vilém flusser leitor das estórias de guimarães rosa

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VI Seminário de Literatura Brasileira Minas e o Modernismo: Memórias Subjetividades e Ruínas De 13 a 15 de junho de 2012 TIO MAN’ANTÔNIO, UM BODENLOS: VILÉM FLUSSER LEITOR DAS ESTÓRIAS DE GUIMARÃES ROSA Vitor Cei * “Nos diálogos com Rosa havia um único tema: Rosa” 1 . Este artigo enfoca um ponto de contato entre Vilém Flusser e João Guimarães Rosa, tendo em vista que o filósofo tcheco-brasileiro foi amigo e interlocutor intermitente do escritor mineiro, autor, seguido por Kafka, mais comentado em toda a sua obra e figura formadora de sua autobiografia filosófica 2 . Do vasto diálogo entre os dois autores, destaco, para efeito de análise, um conceito flusseriano que tem uma ligação estreita com a escrita rosiana: Bodenlosigkeit, ausência ou falta de fundamento, de chão, de terra, desenraizamento, desterro. Buscarei pensar a Bodenlosigkeit delineada por Flusser a partir de uma leitura do conto “Nada e a nossa condição”, publicado na obra Primeiras estórias, de 1962. A nossa conversação será orientada por duas questões: (1) por que Rosa denomina suas ficções de estórias? (2) Em que sentido o conceito de Bodenlosigkeit é pertinente para a fundamentação interpretativa da narrativa? 1. PRIMEIRAS ESTÓRIAS: ANEDOTAS DE ABSTRAÇÃO No título do livro em exame chama-nos atenção a palavra “estória”, vocábulo medieval que remonta ao século XIII e apresenta o sentido de “narrativa de cunho popular e tradicional3 . Por que Guimarães Rosa escreve estória, ao invés de história? Flusser observa que a opção do autor sugere oposição deliberada ao historicismo: * Doutorando em Estudos Literários (UFMG), bolsista da FAPEMIG. 1 (FLUSSER, 2010, p. 129). 2 (FLUSSER, 2010). 3 (HOUAISS, 2006).

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Page 1: Vilém Flusser leitor das estórias de Guimarães Rosa

VI Seminário de Literatura Brasileira Minas e o Modernismo: Memórias Subjetividades e Ruínas

De 13 a 15 de junho de 2012

TIO MAN’ANTÔNIO, UM BODENLOS:

VILÉM FLUSSER LEITOR DAS ESTÓRIAS DE GUIMARÃES ROSA

Vitor Cei*

“Nos diálogos com Rosa havia um único tema: Rosa”1.

Este artigo enfoca um ponto de contato entre Vilém Flusser e João Guimarães

Rosa, tendo em vista que o filósofo tcheco-brasileiro foi amigo e interlocutor intermitente do

escritor mineiro, autor, seguido por Kafka, mais comentado em toda a sua obra e figura

formadora de sua autobiografia filosófica2.

Do vasto diálogo entre os dois autores, destaco, para efeito de análise, um

conceito flusseriano que tem uma ligação estreita com a escrita rosiana: Bodenlosigkeit,

ausência ou falta de fundamento, de chão, de terra, desenraizamento, desterro.

Buscarei pensar a Bodenlosigkeit delineada por Flusser a partir de uma leitura do

conto “Nada e a nossa condição”, publicado na obra Primeiras estórias, de 1962. A nossa

conversação será orientada por duas questões: (1) por que Rosa denomina suas ficções de

estórias? (2) Em que sentido o conceito de Bodenlosigkeit é pertinente para a fundamentação

interpretativa da narrativa?

1. PRIMEIRAS ESTÓRIAS: ANEDOTAS DE ABSTRAÇÃO

No título do livro em exame chama-nos atenção a palavra “estória”, vocábulo

medieval que remonta ao século XIII e apresenta o sentido de “narrativa de cunho popular e

tradicional”3. Por que Guimarães Rosa escreve estória, ao invés de história? Flusser observa

que a opção do autor sugere oposição deliberada ao historicismo:

* Doutorando em Estudos Literários (UFMG), bolsista da FAPEMIG. 1 (FLUSSER, 2010, p. 129). 2 (FLUSSER, 2010). 3 (HOUAISS, 2006).

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De 13 a 15 de junho de 2012

Uma das características mais marcantes na obra de Guimarães Rosa é esta: o

universo por ela projetado tem dimensões geográficas nítidas, mas é indefinido historicamente. [...] o universo da obra de Guimarães Rosa tem a

estrutura do universo do mito: espaço a-histórico dentro do qual corre um

tempo incongruente com a linearidade do tempo do historicismo4.

