma breve reflexão acerca da dessas questões a partir depesquisa que vem sendo realizada no Programa de Especialização em Psicanálise eSaúde Mental da UERJ.

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  • 1Mesa-redonda: VIOLNCIA E PODER: REPERCUSSES NO FEMININOCoordenao: Profa. Dra. Rita Maria Manso de Barros

    Violncia e iluso de poder: o corpo como instrumento

    Cintia Rita de Oliveira Magalhes1Rita Maria Manso de Barros2

    Resumo: A anorexia definida pelos manuais psiquitricos como um transtornocaracterizado por recusa da alimentao, cuja causa o medo de ganhar peso, mesmoquando o sujeito est abaixo do nvel considerado normal. Isso acontece emconseqncia da distoro da imagem corporal. Acredita-se que esses pacientes, porestarem inseridos em um contexto cultural marcado por um padro em que o belo sinnimo de magreza, tornam esse padro um ideal a ser alcanado a todo custo. Vistocomo um mal contemporneo, ele ganha cada vez mais visibilidade na Internet. Osblogs pr Ana e pr Mia se multiplicam e se transformam em pontos de encontro eespao de discusso. Porm, apesar de acompanhar o discurso social de nossa poca, aanorexia no uma problemtica contempornea. Ela no um mal exclusivo demodelos, atrizes ou daqueles que querem alcanar um determinado padro esttico.Nosso trabalho consiste em uma breve reflexo acerca da dessas questes a partir depesquisa que vem sendo realizada no Programa de Especializao em Psicanlise eSade Mental da UERJ.

    Palavras-chave: Anorexia, psicanlise, contemporaneidade, clinica, beleza.

    A anorexia definida pelos manuais psiquitricos como um transtorno

    caracterizado por uma recusa da alimentao, cuja causa o medo do indivduo de

    ganhar peso, apesar deste, na maioria das vezes, estar abaixo de seu nvel normal. Isso

    acontece em conseqncia de uma distoro da imagem corporal. Acredita-se que esses

    pacientes, por estarem inseridos em um contexto cultural marcado por um padro em

    que o belo sinnimo de magreza, tornam esse padro um ideal e tentam a todo custo

    alcan-lo.

    Atualmente, vivemos um momento de valorizao de uma vida saudvel. Tudo deve

    ser feito para que o corpo permanea jovem por mais tempo. importante ser magro,

    se exercitar e se alimentar bem, a fim de se alcanar, mais do que a sade, a

    1 Psicanalista, psicloga. Aluna do Curso de Especializao em Psicanlise e Sade Mental da UERJ.2 Psicanalista. Professora Adjunta do Programa de Psicanlise da UERJ.

  • 2perfeio esttica. Contudo, esse modelo imposto, principalmente s mulheres,

    ignora as especificidades dos corpos, suas caractersticas fsicas peculiares

    sacrificando a sade.

    Visto como um mal contemporneo, a anorexia tem ganhado cada vez mais

    visibilidade. Na Internet, os blogs pr Ana e pr Mia se multiplicam e se

    transformam em pontos de encontro e espao de discusso para aqueles que querem

    perder toda gordura indesejvel. Porm, apesar de acompanhar o discurso social de

    nossa poca, a anorexia no uma problemtica contempornea. Ela no uma

    doena exclusiva de modelos, atrizes ou daqueles que querem alcanar um

    determinado padro esttico. Ela ganha uma roupagem especfica em nossa

    cultura, mas, apesar disso, no pode ser entendida como sintoma que se apresentar

    da mesma forma para todo e qualquer sujeito.

    H registros histricos de casos muito antigos de anorexia. Diversos trabalhos

    (BIDAUD, 1998; CORDS e WEINBERG, 2004) discutem as trajetrias de mulheres

    santas e beatas da Igreja Catlica que no sculo XVI se submetiam a jejuns to intensos

    que as levavam a morte. Na obra de Freud, um dos primeiros relatos de caso cujo

    principal sintoma a anorexia data de 1889: tratava-se de Emmy Von N. (FREUD,

    1889/1996) que apresentava um quadro de repulsa alimentar, para quem o ato de comer

    estava relacionado a recordaes repugnantes. Quando criana sua me, como forma de

    punio, a obrigava a comer a carne deixada no almoo, horas depois, quando esta j

    estava fria e a gordura congelada. Anos mais tarde, Emmy cuidou de um irmo que

    tinha tuberculose. Este escarrava sobre os pratos na escarradeira posta sobre a mesa ao

    lado da cama. Outro episdio relacionado ao sintoma seria o fato de partilhar as

    refeies com um outro irmo que tinha uma doena contagiosa. Ela conta a Freud que

    tinha muito medo de pegar os talheres do irmo por engano.

