vinicius bittencourt - o criminalista

95

Upload: eduardo-ribeiro-dos-santos

Post on 29-Dec-2014

1.135 views

Category:

Documents


262 download

TRANSCRIPT

Page 1: Vinicius Bittencourt - O Criminalista
Page 2: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

o CRIMINALISTA

Trata do crime sem castigo, que assim permanece a despeito da prova testemunhal, do corpo de delito, da exibição da arma do crime, da própria confissão do criminoso e r

ainda dojulgamento regular a que ele faz questão de submeter-se para poder depois repousar tranqüilamente sobre a intangibitidade da coisa julgada. Demonstra, em todos os pormenores, o planejamento e a execução de três homicídios juridicamente impuníveis, concluindo que o leigo não tem razão quando pensa ou afirma que não há crime perfeito.

t: obra de notável rigor dia lético, célere, instrutiva e fascinante. Seus leitores, principal­

,mente se forem ju(zes, advogados, promotores ou estudantes de Direito, percorrerão com interesse todas as suas páginas e o farão sem esforço algum, porque é realmente veloz a sucessão dos fatos não apenas descritos, mas, sobretudo, psicológica e juridicamente inter­pretados.

~. EDITORALTDA.

VINICIUS BITTENCOURT

~.

CRIMINALISTA

~. EDITORALTDA.

Page 3: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Capa

Copyright 1979

VINICIUS 81TTENCOURT

Carlos Ferreira

Impressão

Arte Final - Ind.Gráficas e Editora

JANC

Editora e Publicidade Ltda. Rua Barão de Itapemirim, 209 - Sala 311

29.000 - Vitória - E.S.

ÀJô

Aos curiosos do Direito Penal

Page 4: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

ri;

ti

PREFÁCIO

"O Criminalista" é livro de poucas páginas e muita substância. Pela rapidez da progressão, pelo teor científico da urdidura e pela seqüência imprevisfvel dos eventos, não tem simi· lar entre as obras do gênero. Rapta, desde a primeira página, a mente do leitor, e não a liberta um só instante, porque não re~ pete situações, não contém palavras inúteis, nem retrata banali­dades.

Os crimes que descreve são juridicamente perfeitos e não apenas sem rastros ou de apuração difícil, como os versa­dos no romance policia! comum, onde tudo se reduz ã busca de provas para a condenação do culpado. "O Criminalista", ao contrário, trata do crime sem castigo, que assim permanece a despeito da prova testemunhal, do corpo de delito, da exibi­ção da arma do crime, da própria confissão do criminoso e, ainda, do julgamento regular a que ele faz questão de subme­ter-se para poder depois repousar t~nqúi!amente sobre a intan­gibilidade da coisa julgada, Demonstra, em todos os pormenores o planejamento e a execução de três homicídios juridicamente impuníveis, concluindo que o leigo não tem razão quando pensa ou afirma que não há crime perfeito,

E claro que o autor, deduzindo temas amplos e profun­dos, poderia ter facilmente duplicadO, ao menos, o número das páginas deste livro. Mas, então, teria sacrificado um dos seus mé­ritos principais, que consistiu exatamente na eliminação de palavras supérfluas, na exclusão de incidentes irrelevantes e na podadura das repetições que cansam o leitor, sintetizando a

Page 5: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

obra para que pudesse ser lida em um único impulso, como demanda a época vertiginosa em que a mesma vem à luz.

Os estudantes, os curiosos do Direito Penal e todos aqueles que se preocupam com esse alarmante fenômeno social que é o crime, cujas explosões, cada vez mais contínuas e pode­rosas, vêm abalando os alicerces de todas as comunas, certamen­te ouvirão neste livro o eco de indagações que já fizeram e que nele enco,ntrarão resposta satisfatória.

"O Criminalista", portanto, é uma obra preciosa, de no­tável rigor dialético, instrutiva e fascinante. Seus leitores, prin­cipalmente se forem ju fzes, advogados, promotores ou estudan­tes de Direito, percorrerão com interesse todas as suas páginas e o farão sem esforço algum, porque é realmente veloz a sucessão dos fatos não apenas descritos, mas, sobretudo, psicológica e jurid icamente interpretados.

João Batista Cerutti

ADVERTENCIA

Os personagens deste livro são fictfcios e os fatos imagi­nanos< Qualquer semelhança entre essas figuras supostas e pessoas vivas ou mortas, ou qualquer analogia entre os fatos narrados e outros que possam ter ocorrido no mundo real será fruto exclusivo de mera coincidência. '

Por outro lado, como advertiu Pitigrilli em seu inimitá­vel "L'Esperimento di Patt", ê poSSível que nos futuros proces­sos em que eu venha a lidar como advogado ou a responder como réu, meus oponentes se estribem neste livro para escarne­cerem de minhas alegações com o caviloso argumento de que eu não acredito na Justiça.

A verdade, porém, é que escrevendo sobre aberrações forenses, provei exatamente o contrário, reverenciando por via índireta a Justiça, porque se a regra fora o desacerto dos julga­dos, os erros judiciários não aproveitariam à literatura de impacto, por não causarem mais sensação alguma.

Só o extravagante, insólito ou inaudito, aquilo que rara­mente ocorre, pode emocionar ou comover, Se o erro judiciário tem esse condão, se surpreende, espanta ou alarma, e se por isto foi escolhido como tema desta obra, ela é a prova melhor da crença do autor na infabilidade da Justiça,

Vitória, Junho de 1979

Vinicius Bittencourt

7

Page 6: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

1

A sala de audiências regurgitava de curiosos que haviam aflu ído ao Palácio da Justiça para assistir aO interrogatório de um advogado famoso que, há cerca de vinte dias, ocupava as colunas frontais de toda a imprensa paulista como indigitado autor de um uxoricídio sensacional.

Havendo oompletado o meu curso de Direito no mês anterior e desejando especializar-me em criminologia, aguardava com mais ansiedade que qualquer dos presentes, a chegada do acusado. O evento estarrecera a opinião pública, dívidindo-a em duas facções, a maior das quais não admitia a culpabilidade- do indiciado. Ele mesmo, fogo no começo do inquérito policial, sustentara com firmeza a sua inocência, demonstrando clara­mente a fragilidade das provas em que a acusação se estribava, Sabia-se, ademais, que malgrado a decretação de sua custódia preventiva, havia o réu dispensado os criminalistas que o acom­panhavam desde a abertura do inquérito e isto despertara na mente popular a crença de que a denúncia já havia sido pulveri­zada. Aguardava-se, assim, que logo após o interrogatório o acusado fosse posto em liberdade.

De minha parte, com a inexperiência de meus vinte e cinco anos, estava totalmente fascinado pela atuação do réu diante dos inquisidores policiais a quem desmoralizara impíe· dosamente com sua dialética irresistível. Máis do que por sim· pies curiosidade, estava eu ali, pois, como um aluno estudioso, à espera de um mestre capaz de brindar-me com uma aula prática de inestimável valor para a minha futura carreira de criminalista.

9

Page 7: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

- Afastem-se. Deixem passar o juizl - bradou em voz áspera ° escrivão, abrindo caminho por entre os curiosos e ingres­sando na sala, seguido de perto pelo magistrado e pelo promotor.

- Tragam o réu. - ordenou o juiz, após sentar-se em sua poltrona.

Minutos depoís, os "flashes" fotográficos e o rumor de passos apressados anunciaram que o acusado já estava por perto. De fato, logo a seguir entrou ele na sala, escoltado por dois militares~~" Sua aparência era a mesma das fotografias que há três semanas vinham sendo diariamente estampadas nos jornais da cidade. Uma lividez impressionante e um ar de profunda tristeza nimbavam, todavia, com uma auréola de mártir, aquela estranha personalidade que irradiava inteligência por todos os ângulos de que fosse examinada,

Revelando completa indiferença para com os súcubos do sensacionalismo que se aglomeravam compactamente para vê-lo e ouvi-lo, o acusado sentou-se na cadeira que ° escrivão lhe indícou, permanecendo em silêncio enquanto aguardava o inter­rogatório.

o magistrado, passando osautosao escrivão,ordenou-Ihe que lesse em voz alta o texto integral da denúncia. Cumprida essa formalidade, dirigiu-se pela primeira vez ao imputado, di­zendo-lhe:

~ O réu deve declarar seu nome, estado civil e profissão.

o acusado respondeu:

- Jorge Muniz, brasileiro, viúvo, advogado.

o juiz, como no intuito de dar satisfação aos circunstan­tes.disse:

- Embora pareça ocioso, face à profissão que o réu exer­ce, cumpro o de'Jer legal de adverti-lo de que não está obrigado

10

a responder às perguntas que eu lhe fizer; seu silêncio, todavia, poderá ser interpretado em prejuízo de SU'3 defesa,

o réu fez COm a cabeça um sinal de assentimento.

Abrindo o processo na folha vestibular, o magistrado co­meçou o interrogatório:

~ E verdade o que se alega na denúncia?

o acusado, COm voz-clara e segura, respondeu:

~ A denúncia é verdadeira, em todos os seus termos,

Murmúrios de estupefação percorreram a sa!a eo próprio juiz não conseguiu esconder seu desapontamento. O promotor, que antes do acusado responder, riscara um fósforo para acen­der o cigarro, teve de jogá-lo precipitadamente ao solo para evi­tar que a chama lhe queimasse os dedos. Estava preparado para uma negação frontal de autoria e aquela resposta absurda o perturbara completamente.

- Pode o acusado declinar os nomes de outras pessoas que, de qualquer modo, tenham concorrido para a prática do delito?

o réu, fixando no juiz um olhar intraduz(vel, respondeu:

- Nada mais tenho a declarar. Peço que seja encerrado o interrogatório.

o juiz perguntou-lhe, então, se tinha advogado Ou se, como lhe facultava a lei, iria encarregar-se de sua própria defesa.

Exasperando ainda mais a confusão dos presentes, todos surpreendidos com o desfecho melancólico da audiência, o acusado respondeu tranqüilamente:

- Não tenho advogado, nem me defenderei.

11

Page 8: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

l.

~ Neste caso, - disse o juiz - como é de seU conheci­mento, estou obrigado a nomear-lhe um defensor.

Percorreu a vista pela sala, pareceu hesitar um instante, IS!

fez finalmente um sinal para que eu me aproximasse. Já me conhecia desde os tempos de acadêmico, quando eu andava pelo Forum estudando processos. Perguntou-me, quando já me acha­va a um passo de sua cátedra:

_ Doutor Nilo, aceita patrocinar a defesa do réu como seu advogado dativo?

Até hoje, quando tanto tempo já transcorreu após aque­le extraordinário evento que, praticamente, decidiu a minha carreira de criminalista pergunto a mim mesmo como foi que tive forcas para responder-lhe que aceitava o encargo. Não sei e provavelmente nunca saberei como pude, eu que não ,ti~ha experiência alguma, acolher sem o menor protesto a gravlsslma responsabilidade de patrocinar uma causa que era, sem qualquer dúvida a mais espetacu!ar que o foro criminal conhecera nos último~ anos. Por mais que reconstitua mentalmente as circuns­tâncias do momento, não encontro outra explicação para aquela minha temeridade, além da propensão instintiva que fizera de mim um advogado nato, com tendências vocacionals tão marcan+ tes que induziram minha pobre mãe a exaurir-se em trabalhos penosos, empolgada pela certeza de meu futuro sucesso numa arte tão dif(cil. De qualquer forma, por culpa do acaso ou da afoiteza, em minhas mãos tombara a liberdade de um homem de vasta cultura, advogado habilíssimo, ~ue por um inexpl1cá;,e! capricho entendera de confessar um crime sobre o qual, at:: ? momento do interrogatório, pairavam dúvidas mais que SUfICI~ entes para garantjrem~lhe a absolvição,

Esmagado, portanto, pela tremenda responsabilids.de, assinei como se fora um autômato o termo de compromisso e vi-me subitamente envolvido pelos repórteres, sendo fotogra­fado por todos .Q,$ !ados, crívado de perguntas sobre o cu,:so_que pretendia dar ao processo e sobre a sorte de meu constltumte.

12

Somente quando a sala se esvazIOU por completo, foi que dei conta da gravidade de minha situação. Aquele processo, em menos de quatro meses, subiria a julgamento pelo Tribunal do Júri, cumprindo-me funcionar na defesa, com as câmaras de televisão focalizadas sobre mim e os microfones dispostos a poucos centímetros da tribuna, captando todos os equívocos que a minha inexperiência iria prodigalizar a um público irreve­rente e inexorável em suas sentenças sobre o mérito dos orado­res. E não poderia, ao menos, sustentar a inocência do acusado, Ele mesmo confessara a prática do delíto, só restando ao seu defensor excogitar circunstâncias atenuantes que lhe minoras­sem a pena. Tudo indicava, ademais, que eu r,ão iria contar com sua colaboração. A inabalável firmeza com que confessara em juízo a autoria e a culpabilidade, seu pedido de encerramento do interrogatório e sua terminante recusa em constituir advoga­do ou defender-se pessoalmente, eram provas cabais de que nem sequer iria receber de bom grado a minha atuação no processo. Por outro lado, o simples fato de discursar perante um aud itórto que venerava a eloqüência do homem que eu teria de defender e que permaneceria mudo durante a sessão de julgamento, era bas­tante para desencorajar advogados de prest(gio, quanto mais a mim que ainda não funcionara no Tribunal do Júri. Fosse qual fosse o empenho com que eu me dedicasse à causa, não conse~ guiria, por certo, nem absolver o acusado nem convencer ao pú­blico de que a sua condenação inevitável emanara de circunstân­cias alheias à minha inexperiência ou incapacidade.

Com o raciocínio acossado por essas apreensões, desci a escadaria do Palácio da Justiça, e como não tinha escritório nem o que fazer pelas ruas, tomei o ônibus e segui para a minha residência.

Logo que cheguei, minha mãe desligou a máquina de costura, baixou o volume do rádio e disse-me entre sorrisos:

- Já ouvi a notícia. Ainda hoje, seu nome estará em to~ dos os jornais. Você fez carreira rapidamente. Até seu paI, se vivo fosse, teria inveja de você.

13

Page 9: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Beijando-a nas faces, respondi tristemente, certo de que iria desapontá-la:

- Não há dinheiro algum na causa; apenas trabalho e o risco de ficar para sempre liquidado como criminalista.

Minha mãe, com seu incomparável bom senso, fixou-me um olhar bondoso e d ísse:

- Não preciso de muito dinheiro; só o bastante para manter aceso o fogão.

- Acontece que nessa causa não há dinheiro nem mes­mo para o gás. O réu é muito rico, mas não quer ser defendido.

- Sei de tudo, Você esquece, no entanto, que ganhará uma publicidade que vale mílhões e que atrás dessa causa virão as compensadoras.

- Já pensei nisso. Tenho medo, todavia, de decepcionar a opinião pública, perder a confiança em mim mesmo e ter de cavar um cargo de comissário de polícia ou outro qualquer, para não morrermos de fome.

- Tire isso da cabeça. Seu pai, que não tinha o seu ta­lento, nunca precisou de função pública para viver. Sempre foi exclusivamente advogado e nunca teve uma causa de tamanha repercussão como essa que você vai patrocinar, logo depoís de diplomado.

Era difCcíl resistir à sua diatética. Minha mãe passara a vida a secretariar meu pai em todos os seus trabalhos jurídicos e, como verifiquei mais tarde nas lides forenses, entendia muito mais de Direito do que um grande número de advogados que desfilavam sua empáfia pelos corredores do Palácio da Justiça. De qualquer forma, entretanto, eu não estava disposto a deixar que me imolassem naquele processo, Conhecia as minhas limi­tações e sabia que dificilmente poderia fazer boa figura. O melhor seria mesmo declinar do mandato e ir cautelosamente

14

abrindo caminho com causas mais modestas que, com o passar do tempo, iriam fatalmente surgindo< Preparei-me, pois, para no dia seguinte comparecer ao Forum e pedir ao juiz que nomeasse outro advogado mais experiente para patrocinar a defesa de Jorge Muniz.

Naquela noite, por força da insistência de minha mãe e das hesistaç5es que conturbavam a minha vontade, não canse­gu i dormir tranqü itamente. Acordei várias vezes com um senti­mento de frustração e desânimo que felizmente se dissipava depois que eu conseguia convencer-me de que, logo na manhã seguinte, após a renúncia do mandato, estaria livre daquela res­ponsabilidade que impensadamente assumira.

Pela primeira vez na vida, pude ver a cara do homem que nos trazia o leite todas as manhãs. Durante anos seguidos, exce­to quando meu pai era vivo, minha mãe costumava deitar-se logo após o jantar, acordando sempre pela madrugada do dia seguinte. Quanto a mim, ficava estudando até multo tarde da noite, levantando-me, em conseqüência, depois das oito horas da manhã. Naqueledia, entretanto, embora houvesse, como sem­pre, dormido muito tarde, levantei-me cedo da cama e fiquei meditando sobre as ocorrências do dia anterior. Decidira exo­nerar-me do encargo, mas uma estranha fascinação me impelia a ir visitar o homem cuja defesa estava ainda sob minha respon­sabilidade. Por mais que me esforçasse, náo podia admitir uma renúncia sumária. Tinha, ao menos, de ouvir o meu constituint:e, a quem, talvez, mesmo não lhe patrocinando a defesa, pudesse prestar outra assistência qualquer.

Assim raciocinando, c.omecei a pensar nas causas que po­deriam ter determinado sua súbita decisão de confessar o crime e seu inacreditável propósito de não se defender da acusação, nem permitír que colega algum o auxiliasse de maneira efícaz, Uma idéia, então, começou a preponderar em minha mente. Teria ele Sido dominado por um acesso de loucura? Não era rara a ocorrência de transtornos mentais em homens de gênio. Ele vinha de uma batalha enervante com a polída e a imprensa que se prolongara por vários dias. De um momento para outro,

15

Page 10: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

passara certamente a ser odiado por todos os familiares da víti­ma. Não era, pols, absurda a hipótese de que sua mente houves­se, por fim, entrado em colapso. Ao pensar nessa alternativa, não pude continuar na poltrona. Passeí a andar de um lado para outro da pequena sala, numa inquietação que não cessou duran­te todo o tempo em que permaneci em casa, tentando organizar meus pensamentos.

Agora, quando tudo aquilo já passou, não restando em meu íntimo senão a lembrança dos avanços e retrocessos de minha mente, numa fase de iniciação e incertezas, é que percebo que naquele exato momento o processo me conquistara inapela­velmente. Daf em diante, embora eu não interpretasse, na época, os meus sentimentos com a devida clareza, nada, absolutamente nada, conseguiria desvincular-me daquela causa cujos percalços estava, então, disposto a arrostar, fosse qual fosse o prejuízo.

Minha mãe notava perfeitamente a minha lntranqüHida­de, maS não dizia palavra alguma, talvez com a secreta intenção de deixar que eu exercítasse minhas forças mentais, acostuman­d0-me a encontrar, sem aux(ljo externo, a solução para OS meus próprios problemas.

Depois do café, ingerido em silêncio, vesti-me e saí com destino à Casa de Detenção, determinado a avistar-me com meu constituinte e a associar-me a ele nas vicissitudes do seu processo,

16

2

Quando o carcereiro descerrou as grades da prisão espe­cial em que se encontrava Jorge Muniz, ° quadro que se me de­parou foi o de um apartamento de hotel modesto, lIumínado satisfatoriamente por pequenas aberturas guarnecidas por barras de ferro. Uma cama estreita, um armário, duas cadeiras e uma pequena mesa, constituíam todo o mobiliário do aposento.

Estirado na cama, os braços cruzados sobre o peito, numa atitude de profunda meditação, ° preso não fez movi­mento algum com a minha chegada, nem revelou, por qualquer expressão convencional, o menor interesse em minhi3 visita.

Um tanto desconcertado com a imobilidade e o mutismo de meu constituinte, que eu, apesar de tudo, dada a minha con­dição de noviço, não podia aceitar sem um sentimento de humi­Ihação, sentei-me na cadeira mais próxima da cama e, enquanto meditava como iniciar a entrevista, fique! a examiná-lo física e psicologicamente por alguns segundos.

Moreno, de estatura um pouco acima da mediana, cabe­los castanhos, finos, lisos e escassos, a começarem do topo de uma larga fronte, nariz aquilino, boca inexpressiva, faces leve· mente encovadas e uma palidez cadavérica, seriam os traços Inconcludentes daquela fisionomia se não estivessem ali, animan­do-a com um fulgor intenso, dois olhos que lampejavam deses­peradamente, como faróis de um barco sacudida pela tormenta. Se tivesse de definir aquela personalidade com fulcro nos dados que a sua aparência me revelara nesse primeiro encontro, tê-la-ia

17

Page 11: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

descrito como um estranho fenómeno de supressão c...omp!eta das forças instintivas, cuja influência, mercê da maldade, da dor ou do desencanto, havia sido substituída por uma apatia extre­ma, insensível a todos os reclamos da natureza humana, Apenas aqueles o lhos, inquietos e brilhantes, pareciam lutar ainda contra o naufrágio total de uma estrutura anímica que as tempestades da vida teriam destroçado completamente.

Depois de algum tempo, animei-me- por fim a dizer:

- Sou seu advogado dativo. Vim buscar informações que me habilitem a funcionar no processo.

o acusado, fixando-me os olhos, descruzou os braços e fo f aos poucos se levantando até sentar-se na cama. Quando já se acomodara na nova posição, disse~me:

- Como o senhor não foi nomeado por mim, creio que só o juiz, autor da designação, poderá ter algum interesse em auxiliá-lo no cumprimento dessa tarefa. Não perdi ainda a capa­cidade jurídica de administrar meu patrimônio e, se quisesse, os maiores criminalistas do País estariam, a esta altura, revolvendo suas bibliotecas para demonstrarem que a linha sinuosa é o ca­minho mais curto entre dois pontos. Nada pedi, nada desejo e de nada preciso. A única coisa (lue o senhor poderia fazer por mim seria deixar-me em paz, se é que isso, a paz, ainda poderei encontrar na vida.

Ouvindo essas palavras, que não me foram ditas em tom insultuoso, mas que, obviamente, liquidavam toda possibilidade de um entendimento entre nós, levantei-me e ao estender-lhe a mão em despedida achei que devia confortá~!o e disse-lhe:

Se o senhor mudar de idéia e. Quiser confiar em quem não veio aqui interessado em seu dinheiro nem na proje­ção da causa, mas por simples impulso vocacional. queira comu­nicar-se com este endereço que o atenderei imediatamente, a despeito de tudo,

18

Jorge Muniz susteve na mão esquerda o cartão que lhe estendi, e sem olhá-lo, sem pronunciar qualquer palavra, sem fazer gesto algum de agradecimento, deixou que eu me retirasse do cárcere, cuia porta, logo a seguir, sobre ele se fechou.

Um tanto aturdido com o que ocorrera nessa entrevista, segui para o centro da cidade e como a hora era oportuna, entrei no Palácio da Justiça e dirigi-me diretamente ao cartório do júri para ali formular um pedido ao juiz, desistindo do encar­go. Quando cheguei, fui logo avistado pelo escrivão que supon­do estar eu em busca dos autos, fez-me sentar junto à sua escri­vaninha e sobre a mesma depositou, para meu exame, o volu­moso processo,

Embora meu propósito, àquela altura, não pudesse ser outro senão o de renunciar à designação do magistrado, aquele processo exercia sobre mim tão grande fascfnio que não pude reprimir a ânsia de examiná~lo, peça por peça. Sofregamente, e sem poder explicar a estranha paixá'o que aqueles papéis excita­vam em meu espírito, fui lendo, linha por linha, o que neles estava escrito, e olhando, como se fossem de personagens len­dárias, as fotos que aqui e ali surgiam por entre as folhas dos autos. Não sei ao certo quanto tempo permanecI sentado, nem dei conta das pessoas que transitavam pelo cartório.

A denúncia, cujo inteiro teor eu ainda hoje seria capaz de repetir, sem omissão sequer de uma vírgula, continha, em resumo, a descrição de que uma dama da atta sociedade, casada há mais de um decênio com o acusado, fora encontrada morta, com evidentes sinais de envenenamento, havendo o exame de corpo de delito constatado a presença de elevada carga de T·61 nos despojos da vttima e, entre outras mais antigas, uma punctura recentísslma de injeção endovenosa no seu braço direito. As demais provas colhidas no inquérito afirmavam que a injeção havia sido aplicada pelo próprio acusado, o qual, logo a segu!r, retirara·se da mansão e partira para Santos, onde, no dia seguinte, foi detido pela polícia, negando terminantemente a autoria do crime. Várias testemunhas depuseram no inquérito, inclusive a filha da vítima e uma empregada que esterilizara a

19

Page 12: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

seringa e vira o acu:moo aplicar a injeção. Outros elCll'0rrtOS. do processo inforn,Bvam que o réu, apesar de sua notoriedade como advogado, era relativamente pobre quando contraiu casa~ rnento com a dama assassinada, tendo toda sua fortuna advindo desse consórcio.

As fotos da morta, a despeito do momento impróprio em que foram batidas, retratavam uma mu!her de notável bele­za, beirando os quarenta anos, de expressão p!ácida e risonha, talvez por força das características letárgicas do veneno empre­gado em sua eflminação.

A denúncia, como é óbvio, imputava ao acusado a práti­ca de veneffcio doloso, com a agravante de ter sido consumado contra cônjuge, e ainda qualificado pelo motivo torpe, o qual decorreria de haver Jorge Muniz pretendido, com a ação lutuosa, apossar-se da fortuna da mulher. Pedia, em conseqüência, a pena máxima, e forçoso era admitir-se, tudo nos autos indicava que o acusado a merecia.

Ê bem de ver que no interrogatório policial e!e sustenta­ra com bravura a sua inocência, esgrimindo entre outros argu­mentos o de qúe ninguém seria tão estúpido ao ponto de injetar veneno na vítima, estando presentes a flIha da mesma e outra pessoa. Na realidade, declarou e!e, a lnjeção aplicada teria sido de um sonífero a cujo uso a v{tlma se acostumara, tornando~se até mesmo indispensável à sua tranqüilídade, sobretudo nas noi~ tes em que ele dormia fora. Esses argumentos, entretanto, caí­ram por terra com o exame da própria ampo!a da injeção vene­nosa, onde estava gravado o símbolo clássico da caveira sobre as duas tíbias cruzadas e, além disso, com a confissão cabal que o acusado fizera em juízo, declarando serem verdadeíras as Imputações contidas na denúncia.

Como eu consumira todo o tempo de expediente do car-10rlO lendo e relendo os autos, não pude, naquela oportunidade, ingressar com a petIção que me excluiria da causa. Por instâncias do escrivão que desejava fechar a porta para ir almoçar, devolvi finalmente o processo e com a cabeça confusa voltei para casa.

20

Não tive coragem de dizer a minha mãe que meus servi­ços haviam sido dispensados. Ela, também, vendo-me abatido, acreditou talvez que o peso do encargo estivesse mortificando meu espírito e, bondosamente, não me fez pergunta alguma.

Mal tinha eu, no entanto, começado a almoçar, quando um guarda do presídio bateu à minha porta e me transmitiu um recado de Jorge Munlz pedindo meu comparecimento à Casa de Detenção, com a ríspida advertência de que eu não me demoras~ se porque ele poderia mudar de idéia.

21

Page 13: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

3

Voltando a avistar-me com o acusado, já agora a seu pe­dido e conhecendo quão graves eram as provas de sua culpabili­dade, senti-me pela primeira vez como seu verdadeiro patrono, sem direito a uma desistência honrosa da causa e, talvez por isso, minha timidez era bem maior do que na oportunidade anterior.

Recebeu-me com a mesma apatia, com a mesma expres­são mórbida de quem luta para sobreviver sem Uma determina­ção firme, aparentemente aceitando qualquer solução como obra fnelutável do destino.

Logo que me viu sentado, perguntou-me:

- Que entende o senhor por "Erfolgshaftung"?

Descrevi com proficiência, expondo, citando e compa­rando, o que os velhos penatistas alemães sustentavam e os mo­dernos Impugnam sob e!."Se título, e pergunteHhe se esta deveria ser a tese de sua defesa,

Olhando-me inexpressivamente, respondeu:

- Não, de forma alguma. Não creio que haja tese para minha defesa, A pergunta fOI !anç,ada a esmo, apenas para testar seus conhecimentos e saber se o senhor está em condições Inte!ectuais de tirar vantagem dessa causa. Sei que tudo está perdido e por isto pensei que, quando nada, alguém poderia be­neficiar-se dos acontecimentos, Acredito que o senhor poderá

23

Page 14: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

fazê-lo. Não haverá, entretanto, dinheiro algum nessa causa, salvo, é daro, a indenização de seu tempo e despesas.

- Porque o senhor pensa que um processo dessa nature­za, sem esperança de absolvição, possa beneficiar a um princi­piante como eu?

- Se não percebe, desista logo da especialidade, Durante dez anos, talvez não haja outro processo igual em São Paulo. .Para quem souber tirar proveito, esta causa significa publicidade constante, meses a fio. Bastará que eu diga que acredito na sua capacidade, para que o senhor passe logo à frente de muitos outros que há anos forcejam por uma reputação.

- Sim. Mas o senhor esquece que a possibilidade de absolvição é praticamente nula e que a minha reputação, nascen­do com essa causa, poderá também ser por ela sepultada,

- Sei disso. Todavia, enquanto a decisão não for proferi­da, o senhor centralizará as atenções e irá obtendo êxitos em outros processos que compensarão, no julgamento público, o insucesso do meu. Além disto, existe coisa muito mais impor­tante do que a matéria dos autos, que o senhor poderá expandir em um romance e futuramente publicar, com enorme sucesso. A história do criminoso do ano. As minhas memórias ...

Interessado. perguntei-lhe:

- Porque entendeU, finalmente, de confiar-me a causa e, ao que parece, já agora muito mais do que ela?

- Você é tão moço, parece sincero, está começando. , .

- Muito bem. Agora, se o assunto não !he desagrada, va­mos estudar em conjunto o sistema de defesa que devo adotar e as fontes de prova a que posso recorrer.

- t: inútil. Não lhe darei nenhum subsídio material ou doutrinário sobre a tarefa que o senhor vai realizar e que, desde

24

11 ti

logo, 'fica sob seu exclusivo critério. Dar-lhe-ai, isto sim, uma narração completa dos antecedentes que conduziram minha mulher ao tümulo e me arrojaram neste presídio, ou, pior ainda, no cárcere maisterrfvel que, desde então, aprisiona meu espfrito. A história é longa e não pode ser resumida. Contrate uma este­nógrafa e venha aquí amanhã, que começarei a ditar.

Ao dizer a última palavra, creio que Jorge Muniz se liber­tou de algum constrangimento porque sua fISIonomia impassível recebeu, ainda que levemente, uma excitação quase similar à que estimula o homem normal quando se dispõe a realizar algu­ma tarefa importante. Chegou mesmo a levantar-se da cama, aproximando-se de uma das grades por onde deixou que o olhar vagasse pela amplitude do céu coberto de nuvens escuras.

Despedimo-nos, então.

25

Page 15: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

4

Na noite daquele mesmo dia, conversando com minha mãe sobre a possibilidade de encarregá-Ia de taqulgrafar a narra­tiva de Jorge Muniz, estranhei vê-la recusar a tarefa, pois sempre buscava serviços com cujos proventos pudesse manter a casa. Mais tarde, foi que vim a compreender quais eram seus verdadei~ res propósitos, Enquanto estudava, percebi que ela se afastou por uns dez minutos, voltando depois com uma jovem vizinha que me indicou para executar o trabalho.

Na manhã seguinte, eu e a moça comparecemos ao presí­dio. Enquanto ela diligenciava uma posição cómoda para colher o ditado, fiquei a observar as condições em que o acusado vivia. Surpreendi-me de não encontrar no aposento Um livro sequer. No armário, somente uma pasta de couro, cigarros e caixas de comprimidos que logo identifiquei como analgésicos e hipnó' ticos. Sempre limpo, mas sempre com a barba por fazer, quem ali ° visitasse teria a impressão de que eie pouco se locomovia, deixando'5€! ftcar em meditação profunda horas a fio, estirado ao longo da cama de ferro.

Depo is dos cumprimentos e da apresentação da secretá· ria que ele aprovou com indiferença, Jorge Muniz começou a sua narrativa:

"Rio de Janeiro, tarde escaldante, vinte anos atrás. Eu estava sentado, na pensão onde vIvia, em conversa com duas amigas que ali também moravam. Ela entrou, à procura de alguém. Tinha menos de vinte anos. Elástica, risonha, irradiando

27

Page 16: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

juventude S, não sei se por peculiaridade exclusiva ou se pela representação que dela fiz, as suas formas sensuais cHlu íam-se numa expressão de ternura que afugentava de meu pensamento qualquer ideação pecaminosa. Sua cabeça loura e seu sorriso alvinitente semelhavam-se a uma lâmpada acesa. Essa primeira impressão soldou-se em minha mente, embora sem provocar a ânsia de aproximação que o seu porte, a sua afabilidade, a sua graça e a minha juventude justificariam.

"Naquele tempo, estava eu ainda no segundo ano do curso de Direito, ensinava idiomas para manter-me e vivia mise­ravelmente naquela pensão, sem desejar empolgar·me em dema­sia com impulsos amorosos, para não comprometer a minha carreira, trágica ambição que eu não tinha forças para colocar em segundo plano, Mas, de qualquer forma, aquela primeira visão fixara-se tenazmente em meu esp ír/to.

"Uma ou duas semanas após já éramos amigos, já nos beijávamos, já nos queríamos muito mais do que na realidade nos convinha, porque o nosso passionalismo tendia a precipitar­nos em um casamento precário que eu não poderia defender e conservar a não ser abdicando de meu futuro, Fosse eu dotado dessa virtude que a maioria dos homens possui de obedecer impensadamente aos reclamos do coração, sem alarmes premo" nitõrios, e tudo teria sido fácil. Teríamos sido mais felizes, ela hoje não estaria morta e eu não estaria aqui. Entretanto, como já avencei, sempre me perseguiu um sentimento de que adestran­do minhas forças intelectuais a vida fluiria para mim mais tran~ qüila, sem tropeços, sem vexames e humilhações. Terrível enga­no. Hoje posso comprovar. À medida que a gente se ilustra, var distendendo as cordas da sensibilidade e essa tensão permanente provoca do!orosas vibrações do espírito, submetendo nossos nervos e as fibras de nosso coração a roturas inelutáveis.

"Porém, como naquela época eu assim não entendia, evitei abismar-me em um casamento suicida, ma!grado amasse perd ida mente aquela mulher e não tivesse dÚVida alguma de seu amor por mim. Embora não goste de esmiuçar ororrências mate­riais quando exponho alguma coisa, porque aprendi que elas não

28

retratam com fidelidade a vida, que melhor se compreende atra­vés da avafiação de seus transes emocionai.>, an ímicos, sentimen·· tais, é preciso que eu mencione alguns fatos de nosso relaciona· mento, para que se saiba que realmente nascemos um para o outro e que uma misteriosa fatalidade teria que, mais cedo ou mais tarde, unir as nossas vidas, mesmo ao preço de nossa des­truição futura.

"A primeira intuição que tive da estranha força desse desígnio ocorreu dois dias após o nosso encontro inicial, porque tendo-a perdido de vista, não sabendo seu nome e endereço e não querendo ainda investigar a respeito, exatamente por temer o seu encanto, quis o acaso que em cidade tão populosa nos encontrássemos a pouca distância um do outro, quando acende­ram as luzes de um cinema que estava com a sua lotação quase esgotada. Como se isso não bastasse, era carnava! na semana seguinte, e eu, entendendo como Schopenhauer que a quantida­de de ruído que o homem suporta é inversamente proporcional à sua inteligência, aceitei um convite de meu professor de Direi­to Penal para passar com ele aqueles dias turbulentos em Teresó­polis, então uma vila, a fim de auxiliá~lo na tradução de textos que ele teria de citar em uma .obra que estava escrevendo, Por inacreditável que pareça, naquela mesma casa onde eu estava trabalhando com o mestre, ela apareceu à noite para juntar-se às filhas do professor, suas amigas, e irem a um clube local. Sem que combinássemos coisa alguma, sem que soubéssemos previa­mente onde um ou outro poderia estar, acabávamos sempre jun+ tos, como se alguma força sobrenatural nos aproximasse, ou melhor, como se o espaço-por si mesmo se encurtasse para com­portar finalmente apenas nós dois, num processo de exclusão progressiva que reduzia cada vez mais o número de outras pes­SOaS em seu âmbito.

"Menciono este pormenor, porque, como se verá, a nossa vida foi sempre vincada de despedidas e regressos, extremamen­te emotivos e dramáticos. Por mais que contra nós conspirassem as contingências externas, o fato é que presos um ao outro pelos llames do sentimento, pela atração sensual e pela lrmanação do espírito, sempre voltamos a nos encontrar quando tudo parecia

29

Page 17: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

des"truído, e nínguém, nem mesmo qualquer de poderia admitir com segurança que o nosso amor pudesse reviver com a mesma, e quiçá com mais intensidade do que naquetes anos ma~ ravilhosos de nossa juventude,

"Quanto a mim, e estou certo de que com ela ocorria algo semelhante, o estranho magnetismo que me subjugava como a limalha ii ponta imantada, decorria de um sentimento perfeita> mente dosado de ternura e atração Instintivas, estimulado pela tranqüilidade, pela desambição das COisaS materiais e pela con+ fiança que ela me inspirava, Quando estava longe dela, mUitas mulheres me pareciam sedutoras, 'graciosas, apetecíveis; provo­cavam em mim desejos, gratidão, simpatia ou piedade. Entre­tanto, nenhuma, absolutamente nenhuma, me inspirou jamais todas essas sensações ao mesmo tempo, nem despertou em mim aquilo que, hoje eu entendo, determina a submissão vo!un­tária de um homem a uma mulher, ou seja, o sentimento de ad­miração, quando abarca ° corpo e o espfrito,

"Muito teria eu a dízer em torno de nossa vivêncfa nessa primeira fase de vinculação amorosa, para retratar fíe!mente a intensidade de nossas relações, Resumindo, direL apenas que os grandes momentos de nossas vidas eram aqueles em que nos encontrávamos, e que embora nos desejando avassaladora mente, mantivemo-nos, durante todo esse tempo, na mera expectativa de nossa união futura, Ela, certa de que nos casaríamos, e eu acreditando também nessa possíbilldade, mas temendo que as solicitações da cidade tentacular, agravadas pela nossa pobreza, pudessem desnaturar depois, degradando intoleravelmente aquilo que eu reputava um milagre da lrmanação humana e que eu não poderia, de forma alguma, arriscar à influência deletéria do amblente, Amando·3 acima da satisfação dos meus desejos, preferia perdê-Ia antes de possur·!a, a ver depOIS destroçado o nosso lar pelss contingências de minha própria vocação, de mInha inaptidão para perseguIr o dinheiro, e sobretudo, de minha inflexível probidade, que não admitiria a lmo!açEo da­quela mulher em meu benefício e, porque não reiterar a confis­são, a renúncia ao meu progresso espiritual através do estudo, como teria sido forçado a fazer, caso assumisse, naquela época, os encargos de família.

30

"Achava"me, assim, confinado nos angustos limites do dilema deterao meu 1300, como esposa, a mulher que eu amava, sacrifkando minha carreira ou imolando aquda em favor de'i>ta última, Mas, dos pratos da baiança, o que mais pesava era real~ mente aquele em que eu colocara a mulher querida. Fata tmente, com mais um ou dois meses, teria eu caído em seus braços e esta história tomaria outro curso, não fora o e'fetivo ingresso do Brasil na segunda guerra mundial,

"Com a mente confusa, procurando a verdade sem saber onde encontr.í-la e animado pelo espírito de aventura, próprio da mocidade, não me esquivei, como poderia ter feito, à conscri­ção miHtar, e ansiando por baralhar as cartas de modo a saber o que realmente desejava, v(-me certa noite navegando em rota secreta.

"O que fola nossa primeira separação, os jornais cinema­tográficos da época colheram por toda parte, sobretudo nas estações ferroviárias da França e nos portos da Inglaterra, proje­tando por todo o mundo ° adeus dos jovens que se separavam de suas noivas para a imersão no desconhecido. Crelo, todavia, que em nenhuma daquelas reproduções vi tanta ternura, tanta confiança e tanta emotividade, como nos beijos que trocamos na hora da despedida,

"Naque!a viagem, vendo ac1ma o céu e embaixo o mar também infinito, sem pontos de referência, durante dias lntar" mináveis, selítario entre milhares de companheiros, seguiu-me sempre com sua presença dolorosa, pertinaz e envolvente, a lembrança daquela que eu deixara,

"Os fatos da guerra são muito conhecidos, Sobre o que não se fala ê que vou dizer alguma coisa, não para ilustrar a quem quer que seja, mas, tão somente, para explicar as mu" taçêles de que foi sendo vítima o meu espírito, até evoluir para o estágio atual que, a despeito da situação em que me encontro, constituiria um património predos(sslmo para quem dele pu­desse ut1!1zar-se, ambiclonando ao menos viver, coisa que hoje seria frontalmente oposta aos meus sinceros desejos.

31

Page 18: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Eu que, já na vida rotineira do Rio, considerava um risco ca!culado, mas sobremodo excessivo para nós ambos, a vinculação matrimonia!, quando assisti na Itália vilipendiada pe!a guerra, à inversão total de tudo que aprendera como sendo a expressão mais nobre da conduta humana, comecei a desen­cantar-me das normas de cultura vigentes e passei a dar nenhum apreço à moral familiar, que eu vira rebaixada ao nível. d~ ';l0ral dos cães nas cidades anteriormente ocupadas pelo inimIgo e posterior'mente exploradas pelos aliados vencedores.

"Meu primeiro contata com a realidade socia! i~posta pela guerra àquele pa ís adorável, relicário de todas as manlfesta­côes da arte e da cultura, excedeu de muito, em seu impacto ~rrasador a todas as revelações que me tinham sido transmiti­das pela 'leitura de novelas sobre a situação a que se reduzem certas comunas em épocas de calamidade pública. Fora dos acampamentos, dos quartéis e hospitais, some~te um~ minor!a insignificante desfrutava a certeza de que no dIa segumt~ tena o que comer. A imensa maioria da população, nas Cidades abertas, perambulava pelas ruas e pelas praças sem ter o que fazer, ou melhor, espreitando a oportunidade de prat.icar assaltos receber esmolas do estrangeiro ou a ele prestar servIços lndecor~sos. Os homens transitavam aos magotes pelas avenidas, sujos, barbudos, sem rumo certo, COm suas faces esquálidas expressando angústia ou desespero. As crianças viviam de peque~ nos furtos ou acompanhavam os marinheiros e soldados, dos quais conseguiam, com sua insistência, arrancar bastões de cho­oolate, cigarros, goma de mascar e outros produtos inexistentes na terra, que vendiam por alto preço aos que lhes podiam pagar. As mulheres, de todas as idades, desde as mocinhas até as mães de família, prostituíam·se por um ou dois maços de cigarros, sem oposição de seus pais ou maridos que, moralmente arrasa­dos pelas contingências da catástrofe, não viam outra solução para a sobrevivência delas. Em qualquer bar ou restauran~e ~m~e os militares se encontrassem, ao seu redor e a prudente dIstanCIa agrupavam·se homens válidos, espreitando o momento em que eles atirassem ao chão os cotos dos cigarros que fumavam, para apanhá-los vorazmente, apagando a brasa, rompendo o invólu­cro de papel e guardando cuidadosamente em pequenas latas o

32

resto de fumo que houvesse, para posterior feitura de novos cigarros. Estes eram a moeda que resistia à inflação.

