vila real de santo antônio - universidade de coimbra

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Vila Real de Santo Antônio Planeamento de pormenor e salvaguarda em desenvolvimento Adiscussão e a divulgação das opções e propostas que compõem o Plano de Pormenor de Salvaguarda do Núcleo Pombalino de Vila Real de Santo Antônio (PPSNPVRSA) ocorreram por diversas ocasiões e em diversos meios durante a sua elaboração e no início da sua implementação. O relatório do plano foi um dos documentos elaborados para fundamentar e ex- plicar as soluções urbanísticas adaptadas, dando cumprimento a um requisito jurídico. No entanto, espelhando a natureza intersticial dos instrumentos de planeamento da salvaguarda - redundantemente territoriaiseculturais -, esse relatório não se limita ajustificar as soluções urbanísticas adaptadas de um modo pretensamente técnico. Embora condicionado por algumas das limitações caractesticas deste tipo de documentos, reflecte a imporncia de acompanhar a requalificação e a reabilitação do espaço urbano pro- priamente dito, com a promoção e' a gestão de acções que convirjam na identificação do lugar que Vila Real de Santo António pode ocupar entre o "território da cultura" e a "cultura do território" e, frequentemente, surgem nestes planos sob a designação ambígua de "valorização". Aparentemente lateréllsà apresentação do PPNPVRSA, importa começar por fazer estas considerações por diferentes ordens de razões. Por um lado, porque o presente artigo se apoia no referido relatório (transcre- vendo, inclusive, algumas partes) e demais elementos que formalmente compõem o plano, acrescentando no finalum pequeno balanço do que dele se tem feito até hoje.Uma versão próxima da final, acompanhada de um considerável conjunto de informação comple- mentar, foi reunida no número nove da revista ECDJ do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra em 2005, poupando espaço e desenvolvimento nes- ta exposição. Por outro lado, porque em resposta ao convite dirigido pela Câmara Municipal de Vila Real de SantoAntónio (CMVRSA), no início de 2003, a Walter Rossa para fazer um plano de salvaguarda, foi apresentada à edilidade uma proposta que descrevia uma metodologia que defendia, por interesse comum e público, que o trabalho fosse desenvolvido, não em ambiente de prática profissional privada, mas num contexto universitário de prestação de serviços à co- munidade, conjugada com acções de investigação e desenvolvimento. No seguimento dessa proposta, a elaboração do PPSNPVRSA teve início em Setembro de 2003 e de- correu no âmbito de um protocolo celebrado entre a câmara municipal e dois centros de investigação da Universidade de Coimbra: o Centro de Estudos de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia (CEARQ) - com a responsabilidade de coordenação de Walter Rossa e do autor deste artigo - e o Centro de Estudo de Direito do Ordenamento do Território, do Urbanismo e do Ambiente (CEDOUA), com a par- ticipação de Fernanda Paula e Dulce Lopes. Depois da complexa tramitação a que estão sujeitos estes instru- mentos para a sua elaboração e publicação, entrou em vigor em Dezembro de 2008 1 A referida metodologia foi acordada e implicou, en- treoutros aspectos, o desenvolvimento de linhas de Vila Real de Santo António: planificación de detalle y salvaguarda en desarrollo El PPSNPVRSA fue elaborado con la convicción de que la necesaria rehabilitación urbana deI área de intervención debe ser objeto de un seguimiento continuado que garantice la promoción y gestión de acciones destinadas a identificar ellugar que Vila Real de Santo António puede ocupar entre el territorio de la cultura y la cultura del territorio. La metodología adoptada permitió sacar partido de la asociación de actividades de I&D y de gestión urbanística a los procedimientos com unes de la elaboración de instrumentos de gestión territorial, procurando de este modo fundamentar su aplicación - desde hace poco en curso - en un principio de desarrollo urbano.

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Vila Real de Santo AntônioPlaneamento de pormenore salvaguarda em desenvolvimento

A discussão e a divulgação das opções e propostasque compõem o Plano de Pormenor de Salvaguardado Núcleo Pombalino de Vila Real de Santo Antônio(PPSNPVRSA) ocorreram por diversas ocasiões e emdiversos meios durante a sua elaboração e no inícioda sua implementação. O relatório do plano foi umdos documentos elaborados para fundamentar e ex-plicar as soluções urbanísticas adaptadas, dandocumprimento a um requisito jurídico. No entanto,espelhando a natureza intersticial dos instrumentosde planeamento da salvaguarda - redundantementeterritoriais e culturais -, esse relatório não se limitaa justificar as soluções urbanísticas adaptadas de ummodo pretensamente técnico. Embora condicionadopor algumas das limitações características deste tipode documentos, reflecte a importãncia de acompanhara requalificação e a reabilitação do espaço urbano pro-priamente dito, com a promoção e' a gestão de acçõesque convirjam na identificação do lugar que Vila Realde Santo António pode ocupar entre o "território dacultura" e a "cultura do território" e, frequentemente,surgem nestes planos sob a designação ambígua de"valorização".

Aparentemente lateréllsà apresentação do PPNPVRSA,importa começar por fazer estas considerações pordiferentes ordens de razões. Por um lado, porque opresente artigo se apoia no referido relatório (transcre-vendo, inclusive, algumas partes) e demais elementosque formalmente compõem o plano, acrescentandono final um pequeno balanço do que dele se tem feitoaté hoje. Uma versão próxima da final, acompanhadade um considerável conjunto de informação comple-mentar, foi reunida no número nove da revista ECDJdo Departamento de Arquitectura da Faculdade deCiências e Tecnologia da Universidade de Coimbraem 2005, poupando espaço e desenvolvimento nes-ta exposição. Por outro lado, porque em resposta aoconvite dirigido pela Câmara Municipal de Vila Realde Santo António (CMVRSA), no início de 2003, aWalter Rossa para fazer um plano de salvaguarda, foi

apresentada à edilidade uma proposta que descreviauma metodologia que defendia, por interesse comume público, que o trabalho fosse desenvolvido, não emambiente de prática profissional privada, mas numcontexto universitário de prestação de serviços à co-munidade, conjugada com acções de investigação edesenvolvimento.