O próprio Guimarães Rosa endossa a explicação de Flusser: “A estória não quer

ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um

pouco parecida à anedota. [...] a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado,

perdôe talvez chamar-se de: anedotas de abstração”5.

Crítico contundente da “megera cartesiana”, isto é, da racionalidade lógica do

cientificismo moderno, Guimarães Rosa apresenta uma concepção não objetiva da história,

contrariando o ideal das ciências humanas cartesianas ou positivistas. Enquanto os cientistas

defendem a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual

a partir de princípios lógicos, o ficcionista questiona a excessiva valorização do intelecto:

“Por isso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo

num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável”6.

Seguindo, ao seu modo, o caminho anti-cartesiano, Flusser também questiona o

fato de a racionalidade ser considerada a única via disponível de acesso à realidade. O filósofo

se propõe, por isso, a subverter a intelectualização do intelecto a partir de um elogio da

literatura de Rosa: “A natureza é regida primariamente pela poesia, e só secundariamente pela

matemática, essa bisneta da poesia”7.

Os contos de Primeiras estórias, assim como as anedotas, caracterizam-se por sua

brevidade, ineditismo e humor, apresentando particularidades curiosas ou jocosas que

acontecem à margem dos eventos mais importantes da história. Este caráter de marginalidade

e ruptura com os laços da história é marca fundamental do épos mineiro expresso nas estórias:

Pois estes vaqueiros e cangaceiros e suas “damas”, esses nômades pré-históricos (no sentido radical do termo “história”) são seres “estóricos”, isto

é: desenraizados do mundo e em busca do outro. O mistério é que,

justamente por não terem raiz no mundo, com ele se confundem na sua

viagem. Por não serem historizados, não se assumem historicamente, e

4 (FLUSSER, 1969). 5 (ROSA, 2009a, p. 529). 6 (LORENZ, 2009, p. LXI). 7 (FLUSSER, 2002, p, 168).

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confundem-se com o boi, o burro, a flor, o buriti, na sua busca inconsciente e

mítica de um “recado”8.

Não por acaso os personagens principais do livro Primeiras estórias são “loucos

iluminados”, crianças e velhos que não se enquadram nos padrões preestabelecidos pelo status

quo. É o caso de Tio Man'Antônio, protagonista do conto “Nada e a nossa condição”. A

propósito da peculiar marginalidade dos protagonistas rosianos, Eduardo Coutinho comenta:

[...] simpatia que o autor devota a todos aqueles seres que, não encarando a

vida por uma óptica predominantemente racionalista, inscrevem-se como

marginalizados na esfera do “senso comum”. É o caso de loucos, cegos,

doentes em geral, criminosos, feiticeiros, artistas populares, e sobretudo crianças e velhos, que, por não compartilharem a visão imediatista do adulto

comum, impregnam a ficção do autor com a sua sensibilidade e percepção

aguçadas. [...] Lúcidos em sua loucura, ou sensatos em sua aparente insensatez, os tipos marginalizados que povoam o sertão rosiano põem por

terra as dicotomias do racionalismo, afirmando-se nas suas diferenças9.

Os personagens que desafiam os valores arraigados na sociedade fazem com que

as estórias de Rosa tenham teor crítico aguçado: “sou um contista de contos críticos”10

,

afirmou o autor. Nesse sentido, as anedotas rosianas são “de abstração” porque apresentam

teor filosófico, uma vez que procuram “fazer da expressão literária um problema de

inteligência formal e de pesquisa interior”11

. Há, pois, na ficção do escritor mineiro, uma

perspectiva crítica que não pode ser ignorada e, em sua esteira, um potencial reflexivo: “as

suas estórias são fábulas, mythoi que velam e revelam uma visão global da existência”12

.

Passo, agora, a examinar em que sentido o conceito de Bodenlosigkeit é pertinente

para a fundamentação interpretativa do conto “Nada e a nossa condição”.

2. A ESTÓRIA DE TIO MAN'ANTÔNIO

A análise do conto deve começar por seu título: “Nada e a nossa condição”. O

pronome possessivo “nossa” determina algo que é relacionado conosco, significando o que

8 (FLUSSER, 2010, p. 133). 9 (COUTINHO, 2009, p. XXIII). 10 (LORENZ, 2009, p. XXXIX). 11 (CANDIDO, 2006, p. 132 – 133). 12 (BOSI, 2006, p. 431).