"Lembro-me como hoje, de que uma vez, em dia de li­cença, transitando por uma avenida em Trieste, uma mulher de aparência razoável precipitou-se sobre mim fincando as unhas na minha túnica e fazendo súplicas delirantes por uma ajuda qual­quer. Tal foi o tumulto que ela produziu que uma patrulha inglesa de ocupação veio em meu socorro, forcejando por tirá-Ia de meu corpo sem que ela atendesse. malgrado as ameaças que lhe faziam. Eu, de minha parte, tentando ampará-Ia, protestei contra o emprego de violência, mas eles não me deram ouvidos e com ela se foram para não sei onde.

"De outra feita, ainda condicionado pelas cautelas que em nosso País todos tomam em casos dessa natureza, segui à distância uma linda moça cuja aparência angelical não prometia mais que um simples namoro. Ao chegar em determinado loca! cujo asfalto estava marcado por um traço branco, tendo ao lado, em letras bem visíveis, a advertência "no traspassing", ela me fez sinal para que a seguisse de qualquer forma. Chegando a uma daquelas casas tipicamente italianas, com escadaria de már­more desgastado e cheirando a cemitério, subimos juntos. De­pois da porta única, alcançamos um segundo andar, passando por uma escada de madeira que rangia assustadoramente sob nossos pés. Era uma habitação coletiva e a moça bateu com fir­meza na porta de um dos quartos. Um ancião veio abri-Ia. Ao ver-nos, voltou-se para a larga cama que tomava quase todo o aposento e humildemente, com suas mãos trémulas, estirou o lençol que sobre a mesma estava enrugado. Depois, de cabeça baixa, fechou a porta e disse que ficaria esperando do lado de fora sentado no degrau da escada. ImpressIonado com a ocor­rência, expliquei à moça que o velho tinha provocado em mim uma influência inibitiva e que, por isso, eu preferia ir-me embo­ra, Ela, risonha, desembaraçada, não me entendendo bem, ten­tou dissipar minha g!aciaJidade, assegurando-me que o ancião era seu pai e que eu poderia ficar tranqüilo porque ele não im­portunaria. Um sopro mais frfgido ~assou pelo meu.cor~ e eu, para surpresa de minha companheira, dei-lhe o dinheirO que

33

Page 19: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

usualmente se pagava às mulheres da pro"ftss,-50, retirando-me do quarto sem tocá·!a.

"Em Outra oportunidade, encontrando um camarada de farda em um restaurante ao ar livre, acompanhado de um casa!, sentei~me ao seu lado e comecei a beber com eles. O par me foí apresentado como sendo marido e mulher. Mas, a certa altura da palestra, o meu companheiro, mais experimentado com os uros da terra e nâo sofrendo dos escrúpulos que sempre me inibiram, fez abertamente ii mulher uma proposta de conjunção cama! e ela automaticamente a transmitiu ao esposo, que não estava atento porque conversava cOI'lligo, r:. claro que o sangue me fu­giu do rosto, tanto peJa situação lns6!íta em que meu colega Se precipitara, COmo peja expectativa de uma reação violenta por parte do marido ultrajado, Ao contrário, porém, dessa conse­qüência, o que vi f.Ql o esposo concordar passivamente com o conchavo, estabelecendo, todavia, para que o mesmo frutificasse, um preço mais alto que o usual.

"Posteriormente, estando bebendo vinho e escutando canções napolitanas em uma casa noturna, fui, depois de algum tempo, inquirido pela gerente se não desejava uma companhia. Ajudava pela copa uma menina de aproximadamente doze anos de idade. Para conferir até que ponto chegara a degradação mo­ra! daquele povo, disse-lhe que apenas poderia inten,Jssar"me pela criança, A mulher respondeu que eu estava querendo o impossível, porque ela não podia vender uma "bambina" e afastoL!-se aparentemente desapontada, Mas, passados alguns minutos, vendo que eu a nada me determinava, encaminhou',se decididamente para mim e aceitou a proposta por um preço que para ela seria alto, mas que eu podia, se quisesse, pagar na hora. Creio, porém, desnecess.:1rio dizer que apenas anote( men­talmente o fato, não me deixando degM3dar com a experiência.

"Em outra ocasião, vi também um homem exibir sua esposa a alquns mHitares, forcejando por negociá-Ia para fins sexuais. Havendo um dos assediados dito grosseiramente que a mulher não era bonita, o marido empolgou-se e, com a insistên­cia de um corretor de títulos, dlst.'Orreu sobre as virtudes carnais.

34

da esposa, aduzindo, para maior efictida da propaganda, que ela havia sido amante de um genera! fascista.

"Por fim, um outo evento de muito menor gravidade, que apenas vou mencionar para que não pensem que eu era um puritano e saibam que só me sentia realmente chocado ante fatos brutalmente contrários às leis da natureza e aos prfocfplos básIcos da moral sedimentada no decurso de séculos de civiliza­ção. Já retornava ao acampamento, à hora de recolher, Quando encontrei no percurso uma jovem tentadora. A seu convite, acompanhei-a através de uma rua parcialmente obstru {da por crateras de bombas que algum avião solitário lançara perversa· mente sobre a cidade aberta. Chegamos ii casa, onde também residia uma irmã de minha acompanhante. A noite era de calor ardente e como não se podia dormir, eu, na larga cama, deitado entre as duas, a passei em claro, saindo de uma e entrando na outra, até o alvorecer, que naquela época do ano, isto é, na ple­nitude do verão, alf OCOrre por volta das três ou quatro horas da madrugada, Isso me valeu quinze dias de prisão e a minha pri· melra doença venérea. Mas, felizmente, jã existia então, embora disponfvel para nós apenas, o antibiótico que ainda se usa nesses casos, de modo que, sem sofrimento algum, curei-me em poucas horas.

"Como se poderia argumentar que essas experiências não retratam com fldelidade a decomposição mora! daquele povo, porque eu teria lidado apenas com 85 camadas mais baixas da sociedade, apresso~me em lembrar que uma das oonseqüên> elas primárias da guerra, entre os vencidos, ê exatamente a liqui· dação da solidariedade humana e o nivelamento de todos em sua degradação. Ali, de fato, não havia mais sociedade alguma. Apenas, esgueirando~se um pouco acima da massa, alguns espe­culadores que se endqueclam com o contrabando, com ° câm­bio negro, com o penhor, e com a agiotagem estimulada pela fragorosa desvalorização da moeda. t possível Que em toda a Itália, umas poucas fmn(!las de recursos i!im·ltados e residentes em lonas não pisad2$ pelo tacão tedesco, houvessem atravessa­do incólumes os vendava is da tormenta. Mas, simples gotas no oceano de infortúnios em que imergira todo o povo, essas

35

Page 20: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

f~mrnas é que não poderiam servir de exemplo, com relação à dIátese gera! de que enfermava o país.

. "Além disso, essa minha experiência era muito inexpres­sIVa se comparada com a cruel realidade, como vim a registrar na memória, ainda durante a minha permanência alI', através dos depoimentos daqueles que haviam servido na ocupação de outros países, ou dos que recolheram dados precisos sobre a invasão dos territórios da França e da Polónia. Na própria Ale­manha, .sobretudo em Hamburgo e Bremen, segundo testemu­nhos reIterados, andava-se horas seguidas sobre a neve, entre ruínas de cujos escombros surgiam mulheres vestidas de farra­pos negros, para atacarem virtualmente os soldados tentando negociar o corpo por qualquer coisa. Em resumo, o que eu vi, e note-se que não me refiro ao inevitável, isto é, às esposas e filhas deixadas em Varsóvia e Berlim que foram estupradas vinte vezes por noite pelas tropas russas, bastou para que eu compreendesse que a família, como a entendemos, é planta que só viceja em condições muito favoráveis e que seu apodrecimento é processo naturalissimo, tão logo a fome sobre ela se abata. Também não me reporto às ações indignas que foram provo-cadas pelo terror, como, entre exemplos multifários, a entrega das esposas judias aos crematórios nazistas, efetuada pelos próprios maridos, quando estes, nos raros casos em que não eram judeus, assim podiam acobertar-se das iras daquele abominável regime. Men­ciono apenas aquilo que eu vi em época de anormalidade tole­rável, quando a violência não mais imperava e já seria exigível um comportamento social que não proclamasse a todo instante que todos nós somos porcos, em busca apenas de um pretexto para chafurdarmos na lama de nossa degradação.

"E fácil entender que avassaladora influência esses fatos exerceram em meu espírito, já antes atormentado pelas dificut­d~des de construir para mim e para a mulher que eu não esque­CIa, um abrigo invulnerável às agressões da sociedade. Dir-se-â que se todos assim raciocinassem, nada na vida seria feito. Hoje concordo com esse argumento. Entretanto, não custa repetir que eu já então possu ia de mim mesmo um conceito exacerbado de valorização pessoal, nada existindo Com potencialidade capaz

36 I I I

de fazer-me imitar aos outros em sua vivência de irresponsabili­dade ou deboche. Sabia como vegetavam ,10 Rio casais eufóricos de jovens apaixonados, constritos a habitações coletivas, sujeitos à promiscuidade com os adultérios e torpezas dos quartos vi­zinhos, bem como ao fascínio das grandezas materiais dos que monopolizavam o dinheiro, estabelecendo entre aquelas vidas frustradas e a ostentação dos ricos, a chocante contradição que se observa ao comparar os "slums" londrinos e os pardieiros do East Side americano, com o conforto e a exuberância das man­sões de Pai! Ma!1 ou da Park Avenue.

"Ainda naquela época comecei também a achar proce­dentes as contorsões subterrâneas do povo revoltado, que mais tarde eu víria de armas em punho nas montanhas da Grécia, tentando desesperadamente derrubar a monarquia, uma das poucas remanescentes, para substituí-Ia de um salto pelo regime ainda mais cruel da foice e do martelo. Mas, COmo não é minha pretensão inflar esta narrativa com questões políticas e sim con­finar-me à análise dos elementos de causa e efeito que determi­naram, depois de tantos anos de labor incansável, a minha queda vertiginosa, não voltarei mais a este assunto, para que possa me dedicar apenas à exposição dos antecedentes que culminaram na morte de minha mulher.

"Como já disse, eu que partira em busca da interpreta­ção de mim mesmo, mas ansiando por pretextos que vencessem as minhas hesitações, pois que a falta daquela mulher me tortu­rava como se minha alma houvesse fugido na hora do embarque, passei a exercer tirânica repressão sobre minhas forças impulsi­vas, intensificando as frenadora!; que cedo tomaram conta do meu psiquismo, anu!ando-me a volição, malgrado a lembrança da indiz{vel felicidade que aquela mulher me dera com sua bele­za, com sua tolerância, com a doçura do seu sorriso, com seus beijos, com suas lágrimas de alegria, de ternura ou tristeza, Clue eu enxugava, ainda em seus olhos, com os meus lábios trémulos.

"Finalmente, com essa tremenda carga de experimentos a oprimir-me o coração, regressei ao Rio depois de uma ausên­cia de quase dois anos daquela mulher que, para mim, absorvia

37

Page 21: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

toda a cidade, Bcrn escassa fora a correspondência que trocára­mos, mas eu tinha a certeza de que a encontraria ii ,ninha espera, com a alma desimpedida de qualquer ilusão estranha."

38

5

"A descrição de nosso reencontro, se eu me propusesse a requintar esta narrativa como o escultor burl!a a sua estátua ou como o pintor retoca a sua paisagem, impediria que estas memó­rias se- encerrassem no curto espaço de tempo de que ainda d IS" ponho. Expansão repentina de toda a carga de ansiedade que comprimfamos em nossos corações, quando nos vimos e nos tocamos depois de tanto tempo, uma levitação milagrosa ergueu aparentemente os nossos corpos, fazenóo-Qs caminhar lado a fado, sem sentirmos se nossos pés tocavam a calçada, as vezes correndo, sem destino certo, sem qualquer objetivo racional, como se a intoxicação de euforia nos houvesse suspendido por sobre a terra, numa volatHlzação semelhante àquela que mais tarde experimentef ao socorrer-me da morfina, visando esque­cê-la ou, quando nada, acolchoar a dor de sua ausôncia.

"Mas, como ao cessar a vindima é impossfvef afastar o amargor da ressaca, depois daquele encontro, o esprrito de cen­sura que em mim, mais do que nos outros, sempre esmagou o instinto e as paixões dete decorrentes, voltou a atormentar·me, já agora com as visões sombrias da Europa envilecida, que agra­vavam a minha angústia de não dispor de recursos para definir com um m Coima razoável de segurança a nossa situação,

"Tinha: eu pela frente, como já disse, o curso que ansIa­va completar, não como fazem os moços que se formam, mas como quem deseja dominar realmente a ciência que estuda, Essa tarefa que eu me havia imposto e que já se integrara à minha personalidade, reclamando o seu dgoroso cumprimento,

39

Page 22: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

não era, pois, coisa que se realizasse mediante simples obediên­cia ao regime 'formal das 8r'..adem!as. Eu precisava de tempo, de tranqüi!idade, da concentração exclusiva de minha mente na pesquisa dos princípios e das doutrinas com que pretendia subli­mar o meu espirito e alçar-me por sobre os outros indivíduos dedicados ao mesmo labor.

"Embora já fosse bem razoável o acervo de conhecimen­tos que eu então possuía, para lograr sem socorro exógeno algum êxito na sociedade, o fato é que, para dominar o pequeno, mas seleto mundo em que desejava pontificar, eu, realmente, não sabia coisa alguma. Versava, de fato, certas matérias ele­mentares e, como já disse, ensinava idiomas. Mas, para chegar onde desejava, dez anos de estudos sérios não bastariam, como mais tarde comprovei. Tinha que saber, praticamente de memó­ria, desde os textos b Iblicos até a prosa de Ruy I passando pela mitologia, pelo direito romano, pela história dos povos mais remotos, peja imensa literatura francesa, pela poesia britânica, pela sociologia, peja metafísica, pela lógica e pela dialética, pela psicologia e pela psiquiatria, pela biografia e pelos discursos dos grandes oradores, pelo conflito religioso que ensangüentou a Idade Moderna, pelo iluminismo dos enciclopedistas que alicer­çou a Revolução Francesa, pela supressão da burguesia em vários países, pelas lutas de classes desde o começo do tempo, pela derrocada dos mitos mais antigos e pela entronização de outros e, finalmente, ainda no círculo vicioso da história, pela submissão do proletariado aos seus próprios filhos, isto é, à nova classe de revolucionários profissionais que emergiu de sua atlvidade sub­terrânea para alçar-se com mão de ferro ao poder.

HÃ margem de tudo isso, a aquisição de uma cultura universal, abrangente dos princípios básicos de todas as ciências, das noções fundamentais de todas as artes e ° exercício cons­tante de minhas faculdades intelectivas nos ampl (ssimos ramos da filosofia, da exegética, da literatura, da oratória e da retórica. E, além de todo esse alicerce, aínda as matérias de minha ambi­cionada especialização, que deveriam ser estudadas com prima­zia, isto é, direito penal, processual e penitenciário, medicina legal, jurisprudência, dogmática, criminologia e criminal(stica.

40

Um mundo de livros, uma tremenda tensão do raciocínio e um permanente exercitar da palavra para dar à minha prosa, escrita ou falada, o poder da doutrinação filosófica, aliado â harmonia poética e â penetração musical.

"Se for oonsíderado que naquela época eu não tinha dinheiro, era obrigado a trabalhar para sobreviver e não podia renunciar ao amor daquela mulher com quem precisava casar-me imediatamente, entender-se-á o conflito devastador que lavrava em meu psiquismo e quão inatingível era a meta de minhas ambições. Mais uma vez, repito para a perfeita compreensão do problema, que minha situação não se resolveria com a simples graduação em um curso superior. O meu caso semelhava-se ao daqueles poucos indivíduos que, em todas as épocas e em todos os pa(ses, acreditam que são dotados de atributos excepcionais para rea[jzarem dentro de si mesmos a síntese da sociedade. Enfermava do bacilo de Nietzsche, sem entretanto permitir que minha mente fosse dominada pela crueldade de sua brilhante doutrina. Não seria eu ° super-homem no sentido de submeter os outros ao meu impiedoso domínio, mas, fazia questão cerra­da de superar a todos eles em conhecimentos, em ilustracão em finura e em bondade. . ,

"Se houvesse me precipitado no casamento, como meu instinto reclamava, teria sido, talvez, sensual e poeticamente 'feliz. Mas, a agitação da cidade esmagadora e a caçada perma­nente ao dinheiro, teriam frustrado a minha personalidade naquilo que ela possuía de mais recôndito e insopitáve!, isto é, a ânsia de saber e de sublimar o meu espírito, extraviando-me do gado humano que se aglomera pelas metrópoles, condicio­nado aos estímulos materiais da nutrição, da libido e dos pobres triunfos da acumulação monetária. Eu era vítima, portanto, de uma ambição infinitamente maior do que a daqueles que por dinheiro vendem a própria alma. O que eu queria era muito mais. Era enriquecer por dentro, de modo a poder amar a minha companhia mais do que a dos outros. Era em suma, nada menos do que a louca ambição de apresar o mundo Inteiro nas asas do espírito,

41

Page 23: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Entretanto, a deflníção do roteiro de rninha \,lida, devo confessar, niro foi, como se poderia supor, no sem ido do SJcer­clócio intelectual ii que me propunha. Multo ao contrário, B ver­dade é que aquela mulher já flu ía pelas minhas artérias, e o mais que a mlnhB estranha dependêncla para com ela podia conceder­me era a busca de uma situação conciliatória em que, sem per­dê-Ia, eu também pudesse atender aos redamos de minha índo­le, obedecendo simultaneamente à sua radloatívidade e ao espf­rito de censura ou supereHo freudiano, que nada me deixava fazer impulsivamente.

"Depois de multo considerar em torno do dllema e compreendendo que qualquer esco!ha deixada o problema inso­lúvel, porque uma alternativa me tiraria ° vinho e a outra me quebraria a taça, resolvi passar alguns dias em minha terra, a fim de avaliar as possib Hidadas de uma reaproximação com meu pai, pequeno comerciante em Pandora, que a despeito das diver~ gênc!as ideológicas que sempre nos separaram, tinha por mim uma admiração desmedida, acreditando-me um verdadeiro gênio a, em conseqüência, ambicionando tenazmente que eu abando, nasse a vida inquieta que levava e me dedicasse a estudos pro~ fundos, missão cujo. êxito ele antecipava com indísfarçável orgu­lho ante todas as pessoas com quem falava a meu respeito.

"A esta altura, e para melhor compreensão de minha personafidade e dos antecedentes fam1fiares que a forjaram, é preciso relatar que quando de meu nascimento a minha famnia desfrutava de relativa abastança, sendo minha mãe muito jovem, de beleza peregdna e alguma cultura, enquanto meu pai era um homem franzíno, um tanto recurvado, de vivência metódica, dedicado a produzir d;nheiro e conservar, peio conforto e pela Vigilância, a extraordinária mulher que a fortuna lhe proporcio­nara, Por isso, a nossa casa, enorme como já não mais se cons­trói um daQueles casarõeS da época da col6nia, que hoje consti· tue~ atração turística da cidade de Pandora, ilumim.lVâ"se quase semanalmente para recepções socials em que se discutia sobre todos os assuntos e onde eu, com apenas quatro anos de idade, fazia papéis dec!amatórios e outras representações teatrais ao gosto da época. Impressionado com minha aparente precoddade

42

que, de fato, não era mais que o resultado do intenso treina­mento a que minha mãe me sujeitava, tal':ez para dlstrair~se do desamor que sentia por meu pai, foi que ele concebeu ti hipó­tese de minha genialidade e se empenhava por desenvo!vê-la a todo custo,

"Ocorda, entretanto, que ao lado dessa disposição para comigo, crepitava em nosso lar a chama da discórdia, e eu, des::'8 cedo fui testemunha de conflitos dramáticos entre meu pS! e minh'a mãe a pretexto de ciúmes que ele não podia controlar, talvez em face da plena consciência que tinha de sua inferior]·, dada física em relação a e-ta, da huml!hante dependência amoro~ Si! em que se achava e que, até hoje, ainda se percebe, lhe perdu­ra no íntimo. A propósito, lembro-me de que. " :'

Ao chegar a esse ponto, Jorge Munlz fo'l forçado", inter­romper a sua exposição, porque ° carcereiro 6?trara. com o almoço. O!hando com desdém para o que lhe traZiam, disse-me:

- Habituei-me a reduzir ao indispensável a minha alimen­tação" t. um processo que adoto há vários anos, Se niJo fumasse, crelo que poderia passar, insensivelmente, três dias sem comer. Vocês, entretanto, são multo moços e devem viver normalmente. Por isto, n50 os detenho,

levantou-se da cama onde permanecera recostado, apriu uma pasta de couro, retirou um talão de cheques, e com a can~e­ta que a estenógrafa estava usando, preencheu com a mao esquerda uma ordem de pagamento que me entregou, sem que eu a olhasse atentamente. Na reandada, eu também poderia dispensar o almoço para continuar ouvindo aquela narrativa. Mas, como estava acompanhado, precisei retirar-me para levar a moça até a sua casa.

Quando já estava no ônibus, abrindo a carteira para p~. gar o transporte, re!anceei os o!hos pelo cheque de meu cr:nst!" tuinte e tive a emoctonante surpresa de ver que a quanhl no mesmo consignada cobriria regiamente o serviço da secretária e alnda daria para que eu e minha mãe, dentro do frugaEssimo

43

Page 24: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

padrão de vida a que estávamos acostumados, não nos preocu­pássemos com dinheiro por mais de um ano. Talvez peio estímu­!o da ocorrência e pelo sentimento de orgu!ho que de mim se apossou, antecipando a satisfação com que minha mãe receberia aqueles meus primeíro5 honorários, comecei a rir e a conversar com minha secretária, estabelecendo com ela uma aproximação mais íntima e desembaraçada,

Eu sei que quando a gente tem pouco mais de vinte anos, a aparência do sexo oposto é tudo ou quase tudo, mormente para quem, como eu, desde menino, vivera encerrado em casa e nunca tivera recursos para freqüentar, como muitos de meus colegas de Faculdade, as samaritanas que dessedentam a juven­tude e animam a velhice a protelar a humilhação da aposentado· ria. Nessa fase, é comum a gente mentalizar formas esculturais e associar as aproximações femininas com a possibilidade de uma fusão rec(proca ao calor de um amplexo sensual. Para a juven­tude a mulher é a fêmea. Se não é desejável, não tem prestígio. Não existe como mulher. Dificilmente, portanto, uma jovem sem caracterfsticas peculiares, ainda que não típicamente afro­disíacas, poderia despertar em um moço como eu era naquela época, sentimentos de aproximação mais intensos que os da fraternidade. Não sei, pois, qual foi a razão por que a minha secretária eventual, de óculos, sem pintura e sem malícia, come­çou a ocupar algum espaço no âmbito de minhas idéias, de mo­do a provocar em mim uma sensação de apego, enquanto nos aproximávamos de nossas casas, Do que falamos então, já não me lembro, e isto se me afigura como maiS uma prova de que meu bem estar era completo, Quanto a ela, eu sei que se lembra de tudo e poderia reproduzir ainda todos os meus gestos e até mesmo a entonação de minha voz,

Quando chegamos, ela me disse que não demoraria e que logo poderíamos retornar ao presídio. Entrei pelos fundos de casa e descobri minha mãe, como sempre, atarefada na cozinha, Desde a soleira, eu avançara nas pontas dos pés para não fazer ruído, e tive a sorte de encontrá-Ia de costas e poder, com um movimento rápIdo, espalmando-a pelos ombros, Virá-Ia de frente e puxá-Ia para mim. Ela, que não estava acostumada a essas

44

efusões, ensaiou uma cena de artificioso protesto, entre risos e censures. Exibí-Ihe o cheque, embora sabendo que ela, sem ócu~ los, não poderia ler ° que nele estava escrito, porém certo de que avaliaria a importância do documento. Mas, ao invés de me fazer perguntas, como eu supusera, ela continuava a protestar, dizendo que estava atrasada no almoço e que lugar de homem não era na cozinha.

~ Pois bem. - disse-lhe. ~ Aítambém não é o seu lugar, e de agora em diante você vai ter uma empregada.

- Para que serviço?

~ Para esse mesmo. Mas não pense que vai ficar desfi· !ando pelas avenidas, sorvendo chá com torradas ou passando todo o tempo nos teatros. Você vai ficar é comigo, cuidando de processos e arrumando as minhas petições, a não ser que já tenha esquecido o que meu pai lhe ensinou.

Rindo-se, ela inquiriu:

- Já tem tantos clientes assim? Ou será que você não quer fazer nada? Acostumou-se 'a estudar, comodamente recos­tado, e acha que tudo o mais é desprezível. Não deixa de ter alguma razão. Eu sou a culpada. Queria e consegui que você superasse seu pai, ao menos em conhecimentos teóricos. A vida dele foi muito difícil. Você tinha tudo para progredir, inclusive a nossa falta de dinheiro, que o afastou das más companhias.

- Eu sei que tudo lhe devo, mas sei também que a cria­tura tem de ser suportada pelo criador. Agora, pois, agüente as conseqüências. Esse negócio de cozinha e máquina de costura não pode mais nos ajudar. Você vai ter de passar a vista em muita coisa que já alterou o sistema no qual meu pai trabalhava, para que eu possa cuidar de nós.

- Você é quem sabe. Por ora, vamos cuidar do almoço,

Enquanto ela me servia, foi sendo inteirada de todos os fatos que até então eu havia omitido, para não confessar~!he a

45

Page 25: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

minha timIdez, as mInhas hüsltaçõss, e os pdmeir'O~; desaponta-­mentos que me trouxera o processo Jorge Muniz, mn cujo péi3~ go eu estava agora totalmente Imerso. Quando acabou de ouvir­me, e!a me disse:

- O assunto é, realmente, de extraordinária importân­da. Não sei como você conseguiu ficar catado por todo esse tempo:, O homem que você está defendendo é o maIor crimina­!ista de São Paulo, Quando seu pai era vivo, assisti a várias de suas funçdes no Tribunal do Júri. t: um orador maravilhoso e sua clientela é enorme. Se ele fizer declarações favoráveis a seu respeíto, você não terá mais tempo nem para respirar.

- Também seI, Não perco júri de mestre. Não há quem se dedique ao estudo do crime, que não o conheça. O meu pro­blema é que não estou atnda preparado para um pulo tão alto, Os colegas são impiedosos e tudo farão para ridicularlzar'me.

- Não interessam colegas. Todos se odeiam cordial· mente, Não conheço dasse mais desunida, exceto a dos ladrões. O que interessa ê o povo, Você está preparado. Acredite em si mesmo. Não deixe a causa sair de suas mãos e faça. com que ele o recomende pela imprensa,

- Está bem, - di5s8'!he, enquanto me dirigia à porta para receber a moça que chegav8, Vesti o casaco, beijei a minha mãe e segui com J secretária para O ponto do ônibus,

46

6

No presídio, o movimento era desusado. Várías camio­netas pintadas de Cores berrantes, com os títulos dos melhores jornais de São Paulo, estavam estacionadas no parque de entra" da, Na cela, Jorge Munlz, recostado como das vezes ameriores, falava a urna duzia de repórteres e fotógrafos que o assediavam com perguntas de toda natureza. Notando que, entre eles, eu tomara uma posição de retraimento, ordenou que seus interlo­cutores abrissem caminho e mandou que me fotografassem ao seu lado. A seguir, dispensou os Jornalistas que a custo se afas­taram e sem trair a mais leve emoção, djsse~me:

- Podemos recomeçar.

DePOIS, virando,se para a secretária que remexia em sua pasta escolar, perguntou:

- Em que ponto ficamos?

Consultando a última folha, ela respondeu;

- Divergência entre seus genitores, por questões de ciú­mes de seu paL A ultima frase é: "8 propósito, lembro-me de que.,,"

-- Prossiga: "quando nasceu a minha fHha única, meu pai já era cego e minha mãe já havia morrido há quase dofs lustros. Ele, portanto, nElo chegou a conhecer vlsua!mente a sua neta. Mas, quando ela começou a falar, ele percebeu que sua voz se

47

Page 26: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

assemethava à de mínha mãe e, enquanto me confidenciava essa impressão, duas grossas lágrimas deslizaram lentamente pela sua face, até ficarem dependuradas à altura de seu queixo ressequi­do. Viveu, pois, todo o tempo, como eu também vivi, preso à mulher que amou, torturou e destruiu.

"Voltando aos pródromos de minha existência e para melhor esclarecer noções já fornecidas em torno de minha vida familiar, recordo-me de grotescas cenas de ameaças em que meu pai, desesperado, de revólver em punho, tentava, por motivos externamente frívolos, intimidar minha mãe que, de uma cora­gem invulgar, o estimulava a acionar o gatilho, sem sair de sua frente. Depois dessas cenas que eu e meus irmãos assistíamos apavorados, ele, envergonhando-se de sua desintegração psíqui­ca e subjugado pela intrepidez da mulher que amava alucinada­mente, corria à cidade, regressando à noite, cabisbaixo, arre­pendido, lamuriento, trazendo-lhe jóias ou vestidos de alto preço. Ê escusado dizer que uma certa trégua então se estabele­cia, para explodir depois de uma ou duas semanas em novos entrechoques. Assim viveram até se desquitarem. Não resiS!in­do morar na mesma cidade, meu pai trasladou-se para aqui, onde se dedicou, como sempre, às suas atividades comerciais. Depois que ela morreu, ainda muito jovem, de um distúrbio cardíaco, ele voltou a Pandora para viver conosco, masjá havia caído muito em recursos financeiros e teve de reiniciar a vida com uma pequena loja de comércio.

"Era, portanto, para ali que eu regressava depois de ter­minada a guerra, a fim de tentar a adoção de uma fórmula conci!iatória entre minhas ambições intelectuais e as exigências de meu coração, Como já disse, meu pai sempre foi rotineiro, tímido em tudo que planejava, e embora exagerando a minha acuidade intelectual, não confiava na estabilidade de meus sen­timentos e, desde logo, recebeu com glacialidade as alusões for­tuitas que eu lhe fazia em torno de meu pretendido casamento. Sem trair, não obstante, suas antigas esperanças de ver-me situado entre os homens mais ilustres do Ps ís, acolheu e estimu­tou calorosamente a outra face do dilema, isto é, aquela que tendia à minha exclusiva devoção aos livros e às coisas da ciência.

48

"Nessas circunstâncias, embora o mais saboroso fora reunir-me à mulher amada, o outro prato da balança ficou so­brecarregado de minhas inibições, de minha vocação para o estu­do, de minha indigência financeira, do temor de um fracasso conjugal 8, ainda, das exortações que em casa me faziam no sen­tido de não malbaratar os dotes intelectivos com que, afirma­vam eles, a natureza me agraciara generosamente,

U A batalha que então se travou na minha cabeça, não foi fácil de comandar e nunca terminou, Eu sei que tudo que acontece na vida, acontece necessariamente. Mas, também sei que nosso futuro depende do concurso de uma infinidade de fatores que podem muito bem deixar de incidir sobre nós possibilitando-nos um certo arbítrio em nossas determinações: Dizer, portanto, que apenas fui fraco ou egoísta, equivaleria a derruir todo o positivismo, ressuscitando o princípio da volição espontânea. Hoje, quando já perdi a conta das centenas de acu­sados, de todas as camadas sociais, que passaram pela minha clínica criminal para curarem-se da perseguição judiciária, e quando já li tudo que merece ser Ilda sobre criminologia, psico­logia, psicanálise e psiquiatria, sem falar em minha dramática vivência que é, toda ela, um tratado sobre as paixões, seria imperdoável se eu cometesse o erro de achar que poderia ter procedido de outra forma. O que posso afirmar é que se fui objetivamente egoísta, no íntimo eu me acreditava um abnegado, e se fui covarde, no fundo me julgava um herói por ter tido a força de renunciar ao meu prazer pessoal, para não sacrificar aquela doce mulher, não demolir o mito de noSso amor, para enfim carregar sozinho a minha cruz, intentando construir duradouramente, ao invés de atirar~me com sofreguidão ao gozo efémero de relações sobre as quais pendia, suspensa pe!o acaso, a espada de Dâmocles.

"Como todo espírito meditatívo, raciocinante, estóico, paciente, eu conservei no fundo da alma as memórias de minha convivência amorosa e, como o avestruz que enterra a cabeça na areia até que acabe a tempestade ou como o varão de Horácio que esperava o r10 passar para atravessá~lo, encerrei-me nas bi~ bliotecas e fui ingerindo sedativos livrescos com a mesma faina

49

Page 27: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

desesperada com que Van Gonh Br'ct;Ja freneticatnsntf; de sol artificial as suas telas, para adestrar-se no pInceí e fugir 30'5

impactos da loucura. pouoo a pouco, um a um, foram sendo re­tirados e devolvidos às estantes de minha casa, às bibliotecas ptlblicas e às dos amigos, uma Infinidade de grossos tomos que que eu ia devorando numa atividade delirante, numa monomanla absorvente que me (.'Qnsumía todas as horas de vida. Noite após nOite, banhando o rosto e os pés em água "Fria quando o sono me acossava, sacudindo a cabeça mm violência ou fazendo outros exercícios fíSICOS, eu voltava ii mesa de leitura ou, quando já exausto da pc)sição encurvada, ao leito do meu quarto, onde ficava lendo, nunca menos de doze horas por óta,

"Assim, como se ·fora um paraHtico, passei anos a fio, lendo e criticando mentalmente o que de melhor já se escreveu sobre filosofia, história, Direito e outras ciências auxl!iares. A Faculdade, eu somente ia fazer as provas. Quando ali chegava, era dlHci! decidir-me em que local deveria sentar-me. Meus cole­gas arrumavam'sc em vários círculos, deixando no centro de cada um destes uma cadeira vaga, na esperança de que eu me sentasse junto a eles e lhes ditasse as provas. Ordinariamente, eu baixava a cabeça ao chegar à porta do salão, fingindo não ver os grupos mais afastados e sentava-me logo na prlmeka vaga que me houvessem reservado, sem responder aos protestos elos que ficavam na orfandade. E bem de ver que certos professores rea­clonários, e assim os qualifico porque Direito não se aprende em academias, logo se íncumbíram de poupar-me esse constrangi­mento, fazendo-me sentar em suas próprias cátedras, situadas a grande distância dos aiunos, de modo que quando isso ocorria eu 'ficava impossibilitado de fazer as provas dos cQlegas, porém livre do assédio de suas perguntas. De qualquer modo, se fonna­tura ou cobção de grau valessem alguma COisa, no sentido da presunção de capacidade, eu poderia hoje alegar que sou forma­do mais de vinte vezes, porque a mais de duas dezenas de ana\­fabetos eu faciHtei a aquisição do diploma. Tudo isso, entre" tanto, é irrelevante, porque, como já disse, academias e formatu­ras nada têm a ver com estudo ou ilustração. As academias são fábricas de dlplornados, onde quem deseja aprender alguma coisa desperdiça predoso tempo entre a chalaça dos colegas e o

50

tédio d?s proh~ssores. Eu estava bem vivido e consegUI atraves­sar o pantano $em desaprender o que havia arrninenôdo na rnen· te, durante minhas incansáveis lucubrações,

"No primeiro ano de minha ausência do Rio, eu e a víti, ma nesse processo que nos Qcupa, mantivemos uma correspon­dência de conteúdQ indefinido e índole prote!atóda que, com o passar do tempo, desesperançou-a completamente da união que tínhamos como certa quando nos separamos da última vez. Repentinamente, as cartas cessaram e ela desapareceu de seu primitivo endereço. A úrtima que !he escrevi fOI-me devolvida pelo correJo. De então em diante, não fiquei mais sabendo por onde efa andava,

"Certa feita, porém, quando meu pai começ,ou a cegar, tive de levá"to a Campinas, neste Estado, onde ainda existe fa~ mosa dínica de oftalmo!og!8:. Depois de procedidos os exames e embarcado o pacIente de volta a Pandora, onde, previamente informado, meu irmão mais velho o aguardava no aeroporto, perr~a!leci por, u.ns dias nesta Capital, cumprindo o prograrna de Vlsnaf preS!dlOS, estudar a mente dos presos mais exót1cos e arrecadar nas livrarias algumas obras de procedência estran­geira que não eram encontradas em Pandora.

"Naquele tempo, muito de propósito, para não estimu­lar .r::lfnances, para não seguir a moda e não ser absorvido pela futIlIdade geral, eu costumava deixar que a barba crescesse até o ponto em que não me incomodasse, e usava apenas calças e camisa. Embora minha saúde fosse de aço, minha aparência, conseqüentemente, era a de um enfermo ou de um desem­pregado. Quem fa\asse comigo, no entanto, poderia ser respon­dido em Vários idiomas e logo compreenderia que eu não era um excêntrico, não era um doente, nem um operáriO em greve. Veria apenas.em mim a humildade dos estudiosos e a determina­ção de imunizar-me do contágio soda!, para poder cumprír, iso­lada e tranqüf!amente, a minha longa rnlssão de aprender. Invo-00 a máxima atenção para esse fato, porque foi nessas concHções, estando eu mat vestido e barbudo, que algo de extnYnamente dramático ocorreu comigo durante aquela mlnha curta penna­nêncla aquL

51

Page 28: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Eu estava afojado numa pensão, nas proximídades da praça da República, onde, naquela época, além do gorgear dos pássaros que saltitavam pela arborização, além dos córregos e das alamedas onde as crianças brincavam, havia ainda um servI­ço de biblioteca ambulante cuja camioneta ali permanecia todas as tardes, fornecendo livros e revistas a quem quisesse ler até cair o crepúsculo, quando então eram recolhidos. Desde que cheguei, sempre que me sobrava algum tempo, sentava-me em um dos bancos e !ia especialmente jornais e revistas estrangeiras.

"Numa daquelas tardes, embora absorvido pela leitura, notei que alguém buzinava repetidamente em um automóvel estacionado a pouca distância. Não dei ao fato qualquer signi­ficação especial e continuei imerso em minhas leituras até que senti um leve toque em meu ombro. Levantei a vista e deparei com um rapaz que me disse haver uma pessoa desejando falar­me naquele automóvel que, já então, se achava estacionado em uma das ruas transversais. Restitu í o material que estava lendo e acompanhei o moço, enquanto pesquisava na mente quem pode­ria ser a pessoa que comigo pretendia avistar-se.

"Somente quando já me encontrava a pouca distância do carro foi que- a reconheci. Embora de infdo, como da pri­meira vez em que a vi, só distinguisse o seu sorriso e os seus ca­belos, achei-a ainda mais bonita do que quando passeávamos juntos. À força de reprimir todos os meus impulsos e emoções, eu Já havia adquirido o hábito de não deixar transparecer em minha fisionomia as explosões sentimentais que no íntimo me incendiavam. Por isso, ela deve ter estranhado a aparente frieza com que me aproximei. Ficamos a olhar-nos por segundos que me pareceram uma eternidade, Depois, sem dizer palavra, ela abriu a porta do carro onde entrei como um autômato. Conti, nuai olhando-a em êxtase, enquanto ela manobrava velozmente e partia para qua!quer local distante do centro urbano. Che­gando a uma rodovia marginada de pinheiros ela parou o carro, começou a olhar-me Inquisidora mente e colocou sua mão sobre a minha com ternura. Depois de mUito tempo, perguntou-me:

- Já está casado?

52

- Não. Tenho apenas, sem compromisso, uma parceira fisiológica, E você?

- Sim. - e, logo rematando. - Como pôde esquecer-me?

- Nunca a deixei. Meus sentimentos nunca mudaram.

- Nem os meus. Entretanto, , .

- E agora?

- Você é mais velho e, pelo que vejo, a Vida não lhe tem sido fácil. Preciso de sua ajuda.

- Seria um prazer servf-la. Mas, infelizmente, só dispo­nho de mim mesmo e de meus estudos. Não sei se eles bastam para ajudá-Ia.

- E ainda duvida! Como se tudo que houve entre nós tivesse sido uma banalidade! Você raptou a minha mente e ago­ra ainda não sabe o que eu possa querer!

- Creio que desejamos a mesma coisa, mas preciso ter certeza de sua determinação e, sobretudo, saber se lhe convém o que pretende.

- Quero apenas conselho. Está morando aqui? Precisa de dinheiro?

- De dinheiro não, mas do resto. Depois que a encontrei vai ser muito difícil pacificar-me. Já estou de viagem.

- De que realmente precisa?

- De você ou de esquecê,la. Mas, , . esquecê-la é impos-sfve!.

- Não poderia ficar?

53

Page 29: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

- Para que?

- Para tomarmos uma decisão importante.

- Tem filhos?

.- Uma fHha. - respondeu-me,

~ Então, estamos agora em sltuação ainda mais difícil do que quando nos separamos.

- Nem tanto. Agora somos ricos. Já podemos nos man· ter em qualquer lugar do mundo, pe!o resto de nossas vidas. Se p!anejarmos com segurança e agirmos na oportunidade certa, eu me livrarei de tudo e finalmente ganharei você.

"Ao proferir essas ultimas palavras, o seu olhar, perma­nentemente tão doce, adqUiriu uma estranha firmeza e tive a im­pressão de que dele safam raios que atravessavam todo o meu corpo, enquanto sua mão, que se apoiara ternamente na minha, crispou-se como a garra de um pássaro ferido, comunicando"me a sensação de que, ao seu contato, os meus dedos gelavam-se.

"Um turbilhão de pensamentos em dtsparada cavalgou o meu esp frito, até que, imóvel, lhe pude indagar:

- Que a fez mudar tanto?

~ Tudo, inclusIve você. Só não mudei nos meus senti, !nentos a seu respeito. Enquanto que você, até nfsto parece haver mudado. A vida não nos poupou, Na certa, não foi o destino. Todas as espécies lutam por sobreviver> , '

- Mas, estamos sobrevívendo, e você, ao qw.'.: parece, não tem de que se queíxar > • "

- Vê~se que você mudou mesmo. Agora a posse de coisas materiais lhe desperta a visão da felicidade. Se assim pensa, mals razão para estarmos unidos. Tudo que quiser, temos hoje em abundância.