No seguimento dessa proposta, a elaboração doPPSNPVRSA teve início em Setembro de 2003 e de-correu no âmbito de um protocolo celebrado entre acâmara municipal e dois centros de investigação daUniversidade de Coimbra: o Centro de Estudos deArquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia(CEARQ) - com a responsabilidade de coordenaçãode Walter Rossa e do autor deste artigo - e o Centrode Estudo de Direito do Ordenamento do Território,do Urbanismo e do Ambiente (CEDOUA), com a par-ticipação de Fernanda Paula e Dulce Lopes. Depois dacomplexa tramitação a que estão sujeitos estes instru-mentos para a sua elaboração e publicação, entrou emvigor em Dezembro de 20081

A referida metodologia foi acordada e implicou, en-tre outros aspectos, o desenvolvimento de linhas de

Vila Real de Santo António: planificaciónde detalle y salvaguarda en desarrollo

El PPSNPVRSA fue elaborado con la convicción de que la necesariarehabilitación urbana deI área de intervención debe ser objetode un seguimiento continuado que garantice la promoción y gestiónde acciones destinadas a identificar ellugar que Vila Real de SantoAntónio puede ocupar entre el territorio de la cultura y la culturadel territorio. La metodología adoptada permitió sacar partidode la asociación de actividades de I&D y de gestión urbanísticaa los procedimientos comunes de la elaboración de instrumentosde gestión territorial, procurando de este modo fundamentarsu aplicación - desde hace poco en curso - en un principiode desarrollo urbano.

investigação sectoriais conducentes à realização deprovas académicas2 e o respeito por uma sucessão depatamares de aproximação à proposta de plano. Bemantes da formalização dessa proposta, um desses está-dios consistiu numa discussão pública sobre as princi-pais opções então expostas sob a forma e designaçãode ante-plano. À margem dos requisitos previstos noregime jurídico dos instrumentos de gestão territo-rial para o direito à participação e discussão pública- que então não previam (e não prevêem ainda) queocorra antes da formalização da proposta final -, acâmara municipal e os autores do plano organizaramas Jornadas do Ante-Plano, realizadas de 10 a 12 deJunho de 2004, demandando a validação e o enrique-cimento dos princípios e opções então expostos.

De facto, não só foram então validadas a análise e aspropostas, como foram enriqueci das com pistas de de-senvolvimento exploradas nas fases posteriores de ela-boração do PPSNPVRSA. Porém, e por razões óbvias,não foi possível desenvolver ideias que se debruçavamsobre temas, problemas e/ou situações para além doslimites previamente estabelecidos para a área de inter-venção do plano. Ficaram, contudo, registadas e al-gumas delas ensaiadas, ainda que implicando o ques-tionamento da operacionalidade destes instrumentosem virtude da limitação espacial a que estão sujeitose a necessidade de demonstrar, a título de exemplo, aviabilidade de o complementar com uma gestão inte-grada de sistemas urbanos que, à margem dos valorespatrimoniais em presença, não se compadecem comestudos segregados e diplomas dispersos.

O PPSNPVRSA é inevitavelmente constituído porpeças desenhadas - trinta e nove, excluindo as dodiagnóstico e caracterização do existente e as fichasindividuais de actuação no edificado - e por peçasescritas - o relatório e um elucidário, o regulamentoe o programa de execução e plano de financiamento-, constituindo um conjunto coerente, mas algo com-plexo ou talvez apenas extenso. Na realidade, a espe-cificidade urbanística e utópica do objecto patrimonialem causa justificou o desenvolvimento de aspectos dedetalhe menos comuns a instrumentos desta ordem.Se o que mais importa é a preservação e a recuperaçãoparcial/possível de uma imagem urbana absolutamen-te regular, tal só poderá ser atingido com um controloexaustivo das intervenções, designadamente em tudoquanto diz respeito ao pormenor ou às dimensões/atitudes que por regra são entregues à criatividade dequem projecta cada uma das parcelas.

Caracterização e anteriores iniciativas de estudoe salvaguarda

A primeira fase do trabalho consistiu na caracteri-zação da situação existente e dos processos que a elaconduziram. Entre os meses de Setembro e Dezem-bro de 2003, fez-se um levantamento sistematizadoem fichas por lote e plantas do espaço público, combase num levantamento aerofotogramétrico digital

fornecido pela autarquia e com o recurso deterrni-nante a fotografias aéreas de proximidade e oblíquasde cada quarteirão. Com esse material, foi possívelelaborar um conjunto de mapas e gráficos de caracte-rização que acompanhou o relatório específico desseprocesso.

Registe-se, contudo, que já durante a elaboraçãodo PPSNPVRSA ocorreram alterações relevantes noedificado, algumas devidas a compromissos e direitosadquiridos, outras entretanto autorizadas, tendo paratal contribuído a ineficácia da administração para aadopção de medidas preventivas, acção intempestiva-mente desencadeada pelos autores do plano e pelaCMVRSAno início da elaboração do plan03.

Impõe-se agora fazer notar a utopia do propósito doPPSNPVRSA. O bem cultural a salvaguardar consiste,em tese, num "plano ideal", razão pela qual o tra-balho de caracterização do existente foi orientado deforma a dar uma leitura do desvio da realidade actualem relação àquele, bem como com o objectivo de per-mitir esclarecer as lógicas - morfológicas, funcionais,sociais e económicas - que se sobrepuseram à regrado plano original. Como se verificou ao longo da ela-boração do plano, nada levava a deduzir que se esta-va perante uma situação de degradação social, razãopela qual se decidiu não fazer análises desse âmbito.Com o conhecimento da realidade existente e com acompreensão progressiva da natureza do bem cultu-ral em causa, consolidou-se a necessidade de avaliaras possibilidades de implementação de estratégias degestão e planeamento urbanístico que pudessem res-tituir a este núcleo urbano a coerência que já haviapossuído.

O bem cultural a salvaguardar é, pois, o plano origi-nal e a estratégia de salvaguarda a criar deveria assen-tar numa escala urbana e não na protecção individualdo edificado, como ficou claro com os antecedentesde salvaguarda e destruição. Com esta consciênciadecidiu-se que não seriam feitos levantamentos dosinteriores de edifícios, salvo raras excepções como,por exemplo, o edifício da Alfândega.

Os levantamentos foram então feitos a partir doespaço público e por conseguinte sem uma preocu-pação sistemática com o interior dos edifícios, opçãoigualmente justificável por pragmatismo - tempo,autorizações e meios -, mas também porque as tipo-logias originais se encontravam determinadas no pla-no original e já analisadas e publicadas em estudosanteriores.

A área urbana sujeita a estes levantamentos ex-cedeu o perímetro do plano original, procurando-secompreender a relação que a cidade estabeleceu como seu núcleo inicial e, ao invés, como é que o plano,inicialmente fechado, acabou gerando mais cidade.No fundo, o objectivo foi o de procurar entender emque contexto se insere o núcleo inicialmente planea-do, ainda que adulterado.

Este trabalho de levantamento e caracterização doexistente foi igualmente apoiado por estudos publica-dos e/ou passíveis de consulta, entre os quais avulta

2 Vila Realde Santo António,Rua General HumbertoDelgado (a e b)e Rua Teófilo Braga(c a fi, confrontode situações doedificado existentesaquando do seulevantamentoe caracterizaçãoem 2003 (fotografiasde CEARQ) e noprimeiro quartel doséculo XX (fotografiasde autor anónimo).

a dissertação de doutoramento de José Eduardo Hor-ta Correia4, e incidiu também na pesquisa e análisede anteriores experiências que visavam a salvaguardado Núcleo Pombalino de Vila Real de Santo Antóni05.