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nos pertence ou o que provém de nós. O substantivo “condição” apresenta os sentidos de

natureza, qualidade ou estado de coisa ou pessoa, tendo em vista seu estatuto com relação à

sua origem ou à sua situação em determinado momento.

Considerando a dimensão social da forma literária, Antonio Candido, ao estudar

as conexões internas da obra ficcional com a realidade histórico-social na qual ela se insere,

afirma que um “novo anseio generalizador”13

caracteriza a ficção da geração que surge a

partir dos anos 1940. Se o conteúdo social sedimenta-se na forma da obra, como defende a

sociologia literária, uma possibilidade de leitura que se abre é a de compreender o “nossa

condição” do título como uma forma de aproximar o leitor do personagem: “O texto de Rosa

pede insistentemente ao leitor que se espelhe e se leia nele. A escritura rosiana é hermenêutica

à medida que leva o leitor a perguntar sobre si mesmo, a se compreender e reprojetar sua

existência”14

. Precisamos saber de que modo a nossa condição humana estaria relacionada

com o “nada”, ou, com a ausência de fundamento – Bodenlosigkeit.

A Bodenlosigkeit aparece nas ideias que estruturam alguns contos de Primeiras

estórias, que mostram personagens “estóricas”, isto é, desenraizadas do mundo, habitando

uma terceira margem: o menino que foi visitar uma grande cidade em construção; a menina de

lá, personagem alheada do mundo circundante, cuja situação fica indeterminada entre a

debilidade mental e a paranormalidade sobrenatural; os irmãos facínoras que vão embora para

morar em cidade grande; o pai que vai habitar a terceira margem do rio; o tio que segue uma

travessia sem rumo em busca da salvação que é a morte – num movimento de nada querer a

querer o nada. Analisemos, agora, a estória deste tio chamado Man’Antônio.

A estória é narrada em primeira pessoa, por uma testemunha (não se sabe se direta

ou indireta), possivelmente um parente do protagonista Tio Man'Antônio. Seu relato parece se

constituir a partir de uma memória coletiva, pois suas lembranças partem de uma referência à

sua família e à sua terra. Assemelha-se, assim, às estórias orais dotadas de sóbria concisão que

são contadas pelos inúmeros narradores anônimos.

A narrativa, que representa ficcionalmente uma situação de confronto entre forças

tradicionais e emergentes, pode ser dividida em três momentos, sobre os quais comentarei.

Primeiramente, um preâmbulo apresenta o personagem principal e sua família, descrevendo-o

como “[...] um homem, de mais excelência que presença, que podia ter sido o velho rei ou o

13 (CANDIDO, 2006, p. 132). 14 (ROHDEN, 2008, p. 353).

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príncipe mais moço, nas futuras estórias de fadas”15

. Sem pretender resolver esse paradoxo,

gostaria de observar que, como já foi dito, Rosa reage à visão positivista da história. Portanto,

não importa a idade do personagem, que pode ser moço ou velho.

Tio Man'Antônio vive com a mulher, Tia Liduína, e as filhas na isolada Fazenda

do Tôrto-Alto. Dotado de peculiar marginalidade, o fazendeiro é mais um dos loucos

iluminados de Guimarães Rosa. Das mulheres pouco se sabe. A sóbria concisão do narrador

as salva da análise psicológica. Não se conhecem suas estórias. O leitor também não é

esclarecido sobre o aparentemente monótono dia-a-dia dos moradores da fazenda.

A pacata vida da família muda de rumo quando, “quase de repente”, a esposa

falece. O segundo movimento do conto se inicia com o velório, ao qual se segue a primeira

metamorfose de Tio Man’Antônio, que passa a viver sem fundamento, sem sentido nem meta.

A partir desse momento traumático o protagonista começa a desfazer-se das lembranças de

seu passado – num movimento de nada ter a nada ser: “aniquilação do homem enquanto

medida de todas as coisas”16

. Uma aniquilação tão violenta que é incomensurável,

provocando desorientação, vertigem e desenraizamento.

Tio Man’Antônio vai descobrindo, em progressão abissal, sua ausência de

fundamento. Incomodada com a situação, Felícia, a filha mais nova, indaga ao pai, em uma

das passagens mais impactantes da narrativa:

“Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?”. E ele, com

muito caso, no devagar da resposta, suave a voz: “Faz de conta, minha

filha... Faz de conta...”. Entreentendidos, mais não esperavam. Cabisbaixara-se, Tio Man’Antônio, no dizer essas palavras, que daí seriam

as suas dele, sempre17

.