54

"Embora a situação fosse completamente in1prõpria, não pude conter Ut'D \eVe sortiso ante a maneira equívoca com que eia me interpretava. Não obstante, considerando bem as cir­cunstâncias, não me pareceu absurda ou monstruosa ti Ins1nu&~ ção que ela me fizera. Quem me visse com aque1e indumento e aquela barba, não poderia pensar outra coisa, O qliB me pertur­bara foi a chocante transformação de sua fisionomia no momen­to em que ela tangenciou o assunto mais perigoso de nossa con~ versa, Eu 'estivera na guerra, vira milhares de mortos e feridos, era um apaixonado da criminologia 8, quando me julgava muito importante, usava como terapêutica de humlldade uma visita aos neerotérios para, olhando peças anatómicas, reavivar a conscllh· da de minha vu!nerabHidade. Por outro lado, como ocorre com todos os homens, sempre pensei no crime como modo de afir" mação da persona1!dade, a exemplo do que ensinam os grandes dramaturgos em suas obras mais inspiradas. Por aquela mulher eu mataria qualquer um, indusive a mim mesmo e a ela também, se visse uma real conveniência nessa medida, Eu e ela, pois, éra­mos, como sempre fornos, absolutamente iguais. Creio Já ter dito que ela nasceu para mim e que somente circunstâncias lnex" pugnáveis puderam nos afastar um do outro. O sentido e alcan­ce, portanto, daquilo que versávamos, não teria a menor possi­biHdade de intranqü1!lzar,rne, não fora a repentina mutação de seu $emblante, cuja dureza contrastou COm toda representação de ternura que eu sempre dela fazia. Em suma, se ela, Findo·se, houvesse 'feito a mesma proposta, eu também rindo argumenta­ria em favor ou contrariamente, Mas, porque ela se deixou en­volver por uma expressão cruel e me comunicou uma radIação sinIstra, eu me perturbei um pouco, porém logo me recompus,

.- Já estudou o assunto por tempo suficiente?

- Desde o meu casamento, ou me!hor, ainda antes dele,

- Que a faz acreditar.em minha aprovação?

- Tudo. Se nada mudou entre nós, se nascemos um para o outro, nosso direito é estarmos juntos, Se alguém não concor~ da Com 1sso, deve sofrer as conseqüências. Se você pensa de outra forma, não 0 mais digno de mim.

55

Page 30: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

- Seria me!hor se você não imergisse em meus pensa­mentos. Ne!es encontrará de tudo, e é bem possível que com alguns monstros que vivem em mim e que eu alimento com carinho, você não faça boas relações. Farei tudo que você quiser. Mas, somente se estiver certo de que depois não se arrependerá. Como ocorreu o seu casamento?

- Como todo ato de desespero. Levei anos renunciando a tudo, na esperança de nossa união. Você, diplomaticamente, me abandonou. Quando se concentra a vida em um único abje­tivo e a sua realização se torna impossfvel, perde-se a crença em tudo e a vida fica sem finalidade. Eu era, então, uma das secre­tárias de uma grande empresa. O patrão entendeu de cortejar-me e eu lhe opus resistência. Hoje ele é virtualmente meu emprega­do, mas tem poderes conjugais sobre mim. Você, que tanto tem estudado, talvez possa me indicar outra solução.

- Não existe. A lei não pode ser invocada em seu favor. A solução mesmo é antecipar a sua viuvez. Ê o recurso extraor­dinário, arrimado no direito natural. Sobre a forma e a época de sua interposição, pensarei depois de regressar.

"Uma expressão final de triunfo, de confianca e de tran­qüilidade, como as que seu rosto estampara das ve~es em Que, no passado, havíamos nos reunido, iluminou-lhe a face, e sua mão recuperou a suavidade do arminho enquanto afagava ca­rinhosamente os meus dedos inertes. Aproximou~se para beijar­me, mas, como eu continuei aparentemente insensível, ela re­traiu-se sem protestos e, voltando a falar, perguntou-me:

- De que vive você? Nâo poderia eu ajudá-Ia financeira­mente? Não quer aceitar, ao menos, um empréstimo? Posso fa­zer-lhe um cheque.

- Estudo, apenas. Vivo com meu pai e ele está ficando irremediavelmente cego, Não direi que consumo apenas me! e gafanhotos como João Batista. Mas, absorvido pelos livros, preciso de murto pouco para viver. Qualquer vantagem em dinheiro que eu obtivesse agora, só podería prejudicar~me.

56

Talvez acabasse com meu ascetismo, e minha missão ainda não está cumprida. Agradeceria, pois, se você evitasse corromper-me.

- Quando viaja?

< - Depois de amanhã, Já tenho a passagem, já fiz tudo o que tinha de fazer e o dinheiro já está acabando,

- !:. pena, idealizei tanto este encontro de maneira dife­rente. Mas, você parece atónico, desnervado _ ..

- Como se engana! O que você vê é apenas uma másca­ra de cera com barba por cima. Para seu governo e para que não faça injustiças, toda vez que pensar em mim amorosamente multiplique seus sentimentos pelo infinito e'terá uma vaga idéi~ do que sinto a seu respeito.

cisa

- Seu endereço ainda é o mesmo?

- Sim. Deixe-me anotar o seu.

"Depois de ditá-lo, perguntou-me:

- Que faremos agora?

- Você aguardará uma comunicação minha, e não pre~ ter cautelas parque chegarei a você sem que percebam.

- Aguardar ... até quando?

"Sem interessar-se pela resposta, acionou o botão de arranque, fez a curva e disparou em direção à cidade. Chegando ao ponto de onde partíramos, consegu-iu esboçar um sorriso, estendeu-me a mão e disse-me:

- Não demore ...

"Naquela noite, dentro do pequeno quarto da pensão, travou-se em meu íntimo uma batalha mais feroz do que muitas

57

Page 31: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

daque!as a que a história dos povos dedica longos capítulos. As iegiões de idéias, armadas até os dentes, chocavam"se uméls corn as outras, tombando mortas algumas, para logo após, mliagrosa­mente ressuscitadas, levantarem-se do SCllo para darem novo combate às coortes inicialmente vitoriosas, Eu mesmo, em cuja alma se processavam esses fnconc1udemes mortictnios, enve!he­cia e remoçava no curto espaço de poucos minutos, Eram as minhas próprias vivências, estampando-se umas por sobre as outras; era a reforma de todos os meus planos de vida; era qual­quer coisa como o expirar do Cristo, cujo último suspiro rasgou o véu do santuário e fendeu as rochas, fazendo que dos túmulos saíssem redivivo!> inúmeros profetas de há multo sepultados.

"Eu que já me acostumara a ter o mundo todo dentro do meu quarto, que desprezava todas as companhias exceto a dos meus livros, que muitas vezes não tinha consciência de minha realidade corpórea, vivendo permanentemente numa deambula­ção extra·terrena, pelas paragens do raciocfnio e pelo nirvana da rnedltação, comecei a sentir de novo a atração da gravidade que, emanando daquela mu!her, trnha sobre mIm um poderio vulcâ­nico, capaz de reduzir a lavas incandescentes tudo que eu havia seclimentado em meu espírito como alicerce â construção do monumento lnte!ectua! em que eu aspirara me tornar. A eqU8"

ção de minha existência, aparentemente já resolvida, ajustaviHB agora melhor à expressão antedor da incógnha que, é Inútil dis­simu!ar, por sua sedutora reaHdada, era em tudo mais humana que o misticismo literário que eu vinha professando à guisa de consolo pela frustração de meus impulsos românticos.

"Pensei em não voltar mais para casa; em ali ficar, engendrando um plano de cuia execução eu mesmo me encam:~'· gada para liquidar de uma vez por todas com aquela situação injusta, definindo as nossas vidas no sentido em que a natureza as modelara. O sono, que eu tanto combatera para não perder tempo de estudo, punia-me agora com sua ausência, deixando­me como uma casca de noz a sofrer por toda noite o turbilhão das vagas de pensamentos a chocarem-se umas contra as outras.

58

"Vendo que não podia dormir nem concentrar-me em qualquer leitura, descl as escadas da penillo e comeceI .8 andar a esmo pela cidade. Urna densa neblina 0 envolvia e eu vagava como um ébrio pe~as calçadas, procurando distreir-me com os latos de névoa que a minha respiração acelerada produzia. As !àmpadas dos postes, aureoladas de neblina luminosa, semelha" \-'ôm·se, em minhas alucinações, a cabeças nlmbadas, as vezes de santos., as vezes a dela mesmo, onde o S1.Jrriso era a lâmpada e o diadema os seus cabelos louros. Aquela mulher, por um estúrdio fenômeno de convalênc1a sentimental, pos5ufa, não restava dúvida alguma, como os átomos afins, ii propriedade de integrar-se â minha mente, com ela se confundindo numa combinação explosiva e ao mesmo tempo doce, extremamente sa­borosa, desnervante, como o terr (va! veneno com que finalmente eu a matei."

Nesse ponto de sua narração, Jorge Muniz que furnava cigarro após cigarro, com a apatia de um oriental a sugar lentas cachimbadas de ópio, cerrou totalmente os olhos e ficou em silêncio por alguns minutos, como se desejasse fruir sozinho as suas recordações, em tudo que elas tinham de angustiante, dramático e singular. Depois, balançando levemente a cabeça, como para afugentar visões incómodas, perguntou»me:

- Que horas são? - e, antes que eu respondesse, acres­centou; -~ Vocês precisam ir embora. Há tempo bastante para que tudo seja feito sem muito sacrifício. Amanhã, talvez possa" lnoS concluir o trabalho. A propÓSito, devo advertí-l0 de que as próximas edições dos jornals estamparão seu retrato com !egen· das espalhafatosas que farão do senhor o advogado mais d!scuti~ do da terra. Os concorrentes vão cair-lhe em cima cOm fúria de canibais. Dirão, ao menos, que o senhor é um prindpiante e que eu já estou ficando ma!uco. Mas, a única cOisa que o pode­ria prejudicar nesta emergência sedEI apanhar a luva. Não de en'trevlstus e nÉÍo responda aos insultos. Não procure, também, lançar óleo sobre as ondas. Não dê a mínima atenção 13 essa raça de víboras. Muitos deles andaram por aqui solicitando humilde­mente que eu lhes passasse procuração para defenderem-me. O senhor foi o único que v€!o com propósito honesto, por força

59

Page 32: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

da nomeação judicial a cujo ato eu assisti e na ânsia sincera de aprender. Rerordei-me, ao vê-lo entrar aqui, do início de minha própria carreira em Pandora e das dificuldades que esses patifes me opuseram, a despeito da tremenda bagagem cu Itural com que eu entrei na lide. Não responda a ninguém. A primeira im­pressão é a que perdura, e a publicidade que amanhã será feita em torno de seu nome, não sairá da mente do povo apenas por causa da revolta dos concorrentes contrariados."

Enquanto me estendia, em despedida, a sua mão perma­nentemente gelada, concluiu:

- Lembre-se, os cães ladram e as caravanas passam.

6Q

7

Quando sa (mos do presídio o crepúsculo não havia bai­xado ainda sobre a cidade. Era muito cedo para nosso retorno e ao invés de parar no ponto do ônibus, fui avançando pela rua em direção a um parque que havia nas proximidades. Minha' secretária não estranhou a mudança de rota e seguiu a meu lado, visivelmente à espera de que eu lhe dirigisse a palavra. Nada lhe falei, todavia, porque estava com a mente concentrada na narra­tiva do acusado e porque tinha o hábito de procurar primeiro uma situação confortável para harmonizar as idéias e depois expor, de forma completa, os assuntos que me pareciam rele~ vantes. Foi, portanto, somente depois de estarmos sentados em um dos bancos do parque, que lhe falei:

- Que acha de tudo isso?

- Fascinante. Lamento apenas que deva acabar amanhã.

- Isso não acabará nunca. Por toda parte, a esta mesma hora, outros dramas semelhantes estão se desenvolvendo no espírito de muita gente.

- Não creio. Seu cliente é um ser de exceção. As ondas passionais que dentro dele se revolvem já teriam destru ído a qualquer outro.

- Concordo, apenas quanto à intensidade. A alma hu­mana, como ele mesmo a define, é como as cordas do violino, Quanto mais tensas, mais agudos e dolorosos são os sons que

61

Page 33: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

'oc'U""e,T' ~,\,,'i?vja J friçdio do arco sempre se n~p0te de fila" p, ,t;. " ••. ";' , _ 'p d ~ O" neka mais ou menos aná1og;;L O que ele :~em.'::lç;m0 (L to ,~:;, : outros acusados é a extraordinária conSClem;;\3 de tudo qlL tn0 ocorre á a peculiaridade de agir comO um louco, embora ?ota~ do de' uma lucidez maravilhosa. Estran~ei que houvesse I~ter­rompido tão cedo sua narrativa, sobretudo quando ela chegava a uma etapa culmlnante< O homem, externamente, parece d? ge (0, enquanto por dentro (} uma fornalha incan~escente< Vo~, CO~ os olhos fixos em suas anotações, talvez nao tenha podIdo ob servá.!o como eu venho fazendo. Semelha-s8: de fato, a um para· 1 (tloo, mas seu raciodnio é vertiginoso. Creio ~ue en:;;:~rrou pro­positadamente a narrativa de hol.e porque deseja omitlr ou agra: var certas circunstâncias das quais dependa o curso de seu pro cesso, Seja !á o que for que ele tenha a narrar, cus::a"me crer que um homem tão rico e com tamanha cultura queira mesmo renunciar à luta neste transe. Ele deve ter qualquer e!ement? arrasador de prova que guarda secretamente co~o tru~fo d.8c:'· sivo, para lançar apenas ao apagar das luzes da mstruçso coml­

naL

- Que o faz pensar assIm?

__ O próprio fato de haver aceito o meu patrocínio. Ele estâ tão seGuro do poderio de suas armas que pode se ?a,r ~o (uxo de confla~ sua defesa a um inexperto com.o e~> De l.nlC!o: admiti B hipótese de transtorno mental trans;tór!o. H,?J8, se~ que ele é multo mais lúcido que qualquer de nos. A~red!to q;;e queira ajudar-me, mas, como você ouviu, ele deseja tambem desmora!izar, por meu lntermédl0, toda a classe dos advogados.

_ Não! -~ protestou ela rispidamente. - Você é que não se valoriza,

Achei chocante a maodra peta qual ela me ~ensurava, e quis investigar os fundamentos de seu protesto. Por 1550 pergun" tel:

~> Onde você viu lnd (cios dessa minha fraqueza?

62

I

- Na sua última frase, Já viu alguém mais dotado para a Ci')rreíra do que você? Filho de advogado: sua mãe o criou entre livros, Primeiro lugar em todos os anos do curso. Nunca fez outra coisa senão estudar. Admite que Jorge Mun!z é extre" mamente lúcido; acredita que ele queira defender-se, mas deduz paradoxalmente que ele lhe entregou a causa por caridade ou por espírito de emulação, quando devia saber que um homem como ele tem condições para avaHar rapidamente a capacidade de um colega.

Não sei porque, comecei a rir desrontro!adamente. Aque~ !a menina, por cujo raciocínio eu não dava coisa alguma, estava ali a redonar-me sobre assuntos de psicologia. Lembrei-me, então, de que no meu segundo encontro com o acusado, ele me perguntara incidenta!mente (} que eu entendia por "Erfo!gsha~ ftung" 9, de fato, considerei que todos os criminalistas conhe­cem essa barbara e superada doutrina, mas, somente quando enunciada sob a sua designação em vernáculo, cujo título é auto~xp!anat6rio. Indicada, porém, como havia sido, na no­menclatura tedesca, poucos advogados poderiam, sem prévia consulta aos livros, saber o que significava. Na verdade, pensei, a menina tinha razão, O homem realmente me testara antes de aceItar os meus servlços. Mas, como ele mesmo alegou, somente o fizera para saber se eu podeda tirar proveito da causa. t claro que na Instrução do processo ele poderia funcionar sozinho. Mas, na sessão do júri, isSo seria impraticáveL Circunstâncias que se alegam em relação a outrem durante um julgamento, não podem ser esgrimidas pelo próprio interessado porque o elemento emo­ciona! do Júri, no que tange à defesa, é sempre a valorização do réu e a desmoralização da vítima. Ora, no caso dele, equivaleria a um chocante cabotinismo qualquer consideração a seu próprio respeito, e um ato de extrema covardia ou de inquaHficáve! tor­peza tripudiar sobre o cadáver da assassinada. Além disso, como norma genérica, abrangente de todos os casos submiSSOS à deci­são do tribunal popular, impõe·se sempre fi referência a paixões incontroláveis ou a transtornos emocionais do paciente que nunca seriam acreditados se expostos pelo autor do delito, por­que a própria segurança com que fossem explicados constituiria prova de que ele, tão lúcido em sua oratória, não podeda ter

63

Page 34: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

sido vítima inconsciente das pressões anímicas que alegasse. Somente em uma hipótese, em casos de uxoriddio, é aconselhá­vel a auto-defesa perante o júri. E quando a tese deva ser a de negativa de autoria. Mas, esta, ele mesmo já havia destruído com a sua sensacíonal confissão perante o magistrado.

Além de tudo isso, havia uma certa incoerência entre o que ele declarara inicialmente e o que vinha surgindo no curso de sua narrativa. Quando me confiou sua defesa, disse que não me prestaria colaboração alguma. Mas, que subs(dio melhor pode pretender um criminalista do que uma narrativa tão minuciosa? Quantos são os réus que nada sabem explicar, cumprindo ao advogado tabular excludentes, causas de inculpabilidade e ate­nuantes, às vezes frontalmente contrárias às provas dos autos? Com uma narrativa tão detalhada, a adaptação do caso concreto a uma tese dOl!trinária, se tal tese existir, é trabalho muito fácil. Na certa, o que ele quis dizer foi que exigia de mim, ao menos, esta habilidade. Resumindo,a censura de minha secretária quase me convenceu de que eu havia sido aceito pelos meus pr6prios méritos. Nessa convicção, embora provisional, voltei-me para ela e perguntei:

- Acred ita no meu êxito?

- Quanto ã absolvição. parece claro que você perderá a causa. Ele não faz segredo de nada e até se incumbe de redigir as suas memórias, para que todos conheçam a sua tragédia. Li, certa feita, em Dostoiévsquí, considerações em torno de suicidas que antes de deixarem cair o pano gostam cie'escrever longas cartas. Sua mãe já me falou a resperto de sua participação na causa. Segundo ela, a vitória não está na absolvição e sim na publicida­de. E esta, nós veremos amanhã que amplitude terá.

- Acontece que nem você nem minha mãe podem compre­ender o que eu sinto. Essa homem confia em mim e eu não pos­so vê~lo apenas como uma fonte de lucro. Todas as minhas ener­gias serão aplicadas em seu beneHcio. ainda que contra sua von" tade. Amanhã expira o prazo da defesa prévia e ele não me indi­oou as testemunhas. Embora ele não ofereça um álibi, e absurda

64

seja a hipótese de negativa de autoria, nem por isso a omissão perde a relevância porque, como possivelmente terei de argüir a coação moral irresistível, tese eficaz perante o júri, a ausência de testemunhas de defesa praticamente liquIda a causa. Ou será que esta narrativa vai nos conduzir à tese do homiddio piedoso? Seria magnífico! Mas, infelizmente, essa hipótese não tem nenhuma procedência. A vítima não sofria de corsa alguma. Nã'o há, no processo, qualquer alusão a essa eventual circunstância. Só nos resta esperar.

- Muito interessante esta sua arte. - disse·me, como para condUZir-me por via transversa à discussão de assuntos pessoáis.

- Você enunciou um tru (smo. Que se pode admitir de mais empolgante que o crime? Dentro da alma humana, nada pode existir de mais excitante que o delito, a não ser, como é óbvio, a loucura. Mas, insânia e crime, são dois fenômenos tão entro­sados que sua linha divisória não é perceptível. Sobre este assun­to, aliás, foi que se erigiu a torre monumental do positivismo. O que me parece curioso é que vocês, os leigos, os profanos, os não iniciados, assim se surpreendam quando se deparam com um caso concreto. Porque, ao final de contas, quase toda a lite­ratura se alimenta dessa seiva. A história da civilização não é mais do que a história dos grandes crimes da humanidade. A cinematografia explora também essa motivação. Em todos os países, milhões de pessoas vivem do crime; praticando-o, defen­dendo-o, evitando-o, perseguíndo-o, ou julgando-o. Todas as casas têm portas e fechaduras. Os bancos não existiriam se o crime não existisse. Assim os exércitos, as pai ícias, as fábricas de cofres, de armamentos, alarmes, e tudo mais que você idea­lizar com que se vulnere ou proteja os direitos do cidadão. Quem olha com desprezo para o crime, não tem consciência da vida. Ele está por toda parte e, eu mesmO, muitas vezes adormeço concebendo a execução de alguns.

- Você está certo. Basta que a gente dê alguma atenção ao assunto para sentir logo a sua importância.

- Mas, não foi por isso que eu me dediquei ao estudo da criminologia. Numa cidade como São Paulo qualquer espada-

65

Page 35: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

!Idade acha d.emanda. O que me fascinou nessa ciênclr, foi o $0U

inextrlcável entrosamento com todas aS manifestações da vida, Como você ouviu o acusado explanar, quase todas as ciências desembocam nesse delta. Ninguém pode pensar em ser um gran· de criminalista sem possuir cultura unIversal. Em sua variedade, tão mu!tifár!a como a própria alma, o crime, não como ente jurídico, mas como fato humano, talvez nunca venha a ser per" feitamente explicado e compreendido. A tendência hodierns, aliás, é deslocá-lo do Direito Pena! para confiar os pacientes ao tratamento dos psiquiatras e ii segregação dos nosocômios. De qualquer forma, esse fenômeno de patologia social nunca se apresenta com a simp!lddade de um enguiço de automóvel, de uma apendicite, ou do desabar de uma ponte, A coisa diz, sobretudo, com a alma humana e, quem virá um dia a compre, endê-Ia? Desde o sapato que aperta, até um cálice de aguardente ou um encontro fortuito, o crime é a resultante de uma carga torrencial de fatores que se multiplicam pela personalidade do agente, a qual, por sua vez, é sempre uma quantidade desconhe­cida, Por isso, o crime até hoje é uma doença sem remédio, De nada valem as penitenciárias, esses monumentos à estupidez humana que até mesmo os tribunais já classificam como sendo as escolas primárias, secundárias e superiores do crime. Oh! De quantos anos de meditação e pesquisa eu ainda necessito para alcançar a verdade!

- Então, devo entender que das manifestações da alma, o crime é o que há de mais importante?

~ Não me ponha palavras na boca, Eu não lhe disse isto. O crime resulta de um tumor anímico que ao explodir vulnera o direito alheio. Em sua origem, pertence à patologia do senti­mento. Por isto é que é fascinante, como todas as coisas exótf­caso Mas,o importante na alma humana não é a sua enfermidade. Muito ao contrário, é a sua capacidade de resistir ao impulso crí~ minoso. t preciso, todavia, que você não confunda virtude com medo ou falta de ocasIão vantajosa para violentar a norma da qual dimana a lei penal. Na vida, sé) é importante o que constrói­Até Nietzsche, tão caluniado e incompreendido, assim o ensinou, Quando preconizava o sacrifício da massa em favor do super-

66

homem, não o fazia por crueldade, Visava o aprimoramento da espécie, pondo a serviço do seu ente excepcional os incapazes de progredir. As grandes coisas da alma são: o amor, a fé, a carida­de, a cultura, a abnegação, o hera {smo e 1.1 Justiça.

-~ Tem estudado também sobre o amor? --perguntou-me timidamente.

- Sei que você vai rir, chamar~me de maníaco, e com ra" zão. Já fiz algumas pesquisas sobre o amor. Mas, todas elas em sua conexão com o delito. Os mestres italianos de crlmino!ogía versam este assunto admiravelmente. No sentido pessoal, nunca me detive no estudo de seus fundamentos. O amor que sempre senti por minha mãe é tão inato, tão recíproco, tão habitua!, que me passa despercebido. Poderíamos aprender muito com Jorge Munlz, mas, até agora, em sua narrativa, excErto nos pró­dromos, por toda parte sobrevoa, com suas asas negras, o mor­cego do delito.

As luzes do parque já estavam acesas e a noite caía rapida­mente, acompanhada dessa garoa pertinaz que orvalha a cidade em qualquer época do ano< levantamo-nos as pressas, pegamos o primeiro ônibus e logo chegamos às nossas casas.

Quando, depois do jantar, já estava eu absorvido, como sempre, pelas minhas leituras, rápidas e insistentes pancadas na porta fizeram-me saltar da cadeira para ver o que seria. Era a secretaria que, atropelada mente, me informava que o aparelho de televisão de sua casa havia reproduzido minha fotografia com bombástico noticiário, e que Jorge Muniz havia declarado fi imprensa que estava certo de sua absolvição porque confiara a causa: ao maior criminalista de São Pauto.

Uma gélida corrente percorreu todos os meus nervos e confesso que fu! incapaz de pronunciar qualquer pa!avra, Nem sequer convidei a moça a entrar, como seria de meu dever. Deixei-a na soleira da porta e fiquei 11 andar pelo corredor, numa inquietação vizinha a da angústia. Pensei na fisionomia austera de meus professores e no pedantIsmo dos que detinham o pri-

67

Page 36: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

mado da advocacia criminal na cidade. Depois de algum tempo, abri como um autômato o armário da copa, apanhei uma garrafa de vinho, enchi um copo e engoli o conteúdo de um só ímpeto. Minha mãe já dormia, como de costume. Senti que a bebida me devolvera um pouco de confiança. Voltei à porta, onde a moça ainda se achava, sem saber se lhe convinha ir embora. Agradecí­lhe a atenção e disse-lhe à guisa de despedida:

- Amanhã irei buscá-Ia, à mesma hora de hoje.

DepoIs que ela saiu e pude afastar da idéia os problemas que adviriam daquela publicidade exagerada, fiquei também apreensivo com a dedicação daquela moça que de maneira tão ameaçadora vinha me envolvendo, e determinei-me a não mais prolongar a sua expectativa, dando ao caso, na primeira oportuni­dade, a solução que ditasse a minha consciência.

68

8

No outro dia, quando minha mãe me acordou, já estavam sobre a mesa alguns jornais. Ne!es, as minhas fotografias e as do acusado apareciam sob vários ângulos. As manchetes eram as mais absurdas. Nas notícias. eu era tratado como se fora um ente inadmiss(vel, isto é, um sábio precoce, e em todas elas havia alusões mordazes de meu constituinte aos demais crimina­listas. Como não tinha tempo de ler tudo, inteirei-me do princi­pal e 58 ( em busca da secretária para continuarmos a ouvir a narrativa.

Alegre, ela me disse que passara parte da noite traduzindo os sinais estenográficos e que logo poderia fornecer-me o texto datilografado. A certa altura, perguntou-me:

- Que lhe ocorreu ontem, quando lhe deí aquela notícia?

- Senti-me como um rei de opereta. A certeza de que ter­minada a peça voltarei ao meu justo lugar de atar, sem trono e sem coroa, deixou~me apavorado com a minha queda iminente.

- Você parece incurável. Mas, quando começar a ver seus concorrentes sem óculos' de aumento, tudo isso desaparecerá.

- Jorge Muniz, por sua vez, ao nos receber, perguntou fria­mente, como aliás sempre fàzia com relação a tudo;

- Os jornais publicaram minha entrevista?

69

Page 37: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

· -- Se pubtjeararnl Urna 8vaL:mchede fotogrGefias e COmen-tános que, a esta altura, devem estar produz:fndo espasmos v8si, c;dare~ nos d<?nos ~o crime aquI em São Paulo. ~ impossfve! que e~es nao vomitem Impropérios sobre nós, ainda na próxima edi­çao,

- Ê o choque de retorno. lógico e inevitável. Não pode­mos esperar que eres se resignem a lamber em sf!êncio as feridas. M~s, nao se preocupe. Para viver entre esses farsantes, a primeira COIsa ~que o ~nh?r tem de fazer é engolir um sapo todas as manhas. DepOIS .d!,sso, adquirir a d1svu!nerablndade de que fa!a­V? ~ombroso. Cmtsmo para com eles e fidelidade aos seus cans" tttumtes é a norma indispensável para o êxito, O mais, é estudar estudar sempre, mesmo quando se olha para alguém ou CO~ alguém S?~ co!1ver~. Não se Hu.da com a fábula do talento, pOr­que a ClenC!8 oao tem cammhos para prfncipes. lembre~se sempre de: que gênio é trabalho. Quanto à imprensa, já dizia Lenme que ~o povo será sempre 0. estúpida vítima do engodo, enquanto nao aprender a descobnr em cada artigo o interesse que at:ás dete se embuça. Eu sempre li lomal às avessas e perce­bo facr!mente quando e porque um canalha está sendo promovi~ d;, e um justo crucificado. As massas de manobra, entretanto, 580 ~rrastadas pelos meios de comunícação. Mas, para elas, o que };oport? _á o tamanho publicitário que- o indivíduo adquire. Herol ou v!lao, só os distingue pelo tamanho. Se um ou outro for gra~de, será sempre admirado, apenas por isto. Ademais, a praxe vIgente de endeusar o patife e difamar o homem honrado, vem estabelecendo uma notória confusão no espirito dos leito­res, Já não se sabe, realmente, o que ma!:> aproveita àquele cujo nome aparece nos jornais, se o elogio ou 3 cmamacão. O fenô~ meno é a~t!goi anterior ao próprio jornat, vem do tempo em 9u~ a not!Cla era transmitida de boca a ouvido, como lembra o m~ld:nte do eleitor grego que queda votar pelo banimento de ~nst;?es, por. já estar cansado de ouvfr chamarem-no de "o jUsto . Use B Impren.Sâ quando lhe aprouver e não se preocupe com o que eJa pub!!car a seu resDe!to e srm com o vQ!ume da publicfdade. '

- E se eles vierem com calúnias?

70

-- Para o criminalista, nada existe melhor do que umB campanha cakmiosa, contanto que, pelo tamanho e intensidade, alcance o rnáxlrno de leitores. Os perseguidos da justiça, vendo-ü continuar tlvre e defendendo causas, acreditarão forçosamente que ele possui a fórmula gera! da Impunidade e pagarão o que ele quiser para que a apHque em seus casos partícu!ares. Quanto maior 'for a campanha, maior será o prestígio do criminalista, porque o povo pensará, então, que ele é Invencível, Com re!aÇ<;'1o ao lado moral desse aproveitamento, é claro que sendo inocente dos crimes que lhe atribuem, o criminalista não sentirá constran­gimento algum em locupletar-se às custas da propaganda, Os !u~ eras terão ainda, para ele, o sabor agradável de uma silenciosa vlndlta. A!ém disso, sentindo o poderio da calúnia em sua pró­pria carne, terá mais sensibilidade para admitir que seus consti~ tulntes também foram caluniados e, com mais ardor e determi~ nação, cumprirá os deveres da defesa. Algo semelhante ocorreu com C!arence Darrow, o mais famoso dos crlmina!1stas amerlca~ nos. Depois de abso!v!do em processo com o qual pretendiam metê~!o na cadeia, puniu o seu pa (5 com a libertação de uma infinidade de bandidos que, naturalmente, voltaram à senda crimil'ioSi!:

~ Até a!, o raciocfnio parece certo, Mas, que me diz sobre a reputação do crlmína!ista, seu conceito, aqu!!o que ele representa para a sociedade?

- O cdmina!lsta não pode preocupar-se com a soc!eda­de, porque não tem deveres para com ela e sim para com seus patrocinados. Do contrário, a defesa crirnlna! só seria admissí­vel quando os interesses do réu não colidissem com 0$ da socie­dade, e isto só OCOrre quando ele é inocente. Nada podendo esperar da coletivlàade, porque com ela se acha, como repre­sentante dos réus, em permanente antagonismo, não pode o criminalista af!lglr-se com o que dele pensem outras pessoas além de seus constituintes. Se agir de outro modo, estará ser~ vindo a dois senhores e sacrificará forçosamente um em favor do outro. Concluindo, o importante para o crimlna!ista é que faiern dele, bem ou mal. Se lhe atribUlrem crimes, tudo deve fazer parn que todDs, conl exceção dos ju (zes, acreditem na

71

Page 38: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

imputação e também na sua invulnerabilidade, no seu miracu­loso poder de fulminar processos. Sua desgraça única advirá do silêncío em torno do seu nome. Se não o elogiarem nem acusa­rem, o povo pensará que ele não vale nada. E pensará certo, por­que se va!essealguma coisa seria fatalmente invejado e discutido. Logo o senhor verá que tenho experiência no assunto e que falo com autoridade. Minha índole intransigente e o 1nfame !oca! de minha experiência, onde a miséria gera! obrigava os advogados a darem tapa em cachorro para tomarem o osso, impediram-me, todavia de lucrar com as generosas calúnias de meus desafetos, Um mínimo de cinismo teria bastado para que eu engolisse a todos. Mas, que me adiantaria reinar sobre a miséria? Contínue­~os, portanto, o nosso trabalho. Creio que interrompemos o ditado no momento em que eu deambulava inconscientemente pelas brumas, às vésperas de meu retorno a Pandora. Prossiga­mos:

"Com uma pequena bagagem de livros raros e a mente ajoujada ao projeto sinistro que aquela mulher me insinuara regressei a Pandora e tudo fiz para retomar o curso de minh~ vivê,nda anterior. Logo na primeira noite, no entanto, compre­endi toda a potencialidade do impacto que havia sofrido naque­le enoontro. Quando minha disposicão para o estudo não era muito grande, costumava, mesmo assim, sentar-me à mesa com uns oito volumes de matérias diversas, a fim de que, quando um assunto me cansasse, pudesse ter à mão outro diferente e ir adqujri~do, de qualquer forma e sem perda de tempo, algum conheCimento,

"Naquela noite, entretanto, o expediente não funciona­va. Ela corria de automóvel pelas linhas impressas; desaparecia para logo voltar e, às vezes, ocupava a página inteira com seu enorme sorriso ou a enrugava bruscamente com suas mãos cris­padas. Nada, absolutamente nada, a não ser a lembrança daque!a mulher, atraía a minha atenção. Ela estava tão presente que excluía tudo o mais. Eu já lhe ouvia a voz e me surpreendi res­pondendo de novo às suas perguntas, como se estivesse ainda em São Paulo. Esse processo de envolvimento e alucinacão deve ter atingido a um clímax desesperador, porque lá pela' madrugada

72

meu pai avançou para mim com passos incertos e os bracos estendidos, experimentando o chão e tateando o espaço, coino passar~ a fazer depois que a cegueira o vitimara, e perguntou-me se haVia alguém ali àquela hora ou se eu estava passando mal. Deí-Ihe uma desculpa qualquer e ele me disse:

. "-~Vá dormir. Você estuda demais. Era isto que eu que, na, mas nao da forma que você vem fazendo, Ainda há muito tempo pe!a frente, Vá descansar.

"Tranqüilizei-o e o conduzi de retorno à cama, guiando­o por detrás, com as mãos postas em seus ombros, como ele :nesmo me ensinara. Depois, subi para o meu quarto e fiquei da janela olhando a rua deserta. Aí, então, foi que o transe alucina­tório atingiu ao paroxismo. Cheguei a abrir o armário e a jogar sobre a cama umas peças de roupa, com a intenção precipitada de voltar imediatamente a São Paulo. O baru!ho que fiz acordou meu irmão mais velho, que dormia no quarto ao lado e me apa­receu à porta, perguntando-me o que ocorria. Nada lhe quis revelar, porque o assunto de minha preocupação era daqueles que não se transmite a ninguém. Disse-lhe que não era nada, que estava apenas procurando um documento que julgava ter perdi­do e, naquele instante, tive uma lembrança salvadora,

"Depois de achar~me sozinho, desci de pés descalços a escada, apanhei no armário de medicamentos a seringa de lnje­ção e uma das poucas ampolas de morfina que sobraram da fase aguda da doença de meu pai, que inicialmente lhe produzira dores tão cruciantes que ele, em desespero, pedia que lhe arran­cassem os o!hos. Naqueles transes, o único recurSO era anestesiá­lo e adormecê-lo, ° que foi feito semanas a fio com aquelas am­polas cuja ação eu conhecia sobejamente, não só por vê-Ias atuar sobre ele, como pela imensa literatura artística e cientffica que eu já havia perfustrado a respeito, Esterilizei a seringa, voltei ao quarto, injetei-me com a droga e estirei-me na cama.

"A mulher continuava ali presente, mas já não me angus­tiava. Rla-se docemente para mim, como quando eu voltei da Europa. Se, naquela ocasião, os nossos pés não tocavam o 0010,

73

Page 39: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

agora, eu e ela" de mãos en!açadas, flutuávamos peio espaço oomo nuvens embaladas pelo vento. Toda a ternura de nossos primeiros encontros ressurgia em cada rnovimento de seus lábios e na alvura de seu sorriso. Tudo, porém, se processou vertigino­samente. Logo eu devo ter imergido em sono profundo. Somel1' te sei que no dia seguinte, sentado junto a mim, estava meu ir­mão, esperando que eu acordasse.

O despertar fOI lento e nebuloso. Ele não me fez per­guntas, enquanto nâ'o tentei levantar-me, Quando ISSO ocorreu, inquiriu-me:

"- Que se passa? Já Vt a ampola.

"Concentrei todo o lenço! em volta de ambos os pés, que estavam gelados e respondi:

"Nada. Apenas uma crise nervosa, Creio que foi o exces~ so de estudo.

u_ Essa, nãol Estudamos com a mesma intensidade e meu assunto é física e matematica. Não é essa literatura agradá· vaI que você absorve. O estudo não enerva. Não conheço melhor tranqüi!izante. Diga mesmo o que ocorre, para buscarmos a solução adequada. Não quero ensinar padre-nosso a vigário. Por isto, não necessito dizer,!he que essa droga vai destrui-lo.

"-," Eu sei. Contudo, há outros venenos que não se vende em ampolas, em comprimidos ou em cápsulas, e que destroem ainda mais completamente. Não insista. Só eu posso medicar­me. Isto não se repetirá.

,,~ Seria mesmo triste. O velho já cegou e nóS somos o seu único amparo. O pouco dinheiro que ele ainda tem não da sequer para que você possa concluir o seu curso. E, seria um absurdo se o filho pródigo, depois de recuperado, S6 extraviasse novamente.

"Se eu não estivesse entorpecido pelos efeitos ela morfi­na, certamente tê,!o-ia expulso do quarto com gritos de desespe-

74

r0_ Ta! era, no entanto, o profundo bern estar que sentia, que consegui, entre dsos complacentes, dlzer-lhe:

"Tudo com você é na matemática. Já calculou nossos recursos e é impossível que tenha errado. Para tão pouco, aHás, não seria preciso socorrer~se da equação cartesiana ou do cálcu­lo infinitesimal. Fique tanqüilo> Tudo correrá bem.

"Ele não se molestou. Manteve silêncio completo sobre o lncldente __ mas deu sumiço às ampolas restantes, como vim a comprovar na noite seguinte, quando, vítima novamente das mesmas alucinações, procurei~as no armário.

"Essa fase, não direi que foi a mais difícil de minha vida, porque, como se verá, ela daI em diante consistiu numa verda­deira corrida de obstáculos em cuja disparada tive de saltar pre­cipícios de todas as espécies. Aos poucos, todavia, 'fui canse, guindo equmbrar·me, mas somente valendo-me de um único recurso, Este foi o de p!anejar o homicídio de que eu ficara encarregado, como se Sua execução devesse ocorrer a qualquer momento, As,,"iim, dependendo tão só de minha vontade a consu­mação da tarefa, ficava eu com o domínio de tudo e, portanto, em condições de espancar todas as dúvidas, perplexidades ou incertezas, que eram exatamente a causa de toda a minha angús~ tia, Dos anais criminógenos e das hipóteses de laboratório jurí­dlco, extra ( logo umas cinco fórmulas de crimes perfeitos, guardel~as na memória, e pude novamente afundar·me nos Ilvros com a mesma ânsia desesperada de aprender Que já me levara tão longe. Resotvi 'ficar esperando que ela, impulsionada por sua determinação, reclamasse o meu retorno, quando então eu procederia como um raio que fulmina uma árvore, definindo de uma vez por todas o nosso destino.

"Mas, o tempo foi passando sem que ela me desse qual­quer notícia. Somente pejo Nata! Toi que recebi um cartão de boas<festas, sem outro adendo a não ser a sua assinatura abrevia· da. Assim, sem notícias dela e com muito estudo, passou-se o ultimo ano que me separava da f0rf113tura,

75

Page 40: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Naqueie interregno, todavia, para convencer-me da viabilidade do crime perfetto, cujos teoremas eu já dominava, mas que poderiam, na prática, ser talvez contrastados por fato­res imprevistos, dei-me aO trabalho de traçar um esquema onde todas as hipóteses foram cuidadosamente estudadas, de modo que, no final, nenhuma dúvida me restou sobre a exeqüibilídade do crime impunível. A esse esquema, mais tarde, eu dei forma de novela, sob o título de "O Tigre de Papel". designação que sempre julguei apropriada a certos proCessos criminais que, com rugidos e ameaças, costumam apavorar os acusados, enquanto hibernam sua impotência na poeira dos arquivos, Essa novela jamais foi publicada, porque acima da minha vaidade de autor estava a conveniência de não ensinar à polícia como ela poderia agir para frustrar minha impunidade, caso viesse a aplicar qual+ quer das fórmulas selecionadas. Ela continua, entretanto, guar­dada em um dos cofres de minha casa e talvez um dia, quem sabe, eu ainda permita a sua edição. Desses crimes perfeitos, três já foram executados sob meu comando, e exatamente por serem perfeitos não vejo inconveniente algum em relatá·los, quando oportuno,

"Depois que me graduei, entendi que devia disputar o primado da advocacia criminal na cidade. Logo. porém, ao en­saiar sozinho os primeiros passos nessa arte, para a qual eu esta­va teoricamente mais do que preparado, comecei a compreender o quanto de mistificação, tns(dia e torpeza, concorria para o êxi­to daqueles que ali brilhavam na especialidade, Suprindo defi­ciências cu!tura'is, ou melhor, totalmente despreocupados da ciência juddica, cuja invocação lhes parecia desnecessária, os falsos criminalistas de Pandora dedicavam o tempO a cortejar juízes, a abraçar repórteres e, suprema infâmia, a prestar subser­viência aos esbirros policiais. De cultura mesmo, de talento e da independência inerente à advocacia, não tinham coisa alguma, Se fossem submetidos a um exame verdadeiro, nenhum deles conseguiria a revalidação do diploma. Além do mais, viviam como fariseus, de falsa austeridade e jactância, cobertos de d rvj~ das e de crimes, como os definiria Gambena.