Refira-se, a este respeito, o desígnio de defesa e va-lorização do património edificado determinado peloPlano Director Municipal (PDM), que entrou em vi-gor em 19926 e cujo regulamento dispunha de regrasextraordinariamente restritivas quanto a transforma-ções do edificad07. Se, por um lado, visavam impossi-bilitar a descaracterização do edificado e congelar astransformações que não se traduzissem globalmentena sua conservação e restauro, é também verdadeque essas regras tornariam inviável a gestão da áreaurbana em causa sem um instrumento regulador es-pecífico que a elas se sobrepusesse, como aliás refereo regulamento do PDM aludindo aos planos de sal-vaguarda.

Algumas das iniciativas de salvaguarda então iden-tificadas tinham como finalidade a satisfação desseobjectivo, mas o facto de não se terem constituído eminstrumento legal criou um vazio que ampliou a im-possibilidade prática da aplicação do regulamento doPDM, em parte justificada pela inexistência de umaplanta de identificação dos edifícios pombalinos. Soba pressão de proprietários e promotores imobiliários,o efectivo, mas não formal, vazio legal e a sobreposi-ção de estudos e acções para o resolverem, acabarampor corresponder a um intenso período de descaracte-rização do objecto a salvaguardar.

Soma-se a estas circunstâncias o facto do processode classificação ter um historial confuso, longo e ain-da por encerrar, apesar do empenho do IPPAR e doIGESPARpela sua clarificação e conclusão. No entan-to, há muito que se encontra em vias de classificação,razão que justifica que todas as intervenções na áreae respectiva zona de protecção há muito careçam deparecer favorável do organismo da administração cen-tral que tutela o património cultural.

Por estes motivos, o confronto entre a situação ju-rídica dos domínios da cultura e do ordenamento doterritório em vigor, o existente - com a caracterizaçãorealizada no Outono de 2003 -, os estudos e acçõesidentificados e, ainda, os procedimentos vulgarmenteadaptados pela autarquia e pelos privados, permitiuconcluir que:

a) as acções anteriores intentadas para a sua salva-guarda caracterizaram-se pelo carácter disciplinar ouparcelar da abordagem;

b) essas propostas de acção consistiram em aborda-gens preferencialmente formais, das quais decorreramsistemas de regulamentação caracterizados pela im-posição de modelos suportados por uma regulamen-tação muito restritiva;

c) a comunidade local e nacional - à parte círculosintelectuais e académicos extraordinariamente restri-tos - nunca intuiu a verdadeira importância e valiacultural do objecto, não tendo assim sido possível vis-lumbrar as potencialidades de desenvolvimento sociale económico que a sua salvaguarda pode conter.

Justificação, definição e delimitação do objectoa salvaguardar

O objecto a salvaguardar encontra-se estudado comum elevado grau de profundidade e objectividade,quer de um ponto de vista histórico, quer segundouma perspectiva especificamente formal. Com efeito,se já antes se tinha consciência da relevância culturalda fundação de Vila Real de Santo António, depois daapresentação e defesa pública da dissertação de dou-toramento de José Eduardo Horta Correia, em 1984,essa consciência foi transformada em conhecimentoprofundo e documentado, pontualmente caprichado eposteriormente desenvolvidos.

Pouco importa documentar aqui o paralelismoexistente entre a genealogia da realidade histórica ea genealogia da construção do conhecimento sobreessa realidade. Contudo, é de realçar como Vila Realde Santo António foi o corolário metodológico de umprocesso - a consubstanciação de uma escola portu-guesa de urbanismo e engenharia militar - que ape-nas tem sido visível aos olhos do mundo na recons-trução de Lisboa após o terramoto de 1755, mas deque há inevitáveis e relevantes acções antecedentes econtemporâneas. O Iluminismo, que é frequentemen-te advogado como pedra de toque de ambas as acçõesurbanísticas, apenas deu corpo e expressão ideológicaa uma praxis já anteriormente rotinada no império.Aliás, por essa via e pela perspectiva da engenhariamilitar, para o caso de Vila Real de Santo Antónioacaba por ainda fazer mais sentido uma relação comos princípios fisiocráticos que já então floresciam noseio das vanguardas do pensamento político e econó-mico.

O paralelismo referido encontra-se, precisamente,na ordem e genealogia académica segundo a qualessas realidades foram estudadas: o caso de Lisboa,por José-Augusto França, em 1962; Vila Real deSanto António, por Horta Correia, discípulo de J. A.França, em 1984; demais realidades a partir da décadade 1990, por uma plêiade de investigadores, em boamedida discípulos de Horta Correia, entre os quaisWalter Rossa.

Segundo a prática e o método implementados poresses mestres pioneiros da nossa História do Urbanis-mo, esta disciplina, ainda que decorrente de um de-sígnio do estudo das formas, não se esgota na análiseformal dos objectos, mas, pelo contrário, deve nutriresse estudo com a explicação cabal do seu contextohistórico global. De forma simples, poder-se-á dizerque pouco interessa saber como é a forma se não sesouber o seu porquê.

Esta questão disciplinar é da maior relevância parao caso de Vila Real de Santo António, pois o urba-nismo foi um mero instrumento de um ambienteideológico e de um desígnio político de rara força esingularidade. Porém, de instrumento, o urbanismotransmutou-se em testemunho, não só dessa realida-de histórico-cultural, mas também de uma tradiçãoespecífica que transcende o âmbito local e nacional

3 Vila Real de SantoAntonio, maquetasdo plano original (a)e da situação existenteem 2003 (b),executadas peloCEARQ, sob coordde Walter Rossa .e Adelino Goncalves2004. . ,

e no rransporta para o universo mais vasto da portu-galidade. Com efeito, o urbanismo da escola portugue-sa com o qual se confunde, pela excelência, Vila Realde Santo António, era então e de há muito um dosprincipais instrumentos para a consubstanciação doImpério Português. Sem ele não teria sido possível, porexemplo, a conformação numa só nação dessa extra-ordinária realidade que é o Brasil.

No contexto mais lato da cultura portuguesa, VilaReal de Santo António terá, assim, uma relevância atécerto ponto ímpar?

Desde a formulação do desígnio em 1773, até àmorte de D. José I e o decorrente fim do consuladodo seu valido Sebastião José de Carvalho e Meio, em1777, os procedimentos adoptados para o planeamen-to e fundação de Vila Real de Santo António (de Are-nilha) constituem um conjunto articulado e coerente,raiando a utopia.