  • 3O caso Emmy Von N. vem corroborar as idias descritas por Freud em um

    artigo, de 1893, no qual ele fala sobre as paralisias motoras orgnicas e histricas

    (FREUD, 1893/1996). Nele Freud defende, mais uma vez, a idia de que a incapacidade

    de descarregar o afeto ligado a um determinado evento ou impresso psquica o que

    torna a lembrana deste evento um trauma e, conseqentemente, a causa de sintomas

    histricos, como a anorexia.

    Em 1895, numa das cartas dirigidas a Fliess (FREUD, 1895/1996), Freud

    comea a esboar algumas idias sobre o luto e a melancolia. Nessa carta, Freud afirma

    que a anorexia uma melancolia em que a sexualidade no se desenvolveu. Segundo

    ele, o que impede uma paciente, com este sintoma, de se alimentar , simplesmente, a

    perda de apetite que corresponde, em termos sexuais, perda de libido.

    A questo da Oralidade

    Logo aps a publicao dos Trs Ensaios (FREUD, 1905/1996), Freud

    acrescenta grande parte de suas consideraes sobre as teorias sexuais infantis,

    admitindo sem hesitao a sexualidade infantil como ponto central em sua teoria, o que

    teve grande importncia na evoluo da teoria da libido. S a partir da suposio de

    uma sexualidade infantil que se tornou possvel fazer associaes entre uma aparente

    necessidade biolgica e um movimento de cunho sexual.

    Freud ento faz uma analogia entre a pulso sexual e a pulso de nutrio, sendo

    a primeira representada pela libido e a segunda pela fome. Em 1905, Freud define a

    pulso como o representante psquico de uma fonte endossomtica de estimulao que

    flui continuamente, para diferenci-la do estmulo, que produzido por excitaes

  • 4isoladas vindas de fora. Instinto3, portanto, um dos conceitos da delimitao entre o

    anmico e o fsico (FREUD, 1905/1996: 159 ).

    Nesse momento - da primeira tpica - Freud elabora sua teoria da sexualidade na

    qual ope as pulses sexuais s pulses de autoconservao. O termo pulso de

    autoconservao ainda no aparece de forma clara nesse trabalho, porm a idia que

    representa est implcita quando se fala de necessidades que so as funes de

    importncia vital como a fome. As pulses sexuais surgem apoiadas nessas

    necessidades orgnicas e, posteriormente, passam a ser interpretadas atravs da busca de

    satisfao no prprio corpo desde o momento em que funcionam de maneira auto-

    ertica at o ponto em que incluem o eu e o objeto.

    Um exemplo disso seria o da criana que chucha, isto , suga com deleite. O

    prazer proporcionado por esse ato experienciado pela primeira vez quando o beb

    mama no seio da me. Nessa situao, seus lbios funcionariam como uma zona

    ergena, cuja estimulao pelo fluxo do leite causaria a sensao de prazer. Esse ato de

    suco com a boca pode persistir ao longo da vida sem o propsito de nutrio, ou seja,

    o sujeito utilizaria qualquer parte de seu corpo, como lbios ou lngua, por exemplo, a

    fim de obter prazer. Freud demonstra a que, a princpio, a satisfao da zona ergena

    est associada funo nutricional - uma atividade que est relacionada preservao

    da vida. S, posteriormente, satisfao sexual e necessidade nutricional se tornaro

    independentes.

    Ainda nesse trabalho, Freud afirma que muitas de suas pacientes que

    apresentavam nojo da comida, vmitos histricos, entre outros sintomas relacionados

    nutrio, praticavam o chuchar quando crianas. Isso ocorre porque o recalque age

    3 O termo instinto utilizado na Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas deSigmund Freud, porm, nesse trabalho ser adotado, em seu lugar, pulso. Utilizaremos, tambm, eu nolugar de ego.