76

Não sabendo manejar a lei, pors não precisa violentá-Ia quem a sabe interpretar, aqueles pretenso, criminalistas estupra­vam a ciência de maneira escandalosa, deixando-me estarrecido ante o sucesso que logravam em ju fzo com suas teses hílariantes, Como exemplo, posso citar o caso do campeão de tiro ao alvo que matou um desafeto numa chácara e foi absolvido liminar­mente porque, para todos os efeitos, teria suposto que a vítima era um macaco! Em outro caso também rumoroso, a rica assas­sina de um menor teria pensado que nele atirara com um revól~ ver de brinquedo. Ali, portanto, a cultura jurídica era desneces­sária, O tráfico de influência tudo resolvia. Mas, o fato é que alguns deles freqüentavam a tribuna do júri e arrancavam cons­tantes absolvições que, honestamente, não se poderia atribuir apenas à corrupção, porque apesar da baixa categoria dos tra­balhos oratórios, nestes havia, não se pode negar, um certo teor de audácia, de irresponsabilidade e impudência que certamente impressionava os jurados, levando-os a acreditar nas alegações da defesa, ao menos em razão da embófia com que eram produzi­das.

"Eu, que à força de estudar, pouco falava, deixei-me ini­cialmente abalar com aqueles sucessos e acreditei que embora não tendo nem um centésimo de minha cultura, eles haviam sido agraciados com um dom excepcional que eu não possuiria. E, como não se pode ter êxito na advocacia criminal sem a pu­blicidade do júri. fechei os meus tomos de dogmática, comprei todas as obras dispon(veis sobre eloqüência e retórica e estudei minuciosamente as biografias dos grandes tribunos. Tomei como modelos a C(eero e Mirabeau e, inicialmente, como Demóstenes, decorei até as vírgulas dos meus discursos, Quem passasse pelo casarão onde eu morava, a qualquer hora em que eu ali estivesse, pensaria na certa que eu estava ficando !ouco. Falava sem parar horas a fio, gesticulando como um ator e exercitando a dinâmica da fisionomia em discursos intercalados de orações bíblicas e definições precisas da conceituação do crime, das excludentes, das causas de inculpabilidade, das ate­nuantes, e de toda a atomístíca substantiva e processual.

77

Page 41: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Depois de seis meses de eXercfdo, penJoem-rne os daquI 0 rninha imodé:'ila, a1l, naquela terra tão amante da retó-· rica, ninguém que iundonasse no Júri teria conseguido sa!var o falso prestígio, se comigo houvesse duelado, A oratória daqueles cretinos fusforeSt,,'Cntes, como O'Annunzio os classificaria, era espumoso, flácida, pernósticô. Torturavam os cidadãos jurados com apartes idiotas, com a interminável leitura de depoimentos ineptos e com a recitação morosa de noções elementares de Di· reito Penal. A minha, pelo contrário, jorrava em cataratas sobre os ouvintes, transportava'"'Üs a todas as épocas históricas, fazia.-os visitar 0$ templos, os presídios, os tumu!os, 05 teatros, as praIas, os necrotérios, os jardins de infânda, os monumentos, os par> ques, os museus, as bibliotecas, e tudo que pode interessar ao estudioso ou ao turista, Quanto ao elemento emociona!, era ele dissecado através do estudo cíentífico e símultaneamente romântico, patético, de todas as paixões que subjugam a alma humana. Aí, então, desfilavam em suas expressões originais, todos os grandes dramaturgos e poetas, De Shakespeare, de Byron, de Goethe, de Petrarca, de Camões, de Castro Alves, de Baudelaire e de multos outros, sabia eu, nos originais e de memó' ria, os textos mais brllhantes< Em resumo, e com franqueza, a diferença entre mim e os meus concorrentes era a mesma que hoje se percebe entre um cantor j {riro e um soprador de música popular.

"É: daro, como diria Vargas Vila, que aquela ninhada de corvos não podia admitir que em seu melo houvesse surgido um filhote de águia e passou a bicar*me ferozmente. Sem ser conVI­dado, eu viera perturbar o equllfbrio ecológico, para eles edênl, ro e proveitoso. Por isto, em toda parte onde eu chegava Já fora precedido por uma intriga. Os con!>'1Jtulntes que me procuravam, eram, logo a seguir, assediados por prepo!>'tos de meus concor­rentes que, por seu intermédfo, se ofereciam para trabalhar por menos, advertindo-os ainda de minha imaginária periculosidade, bem como da suposta aversão que contra mim nutriam os magis­trados, ressalvando, todavia, a minha capacidade cientifica, por" que dela não ousavam escarnecer. Alguns polielais, descontentes com a minha into!erância ante os crimes que eles diariamente pratitzvam e a maneira arbitrária como exerciam suas funções,

78

Incumbiam-se de desviar para os escritórios de meus antagonis­tas todos os presos que inicialmente em mim confiavam. Os pró­prios ju{zes, preferindo lidar Lum aqueles que lhes monopo!lza· V8m os ouvidos, queimando em sua honra toda fi mirra de seus turfbulos, faziam insinuações laterais, equívocas, desproposita­das, mas de alcance tremendamente destrutivo para a minha reputação.

"O círculo provinciano foi, desse modo, fechando~se contra mim, enquanto eu, incapaz de digerir os conselhos da covardia, os protestos de falsa solidariedade dos colegas e a re~ provação da protérvia ou da ignorância coletivas, já não cumpri" mentava mais ninguém. Defendia, apenas, os refugos da c!\ente!a alheia. Os Jornais nada divulgavam em meu favor, e o fX)vo, como sempre, não vendo as árvores porque a floresta o impedia, não tomava conhecimento dos motivos por que outros apare" clam nas manchetes, condecorados de elogios, enquanto sobre mim se fazla silêncio tumular, Mas, quando eu contrarIava a polícia, inibindo~a de espancar e extorquir, agraciavam~me com o título de advogadO de porta de xadrez, o Que era um infame paradoxo, porque tal apodo corresponde ao chacal que faz a ronda das cadeias, dividindo honorários com policiais para o relaxamento de prisões arbitrárfas. Eu, mesmo que me prestasse a tamanha indignidade, era incapaz de praticá-la, porque jamais pude acercar-me de cadela alguma em Pandora, sem experimen­tar acessos de vômlto psicológico.

"Vl~me, assim, no dilema de amoldar-me às circunstân­cias ou, como no solilóquio de Hamlet, arremeter contra um mar de ca!amídades. Não me dispondo a antepor comportas à corrente, e não cabendo também na camisa de 'força da aCOmo" daçao servi!, optei decisivamente pela última alternativa e abri luta cerrada contra Deus e o mundo, Dessa forma, acossado por várias matBhas, fui forcejando por sobreviver, até que tomei uma resolução extrema. Já que aquele povo era tão estúpido como os de Corazim e Betsaida, para não compreender os mila­gres que eu an fizera, decidí-me, ao" invés de espatifar como Moisés o bezerro de ouro, a punir os imbecis que o adoravam.

79

Page 42: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Transformei minha sala em um laboratório de fraudes e comece! a multar inexoravelmente quem dele se aproximava e quem portasse algum rabo onde eu pudesse lançar fogo. Aqui· lo que a lei, a doutrina e a jurisprudência não davam remédio, eu curava por outros processos. Documentos públicos ou parti­culares de toda natureza e para todos os fins, desde o passapor­te até a certidão de óbito, eram ali forjados por peritos, com tal perfeição que dificilmente poderiam ser impugnados. Pesquisei a vida pregressa dos grandes da terra e encontrei, ora um filho espúrio não reconhecido, ou qualquer outra mazela cuja divul­gação lhes seria imensamente desagradável. Se um luminar da advocacia patrocinava alguma defesa onde corresse dinheiro, eu captava procuração dos familiares da vítima e atrapalhava os conchavos de gabinete, somente silenciando sobre as prevarica­ções depois de devidamente remunerado. Se ao meu conheci­mento chegava a ocorrência de qualquer delito pelo qual alguém estivesse sendo processado, eu procurava descobrir as ramifica­ções do paciente com eventuais co-autores e multava a todos eles a troco do meu silêncio. Dívidas, eu as mandava cobrar a mão armada, quase sempre com notável sucesso.

"Em suma, eu tomara a lei nos dentes e passara a fazer tremenda concorrência à polfcia de Pandora, Tudo que os po­liciais faziam em benefício de sua economia privada, propalando pela imprensa irresponsável e corrompida estarem a serviço da lei, eu executava com habilidade e sem estardalhaço, e o dinhei­ro ia entrando em proporções avultadas. Contudo, o meu verda­deiro prazer nunca foi o de acumular dinheiro e sim o de casti· gar aquele povo pela inconsciência que tinha de seus direitos mais elementares e peta sua adoração fanática aos ídolos de pés de barro que o exploravam cínica e impiedosamente.

"E claro que toda essa atividade subterrânea provocava murmúrios no Palácio da Justiça, nas delegacias policiais e final­mente no noticiário da imprensa. Alguns de meus colaboradores foram fustigados nos porões da chibata, para declararem o que pudessem contra mim. Como, entretanto, eles não sabiam da missa um terço, os inquéritos respectivos foram sendo arqui­vados por falta de provas.

80

"!ncapaz de descobrir os meus verdadeiros crimes e alarmada com o profundo conhecimento que eu tinha de seus homicídios por empreitada, suas prevaricações funcionais, seus peculatos e suas extorsões, a máfla dos homens honrados de Pandora apelou para a difamação jornalística, na ânsia de desa­creditar previamente as minhas denúncias. Entretanto, como tudo que publicava era por mim refutado com extrema violên­cia, essa cáfila de mistificadores recorreu em desespero à urdidu­ra de delitos de ensaio, através de agentes provocadores.

"Quando meus inimigos poriciais detinham ladrões, este~ lionatários, empreiteiros de homicídios ou receptadores que soubessem "encenar uma comédia, prometiam-lhes liberdade imediata, desde que se prestassem a declarar ínfâmias contra mim. Esses infelizes, vendo seus companheiros de masmorra diariamente espancados, e tremendo de pavor ante a ameaça de serem transferidos para o campo de concentração de Rocha Negra, onde os detidos eram esfaimados e seviciados até a morte, sem ao menos uma câmara de gás que lhes abreviasse os sofrimentos, aceitavam a missão indigna e cumpriam rigoro­samente as instruções recebidas. Logo que eram condicional­mente libertados, compareciam ao meu escritório e imploravam minha interferência em questões diversas que seus rncubos transmudavam depois em crimes fantásticos, para o efeito de destruirem minha reputação e, estribando-se em falsas declara~ cões que mandavam esses mesmos súcubos assinar, eles, os into­cáveis, forjavam processos com os quais ambicionavam me empurrar na penitenciária.

"Mas, como tudo isso ficou apenas no ladrar da impren~ sa, porque a Justiça não podería considerar cr1mes nem flagran­tes de tentativas criminosas a essas tranquibérnias policiais onde as pretensas vítimas eram sempre delinqüentes notórios, passaram os meus concorrentes à fase das ameaças diretas à minha integri­dade tísica. Para aquele caldeirão de bruxas fora eu quem enve~ nenara a caixa d'água e tinha de ser destruído a qualquer preço.

Em conseqüência, eujá não podia andar pelas ruas desar­mado ou sem a cobertura de um pistoleiro de confiança. Por

81

Page 43: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

isto, contratei a assistência de um individuo que fne haviam re­comendado corno sendo um possesSQ do demónio e Guja cora~ gem, vizinha à lnconsdênc1a de um louco, pude evidenciar em várias oportunidades. A descríção fie! desse tipo encherIa um grosso tomo de terato 10g1a criminal. Os policiais apavoravam+se ante a hipótese de lidar com ele em termos de prisão ou interro­gatório, porque sabiam que se lhe tocassem a mão, logo depois de solto ele os fulminaria. De vez em quando,. políticos inHuen· tas pediam-me que o cedesse para missões secretas cujo resuita~ do não podia ser outro que a eliminação sigilosa de alguma pedra de tropeço, Como, durante sua sinistra carreira, estivera a serviço de alguns advogados cuja covardia e torpeza verificou no curso de suas relações com os mesmos, tomou-se logo de profunda admiração por mim e oITo se cansava de reiterar que sob minhas ordens cumpriria qualquer mandato. Juntos, passa" mos a executar algumas missões perlgosfssimas e ele teve ocasião de comprovar, por Vârl8S vezes, a minha lnflexibHidade ante o risco e a maneira sincera com que eu o acobertava em qU8:b'tões legais,

"Aquela altura, pois, passara eu a controlar um disposi­tivo de assalto de tremenda potencialidade agressiva e de absolu­ta confiança, O homem era insensfvel fi dor ffsica, inspirava pa­vor à polícia e jogava a vida com o mesmo desprezo de quem coloca um níquel na roleta de um parque de diversões, Pelo seu gosto, assaltaria de metralhadora em punho o Banco do Brasi!, à luz do dia, desde que eu lhe assegurasse que a operação era viãveL Para ser claro, aliás, devo dizer que não da"iejando estra­gá·!o ou vê-lo perder~se em missões impraticáveis, Hastei muito tempo em argumentações para desvitHo dos desatinos que cer­tamente teria cometido se eu não o cavalgasse sempre de rédeas curtas.

"Assim corria a minha vida em Pandora, quando certa tarde, o rapaz que servia em meu escrítório como atendente e mensageiro ingressou na sala e dlss0"me que uma senhora dese­lava falar-me. Mandei que a introduzisse e, como de hábito, quando 5e tratava de dientela feminina, baixei os o~hos sobre os papéis na escrlvanínha e não olhei para a dama senão depois

82

de pressentir que já estava sentada em uma das poltronas. Quan­do nela deitei a vista, senti que tudo dentro de mim se desinte· grava, Com a fisionomia fechada, contemplando-me de olhos fixos e o corpo em completa imobilidade, assim permaneceu por algum tempo. Por fim dfsse·me:

n._. Se a montanha não vem a Maomé ...

,,~~ Quando estivemos separadOS? Todas as noites estou com você.

,,~ E até quando viveremos assim? AproveiteI a ausência de meu marido, que se acha no exterior, e vim para decidirmos nossa sItuação. Não quero fazer nada sem seu consentimento e sinto que não vou tolerar mais o meu marido depOIS que ele regresse.

Ji_ Você chegou na hora exata, Não temos mais tempo a perder, Basta de anos desperdiçados. Sua determinação ainda é a mesma?

"- Agora é muito mais decisiva, porque, de qualquer modo, ainda que você não venha comigo, ainda que não me li­berte, resolverei o assunto de qualquer forma.

"- Estamos, pois, entendidos. Não falaremos mais sobre esse caso que reputo ilquidado, Quanto tempo ficará aqui?

Volto logo, Ele pode chegar a qualquer momento.

" Qua! ii índole de seu marido, isto é, aprecia as mu­lheres? É conquistável por outra?

,,_.- Creio que sim. UltImamente venho repelindo·o a pretexto de enfermidades que não sinto, e tenho observado que ele se retarda fora de casa. Sei qUe não são obrigações da empre­sa, porque tudo ali é organizado em demasia e hã pessoal habdi­tado para tudo.

83

Page 44: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

,,~ Está bem. Você não participará de nada. Quando ocorrer o inevitável, deve surpreender-se como uma viúva since­ra, recolher-se em casa, negar entrevistas 8, logo depois, partir para a Europa em viagem de restauração dos nervos abalados. Dentro de alguns dias estarei em São Paulo, mas ati não nos en­contraremos antes da dissolução de seu casamento.

"Levantei-me e fui sentar-me numa poltrona próxima a dela, de onde estendi o braço e tomei-lhe uma das mãos. Ela já procedia como eu. Nenhuma emoção aparente, nenhum tremor, nenhum enrijamento dos músculos dos dedos como ocorrera no automóvel.

,,~ Que erro tremendo foi a minha vida, - disse~lhe. ~

Esperava encontrar a paz e o êxito através do estudo. Com isso, entretanto, só ganhei inimigos. Minha vida hoje é uma luta terrí­vel; mais perigosa que a de um piloto de provas; cheia de riscos gratuitos e maldades sem sentido, que vou praticando para encher o vazio que a sua perda me deixou.

"lágrimas silenciosas corriam agora pela sua bela face anteriormente impassível. Mas, desta feita, eu não as sequei com os meus lábios. Estávamos ingressando em um mundo desvaira­do cujo domínio impunha-nos, antes de tudo, o comando sobre nós mesmos. lentamente, ela se foi erguendo. Depois, com uma voz que era quase um gemido:

'~ Não demore. Se você não chegar a tempo talvez eu estrague tudo.

"Beilando-!he os cabelos, enquanto conservava sua mão retida, respondi;

" o assunto não lhe diz mais respeito. Boa viagem.

Ao chegar a esse ponto de sua narrativa, Jorge Muniz pergu ntou·me:

~ Já entrou com minha defesa prévia? Penso que hoje é o último dia do prazo.

84

- Já. Nada aleguei, como de praxe, a não ser, com uma frase dúbia, a sua Inocência, e arrolei te5temunhas imaginárias, na esperança de que o senhor, com o tempo, se disponha a indi~ car-me as verdadeiras para a necessária substituição.

~ Estou apenas distraindo-me à sua custa. Não existem outras testemunhas além das que depuseram no inquérito e to­das são da promotoria. Nesse processo, só tenho mesmo interes­se em ouví-Io falar da tribuna. O senhor tem experiência?

~ Nenhuma.

- Então, redija toda a peça e a decore integralmente, como eu fiz da primeira vez. Depois de umas cinco atuações, usando textos diversos, verá que da mesma forma como são arrumadas as peças de um mosaico, o senhor será capaz de ajus­tar trechos dos vários discursos decorados em um único, produ­zindo, dar em diante, improvisos excelentes. É bom irem almo­çar.

85

Page 45: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"A tarde, Jorge Muniz reiniciou a sua história:

"Embarquei para o Rio uns dez dias depois que ela esti­vera em meu escritório, instruindo previamente o meu robô a tomar um avião para Sa'o Paulo, dentro de cinco dias, e aH hos­pedar-se no Hotel Palácio, aguardando um telefonema que eu lhe daria, Forneci-lhe dinheiro suficiente e disse·lhe que aquela mis­são dar~!he-ia recursos para abandonar o crime e recolher-se à austeridade burguesa.

"Logo que cheguei ao Rio, comecei a visitar, uma por uma, as casas de luxo onde se praticava o alto lenocínio, Aoom· panhei aos quartos uma dúzia de mulheres de beleza excepclo" na! e, ao Invés de gemlnar"me com elas no ato da profissão, fnquiria-Ihes da vida, de seus antecedentes, de suas relações amo~ rosas e faml!iares, elas suas procedências e de suas ambições. Quando achei a que em tudo me convinha, 1sto é, que além da beleza possuía conversa agradável, não estava vinculada a nln+ guém, não tinha parentes próximos e há vários anos se achava ausente do loca! onde nascer,a, marquef com ela um enCOntro em um daqueles bares da Avenida Atlântica,

"Quando, â noite, ela aH chegou, dIsse-lhe:

"- Chamo"me lauro Teixeira, Sou viajante comercial. Estou com dinheiro sobrando e gostaria se você fosse comigo a São Paulo para passarmos um mês de férias.

87

Page 46: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

" .. ," Seria bom, Mas, estou precisando de muitas coisas. O negócio vai correndo bem e não posso afastar-me sem lucro.

,,_ Fique tranqüila. Dar-Ihe-ei ? triplo do que voc~ ganharia aqui. As condições são as seguintes. Você embarcara imediatamente. Chegando a São Paulo, hospede-se no Hotel Palácio, preenchendo a ficha com meu sobrenome e declarando o estado civil de casada, Rapidamente, alugue um apartamento já mobiliado e com telefone, transferindo-se para ele, Pague o que exigirem. Simultaneamente, renove o seu guarda r~upa. Não receba visitas nem faça relações com pessoas do préd 10 ou de qualquer outra parte.

"Tudo que eu falava, ela ia aceitando, até o momento em que passei às suas mãos um pacote e d.lsse.lhe que aquilo era o dinheiro de que ela ia precisar. Naquele Instante, ela teve a sua única hesitação. Olhou-me com ligeira desconfiança e inquiriu:

"_ Não poderíamos ficar no hotel? Porque o apartamen­to e porque você vai gastar tanto dinheiro?

u_ Foi útil a pergunta. Você terá de cumprir também uma agradável missão. Mas, dentro de sua ~sp~cialidade e sem risco algum. t assunto de cama. Lá, eu lhe direi do que ~ ~rata. Se tudo correr bem, quando voltarmos você poderá adqUIrir um apartamento. Qualquer falatório, entretanto, prejudicará seu futuro.

"Concordando, ela perguntou-me se poderia cuidar logo da viagem. Disse-lhe que era indispensável, que deveria imediata­mente desvincular-se do hotel, pensão ou casa de cômodos onde estivesse recolher sua bagagem, pagar religiosamente o que devesse ~ tomar o primeiro avião para São Paulo, sem indicar a pessoa alguma de suas relações o seu destino. Encerrei a conver· sa dizendo-lhe:

U_ Mesmo na hipótese de conseguir imediatamente o apartamento que vai alugar, niro se transfira antes de receber um telefonema que lhe darei para saber o endereço.

88

"Depois que nos despedimos, sem que ela soubesse, par­tí imediatamente para o aeroporto e dentro de umas duas horas estava em São Paulo. Adormeci tranqüilamente em um hotel do centro e somente acordei depois das oito horas da manhã. Li sem interesse o jornal que me trouxeram com o café e por volta das dez horas pedi linha para uma chamada telefônica. Do outro lado veio aquela voz que a vida inteira morava em meus ouvidos. Perguntei:

"- Ele já regressou?

H_ Já.

"- Onde pode ser encontrado?

"- Rua 15, Ediffcio Torre, décimo andar.

"- Nome? - perguntei-lhe enquanto ia anotando.

"Ela me deu todos os Informes, inclusive sobre o restau­rante onde ele costumava almoçar.

"Essa foi a única conversa que tivemos, até o cumpri­mento de minha missão.

"Ao faltar apenaS um dia para Lauro Teixeira chegar, ligue! o telefone para o Hotel Palácio e pedi à portaria que me pusesse em contato com a minha suposta mulher. Quando ela atendeu, disse-lhe:

"- ~ Lauro. Já achou o apartamento?

"- Já. Foi fácil, mas não foi barato. Já tenhMudo pron-to.

"- Qual o telefone?

"Depois que ela me Informou e anotei cuidadosamente, ordenei-lhe:

89

Page 47: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"",,- Pode pagar fi conta do hotel é ir para o apartamento. Quando sair, deixe na portaria o ender8""yO, informando que seu marido a ( se hospedara a qualquer momento e que a ele deverá ser fornecida a sua direção_ Hoje, às vinte horas em ponto, esteja no saguão do cinema Marrocos, como quem espera uma compa­nhia para asslsHr ao filme.

"A hora aprazada, parei um taxi nas imediações, fui ao seu encontro, retorne! com ela e dei ao motorista a dlreção de um restaurante cujo endereço eu vira num anúncio de jornal. A!1, enquanto Jantávamos, dei-lhe as últimas instruções, fazen, do-a repetir tudo quanto lhe dizia, para estar certo de que ela não cometeria equ fvocos.

"No dia seguinte, durante a tarde, entrei em oontato com meu autômato que já chegara e não safra do hotel um minuto sequer a espera de meu chamado, e mandei que ele viesse ao meu encontro em loca! que indiqueI.

"Em nossa conversa, disS!3·1he:

,,~, Agora você é ca:.ado com Norma Teixeira, de 22 anos de idade, alta, morena clara e de bela aparência. Reside à Ave­nida São João, no Edifício Sorala, Apartamento 612, Mas ali só poderá entrar uma única vez, isto é, no dia do cumprimento de sua missão. A chave eu lhe darei oportunamente. Se sentir falta de mulher, use o dinheiro que lhe dei, mas não apareça ali, de forma alguma, antes de minha ordem. MudeMse hoje de hotel, mas diga na portaria do atua! que vai reunir·'se à sua es·· posa. Ta!vBz não logremos êxito dentro de poucos dias. Tudo vai depender da habitidade de Norma e da disposição do pacien­te. Se fracassarmos, não tem importância. Há dinheiro bastante por trás de tudo isso. O que eu quero de você é rapidez e firme­za. Sobretudo, depois do fato consumado, silêncio absoluto sobre nossas ligações. Seja qual for o tempo que você ficar preso, terá assistência e conforto, Se falar, estaremos ambos.des:tru~dos,

"",,- O doutor me conhece. De mIm não arrancam nada. E o que é para fazer já está feito. - <lssegurou-me'o robô tran­qüi!amente.

90

"Passamos juntos parte da noite G'Onversando sobre 'tO­

dos os detalhes do plano, Bxcetuando-:;e, corno é daro, a parte que no mesmo tomava a mulher COm quem eu pretendia casar" me. Para Lauro Teixeira, o servIço me havia sido empreitado por um inimigo capita! do paciente que, para sua execução, me ofe~ recera uma e~evada soma cuio montante seria dividido propor~ clonalmente entre nós dois, cabendo~me a parte mator. Essa versão, COmo é evidente, visava assegurar ao máximo a intanglbi~ !idade da verdadeIra pessoa a quem, juntamente comigo, interes­sava o assassinato,

"No dia seguinte, marquei novo encontro com Norma, e para avaliar suas posslbHidades, recomendeí-Ihe que viesse traja­da com o máximo de elegância, Quando ela chegou ao local indicado, estava realmente tão bonita que tive ímpetos de levá-! !a imediatamente para a cama de um hotel qualquer. Mas, como nunca confundi negócio com prazer, suprimi mentalmen­te meus arroubos, pedí~lhe que me desse fi chave excedente do apartamento e depois de instru í-!a com exatidão de relojoeiro, determinei que a partir do dia seguinte ela almoçasse no luxuoso restaurante que eu já sabia ser freqüentado pela nossa vítima, a quem, naqueles dias de minha permanência aqui, já diligenciara por conhecer fi dIstância.

"A primeira cena da peça foi realmente executada com o máximo de perfeição. Eu ocupava uma das mesas de canto do re~taurante e o indivíduo outra do lado oposto, nas proxlmlda· des de um dos exaustores, Quando Norma entrou, vestida a capricho, perfumando discretamente o seu trajeto e exibindo com simplicidade suas modelaçães anatómicas, vários foram os comensais que a seguiram dlsfarçadameme com o olhar. O "mBltre", com sua curvatura clássica, orlentou·a na escolha de um lugar, mas ela preferiu, como eu a havia instruído, sentar<~e em uma mesa de onde pudesse ver todas as outras, A certa altura, quando ela já almoçava, levantei-me cOmo quem se diri­ge ao lavatório e fazendo uma volta que justificasse minha apro' ximação da me&l onde a caça estava sentada, fui seguindo até ali, esbarrando propositadamente na mesa e deixandQ cair um maço de cigarros que tevava em U!na das mãos, Era o sinal ÇOn~

91

Page 48: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

vencionado e a partir daquele momento Norma sabia a quem prodigalizar suas atenções.

"Quando vortei à minha mesa passei a observá-los com a cabeça enterrada no prato para não despertar suspeitas. O homem, embora relativamente moço, tinha um olhar severo e não me pareceu rapidamente conquistável. Mas, a minha colabo­radora era, de fato, uma atriz excelente. De vez em quando, lan­çava olhares aveludados para o cidadão que, aos poucos, foi rera­xando sua fisionomia até o ponto de esboçar um leve sorriso de auto-suficiência. De qualquer forma, embora o almoço já hou­vesse terminado, não pagou a conta senão depois que ela já se retirara.

"Esse processo desenvolveu-se por uns três dias, até que numa sexta-feira notei que o "maitre", ao levar o cardápio para Norma, deixou cair sobre a mesa, de modo imperceptível para os demais, um pequeno pedaço de papel.

"Mais tarde, quando me comuniquei com ela, soube que aquele papel continha apenas um nome e um número de telefo­ne. Dei-lhe instruções para que atraísse o homem ao seu aparta· menta às 16 horas do dia imediato e Que o retivesse em sua alco­va, retardando o ato sexual por uns vinte minutos, depois que ambos estivessem despidos. A pergunta de Norma quanto à finalidade do expediente, respondi que a esposa do homem pa­garia uma fortuna por umas fotografias do marido em situação escabrosa, e que desse prêmio é que sairia o dinheiro com que ela iria comprar o seu apartamento. Por isso, a porta do quarto deveria ficar apenas encostada, a fim de que eu pudesse realizar o trabalho. Disse-!he ainda que se o homem engrossasse eu cui­daria dele,

"Naquela noite, entreguei a Lauro Teixeira uma pistola automática que trouxera da Europa e recomendei-lhe que, às 16 horas e vinte minutos, abrisse silenciosamente a porta de entrada do apartamento, penetrasse no mesmo com as pontas dos pés e liquidasse a ambos com uma só rajada de doze tiros. Acrescentei que ele não deveria fugir do local e que, tão logo

92

fosse efetuada a sua prisão, chamasse para assistir ao seu interro­gatório e patrocinar a causa o advogado Pedro Lopes, que eu já sabia ser um dos mais hábeis dos que funcionavam no foro cri­minal da cidade.

"Depois desse entendimento recolhi-me ao hotel, ingeri umas drágeas de hipnótico e adormeci com a tranqüilídade de um justo.

"No outro dia, andei despreocupado pelas ruas, olhando vitrinas. Quando se aproximava a hora da operação, regressei ao hotel efiquei pelo bardo mesmo a sorver doses duplas de UfsqU8, olhando de vez em quando para o aparelho de televisão que, depois de tanto tempo de repulsa pelas suas chanchadas brasilei­ras e futilidades ianques, adquirira naquela tarde o dom transi­tório de prender a minha atenção. A certa altura o repórter bra­dou pedantescamente: "Marido ultrajado fulmina esposa e amante milionário que desonravam seu lar". A seguir, detalhou rapidamente a tragédia e fechou a notícia com a imagem do cri~ mina lista Pedro Lopes que afirmava considerar irrecusável a absolvição de Laura Teixeira, porque seu ato desvairado, por ter sido praticado' em legítima defesa de sua honra, obedecera ao comando das normas de cuh:ura.

"As primeiras edições dos jornais que se seguiram ao evento forneciam pormenores da tragédia, revelando que o casal de amantes havia sido justiçado em situação de flagrante adultério. Transcreviam o interrogatório do réu que declarara haver chegado de surpresa ao seu apartamento onde se deparou com a cena indecorosa, não podendo, assim, conter a sua revol­ta. Ao final, uma breve notícia sobre a viúva que se recusara a prestar declarações e que estaria sob cuidados médicos, atra­vessando aniquiladora crise nervosa.

"O caso agitou, como é óbvio, a opinião pública, toda favorável ao acusado. Como, por justificável decoro, a viúva não interferiu no processo, o mesmo foi sendo Instruído tranqüila­mente, inclusive com a certidão de casamento do réu, cuja fal­sidade ninguém pensou em argüir. Laura Teixeira, por mim

93

Page 49: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

dev!damente suprido de recursos e tratado corno um herói no presIdio, foi tellsdo a júri cinco meses depols."

Pedindo desculpa por interrompê-lo, perguntel:

- O advogado sabia que a certidão era falsa?

"- Não. A primeira condição para o sucesso de uma em· preitada crimínosa, é o uso dos comparsas como inocentes úteis. Os cúmplices devem atuar na mais completa ignorância da Hlcí­tude de seus atos e, se possível, da identidade da pessoa que os comanda, Esta é uma regra que nem ao menos pode ser negH­genciada, quanto mais desobedecida. Além disso, sempre que for indispensáve!, o comparsa deve acompanhar a sorte da víti­ma. Corno se viu, assim foi Norma utilizada. Sua imolação tornou-se imprescindível porque, do contrário, ou ela entregaria imediatamente fi pelícia e mapa da mina, ou, até hoje estaria me submetendo a chantagens. E!a, pois, não foí inutilmente sacrificada. Sua eliminação era absolutamente indispensável ao êxito do projeto. A única pessoa que conhecia (} plano, aHás com alguma refração, era Lauro porque lhe seria impossível atuar às cegas, mas, ainda assim, só aos poucos foi tomando conhecimento dele. O advogado não precisava saber de nada. Ele foi chamado diretamente por seu constituinte, acreditou na versão que este lhe ofereceu, sustentoU"3 em Juízo, rece­beu seus honorários, e só veio a me conhecer em época poste­rior, sem que jamais aquele caso fosse entre nós discutido. Anãs, o que perde a maioria dos dellnqüentes é a vaidade criminal. Pouquíssimos são os que resistem à compu!são de impressionar os comparsas, alardeando a genialidade de suas tramas, os prodígios de sua audácia e a impassibmdade de sua frieza. Como o peixe, morrem pela boca, mas nem precisam avistar a isca. Andam de goela aberta e quando não acham quem queira fisgá-los:, fazem como Eróstrato que incendiou o templo de Diana para gravar o nome na posteridade. Eu não 'faro essas asneiras, sobretudo porque não sou dellnqüente, Mm <mesmo um vingador. Atuo apenas em estado de necessidade,

Vendo que a resposta me convencera, Jorge Muniz acen­deu outro cigarro e fazendo um sinal à secretária, indicativo de que ia voltar ao raconto, prosseguiu:

94

"O lu!gmnento de LallfO, a que assisti da platéiB, perdi­do nU!lj3 pequena multidão de. curiosos, 'foI uma festa teatral de invulgar brilhantismo. Creio mesmo que fOI o canto do cisne de Pedro Lopes, porquedepoisdaque!a récita tivemos oportunidade de atuar em vários julgamentos, na mesma ou em tribunas opos­tas, e ele nunca mais conseguiu produzir uma atuação tão perfeita, Abriu seu discurso com um hino de louvor à integrida" de mora! das famílias, verberou a seguir o processo de corrupção de que os ricaços se serviam para destruir lares honestos, estudou o ato incriminado ã luz da lei, da doutrina e da jurisprudência, concluindo pateticamente por pedir a absolvição do réu em be" notício da própria sociedade, pois, do contrário, ficariam os chefes de fam(1ia sem o direito de defender a honra conjugal.

"Houve réplica e trép!ica. O veredicto, eu, com minha experiência, já havia !ido claramente nos o lhos dos jurados. Não precisava, portanto, continuar no recinto. Mas, como aquela causa também eiS minha, aguardei que eles retornassem da sala secreta para ter a satisfação de ouvir o magistrado anunciar que o conselho havia reconhecído, por unanimidade de votos, a descriminante da !egCtima defesa. Estava,assim,o meu autómato, absolvido da denúncia, e a promotoria ficava sem direito a apelação com efeito suspensivo.

"Enquanto Pedro Lopes recebia os cumprimentos de seus admiradores, corri à estação te!efônica e pedi uma ligação para a Suécia. Quando esta se efetivou e do outro lado atendeu fi mulher que eu libertara, dei-lhe, em código, ii notícia de nosso êxito e pedi-lhe que regressasse com urgênda. Eia me disse que não ansiava por outra coisa e que retornaria pelo primeiro avião.

"Todos os dias eu telefonava para a sua casa, a fim de saber se ela já havia chegado. No quinto, foi ela mesmo que atendeu, pedindo-me logo que eu fosse correndo até lá. Em poucos minutos eu já estava pressionando o botão da cam~ palnha de uma das mansões do Jardim Europa. Por uma das janelas abertas vinha o estribilho musicado da eletro!a:

95

Page 50: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Come prima, pib de prima, t'ammeró Per la vita, la mia v/ta te daró ...

que eu ia saboreando e traduzindo:

"Como antes, mais que antes, te amarei Pela vida, minha vida, te darei, ..

Ela estava muito mais fascinante do que em todas as vezes que eu a vira. Não tinha eu transposto ainda a porta de bronze entreaberta e ela já se precipitara em meus braços, bei~ jando freneticamente cada centímetro do meu rosto. As vezes parava, recuava um pouco para o!har~me melhor, mas, logo en~ cenava, entre expressões carinhosas, aquela sua personal íssima manifestação de amor e de saudade. Não sei quanto tempo ai i fjcamos abraçados, enquanto ela ria e chorava, beijando-me delirantemente. O cantata daquele corpo tão querido, perfu~ mado, macio e morno, longamente desejado, transtornou todos os meus planos de aproximar-me dela como o fizera durante a primeira fase do nosso amor e nos nossos rápidos encontros subseqüentes. Ela agora estava ali como a fêmea que eu não mais podia prejudicar, ansiosa como eu por um amp/exo verda~ deiro, e nada, talvez nem ela mesmo, se por um capricho absur­do houvesse recuado, impediria que nossos corpos se fundissem. A hora da carne chegara finalmente. Os nossos desejos, há anos reprimidos, corriam agora livres e resolutos pela nossa pele ávidos como o fogo pela própria consunção, buscando exaurir-s~ um no outro sem demora.

"Em instantes, sem sentir sobre o que pisava ou por onde andava, vi-me sentado em uma cama, enquanto ela, de pé, com as duas mãos presas pelas minhas, enrocava sobre meus olhos aquele sorriso alvinitente, agora pleno e triunfante, Ergui-me um pouco e fui, com estes dedos que sentem, gozam e sofrem, mas não tremem nunca, desabotoando o seu vestido negro. Enquan­to ele se despetalava pelos ombros alvíssimos, irromperam ante meus olhos extasiados dois seios alucinantes, por cuja tepidez deslizaram sôfregos os meus lábios frementes, libando o seu calor, a sua maciez, aa sua ânsia de carícias. Totalmentedesnuda,

96

porque sobre o corpo não pusera mais que o grosso vestido ja­cente agora a seus pés, ela abraçou-se comigo de olhos baixos cujas pálpebras cerrou completamente. Depois de admirá-Ia po; segundos, fui afastando~a pouco a pouco de mim para depois deitá-Ia sobre a cama,

"As cortinas das janelas, parcialmente fechadas, veda­vam grande parte da luz exterior, de modo que o quarto estava ime~so em romântica penumbra. Desvencilhando~me da roupa, corel~me levemente à sua pele e vi os botões rosados dos seus seios turgirem num elance, clamando por beijos tempestuosos. Suguei a ambos vorazmente, enquanto eta se contorcia em doce abandono, afastando um pouco os braços magn íficos e exibindo num devaneio sensual duas axilas côncavas e depiladas, das quais emanava um 5UtH perfume que se confundia com o cheiro pecu· liar(ssimo de seu corpo. Quando sentiu que eu nela já ingressara, imobilizou minha boca com seus lábios gelados pelo frenesi da volúpia e sucumbiu em poucos segundos. Assim, com a boca corada na minha e com um suave gemido, desmaiou de amor e de lascívia.

"Fiquei esperando que ela se reanimasse e quando por fim levantou as pálpebras pesadas, pedHhe que fixasse os olhos nos meus para ver como eu ia fruHa estesicamente. Pedi-lhe então que risse; que risse muito; com todas as pérolas de sua boca; com aquele riso imenso e alvinltente que era a grande carac~ ter(stica de seu belo rosto no frescor da juventude. Ela tentou. Eu pedi que insistisse; que fosse repetindo a imagem sedutora e, enquanto lhe sorvia o rosto, os braços e os seios, despedi-me do amplexo, chegando à crise paroxística apenas com aquelas levís~ simas mutações faciais que ninguém consegue esconder em um transe tão saboroso.

Enquanto Jorge Muniz ditava de olhos fechados, como que revivendo a cena amorosa, eu observava discretamente a minha secretária cujas faces cobriram-se de intenso rubor, ao tempo em que os lábios fremiam, o busto arfava e as mãos tre­pidavam desordenadamente sobre o caderno, dificultando·lhe o trabalho.

97

Page 51: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Felizmente, ele enumdera de encerrar com aquele ,Oe" r{odo a narração do dia, porque levantando"se encheu até as bordas um copo com água e engoliu, um por um, cinco r-.orn o

prlmidos de um hipnótico arrasador. O gesto que eu fiz para detê·lo, ate o aparou com um olhar que cortava como uma navalha, enquanto me dizia com desprezo:

- AI;'.a!me-se. Já ingeri o dobro de uma só vez e não senti nada de anormal. Já estou imune, como Mitridates aos seus venenos. Além do mais, não sou mulher. Nunca me suici· daria com entorpecentes. Se algum dia o fizer, será com um tiro na abóbada palatina, como Hitler.

Enquanto ele se estirava na cama de ferro, envolvendo~se até a nuca como espesso cobertor de lã, retiramo-nos do cárcere.

98

10

No dia seguinte, Jorge Muniz parecia ainda mais depri­mido, Sem qualquer indagação ou comentário, recomeçou a sua narrativa;

"A nossa Vida, dali em diante, f~u!u como um regato sem escolhos, durante mais de um decénio. Lauro Teixeira, eu o mandei de volta, devidamente remunerado, mas, traindo a promessa que me fizera, não qUIs aposentaN€. Logo a seguir, sem antes consultar-me, foi envolvido por planejadores ineptos em um encargo homicida B, havendo inconfidência, acabou sendo assassinado por sicários ponda!!'> empreitados pela própria pessoa cuja morte seus assessores projetavam. Quanto a mim, sacrifiquei alguns meses de estudo, ded!cando"Ds à direção da empresa que agora pertencia exdusivamente à viúva e sua filha. Depois, escofhi um diretor para adminlstrá~ja, dei-lhe razoável interesse nos lucros e passei apenas a controlar os balanços, porque a minha verdadeira ambiçá'o continuava sendo a de existir sedentariamente, vivendo para os meus nvros e para aquela que logo veio a casar-se comigo, unindo seu futuro ao meu, em todos os sentIdos.

"Apesar de assim não parecer, em vista de meu passado cdminógeno, o fato é que hoje tenho escrúpulos de confessar que me casei pela comunhão de bens; que auferllucro fabuloso de um ato que deveria ter ficado exclusivamente nos limites da relação amorosa, sempre desinteressada, que me ligou àquela mulher. Isso, todavia, foi o que aconteceu, por Insistência dela mesma, talvez como secreto desejo de provar, como aliás sempre

99

Page 52: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

provou, que todas as coisas da vida, estranhas a mim ou ii minha convivência, não tinham para ela significação alguma.

"Tudo, pois, correu maravilhosamente a partir de nossos esponsais. Dinheiro, havia de sobra para que passássemos todo tempo confortavelmente em andanças turísticas pelo mundo. Mas, isso não nos interessava. Ficamos meses a fio no interior daquela mansão por mim referta de livros que eu ia insaciavel­mente devorando. O nosso amor em nada diminuiu e a nossa vida sensual era intensa e permanente. Pela prévia certeza disso, porque o ouro não poderia jamais ser o móvel daquele casamen­to, foi que não senti, na época, repugnância alguma em con­cordar com a comunhão de bens, Posteriormente, aliás, pude comprovar que o dinheiro só me serviu para comprar livros e solidão. Para comprar o resto não tinha nenhuma utilidade, pela singela razão de que o resto não me interessava.