Tratou-se, em suma, de implantar numa zona re-mota e despovoada do país uma estrutura urbana queassegurasse não apenas a soberania, mas também, eessencialmente, a pesca, a conserva e a distribuiçãode peixe salgado no mercado interno. Para além daspraças de guerra fronteiriças e das bases navais tãocomuns durante a Idade Moderna - sempre funda-ções urbanas com fins militares -, Vila Real de SantoAntónio é, pelo que se sabe, a primeira fundação ur-bana criada para desempenhar uma função económi-ca específica, ou seja, terá sido o primeiro caso pen-sado e concretizado daquilo que, nos dias de hoje, sedesignaria como cidade-fábrica.

Mesmo o caso mais próximo e conhecido - LaSaline Royale d'Arc-et-Senans, projectada por ClaudeNicolas Ledoux e desenvolvido em cronologia coinci-dente - ficou aquém da metade e não deu origem auma cidade.

O requisito programático de cidade-fábrica torna-separticularmente relevante no modo como determinoua composição do plano e como se conjugou em perfei-ta harmonia com o desígnio panfletário de soberaniaface a Espanha, cuja exportação do produto para Por-tugal e usufruto daqueles bancos de pesca assim viuterminados. A cidade foi implantada frente ao rio econcebida com uma fachada de aparato exibida sobrefronteira.

Formalmente, essa fachada é um dos aspectos maisevidentes e emblemáticos da composição do planooriginal. Não é, porém, objectivamente mais relevan-te que qualquer outro - da implantação ao obelisco,passando pelas casas, lotes, ruas e, claro, o cemité-rio público -, pois a coerência interna do plano fazcom que qualquer um dos elementos que o compõemtenha valor igual ao de qualquer outro e ao todo.O plano de Reinaldo Manuel dos Santos para Vila Realde Santo António obedece, em qualquer momento eescala, a princípios de composição uniformes e a umahierarquização programática coerente. Em suma, é,também ele, uma formulação ideal e, assim, utópica.

ob a forma de interrogação cuja infirmação sur-preenderia, foram avançados três pontos que podem

sintetizar a importância cultural e patrimonial do ob-jecto: relevância ímpar nos contextos cultural globale, mais específico, do urbanismo do antigo ImpérioPortuguês, designadamente na sua fase de maturida-de iluminista e de enunciação fisiocrática; caso prin-ceps do ponto de vista da relação programa/função,no âmbito do mundo ocidental; caso raro de proximi-dade na concretização de uma utopia.

Qualquer uma das características enunciadas justi-fica, por si, o desenvolvimento de uma ampla e pro-funda acção de salvaguarda em desenvolvimento dobem em questão.

Na base de acções dirigidas à salvaguarda de umnúcleo urbanístico como Vila Real de Santo António,torna-se importante ter consciência de que o valor emquestão consiste, na sua essência, no facto de se tra-tar de um objecto cuja criação decorreu segundo umdesígnio de projecto fechado e, assim, total. A cidadefoi pensada como um ente perfeito, cujo conteúdo ur-bano e humano obedeceria ao mesmo desígnio. Ine-vitavelmente o modelo era rígido, limitado e estático.O confronto entre os limites - geral, volumétrico,funcional, etc. - do plano original e a inevitabilidadeda sua violação foram integrados como tema centraldo PPSNPVRSA.

Em boa medida, assim foi implementada a vila nocurto espaço de tempo que mediou até à sua inau-guração e nos escassos anos que se seguiram até àdeposição do marquês de Pombal. Depois foi o declí-nio, com um certo grau de abandono. A consolidaçãoda urbe dar-se-ia segundo desígnios diversos, dir-se--á que de normalidade. Foi (e é) a normalidade queconduziu a cidade ao que é hoje, mas a semente deordem e de regularidade permaneceu latente sob o de-senvolvimento real e concreto da urbe. Por tudo isso éa excepcionalidade impossível o que caracteriza o(s)valor(es) de Vila Real de Santo António. No fundo, aíreside o que é importante salvaguardar e valorizar.

A estruturação dos princípios de salvaguarda doPPSNPVRSAradica na clarificação dos registos do seuobjecto, nomeadamente dos mais relevantes, como amatriz cadastral, a escala, a volumetria, a leitura cor-recta dos itens principais, o limite, os eixos de compo-sição, o zonamento funcional, etc. Será necessário terpresente que em Vila Real de Santo António o princi-pal valor material do conjunto é o próprio conjunto enão a soma das partes. É, por tudo isso, um objectocuja valia cultural é essencialmente ideológica e ur-banística, reportada a um período em que ideologia- o Iluminismo - e urbanismo se desenvolveram eregistaram a par e passo.

O eixo estruturador deste plano consiste na convic-ção de que só uma intervenção de grande escala e am-bição poderá conduzir a um resultado compensador.

Conforme se foi apurando durante a sua elabora-ção, o bem a salvaguardar é um organismo complexo,

inevitavelmente descaracterizado e em permanentemutação. Trata-se, no entanto, de um objecto de sal-vaguarda que exige uma permanente ponderação darelação entre o plano original e a sua concretizaçãoformal, na conformação de um núcleo urbano comum estado inicial claro. A problemática da salvaguar-da não diz respeito a um espaço urbano que tenha ad-quirido a sua identidade no tempo longo de contínuastransformações e regenerações. O núcleo original deVila Real de Santo António corresponde a um facto. Éum acta e não um processo de sedimentos históricos.Aliás, a marca do tempo corresponde inevitavelmenteà degradação do plano original. Este não podia pre-ver as mutações de contextos e estruturas entretantooperadas. Compete agora iniciar uma nova mutaçãoestrutural que potencie esta herança cultural, sempôr em causa princípios claros e inequívocos de umaevolução de sinal positivo. Contrariamente ao que al-gumas doutrinas e algumas políticas levam a pensar,a salvaguarda pode e deve ser implementada comodesígnio de desenvolvimento.

A cidade é hoje um organismo mais vasto e inter-dependente, não podendo estruturar-se estratégias de

transformação autónomas para uma parte, sem se le-varem em linha de conta as restantes. Aliás, não sedeverão perder de vista as dinâmicas instaladas numperímetro mais vasto, como o turismo de massas emMonte Gordo ou, de cariz diverso, na zona de CaceIa--a-Velha ou, ainda, o(s) modelo(s) de desenvolvimen-to em curso no barrocal e ao longo do curso navegáveldo Guadiana. Contudo, o processo de salvaguarda emdesenvolvimento do Núcleo Pombalino de Vila Realde Santo Antómo só poderá resultar se assumido comuma identidade própria, integrada, mas não subsidiá-ria de qualquer outro processo local ou regional.