A citação acima revela a tensão entre a história e a estória vivida entre

Man’Antônio e suas filhas. Felícia, ao buscar a verdadeira segurança, mostra-se

representante da história, portanto, inserida no tempo linear e refém da megera cartesiana. O

pai, em contrapartida, é um ser estórico, “desenraizado do mundo e em busca do outro”18

. Ele

15 (ROSA, 2009b, p. 452). 16 (FLUSSER, 1969). 17 (ROSA, 2009b, p. 454). 18 (FLUSSER, 2010, p. 133).

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é atemporal e propõe o jogo do faz-de-conta, isto é, a brincadeira de fazer de conta que o

fundamento está presente.

A partir do diálogo com a filha mais nova, o pai adquire a consciência de que a

vida é travessia e converte-se no “transitório”19

, iniciando um incansável trabalho de reforma

em sua fazenda, desmanchando o aspecto do lugar, tornando-o quase irreconhecível: “No

desbaste, rente em redor, com efeito, nada se poupara”20

.

Apesar da estranheza da empreitada sem significado, os empregados da fazenda,

também inseridos no tempo linear e reféns da megera cartesiana, obedeciam ao patrão. E este

se esquecia de todos os bens passados, abrindo mão do mundo material e tendo o nada por

horizonte: “A movimentação sem significado, tendo o nada por horizonte, é o clima da falta

de fundamento”21

.

Embora a narrativa não nos ofereça uma afirmação inequívoca a respeito disso,

somos levados a levantar a possibilidade de considerar Tio Man’Antônio um Bodenlos que se

deparou com um impasse em relação ao presente e ao futuro: ao mesmo tempo em que há

uma perda do sentido dos valores estabelecidos, apresenta-se a oportunidade de abertura a um

novo horizonte de valores.

A busca de um novo sentido para a vida marca a terceira parte do conto. E o novo

momento é inaugurado por uma festa: “No outro ano e depois, quando, à arte de contristes

celebrarem, como se fosse ela viva e presente, o dia de Tia Liduína, propôs uma festa, e para

enganar os fados”22

. Por que uma festa? A palavra festa, em um de seus sentidos figurados,

significa fato extraordinário, fora do comum. E no sentido informal, jocoso, indica uma

experiência penosa para o corpo ou para o espírito23

. Ambos os sentidos iluminam o episódio

da celebração do aniversário de Tia Liduína.

A breve narrativa da festa expressa em poucas linhas a laceração na qual afundava

Tio Man’Antônio. A festividade encerrou o tempo de luto e rompeu com a solidão na qual

vivia a família. As três filhas conhecem seus maridos, casam e vão embora “para longes

19 (ROSA, 2009b, p. 454). 20 (ROSA, 2009b, p. 455). 21 (FLUSSER, 2010, p. 18). 22 (ROSA, 2009b, p. 456). 23 (HOUAISS, 2006).

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diversos”24

. A unidade familiar perde sua força construtiva e se anula. Desse momento em

diante, o protagonista converte-se no “transitoriante” 25

.

Depois do casamento das filhas, o pai realiza um movimento de nada ter,

desapegando-se de suas posses. Ele divide a propriedade entre os empregados, ficando apenas

com a casa-grande: “Agora, pelos anos adiante, ele não seria dono mais de nada, com que

estender cuidados” 26

.

A fim de manter as aparências de uma vida “normal” e não despertar a revolta de

filhas e genros, ele fez de conta que vendeu a fazenda e enviou dinheiro para suas herdeiras,

que não tinham interesse nenhum na velha propriedade rural e ignoraram as verdadeiras ações

do velho, ficando satisfeitas com a suposta venda.

Após nada ter, Tio Man’Antônio converte-se no “transitoriador” rumo ao nada ser

– num anti-clímax, a solução do conflito ocorre com a morte: “Morreu: como se por um furo

de agulha um fio. Morreu; fez de conta”27

. Após sua travessia rumo ao nada, seu único bem

material também se desmancha no ar: a casa se incendeia junto com seu cadáver. Tio

Man'Antônio, o transitório, o transitoriante, o transitoriador, é um Bodenlos que vê no nada

sua real condição:

A fundamental vivência humana é a de ter sido lançada por forças ignoradas

para dentro do sertão ínvio do mundo, e de viajar nele sem rumo em busca da salvação que é a morte, viagem esta cercada de todos os lados pelas

tentações e armadilhas (“urupucas infundadas”) e um diabo que não existe28

.