"Mas, aqui cabe uma indagação importante. Que pode o intelectual desejar mais do que a solidão? Existe, acaso, algo mais difícil de conquistar-se no mundo atual da poluição in­formática e das comunicações abusivas? Pode, porventura, um profissional da advocada livrar-se dos chamados, das visitas, do telefone? Ah! O telefone! E o paraíso dos importunos e ociosos. Como os cocheiros que a cada estalar dos chicotes matavam uma idéia de Schopenhauer, o telefone, com suas chamadas insolentes, sempre me deixa furioso. Jamais pude conviver com esse aparelho execrável que permite a todo mun­do entrar em nossa casa sem convite e sem autorização alguma. pode alguém estudar se nã'o o deixam fazê-lo? A solidão, para o intelectual, é o maior de todos os tesouros. Sem ela, o espírfto nada pode criar. Não pode, sequer, tomar posse de si mesmo. Muitos, infelizmente, não conseguem tolerá-Ia e por isto não progridem. Outros, que a amam ardentemente como eu, não têm a mesma determinação que tive, quando jovem, de privar­me de tudo para fru í-!a, ou a mesma ventura de poder comprá­la a peso de ouro, como eu a comprei, após enriquecido pelo casamento.

100

"Como, todavia, sempre fui um apaixonado do crime, agora que dele não mais precisava como o cavaleiro de um chi­cote, porque já não residia em Pandora, onde ele era a minha forma de protesto contra a torpeza endêmica daquela pocilga, passei a defendê-lo em causas que me deram notoriedade no país. Como ensina Kretshemer, o caráter não muda. O compor­tamento, porém, como observa Rousseau, quem determina é o meio social. Pelo meu caráter, pois, eu não podia contemporizar com velhacos, mas, pela abjeção do melo em que vivia, era obri" gado a reagir com o críme, porque de outra forma estaria honrando demasiadamente à canalha. Foi, portanto, radical a mudança de meu comportamento. Lá eu queria derrotar o siste­ma. Aqui eu me limito a explorar as suas contradições, Aliás, por falar na terra onde nasci, devo declarar que por mais que eu quisesse e me esforçasse, nunca foi definitiva a minha desvincu­lação de Pandora. Como a caixa da mulher mitológica, aquela cidade, de vez em quando, liberava contra mim alguma tragédia ou patifaria. Vou contar-lhe a penúltima, sem autorizá-lo agora, no entanto, a publ1cá-la. Digo a penúltima, porque ainda não morri e isto basta para que Pandora possa ainda enviar-me alguns demónios para que eu não me esqueça de sua fidelidade.

"Há pouco tempo, minha filha fez uma excursão aos Estados Unidos e, na volta, percorreu algumas cidades do Méxi­co demorando-se uma semana em Acapulco, Num dos cassinos lo~is, onde esteve em companhia da mãe, conheceu um italia­no por quem, digamos assim, apaixonou-se à primeira vísta. Teve a ingenuidade de contar-lhe que era filha única de um bilionário. Quando regressou, disse-me pelo telefone que estava decidida a casar-se, adiantando que seu pretendente era um engenheiro que cónhecera no México, onde ele-permanecera de férias, aguardando que eu consentisse no matrimônl0, a fim de vir ao Brasil, casar-se e levá-Ia para a Itália.

"Recomendei-lhe a máxima prudência, dizendo-lhe que não aprovaria aquela decisão enquanto não conhecessemos o aspirante com a necessária profundidade, Aconselhei-a a refrear seu passionalismo até que houvesse amadurecido suas relações com aquele candidato ou outro qualquer, evitando, assim. o máximo possível, a hipótese de um casamento desastroso.

101

Page 53: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

SUjJerHhe, até mesmo, uma viagern à Hália em minha compa­nhia, após o regresso do pretendente, com vista a sabermos, no 10('21 de sua residência e trabalho, quais os seus antecedentes, {n­dolo e conduta, inferindo dessa pesquisa as suas verdadeiras In­tenções e formulando um diagnóstico de viabilidade do caBa­mento"

"Ela ainda tentou convencer-me da inutilidade dessas indagações prévias, sob o fundamento de que a sua intuição, a reverenciada intuição feminina, era bastante para adentá-la. Acabou, porém, comprometendo-se, talvez apenas para tran­qümzar-me, a examinar tudo com frieza, prevenindo-se contra qualquer açodamento que pudesse Influir em sua decisão.

"Poucos dias após, todavia, voltou a telefonar-me, íá então para dizEw>me que o noivo havia chegado a Pandora e que o casamento estava prestes a realizar-s8, Convidava-me para ass!stí-Io e pedis que eu lhe remetesse ou !he levasse dinheiro para a sua lua de mel na Europa. Como tudo aquilo me pareceu errado, !imitei-me a enviar o dinheiro e não comparecI ao ('.,,358-mento. Soube, depois, que o casal não foi à Europa e sim ao Rio de Janeiro, Cidade que o marido não conhecia. Apesar da proximidade, o par não se dignou de vir a São Paulo, ou se o fez, não me visitou,

"Também, a partir de então, começaram a chegar tele· gramas de minha filha, procedentes de Pandora, onde o casal resolvera permanecer depois da excursão ao RIO, com inSisten­tes pedidos de dinheiro. t: daro que não atendi a nenhum desses apelos fi que nem mesmo lhes deí resposta. O casamento çonsu~ mera-se à minha raveHa, O genro nem sequer me fora apresenta­do, Nenhuma justificativa constava dos telegramas, onde somen­te as cifras e a urgêncla eram mencionadas. Também julguei que não devia visitar o casa! ou te!efonar"lhe, porque a despeito da avultada quantia que 8U condescendera em enviar e que não fora apHcada ao fim solicitado, novas e permanentes requisições me eram feitas, sem ao menos a indicação do destino que se preten­dia dar a tanto dinheko.

102

"Como, de há multo, eu já comprara para minha fl1ha e sua mãe a casa onde residiam em Pandora, uma das melhores, aliás,. daquela ddade, e como Instituíra em favor de ambas uma pensão mensal e um seguro de vida que lhes permitiria viver um século sem problemas financeiros, comecet a compreender que ambas haviam sido vítimas de um vigarista insaciável, cujo pro" póslto era, como dizem os portuguêses, fazer delas o que se 'faz rom os limões, isto é, espremê-Ias e pô·las de lado, Essa hipótese, embora lastimável, ainda seria, não obstante, a meno.s perniciosa, porque para a precipitação do desquite bastaria que eu contl~ nuasse insensível aos pedidos de dinheiro. logo. o. estellonatário compreenderia a tnutmdade de sua inSIstência e acharia um pre­texto para desaparecer,

"Infelizmente, eu estava enganado. Minha filha casara-se com um bandido. Um advogado de meu escrltõrio que eu envia~ ra à Améríca do Norte para levantar os antecedentes de meu genro, seguira seu rastro desde Acapu(co até Las Vegas, Miami e Nova Vork, e me trouxera um alentado dossiê de suas vincu!a* ções com a jogatina e o crime, podendo inferir-se, pelas pegadas mais recentes de Las Vagas, que ele, quando se insinuara ii minha filha, estava hibernando em Acapu!co, enquanto seus comparsas contornavam impedimentos legais para seu retomo às ativida­des ii fcitas nos Estados Unido$.,

UMa I acabara de ler o relatõrio trazido por meu auxi* !i8r e elaborado por urna das melhores agências de investigações particulares dos Estados Unidos, quando fui chamado ao tele­fone. Era a mãe em desespero, informando~me que nossa filha estava sendo submetida a trabalhos cirúrgicos, vítima que havia sido de uma explosão de cólera do marido que a agredira a socos e patadas.

"No mesmo dla, cheguei de avião a Pandora e deixando a bagagem no táxi, entrei no hospItaL A mãe velava a filha cujo rosto estava coberto de ataduras e que dormia sob o efeito de sedativos. Conversamos em voz baixa. O motivo do assalto e da fúria homicida, era o que eu havia pensado. Meu genro dera iI esposa o prazo de 48 horas para que eta arrancasse de mim uma

103

Page 54: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

quantia enorme, Como o ultimato não fora obedecido, ele caíra sobre ela como se quisesse despedaçá-Ia. A mãe tentara intervir, mas fora atirada contra a parede, chocando a cabeça e caindo desfalecida. Meu genro, quando assim procedera, não estava em­briagado, nem sob o efeito de alucinógenos. Agira friamente, anuncíando a cada golpe, de mãos ou de pés, que outras surras, cada vez mais vandálicas, seguir*se-iam àquela, até que minha filha cumprisse a sua ordem de produzir a quantia cujo montan­te fixara,

"Sem emitir qualquer opinião e tudo fazendo para que a minha revolta não fosse percebida, perguntei onde poderia en­contrar meu genro. Minha ex-mulher respondeu-me que certa­mente em casa, tranqüilamente, como se nada houvesse aconte­cido, ou como se tivesse exercido o mais curial dos direitos ao espancar barbaramente a esposa, submetendo~a, ademais, a exigências que acabariam por levá-Ia ao suicídio. Minha interfe­rência, pois, no caso, não podia ser adiada, nem me seria I íeito impor à mãe ou a minha filha o dever de liquidarem o assunto, porque se e!as falhassem eu estaria, imprudentemente, quei­mando a casa para assar o porco. A única solução, portanto, na emergência, era entender-me pessoalmente com meu genro. Para tanto, eu precisaria aparentar uma insensibilidade cadavé­rica ou até mesmo inspirar a crença de que estava acovardado, pois teria de lidar com um inimigo experiente, prevenido e disposto, sem dúvida, a estender até mim, diretamente, 05 ten­táculos de sua chantagem. Disse, pois, que iria tentar um acor­do e sem preocupar-me com o julgamento de minha ex-mulher em torno dessa atitude melancólica e vergonhosa, retirei-me do hospita!, voltei ao táxi e, chegando ao centro da cidade, regis­trei-me em um hotel.

"Do apartamento, liguei para a casa de minha filha, sen­do atendido por uma voz de homem. Logo que disse meu nome, o interlocutor identificou-se imediatamente, respondendo-me em italiano:

- t; Glno quem fala. Já contava com sua chegada. Espe­ro que não venha para a "vendetta". Que deseja?

104

"Esqueça isso. - respondi em seu idioma. - Venho pro­por-lhe um acordo. Preciso falar-lhe com urgência. Estou no hotel eoronado, Espero-o no bar < Diga seu nome na portaria e o levarão à minha mesa. Não falaremos sobre o incidente. Tratare­mos apenas de negócios.

- Ireí.

"Meia hora depois, chegou ao bar do hotel. Numa des­crição rápida, que farei apenas no pressuposto de que o senhor como muitos, se preocupa com a aparência física dos persona­gens, mesmo quando ela não é causa das reações pertinentes aos fatos narrados, informo que meu genro aparentava uns trinta anos de idade, era de estatura média, de cor morena azeitonada, como os sicilianos, cabelos e olhos negros, dentes naturais e perfeitos, ar agressivo e uma voz nasalada e irritante, especial­mente para mim que não poderia, evidentemente, ouví-Ia com simpatia. Trajava um terno cinza, completo, com gravata e colete, impróprio para a alta temperatura de Pandora, mas, sem dúvida, bastante conveniente para a ocultação da arma de fogo que olhos prevenidos perceberiam estar pendendo de um col­dre suspenso pelo ombro esquerdo, de modo a situar a coronha ao fácil alcance da mão direita.

"Quando ele já se sentara do lado oposto ao meu, de frente para mim. à mesa isolada que eu escolhera, fui direto ao assunto, dizendo-lhe em italiano:

- Por questão de dinheiro não vejo utilidade em diver­girmos. Vim para tentar um acordo. Meu propósito é salvar o seu casamento, se ainda for possível. Embora minha fitha esteja revoltada com seu procedimento, não quer abandoná-lo, como seria certo. Estou obrigado, pois, pelas circunstâncias, a aceitar, em parte, suas imposições.

"Gino pareceu satisfeito, Tudo nele revelava a analgesia do superego ou o daltonismo moral de que falam a psicanálise, os psiquiatras e os criminalistas. Disse-me, como se nenhuma dúvida tivesse da incensurabilidade de sua conduta:

105

Page 55: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

- Ela não quis compr2endec dBro que o senhor iria colaborar. E!a, teimosamente, negElVa~5e a pedir, Até mesmo os telegramas foram passados por mim, com o nome dera, que se recusou a assiná-los.

.~ Vamos esquecer o passado, Como já dlsse, estou aqui para ajudá-Ios.a superar a crise. Faça~me, sem qualquer rodeio, uma proposta objetiva. Mas não me fale em dinheiro a troco de nada. Quero que me diga em que pretende investf"!o. Preciso ter certeza de que o dinheiro não será jogado fora, Quero fazer um investimento em favor do casa!, a fim de que, para o futuro, o senhor possa vrver por sua conta, tenha seus próprios lucros e não precise recorrer a mim novamente, a não ser para a amplia­ção do negócio que vier a explorar.

"E!e nem ao menos pareceu raciocinar. Aparentemente, já tinha tudo programado, Sem fitar-me, respondeu:

- O melhor negócio que existe é bancar o jogo, Mas aqui é proibIdo. Em Acapulco, Las Vegas ou Miami, eu teria de dar sociedade ou pagar proteção, porque !á os grupos são muito fortes, Restariam Montevidéu, BarHoche, Mar de! Plata, Punta de! Este e Vina der Mar, aqui na América do Sul.

- Comece pela Argentina. Passe lá uns quinze dias e tra M

ga-me uma proposta concreta. Veja se alguém quer vender. Caso contrário, estude o mercado e digoMme onde podemos construir um cassino ou um hotel com salões apropriados. Depois, pensa­remos em algo para o Rio. Tenho a impressão de que a Ie! brasi­leira, em breve, vai cedeL t: grande a evasão de divisas que ii pre­texto de turismo despejamos alhures, por falta de cassinos no Pars, Vá a São Paulo e procure-me, Dar-!he-ei passagens aéreas para Buenos Aires, dinheiro e instruções, A partir de amanhã à noite estarei em casa. Quando pode ir?

-- Iria hoje mesmo, se houvesse tran~orte, Como fklO há mais tempo para providendar a passagem, viajarei amanhã. Enquanto ISSO, para sEdar o nosSO acordo, levarei flores ii minha sogra.

106

"Enquanto eie se "rÍ'a::;tav3, fiqueI 3 olhar com repugnân~ ela para a mão que eu lhe estendera, a m,10 COm a qual eu cor~ dialmente apertara aquela que havia esbofeteado a minha filha, e pensei, por alguns segundos, que nada pode haver de mais vul­nerável, frágil e humilhante do que a paternidade, aHás, a menos compensadora de todas as dependências humanas,

"Vo!tei ao hospital, onde reLu,mandei que não removes" sem a enferma para casa enquanto eu não autorizasse. Pedi a minha ex-mulher que, como sempre, confiasse em mim. Caso o genro aparecesse, o tratasse como se nada houvesse ocorrido, Dizendo-lhe que tudo seria definitivamente solucionado, despe­di-me de!a e segui para o aeroporto onde fretei um avião, che­gando em casa cinco horas depOIS, A!l, no silêncio fecundo de minha biblioteca, tracei o plano de liberação de minha fHha, que assim se consumou;

107

Page 56: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

11

" Senhorita, queira informar-me, por gentileza, quan­do estivermos sobrevoando território uruguaio.

"Após ouvir o compromisso da aeromoça, o homem louro reclinou-se na poltrona e reiniciou a leitura do jornal. O avião acabara de decolar de Buenos Aires, com destino a Paris. Sua primeira escala seria o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, Logo depois a aeromoça acercou-se do passageiro:

"- Já atravessamos o Rlo da Prata e estamos sobre o Uruguai.

"O homem louro levantou-se, deu alguns passos em di­reção à cauda da aeronave, feOrcu calmamente um grosso revól­ver do interior de uma pasta de couro, encostOU-Q de baixo para cima às temparas de um passageiro que dormia e acianDu o gatilho. Ouviu-se uma forte detonação e um terço do crânio da vftima foi projetado contra o teto da aeronave, enquanto alguns passageiros olhavam horrorizados para a cena, outros tentavam limpar suas roupas da massa cefálica espalhada por todos 0$

cantos e algumas mulheres desmaiavam.

"Segurando agora pe!o cano o revólver, o assassino encaminhou-se para a cabina de comando e o entregou ao pri­meiro oficia! que, tremendo como um ponteiro de sismógrafo, aparecera à porta. Quando o comandante aproximou-se do ho­micida, este limitou-se a dizer-lhe:

109

Page 57: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

E~ . 1 ·"'1 '1'!',I' .:. um Slmp es assaSS11lato, ~ '":2cno-;-n8 n(:)(nut Ilit8Z921". ii disposição da autoridade: polklaL no de

Congonhas. Exijo apenas que sejarn registrados com exatidão a hora e o local da ocorrênc1EL

"O comandante e dois outros oficiais revistaram o assas" sino e depois de certificarem-se- de que ele não conduzia outra arma, fizeram-no entrar na cabina onde de revólver em punho, um detes ficou a vlglá .. lo. Enquanto isso, um cornissádo de bor­do cuidava dos restos mortais da vítima, ocultando com um cobertor a sua cabeça estrsçalhada e examinando os bolsos de sue roupa em busca de documentos. locaHzando o passaporte, leu em voz atta: Gíno Gat!o LombardI.

"Passados alguns minutos, os megafones emitiram a seguinte mensagem do comando de bordo:

- A eronave prossegue em sua rota normal. O crimino­so entregou-se ao comandante e já está algemado. Não há mais perigo para os senhores passageiros. A tripulação !amenta o ocorrido e tudo fará para o conforto de todos até a chegada a Paris. O assassino será entregue às autoridades políciais em $2:0 Pau !O, nossa próxima escala.

"Essa mensagem, inicia!mente falada em português, foi repetida em francês e inglês, enquanto as aeromoças, refeitas das emoções da tragédia, andavam agora pelo corrooor do avião, ronsertando poltronas, recomendando aoS passageiros que se sentassem, e servindo refrigerantes àqueles que pareelam mais excitados. Com os comentár.ios e as ocorrências pertinentes a uma sltuação como a que viveram tripu lantes e passageiros, a viagem prosseguiu sem outros inddentes ate São Paulo, onde, tão logo pousou, o avião 'foi invadido por policiais e jornalistas, O GBdáver não havIa sido removido da po!trona, Na meSma posição em que tombara, foi fotografado pelos repórteres que, logo a seguir, foram afastados do local, por estarem tumu!tuan· do o desembarque COm perguntas aos passageiros e à tripulação.

"Conduzido a uma sala do aeroporto, onde já se encon­trava o delegado de polícia e o escr1vão, Helmut foi interrogado.

110

Declarou simplesmente que a aparência da v(tima não lhe agra­dare) e por isto decidira pratie:,r o crirne. O delegado, certo de que essa versão encobria uma trama de alta envergadura, Um!" tau-se a consignar as respostas, para depois, nos açougues de sua delegada, extrair do preso a verdade. Como o avião deveria seguir viagem, desembarcaram o corpo e seleclonaram pessoas que ficavam em São Paulo para servirem posteriormente de testemunhas, tomando·se desde logo os depoimentos do co­mandante e do oficia! a quem o preso se entregara. Estes decls· raram que não assistiram ao evento, mas que viram o assassino alnda com o revólver na mão, segurando-o pe~o cano, e que, enquanto ele permanecera detido na cabina relatara a todos os da tripulação, em pormenores, tudo que fizera. Afirmaram que o fato ocorrera precIsamente a tantos graus de latitude e tantos de longitude, às 9 horas e 35 minutos, na rota Buenos Aires-São Pauto, quando o avião sobrevoava o departamento de Colônia, no território urugua ia.

"O delegado, depois de meditar um pouco, disse para o escrivão:

"-- O acusado não é brasl!eiro. A v(tima também não é. O avião não é do governo. O cdme foi praticado no Uruguai. Acho que a justiça brasHeira não é competente. Penso que tere­mos de levar o acusado ao Uruguai.

"Na porta, todavia,apareceu um homem calvo, de óculos grossos, sobraçando uma pasta e exibindo numa das mãos um cartão de visita que entregou ao delegado. Depo is de ler o nome e a profissão do intruso, o delegado disse-lhe com um sorriso frónico:

"- Parece·me que o doutor não terá muito o que fazer nesta emergência, O caso será processado e julgada no Uruguai e certamente lá o acusado preferirá um patrono locaL

"O homem de óculos, retirando da pasta um papel, res­pondeu:

111

Page 58: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

- Ele é casado com brasileira. Aqui está a certidão. Não pode ser expulso ou entregue sumariamente a país estrangeiro. Terá que ser extraditado, e isto, além de depender de requisição do Uruguai, só pode ser feito com ordem do Supremo Tribunal Federal.

"Sem preocupar-se com ° desapontamento do delegado, que já contava com um passeio a Montevidéu, o homem da pasta virou-se para o acusado e disse-lhe em alemão:

~ Tudo certo. Estarei na delegacia durante todo o tempo em que o senhor lá permanecer. Mantenha a mesma vers30 e não diga mais nada. Absolutamente nada.

"Concluídos os depoimentos, o delegado ansioso por tor­turar o preso e descobrir quem era o mandante do crime, deter­minou que Helmut fosse conduzido à central de polícia. Ao che­gar, porém, em outro automóvel que seguira de perto o que trouxera o preso, já encontrou a sua espera o homem da pasta, agora em companhia de outro advogado, muito mais moço, cor­dial e sorridente, que dele se acercou com um papel na mão, Era um mandado judicíaJ que determinava o imediato interna­mento do acusado em nosocômio psiquiátrico, por ser, em ra­zão de doença mental, penalmente irresponsável. A ambulância, com dois enfermeiros e um médico, já estava também a espera. O delegado leu e releu a ordem judicial, viu que ela se estribava em processo anterior de interdição e percebeu que não podia fazer mais nada para segurar o acusado. Qualquer resistência, alem de inútil, poderia custar-lhe o cargo e certamente um pro~ cesso. Nem mesmo o habitual desabafo pela imprensa, com que a polícia costuma alardear que seus esforços no combate ao crime são prejudicados pela leniência dos juízes, seria, no caso, aconselhável. O julz que expedira o mandado tinha fama de severo e incorruptível. Duvidar, pois, de público, do aCerto formal ou substancial da medida, seria cadeia na certa. Tudo havia sido feito com base na lei. Só lhe cabia passar o preso à custódia do hospital. Assinou, pois, o auto de entrega, rece­bendo o compromisso e as assinaturas do médico e dos enfer­meiros. Helmut, portanto, não chegou a entrar na delegacia.

112

Foi transferído do carro preto para o branco e internado no hospital.

"'O desenvolvimento do caso, em suas etapas posteriores, confirmou a perfeição do plano, porque tra~scorrjdo o prazo legal, nenhuma requisição chegou do UruguaI. Gomo o senhor sabe, o prolongamento do território de um pa ís pelo seu e~a.ço aéreo, constitui ficção jurídica lnco~testável p~rante c: direIto lnternacíonaL Mas, para que um paiS, na pratIca, se Interesse realmente pela repressão aos crimes ~me~idos em .aeronaves estrangeiras, quando sobrevoam seu território, é precIso que ?s atos delituosos causem dano ao governo, aos hab.ttantes do pa IS,

provoquem clamor público, ou po~h?m. e~ .pengo a segu:ança nacional. Legalmente a competência jur.lsdlclonal é do pais #em cujo espaço aéreo o crime foi cometido, poden~o. tambem, pelo princípio de nacionalidade do agente ou ~a vitima,. haver concorrência de jurisdições, mas, para tanto, e ne?~ssáno que sejam atendidas certas condições que não se ven!lcaram n~s fatos que estou narrando. No ca~ ~e Helmut: ~ao se pod la

pensar em segurança nacional. O cflmmo~ e a vltHl~a não era~ uruguaios. O avião era brasileiro, de pr~prledade pnvada, e nao decolara do espaço terrestre uruguaio, nem ~ele" pousa':.a. Nenhuma repercussão tivera o crime no Uruguai, porque nao afetara nenhum interesse material daquele país o~ de ~u~ na­danais. O que ali se disse, informado por agênCias noticIOsas brasileiras e sem grande destaque, fOI que o crime era ob~a da Máfia, porque o passaporte da vítima indicava a su~ origem siciliana e o seu trânsito demorado pelos Estados Unidos, en­quanto que, em seus pertences, haviam sido encontradas foto· grafias de cassinos e propostas de compra e venda de ~ntros de jogat1na. A essas reportagens, talv.ez nao fos:em tambem estra­nhas algumas rndiscreções mistenosas, amblguas, veladas, ,q~e o homem da pasta e das lentes grossas cometera na POII,C!?, dando a entender, embora imprecisamente,. que o pat~oClnlO daque!e caso lhe teria sido confiado por clientes americanos.

"Como se diz atualmente, o meio de campo estava todo embolado A justiça brasileira era incompetente para pr?cessar e julgar o 'criminoso, porque ele e a vítima eram estrangeiros e o

113

Page 59: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

dento não ocorrera no território nacional, neríl no espaço aéreo correspondente. A uruguaia não tinha, nem podia ter, interesse algum no caso, que só lhe daria despesas. A americana não tinha e1ementos para iniciar sequer uma investigação, ainda que limi­tada aos seus nacionais, porque ninguém sabia 80 certo se o cri~ me Tora praticado por mandato, quem poderia ser o mandante ou se tudo não passava de um ato individua! de insânia. Por isso: decorrido o prazo lega! sem Que a justiça uruguaia requeresse 3

extradição, o caso esvaz!ou'se tota!mente, embora Helmut permanecesse preso no nosocômio, por ser um alienado, Como essa condição o tornava incapaz de depor sob compromtsso, ficando, assim, impossibilitado de fazer acusações temrveis con· tm um eventual mandante, ela foi por algum tempo conservada, sobret~do porque representava também a segurança de sua absohJ!ção em um processo a que respondta.

"Dessa forma encerrou-se outro capítulo negro de minha vida, que não deve ser publicado porque envolve ainda a segurança de Helmut, que algum po!idallgnorante, visando pro·· mover-se ou praticar uma chantagem, poderá querer sequestrar para, mediante tortura, fazê-lo confirmar o que estOu narrando, embora como já disse, o seu testemunho seja relativamente ineflCiJz em razão de sua incapacidade mental para depor. Os policiaís sabem que a justiça brasileira não tem o direito de imis­cuir-se no caso, Mas podem, com o fito exclusivo de chantagear a quem seja o mandante, fabricar um termo de confissão e juntamente com seus colegas uruguaios tramar uma extor:>ão publicitária. Quando nada, os médicos que atestaram a insanida­de menta! de Helmut, sofreriam desgaste em sua reputação perante o vulgo, embora nem aqui nem no Uruguai exista quem tenha capacidade científica para contrariar ou mesmo lancar dúvida contra qualquer perícia por eles assinada. Não é, portan­to, por qualquer falha do plano, que 1mponho sílêncio em torno desse- assunto. Quero-o encerrado apenas em holocausto à tran" qüi!idade de Helmut e em oblação ao conceito profissional dos renornados psiquiatras que o decLararam penalmente irresponsá­veL

114

Como me pareela que, sobre esse caso, ele nada mals quisesse dizer, ochei que tinha o dlreLo de pedir-lhe outra5 explicações,

- O senhor não disse como procedeu para Que o proble­ma fosse resolvido da forma narrada. Gostaria de saber o que foi feito para que tudo corresse do modo que descreveu.

",,,- Ora, doutorl Presumo que não lhe falte argúcia para descobrir por si mesmo o que foi feito. Além disso, gosto de conceder aos meus ouvintes algum espaço vazio por onde pos­sam passear com sua imaginação> Sei que os fatos antecedem â idéia, mas prefiro ter a i!usâo de que a idéia vale mais do que os fatos. E Isto que divide ao meio a fílosof!s, separando os ldeafls­tas como eu, dos filósofos materialistas. Satisfaço, todavia, sua ociosidade mentaL Tudo fol muito fácil, desde o momento em que Gino concordou em viajar. Em Pandora, sua execução sem crime ou através de um crime impunível, seria impraticável. Envolveria fatalmente a mim, à minha fHha e constituiria um prato saboroso para o recalque de meus inimigos locais. Aqui em São Paulo, já seria plenamente exeqüiveL Meu primeiro pen­samento, aliás, fOI mandar Helmut matá-lo aqui mesmo, usando outra fórmula do crime perfeito, Na biblioteca, em minha casa, na noite em que cheguei de Pandora, foi que me veio à idéia expforar a brecha do nosso Cód i90 Pena!, relativamente aos cri­mes consumados a bordo de navios ou aeronaves de proprieda­de nacional privada, quando em águas territoriais ou espaço aéreo de outro país, onde não façam escalas. Quando propus a meu genro a sua ida à Argentina, não havia ainda pensado no meIo que usaria para matá-lo, Minha preocupação, no momento, era apenas afastá-lo o mais depressa possível de minha fHha, para que eJa ficasse em segurança, Aqui, como já disse, fOI que concebi o plano e o aprovei. Uma vez, porém, elaborado o esquema, o resto foi coisa de mecânico, Gino chegou no dia seguinte e jã encontrou em meu poder, à sua disposição, as pas~ sagens aéreas de ida e volta, em empresá nacionaL Recebeu, também, em dólares, o dinheiro de que precísava para a viagem. Dctendo-lhe que eu também estava para viajar, ped(Alhe que do hotel em que ficasse em Buenos Aires me desse togo um telefo-

115

Page 60: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Dema, voltando para o mesmo hotel depois de haver concluído suas pesquisas em Mar dei Plata e 8ariloche. Ele deveria também informar-me por telefone, Com dois dias de antecedência, a data e a hora de seu embarque de volta ao Brasil. Assim, disse-lhe, eu poderia programar com exatidão a minha viagem de retorno a São Paulo, evitando possível desencontro quando de seu regres­so. O hotel em Buenos Aires e minha casa seriam os pontos de oootato , enquanto estivéssemos ausentes de São Paulo. Eu tele­fonaria para o seu hotel e para a minha casa e ele para esta. Se houvesse algum recado sobre o seu regresso, eu ainda teria sem­pre dois dias para voltar a tempo de ir recebê-lo no aeroporto. Ele viajou três dias após esse nosso entendimento e logo ao che­gar telefonou-me, dando-me o número do telefone e o nome do hotel em que se registrou. Nesse interregno, visitei Helmut Mezger no hospital.

"Em poucos minutos estávamos entendidos. Eu conhe­cera Helmut há seis anos passados, à instâncias de sua mulher que conseguira transpor a muralha de meu escritório e me fizera estudar o processo no qual ele, com assistência de um advogado civrrista, fora definitivamente condenado a uma pena irresgatáveL Havia falhas técnicas e eu as explorei anulando o julgamento. Ele foi novamente julgado, por duas vezes, sendo em ambas absolvido. Tornou~se meu escravo. Era, todavia, um pisicopata, com largos períodos de lucidez, mas de tremenda periculosidade quando motivado por ofensas a alguns princí­pios que reputava sagrados. Um deles era a mística da gratidão. O homícídio pelo qual fora condenado e posteriormente absol­vido, retratava claramente a sua personalidade, Nem ao menos conhecia a vítima. Matara-a porque esta difamara seu sogro, comerciante a quem devia o amparo recebido no Brasil, quando, menino ainda, egresso da juventude hitlerista, perdera aqui em um desastre de automóvel, logo após sua chegada, o único parente que o ajudava. Começara como empregado, casando-se depois com uma das filhas de seu novo protetor, Sua neurose agravara-se na prisão e, quando o conheci-, não tive dúvida de que ele caminharia rápido para a reincidência. Se eu tivesse algo a ver com a sociedade, se eu amasse ao povo e aprovasse o que a( está, ou seja, a moral consumista e a ordem jurídica

116

que a sustenta, é claro que não teria dado um passo sequer para a liberacão dele. Não entendo assim, todavia, a missão do advo­gado. A~ho que da mesma forma como posso chamar o melhor médico para curar-me, sem que ele tenha o direito de deixar de fazê-lo porque minha vida seja nefasta à sociedade, também acho que qualquer do povo pode chamar o melhor advogado para curar-se de coações processuais, sem que a este seja I feito deixar de faz/l-lo a pretexto de ser socialmente funesta a liberda­de daquele que o chamou. O patrono que julga o acusado, usur­pa a função dos tribunais. Pratica, além disso, uma indignidade, pois sendo chamado a socorrer, recebe em função sacerdotal a confidência do réu, cujo conteúdo, seja ele qual for, não deve. exercer influência negativa em seu espírito, nem provocar-lhe aversão alguma pelo confitente, capaz de fazê~lo repudiar a defesa da causa, Nem mesmo o absoluto sigilo que o advogado venha a manter sobre a confidência, basta para justificar a recu­sa do seu patrocínIo em razão da natureza do críme cometido pelo acusado. Aliás, o verdadeiro criminalista não permite que o réu lhe confesse coisa alguma. Limita-se a indagar quais os fatos, documentos ou testemunhas que lhe são favoráveis, a fim de melhor orientar a sua defesa. Por isso, a recusa de patro­cínio face ã natureza do crime ou à confissão recebida em con­fianç~, constitui também imperdoável omissão de socorro, O Estado, para assegurar justiça ao povo, não predsa da ajuda de particulares e, muito menos ainda, da traição dos patronos dos acusados. Não precisa, também, da pusilanimidade ou da omissão dos advogados, Como um polvo gigantesco, o Estado possui tentáculos invisíveis que, oprimindo o réu, são capazes de sugar-lhe até mesmo o ânimo de defesa, cabendo ao advoga­do, com sua dedicação e competência, socorrer a Justiça medi­ante a restauração do equilíbrio entre oS pratos de sua balança.

"Helmut, como se VIU, estava no cárcere com uma longa sentença a cumprir, e no entanto era nulo. não valia coísa algu­ma, o julgamento que o condenou. Nenhum jurista admitiria que eu, ou qualquer outrO advogado, tivesse ~ direito de, uma vez descoberta a nuHdade do julgamento, deixar de promover a absolvição do paciente. A minha consciência profissional jamais me perdoaria por essa omissão. Nem mesma se eu fora

117

Page 61: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

juiz, silenciaria 8 respeito. Certamenüi confidenciaria BOS crimi· nalistas de minhas refaçães o que achava do processo e então dormiria tranqüHo, por saber que essa geote, por sua própria índole, não consegue cruzar os braços ante um erro Judiciário.

"Helmut fOI Hbertado e seu processo ainda não se em~ poeirara no arquivo das coisas julgadas, quando sua esposa me informou que ele acabava de praticar outro homicídio, 'Dessa feita, vingara a sua honra conjuga! com um tiro na boca de um vizinho que lhe insinuara não ter sido inatacável a conduta de sua mulher enquanto ele B!.11vera preso. Minha previsão se con­firmava, He!mut era um personagem de Cervantes. Em seu dese> qul!fbrio menta!, vestira a armadura, afixara o elmo, cingira a espada, armara~se cavaleiro e safra pelo mundo a cumprir a sua mlssão de vingador. Agora, não havia mais como defendê~!o a não ser int€fnandooQ num hospício. Ele haVIa sido um daqueles meninos que, fanatizados, de fardas frouxas, assi&tlram impo­tentes, entre os escombros, a queda de Berlim. Sua frustração vinha daquela época terrível, quando sua mãe e suas irmãs foram estupradas pelos invasores. Sua neurose apenas encubara durante os primeiros anos de sua estadia entre nós. Exp!odira f1nalmente, buscando pretextos para fazer tudo aquilo que não pudera fazer em defesa de sua fam ma e da cidadela que o tirano louco, em exortações patéticas, confiara desesperadamente a seus soldados imberbes, 0$ últimos que ainda pudera convocar.

"Um conselho de famíPa ao qual não comparecI, aco­!heu a minha sugestão, e recursos financeiros foram levantados para ü seu internamento, chamando-se os melhores psiquiatras para tratarem do paciente. Ele não era, de forma alguma, como me disseram os médicos, totalmente irresponsável. Era um neu­rótico que raciocinava, às vezes até brilhantemente, mas que não podfe, em certas condições, controlar 0$ seus impulsos agressl" vos, A meu pedido, porém, foi assim considerado na perícia, a fim de ser decretada a sua lnterdiç210 totaL dando-se-!he como curadora a esposa G, ao mesmo tempo, preven:ndo"se com a inlmputabHidade o desfecho do novo processo criminal.

118

"Quando soube que eu dele precisava, Helmut exultou. Não qUIs saber, nem eu lhe diria, porque motivo ~!no devi: morrer. Partiu do princípio de que sua gratidão por mIm o obri" gava a fazer tudo que eu mandasse, exceto contra set.! sogro e sua mulher, com quem ele também se considerava em débito pelo resto da vida. Como a vigHância do hospital era nenhuma, não lhe foi difícil apresentar·se em minha casa na nOite do mes· mo dia em que o visiteL Oei~!he um retrato de Gino que eu recortara de uma foto de casamento recebida de minha fiiha e despachei o justiceiro à Argentina, por via terres:re. Quando: posteriormente, vim a saber em que hotel estava GI~O, telefone! a Helmut mandando"\) insta!ar·se no mesmo e ficar atento, junto à p~rtar!a, à empresa de aviação e, se possível, juoto à própria vítima, com a qual devia travar relações,. de modo a estar informado sobre a viagem de regresso e poder voltar ti:H\1'

bêm no mesmo avião. O resto passou-se como já relatol, Só posso acrescentar que Helmut nunca foi incomodado pela justi­ça uruguaia e que, julgado aqui peio homicfdo anteriormente praticado, aquele com que lavara em sangue a ho~ra da aspa.sa, fOI declarado penalmente irresponsável e submetido a medIda de segurança hospitalar, havendo eu financiado o tratamento. Hoje ele está aparentemente curado. Voltou a trabalhar com o sogro e vive como um pequeno burguês, em paz com .tod? mun­do, Já me visitou aquI, trazendo-me seu abraço de solidanedade, lamentando minha reca (da no crlme e procurando confortar-me neste pedQdo de angústia que atravesso."

Escusado dizer que aq\JHo para mim tInha um fascínio indescritíveL De repente, tudo que antes eu julgava capaz de existir apenas na imaginação de novelista: que \li~ssem a- ap!i~ car o Direito Penal na ronstrução Hteráfl8 do cnlTW perfeito, estava sendo vivido ante meus próprios olhos, por personagens de carne e osso. Visando provocar a Jorge Muniz, para que ele continuasse falando sobre o caso, cuja exatldão legal dispensa~ va outros esclarecimentos, perguntei-lhe porque não executara diretamente o crime, quando não lhe seria difícil, face à (ndole de seu genro, preparar contra ele um pretexto de !eg (tim3 de· fesa.

119

Page 62: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

- Esse foi o meu primeiro impulso. Depois, considerei que Pandora não merecia ser teatro de uma reação honrosa, que se inscreveda em seus anais forenses, fazendo-a figurar como uma terra de homens intrépidos. Sou instintivamente infenso a tudo que possa glorificar Pandora. Meu maior temor, aliás, à proporção que eu crescia intelectualmente, era o de ser levado para aH, depois de morto, ainda que sob a forma de estátua, como já fizeram com outros homens ilustres que em vida expulsa­ram ecujosossos foram depois buscar alhures, para se embandei­rarem com seu renome. Por outro lado, não seria fácil aos honra­dos juízes de Pandora separar um conselho de sentença onde não figurassem alguns de meus Inimigos. Havia, também, o pro­biema de meus desafetos policiais que tentariam inutIHzar a prova da licitude do ato e, sobretudo, a nociva influência do jornalismo local que, sendo um dos mais sórdidos do planeta, certamente aproveitaria o fato para veicular torpezas sobre a conduta de minha filha. Ademais, um homem de meu refina­mento não executa trabalho de magarefe. Manda outro fazê-lo, a exemplo dos generais que, na guerra, não sujam as mãos de sangue. Para isso, têm os soldados. Os próprios tribunais, quan­do aplicam a pena de morte, não a executam por seus ju fzes e sim pelo verdugo."

Tudo, desde a elaboração do plano até a execução, esta­va perfeito, inclusive a justificação do meio. O porte de um revólver de grosso calibre no avião dispensava explicações por­que, na época, não havia ainda sequestros de aeronaves e não se revistava os passageiros antes do embarque. O ato homicida, já que fora coisa de louco, afastava a hipótese de mandato e não reclamava um motivo coerente, Muito pior e menos compreen­sível foi o ato do homem que, recentemente, espatifou a Pietá, no Vaticano. Mas, quanto à necessidade de matar o genro, eu julgava que, com algum esforço mental, não fora a sua tendência para o crime, Jorge Muniz poderia ter encontrado uma solução incruenta. MenOS para expungir dúvidas do que pelo prazer de ouv{·lo, perguntei:

Não haveria outro meio de solucionar o problema? Não seria o caso de anulação do casamento em razão de erro

120

quanto à pessoa do marido, que se apresentara como um honra­do engenheiro e não passava de um marginal cuja vida pregressa o senhor já havia !evantado?

, "- Por favor, pare com essas sugestões acadêmicas, que so servem para os casos normais. Eu não estava lidando apenas c:om um. casal .infeliz, como são quase todos, Estava obrigado a livrar mmha filha de um facínora que com ela se casara para roubar, Qualquer demora na reação poderia custar-lhe a vida. O primeiro assalto, por pouco não a destruiu. Sua ficha hospita­lar registrava um aborto, fraturas, hematomas e lacerações pro­fundas. Hoje, quem olha para ela nada percebe. Mas tive de levá­la aos Estados Unidos para correções plásticas que os médicos daqui nâ'o se animavam tentar. Se eu não a houvesse socorrido imediatamente, o bandido a teria despedaçado na primeira opor­tunidade. Não se invoca a lei em casos dessa natureza. Paradoxal­~ent~, o que se deve fazer é impedir que_ ela, clm sua cegueira, Interfira no caso e se volte contra nós. E lamentável, mas é o que ocorre, Mata-se um porco, uma cobra ou um chacal e res­ponde-se como se a vítima fosse alguém. A lei é grossa. Não distingue se a vítima é um crápula ou um benfeitor da humani­dade. Já vi pais de família serem condenados por matarem estu~ pradores e assaltantes, somente porque não puderam fazê-lo no exato momento em que os mesmos estupravam ou assaltavam. Fizeram-no depois e por isto foram condenados. A lei, ao con­trário dos deuses, não aprova a vingança. Já vi também conde­narem à pena máxima o homem honrado que mata pelas costas o pistoleiro, como se alguma chance ele tivesse de fazê-lo pela frente, contra um inimigo que, exatamente por não trabalhar, teve tempo para exercitar-se, a vida toda, no manejo do gatilho.

- Se a lei está errada e a Justiça é Judibriável. como ex­plica o senhor a sua paixão pela advocacia?