Este posicionamento é crucia!, pois medidas pon-tuais de contenção e até, em certos casos, de reposi-ção formal do edificado só poderão ser acolhidas pelapopulação se tiverem um retorno positivo e equili-brado nos mais diversos níveis. Caso contrário, ape-nas deferirão das tentativas anteriores no detalhe e,como elas, estarão destinadas ao fracasso. De facto,o insucesso das acções anteriores ficou a dever-se àsua parca ambição, resultante, em boa medida, dasdificuldades, da falta de estímulo e da vocação dosorganismos públicos a quem competiu a respectiva

4 Vila Realde Santo Antônio,Plano de Pormenorde Salvaguardado Núcleo Pombal/no,vista aérea da áreade intervenção comidentificação de duasdas suas zonasconstituintes- Núcleo Pombalinoe Zona Envolvente -executada peloCEARQ, sob coord.de Walter Rossae Adelino Gonçalves,2006.

implementação. Compete agora tentar o contrário, es-timulando e dotando a administração de estratégias einstrumentos adequados.O ponto de partida é simples e raia, como o plano

original, a utopia: o Núcleo Pombalino de Vila Real deSanto António é um bem cultural raro e em diversosaspectos único no âmbito mais abrangente da culturaportuguesa. A sua salvaguarda, valorização e desen-volvimento é, por isso, uma matéria de interesse alar-gado à comunidade nacional, senão mesmo lusófona.Importa desenvolver esforços tendentes a sensibilizare a ganhar para a acção uma opinião pública de âm-bito bastante mais alargado do que o da cidade ou doconcelho. Importa, por exemplo, tornar explicitamen-te conhecida a relevância que tem para o conhecimen-to mais profundo e validação como fenómeno culturalda Baixa de Lisboa, a par da sua requalificação e dacandidatura ao seu reconhecimento como Patrimónioda Humanidade.Com esse princípio geral devem interagir dois outros,

dificilmente aplicáveis em comum noutros casos:- o Núcleo Pombalino de Vila Real de Santo

António é um todo e não um conjunto urbano ou umsomatório de objectos; a sua natureza e valia patrimo-nial radicam no plano original nos seus mais diversose detalhados aspectos, da composição e desenho for-mais à engenharia/estratégia política, social, econó-mica e financeira;- a natureza utópica, a evolução, a violação do

limite, as alterações de uso, os direitos adquiridos e apropriedade impossibilitam o primeiro impulso - areposição -, o que impele a demandar no gene fun-dacional, o que nele possa servir à sua própria sobre-vivência na contemporaneidade.Estes princípios chocam com a inexistência prática

e formal de enquadramento legislativo e normativoespecífico. Mesmo na legislação mais recente, o ur-banismo não foi considerado como bem ou categoriacultural. Por outro lado, a figura de plano de porme-nor de salvaguarda em nada difere do comum planode pormenor, apesar das remissões cíclicas entre o re-gime jurídico dos instrumentos de gestão territorial e alei das bases da política e do regime de protecção e va-lorização do património cultural. Porém, tal não se re-velou comprometedor na elaboração do PPSNPVRSA,uma vez que, não no âmbito do património, mas es-sencialmente no domínio do ambiente e do ordena-mento do território, os respectivos instrumentos jurí-dicos proporcionam amplos meios de intervenção.A cidade sofreu três alterações estruturalmente

descaracterizadoras do plano original e estreitamenteinter-relacionadas, potencialmente reversíveis até umponto de legibilidade: o crescimento da retícula paraalém do rectângulo 1+ ~2 original; a perda da legibi-Iidade paisagística e de uma relação franca e directaentre a Baixa-Mar e o rio; o desenvolvimento de umeixo de vivência da praça para poente, na continuida-de da Estrada Nacional 125, e o progressivo declíniofuncional do eixo fabril original ao longo da Rua daPrincesa e da Baixa-Mar.

São aspectos que, de uma maneira geral, decorremdo facto de o acesso preferencial ter deixado de serefectuado através do rio, passando a ser feito por ter-ra. Para a resolução de cada um, foram desenvolvidaspropostas específicas que agora se apresentam.A questão crucial de como interpretar e tornar legí-

velo núcleo determinado pelo plano original, no con-texto do todo urbano a que deu origem, colocou-sedesde a necessária delimitação da área de intervençãodo PPSNPVRSA. Foi necessário determiná-lo para oinício do procedimento de elaboração do plano depormenor e confirmá-lo no momento em que se pro-pôs a adopção de medidas preventivas. Num primeiromomento pareceu importante poder controlar as in-tervenções dentro dos vulgares 50 metros medidos apartir do limite dos bens classificados ou em vias declassificação, ou seja, na respectiva Zona de Protec-ção. Assim se abrangeu uma banda de quarteirões emcada um dos extremos norte e sul e duas no extremopoente. Porém, esta faixa urbana foi pensada desdeinício de forma a permitir uma clarificação dos limitesdo bem a salvaguardar.Com a maior liberdade foram ensaiados múltiplos

cenários, três dos quais se ousou tornar públicos: uma"muralha" de arranha-céus; um ring verde; um canal.Todos atraentes, todos polémicos, todos impossíveisde concretizar, permitiram, no entanto, perspectivarsoluções com possibilidades de execução razoáveis,cujo sentido e grau de transformação desejável justi-ficou que esta porção de cidade não fosse designadacomo faixa de protecção, mas antes como limite, con-solidando a designação final como Zona Envolvente.Deixou de ter uma função acessória e passou a fa-zer parte integrante do plano. Na impossibilidade derecriar o vazio original, integrámo-la como produtoimediato da retícula do plano original.Interessa, aliás, referir que a operacionalidade do

PPSNPVRSAao nível das acções do programa de exe-cução e das actuações a impor ao edificado existenteou às novas edificações reside, em grande parte, nadiferenciação de duas áreas: a referida Zona Envol-vente e o Núcleo Pombalino, correspondente à áreado plano original.Além disso, se a implementação do PPSNPVRSA

em curso gerar uma valorização material do NúcleoPombalino, por certo que o mesmo sucederá na suaperiferia imediata. Existem, pois, diversas razões parasolidarizar o limite com o núcleo, o que é necessa-riamente extensível à sua própria valia fundiária. Foicom base nesse princípio que se desenvolveram vá-rios modelos de compensação ou, como determina alei, de perequação. O princípio adoptado é simples:determinando o direito a uma ocupação uniforme detodas as frentes de quarteirão na área do plano comtrês pisos, estabeleceu-se que nos casos em que é res-tringido esse direito no Núcleo Pombalino atribui-seaos respectivos proprietários a possibilidade da suavenda e aos promotores de operações urbanísticas naZona Envolvente a compulsividade da sua compra.Numa explicação sumária do mecanismo preconizado

de lógicas espaciais do plano original, refira-se a ne-cessidade deste tipo de intervenções para devolver alegibilidade da volumetria original de diversos quar-teirões e, especialmente, na praça, com intervençõesnos torreões ou no edifício da câmara. Em suma, nodomínio do caso a caso, são regulamentadas as in-tervenções consideradas necessárias com normasvariáveis, consoante a profundidade das actuaçõesque implicam, e identificáveis através da codificaçãousada para todos os edifícios do Núcleo PombalinolO•