  • 5sobre o ato de chuchar se estendendo pulso de nutrio devido dupla funo da

    zona labial: a sexual e a nutricional.

    As organizaes da vida sexual, nas quais as zonas genitais ainda no assumiram

    seu papel predominante, so classificadas por Freud como organizaes pr-genitais.

    Segundo ele, na organizao oral-canibalstica a atividade sexual e a ingesto de

    alimentos ainda esto atreladas, ou seja, elas possuem o mesmo objeto. Neste caso, o

    alvo sexual consiste na incorporao do objeto modelo do que mais tarde ir

    desempenhar, sob a forma de identificao, um papel psquico to importante"(FREUD,

    1905/1996: 187). Portanto, a oralidade surge atravs da alimentao como a primeira

    expresso da sexualidade

    e o fato de a zona labial ser patrimnio comum de duas funes a razo porque a ingesto de alimentos gera uma satisfao sexual, esse mesmo fator nospermite compreender que haja distrbios na nutrio quando as funesergenas da zona comum so perturbadas, o que nos leva a pensar que naanorexia houve uma fixao na satisfao oral fazendo com que haja umarelao entre a comida e a satisfao sexual (FREUD, 1905/1996: 187).

    Em 1914, Freud escreve um artigo sobre o narcisismo (FREUD, 1914/1996), no

    qual defende idias que se contrapem s concepes anteriormente sustentadas. O que

    torna esse texto um divisor de guas o fato de mostrar a fragilidade de sua teorizao

    sobre as pulses do eu ou de autoconservao e as pulses sexuais, marcando assim

    o comeo de uma transio da primeira para a segunda tpica.

    At esse momento, Freud defendia que as pulses poderiam ser divididas em

    duas categorias: as do eu ou de autoconservao, responsveis pela preservao do

    indivduo, mas sem que houvesse uma relao com o ertico; e as sexuais que buscam a

    obteno de satisfao ertica, servindo preservao da espcie. Porm, o que se pode

    notar que, ao introduzir os conceitos de libido do eu e libido do objeto, Freud admite

    que o eu pode ser investido como objeto ertico, demonstrando que as pulses do eu

  • 6tambm possuem um carter sexual. Essa mudana de perspectiva corrobora a

    proposio defendida por ele, em alguns de seus trabalhos, de que os distrbios da

    oralidade, neste caso a anorexia e a bulimia, possuem uma relao com a sexualidade do

    sujeito.

    No ano seguinte, Freud escreve sobre os destinos da pulso (FREUD,

    1915/1996). Neste trabalho, assim como em 1905, a pulso definida como um

    conceito situado na fronteira entre o mental e o somtico (FREUD, 1915/1996: 127),

    descrevendo seus quatro componentes que so a presso, a fonte, o objeto e a meta. Ele

    reafirma, tambm, a fragilidade de sua primeira teoria pulsional e, mais uma vez,

    insinua a possibilidade de uma futura reformulao:

    Propus que se distingam dois grupos de tais instintos primordiais: os instintosdo ego, ou de autoconservao, e os instintos sexuais. Mas essa suposio notem status de postulado necessrio ela no passa de uma hiptese de trabalho, aser conservada apenas enquanto se mostrar til, e pouca diferena far aosresultados do nosso trabalho de descrio e classificao se for substituda poroutra. A ocasio para essa hiptese surgiu no decurso da evoluo dapsicanlise, que foi empregada pela primeira vez nas psiconeuroses, ou, maisprecisamente, no grupo descrito como neuroses de transferncia (histeria eneurose obsessiva); estas revelaram que, na raiz de todas as afeces desse tipo,se encontra um conflito entre as exigncias da sexualidade e as do ego(FREUD,1915/1996: 129).