- A lei não é errada, tem erros. Por mais deficiente que seja a Justiça, SÓ um louco poderia desejar o mundo sem ela. Até mesmo os celerados não gostariam de viver em um mundo sem Justiça. Eles sabem, ou logo aprenderiam, que a ciência pena! é o Direito Prõtetor dos Criminosos, como a chamava

121

Page 63: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Dorado Montem, ou a sua Cart3 [Viagna, como é de entendimen­to VUkJ3r. Sem o Direito Penal e sem as fi;-..'gras do processo, os delinq(jentes ficariam à mercê da vingança privada e da -fúria po­pular, cujas sentenças são sumarias, pavorosas e irrecorríveis< Se tudo, porém, no mundo jurídico, funcionasse COm absoluta exatidão, o advogado seria inútiL Por mais que eu ame, entre­tanto, a minha arte e ti minha ciência, gostaria de vê-Ias dispen< sadas pelo respeito geral aos direitos ou pera infal1bHldade da Justiça. Esse estágio, todavia, Jamais sErá alcançado em parte alguma. A sorte dos réus continuará dependendo, multas vezes, da simples distribuição dos processos, porque as inclinações ideológicas dos julgadores divergem imensamente, Por outro lado, como Nietzsche e Jacob Wassermann observaram, escre­vendo o último uma página admirável sobre o tema, o interroga­tório e outros meios de investigação judiciária não perdem em deslealdade para as insídias usadas pelos réus no cometimento dos cdmesde que são acusados. Nem mesmo de seus lu ízes, pois, podem eles receber exemp~os regenerantes, porque o processo criminal é Uma cilada onde o acusador abusa de subterfúgios para incriminar e o julgador para alcançar a verdade. A crise do Direito, como já advertiu Carnelutti, é uma doenca incurável e seu diagnóstico sugere um agravamento crescente 'do estado pa" tológ!co do enfermo. Já notou quantos réus são condenados à pena máxima em holocausto a qualifjcantes que nem mesmo podem ser Juridicamente sustentadas? Uma delas é c motivo fútIL AceftiHa é admitir que o crime tem geração espontânea. Se todo efeito é necessariamente igual a sua causa, é óbvio que o motivo fútil, mínimo, frívolo, não pode determinar a prática do maior dos crimes, o homicídio, a não ser que o agente seja um louco. Nessa hipótese, o hospital e não () cArcere deve ser a hospedaria do delinqüente. Por ísSQ mesmo, porque exíste o erro judidario 0 este não ocorre apenas quando um inocente é condenado, mas também todas as vezes em que se desobedece <l ciência jurídica, é que a advocada é apaixonante. Através dela pude fazer Justiça e impedir a prática de muitas erronias, ainda que apenas em casos isolados, Mas, como tá disse, não aspiro à perfeição. Contento'me com o poss(veL

122

12

Certamente porque o meu esp(rito, até então, alími:mta" m'se de abstraç.5es e teorias, aquela exposição de fatos reais, exatarnente ajustados aos prlnc(plos doutrinários, causava-me uma admlração análoga à que deve suscitar o funcionamento de um engenho complicado, naqueles que conheçam a complexida­de de sua construção. Era a idéia matando ii distância, como um raio misterioso, sem provocar as iras do Direito Pena! que, imo­bilizado nas garras do crime perfeito, permanecia apático, indi­ferent€', sem qualquer mação poss{veL A visão era empolgante demaiS para que eu a deixasse escapar sem outras indagações. Somente através de Jorge Muniz, que comprovara a teoria do delito ímpun{vel, é que eu poderia me Instruir para refutar o leviano estribilho, tão difundido entre os leigos, de que não existe crime perfeito. As obras de ficção !iterá ria, nesse ramo, não me seduziam. Parecia-me fácH tirar crimes do nada, corno fazem os escritores em voga. Limitando seus enredos ao simp!es fato criminoso, ao motivo e às pegadas da autoria, jamais se preocupando com as leis penais, eles tecem genialmente suas intrigas, mas acabam sempre despedindo-se do leitor sem lhe ensinarem coísa alguma. Quanto à doutrina pura, desvinculada dos crimes reais, era para mim como os teoremas de física e mate­mática para o engenheiro de gabinete. Bel íssimos, certamente, mas tão abstratas que parecem funcionar apenas no papel, suge­rindo dúvidas quanto a sua eficIência nas aplicações práticas. Finalmente, o crime verdadeiro, este que os processos jUdicí;J· rios exibem, ti sempre coisa primária, despida de engenho ou arte, incapaz de Interessar a quem pesqUisa a ciência, nela bus­cando apenas fenômenos de explicação dlHeil ou de alta indaga~

123

Page 64: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

ção, o crime impunível e não o símplesmente ínapurável, é o que fascina ao pesquisador de aberrações forenses, O povo, aliás, tem sobre o assunto uma noção equivocada. Imagina que o de!i~ to ímpuníve! seria apenas aquele que pudesse permanecer indefi­nidamente ignorado. Por isso, inspirando-se na advertência bíbli­ca de que nada há oculto que não venha a ser descoberto ou re­velado, afirma que o crime perfeito não existe, f: manifesta a erronia da conclusão, porque falsa é a premissa. A simples igno­rância de uma coisa não a torna perfeita, O que se ignora, é apenas ignorado. O perfeito é aquilo que, conhecido ou não, reúne todas as qualidades conceb íveis para ° fim a que se desti­na. É o primoroso, irrepreeensível, impecável. Portanto, o crité· rio da ignorância não serve para conceituar o crime perfeito. Muito ao contrário, este é o crime cujo fato típico, ou a ação que o constitui, o réu propala ou confessa abertamente, sem que a máquina da repressão penal possa ser contra ele movimentada. O outro, o de difícil apuração, interessa à pol Ceia, aos jornais, à opinião pública, nunca, porém, ao jurista. Por isso, porque os crimes perfeitos de Jorge Muniz esporeavam a minha curiosida­de, fiz com ele o que nunca mais tive o inescrúpulo de fazer com qualquer outro constituinte. Pedi-lhe que me revelasse outros planos homicidas de índole equiparável ao que acabara de narrar, Ele sentiu que não havia morbidez alguma em meu pedido, nem a pretensão ridícula de tornar-me seu confessor. Compreendeu que só o interesse científico me empolgava, mas, mesmo assim, justificou-se:

- Embora o senhor possa pensar o contrário, a verdade é que eu não tenho tendência para o crime. Se tivesse, muita gente já não existiria, Todos 0$ de fitos que engendrei e mandei exeçutar eram absolutamente inevitáveis. A necessidade dispen­sa a lei, já diziam os romanos. Só ordenei crimes para impedir a desgraça de pessoas a quem eu tinha o dever indeclinável de socor­rer. O primeiro e o último, como o senhor já sabe, para libertar a minha mulher e a minha filha. O segundo, para salvar alguém de morte iminente. Este eu também lhe narrarei. Antes, todavia, devo admitir e o faço sem aceitar a mínima censura, que jamais recusei a minha ciência às vítimas de coações irremediáveis pela via judiciária. Se o caso era realmente grave, se era insuportável,

124

se o desespero da vItima me convencia de que ela estava prestes a cometer um crime estúpido, arriscando se a uma sentença eon" de.natória, tão certa quanto imerecida, eu não lhe negava as minhas luzes, Como já disse, a grossura da lei equipara o homem ao patife, dando a este o privilégio de provocar impunemente a ira dos justos, certo de que a sua eliminação pela via do homicí­dio será punida em igualdade de condições com a de um bene­mérito da espécie humana. Por isto, o canalha abusa a mais não poder, convicto d,e que a sua vítima não se arriscará a justiçá·lo, para não vir depOIS a ser Julgada como se tivesse matado alguém. Eu que em Pandora sofri na carne a compulsão de reprimir sem a lei a patifaria e que depois fui novamente obrigado a apelar para o direito natural, não poderia ficar insens(vel a certos dra­mas, a verdadeiras tragédias, quando nada me custava indicar a solução necessária. Algumas vítimas não tiveram energia sufi­ciente para livrarem-se de seus algozes e a eles se submeteram, soçobrando irremediavelmente no pântano de seu vilipêndio, Outras, porém, muito poucas, aliás, ouviram a admonlção do Evangelho e não se limitaram a chamar-me de Senhor, Fizeram também o que eu mandava.

- As vezes - ponderei - o caso não é de energia. Há pessoas moralmente fortes que, entretanto, confiam na lei ou, quando nada, na justiça divina.

"- Sim, eu também, por algum tempo, sentei-me à beira do rio, esperando que passassem os cadáveres de meus inimigos. Mas, lá em Pandora, só passam mesmo os dos amigos. Jesus tam­bém acreditou em Deus e acabou crucifícado, De nada valeu pe­dir ao Pai que lhe afastasse dos !ábios ° cálice de amargura. Seus assassinos, todos eles, tiveram vida tonga e venturosa, Renao grifa este fato em sua biografia sincera do Nazareno. Aflás, alarmado com o triunfo constante da iníqütdade, não pôde Stendha! deixar de reconhecer e proclamar que a única desculpa de Deus é não existir, Mas, para encerrar este assunto porque precisamos voltar ao caso mais importante, ao que resul: tou em minha custódia, vou contar-lhe o que aconteceu numa luminosa nOite de verão, quando o policia! Kapa estava fazendo um lanche no bar de um posto de gasotina, situado nas imedia-

125

Page 65: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

ções de sua residência. Eram exatamente 23 horas e 45 minutos e aquele local era o únim, no bairro, onde se poderia COmer alguma coisa antes do amanhecer. O polidal Kapa havia estado de plantão até pouco antes daquela hora e para não acordar a esposa, que também trabalhava para ajudá-to na manutenção do lar, preferiu já chegar em casa allmentado, Logo que começou a mastigar o sandufche, um automóvel parou junto a uma das bombas de gasolina. Seus passageiros eram um homem ao vütan" te e uma mulher ao seu lado. Como nínguém viesse atender, o motorista começou a buzinar ínsistentemBnte. Deixando o lan· che sobre o balcão, o policia! foi espiar o que owrria. Nesse momento, ouviu-se um barulho no escritório do posto B um ho­mem apareceu à porta, trazendo numa das mãos uma sacola e na outra um revólver. Antes, porém, que pudesse fnidar a fuga, o policia! Kapa saltou para a porta do escritório, da qual o bandi­do se afastava. 8!oqueando a sarda pelo lado deserto do posto, ordenou que o assaltante parasse. Como ele não obedecesse, fez um disparo que o atlngiu levemente no braço esquerdo. Vendo­se acossado, o assaltante pulou para trás do automóvel que havia chegado e iniciou, por seu turno, uma fuzilaria contra o policiaL Ouviram"S€, então, quatro disparos raptd íssimos. O bandido tombou com um buraco no crânio e dois no tórax. Uma bala, porém, desviando-se do afvo, foi atingir a cabeça da mulher que estava no automóvel, matando-a lnstnntaneamente. O policial, pelo telefone, comunicou o "fato aos seus superiores, permane­cendo no ~ocaj até a remoção dos cadáveres e a conclusão das diligências preliminares. O inquérito. com as declarações dos que assistiram ao evento, fol logo remetido a ju(zo, segUindo-se denúncia contra o policiaL

"Não me dignei de funcionar nesse processo. Depois de ler o inquérito, pareceu~me que, no caso, a interferência de um advogado de renome só serviria para despertar suspeitas, Como o senhor deve saber, quem geralmente condeni;i ou absolve é a pol{da. Os juízes, mais das vez.es, submersos em centenas ou milhares de processos, limitam-se a ratificar inquéritos, A pro­motoria, também, pouco paus: fazer, porquB suas testemunhas são as indicadas pela polícia e já cornparecem a juízo compro­metidas pelo que depuseram na peça informativa, não trazendo

126

nada de novo para o julgamento da causa. Portanto, corno o inquérito estava excelente para a defesa, sugeri a constituição de um advogado qualquer para o polida! Kapa, restrln~indo-rne a acompanhar ii distância, o fluxo dos acontedmentos. O réu não fOI sequer a júri, Foi absolvido !lminarmcnte pefa legítima defe" 53 própria, cumulada com a "aberratio ictus". O juiz eo tribunal, este confirmando a sentença, concluíram, como não poderiam deixar de faziHo, que, a morte da mulher resultou de erro no uso dos meios de execução, quando o policial, em estado de legItima defesa, revidara aos disparos do assaltante. Como o senhor poderia certamente !ecionar, no erro acidenta! a lei con­sidera a vitima como se fosse a pessoa que o agente pretendia atingi!". Se, pois, o polida! agira em ieg(tima defesa contra o bandido, a morte da mulher fora também absorvida pela descri· minante. Houve, entretanto, um voto vencido que mandava o polidal a júri, por entender que ocorrera a hipótese de excesso culposo. Nos embargos, todaVia, o tribuna! pleno sensib!!fzou"se com o fato de haver o bandido deflagrado toda a carga de seu revólver contra o poHcia! e confirmou a absolvição. Ninguém soube, até hoje. e nenhuma diferença faz agora que se venha a saber, que tudo não passou de uma trama perfeitamente urdida para produzir dois crimes jurid !Gsmente impun (veis.

"As vítimas meredam, realmente, ser eliminadas. O ban­dido era irrecuperável. A mulher obrigava o marido, cujo patri­món!o era constitu (do apenas de imóveis, bto é, de bens que só poderiam ser vendidos com sua autorização, a suportar a infâ~ mia do adultério, porque ela não lhe dava o desquite a não ser com a partilha, Seu amante era um médico sem clínica que já respondera a processo por fornecimento 11 feito de entorpeCEm­tes e alucinógenos, tendo !09rado absolvição porque a classe médica, sempre dosa de suas prerrogativas, exercera ostensiva influência em seu favor, invertendo o resultado do processo. OedicanH;e posteriormente à indústria do aborto, mas tivera de encerrar às pressas 3S atlvfdades de seu consu!tórlO, porque uma cliente, por ele transportada de emergência a um hosplta!, viera a falecer na mesa de cirurgia. Seus colegas ainda tentaram aba­far o crime, mas os fammares da v(t!rni$-,,?useram a boca no mun­do e o "fato tornoU--S2 obl8tO de um novo processo que, entre-

127

Page 66: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

tanto, caminha inelutavelmente para a impronúncia. Os laudos periciais afirmam que o aborto antecedeu à data em que a vfti ma estivera no consultório, sustentando, assim, a alegação do réu de que apenas tentara socorrê-Ia, uma vez que a paciente já o procurara em estado patológico, depois de ter sofrido como lhe confessara, às mãos de uma parteira criminosa, as lesões res­ponsáveis pela hemorragia que ele não pudera estancar em am­bulatório. Impunha-se, portanto, a imediata remoção da pacien­te para um hospital onde pudesse ser operada. Nem a ele, pois, nem aos seus colegas cirurgiões, cabia culpa alguma pela morte da paciente, e sim à parteira que até hoje ninguém pôde identifi­car, porque jamais existiu. É o crime imperfeito, porém inapurá­vel, como todos os cometidos por médicos, no exercício abusivo de sua profissão. Aliás, além do crime médico, que fica sempre impune por insuficiência da prova, existem mais dois outros, de ocorrência diária, que a justiça, pelo mesmo motivo, não tem meios de castigar. São O crime da polícia e o do automóvel. No primeiro, a carta de corso é o estrito cumprimento do dever legal ou a imputação do crime a algum inocente, matando a polícia, assim, dois coelhos com uma só cajadada. No outro, o do automóvel, há sempre como mascarar de simples impru· dência o dolo mais indefensável.

"Quando o esposo traído me procurou, Ja não se preo­cupava mais com o desquite, com dinheiro, com coisa alguma, exceto com a própria vida. Estava apavorado. Vinha tendo aces­sos de vómito, diarréias, cãibras, sentindo dores de cabeça e ab­dominais, dificuldade em engolir e respirar, e descobrira entre os cosméticos da mulher um vidro sem rótulo, contendo um pó branco cristalino, que cheirava a alho, do qual me trouxe uma quantidade m(nima, para identificação. Percebi que se tratava de arsênico, Mas, para tranqüllizar a consciência, levei a amostra a um laboratório. Os testes de Marsh e Gutzeit foram ambos positivos. Não havia, pois, como preservar a honra, o patrimô­nio e a própria vida do infeliz, senão aplicando a "endlosung" de Hitler, a solução final, àquela dupla de ce!erados, ou ao me­nos, "vaporizando", como diria George Orwel, aquela mulher abominável.

128

"Foi então que me lembrei do policial Kapa, meu velho con~ecido, que já obtivera o primeiro lugar numa competição de tIro ao alvo, com arma curta, contra objetlvos em movimento. {O ~ojjcial deveria combinar com um bandido irrecuperável, dos mUItos que andam em liberdade, um assalto a um posto de gaso­lina onde ele estaria presente para dar-lhe cobertura. O homem cuja vida estava por um fio foi instru(do a fazer imediatamente uma curta viagem. Tão logo voltasse, em dia que ambos fixamos convidaria a mulher para um jantar, pretextando haver final: ment,: concordado com a divisão do património. No retorno, deveria reabaste.cer o automóvel no posto de gasolina que, à mesma hora, serra assaltado.

"Só devo acrescentar que o policia! Kapa sofreu um rude golpe em su'a vaidade. Depois de reassumir o cargo na po­lícia, jamais obteve uma colocação honrosa nos torneios em que antes ganhava aplausos e medalhas. Acerta sempre nos alvos mais diUceis e perde os tiros mais fáceis. E: comum, quando alveja silhuetas móveiS, atingir alguma que esteja parada. Mas, não desiste, Sempre se inscreve nos concursos, a despeito de seus ronstantes fracassos. Já lhe disse para acabar com a farsa porque sua sentença absolutória é imutável. Mas, em sua seráfi~ simplicidade, acha que deve continuar sacrificando o seu orgu­lho de exímio atirador para sofidificar ainda mais um aresto que nenhum poder legal ousaria alterar, nem mesmo se ele compare­cesse a ju ílO e confessasse os crimes. Se assim procedesse o mais que poderia conseguir, como o senhor sabe, seria pegar uma sentença por auto acusação falsa e outras por calúnia, se tentasse envolver a mim e ao viúvo, em sua fabulação ofensiva à coisa julgada."

É claro que tendo merecido uma confidência daquela ordem, eu não tinha o direito de manifestar discordância alguma com as razões morais que Jorge Muniz invocara para justificar seus crimes. Qualquer pronunciamento ou indagação de minha parte só poderia cíngir-se ao aspecto jurídico do caso narrado, ou mesmo a alguma falha que eu tivesse observado no r:!ano delituoso. Pareceu-me que a operação colocara em grave riSCO o gerente do posto, porque se ele houvesse reagido ao

129

Page 67: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

assalto, poderia ter sido morto ou baleado. Também as p0SS0Ds

que estavam no bar, podeda,n ter sido ferld33 pe!osdisparos que não atIngiram o policial.

"'- Não poderiam. - exp!1oou-me - A arma do band ido lhe fora emprestada momentos antes da operação pelo policial. Estava carregada com cartuchos de festim. Logo após os dlspa~ ros que vitimaram o ladrão e a mulher, o policia! Kapa, a pre~ texto de não deixar que algum drcunstante, enquanto ele fosse telefonar, sumisse com a sacola de dinheiro roubado, apossou-se zelosamente dela e do revólver e dirigiu-se ao escritório do pos­to. No interior do mesmo, atrás da porta fechada e Sem que alguém visse, substituiu as cápsulas dos festins detonados pot outras de cartuchos verdadeiros que ele havia deflagrado no dia. anterior, com a mesma arma que depois emprestara. A sacola com o dinheiro e o revólver com as cápsulas subsíltufdas volta" ram às suas posições originarias junto ao cadáver do assaltante. Como o dinheiro conferiu com o desfalque no caixa, e como as testemunhas, embora lamentando o acidente ocorrido com a mulher, estavam empolgadas com a ação heróica do ponela! e só declararam o que lhe era favorável, nenhuma atenção foi da-

, da ao fato de haver ele recolhido a arma e a sacola enquanto fora telefonar. O incidente, portanto, não foi registrado no inquerito. Se tivesse sido, também não faria dfferença. O exa­me bal ístico não é uma constante em nossos proces$os cri" minais. S6 é procedido quando surge alguma dúvida quanto ii arma que expeliu o projétlL No caso, tal dúvida não ex!stla. O que não terIa passado despercebido era a carga de festins, Des~ de que ela fol substituída por cápsulas de cartuchos de tiro rsal, nada mais havia a temer. Além disso, quando escolhi um policial para executar a operação, foi porque sabia que pé de galinha não mata pInto. Ressa!vada a h~pótese de damor púbUco, os inquéritos contra policiais são sempre Jeltos à moda da casa. A lei não interessa à polícia. t: apenas um instrumento para abso!­ver amigos ou condenar desafetos. A sorte do imputado pende somente de suas relações ou das de seu defensor com a autorida­de, de seus recursos financeiros e da maior ou menor viablHdade de manipulação da prova, tanto no sentido da cu!pabl!idade, quanto da inocência. Quando lhe disse que nao gosto de pormf.>

130

neres, o fiz no sentido de que não me agrada falar sobre eles. f2 tedioso ter de esmiuçar aquilo que o interlocutor está obrigado a presumir. t. óbvio que eu não teria tjdo êxito algum em qualquer das operações narradas, se houvesse negligenclado sobre um únlt'O e mínimo detalhe, ainda que, na aparência, insignificante. A cri)· nica do crime está cheia de fracassos por inobservância de porme­nores fatais aos acusados."

- Exatamente por isso, estou pensando que se o assal" tante não reagisse ao tiro de provocação, o ponda! não teria mo­tiVO para continuar disparando contra ele.

- De modo algum. - respondeu-me. - A simples exls' tência de uma arma de fogo nas mãos de um bandido, coloca um policia! em legitima defesa. Não era necessário que o assaltante desse um únICO tiro para que se justificasse a n~ação do agente da !ei. Aliás, devo admitir que o tiro no braço do bandido foi um requinte cerebrino do polida! Kapa, alheio ao plano que havíamos traçado. Ele certamente imaginou que ninguém, com uma arma de fogo na mão, deixa de revldar um ataque, sobretudo quando percebe estar sendo vítima da traição de um comparsa. Visando a colocar-se em posição ainda mais incensurável perante a lei, o peHeial agiu daquela forma e deu certo. Se não desse, seria a mes­ma coisa. Ele já tinha a seu favor o estrIto cumprimento do dever lega! e a legítima defesa do património. Foi mais longe e conse­guiu a fEl(Jítima defesa própria.

- Tudo certo. Mas o senhor dispunha da prova de que a mulher estava envenenando o marIdo. Porque não providenciou a apreensão do frasco de veneno e o exame médico-legal do pacien~ te, para com ISso ganhar o desquite Utigioso?

- Eu não tinha prova alguma, Ninguém viu a mulher propinar o veneno, A slmp!es apreensão do frasco entre os seus pertences nâ'o provaria nada. Da mesrna forma, o exame do mari­do. Ouaíquer advogado que eta constituísse, sustentada com êxi­to que ele, interessado no desquite, colocara entre os cosmétiCOS o frasco de arsénico e também que ingerira urna quantldade m{" nlma, absolutamente incapaz de matfHo, para o cladsslmo efeito

131

Page 68: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

de forjar provas absurdas contra a pobre mulher: Nunca se prova­ria, também, que o pô de sucessão fOI fornecido pe!? arr:an~e, Não acredito em processos contra médicos, quando a Impunçao verse sobre drogas, cirurgia, ou outros recursos com que eles.ma­tam impunemente. As perícias, que só 0.5 colegas pode~ real.lzar, são sempre favoráveis ao imputado. A!.nda que se e~ldenc!8s::e ter sido o médico ° fornecedor do arsênlCO, provar-5e-lam depois as virtudes cosméticas desse veneno, que passaria a ser considera­do como notável embelezador da pele, dos cabelos, ou do que mais aproveita às mulheres em sua dramática rebeldia contra as implacáveis sanções do tempo. A propósito, esclar~ço q.ue o amante sobreviveu à sua torpe aventura porque só sena pengoso para o marido enquanto a mulher existi~. Somente at~avés dela poderia apossar·se da fortuna que persegu~a, Bastava,.pols,. a mor­te da mulher, para que os direitos e a vida do mando fIcassem definitivamente protegidos. É claro que o amante, tanto quanto a mulher, merecia também ser executado. Mas, não somente ele, O mundo está cheio de gente que deveria ser eliminada. Não tenho, porém, a pretensão de assumir esse gigantesco e~ca~go. Como já disse, apenas em casos excepcionais e de emergencla é que me sínto animado a intervir.

Voltei à carga com uma pergunta provocadora:

_ E o sigilo profissional? Como o senhor explica a faci­lidade com que me fez essa confidência? E o viúvo? E o policial Kapa? Como reagiriam se soubessem que seu segredo acaba de me ser revelado?

Ele quase chegou a rir. Olhou~me como se contemplas­se a inocência personificada e respondeu:

_ A que profissão o senhor se refere? À de justic~!ro? Já lhe disse que não fui advogado no processo. Quanto ao VIUVO,

direi que era infenso a qualquer publicidade negativa e até me~ mo se preocupava em demasia com o que dele pensassem. DepoIs que foi tra(do e aviltado em seu próprio lar, passo~ ~_ent~nd~r, como eu e Danton, por motivos diversos, que a oplolao publica é uma meretriz e que a posteridade é uma tolice. Quanto aO

132

policial Kapa, a revelação da verdade só pode beneficiá-to. Não mais precisará sujeitar-se a colocações wrgonhosas nos torneros de tiro ao alvo.

Restava-me ainda uma dúvida. A mais importante de todas, porque ele não poderia dirimí·la sem desnudar a sua verda­deira fitosofla em torno do delinquente, da pena, e da própria efi­cácia da lei penal. Perguntei-lhe, então:

- O senhor falou em bandidos irrecuperáveis. Usou esta qualificação no sentido real ou apenas no figurado?

"- Claro que classifiquei com exatidão. Muitos crímino­sos são irrecuperáveis. A recuperação é um mito. Para que se tor­nasse exeqüível seria necessário dedicar-se aos facínoras uma assís~ tência que faria deles a classe mais privilegiada da sociedade. Viu o exemplo da mulher? Bastou que o marido consentisse na divi­são do património para que ela aceitasse a confraternização. Só entregando a bolsa ou a vida se consegue a paz com o bandido. Para aplacar a ira do Minotauro é necessário fornecer-lhe, periodi~ camente, sete mancebos e sete donzelas. Do contrário, não haverá recuperação alguma. Qualquer tentativa no sentido de recuperar facínoras importará sempre na ingênua submissão da sociedade à chantagem permanente dos malfeitores. Muito mais lógico e humano seria dar-se assistência às crianças abandonadas, do que delas desviar os ínfimos recursos dispon íveis para beneficiar aque­les que já demonstraram sua nocividade. Das cinco categorias de Lombroso e Ferri, é óbvio que os criminosos natos e os loucos são absolutamente irrecuperáveis. Para eles, bem como para os habituais em crimes violentos, a única solução é a pena de morte. Também já me iludi com as teorias angelicals que susten~ tam o contrário. Hoje, s1nto até repugnânda quando me falam em recuperação de certos delínqüentes. Nunca sustentei uma campanha em favor da pena de morte, como instituição jurídica, por dois motivos. O primeiro é que a sociedade não me interessa. Essa horda de programados tem exatamente o que merece. O segundo, é a minha total descrença na infalibilidade da justiça. Sempre lidei com juizes honestos. Posso mesmo afirmar que é raríssima, quiçá nenhuma, a simonia entre os magistrados. Mas,

133

Page 69: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

todos erram, e akwn; erram muito. A ciência jurídica ti um mun­do arnpHsslmo e ~;nabJrcáveL Enquanto OS- advogados, premidos pela concorrência, cada vez mais se especiallzam, os ju fzes e tribunais são forcados a decidir sobre lodosos ramos do Direito. Essa onisciênda <impossível que deles se exige, torna impraticá­velo seu sacerdócio. Não quero com isto dizer que não haja juízes e tribunais capazes, e sim que só podem decidir com acer­to em matérla criminal os que se especializaram nessa díscipnns. Já tonge vai a época de Ignorânda em que se podia ver~r todas as ciências, porque era mu lto pobre o acervo dos conheCImentos humanos. Houve época em que passava por sábio quem conse· guia resolver uma equação do segundo grau: oP,eração que ago~a consta do programa escolar de menores rmpuberes. Antes oe Pasteur, que por sina! não era médico, a medicina não existia. A e(etrôn[ca, a aeronáutica e a ciênda nudear, são ramos recen~ tes da engenharia. No Direito, o processo de gigantismo é o mes­mo. Por isso, porque a ciência cresceu imensamente, vIvemos hoje a era da especialização. A medicina e a engenhar~a, multi­plicam-se em especialldades. Não é a um obstetra e sIm a um oftalmologista que se pede uma receita de óculos. Da mesma forma, é ao mecãnico e não ao arquiteto que se encomenda o projeto de um guindaste. Somente com a ciência jurf<;Jica_ é que se procede de modo irresponsável, embora de sua apllcaçao dependa o destino do homem, como lamentava Beccaria, logo no início de seu famoso opúsculo. Dessa lastimáve! incúria é que resultam as decisões estapafúrdia;:;, ridfcu!as ou hilariantes que de vez em quando se lê, emanadas dos tribuna!s poHva!entes.

A importância do assunto fez-me abandonar O propó­sito de não mais tnterrompE'Ho:

- Porque os escolhidos aceitam nomeações para esses pretórfos de clínica geral? Porque não exigem previamente o fradorlBmento dos tribunais em câmaras especiaiIzadas? Porque não se recusam a funcionar naquilo que não entendem, como certamente fadam um oediatra se O qUisessem nomear para um (,.3rgo de cirurgi80 e UJYi 'arquiteto se pretendessem contratá-lo pa­ra a com-trução de um submarino?

134

-- Eles não aceitam. Disputam. Não exbie essa qUlJnera de escolha, convite e acettação, Nos bastidores, a luta pelos car­gos é dramática. Alguns participam até mesmo de revoluções para serem nomeados. "Homens de prol na pena e no ferro", co­mo diria Camões, sabem que não há fugir ao apelo das armas quando o mérito não é reconhecido. Quanto ao ca:-go, nenhum constrangimento existe em errar à gUisa de exerce-lo, Por sua complexidade e pela sua própria mística de austereza e inerrân­cia, a função judiciária é iR menos fiscalizada. A imprensa não tem sensibIlidade para detectar deslizes de hermenêutica. O povo, muíto menos. As próprias partes prejudicadas pelas ded~ sões errõneas passam a ter sérias dúvidas sobre a autenticidade de seu direito ou culpam seus patronos pelo êxito dos advoga­dos contràrlos. Estes, por seu turno, são considerados por seus constituintes como os verdadeiros artífices das decisões que os favorecem e cuja erronia também ignoram. Só os melhores advo­gados percebem 05 lapsos de interpretação, mas, ou já lucrara~ com os mesmos erros e por isto calam-se, ou quando a heres!a é inédita, simplesmente a anotam para invocarem-na como pre­cedente na prImeira oportunidade. Assim. como reza o brocar" do "error communis fadt jus", o erro gera! inwrpora-se final­mente ao Direito, Ademais, ao assumirem os cargos, os contem­plados sabem que a simples nomeação, como disse Ruy, os converte da passibilidade servi! à suprema infabiHdade, da situa­ção de títeres a de oráculos, ou da condição de jUizes sem di­reito à sua opinião em inquisidores com o sacro privilégio de impô-ta. Por outro lado, o erro também exibe virtudes. Quantas vezes a aplicação exata da lei importaria em iniqUidade? Apenas errando é que se pode, às vezes, fazer justiça, Isso ocorre, por exemplo, quando os autos foram inteiramente forjados, com todas as provas ajustadas para conduzirem o magistrado a uma solução iníqua, única e inevitável, e este, sem deixar-se ludibriar pelas provas, pois soube resistir à tentação de ler o processo, consegue proferir uma sentença justa. Na e,,'fera pena!, ~ tarr:~ bém comum o delinquente ficar impune por crimes que jamaIs foram descobertos e acabar sendo condenado por um que não cometeu. Nessa hipótese, também não se pode negar a função reparadora do erro judiciário. Em suma, uma justiça infalível nem mesmo é desejáveL Nada, aliás, ilustra melhor as vantagens

135

Page 70: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

de uma justiça relativa do que a anedota atrlbu ída a F R~be!ais, do juiz que ao sentenciar substituía o proces~, os codJgos, os íivros de doutrina e jurisprudência, por uma caIxa onde guarda­va feijões pretos e marrons, em igual quantidade. Conforme a cor do feijão que retirava da caixa, absolvia ou condenava o acusado. E suas sentenças eram exatíssimas. Somente no fim da vida suas decisões tornaram-se absurdas e começaram a ser re~ for~adas. t que, com a velhice e o enfraquecimento da vista, ele já não distinguia a cor dos feijões e passou a expedir senten­ças manifestamente contrárias à prova dos autos.

_ Mas voltando a falar sério, a verdade é que muitos juízes, por falta de especialização, movimentam-se em seus pre­tórios como macacos em loja de louça. A cada penada quebram OS cristais da jurisprudência e praticam, sem saber, verdadeiras iniqüidades. Eu também, e note-se que passei a vida sobre livros, não saberia hoje decidir uma querela cível. Mas, não é só dessa deficiência facilmente remediável com a especialização dos juízes, qu~ dimamam OS erros judiciários. Eles resultam ta~bém da irresponsabilidade ou da inépcia dos advogados que de.l~am de produzir provas ou oferecer argumentos capazes de modificar a situação processual de seus defendidos, Outro fator poderoso, como já mencionei, é a fraude policial nos inquéritos, Há, ainda, o excesso de serviço, que conspira contra a exatidão das senten" ças. Convém notar também a influência do acaso na declaração da culpabilídade ou da inocência dos Imputados. Uma gama infinita de indrcios falazes pode determinar uma condenação in­justa. Finalmente, mereceria longo estudo a responsabílidade da imprensa em muitos erros judiciários. Numa época em que o homem renunciou a pensar, abdicando desse direito em favor dos órgãos publicitários, é fácil deduzir que a infeliz ví~i:na ~as campanhas jornalfstícas só por milagre escapará ã cruclflcaçao. Seus ju (zes, leigos ou togados, tenderão sempre a imitar Pli!at?~, lavando as mãos do sangue do justo e entregando-o aos cruclf!­cadores. Este é o único argumento que se pode razoavelmente opor à pena de morte, ou seja, a nossa incapacidade gera! ?e aplicá-Ia com acerto, nos casos em qu: seja realmente necessana: Disso deduzir-se, entretanto, a erroma da pena de morte em SI

mesma, é um contra-senso. ~ uma ingenuidade, uma parvoíce

136

cujo tributo quem paga são as vítimas incontáveis da reinci­dência criminosa. Marchamos, no entanto, a passos largos, para o dia em que a insegurança gera! nos obrigará a adotar a pena de morte, como solução inevitável para a falência das prisões e do problema criado pelas ondas crescentes de criminalidade que afogam o Pa is. A lei da saturação criminal, de Ferri, determina~ rá, como a guerra também determina, o emprego de meios ful­minantes para a eliminação dos inimigos públicos. Receio, entretanto, que a nossa hipocrisia nos faça proceder neste assun­to como já procedemos com o casamento. Não aceitamos ° di­vórcio porque é imoral, e por isto vivemos em concubinato. Não admitimos a pena de morte porque é desumana, e por isto deixaremos Que a polícia mate sem processo os criminosos e os inocentes.

Embora a secretária não houvesse parado de taquigrafar tudo que ouvia, Jorge Muniz passou a olhar em sua direção, oomo para sugerir-lhe que ficasse ainda mais atenta, e continuou:

"~ tempo, porém, àe voltarmos aos fatos que resulta­ram em minha prisão. Lembro-me que deles me desviei quando historiava o início da nova etapa de minha vida, após fixar-me aqui em São Paulo. Como eu não precisava de dinheiro, nem queria sobrecarregar-me de serviços e sim viver as emoções de êxitos espetaculares, escolhia as causas mais retumbantes e fui formando um rosário de triunfos que hoje qualquer estudante de Direito enumera por toda parte, em suas discussões sobre a advocacia criminal. Com muito menos esforço, sem lutas e sem inimízades declaradas, percorri em poucos meses, nesta cidade grande demais para cultivar vinganças de campanário, a carreira que em Pandora ninguém consegue fazer em menos de setecentos anos. Em nossa casa, não receb íamos ninguém. Nem mesmo clientes desesperados. O mordomo os enviava a um escritório que eu mantinha no centro, onde eram atendidos por colegas que se incumbiam da instrução criminal, encaminhando­me os processos somente na etapa das razões ou poucos dias antes do julgamento pelo júri.

UM inha mulher interessava-se por tudo que eu fazia e, para nossa satisfação rec(proca, não se afastava de mim a não

137

Page 71: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

sei pGr rninutos, rara Q 8dminhtraç:ao da C8;:~] cu executar psqusnos 3 de SlW, prsdilet,:3o. Corno eu gara àquele nfve! da ascenção lnlBlect;va que não ma]" permite o relacionamento social, porque no vértice da pirâmide só ha espa­ço para os eleitos da sabedoria, e estes nunca estão dispon senão para si mesmos, optei definitivamente peja vida solitária, dentro da qual como Schopenhauer, eu encontrava plena satis­fação para o meu esptrito, No campo intelectual a sociedade S€

afunila a tal ponto que entre os cientistas e o resto do mundo o diálogo- se torna impossível, Eínstein pedia 80S h'BUS doutos visitantes que continuassem estudando e voltassem a procun'!" lo vinte anos depois, quando estivessem em condições de com­preendê-Io.

"Entretanto, como aquela mulher era extremamente tranqülla, possuindo o raro senso de ouvir pacientemente, sem querer impor, em contraposição às minhas idéias, frutos de tanta pesquisa e vivência, ° arsenal de frases feitas, de concel­tuações enlatadas e estcreotlpagens allenantes, com que a tele­visão vai reduzindo a cretinos incurávels os membros de seu vastíssimo auditório, eu adorava a sua companhia. Guardava, no íntimo, a esperança de f8zê~!a minha dtscípula. Não em assuntos legais, que em nada aproveitariam ao nosso relaclona~ mento. Mas, em questões de sociologia, psicologia e psiquiatria, sem cujo domínio nenhum casal consegue escapar da vala co­mum dos ciúmes, da frustração e da futll1dade,

"A mulher, todavia, por sua debHidade física e mental, será sempre um eterno súcubo das normas de cultura que en~ contra em vigência. Não existe oratória capaz de convencê-Ia de que pode e deve: antec!par+se à evolução soda!, impugnando desde logo os falsos valores, para que à tuz de uma d!alética su­perior se processe o livre desenvolvimento de sua personaHdadc< Leve! anos estudando esse problema e hoje lamento admitir que a mulher assim procede de Indústria, acreditando poder beneficiar·se dos preconceitos, sem vislumbrar que sacrifica fi

si própria e que somente os estúpidos, nos dias que correm, acreditam na farsa da pureza feminina e em outras 'fabu!ações com que elas mesmas aureolam a sua conduta.

138

NMas, corno entre: os homens a estoiídez ê a regra e a argúcia um fenômeno I, Ó dTO que na malori8 dilS vezes as mulheres são bem sucedidas em suas reivtndicacões ab­surdas. O problema surge quando, por um desse::; raríssimos acasos, a mulher se vincula a um homem como eu. Então, ou çonqulsta uma reiathta paridade, reformando totalmente sua concettuação de valores, Ou reverte à sua condicão natural de mi;lm[fero de luxo, ficando relegada à fosforescência com que provoca, acicata ou sat!sfaz a bestialidade masculina, Não fora a lei blQióglca Que nos anImais superiores impede a reprodução entre espécies diversas, eu hoje não mais acreditaria que a mu­lher fosse a fêmea do homem. Não obstante, como a maioria dos homens está abaixo dos cãca em mUltas virtudes, o proble­ma 'fundamenta! da psicologia feminina, ou seja, a sua alarmante incoerência, continua para mim Insolúvel. A única expllcação, ainda que provisional, só pode ser encontrada na confusão que os preconceitos causam na mente das mulheres, sempre lnffuen­dáveis pela crassa ignorância em que o povo chafurda e pelas viciosas normas de cultura que a sociedade aplaude e obedece. Perdoe"me esta divagação filosófica, mas ela 'é indispensável ii compreensão do que posteriormente ocorreu comigo.

"Um dia, ao receber uma carta da Suécia. onde há tan· tos anos deixara sua filha com QS avós paternos, depois de um longo per{odo de internato em um daqueles colégios suiços de onde os jovens, ao menos, saem falando fluentemente o francês, o italiano e o alemão, minha mulher acercou·se de mim e per­guntou-me:

" .. - Você sabe porque mantenho minha filha longe de nós esse tempo todo?

"- Tenho estranhado. Nada lhe perguntei para que a ex­plk,.ação surgisse espontaneamente, Acho que você teme que eb venha a fazer indagações sobre a morte do paI.

"".- Não, Isso não me preocupa. A reaHdade é um tanto monstruosa e, por h"to, nunca me animei a dlscutí .. ia, Vou fazá .. lo finalmente porque se deixar para depois jamais o 'farei. O caso

139

Page 72: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

é que sempre olhei para essa menina como se olha para um ente espúrio, Casei~me com o pai dela porque você me abandonou e por injunçães de minha família que só pensava em minha situa­ção ecoflÔmica. A minha noite de núpcias não passou de um transe similar ao que atravessa uma virgem estuprada. Como essa criança foi o fruto daquele ou de outros intercursos imedia­tamente ulteriores, nunca pude vê-Ia sem profunda revolta de mim mesma. Embora tenha os meus traços fjsionômicos, não consigo estimá-la.

"- Esse sentimento é excepcional. Talvez ainda subsista porque você o manteve incubado por todo esse tempo. O corpo humano, para fins sexuais, é livremente negociável. Se o homem não se desonra por esse ato, nenhuma razão existe para que a mulher se sinta pela mesma coisa degradada. Além do mais, rar{ssimos são os casamentos que se convolam por amor. O filho, por seu turno, nenhuma culpa tem da forma pela qual foi gera~ do, e não deve responder pelos complexos de culpa, perseguição ou superioridade dos pais.

"- Sei tudo isso. Mas nunca lhe demonstrei antipatia, nem tive jamais a intenção de prejudicá-la. Apenas não lhe dedi­co afeição alguma e sinto-me melhor com a sua ausência.

"- Como foi criada?

"- Por uma governanta, desde que nasceu.

"- Aí está o motivo. Ninguém pode se afeiçoar a um filho criado pelos outros. Meu conselho é fazê-Ia regressar, en­quanto é tempo de recuperá-Ia.

GA_ Vou pensar nisso.

"Os anos, todavia, foram passando, e não mais discuti· mos sobre o assunto até que ela, certa manhã. me disse:

"- Quer acompanhar~me ao aeroporto? Eva deve chegar às onze. Já telefonei para a agência e não há atraso."