Acresce à regulamentação de intervenções directas so-bre o edificado a proposta de modelos de renovaçãofuncional das construções existentes, apostando es-sencialmente no seu emparcelamento, por oposição àactual verticalização e ocupação maciça e promíscuados logradouros.O PPSNPVRSA contempla também acções concre-

tas de intervenção, direccionadas segundo diversosâmbitos e escalas, do esquema viário ao mobiliáriourbano, passando pela proposta de quase museali-zação (ou congelamento?) de conjuntos à escala darua e/ou quarteirão através dos quais seja possívelproporcionar a fruição e o vislumbre do modelo urba-nístico original.A par dessas medidas pontuais, mas de grande

relevância e difícil implementação, foram tambémestabelecidas outras para a recuperação de um eixode interacção social estruturante sobre os quarteirõesda Baixa-Mar, o qual deverá contrabalançar o que sedesenvolveu no prolongamento da Estrada Nacional125 até à praça e cujo carácter descaracterizador foi járeferido. Essa proposta assenta na valorização do pri-mitivo eixo fabril da cidade centrado na Rua da Prin-cesa, o qual se encontra maioritariamente degradado,devoluto ou terciarizado, ou seja, sem ocupação evocação habitacional. Esta proposta visa também oestabelecimento de uma articulação dinâmica entre ofulcro representativo da cidade - a praça - e a suafrente original de aparato.De modo a enquadrar estas medidas, o perímetro

definido pelos quarteirões que conformam a praça ea Rua da Princesa foi constituído como Zona de In-tervenção SensíveP', área para a qual foram fixadasregras mais apertadas para as actuações no edificado,bem como a identificação dos usos admissíveis e de-sejáveis que permitam recuperar as lógicas de funcio-namento da cidade na sua origem.De um ponto de vista funcional e simplificando a

formulação, o principal objectivo para esta área é ode incentivar a instalação de estruturas de serviços,comerciais, de restauração e hoteleiras ao longo daRua da Princesa, ou seja, nos espaços originalmenteocupados pelas salgas e armazéns. A implementaçãoda solução proposta para a devolução da frente edi-ficada da Baixa-Mar a uma relação directa com o riodeverá ainda ser complementada com o redesenho doperfil da marginal restringindo a circulação automóveljunto à margem, num nível rebaixado.Será com a implementação de acções como as su-

mariamente expostas e de outras bem mais simples

como, por exemplo, a afixação da topo nímia original(entretanto executada), que se logrará concretizar oimpulso necessário para que a comunidade e os in-vestidores possam, finalmente, acreditar na viabilida-de e na mais-valia que a salvaguarda deste bem podeproporcionar.Para tal será necessário implementar e desenvol-

ver o modelo de gestão estabelecido pelo Programade Execução e Plano de Financiamento, que entãopassava pela criação e dotação de amplos meios deum Gabinete de Gestão do PPSNPVRSA, com compe-tências previstas para o controlo e acompanhamentode intervenções urbanísticas e para o funcionamentodo Fundo de Compensação. Apesar de previsto desdeo início da elaboração do plano, só na fase final seperspectivou a sua criação, formalizando-se mesmopropostas para a sua orgânica, competências e enqua-dramento administrativo. Contudo, sempre se procu-rou sensibilizar a autarquia com propostas concretaspara a necessidade de implementar e ensaiar a gestãodo PPSNPVRSA, como, por exemplo, a constituiçãode uma bolsa de propriedades, ou mesmo o estabele-cimento de um protocolo com instituições financeirasdispostas a entrar no negócio através da criação deum fundo.Logo na proposta metodológica inicial se referiu o

ensejo de se proporcionar ao município e aos muní-cipes a opção por entre diversas estratégias de imple-mentação e desenvolvimento dos diversos projectosde acção concreta. Por isso se considerou a necessida-de do plano apresentar-se e/ou complementar-se comdiversas possibilidades de implementação e gestão,prevendo-se, inclusive, a articulação com outras espe-cialidades, nomeadamente da área da economia, daspatologias da edificação, da mobilidade, dos resíduossólidos urbanos ou doutros sistemas urbanos.De tudo isto poderão resultar decisões/ acções,

como a declaração de Área Crítica de Recuperação eReconversão Urbanística, expropriações por utilidadepública ou a utilização do direito de preferência nasalienações a título oneroso e, com a entrada em vigordeste plano, a possibilidade de enquadrar candidatu-ras a programas nacionais ou internacionais.A estes cenários somou-se, em 2004, a possibilidade

de criação de uma sociedade de reabilitação urbana,de acordo com o regime jurídico da reabilitação urba-na de zonas históricas e de áreas críticas de recupe-ração e reconversão urbanística. Não foi, no entanto,proposta a sua criação em alternativa ao Gabinete deGestão por diferentes ordens de razões. Desde logo,por tratar-se de um sistema novo e, por isso mesmo,não existirem referências das reais capacidades ope-racionais, mas também pela percepção que o Decreto--Lei n. o 104/2004 proporciona a criação de expedien-tes para agilizar intervenções no edificado e, por essavia, de "reabilitação urbana difusa". Contrariamen-te, os princípios estabelecidos ao longo da elabora-ção do PPSNPVRSA exigem uma gestão centrada nasalvaguarda e promoção do património urbanísticoenquanto vector fundamental de desenvolvimento

6 Vila Realde Santo António,Plano de Pormenorde Salvaguardado Núcleo Pombalino,planta de implantação,executada peloCEARQ, sob coord.de Wa~er Rossae Adelino Gonçalves,2008.

