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Vida Nova nº 4 Dezembro de 2012 Página 1
Nº 4 Dezembro de 2012
Não há crise nos Açores
As notícias que têm circulado, nos Açores, nos últimos tempos são deveras animadoras para os
seus habitantes. Com efeito, o novo governo regional, resultante do ato eleitoral que ocorreu no
passado mês de Outubro, está a desenvolver um trabalho exemplar que fará com que os Açores
fiquem imunes à crise que afeta todos os portugueses.
A Universidade dos Açores está a atravessar um dos períodos melhores da sua vida e a ameaça
de fechar em Fevereiro por falta de verbas não passa de uma forma de pressão para que o
governo da República desembolse mais alguns euros. Não havendo problemas ambientais nos
Açores, os estudantes de engenharia do ambiente passaram a estudar as touradas.
Os hospitais dos Açores não sentem qualquer dificuldade no seu funcionamento e as dívidas que
possuem aos fornecedores são pura invenção dos contabilistas.
A Associação de Municípios da Ilha de São Miguel está apostada na instalação de uma
incineradora para queimar tudo o que for lixo, contribuindo assim para a criação de muitos
empregos, para a produção de energia verde e para o enriquecimento de uns pobres capitalistas
que são os mesmos do costume. A população de São Miguel está radiante pois vai ver a sua taxa
de resíduos aumentada para que o empreendimento seja rentável para os seus algozes.
Na ilha Terceira os políticos atacam-se uns aos outros por causa da quase garantida saída de
grande parte dos militares americanos da Base Militar que como sabemos só era usada para
missões de paz, sobretudo no Médio Oriente. Ao contrário do que parece, apesar do
despedimento de muitos trabalhadores açorianos não haverá grandes problemas para a ilha pois
a sua grande riqueza é a tauromaquia que contribui significativamente para o PIB do
arquipélago, para além de ser uma mina para meia dúzia de famílias da nobreza local.
José Libertário
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por Maria Lacerda de Moura
A palavra "feminismo", de significação elástica, deturpada, corrompida, mal
interpretada, já não diz nada das reivindicações feministas. Resvalou para o
ridículo, numa concepção vaga, adaptada incondicionalmente a tudo quanto se
refere à mulher.Em qualquer gazela, a cada passo, vemos a expressão "vitórias do
feminismo" – referente, às vezes, a uma simples questão de modas! Ocupar uma
posição de destaque em qualquer repartição pública, cortar os cabelos "à la
garçonne", viajar só, estudar em academias, publ icar um livro de versos, ser
"diseuse", divorciar-se três ou quatro vezes, pelas colunas do "Para Todos",
atravessar a nado o Canal da Mancha, ser campeã de qualquer esporte. – tudo isso
consiste "nas vitórias do feminismo", vitórias que nada significam pe rante o
problema da emancipação integral da mulher.
A verdadeira emancipação é posta de lado
É uma tática bem manejada. Enquanto as mulheres se contentam com essas
"vitórias", a sua emancipação é posta de lado ou nem chega a ser descoberta pelos
tais reivindicadores de direitos adquiridos... E essas reivindicações não se podem
limitar a ação caridosa ou a um simples direito de voto que não vem, de modo
algum, solucionar a questão da felicidade humana e se restringirá a um número
limitadíssimo de mulheres. Aliás, quando os homens sérios retiram-se, num
ostracismo voluntário, dessa política de latroc ínios oficializados, desse bacanal
parasitário, desse despudor em se tratando dos negócios públicos; quando se
decreta, positivamente a falência, o descrédito do parlamentarismo em toda uma
sociedade em plena decomposição, – é agora que a mulher acorda e sai correndo
atrás do voto, coisa que deveria ser reivindicado a cem ou duzentos anos atrás... o
supõe, ingenuamente, estar cuidando dos interesses femininos ou dos interesses
sociais.