140

13

Ainda naquela noite, quando cheguei em casa, já duas pessoas ali me esperavam para que eu acompanhasse causas cri~ minais de seu interesse. Enquanto tomava minhas anotações, senti no íntimo o receio de que me perguntassem sobre o pre~ ço de meus serviços, porque não tendo qualquer noção prática a respeito, não saberia o que responder. Quando vieram as perguntas, usei pela primeira vez a fórmula que desde então passou a constituir um sistema invariável, ainda mesmo depois que agraciado pela fama, pude me dar ao luxo de dispensar certos clientes. Ela consistia em mostrar aos interessados que, dentro de nossa arte, tanto se pode fazer um serviço apressado, como executá-lo com todos os primores da técnica e da sabe­doria. Nessas condições, os clientes ficavam livres para escolher o tipo de assistência que podiam pagar, embora eu só executas­se qualquer serviço com o máximo de perfeição possível. Eles, entretanto, não sabiam que eu era um escravo de minha consciên~ eia e que amava tanto a minha profissão que, de qualquer forma, com dinheiro ou sem dinheiro, meus trabalhos eram sempre elaborados como se deles dependesse a salvação de um ente querido. Mas, quem está em risco e dispõe de recursos, dificil~ mente deixa de prestar ao advogado a colaboração devida, e se este segue o sistema que adotei, estará sempre em condições de requisitar mais um pouco, em momentos de apertura financeira. Aqueles dois primeiros clientes, obviamente trazidos a mim, como tantos outros, pelo caso Jorge Muniz, pagaram-me logo o que puderam e eu fiquei de diligenciar imediatamente em pro­veito de ambos.

141

Page 73: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Quando scabei de jantar, minha p",rgunto;,Ffne se eu eMava disposto 3 (sr insultos. Gomo eu preven-do la o que seria, ela colocou na mesa alguns jornajs, Neles estampavam-se, sob a forma de entrevistas supoi>1:3mente solíc1~ tactas pelos órgãos de imprensa, conceitos maliciosos em torno de minha Imaturidade e, sobrotudo, em relação ao que os mlst:i-, ficadores consideravam min.ha chocante falta de ética, Em todas elas, a carga contra Jorge Munlz era demolidora, Descrevlam-no como toxicómano, ébrio contumaz, rufião da mulher que assas" sinara, uma inteligência, em suma, devotada exclusivamente à malignidade, figura monMruosa de criminoso amora! e egocên­trico que desonrara a classe purltanfssima dos advogados,

Depois de ter tudo atentamente, olhei para minha mãe e pedi sua opinIão. Ela eSTava insegura. Ponderando que a matéria era nova para a sua experiência, disse-me não saber, ao certo, como aconselhar-me. Argumentou que a carreira de meu pai havia sido muito modesta, não ensejando incidentes daquela natureza, talvez por não funclonar no crime, onde l:l atuação do advogado sempre repercute na opinião pública. Não deixou de dizer, entretanto, que toda aquela calnçada mereda uma respos­ta à altura, mas achava que somente eu poderia tomar a decisão certeira. De minha parte, lembrei-me da advertênda de Jorge Muniz c, embora revo\tado, resolvi deixar que os cães ladrassem, enquanto interrompida não fosse a marcha da caravana,

Minha ment.e, até então tranqüi passara agora ii ser assediada por vários problemas. Ao caso do ano, que eu não sabia ao certo se me caíra do céu ou 0rflanara do inferno, estava disposto a contínuar dedicando-me de corpo e alma. Dois outros processos, também de alguma lmportân.cia, acabavam de me ser confiados. Os COncorrentes, como sapos sobre 85 brasas, irrita­dos com a .entrevista cte Jorge Muniz, cuspiam fogo contra ele e contra mim. Eu entn~ra numô panela de pressão e minha v1da turnu\tuara"se da noite para o dia. Por não ter experiência, julgava a carga insuportável e peosavB que se -seu impacto não fOSS8 aliviado eu n!1o 'teria contenção pBrB continuar lutando em silênclo. Desconhecendo minhas forças, procurava animar-me com a esperança de que, estando prestes (l atir;gir o máximo

142

volume, 8 onda montante de preocupações e ultrajes logo se desfaria, A verdade, no entanto, somente hoje me parece óbvia. Aquilo não era o fim, Não era, sequer, o começO do fim" Era, quando muito, como dlria Churchilt o fim do começo.

Quem primeiro sofreu as conseqüências daquela minha exaltação foi a pobre secretária que, aparecendo em casa naque­le lngrato momento, teve a infelicidade de insinuar questões pessoais enquanto eu raciocinava. Irritado com a impropriedade de suas invocações que, nas circunstâncias, equlvaHam ao maiS: completo disparate, sugerf-!he brutalmente, como Ham!et a OféHa, que ingressasse num convento, para não vir a ser mãe de pecadores.

t: claro que posteriormente, quando a tempestade paSo­sou e eu fiquei apenas com os casos de rotina, procurei des­culpar-me daquela grosseria, conseguindo que ela me perdoasse, mas nunca, certamente, que esquecesse a humilhação. Tal jnci~ dente, não obstante, foi para nós de inestimável prodigaildade, porque fez abortar relações cujos perigos eram notórios, face à índole possessiva que aquela moça revelava em tudo que me dizia respeito.

Estou certo de que hoje, quando o romantismo já desa­pareceu até mesmo da literatura, quando o deboche passou a ser a obsessão da juventude programada pelos meios de comunk:a· ção, ela Btnda mais facilmente confirmaria o que acabo de dizer, Ao invés de atrelar-se a mim, tomando-se mais uma vHlma da neurose de cultura, ela casou-se com um comerciante a quem só veio a amar depOIS, moderadamente, em razão dos filhos e da convivência, corno nossos avós aconselhavam, na época em que aos pais cabia o direito de ajustarem entre si o casamento dos fl!hos,

Minha mãe, que fora a responsável pela nossa aproxima­ção, acredltando que o melhor para mim seria uma jovem culta que me ajudasse em meuS trabalhos, agora concorda 00·

migo e com as venturosas experiências pessoais de Goethe e Rousseau, sobre o mais evidente dos axiomas conjugals, Sabe

143

Page 74: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

agora que a mulher do filósofo, do sábio ou do escritor, tem de ser necessariamente simplória e ignorante para não se imiscuir no Que seu marido pensa ou realiza. NÉio deve, além disso, sen­tir paixão ,alguma por ele e sim apenas estimá-lo, a fim de não o atormentar com ciúme dos livros ou com protestos pela perma­nente ausênc1a mental em que ele viverá, a despeito de residir com ela na mesma casa.

Embora eu fosse ainda bastante imaturo para as coisas da vida, conhecia já teoricamente, em razão de meus estudos e da própria tragédia que Jorge Muniz estava narrando, os perigos incoerc(vels do passionalismo que, nas lições de Platão, Sêneca e outros, deve ser, como os invasores, repelido desde a fronteira, porque se vier a apossar-se da cidadela, não obedecerá certamen­te ao comando de seu prisioneiro.

Não tenho dúvida, portanto, de que fiz àquela moça um grande benefício, destruindo~lhe ilusões malfadadas, enquanto era curável a sua enfermidade. E como isto foi o que realmente aconteceu, espero que o leitor me perdôe a franqueza com que elimino, desde já, qualquer expectativa em torno desses eventos laterais que' estavam se intrometendo no caso principal e verda­deiro, que me traria ainda muitas surpresas e ao qual preciso, sem maIs delongas, retornar imediatamente.

Antes de fazê-lo, devo porém acrescentar que para' cú­mulo daquela inquietude, hoje para mim tão rid(cula, pois não passava de UlTl8 simples vaga no oceano de obrigações em que logo se afogou a minha existência, ouvi o rumor de um carro que parava subitamente à minha porta, Era o pai de um estu­dante, em estado de intensa afobação porque o filho, vítima de entorpecentes, ou melhor, da filosofia a que há pouco me referi difundida pelo lixo cultural importado que já subverteu os nos~ sos costumes, acabara de matar estupidamente a namorada e ia ser interrogado na pai ícia.

. Como minha mãe já estava dormindo e pressenti que eu tena de passar a noite em claro, deixei em loca! bem visfve! um bilhete pedindo-lhe que no dia seguinte acompanhasse a secre-

144

tária ao presídio, a fim de colher a narrativa. Bati levemente o trinco da porta para que minha mãe não acordasse, e ingressei com o homem no seu automóvel.

Quando voltei, já à nOite do outro dia, soube que Jorge Muniz completara as suas memórias cujo texto estava sendo tra­duzido e me seria entregue ao amanhecer. Adormeci exausto pe­los depoimentos do Inquérito, pela fiscalização do laudo de exame de corpo de delito a cuja feitura assisti no necrotério, pelas insistentes perguntas dos familiares do acusado, e tudo mais que, num vórtice, me arrastou durante todo o tempo em que permanecera fora de casa,

Ao acordar, já encontrei sobre a mesa, em folhas datilo­grafadas, o que fora anotado no dia anterior. Era o epílogo da tragédia, e começava assim:

"Era grande o número de passageiros, mas como o de­sembarque dependia de passaporte, não havia possibilidade algu­ma de desencontro. Ficamos sentados nas proximidades do por­tão, aguardando que Eva chegasse e nos fosse encaminhada por um cicerone da agência. Eu estava ali apenas fazendo companhia a minha mulher, completamente desinteressado do movimento, fendosem entusiasmo qualquer coisa sobre a rixa de lagartos, a empulhação recíproca, o estelionato multitudinário que sempre fo i a pol ítlca nacional, quando senti que tudo paralisava dentro de mim. Se o jornal não me caiu das mãos, deixando-me em situação embaraçosa, devo-o certamente aO fato de meus nervos, já àquela altura, comandarem os músculos com extrema morosi­dade. O motivo daquela intensa perturbação era que minha mulher ali estava ã minha frente, rejuvenescida de vinte anos, na pessoa de sua f1Iha que me cumprimentava com aquele mesmo sorriso, aqueles cabelos louros, aquela modelação venusta, esbel­ta e elástica, uma reprodução, em suma, tão perfeita da noiva que eu perdera, que dela só divergia pelo português hesitante que falava,

"Quando já estávamos no automóvel, eu ao lado de nos­SO chofer e elas no banco traseiro, sua mãe lhe disse:

145

Page 75: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

" Com ele, você pode fa!ar em qualquer idioma, e se quiser, ele ~he de$ué'wrá Gotemburgo ou outra cidade irnpor­tante da Europa, embora somente tenha estado na Grécia e na ltáHa, e assim mesmo, durante a última guerra.

"Ela começou a fazer-me perguntas em frances que eu, gracejando, respond[a em alemão e italiano, Depois, passei a Interrogá-Ia em inglês e ela mostrando ilgeira dificuldade em eiltender, respondia, não obstante, em um jtaHano music-..al que mais parecia uma recitação poética oU o gorjear de um pássaro.

"Ao entrarmos em casa, ela aparentemente já esquecera a própria mãec Oueria saber tudo a meu respeito e não deu a mínima atenção ao mordomo e às criadas que lhe foram apre· sentados. Depois do almoço, manifestou o desejo de que a acompanhássemos de automôve! em um giro pela cidade. Como eu me desculpasse, pretextando a elaboraç3o de um trabalho urgente, ela logo mudou de idéia, oferecendo-se para ajudar-me. De vez cm quando beijava e afagava a mãe, mas notaV8>se que toda sua atenção estava concentrada em mim, Consegui, depoís de algum tempo, uma oportunidade para afastar-me e encerrel~ me na biblioteca.

"Nao sei o que elas fizeram durante aquela tarde. O que seI é que, já à noite, o semblante de minha mulher, geralmente tão doce e tranquilo, estava carregado de nuvens procelosas. Compreendi, em um relance, que não irfamos ter paz daquela hora em diante, a não ser que a!gum milagre ocorresse. Quando eu e ela subimos para o dormitóriO, inquiriu-me depois de fe" chada a porta;

voltará.

146

"- Que lhe pareceu a Eva?

"- t o seu retrato .. ,

,,_ Mais jovem, mais bonita e mais culta, Não é?

"~ Porque esses detalhes e tanta ênfase na enumeração?

,,_ Porque ela não pode ficar aqui. MBS já disse que não

i',~ Porque deveria voltar?

",,- Porque vai apaixonar~se por você, Seria impossível que isso não ocorresse.

,,~. E eu? Porventura nada significo? Não terei, acaso, condições de resistir-lhe?

"- Que importa? Eu ficaria, de qualquer forma, em segundo piano. E isso eu não aceitarei nunca.

"- Decida o assunto como QUIser. Embora me pareça absur~a a hipótese de rlvalldade amorosa entre mãe e filha, estare!, em qualquer circunstância, Inteiramente do seu lado.

"Foi naquela noite que ela começou a envenenar-se com psicotrópicos, Dentro de uma semana já não conseguia dormir com menos de duas drágeas do hIpnótico mais poderoso, Eva não tinha conhecimento do que se passava, Talvez por isto, não saía da blblioteca. Permanecia quase todo o tempo ao meu lado, fazendo-me perguntas, tendo meus trabalhos e, todas as vezes em que eu funcionava no júri, !á estava ela numa das primeiras poltronas, olhando-me como se eu fora uma divindade. Uma vez, ao regressarmos de uma dessas sessões, Eva ao despedir·se de mim para recolher-se aos seus aposentos não se conteve e beijou-me nos lábios com estranho calor, na presença de sua mãe que empalideceu como um cadáver.

"Até então, eu sinceramente não admitia a possibilidade de deixar-me empolgar por ela, apesar de seu extraordinário fas· dolo. Estava plenamente satisfeito com a mulher que possuía e que se achava jungida a mim por um mito amoroso de vinte anos, pela ansiedade em que vivera até o nosso casamento, pela dor e pelo crime. Mas, foi ela mesmo, a mInha mulher, com sua tremenda senslbiHdade, que entre nós cavou o abismo. Subita­mente, como se mil demônios houvessem invadido seu corpo, ela, cuja ternura sempre a subllmara, passou a injuriar-me sem causa e sem !imlte> Como, certa felta, Eva estranhasse sua agres­sIvidade para comigo e arriscasse algumas palavras em minha de­fesa, ela, tresloucada, a esbo·feteou na mínha presença, gritan~ do-lhe:

147

Page 76: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

",- Não defenda assassino!

"A s{l9u!r, fincou as unhas nos próprios lábios, como pa­ra vedar a confissão terrível, e partiu como uma louca para o dormitório, Quando ali chegamos, ela estava na cama, deitada de bruços, com a cabeça enterrada no travesseiro, chorando quase imperceptivelmente.

"- Deixa que eu a medique?

lJ_ Pode matar-me! Para mim já não tem importâncía,

"Preparei uma injeção com um sonífero capaz de mante-la inconsciente por toda a noite e peguei com facilidade a veia azulada. Antes de passar-lhe todo o líquido ela já dormia pro­fundamente. Com algodão embebido em água, lavei o sangue que se coagulara nos lábios cortados pelas unhas. Acomodei sobre ela o cobertor de lã, deixei aceso apenas o quebra-luz e desci com Eva para o salão. Mal nos sentamos, frente a frente, ela perguntou-me:

"- Que se passa com minha mãe?

"A resposta só poderia consistir em outra pergunta que lancei com os olhos apresando os dela:

"- Ainda não entendeu?

"- Talvez. Mas, é tão absurdo o que ela imagina .. ,

"- Também já pensei assim. Agora dou-lhe razão. A imagem não é absurda. É uma realidade que nós também Já não podemos negar,

"- Sim, mas sempre no sentido espiritual. Nada fizemos ou faremos de censurável, O que eu sinto por você talvez seja apenas admiração e não coloca em perigo a situação dela. Enquanto ela viver, estaremos apenas irmanados. E!a devia con­fiar maisem nós, sobretudo em você a quem ama verdadeiramen­te, há tanto tempo.

148

.' - Você não a conhece. Sem que desejássemos, incons­cientemente, nós já a destru(mos. O amor que ela tem por mim é anterior ao seu nascimento, nunca arrefeceu e não suporta o mais leve desprestígio. Ela não se preocupa que eu varie carnal­mente de mulheres, como se muda de roupa, o que, aliás, não acontece. O que a esmaga é ver você, reprodução fide! íssima do que ela era em sua juventude, apagá-Ia assim, violentamente, de minha lembrança. Por isto, apenas isto, entrega-se ao desespero. Ainda ontem, disse-me que você era s~u pai, redivivo, a vingar-se dela ...

"- Vingar-se de que?

"- Certamente do desamor que ela !he votava. - reparei a tempo.

"- Acha, então, que mesmo se eu voltasse para a Euro­pa, o caso não teria remédio?

"- Acho, Mesmo se você me repelisse abertamente, casasse ou morresse, também não adiantaria. Você já a destro­nou, e isto, é o que a ela importa, Não aproveita alegarmos que nossa vinculação é meramente subjetiva ou platónica, porque é exatamente neSsas questões de espírito que mais sofremos quando somos preteridos.

"- Que me aconselha, então?

"- Permanecer o mínimo possível em casa. Se não sabe dirigir automóvel, aprenda, Faça amizades e divirta-se. Sua edu­cação européia a acobertará de perigos. A propósito, o golpe de morte que você lhe desfechou foi aquele beijo exagerado em sua presença.

"- Mas, isso é tão comum na Suécia, até mesmo entre pessoas estranhas, nos dias de festa j

"- Lá também é comum o beijo entre os homens. "Kulturnormen", você sabe. Não me consta, porém, que mesmo na Suécia as moças cumprimentem os estranhos sugando-lhes passionalmente os lábios.

149

Page 77: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"No outro dia, quando eu já estava na bibHoteca, minha mulher ali entrou de fisionomia carregada, mas esforçando-se visivelmente por ser cordial a ponto de entabular comigo uma co<nversa de poucc:s minutos em que me pedia desculpas pela cme nervosa da nOite anterior. Tomei-lhe as mãos carinhosamen~ te e disse,lhe:

"-- Telefone ou vã, ainda hoje, ao Dr, Pau10 e peça-lhe alguma (.'olsa que substitua os narcóticos que você vem tomando. Depois que não mais precisar dessas drogas, faremos uma longa viagem e tudo passará,

"Ela esteve por casa o dIa todo. Não quis sair de forma alguma efuieu quem telefonou ao DL Paulo, que logo apareceu discutiu comigo o tratamento mais aconselhável, recomendand~ desintoxicantes, psicotrópicos mais brandos e, depoIs de s.3ber que eu aplicava com facilidade lnjeções endovenosas, receitou um sedatlvo de ação rápida e duradoura, para os eventuais mo· mentos em que fosse necessarto o controle enérgico do estado emocional da paciente,

"Eva passou a adotar o sistema de vida que eu !he acon­selhara. Quanto a mim, não podendo mais suportar as crises de pranto e a desintegração menta! que inut!1izara minha mulher logo depois do crepúsculo partia para Santos, onde pemoítav~ na nossa casa de veraneio,

150

14

"Para aquela casa eu mandara transportar algumas de­zenas de livros e revistas, dos quais pretendIa extrair dados comptetos sobre os maís famosos erros judiciários, a fim de ela­borar um tratado capaz. de substituir durante algum tempo a !1teratura dispersa que existe sobre o assunto, Era meu propó­sito fugir por essa vereda €i guerra psicológica declarada p,.'1f

minha mulher, e simultaneamente, executando trabalho suave, quase jornalístico, ocupar meu espírito com pensamentos onde a ruína de minha vida conjuga! não tivesse a m{nima parti­cipação.

"Disse a minha mulher que para iniciar esse trabalho eu necessitava de uma semana de isolamento total naquela casa e, numa sexta-feira, instalel·me alt começando Imediatamente a redigir o Hvro. Estimu~ado pelo silêncio e inspirado pelos 'fluidos da solidão, consegui, em poucas horas, ultimar o prólogo e traçar os lineamentos básicos da obra, trabalhando com ânimo e persistência, porque vencida aqueia etapa de difícil criação teórica, o resto seda mais agradável, restringindo,se pratrcameo" te à simples n~petjção de fatos históricos.

"Na manhã seguinte, todavia, por volta das onze horas, além de abafada pelo intenso calor que ja me forçara a tirar a camisa, a casa fol assaltada por uma dessas histerias sonantes a que se convencionou chamar de música moderna. Irritado com aque!a comichão acústica, vinda das janelas de fundos da blblio" teca, que abrlam sobre a piscina, fui até uma delas disposto B

dar um estri!o em regra, € VI, flutuando sobre as águas dntilantes,

151

Page 78: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

uma ninfa completamente nua. Embora caro em demasia pa~a o preço que ao fina! me custou, a~:Jele foi, admito, um dos mais belos espetáculos que meuS olhos ja contemplaram.

"Não era apenas a perfeição das formas juvenis, ostensi­vamente exibidas à luz do sol, nem a harmonia dos movimentos natatórlos, que comunicava àquela visão mlto:~gjca um realís" mo impossível de enxergar-se nos modelos estatlcOS que as m.e­!hores obras pictóricas ou estatuárias conseguem repro~uZ!r. Era sobretudo a impecável simptlcidade com que ela se Irma­nav~ à naturez~, o ressurgir da inocência que a c~vjlização des­truiu, ressusc"ltada assim, apenas pelo corpo, o rlSO e o gest.o, sem outros aparatos ou recursos, nem mesmo a verdadeira música ou as estrofes de Milton em seu paraíso perdido_

"Quando me viu na janela, fez acenos com uma das mãos e uns cinco minutos após, a água escorrendo da pele rósea: subiu à borda da piscina, desligou o rádio portátil, apa~hou a toalha que estava sobre uma cadeira, e sem.com ela cobnr-se, encaminhou-se lentamente para um dos banheirOS.

"Essa piscina, não muito grande, circundada de muros, era fechada por um portão de ferro, mas não tinha. cobertura, Embora não fosse vista das casas vizinhas, era dominada pelas janelas da biblioteca, porque ocupava parte da área lateral do terreno murado em que a casa fora constru ida_

"Quando, posteriormente, trajando uma sala curtíssima e uma blusa de seda diMana onde tremulavam desenvoltos os seios eretos de rosto sem pintura, o corpo cheirando a ela e a sabonete, e' com um sorriso infantil, Eva apareceu à porta da biblioteca, não pude conter-me:

,,_ Como você é bela! Nietzsche tinha razão quando disse que a moral vigente vai contra a vida em todos os sentidos. A que devo a visita?

"Como se quisesse compensar todos os ~eijos que não me dera desde o dia em que sua mãe a agredira, ou apenas

152

vingar-se da proibição, ela atirou-se em meus braços e, beijem­do-me na boca com mais intensidade do que antes fizera, respon­deu-me:

"Ã Nietzsche! Nem mesmo você suporta mai50 ambien­te de nossa casa, Vim distrair-me e, se possível, distraí-lo tam­bém_ Feche esses livros, Vamos dar um passeio, almoçar fora, fazer alguma coisa diferente, estourar preconceitos, sair da gaiola, ser humanos, ao menos por um dia!

"Embora aturdido pelo calor, pela maciez e pelo cheiro de seu corpo, perguntei-lhe, logo que ela me largou:

UE sua mãe? Ela sabe que você veio?

"Ao invés de responder, ela fitou-me em desafio e per-guntou:

" Não lhe parece humilhante que um homem de seu talento não disponha de si próprio? Que faça as mesmas pergun­tas que se esperaria de um ignorante? Que defenda culpados e, não tendo culpa, viva a esconder-se?

"Evidentemente, ela não era de nossa galáxia_ Educada longe da mãe, em país de costumes diferentes, nem mesmo per­cebia a situação difícil em que me colocava_ Lembrei-me de que na Suécia já se cuidava de legalizar o -'€ssamento entre Irmãos, já se falava em matrimônio grupal, e de que ati, como também na Dinamarca, eram comuns os campos de nudismo, enquanto que o adultério não tinha para os escandinavos a trágica signifi­cação que os árabes e os latinos lhe atribuem.

"Mas, como não estávamos na Suécia, eu era obrigada a considerar as implicações daquela visita e as prováveis reaçôes de minha mulher, se eta chegasse repentinamente e me encon­trasse a sós com minha enteada. Parecia-me, até então, absolu tamente injustificável a tirania que ela vinha exercendo, sobre­tudo porque jamais passara pela minha cabeça a idéia de possuir clandestinamente a sua filha. Eu sabia as tremendas conseqüên-

153

Page 79: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

elas que ine!utaveknente adviriam de uma vinculação carnal t ,.)'

com Eva, exceto se a pudesse manter so) meu exc\us!VO oornl-rdo, o que, nas circunstâncias, 1::.1.0 ê, enquanto entre nós existis­se a minha mulher, não seda viável.

"Esta premonição, pensava eu naquela hora, era uma garantia suficiente de minha fidelidade, sendo, portanto, insul­tuosa a vigilância, ou melhor, a perseguição a que minha mulher se dedicava no particular, atormentando a todos e arruinando a sua própria saúde, Decidi, pois, rgnorar a ameaça de sua aparição repentina e conduzir·me como dono da casa, nela recebendo quem me agradasse e nela procedendo como entendesse. E corno também era de meu drreito sair com quem quisesse, passei por cima da crítica de minha enteada, dizendo-lhe:

"- E Inútil discutirmos esse assunto, Estou às suas or­dens. Peço-lhe, apenas, que se cubra um pouco mais, pois deve­mos ir a lugares muito freqUentados,

"Ela desceu as escadas, fOI até ao carro esporte que eu ~he comprara há poucos dias, voltando com uma bolsa de viagem e entrando na alcova que, de todos os quartos daquele andar, era o único que estava com a porta aberta, Quando reapa" receu cobria-se com outro vestido, menos transparente pela adiçã~ de peças íntimas, e os seios já não saltitavam quando ela novamente se aproximou de mim,

",~ Vim também dlzer-!he que nq próxima semana esta­rei de volta a Gotemburgo. Recebi um u!tlmato e não estou preparada para a guerra, Por isso, não pude dispensar o sol e a piscina, mesmo sem ter trazido roupa de banho, Hoje, na Sué~ da, deve estar fazendo um frio insuportável.

"Nada respondi. Arrumei os Uvros nas estantes e fechei numa gaveta os rascunhos que já havia preparado, Entrei no quarto, vesti uma roupa própria para sair e, quando voltei, tomej'3 pelo braço, descendo com ela até o automóvel em cuja poltrona de dlreção me senteL Depois de mostrar-lhe as melhores vIstas de Santos, rumamos para Guarujá. Ali, ao longo

154

daquelas praias ddentGs de luz, eu conduzia {) automóvel em marcha !entEl, enquanto ela fazia comp-amções com as paisagens nórdicas, que achava mais bonitas, sugedndo que eu fosse ver as noites enso!aradas da Lapõniô< Lembrei-lhe que antas de fazer comparações ela deveria ver o Rio, onde a natureza concentrara o que de mais belo existe em nossa terra, Depois, fomos a um restaurante com vlsta para o mar.

"Enquanto almoçávamos, tive a perturbadora impressão de que pela rua em frente passara o Mercedes que ficava à dispo­sição de minha mulher, mas não pude ver quem o dirigia nem se transportava outras pessoas, Tentei afastar, todavia, aquela impressão, argumentando intimamente que ela seria fruto exc!u~ sivo do estado de insegurança em que eu me achava. Mas, daque­le momento em diante, minha jovialidade decresceu a ponto de Eva perguntar·me se eu não estava gostando do almoço. Disse· ~he que esquecera de trazer dinheiro ou cartões de crédito e que não tendo antes estado naquele restaurante, achava melhor que ela ficasse ali, terminando o almoço, enquanto eu iria até em casa buscar a carteira. Ao levantar-me, porém, aproximou-se o garçofi solfcito, perguntando<me se estava faltando atguma coísa. Corno Eva, brincando, lhe dissesse que faltava ° princi· ;Ja!, isto é, o dinheiro para pagar a conta, e que eu ia busoHo, efe apreS$Ou~se em dizer que me conhecia de fama, que já vira muttas vezes meu nome e fotos nos jornais, que seu filho era estudante de Direito e muito me admirava, e que não havia razão alguma para que eu interrompesse o almoço, Poderia voltar mais tarde ou mandar alguém trazer depois o dinheiro, Respondi-lhe que estava preocupado com a possibilidade de haver perdido a carteira, hipótese em que precisaria tomar provldêndas urgentes para o cancelamento dos cartões, caso os mesmos não fossem encontrados em minha residêncla, Não poderia dizer-lhe, nem a Eva, que o meu temor, na realidade, era de que ocorresse uma tragéd!â, talvez ainda evitave! se eu conseguisse trocar algumas palavras oportunas com minha mulher. A custo, consegui sair do restaurante e entrar no carro. Fui direto para casa,

155

Page 80: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Mal cheguei, soube por uma das empregadas que minha mulher tlnha me procurado. Perguntei-lhe se ela havia subido. Sim. Estivera na biblioteca, na alcova, perguntara se eu tinha hóspedes, quem eram, e porque a piscina estava cheia.

"A situação, portanto, para ela, definira-se de forma indubitável. Os indícios, somados ao meu aparente pretexto de isolamento, ooalizavam-se contra mim de forma demoníaca, autorizando qualquer ilação pejorativa em torno de minha con­duta. Ela vira, certamente, no quarto, jogadas sobre a sua pró­pria cama, onde tantas vezes jungira seu corpo ao meu, as minhas roupas íntimas atiradas ao lado e por cima das roupas de sua filha, induzindo a crença de que nós, sem dúvida, tería· mos ali, no sacrário de suas recordações amorosas, feito também, como d iria Shakespeare, o animal de dois costados.

"Era, pois, grave, gravíssimo, o estado mental em que ela deveria encontrar-se e, por isto, precipitej~me pelas ruas de Santos, buscando localizá-la. Frustrado, porém, nesse propósito, voltei ao restaurante onde contei a Eva o que havia ocorrido, fazendo-o, todavia, com aparente tranqüilidade e pedindo-lhe que sugerisse alguma coisa. Ela achava ou dizia achar que tudo se acomodaria, Que o tempo traria a verdade e que esse tempo seria ainda mais curto se ela seguisse logo para a Europa. Com­binamos, então, voltar imediatamente a São Paulo e aqui pro­ceder de acordo com as circunstâncias.

'Voltamos. Minha mulher já estava em casa e recebeu­nos com a mais absoluta frieza. Quando lhe disse que Eva fora se despedir de mim porque desejava regressar à Suêcia o mais rápido possível, e!a balbuciou apenas que havia mudado de idéia, achando agora que a viagem era desnecessária. Censu­rou-se por estar angustiando a minha vida e impedindo a filha de expandir a sua personalidade. Tudo, pois, parecia catmo, muito calmo, calmo demais como os instantes que precedem o assalto final às trincheiras inimigas. Senti imediatamente que uma sentença de morte já havia sido lavrada. Não fora minha indiferença ao perigo, tantas vezes procurado em Panda" ra, e certamente eu não ficaria naquela casa um minuto sequer <

156

Eram fortes demais as potências malignas em confronto, para que daquela casa, dentro de poucos dia$, não saísse ao menos um cadáver. A aparente submissão de minha mulher, com a sua calma de presságio, era infinitamente mais ameaçadora do que qualquer trovejar de recriminações. A única dúvida que poderia subsistir era quanto à vítima escolhida, sendo, pois, prudente admitir que tanto eu quanto Eva estávamos na mira de sua de­terminação sinistra. Por seu turno, desde o momento em que se tornou impossível a obtenção de uma paz honrosa, porque humilhante também eu não aceitaria, a vida de minha mulher passou a correr tanto risco quanto a nossa.

"Hoje percebo que se eu me empenhasse em solucionar pacificamente o problema, talvez o pior não houvesse ocorrido. Mas, a verdade é que os fatos, como um furacão psicológico, de tal modo se precipitaram sobre mim, que eu já não raciocinava. Tudo o que eu então conseguia ver eram as formas de Eva flutuando nas águas brilhantes da piscina. O culto à ternura que, preponderando sobre o sexo em minhas relações com a mãe dela, possibilitava um doce equilíbrio em minha vida conjugal, em na­da interferia, nada comedia, nada aplacava nas ideações lascivas das quais Eva era agora o objeto único, imutável, obsessivo, alu­cinatório, Impossível fugir ao escravizante apelo, Por toda parte e a qualquer hora, dormindo ou acordado, de olhos fechados ou abertos, eu via apenas aqueles seios rígidos, soltos e atrevidos, a compassarem como pêndulos os movimentos de seu corpo, as coxas velud íneas a acenarem com lúbricos enlaces, as ancas carnudas e harmõnicas, o ventre delgado de nulípara, e, supre­mo domínio da libido, até mesmo os pelos louros e sedosos a cobrirem o reduto mais íntimo de sua feminilidade!

"O homem dos livros, metódico, pesquisador, sucumbi, ra irremissivelmente à paixão pela carne, pelo calor e pelo cheiro da fêmea. A besta fera insurgiu-se em mim e já não podia mais ser jugulada. Tudo, daquela hora em diante, teria de ser feito apenas para a satisfação do instinto. E como este é cego e não se interessa pelo que vem depois de saciado, tudo seria feito impetuosamente, inclusive o c(lme, que dessa vez não seria per­feito, porque eu não tinha mais cabeça para preocupar·me com O rastro das provas ou com as conseqüências de sua apuração.

157

Page 81: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

"Por mals que eu invoC3sse o rneu passado de lutas, de abstinência ou de renúnCia, e o meu superego chamasse o resto à razão, o fato é que Eva não sa(B de meu pensamento e quando eu a comparava com o destroço Hsico e anímico a que minha mulher se reduzira, não tinha condiç-ões sequer de aproxímar-me desta. Para minha esposa eu estava vlrtua!mente castrado, Não podia, nem ao menos, encenar uma reaproximação, porque tudo em mim trairia a ausência daquela efusão amorosa qUe, nos dias Imediatamente anteriores ao evento de Santos, ela reclama­va de ofhos súplicas, não porque carecesse do amp!exo no senti­do cama!, maS porque ansiava sofregamente pela revivescência de meus sentimentos transatos. Eu não podia, ainda que ela continuasse admitindo, tentar sequer esse expediente pacifica­dor. Tudo nela me inspirava morbosidade e, flna!mente, com­preendi que só me restava uma única solução para o problema,

"Uma noite, aquela de que fala a denúncia, ao invés do hipnótico receitado, injetei-!he o conteúdo da ampola venenosa, libertando-a de seus sofrimentos morais e na esperança de reju, venescer como Fausto, tendo a mente cheia da imagem risonha de sua ff!ha, mas esquecIdo, suprema incúria, das chamas do inferno com que Meflstófe!es sarcasticamente me aguardava."

158

15

Quando acabei de ler aquela confissão suicida que, quen' to à ação mortífera, confirmava em seus mínimos detalhes a narração da denúncia, chamei minha mãe que andava pela cozinha e perguntelw!he:

- Mandou ele instruções espedals?

-~ Não, Pergunte! se você deveria aparecer por lá, mas ele não mostrou nenhum interesse. Semelha*se, realmente, a um ca­dáver, com a faculdade de narrar como se ninguém estivesse ao seu lado, As últimas frases que ditou, já o fez sob o efeito de hipnóticos e creio não ter percebido quando nos retiramos da cela, Porém, tenho certeza absoluta de que nada mais tem a acrescentar, porque embora narcotizado ele disse claramente à secretária que o serviço estava findo,

Fiquei a pensar, Legttima defesa? Se fosse possíve! provar o risco iminente de uma agressão letal por parte da ví­tima, como ele insinuou, a tese seria sustentável. O agente não precisa aguardar o ataque para exercer o dlreito de defesa, porque a ef!C'J'Ícia desta ficaria comprometida pela demora. O direito à k:.gftima defesa nasce do perigo e não do ataque. Do contrário a lei não admitiria, como admite, a defesa ~egftlma contra a agressão iminente. por outro lado, o argumento de que ele pudesse, talvez, evitar o perigo afastando-se de casa, não resistiria a uma contestação jurídica, porque ninguém está obrigado a fugir de quem srneaça a Sua existência, Também o fato de ter sida o acusado quem, imprudentemente, provocou

159

Page 82: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

o perigo, não o expulsaría do âmbito de proteção do instituto. A legítima defesa pode também ser exercida pelo provocador, desde quando a provocação não tenha sido um mero pr~texto para repelir com a morte o revide natural do provocado, Além disso, para o reconhecimento da legítima defesa, nenhuma rele­váncia juríd1c.a tem o móvel do agente que se defende, Mesmo matando por vingança, ou por qualquer motivo torpe como o ódio, a cobiça, ou a luxúria como teria ocorrido com meu cons­tituinte, não deixa o agente de estar em legítima defesa se, no momento em que mata, sua vida ou a de outrem corre risco rminente de ser eliminada por ato injusto da vítima. A despeito, pois, da extrema covardia e impiedade de seu ato, não seria des­cabida a alegação de legítima defesa, se existissem provas de que o acusado apenas se antecipou, matando aquela que estava prestes a assassiná"lo, Mesmo assim tal tese só seria COmpreen­dída por um colégio de juristas e nunca pelo Tribuna! do Júri. O sentimentalismo brasileiro, dominante entre os jurados, ja­mais a aceitaria porque ao leigo parece artificiosa, esotérica, mendaz ou cabal fstica a distinção que a ciência faz entre causas objetivas de exclusão de crime e causas subjetivas de isenção de pena. Se a intenção do agente, como no caso de meu patro­cinado, era matar a esposa para possuir livremente a enteada, não há, para o júri, outro caminho além do da condenação, por­que a este só interessa o lado moral das questões, Se, por exem­plo, alguém estiver ameaçado de morte iminente, por parte de um indivíduo de alta periculosidade, será certamente absolvido se o matar por medo ou outro sentimento justificável. Entretan­to, se impelido por esses mesmos sentimentos e achando-se na mesma situação do exemplo anterior, usar um sicário para que este conjure o perigo matando o agressor em potencial, tanto ele quanto o executor serão fatalmente condenados, o man­dante porque seria um covarde, e o executor porque o seu móvel não era o de defender alguém e sim o de receber a paga. Dessa forma é que funciona o júri, imolando a reaHdade objetiva em holocausto ao subjetlvlsmo dos imputados, porque atuando como intérprete das normas de cultura e não como oráculo da ciência, sua missão é solucionar, sob os pontos de vista moral e político, as causas que lhe são submetidas. Conseqüentemente, embora sedutora a tese em questão, eu não teria coragem de

160

arriscá-Ia sem pt-ova alguma do que acidentalmente alegara o acusado e, sobretudo, sabendo de antemão a maneira pela qual o júri a receberia.

Mas se pela legítima defesa não se chegaria à absolvição, como pode;ia o problema então ser resolvido? Fiquei a pensar. Eutanásia, boa morte, ocisão piedosa? Impossível! NIn.guém aceitaria esta tese. Onde o relevante valor moral ou SOCial do ato? A vitima não sofria de nenhum mal físico, incurável e doloroso, que houvesse sido oportunamente comprovado, O mais que se podia fazer era o que eu pensara desde o mlClO.

Eliminar o motivo torpe, indicado na denúncia como sendo a cobiça, porque este realmente não existia. Ele era casado pela comunhão de bens. Não havia testamento em seu favor e, por­tanto, ele nada herdaria porque já era meeiro em razão do ma­trimónio. Entretanto, ainda assim, o homicídio continuava qua­lificado pelo emprego do venenO. A paixão pela en::ada~ em?~­ra pudesse importar, em tese, numa tremenda coaçao ~s!C?fog!w ca não podia ser argüida porque então tudo se complicaria, fa­ze~do renascer o motivo torpe, já agora representadO pel~ I~­xúria, em face desse amor pecaminoso. A agravant~ do oonju9.t­cfdio ninguém podia destruir, porque resultava da Simples certi­dão de casamento. Atenuantes não. existia_m, emb?ra houvesse em seu favor a condição de primáriO, e, atnda aSSim, porque a justiça tem os olhos vendados.

Tudo ísso. todavia, era um tanto prepóstero. Ele, que tão bem instruíra a execução do duplo homicídio e dos outros cri­mes que narrara, porque não havia aplicado uma ~e suas fórmu­las de crimes perfeitos nesse último caso! A_expll~çãO, p~r ele mesmo oferecida, de que o cfamor do instinto nao o deixara raciocinar, poderia convencer-me se :>utro fora o acusado. Ele, em hipótese alguma teria sido o automato que descreveu. At~ mesmo por simples vaidade ter-se-ia e~penhado pa~a qu~ o deli­to fosse perfeito. Além disso, Eva nao era sua cumpilce, Em nenhum lance de sua narrativa consta ter haVido qualquer acordo entre ambos para a eliminação da vítima, Não se enten­de, pois, como poderia ele aspirar pela conq~ist_a da _ filha, ma­tando a mãe em sua presença. Ele, ao menos, tena deixado para

161

Page 83: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

agir quando ela íá houvesse regressado à Europu, porque não era daquefes que jogam fora a criança COm a água do banho. Não, de forrna alguma. Aquilo não era crime para Jorge Muni;::, O motivo, no caso, que seda a fome do sexo, estaria prejudlCBdo pela impossibilidade óbvia de colher o agente os 'frutos do cri~ me, porque a fêmea ambicionada passaria a odiá-lo. O motivo, pois, indlcado para o dento, não era verdadeiro. E quando ta! acontece, isto é, quando nem mesmo em tese se encontra expH* cação para um crime, o acusado é louco ou inocente,

Virei-me para minha mãe, que continuava sentada à minha frente e perguntei"!he:

- Como você me julgaria se eu gastasse o que recebe­mos até agora, para apurar a verdade?

- Jufgaria que cumpriu com o seu dever.

Para não perder a eventual colaboração de Eva, reSú~v! silenciar sobre as memórias li partI célere ao seu encontro. Recebeu-me cordialmente e não revelou no curso de nossa palas" tra nenhuma indisposição irremediável para com o padrasto. Confirmou integralmente seu depoimento prestado na polícia, mas acrescentou que àquela altura Já começara a duvidar da cu!­pabilidade do acusado, a quem se referia com uma admiração lncomum, bastante desajustada à situação objetiva do caso. Disse"me que ainda antes de Jorge Muniz ser interrogado em juízo, ela tentara avistar-se com ele no presídio, mas fora gros­seiramente repeHda. Achava tudo confuso e esperava que algu­ma coisa viesse a surgir para a completa elucidação do caso. Na­da me disse sobre suas relações pessoais com o acusado, temen­do certamente ser envolvida no processo. De substancia!, por­tanto, nada me forneceu. Mas, era de fato uma mulher eston­teante. Conhecendo"8, passei a respeitar ainda mals a Jorge Muniz, porque em mim também ela produziu uma impressão devastadora. Mesmo despojandíH.l da mistíca sensual COm que ele a condimentara, não podia haver dúvida de que, para resistir à sedução daquela fêmea capitosa seria necessária uma esto lcída­de que não se poderia exigir de homem algum, enquanto .as for" ças vitais o acompanhassem.

162

Assim, ouvindo a várias pessoas, lendo e relendo os autos, inquirindo {} Dr. Paulo e o médico legb1:3, bem como e:-iudando o exarne de corpo de delito e observando atentamente os instru­mentos do crime, levei cerca de duas semanas correndo de táxi pela cidade. Os c!ientes que me procuravam, e eram muitos, iam sendo recebidos por minha mãe e por ela confortados com a cer­teza de que togo eu cuidaria de seus Interesses.

Num daqueles primeiros dias recebi um bilhete de Jorge Munrz, dizendo"me que se sua narrativa, exclusivamente na par~ te em que descrevia o duplo homicídio por suposto adultériO e O que ele mesmo executara contra a esposa não aparecesse ime" diatamente nos jornais, ao menos em resumo, eu deveria renun" dar à causs. Não tendo outra alternativa, chamei à minha resi­dênda os repórteres e depois de receber o compromisso escrito de dedararem que a síntese por mim redígida lhes teria sido entregue dlretamente pelo acusado, deixei que a publicassem.