EDIFiCIOS COMCARACTERíSTICASPOMBALINASPl Edifícios cujo exterior

respeita globalmenteas caracteristicaspombalinas

P2 Edifícios cujo exteriorrespeita parcialmenteas caracteristicaspombalinas

P3 Edifícios cujo exteriorrespeita parcialmenteas caracteristicaspombalinas comvolumetria adulterada•OUTROS EDIFíCIOS

El Edificios comelevada qualidadearquitectónica

E2 Edíficios comqualidadearquitectónica

E3 Edifícios comrelativa Qualidadearquitectónica comelementos oucaracterísticas queperturbam a suaunidade e coerênciaformal

E4 Edifícios sem qualidadearquitectônicarelevante, mas comvolumetria integrada

E5 Edificios sem qualidadearquitectônicarelevante e comvolumetria dissonante

E6 Edifícios sem qualidadearquitectônicarelevante e volumetriafortemente dissonante

11 AI_Área aberta I

• A2-.Àrea aberta 2

11 A3_Área aberta 3

A4_Área aberta 4

A5_Área aberta 5

111 ~~o~~n~~:n~s

urbano. Consolidou-se, pois, a consciência de queé necessário implementar uma "reabilitação urbanaorientada" por um instrumento de gestão territorialespecífico, pela sua articulação com os demais exis-tentes e pela continuação de acções de I&D, consul-tadoria, formação e divulgação promovidas durante aelaboração do PPSNPVRSA.

o tempo curto da concepção, divulgação e publi-cação das propostas estruturantes do PPSNPVRSAnão teve tradução no decurso dos procedimentos deconcertação, aprovação e publicação em Diário daRepública. No total, decorreram cinco anos desde oinício da elaboração e a sua entrada em vigor. Porrazões metodológicas já referidas e pela necessidadede assegurar a manutenção das condições do existen-te inventariadas com o trabalho de levantamento ecaracterização, os procedimentos necessários para aadopção de medidas preventivas foram iniciados logoem 2003 e a respectiva publicação e início da suavigência só ocorreu dois anos depois. Apesar destadelonga, o acompanhamento da avaliação de reque-rimentos de licenciamento de operações urbanísticasna área de intervenção foi acordado e teve logo início,proporcionando o conhecimento de procedimentos naarticulação entre o Instituto Português do PatrimónioArquitectónico e Arqueológico (IPPAR) e a CâmaraMunicipal de Vila Real de Santo António, sobretudoos referentes aos critérios usados nas respectivas apre-ciações.

A participação numa comissão constituída para esteefeito permitiu, por exemplo, divulgar e fixar preceitosdecorrentes das propostas do PPSNPVRSA, chegandomesmo a anular-se algumas recomendações recorren-tes, tais como a recriação de algumas característicasdas construções pombalinas. O acompanhamento dosprocessos de licenciamento de operações urbanísticasmanteve-se depois da caducidade das medidas pre-ventivas, em 2007, e foi da maior importância aquan-do da criação e início de actividade da sociedade dereabilitação urbana (SRU) fundada nesse mesmo ano,ao permitir que o corpo administrativo e de técnicosse inteirasse do PPSNPVRSA com apoio directo dosseus autores.

Aos procedimentos morosos para a entrada em vi-gor do plano acrescem os ciclos de executivos autár-quicos que, nas eleições de 2005, se traduziram numamudança partidária em Vila Real de Santo António.Com esta mudança estabeleceu-se um ímpeto até en-tão desconhecido para finalizar e publicar o plano edevido, em parte, à percepção pelo novo executivo daimportância que a sua implementação poderia adqui-rir enquanto eixo de desenvolvimento municipal.

Além da prossecução dos procedimentos neces-sáríos para finalizar o processo, foram concretiza-das algumas propostas e medidas que compõem oPP _fPVRSA, com diferentes expressões e graus de

visibilidade. Desde logo, a criação de um organismocom a competência para gerir a sua implementação,tendo a câmara municipal optado pela constituiçãoda referida SRU. Embora o plano antevisse que o Ga-binete de Gestão pudesse alcançar uma amplitude demeios equiparável à destes organismos, a importânciada sua criação residia no processo da sua afirmação,faseado e assente no respeito pelas hierarquias e prio-ridades de intervenção estabelecidas no plano, e/ounoutras que observem os princípios básicos da cla-rificação do Núcleo Pombalino e da sua integraçãofuncional e formal na cidade que o envolve.

Como se sabe, o desígnio destes organismos não é avalorização do património cultural imóvel per se e asintervenções reabilitadoras do edificado que promo-vem podem ser perpetradas sem uma programaçãocom escala e complexidade urbana discutidas publi-camente ou sem assentar na vigência de um instru-mento de gestão territorial específico. Ainda assim,o caso da VRSA-SRUé um dos poucos, senão mesmoo único, em que uma SRU desenvolve as suas activi-dades com um plano de pormenor (de salvaguarda,neste caso) vigente para a sua área de intervenção.

Não sendo este o lugar ou a ocasião para fazer umaapreciação de acções previstas no PPSNPVRSA entre-tanto realizadas por este organismo ou pela própriacâmara municipal, é possível enumerar algumas,diferenciando-as entre as que se inscrevem no domí-nio do planeamento ou realização de intervenções noespaço público e no edificado, e as que se referem àcriação de extensões e complementos regulamentaresdo PPSNPVRSA.

Desde logo, com maior visibilidade e com um im-pacto urbanístico que ainda não se pode apurar emtoda a sua plenitude, a reabilitação da Casa da Câma-ra. Além do evidente propósito de dignificação dasinstalações da câmara municipal, esta intervençãopermitiu reforçar e tornar claro o carácter unitário quea praça tinha originalmente e, face às hipóteses de des-localização ponderadas pelos autarcas, a importânciade manter este órgão na sua localização original. Emconjunto com o programado restauro do edifício daa!1tigaAlfândega - com projecto já aprovado - a in-tervenção nestes dois quarteirões traduzir-se-á numareferência de respeito e concretização de princípios doPPSNPVRSA, nomeadamente, por implicar a priorida-de de intervenções na Zona de Intervenção Sensível,pelo impulso à revitalização da Rua da Princesa e à va-lorização da Baixa-Mar e pelo contributo à clarificaçãoda organização funcional do plano pombalino e dosprincípios de composição arquitectónica originais.

Com este tipo de contributos, mas com concretiza-ções incomparáveis, acrescem outras duas interven-ções na praça que implicaram a aquisição e a reabi-litação de edifícios para a instalação da VRSA-SRU,junto à igreja, e da VRSA, Sociedade de Gestão Urba-na na Rua José Barão, incluindo o torreão nordesteda praça.

Refira-se ainda neste domínio de actividades a pro-gramação de uma amplitude maior de intervenções no

edificado, com a realização de vistorias e elaboraçãode documentos estratégicos em curso e o lançamen-to de programas municipais de apoio à reabilitaçãoarquitectónica, incidindo em alguns dos eixos que oPPSNPVRSA estabelece como sendo de intervençãoprioritária.

A estas intervenções somam-se as realizadas noespaço público, tais como a requalificação do LargoAntónio Aleixo, a remoção de sombreadores na praçae em alguns troços de ruas adjacentes, a remodelaçãode iluminação pública e a remodelação de sinal ética,da toponímia e de números de polícia.

Noutro domínio de actividades e com expressãopública menor, ou mesmo inexistente, foram realiza-dos estudos de mobilidade e tráfego para toda a áreacentral de Vila Real de Santo António, excedendo aárea de intervenção do PPSNPVRSA. No decurso des-tes trabalhos, os estudos geotécnicos revelaram que aconstrução do parque de estacionamento subterrâneona Avenida da República era inviáve1.