    Finalmente, em 1920, Freud chega uma concepo final de sua teoria das

    pulses (FREUD, 1920/1996). Nesse trabalho, que faz parte da srie das obras

    metapsicolgicas, ele apresenta a dicotomia entre pulses de vida e pulses de morte

    Eros e pulso de morte. Segundo Freud, nossa vida psquica governada pelo Princpio

    de Prazer e pelo Princpio de Realidade. O primeiro tem como objetivo evitar o

    desprazer e proporcionar o prazer, a partir da reduo de uma tenso considerada

    desagradvel. O segundo surge em seu lugar e tem o papel de regulador, adiando e

    desviando a satisfao em funo do mundo externo. O Princpio de Prazer

  • 7substitudo pelo Princpio de Realidade por uma influncia das pulses de

    autoconservao do eu, porm o princpio de realidade:

    no abandona a inteno de fundamentalmente obter prazer; no obstante, exigee efetua o adiamento da satisfao, o abandono de uma srie de possibilidadesde obt-la, e a tolerncia temporria do desprazer como uma etapa no longo eindireto caminho para o prazer. Contudo, o princpio de prazer persiste porlongo tempo como o mtodo de funcionamento empregado pelas pulsessexuais, que so difceis de educar, e, partindo dessas pulses, ou do prprioego, com freqncia consegue vencer o princpio de realidade, em detrimentodo organismo como um todo (FREUD, 1920/1996: 20).

    Freud afirma que, apesar dos processos psquicos estarem sob a dominncia do

    Princpio de Prazer, existem diversas formas de se transformar algo que em si

    desagradvel em um tema a ser trabalhado de forma a ser mais suportado pelo eu. Isso

    exemplificado com a brincadeira criada por seu neto de um ano e meio. Nesse jogo, que

    ele chama de Fort-da, o menino lana um carretel em baixo de seu bero e depois o

    puxa. A brincadeira consistia no desaparecimento e retorno como uma forma de

    elaborao de uma situao aflitiva, ou seja, a ausncia da me. Marcando assim, uma

    grande realizao cultural, pois ao permitir que a me se afaste sem protestos, o menino

    renuncia satisfao pulsional gerada por essa ausncia. Com o jogo, a criana sai da

    situao passiva, na qual era dominada pela experincia e assume um papel ativo. Sendo

    assim, as brincadeiras das crianas so uma forma de ab-reagir intensidade da

    impresso causada por determinados eventos.

    As pulses do eu e as pulses sexuais, nesse texto, esto diretamente

    relacionadas com a vida e a morte. As pulses do eu, segundo Freud, surgem quando a

    matria inanimada toma vida e buscam restaurar esse estado anterior de inanimao,

    demonstrando que exercem uma presso no sentido da morte. J as pulses sexuais

    exercem uma presso no sentido de prolongar a vida, pois sua meta unir clulas

    germinativas, que dependem dessa unio para permanecerem vivas.

  • 8A partir da observao do desenvolvimento libidinal das crianas, a psicanlise

    observou que a libido freqentemente se afasta do objeto e se dirige ao eu. Isto levou

    concluso de que o eu o verdadeiro reservatrio da libido e a partir dele que ela se

    estende aos objetos. A distino entre os dois tipos de pulses passa, ento, de

    qualitativa para topogrfica.

    Para concluir esse trabalho, Freud destaca que a vida mental tende a se esforar

    para manter constante, reduzir ou eliminar a tenso externa; e isto feito com o auxlio

    do Princpio de Prazer. O reconhecimento desse fato justificaria a crena na existncia

    da pulso de morte. Por fim, ele afirma que descobriu que uma das mais antigas e

    importantes funes do aparelho psquico:

    conter os impulsos instintuais que com ele se chocam, substituir o processoprimrio que neles predomina pelo processo secundrio, e converter sua energiade investimento livremente mvel em um investimento principalmentequiescente. Enquanto essa transformao se est realizando, nenhuma atenopode ser concedida ao desenvolvimento do desprazer, mas isso no implica asuspenso do princpio de prazer. Pelo contrrio, a transformao ocorre emfavor dele; a sujeio constitui o ato preparatrio que introduz e assegura adominncia do princpio de prazer (FREUD, 1920/1996: 73).

    Nota-se que esse texto marca uma grande virada conceitual na obra de Freud,

    virada essa que vinha sendo anunciada desde 1914 em seu trabalho sobre o Narcisismo.

    A leitura de Lacan nos ajuda a dar sentido ao que foi dito por Freud, pois esclarece

    importantes pontos referentes pulso, mais especificamente da pulso oral.