E fácil deduzir que os comentários emergentes daquela divulgação foram os mais destrutivos posslveis. Os concorrentes cevaram'se na confissão do duplo homicídio e houve no Forum discussões acadêmicas em torno da possibilidade de reabertura do processo, para que se lançasse a última pá de terra sobre meu constituinte, Eu assistIa com indiferença a algumas dessas tertú~ lias, com as quais os concorrentes de Jorge Muniz desabafavam seus recalques e supunham cravar novos pregos no ataúde de minha defesa, até que um di8, depois de haver reaiizado certa diligência, tornei um táxi a, 80 chegar 30 presídio, como se fizesse ao acusado uma visita de rotina, perguntei-lhe como ia passando.

Como sempre. ~" disse-me. -- Quando será (') júri?

Displicentemente, respond!"!he:

- Não haverá júri.

.~ Porque? ~ inquidu-me impassfveL - O caso não é de latrocínio, Ou será que reformaram a Constituição?

163

Page 84: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Olhei para a janela, como quem não está muito jnteres~ sado, e finalmente, deixei cair:

~ "Erfolgshaftung", isto é, responsabilidade pelo resul­tado, responsabilidade objetlva, responsabllidade sem culpa. Hi­pótese que obrigará o juiz a absolvê-lo liminarmente.

Naquele instante foi que pude conhecer de maneira total o homem com quem lidava. Toda sua abulia desapareceu repen­tinamente. De um salto, levantou-se da cama, agarrou-me pelos braços com mãos que pareciam tenazes, fuzilou-me com olhos incandescentes, e com uma voz que soava como um rugido, bradou:

- Quem o mandou sair do processo? Quem o autorizou a virar detetlve? Sua função era mais alta, era de advogado. Mas, não vai adiantar nada sua intromissão na minha vida!

Eu estava alegre demais para perturbar-me com sua fúria. Aguardei, pois, que ele se acalmasse, e nada respondi. Mas, o homem estava incontroláveL Deixou-me de lado e comecou a andar pelo cárcere como um possesso. Depois de quase' meia hora de deambulação alucinada, virou-se para mim e disse:

~ Agora que você já subverteu todos os meus planos, poderia completar a sua obra praticando, ao menos, um ato de caridade que o redimisse,

- Qual? ~ perguntei-lhe ansiosamente, na vã expectati­va de poder ainda recuperar a sua confiança.

~ Traga-me, ainda hoje, um revólver.

~ Isso, eu nunca farei. E não é por medo do processo. Entendo gue um homem como o senhor tem o dever de resis" tlr a esses impu lsos do desespero e da covardia.

- Suma-se, menino! ~ vociferou como um louco. -Antes que eu chame o guarda para expu lsá-Io!

Esse foi o meu último encontro com Jorge Muniz. No dia seguinte, como os jornais noticiaram amplamente, o seu ca, dáver foi encontrado sobre uma poça de sangue, havendo o legista declarado que ele rasgara, com vários golpes de uma tesoura, a artéria femoral.

Encerrava-se, assim, melancol1camente, sem jun e sem sentença de juízes humanos, aquele caso paSSional que tanto empolgara a opinião pública e com que eu iniciei a minha car- . reira de criminalista.

164 165

Page 85: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

16

LeveI alguns dias compungido por desagradável comple­xo de culpa, por não ter informado à direção do presídio sobre os propósitos suicidas do detento. Mas, fi verdade é que ele me havia assegurado enfaticamente que se algum dia optasse por ta! solução usaria um revólver. Na cela, o que me pareceu estar ao seu alcance eram os hipnóticos, e desses eu estava certo de que ele não faria uso para aquele fim. Mesmo que fizesse, não !ogra~ ria êxito algum, porque já estava imunizado. Quando me chegou a notícia de sua morte, é daro que sofri um tremendo abalo nervoso, como se houvesse perdido em um desastre um irmão mais velho, já multo querido e sempre lembrado.

Meu sentimento de culpa não arrefecia nem mesmo quando eu, sopesando tudo que fizera, confirmava intimamente que havia agido com absoluta lisura em todos os atos que prat;· cara. Nem ao menos havia sido imprudente pela maneira brusca com que informara ao acusado que havia descoberto a verdade, porque pensava então que ele, em homenagem à morta, havia feito apenas um pacto intimo de não se defender nem auxiliar quem o defendesse, deixando, assim, que o acaso decld i5Se o seu destino. Esta for a hipótese que finalmente admiti como capaz de justificar a aceltaç§o de um defensor inexperiente como eu era, porque assim procedendo ele podeda estar certo de que em nada contribulra para ser absolvido,

Eu acrcc!ftava ingenuamente que ele acolheria a abwlvf­ção como uma prova do descablmento de seu remorso. Mas, não levara em conta que ele não acreditava na justiça e que,

167

Page 86: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

portanto, se a decisão do processo lhe fosse favorável, não pode· ria a sentença servir-lhe de estímulo para continuar a viver. Ele jamais aceitaria que uma decisão judiciária bastasse para quitá-lo pelo infortúnio a que dera causa. O seu problema era inteira­mente pessoal. Não lhe interessava, no sentido em que eu supu­sera, o que dele pensassem os juízes ou o que decidissem com relação ao processo.

Os repórteres encheram a minha casa na manhã do dia em que foi descoberto o cadáver. Transtornado pela ocorrência, que me fizera perder o cliente, o amigo, e me roubava ainda uma vitória forense que me daria imenso prestígio, tive de pe­d ir-lhes que voltassem à noite, quando então lhes daria por escri­to as explicações da tragédia.

Depois que e!es se retiraram e pude acalmar-me um pou­co, pedi a minha mãe que tomasse o seguinte dítado:

"Jorge Muniz não matou a sua mulher, no sentido de qualquer interpretação com que pudesse ser criminalmente per· seguido. A vítima suicidou-se por seu intermédio, mantendo-o porém na suposição de que lhe injetava o sonJ'fero de que fazia uso eventual. Assim, por erro invencível, plenamente justificado pelas circunstâncias, supôs situação de fato que, se existisse real­mente, tornaria leg{tima a ação por ele praticada, isto é, a de injetar, segundo pensou, um sonífero receitado por médico, na pessoa para a qual fora prescrito. Tinha, portanto, a seu favor, uma causa de inculpabilidade universalmente consagrada, que tornaria impossível a sua condenação.

"Entretanto, desde seu interrogatório em juizo, o acu­sado decid iu não defender-se porque compreendeu que já esta­va internamente morto. Certificara-se, já então, de que sua vida não tinha sentido algum sem a mulher que, por sua causa e por suas mãos, cometera o suicídio. Ela assim procedeu torturada p?r uma paixão avassaladora onde conflagravam-se impulsos de vmgança, frustraçâ'o amorosa e perda total do instinto de con­servação. Queria e conseguiu morrer pelas mãos dele, arrastan­do"Ú no vórtice de sua tragédia para que ele compreendesse, na

168

solidão do cárcere, que havendo ambos nascido para completa­rem-se, a vida dele, depois que ela morresse, seria impossível.

"As provas do que afirmo estão nas memórias que ele deixou, as quais, com exceção apenas dos últimos períodos, representam uma confissão estritamente verdadeira. Na última semana de sua vida, conferi uma por uma as suas demais revela­ções, e todas são absolutamente exatas. Somente cheguei à conclusão de que ele falseara a verdade quanto ao epilogo de sua narrativa, depois de multo trabalho, várias diligências e intensa meditação. Ouvi o médico da família e conferi a recei­ta do hipnótico na farmácia onde permanece arquivada. Inquiri todos os empregados da casa e foi então que vim a saber o que acontecera ao cão policial que guardava o palacete há mais de um lustro e que ali era tratado com mais carinho e conforto do que a maioria da população de São Paulo.

"Dias antes da morte da milionária, o cão havia sido acometido de doença incurável. O veterinário, chamado às pressas, na ausência de Jorge Muniz, dissera que o caso não tinha mais solução e que, face às circunstâncias, iria injetar-Ihe o T-61 , poderoso veneno que, sem sofrimento para o animal, iria provocar-lhe sono imediato e profundo, seguido de coma e morte, em poucos minutos. A dama, entretanto, pretextando piedade, convenceu o veterinário a deixar com ela a ampola para apficação no dia seguinte, caso realmente o animal não se recu­perasse. Entrementes, pediu-lhe que o anestesiasse com morfina ou outra substância qualquer, para que ele não ficasse sofrendo. Depois que o veterinário saiu e enquanto o animal dormia sob o efeito do entorpecente, ela mandou que o jardineiro o executas­se com um tiro de revólver. Isso foi feito e tenho provas irrefu­táveís de que Jorge Muniz foi por ela cientificado de que a elimi­nação do animal, por aquele processo, havia sido aconselhada pelo veterinário. Quanto a este, arrependido de haver deixado o veneno com a milionária, voltara à mansão no dia seguinte para recuperá-lo ou usá-lo no animal, tendo sido então informado de que a eutanásía já se consumara na noite anterior, com o veneno I porque o cão, cessado o efeito da morfina, passara a gemer de modo lancinante. Vim também a saber que quando Jorge Muniz

169

Page 87: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

foi chamado para ap!!car a iníeçHo que matara a sua esposa a serlnga já continha o 1fquido venenoso, nela colocado pela pró­pria vftirna após a esterinzação !nútil que fora proccdida pefa empregada, Desse modo, nem esta nem o acusado chegaram a ver a ampofa, antes de aplicada a injeção. A empregada só viu a ampola depois que a poHcla a achou em uma cesta de papéis, e ° acusado, quando ela lhe foi exibida na Delegacia.

"Os fatos dos quais participou o veterinário foram por ele mesmo confirmados, alegando estar em condições de prestar contas exatas das aplicações de todas as drogas venenosas que obtinha através de requiSIções devidamente anotadas, Embora houvesse, com grande alarme, implorado que eu não revelasse sua participação no caso, logo se convenceu de que seria uma iniqüidade deixar que o réu fosse condenado por um crlrne que não praticou. Só anuiu, porém, com o dever de falar a verdade, depois de escJarecldo de que seu ato de confiar a ampola à sui· cida não se enquadrava em nenhuma hipótese de culpabilidade pena!, porque não conhecendo o drama cujas chamas devoravam invisivelmente a mansão, e tendo informado a v{tima sobre O poderio fetal da droga, ninguém o acusaria nem mesmo de negligência ou imprudência,

"As armas defensfvas, portanto, de que eu dispunha para fulminar o processo Jorge Muniz, eram de eficácia arrasadora, Tinha às mlnhas mãos, para exumar quando desejasse, os des­pojos do anima! em cuja ossada craniana seriam encontrados o projéti! e a perfuraçã'o por ete provocada. Tinha os depolmer,· tos do veterinário, do jardineiro, da criada que esterilizara a seringa e, possivelmente, o da própria filha da extinta, que assis­tira à aplicação e sabia que não fora o acusado quem aspirara da ampola o conteúdo da seringa, havendo, tão somente, coLt,ldo a veta e injetado o líquido.

m tais circunstâncias, isto é, quando não se ajusta à evidência, a confissão do réu não vale coisa alguma, Ninguém é oondenado porque deseja e sim porque é cuipado, porque .: ma! defendido! porque o a('J:\SO contra ele: conspira, porque a Justiça erra, ou, em hipóteses que felizmente são raras, quando

170

o juiz é um deOnqüente que se vale do C8rgo para encarcerar os que lhe caern sob a jurisdição.

"Jorge Munlz não sabia, ao certo, como sua mulher con­seguira o veneno, mas sabia como lograra que ele, inadvertida­mente, lho propinasse. É claro que não tendo querido o resulta­do e sabendo com quem vivera, logo percebeu a urdidura total do plano em que fora inconscientemente envolvido, Oe início, tentou defender-se, como aliás o fez veementemente na fase do inquérito policiai, alegando que não o insultassem com fi supo­sição de que ele fosse tão estúpido ao ponto de envenenar sua mulher na presença da filha e de serviçais. Até então, ele não havia sentido ainda, em todo seu [mpat.'to arrasador, a perda incomensurável que sofrera, Acreditava que poderia sobreviver e reconstruir sua vida. Depois, compreendeu que se não tinha assassinado sua mulher no sentido da denúncia, Isto é, com vontade livre e conscientemente dirigida â ocisão, o fato é que a havia trucidado ao desintegrar-lhe a mente corn sua chocante­preterição e seu aparente desamoL

"Foi nesse estado, ainda nebuloso, de perplexidade e angústia, que aceitou o meu patrocfnio. Quando me perguntou o que eu entendia sobre ° barbarismo tedesco que, até há pOuco tempo, admitia a responsabilldade pelo resultado, responsabili­dade sem culpa, "Erfo!gshaftung", revelou, embora eu não per· cebesse então, o seu propósito de deixar-58 condenar. Do contrâ­fio, não teria desviado de minha mente a hipótese por ele mes­mo insinuada, justificando a pergunta como um simples teste de minha capacidade. Durante todo o período em que esteve preso, sua mente, como os psiquiatras ensinam, pôde quedar-se em paz :elativa, graças à sua crença de que estava sendo punido pelo mat que praticara. t o conhecido complexo de expiação, que induz os criminosos passionais 8 auto~supliclarem-se para conse. gulrem alguma tranqüillóade, Quando eu lhe revedel que estava na pista certa, e que ninguém, nem mesmo e!e, me impediria de arrancar a sua absolvição, cast!gou-se definitivamente pela única forma que estava ao seu alcance,"

171

Page 88: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Ao chegarem os repórteres, deí-Ihes inicialmente acanhe·· cer o texto integral das memórias de Jorge Muniz, com exceção dos capítulos cuja publicação imediata ele proibira, e em segui­da entreguei a cada um deles uma cópia datilografada e por mim subscrita da interpretação supra e os autorizei a publicá-Ia. Leram-na, mas não se satisfizeram, Um deles perguntou-me:

- E o duplo assassinato? Não teria sido a hipótese de responder por ele que determinou ,o suicídio do acusado? Quero dizer, não teria ele, depois da confissão desses crimes, compre­endido que cometera um erro imperdoável?

- Antes de tudo - respondi ~ é preciso lembrarem-se de que não houve delito no primeiro caso. Naquele, o júri re­conheceu a exdudente da legítima defesa, e não há crime quan­do o agente pratica o fato nessa circunstância, A sentenca tran­sitou em julgado, sendo, pois, juridicamente lrreformáv~1, por­que não existe revisão prejudicial a quem já foi absolvido, O único delito que lhe poderiam imputar seria o de falsidade formal e ideológica de documento público. Mas, é preciso não esquecerem que não foi Jorge Muniz quem introduziu a certi· dão de casamento nos autos. Quem o fez foi o patrono do réu, ignorando, aliás, a sua falsidade. Lembrem·se também de que, a esta altura, já está prescrita a ação penal respectiva.

- Não teria sido o repúdio da filha da vítima que provo­cou o desespero e conseqüente suicídio do acusado? - pergun­tou-me outro.

- Muito ao contrário. A análise do drama psicológico que destruiu meu constituinte demonstra que na sua vida não existia o binómio esposa e enteada, A sedução desta era uma decorrência do prestígio daquela. Tendo perdido a noiva na fase brilhante da juventude e vendo-a anatomicamente reproduzida na própria enteada, amava nesta as primeiras lembranças da mulher que o fascinara por toda a vida. Se sua esposa tivesse podido suportar por tempo suficiente o espetáculo da vincula­ção que se processava entre seu marido e sua filha, teria final· mente compreendido que tudo ocorria em função dela própria e

172

do mito amoroso que os dominara por dois decênios. Então, se sublimada estivesse, como só os c:euses poderiam estar, sentir-se-Ia até mesmo homenageada pelo acontecimento. Por isso foi que ele, antes de ingressar no tema, isto é, quando sua narração estava prestes a abordar a vinda da enteada, não pôde recalcar aquela diatribe contra a psicologia da fêmea em geral, verberando o que ele considerava a sua estupidez e subserviên­cia às normas de cultura. Ele não pôde ser claro naquela opor~ tunidade porque, como vimos, seu propósito fina! era induzir em erro a JustiÇ<:l, deixando-se condenar por um crime suposto. Mas, tudo indica que com sua mente flutuando acima dos pre­conceitos, dos costumes e da própria natureza humana, espera­va de sua esposa uma atitude conciliatória, porque, de fato, ele era a grande vítima dos acontecimentos. A prova disso é que continuava fie! à sua paixão amorosa, a ponto de rejuvenescê-Ia através da única pessoa capaz de efetusr o milagre, isto é, da­quela que retratava, nos traços fisionômicos e nas !fnhas do corpo, a própria esposa, nos idos saudosos de sua juventude.

~ E obvio, entretanto, que a compreensão por ele ambicionada não podia ser exigida de mulher alguma. Os influ­xos sentimentais que condicionaram toda a vivência da suicida eram de natureza excludente e devastadora. Não toleravam razões que os infirmassem e confinavam-se à pessoa do esposo como tremenda monomania possessiva, até mesmo de gestos e pensamentos, Qualquer interferência estranha, ainda que de pessoa que apenas a reproduzisse em outra etapa de sua vida, não poderia deixar de causar-lhe um sentimento de frustração, de desvalía, em suma, de humilhante incapacidade de manter por si mesma, eternamente aceso, o fogo sagrado.

- Se ela houvesse podido continuar viva, é possível que ele encontrasse argumentos filosóficos para justificar-lhe seu aparente deslize. Porque, convém repetir, a sua paixão amoro­sa era a mesma e a representação do objeto a que se dedicava também não era diversa. Apenas a pessoa física ou entidade corpórea é que era outra. Mas, ainda assim, prestigiada, aureo­lada, iluminada pela representação mental que dela fazia o mor­to, na associação psíquica com a única mulher que realmente

173

Page 89: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

arnara. Essas ideaç5es, todavia, 'foram bruscamente tumultuadas pelo su idd io de sua esposa,

- Impelido pelo seu espírito de luta e talvez pela vaida­de profissional, ele inicialmente combateu a acusação. Não que· ria, como vocês pensam, inocentar-se aos olhos da enteada. Toda a catedral já estava demolida. A visão eufórica que ela lhe comunicara com a lembrança dos dias remotos de sua convivên­cia com a mulher que morrera, transmudara,se em um sent1~ mento arrosador de culpa e, conseqüentemente, de total Inl' bição amorosa. Rea!mente, se aquela moça rejuvenescia a sua esposa enquanto viva, não sendo sua presença dissociável daque" la que lhe dava todo o prestígio, é claro que uma vez morta a pessoa por eia representada, tudo que agora e!a poderia insinuar, despertar, invocar, seda exatamente um cadáver e, em come" qüêncfa, o invencível complexo de culpa que acabou por des~ truir meu constituinte.

- E não se alegue que o seu passado criminoso o deveria imunizar contra o remorso. Isso seria um erro lnescusáve! de psicologia judiciária. Ê sabido que o homem pode pratícar as ações mais monstruosas contra inimigos ou pessoas desconhecl­das a, ao mesmo tempo, guardar extremo afeto e lmorredoura fidelídada para com a mãe, sua esposa, seu filho, ou até mesmo para com um amigo ou um animal,

Depois de rápida interrupção para pedir aos presentes que não adulterassem a parte verba! daquela entrevista, quando fizessem suas publicações, continuei.

',-, Voltando, agora, ao cerne da pergunta, con'flrmo que, realmente, a primeira atitude que Eva tomou após a morte da mãe, fOI de repulsa ao padrasto. Mas, é claro que depois de provar a sua inocência, ele, se assim o desejasse, a teria fac;l, mente recuperado. E!a mesma esteve no presídío, ainda antes do interrogatório em juízo e de qualquer cHligênda por mim efe­tuada, em plena fase de dúvidas, não conseguindo falar com ele porque foi repeHda, como me informou. Não existia, assim, a compUlsão sexual por ele descrita de forma patológica, vis;;mdo

174

agravar ii sua situação processual e sobretudo eS~)e'tar bandari­lhas na opinião pública que, desde os idos de Pandora, e1e tinha especial prazer em confundir e desmoralizar, Basta ver-se como ele estendeu sua agressão ecumênlca até mesmo aos crlminalís­tas de São Paulo. iflSulumdo"ÚsgrBtultBmente, Como ditamou a dasse dos advogados, esquecido da lei sociológica de Gustave Lebon, cujo enunciado reza que nos grupos humanos a média da mOfa! é constante, Nenhum sábio diria que os advogados, os médicos, os poHcia!s, os ju(zes, 0$ miPtares, os jornanstas, etc., são bons ou maus, porque em todas as classes há exemplares de todos os tipos ímaginávels, Em todas elas, como até mesmo nos afrescos da Capela Sist1na, há anjos e dem6nios. A razão, por~ tanto, não o inspirou naquelas diatribes, e sim o propósito ln­conseqüente de esmurrar a esmo. Ele morreu com pow;,o {'fiais de quarenta anos de idade, Estava, assim, em condições fiSIO­lógicas de sentir tudo que alegou e plenamente habilitado para

a vida sexual. Mas, excetuando-se o caso particular da esposa, era um homem invulneráve! à serjw;ão das fêmeas. ProV8-'Ü o fato de jamais haver usado sua fortuna para comprar mulheres. Sua amante era a blbtlotecs. Desde cedo aprendera a verdade evangél1ca de que ninguém pode servir a dois senhores. Por essa verdade, aliás, foi que e!e-sacrlflcou conscientemente, em favor dos livros, as aspirações românticas de sua juventude, Não seria, pois, agora, quando já alcançara o pleno domínio sobre as for­ças Instintivas, que ele iria sulBltar>5e ao império da libido,

-- Além disso, as memórias espontaneamente pub!iç"adas pelo suicida continham, como vocês sabem, a terrível confissão de haver eie mandado assassinar o pai de sua enteada, o que tornaria vlrtualmente lmpossívef qualquer aproximação entre os dOIS. Ora, quem assim procede, divulgando pelos jornais o que não precisava revelar, é óbvio que queria romper terminan­temente com aquelas relações, cavando entre eie e ela um abis­mo intranspon[veL Afiás, quando descobd a verdade em torno da morte de sua mulher, pensei também que ele havia fabula­do a ocorrência anterior exa-tâmente com esse propósito, isto é, para impedir, tornando-a monstruosa, qualquer aproximação com a enteada. Mas, examinei os autos respectivos, fiz indaga" ções, e sei que sua narrativa, neste ponto, é absolutamente

1'75

Page 90: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

exata, a despeito da decisão dos jurados que liquidou judiciaria· mente o assunto, porque a coisa julgada, tem-se como verdadei­ra. Quando abso!utórfa, é irreformável. Nem mesmo a lei pode modificá-Ia. Não existe revisão em desfavor do absolvido, nem é viável a denúncia de co-réu posteriormente à sentença que re­conhece em pro! do único autor material da ocisão, a excluden­te da legítima defesa própria, Ademais, quando ocorre, nos ter­mos da lei, a defesa de direito próprio ou de outrem, contra injusta agressão, atual ou iminente, a repulsa da qual decorre o homicídio constitui ato lícito, reclamado pelo interesse social, o que elimina a hipótese de co-delinqüência, Não havendo crime, não pode haver co-autoria criminosa.

Dando a entender aos repórteres que todo o assunto já estava suficientemente explicado e que me seria agradável se eles se retirassem, concluí:

- O caso Jorge Muniz, sob o aspecto humano, crimino­lógico ou intelectual, transcende à esfera da normalidade. Ele foi um espírito invulgar e viveu perenemente torturado por sua extrema sensibilidade. Nunca foi um ganancioso, um perverso ou um aproveitador. Conforme sua imagem predileta, ambicio­nando sublimar-se, distendeu tanto as cordas de sua alma que elas se partiram. Concentrou toda a sua vida na mente, não pôde impedir que o infortúnio a desintegrasse e, ao fina!, mergulhan" do na lnsânia, apelou para o suicídio. Agora encontrou a paz. Respeitem a sua memória,

176

17

Algumas semanas após a morte de Jorge Muniz, quando a sua filha e os avós de Eva já estavam em São Paulo cuidando do inventário do casal, fiz a ambas as partes um pedido aparen­temente modesto que elas atenderam sem objeção alguma, Tra· tava-se dos originais de "O Tigre de Pape!", guardados em um dos cofres da mansão, segundo referência feita pelo autor em suas memórias. O livro, em folhas datilografadas, foi·me ofere­cido com total desinteresse, sem que seus possuidores houves­sem lido uma única de suas páginas.

Entretanto, para o criminalista, aquela obra, como a fórmula da bomba atômica para os governos, na época da guerra fria, era de um valor-incalculável. Nela estavam deduzidas, como nas demonstrações geométricas, sem nenhuma possibilidade de erro, várias fórmulas de assassinatos absolutamente isentos de incriminação legal. Posso mesmo avançar que a primeira fórmu­!a aplicada em vida pelo autor~"isto é, a suposta defesa da honra no duplo homicídio que ensejou o seu casamento, era de todas a menos complexa e a de teor científico menos. apurado. As duas outras porém, usadas posteriormente, já demonstram uma evolução admirável. Das demais, não se fale.

Disso deduzo que à vítima principal, no caso da liberta­ção de sua mulher, não restava escapatórra alguma, porque se em razão de qualquer eventualidade falhasse o primeiro plano, outros já estavam elaborados, de modo que a sua supressão do rol dos vivos seria inevitavelmente consumada. Como corolário, cheguei também à conclusão de- que a simples leitura daquele

177

Page 91: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Hvro terrfve! bastaria para convencer ao mais incréduio dos juízes que, em hipótese a(gumB, mesmo mentslrnente tramtor·' nado como ele pretendeu, Jorge Muniz jamais teria cometido um crime tão estúpido como o descrito na denúncia referente ao suposto assassinato de sua mulher,

A sua abso!vlção, portanto, se ele apenas autorizasse a leitura daquele livro pelo juiz sumarlante ou em plenário de um eventual julgamento pelo júri, terra decorrido do s!mples bom senso dos julgadores, independentemente de qualquer contribui­ção que eu desse à causa de sua defesa. Ê bem de ver, todavia, que esse bom senso, freqüentemente atribu fdo a05 jurados pela lisonla das partes, é uma proposição que, na prática, nem Sempre se verifica, deixando a acusação e a defesa muitas vezes estarre" cidas com o desconchavo de certas decisões, Na loteria dos julgamentos populares, exceto quando o tráfico de influência ou {} clamor público já decidiu previamente o assunto, tudo aconte­ce como nos outros jogos de azar, não constituindo smpresa, para os que tenham experiência, esta ou aquela decisão absurda,

Não tenho dUVIda de que a imperfeição do p!ano de su" pressãv do milíonário resultou de três fatores que já não exls~ tjam ou deixaram de interferir nos homicídios poSteriores, es~ tcs realmente impecáveis, Um deles foi a influência de Pandora, onde crimes grosseiros ficavam impunes, como o do homem confundido com o macaco e o do suposto revólver de brinquedo, mencionados por Jorge Muniz em suas recordaçôesda terra natal, Outro foi a audácia, Inerente à relativa juventude do planejador, n.a época do evento. Finalmente, a ur2ênc1a imposta pela com~ parsa em sua última ínstigação> Não fosse a corrupção reinante em Pandora, a suaerír que tudo no flm daria certo; 8 juventude a indtar bravatas; e a mulher exorando pressa, é indubitável que ele não teria assumido o risco de afundar a sua nau corsária com a certidão falsa que mandou inserir no proC0&&L Teria, evidentemente, casado o pistoleiro com a meretriz, tão logo se certificasse de que o mHionárío estava empenhado em possuí-la, Não teria sido d1frcl1, desde quando () si.cário representasse: o papel de um fazendeiro abastado. A recentldade do casamento melhoraria até mesmo a situação do réu perante o júri, porque o adultério 8rn plena lua de mel teria sido aínda mais revoltante.

178

Mas, arquivando-se o processo Jorn0 Muniz, a verdade é que "O Tigre de Papel" ó um livro tão espantoso, tão cientifica, rnente fundamentado, tão referto de teses imbatíveis, que jamais me 8.nímei a publicá-lo. Depols de íê~jo, não somente cheguei à hum!lhante conclusão de que não sabia D1re1to Pena!, ou me­lhor, de que só conhecia a parte emersa do "1ceberg", como também ~ dedução de que não passam de simplórios os que andam afIrmando gratultamentB que não existe crime perfeito ou que o crime não compensa. Ao menos no que tante ao homi­c(dio, objeto então das preocupações do autor, o flvro prova sem contestaç.ão admissível que ele pode ser cometido de várias maneíras e até mesmo confessado, sem que a lei disponha de recurso algum para punir o executor ou seus mandantes.

A mim também isso pareda impossível. Mas, o fato é que a humanidade consumiu milênios para inventar a roda, enquanto hoje, em muitos aparethos despretendosos, há rodas que giram dentro de outras rodas, Depois que ii aquele livro assombroso, cujo título deveria ser" A. Caixa de Pandora" e não o que !he fora atribuído pelo autor, sei que não há limites para a lntellgência humana, sobretudo no sentido da destru1cão, e perdi a minha crença Juvenil na lnvencibiUdade da justiça.

, . . O crime, sela de que espécie for, desculpe-me Ruy a pa~ rod13, Irreverente, pode ser consumado com a lei, pela lei, dentro na 1m, porque somente se for praticado fora da fei ê que para o autor não há salvação. Uma vez achada a fórmula jurídica, tudo se resume ao custo operacional. Mas, felizmente, como esse cus­to é elevado, o crime cient(fico não está ao alcance dos de!ln­q~entes comuns< t, como tudo o mais, privilégio de ricos. tstes, nao obstante, tud? po?em conseguir sem o delito, porque as leis, por eles mesmos Inspiradas, abrem largo campo 8 sua !!vre atuB" ção nos domi'nioscio lucro monetário e da realização sexual que, como todos sabem, 90 as metas principais do crime, Excetua .. dos os casos psico-patológicos, só há mesmo, por assim dizer, um dento que ° rico necessite praticar, parE! que nenhuma cOisa material escape ao seu dom{nlo. Esse crime é o homjc(dlo,

179

Page 92: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

Não obstante, como existe esse, que é exatamente o mais grave, sempre achei perigosa a publicação daquele livro, temeroso de que ele venha estimular a prática do homicído im­puníveL Se, entretanto, algum dia eu admitir, como acreditava o autor com reação inversa, que o livro possa servir de guia às autoridades policiais e judiciárias na frustração das técnicas mais sofisticadas de matar ·com a lei, é provável que eu me decida a publiaHo. Assim procedendo, estarei armando a justiça contra os criminosos mais inatingíveis, e simultaneamente prestando uma última homenagem à genialidade daquele a quem devo o impulso inicial e decisivo, que tanto contribuiu para o meu sucesso na carreira de criminalista.

180

18

Não havia passado um ano do falecimento de Jorge Mu­niz, quando um velho policial da Delegacia de Homicídios veio a minha procura e revelou-me fatos deploráveis sobre a conduta funcional do titular do órgão, com quem entrara em conflito. Desejava que eu promovesse a apuração da responsabilidade cri­minal daquele funcionário em algumas contrafações. A mais importante dessas fraudes teria sido cometida exatamente. no caso Jorge Muniz, que segundo a estarrecedora versão de meu· informante, fora assassinado no presídio, a mando de seus pro­curadores comerciais que o teriam despojado de todos os seus valores mobiliários, tornando-se os maiores acionistas da empre­sa. O homiddio teria sido executado por um enfermeiro da pri­são que usara um bisturi para secionar a artéria femoral, enquan­to a vítima, voluntariamente dopada, não tivera condição algu­ma de defender-se. Antes do crime, o enfermeiro havia separado as lâminas de uma tesoura e amolado uma delas no ressalto de cimento do banheiro do cárcere, onde ficaram os vest ígios dessa tarefa, ali executada apenas para induzir a crença de que a pró­pria vítima assim procedera. A lâmina afiada e a mão direita do cadáver foram totalmente banhadas em sangue, porque a abun­dante hemorragia provocada pela cesura da femoral não pode deixar de atingir o que estiver por perto. Rematando sua dela­ção, o policial dissidente afirmava que todos os participantes do crime e os que o encobriram vinham ostentando invejável pro­gresso em sua situação financeira. O enfermeiro deixara o cargo e tornara-se proprietário de um restaurante. O delegado com­prara Ei vista uma casa suntuosa e dirigia agora um carro novíssi· mo. Dois detetives, seus auxiliares imediatos, vinham também

181

Page 93: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

d0s8n1boj~ndD cOm muita tacilidade ,,:;quilo que se q,;lsi:a depres­sa. Da mesma forma, proc<"odíam os carcereiros que estiverarn de plantão na noite em que meu constituinte morrera.

o autor dessas espantosas revelações adrnhiu francamen­te que hesitara em procurar~me porque chegara a supor que eu também era um dos partíclpes da quadrHha< Minha entrevista, sustentando a tese do suicídio,o convencera de que eu entrara no esquema e deveria ter recebido o suficiente para Bud!r a opínião pubHca, colaborando, assim, para o encerramento das investiga­ções. Tendo chegado, porém, à conclusão de que eu fora apenas um inocente ut!!, pensava agora que minha revolta em saber-me enganado, seria um estímulo excelente para que me lançasse na apuração dos fatos e promovesse as ações penais cabiveis contra os co·autores do homicídio e dos outros crimes que pro­piciaram o encobrimento daquele.

Embora tals acusações fossem inspiradas pelo ódio con­tra o delegado e talvez também pela inveja do suborno embolsa­do pelos outros polida is, não pude afastar da mente a lembran­ça de que Jorge Muniz me preenchera um cheque com a mão esquerda. Assa!tou"me, então, uma vergonha imensa de haver, em entrevfsta coletiva, sustentado inconscientemente aquilo que os eventuais crimInosos, locup!etando-se com mfnha leviandade, devedam querer que prosperasse na consciência pública, Minha grande e unlca esperança, portanto, era a de que meu informan~ te eó.1:lvesse redondamente enganado, Para certiflr.ar"me, porém, teria de investigar.

Infelizmente, tudo que apurei a respeito, confirmou a procedência daquelas informações. Acompanhado pelo acusador, estive no restaurante do ex "enfermeiro. Vi a casa imponente do delegado. Compulsei os autos do inventário e coovencí~me de que os herdeiros só acabariam recebendo os imóveis deixados pelo C8581, porque a empresa já era de outros. Quanto ao loqUE!" rito, somente Deus poderia contestá-lo. As provas eram perfeitas, coerentes, imbatfveis. Até mesmo o fato de ter a vitima, que era canhota, produzido em si mesma uma incisão dificílima ('.,.om a mão direita, não era de todo impossível. Embora estranhável,

182

não bastava para inva!ldar a condusão de suicídio, constante do laudo perícia L A origem da tesoura também não foi pesqu!sada, ilmltando-s8 o inquérito a atribuir à vít1ma a posse da mesma. Essa omissão, entretanto, não era suficiente para demonstrar a fraude inquisitoriaL A flscatlzação dos cárceres individuais não era rigorosa. A vítima tinha muitos privilégios, como a pos­se de entorpecentes evidenciava. O uso de barbitúricos não era profbido, na época, mas, certamente, não deixarfam que presos comuns tivessem em seu poder a quantidade que meu constitu· lote vinha consumindo, Da mesma forma, poderia ser justifica~ da a posse da tesoura, que a vítima poderia até mesmo ter to~ mado emprestada de alguém para, por exemplo, recortar as notfcias de jornal que versavam sobre o seu processo, lembrei" me, então, de uma das mais alarmantes lições de Jorge Muniz; "quem condena ou absolve é a polícia", e pensei na trágica ironia de seu poss{vel trucidamento. Ele, que idealizara o crime juridlcamente perfeito, oonsBguindo, mercê de incríveis a!qui" mias, oor;Jorificar sombras teóricas para produzHo, acabara talvez: sendo assassinado grosseiramente pela via comum de um crime que se tornara fnapurâve! em razão exclusiva do 5U"

bomo dos investigadores e da contrafação do inquérito,

Nada pude fazet para que a verdade fosse comprovada. Nem mesmo tentei corsa alguma. A minha entrevista arro!hava­me InapeJavelmente. Sem outra prova, além dos vestígios exte­dores da prosperidade súbita dos comparsas, eu não podia, sem risco de vir a ser processado por calúnia, denunciação caluniosa, ou mesmo por alguma extorsão imaginária, investir contra uma quadrflha que dispunha, além de tudo o mais, de um !)Oderlo financeiro utmzável a qualquer instante através dos meios de comunicação, para pulverizar a minha incoerência e retratar+me como um desprezível chantagista. O crime inapurável, como o juridicamente perfeito, dispõe também desse poder de rochacar as ingerências da lei, sobretudo quando sobra dinheiro par~ o massacre dos imprudentes que desejem comprová-lo ou perse­guir pela via lega! os seus autores. Minha única safda evidente­mente desairosa, 'fol declinar da mis;~ão, desobrigando o infor­mante de qualquer compromisso para comigo e autorizando-o a procurar outro advogado, Não rei se ele acreditou em minha

183

Page 94: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

inocência quando tentei convencê-lo da invulnerabi!!dade do alvo que pretendia atingir. Talvez tenha voltado a pensar que eu também fui subornado e afina! não passava mesmo de outra peça na engrenagem daquele crime que a absoluta fa!ta de pro­vas sepultou para sempre, sem jamais ter sido objeto de apura­ção judiciária,

Como eu, engolfado em minha profissão consuntiva, já não mais me pertencia e sim aos clientes que me traziam novos problemas e aos que me cobravam a solução de casos anteriores, resolvi não diligenciar coisa alguma em torno da morte de Jorge Muniz que, embora tivesse tido o impulso de suicidar-se, tudo indicava ter sido realmente assassinado, É possível que por um sistema qualquer de escuta, os interessados em sua eliminação tivessem sabido que eu conhecia a intenção suicida da vítima e houvessem aproveitado o momento exato para matá-Ia, certos de que eu, como veio a ocorrer, não atríbuiria o fato a homicí­dio. Talvez os repórteres, também como inocentes úteis, tives­sem acorrido à minha casa por sugestão dos comparsas no crime e mesmo do próprio delegado, que deveriam estar ansiosos pela minha opinião sobre o fato. Embora já houvessem programado o inquérito no rumo do suicfdio, talvez quisessem ter a certeza de que, de minha parte, não haveria contestação alguma. Se é verdadeira esta suposição, eles tiveram, gratuitamente, muito mais do que esperavam. Mereceram um pronunciamento que além de proclamar a evidência do sujC{dio, ainda oferecera amplas razões psicológicas para o imaginário gesto de loucura de meu constituinte_ Por obra do acaso, pois, a opinião pública teria sido, daquela feita, engodada com mais perfeição ainda do que costuma sê-lo pe!as campanhas planejadas e posteriormente dirigidas. Minha entrevista, portanto, fora para eles de uma ge­nerosidade incomensurável e para mim de um rid ícu!o atroz, cuja humilhação me perseguirá eternamente.

Certo de que Jorge Muniz, triturado pelas maxilas do destino e envolto no sudário de seu desígnio suicida, já começa­ra a ouvir as trombetas do juízo final, pareceu-me lógíco deduzir de suas próprias palavras, quando me pedira o revórver, que efe havia realmente se matado, Depois que me caíram as escamas

184

dos olhos, e vi que eu fora um instrumento inconsciente daque, les que o teriam assassinado, tive pela primeira vez a sensação da inutOidade da sabedoria. Senti que a mente humana é incapaz, não só de apreender as razões últimas de tudo, como querem os agnósticos, como também de tornar-se invulnerável às tramas do ludibrio a que o homem está permanentemente exposto, sobretudo quando lida com o crime. A partir daquela época, passei a duvidar a todo passo de mim mesmo e dos outros mais ainda. Eu não confundia, evidentemente, o meu fracasso pessoal com os méritos da ciência que estudava, mas, mesmo assim, con­venci+me de que a cultura concede ao homem apenas ligeira ascendência sobre os demais e tão somente nos limites estreitos da especialidade cient!'fica a que ete se dedique. Não podendo ser enciclopédica, não protege os sabias contra a burla do ignaro, se este é bastante industrioso nas artes da velhacaría. A atitude, pois, do homem prudente, perante ele mesmo e seus semelhan­tes, não pode ser outra senão a da mais completa descrença, Penso até mesmo que São Tomé, nos idos vertentes, não mais se contentaria em meter o dedo nas chagas para ter a certeza de que Jesus ressuscitara.

No caso Jorge Muniz eu tivera em minhas mãos a pedra de Roseta e não decifrara -o-enigma. Pelo contrário, fornecera espontânea e gratuitamente a seus prováveis assassinos o manto publicitário de que eles tanto precisavam para encobrir o crime. Só me cabia, pois, na emergência, extrair da derrota todas as lições capazes de compensar, em minha atividade futura, o preço moral que paguei pela ingénua pretensão de interpretar uma personalidade tão complexa e imprevisível como era a do meu constituinte. Conhecendo-o, como pensei conhecê-lo, em seus espasmos de sobrevivência, quando ele me narrara a sua vida infrene, consumida a agarrar cometas pela cauda e a semear dentes de dragão, e acompanhando as suas reações psicológicas até a véspera do amargo fim, melhor eu teria feito se houvesse substituído aquela longa entrevista pe!a singela admonição de Hamlet a Horácio de que no céu e na terra há coisas que ainda não foram sequer sonhadas pela nossa filosofia, Nada há no mundo mais difícil do que íulgar. Como os advogados têm a sorte de não precisar fazê-lo, devem defender ferrenhamente

185

Page 95: Vinicius Bittencourt - O Criminalista

este priv!lén1o, deixando aos juízes todo o peso dessa missão irrealizável, porém sagrada e terríveL Sagrada, apenas, como dizia Piutro EHero, porque fOI de Deus que o homem a usurpou. "Temos - acrescentava o mem:re ~~ fabricado ídolos e altares, sonhado ilusões e terrores, premiado e punido, gioriffcado e detraído, enganando-nos milhares de vezes e outros milhares de vezes ainda seremos empu!hados",

o próprio Jorge Muniz nada mais fez do que escrever com sua vida uma "Tragédia dos Erros", Buscou o mito da feH~ cidade, quando já sabia com S610n que () homem não pode ser feUz enquanto não estiver morto. Querendo impedir a fuga do tempo e obrigá-lo a retroceder, olhou para o passado atravós da enteada, transmudando-se, como a mulher de Lot, numa estátua de sal que não pôde defender·se dos inimigos que a espatffaram. OuístBmbém combater o crime com o crime, esque­cido da advertência evangé!lca de que o demónio não serve para expulsar Q demónio. Em suma, usou contra SI mesmo a própria sabedoria e como um feiticeiro que não póde mais exorcizar os espíritos malignos que invocou, foi por eles torturado em seus mals caros sentimentos e finalmente destru ido.

186