Apesar da identificação das parcas iniciativas de-correntes do PPSNPVRSA depender da respectivadivulgação, parece haver uma inclinação para darprioridade a intervenções directas no espaço públicoe no edificado do Núcleo Pombalino, com sistemade apoios, em detrimento da implementação de trêsacções de fundo para o desenvolvimento do plano:o regulamento do espaço público, o manual de rea-bilitação - cujo compromisso para a sua produçãodecorreu da concertação com o IPPARe foi acometidaao Gabinete de Gestão - e o Fundo de Compensação,cuja regulamentação deveria ter ocorrido até três me-ses após a entrada em vigor do PPSNPVRSA e não sevislumbra a sua concretização.

Por tendência ou por hábitos instalados, parece sereste o ritmo e a cadência das coisas. Neste caso, secun-darizando a implementação de medidas estruturantese intrínsecas, face ao imediato e aparente benefíciode reabilitações arquitectónicas. Contudo, mas já nãocom uma intensidade tão vincada como antes, estepatrimónio urbanístico continua a ser degradado.

Adelino Gonçalves

Arquitecto, docente do Departamentode Arquitectura da Faculdade de Ciênciase Tecnologia da Universidade de Coimbraimagens: 1, 2a, 2c, 2e, 3 a 7: CEARQ,lFacu!dadede CiênCias e Tecnologia da Universidadede Coimbra; 2b, 2d e 2f: LÚCIO Alvos.

1 Com a sua publicação com o Aviso 11. o 29326/2008, Diário da República, 11Dez.2008, TI série, n." 239, pp. 48981-49851.

Da equipa do CEARQ fizeram parte seis alunos finalistas da licenciatura emArquitectura, cinco destes elaboraram provas finais de licenciatura em tornodesta temática que foram apresentadas ao Departamento de Arquitectura daFaculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra: Susana S. dePires C. A. DUARTE - Como Re( construir) a Câmara Municipal de Vila Real;!e Sc.-.:n ,-\n:ónio! Coimbra: s.n .. 2005; Nélia A. Gaspar FILIPE - (Re)habitar

==--::;::ox rlr....x!inD: Vila Real de Santo António. Coimbra: s.n .. 2005; Ana So-Ü 7 -- - :'--:benl'een]: Tem'rón'Ds de [Re]esrruturação. Coimbra: s.n.,

],L .:.i;:' a P::REIRA - _\1anual de Reahilitm;ão: Emendímenw,

Sensibilização e Divulgação das Inreroenções no Centro Histórico. Coimbra: s.n.,2005; Margarida I. Barreto RELVÃO - (Re)desenhar a Cidade Desenhada: urna

Leitura para a Salvaguarda do Património Urbanístico. Coimbra: s.n., 2005.3 Apesar de se ter encetado ainda em Setembro de 2003 a tramitação necessária

para a aprovação e publicação de medidas preventivas, estas só viriam a serpublicadas com a Resolução do Conselho de MinislTOS n." 168/2005, Diário da

República, 24 Ou!. 2005, I Série-B, n." 204 , pp. 6163-6167.

4 José Eduardo Horta CORREIA- Vila Real de Santo António: Urbanismo e Poderna Política Pombalina. Porto: FAUP,1998.

5 Encetadas em 1968 com um trabalho de caracterização do edificado com re-comendações de "terapêuticas", realizado no âmbito do Estudo de Prospecçãoe Defesa da Paisagem Urbana do Algarve, coordenado pelo arquitecto CabeçaPadrão. Este trabalho surge referido num edital de 9 de Janeiro de 1979 daCâmara Municipal de Vila Real de Santo António (CMVRSA), no âmbito de umadeterminação da classificação das "construções pombalinas" como imóveis deinteresse público, sob proposta da Comissão Organizadora do Instituto da Sal-vaguarda do Património Cultural. Outros trabalhos a referir neste âmbito, são:João Manuel Horta (coord.), Bases da Interoenção de Salvaguarda e ReabilitaçãoPatrimonial da Zona Histórica Pombalina de Vila Real de Santo António, 1992,Arquivo da CMVRSA; Rui Figueiras (coord.), Medidas Preventivas e Plano deSalvaguarda e Valorização do Centro Histórico de Vila Real de Santo António,1999, Arquivo da CMVRSA; Cândido dos Reis (coord.), Análise e Caracterizaçáo

dos Edifícios da Zona Histórica Pornbalina (J 999-2000), Arquivo da CMVRSA.

6 Com ratificação publicada pela Portaria n. o 347/92, Diário da República, 16 Abr.1992, I Série-S, 0.° 90, p. 1816. O regulamento e a planta foram publicados porDeclaração no Díário da República, 14 lul. 1992,11 Série, n." 160, pp. 6496-(12)-

-6496-(24).

7 Sobretudo as normas dos artigos 57.0 a 59.0 que impediam, grosso modo,quaisquer tipo de intervenções que não fossem as que visavam a conservaçãoe o restauro.

S Designadamente com João Manuel Gomes HORTA~ Vila Real de Santo Antó~nio, FOIma Limite no Urbanismo Histórico Português. Faro: s.n., 2006, disserta-ção de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociaisda Universidade do Algarve.

9 Com excepção para os lotes com frente igualou inferior a seis metros. Note--se que além da obrigatoriedade de cumprir uma volumetria de quatro pisos,o regulamento impede igualmente a realização do último piso recuado, situaçãorecorrente nesta área e explicada pelo cumprimento do Regime Geral de Edifica-ções Urbanas (RGEU). Com O PPSNPVRSA salvaguardou-se a exequibilidade do

último piso completo, constituindo-se como um acréscimo ao direito de cons-trução antes existente.

10 Para os edifícios com características pombalinas foram usados os códigos P1, P2

e P3 para identificar o grau de preservação ou de adulteração de característicasdas construções originais e os níveis de actuação a recomendar ou a impor emcada caso. Para os restantes edifícios foram usados os códigos En, com o índicen a variar de 1 a 6, identificando os edifícios sujeitos a medidas de protecção, osedifícios a sujeitar a intervenções diferenciadas para a sua integração no núcleopombalino e os níveis de actuação recomendados.

II A Zona de Intervenção Sensível dispõe igualmente de preceitos específicos noPrograma de Execução e Plano de Financiamento, prevendo a possibilidadede isenção ou redução de taxas urbanísticas e a excepcionalidade de poderconstituir-se como uma unidade de execução sujeita ao sistema de coopera-ção no núcleo pombalino, designadamente para a candidatura a programas definanciamento.

7 Vila Realde Santo António,Rua da Princesa,casa amarela,fotografia de CEARQ,2003.