A solução para os problemas humanos não é a caridade
E quando chegamos à conclusão de que a caridade humilha, deprecia, desviriliza;
desfibra a quem dá e a quem recebe; quando sentimos que a solução para os
problemas humanos não é a caridade que sufoca todas as fibras interiores de que
tira, às faces escancaradas da miséria, as sobras, o supérfluo; a caridade que
estrangula todas as energias latentes daquele que estende as mãos para receber,
Feminismo? Caridade?
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servilmente, o que sobra das orgias e da exploração dos que vivem à custa do
trabalho alheio; quando por si mesma, a moral de que se ali menta
a sociedade vigente decreta a falência, essa moral odiosa, de classes de ricos
piedosos e de pobres a receberem esmolas, de exploradores caridosos e explorados
calculadamente vigiados pela força armada, mantenedora da passividade exterior e
da revolta latente dos ilótas modernos; essa moral farisaica que, para os ricos
aconselha a caridade, a distribuição ostentosa do supérfluo adquirido à custa do
suor proletário, e para os pobres recomenda a resignação passiva, o receber
humildemente as sobras que espirram, por acaso, das mesas dos ricos e olhar ainda
agradecidos, para essas mãos orgulhosas que se divertem nas caridades
exibicionistas dos salões elegantes, tirando partido das misérias sociais para o seu
prazer; quando novas fórmulas de uma moral mais pura se nos apresentam para
outra organização social de mais eqüidade, – ainda a mulher está convencida de
que a sua mais alta missão na vida é a caridade e só conhece a questão social
através da caridade, mas, dessa caridade de chás, tangos e requebros n os salões...
Gastam somas fabulosas com a construção de igrejas e exploram torpemente
os criados
Essa mesma mulher que reparte altas somas para a construção de igrejas ou
"creches" religiosas, explora, torpemente, os criados, a cozinheira, a lavadeira, a
costureirinha contratada para trabalhar em sua casa, horas e horas, sob o olhar
impertinente da mundana ociosa, da criatura virtuosíssima que, pelas colunas da
imprensa, espalma as mãos dadivosas consolando os infelizes, os mal instalados
na vida... Dá por um chapéu, por uma pluma, um brinco, um vestido de baile, um
leque, uma sombrinha, uma jóia, por qualquer fantasia, somas fabulosas,
inacreditáveis, entretanto, exerce pressão vergonhosa sobre a sua bordadeira que
lhe cobra uma miséria por qualquer trabalho feito com sacrifício inaudito, em
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horas triturantes de agonia, à noite depois de exausta do trabalho diário do atelier
– no qual também já lhe tiraram gotas de sangue, na amargura da exploração pelo
salário quotidiano.
Chora ante o ecrã do cinema e fica impassível ante as injustiças sociais
Sentimentalismo de epiderme que faz chorar ante o écran do cinema e, todavia,
soluça em torno da elegância caridosa, toda a miséria ciclópica da luta pela vida e
ela não vê, não quer ver o sofrimento milenar da mulhe r proletária ,
calculadamente cultivada a sua ignorância através do pão duro de cada dia, no
trabalho exaustivo da fábrica, das oficinas e no lidar doméstico – servindo à
ociosidade farta da alta sociedade ou dos bordéis do vício elegante.A piedade das
senhoras caridosas não vê, não sabe da luta dantesca de uma pobre moça do povo
que resvala na miséria mais negra se não cai nos braços escancarados da
prostituição "necessária" nesta sociedade bestial e moraliteísta. A atividade da
mulher elegante só sabe votar-se a essa caridade exibicionista dos salões
iluminados, onde ostenta a sua beleza e sentimentos problemáticos de uma
bondade estudada no espelho... A mulher é vaidosa e comodista e os psicólogos
femininos preocupados em agradar, em fazer psicologia de " boudoir" – não
perscrutam, não querem ver a falsidade dos altos sentimentos caridosos do
mundanismo elegante. Prefere continuar a sofrer as conseqüências do seu
servilismo, da sua submissão a desenvolver o caráter, as faculdades de iniciativa
para lutar contando com as suas próprias energias. Procura conservar o seu
parasitismo dourado, indiferente aos males sociais: é odalisca e cortesã, mas, vai à
Igreja, em horas chics, rezar pelo próximo e, dançando um passo moderno, exerce
a caridade. Como é odiosa e perversa essa caridade!