    Segundo Lacan (LACAN, 1964/1988), Freud observa que seja qual for o objeto

    em torno do qual gira a pulso, no atravs deste que ela se satisfaz. No caso da pulso

    oral, por exemplo, no o alimento, ou sua lembrana, ou at mesmo a lembrana do

    seio da me, que importa. Lacan diz que, na verdade, a pulso contorna o objeto, objeto

    a, causa do desejo, ou seja, nenhum alimento satisfar a pulso, somente o contorno do

    objeto faltante.

  • 9Segundo Jacques-Alain Miller (MILLER, 1997), para Lacan, apesar do objeto da

    pulso oral ser a comida, o seu objetivo o gozo, que pode ser satisfeito sem qualquer

    alimento. A anorexia, por exemplo, ilustra todo o alcance da pulso oral, pois o

    anorxico nada come, e deriva da um gozo oral que elevado at o nvel de ser letal:

    at o nvel da pulso de morte. A anorexia representa o mximo do gozo oral

    (MILLER, 1997: 27- 28).

    No seminrio sobre a relao de objeto (LACAN, 1956-1957/1995), Lacan

    elucida as questes referentes pulso, escolha de objeto e relao entre anorexia e

    desejo partindo do conceito de frustrao. Ele comea afirmando que a frustrao no

    a simples recusa de um objeto de satisfao de uma necessidade. Lacan fala da

    frustrao no nvel da relao primitiva da criana com sua me. Segundo ele, essa

    frustrao s pode ser pensada como uma recusa do smbolo do amor, que ele denomina

    de dom. Quando Freud trata do carter fundamental da relao de amor, isso implica

    no s um objeto, mas um ser. Nesse sentido, para Lacan, Freud est querendo dizer que

    h uma ordem simblica, ou seja, a satisfao a que ele se refere nada mais do que

    uma satisfao simblica. Ao substituir a satisfao simblica pela satisfao da

    necessidade, esta sofre uma transformao.

    Quando o objeto real se torna ele prprio signo na exigncia de amor, isto , naprocura simblica, acarreta imediatamente uma transformao; o objeto real setorna smbolo. O que assume nfase e valor simblico a atividade, o modo deapreenso, que pe a criana na posse do objeto (LACAN, 1956-1957/1995:187).

    Para Lacan, a oralidade uma manifestao pulsional da fome, logo ela carrega

    uma libido que conserva um corpo prprio. Nesse ponto, ele afirma que Freud se

    interroga sobre que tipo de libido essa: do eu ou sexual. Lacan responde a isso dizendo

    que, ao mesmo tempo em que essa libido visa a conservao do indivduo, ela tambm

    constitui uma atividade erotizada. Conseqentemente, ela libido no sentido prprio, e

  • 10

    libido sexual (LACAN, 1956-1957/1995: 187). Para Lacan, mesmo que o objeto real

    no seja o seio da me, mas uma mamadeira, por exemplo, este objeto no perder seu

    lugar na dialtica sexual, de onde se origina a erotizao da zona oral (LACAN,

    1956-1957/1995: 188). Ele demonstra que, na verdade, o mais importante que a

    atividade assume uma funo erotizada no campo do desejo.

    Sendo assim, Lacan entende que em sintomas como a anorexia mental

    justamente isso que acontece. No um objeto real que d a satisfao, mas um objeto

    simblico. Segundo ele, o anorxico aquele que come nada, o que diferente de no

    comer. Isso significa que no h uma negao da atividade. A criana, ao saborear essa

    ausncia, esse nada, faz uma inverso que consiste em transformar a me, de quem

    depende, em algum que depende dela. Nota-se aqui, uma passagem da passividade

    para a atividade como a que foi exemplificada por Freud, quando este nos apresentou o

    jogo do Fort-da.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BIDAUD, E. Anorexia: mental, ascese, mstica. Uma abordagem psicanaltica. Riode Janeiro: Companhia de Freud, 1998.

    CORDS, T. A. e WEINBERG, C. Santas anorxicas na histria do Ocidente: ocaso de Santa Maria Madalena de Pazzi. In: Revista Brasileira de Psiquiatria, 2002.V.24 (3), p. 157-158.

    FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Casos clnicos: Sra. Emmy von N. (1889). In:Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol.II. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 82-133.

    ______. Algumas consideraes para um estudo comparativo das paralisiasmotoras orgnicas e histricas. (1893). In: Edio Standard Brasileira das ObrasPsicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.199-216.