À medida que os personagens poderiam ser qualquer um de nós, a estória contada

por Guimarães Rosa põe em cena a experiência da falta de fundamento, com a ressalva de que

esta não tem um desfecho predefinido e não pode ser precipitada, seja em filosofia ou

literatura, sem ser falsificada: “Pode ser apenas circunscrita em tais formas, para ser

parcialmente captada”29

.

Permanece a ausência de certezas sobre as ações e motivações íntimas dos seres

humanos representados pelos personagens: “A maior parte de seus contos são filosóficos à

24

(ROSA, 2009b, p. 456). 25 (ROSA, 2009b, p. 456). 26 (ROSA, 2009b, p. 457). 27 (ROSA, 2009b, p. 458). 28 (FLUSSER, 2010, p. 130-131). 29 (FLUSSER, 2010, p. 18).

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medida que dão o que pensar por lançarem perguntas, por escavarem as profundezas da alma

humana e não se contentarem com respostas − que são, muitas vezes, uma maldição para

nosso viver!”30

REFERÊNCIAS

BERNARDO, Gustavo. “Meu bem, você não entendeu nada”: a generosidade cética de Vilém

Flusser. Flusser Studies, n. 11, maio de 2011.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

COUTINHO, Eduardo F. Guimarães Rosa: um alquimista da palavra. In: ROSA, João

Guimarães. Ficção completa em dois volumes, volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

FLUSSER, Vilém. Guimarães Rosa e a geografia. Kriterion, v.10, n.3, p. 275-278, 1969.

Disponível em: <http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a196.htm>. Acesso em: 28 out.

2011.

______. Do poder da língua portuguesa. In: ______. Da religiosidade: a literatura e o senso

da realidade. São Paulo: Escrituras, 2002.

______. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2010.

HOUAISS, Antonio et al. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de

Janeiro: Objetiva, 2006. 1 CD-ROM.

LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa em

dois volumes, volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

ROHDEN. Faces filosóficas de “O espelho” de J. G. Rosa. Revista Anpoll, v. 2, n. 24, 2008.

ROSA, João Guimarães. Aletria e Hermenêutica. In: Ficção completa em dois volumes,

volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009a.

______. Nada e a nossa condição. In: Ficção completa em dois volumes, volume II. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 2009b.

30 (ROHDEN, 2008, p. 335).

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Resumo: Estudo comparado de Vilém Flusser e João Guimarães Rosa, tendo em vista que o

filósofo tcheco-brasileiro foi amigo e interlocutor intermitente do escritor mineiro, autor,

seguido por Kafka, mais comentado em toda a sua obra e figura formadora de sua

autobiografia filosófica. Do vasto diálogo entre os dois autores, temos como objetivo analisar

um conceito flusseriano que apresenta ligação estreita com a escrita rosiana: Bodenlosigkeit,

ausência ou falta de fundamento, de chão, de terra, desenraizamento, desterro. Como

delimitação metodológica, buscamos pensar a Bodenlosigkeit delineada por Flusser a partir de

uma leitura do conto “Nada e a nossa condição”, publicado por Rosa na obra Primeiras

estórias. A nossa conversação será orientada por duas questões: (1) por que Rosa denomina

suas ficções de estórias? (2) Em que sentido o conceito de Bodenlosigkeit é pertinente para a

fundamentação interpretativa da narrativa em questão?

Palavras-chave: Bodenlos; Bodenlosigkeit; Flusser; Guimarães Rosa.

Abstract: Comparative study of Vilém Flusser and João Guimarães Rosa, considering that

the Czech-Brazilian philosopher was a friend and partner of the writer from Minas Gerais,

author, followed by Kafka, most talked about in all his work and formative figure in his

philosophical autobiography. About the extensive dialogue between the two authors, we

analyze a Flusser´s concept that has a close connection with Rosa´s writing: Bodenlosigkeit,

absence or lack of foundation, ground, land, uprooting, exile. As a methodological definition,

we think the Bodenlosigkeit outlined by Flusser from a reading of the short-story “Nada e a

nossa condição”, published by Rosa in Primeiras estórias. Our conversation will be guided by

two questions: (1) why Rosa called his fictions estórias? (2) In what sense the concept of

Bodenlosigkeit is relevant to the interpretation of narrative reasoning in question?

Keywords: Bodenlos; Bodenlosigkeit; Flusser; Guimarães Rosa.