    ______. Rascunho G: melancolia (1895). In: Edio Standard Brasileira das ObrasPsicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.246-253.

  • 11

    ______. Trs ensaios sobre a teoria sobre da sexualidade (1905). In: Edio StandardBrasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. VII. Rio deJaneiro: Imago, 1996, p. 119-229.

    ______. Sobre o narcisismo: uma introduo (1914). In: Edio Standard Brasileiradas Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV. Rio de Janeiro:Imago, 1996, p. 77-108.

    ______. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: Edio Standard Brasileira dasObras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,1996, p. 117-144.

    ______. Alm do Princpio de Prazer (1920). In: Edio Standard Brasileira das ObrasPsicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996,p. 13-75.

    LACAN, J. O Seminrio. Livro 4. As relaes do objeto (1956- 1957). Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1995.

    ______. O Seminrio. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise(1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

  • 12

    ANEXOS

    Trechos retirados de sites da Internet que promovem o encontro de anorxicos ebulmicos.

    Quinta-feira, 13 de Setembro de 2007OLA........SOU SUA AMIGA,,,,,,MEU NOME : MIAOl. Meu nome,querida; Bulimia. Mas para nos tornarmos mais ntimas, podeme chamar de "Mia". Eu serei sua amiga de emergncia, aquela que nas horasque o cinto apertar, poder contar comigo. Quase sempre acompanhada junto nossa querida amiga Anna, e assim ns seremos poderosas, Ns moderamosvc ao nosso gosto, e assim vai conhecer o caminho da perfeio, s vezesficarei com cime da ateno que vc dar Anna, mas sei que quando a trai a mim que voc recorrer, aps suas terrveis compulses.Quando comer mais que uma baleia, e sentir-se enorme, sou eu que lheajudarei curvando seu corpo pia, ou ao vaso sanitrio, fazendo com muitafora; forando sua garganta para que toda aquela comida nojenta saiadescarga abaixo, e assim vc se sentir limpinha, renovada e um belo estmagode pena. Porque vc no pode por tudo a perder... Porque Ana e eucontrolamos sua mente para que chegues perfeio.Isso garota, curve-se perante mim e use seus dedos, sua escova de dente ouat mesmo um pedao de pau, deixe tudo sair at a ltima gota,quero sanguesaindo de sua garganta e estmago.No chore, assim mesmo o caminho daperfeio. doloroso.Agora levante-se sente-se um pouco, relaxe.Veja comovoc se sente bem melhor, no mesmo?Est tudo limpo em voc, agora sim, boa garota...Sabia que ia compreender o que se passa.Vc est indo no caminho certo. Ainda falta muito e por isso trate de seempenhar...Estou aqui para o que der e vier qualquer coisa s me chamar.Abraos. Mya.

    Tera-feira, 11 de Setembro de 2007HOJE EU ASSUM QUE SOU ANAMIA - 1. diaQuerida Leitora,Permita me apresentar. Meu nome, ou como sou chamada, pelos tambmchamados doutores Anorexia. Anorexia Nervosa e meu nome completo, masvoc pode me chamar de Ana. Felizmente nos podemos nos tornar grandesparceiras. No decorrer do tempo, eu vou investir muito tempo em voc, e euespero o mesmo de voc.No passado voc ouviu seus professores e seus pais falarem sobre voc. Diziamque voc era to madura, inteligente, e que voc tem tanto potencial. E eupergunto, aonde tudo isso foi parar? Absolutamente em lugar algum!Voc noe perfeita, voc no tenta o bastante! Voc perde muito tempo pensando efalando com amigos!Logo, esses atos no sero mais permitidos.Seus amigos no te entendem. Eles no so verdadeiros. No passado, quando inseguramente voc perguntou a eles:- Estou gorda?- Eeles te disseram: - No, claro que no! - voc sabia que eles estavammentindo! Apenas eu digo a verdade! E sem falar nos seus pais!Voc sabe que

  • 13

    eles te amam e se importam com voc, mas uma parte porque eles so pais,e so obrigados a isso. Eu vou te contar um segredo agora: Bem no fundo, elesesto desapontados com voc. A filha deles, que tinha tanto potencial, setransformou em uma gorda, lerda, e sem merecimento de nada!Mas eu vou mudar isso.