Civilização de protetores e protegidos
E a mulher duplamente escravizada não compreendeu que é necessário sim,
alevantar o ânimo abatido do que luta, do que pensa sucumbir aos embates da
injustiça social, dar-lhe meios de subsistência pelo próprio esforço e fazer dele
um indivíduo capaz de ver a casta civilização de fartos e famintos, de ociosos
parasitas vivendo à custa do sacrifício alheio, civilização de protetores e
protegidos, de lobos e cordeiros, em que os mais altos sentimento s se confundem
com as mais torpes baixezas, de chibata azorrague, de avariose e cafetismo, de
excesso de ociosidade e excesso de miséria. E tudo, inclusive, principalmente a
literatura, essa literatura nefasta, de elogios, de louvores incondicionais, liter atura
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odiosa endeusando a fêmea, literatura à Júlio Dantas tudo contribui para o cultivo
sistemático da pieguice, de chiliques e requebros, do falso sentimento, do
sentimentalismo para o público. E o raciocínio, por si obscurecido através da
escravidão feminina secular, da tutela dos dogmas e da moda, dos prejuízos e da
rotina, fecha-se sob a chuva de galanteios, de frases feitas. E a mulher esquece -se
de que tem mais alguma coisa além da sua carne, do seus contornos perturbadores.
Deixa de ser mulher para ser apenas o animal do homem. A grande miséria, a
enorme dor das injustiças sociais vive ao seu lado e a mulher desvia o olhar para
poder divertir-se, gozar das regalias e do seu comodismo de "bibelot", de lulu
número 1, prisioneira nas gaiolas douradas das avenidas elegantes, sempre a
mesma escrava, odalisca e cortesã.
Adormecida dentro dos trapos
A alma feminina jaz adormecida dentro dos trapos, das jóias, do império da moda,
– a eterna sultana desse harém de civilizados que ainda compram, vendem,
exploram, seduzem, abandonam por imprestável a mesma mulher, cuja posse
exclusiva consiste a sua preocupação única. É deprimente a situação da mulher
superior, neste meio de cafetismo social, em que os homens não sabem olhar uma
mulher senão desrespeitando-a.
E para quê enumerar essas associações atrasadas do feminismo de caridades?
Sem dúvida é doloroso perscrutar as misérias dos famintos, da nudez, dos
cortiços.
Mas, não se trata de esverrumar a causa da chaga sangrenta da miséria, mesmo
do coração da opulência, ao lado da ociosidade que se diverte cinicamente, depois
de atirar uns níqueis para os esfaimados, níqueis roubados ao trabalho árduo dos
explorados do salário.
Divertimentos à custa da dor
Há apenas a preocupação de se jogar migalha na boca escancarada da fome, talvez
para que nos deixem em paz... E, divertir -se a custa da dor, da amargura, da fome,
é insultar o sofrimento.
E a miséria está de tal modo humilhada, deprimida, que nem fo rças tem para
devolver, orgulhosamente, os restos que se lhe atiram através dos esplendores dos
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salões elegantes, por entre as pontas dos dedos enluvados para que não volte um
salpico das calçadas a enlamear-lhes as mãos dadivosas. Não houvesse ociosos
fartos, degenerados pelo tédio e pelos vícios elegantes, não houvesse a exploração
do homem pelo homem, não houvesse a exploração da mulher pelo homem, e certo
não seria "necessária" a prostituição, essa perversidade inominável em nome da
virtude.
A caridade é "a janela da consciência", aberta para a exploração diurna e noturna
do proletariado nas oficinas, nas fábricas e do camponês, do colono na
agricultura. Para que a elegância brilhe, para que triunfe o mundanismo, para que
os "cabarets" e os "cassinos chics" regorgitem de ociosos – é preciso que o
colono, campônio e o operário de ambos os sexos seja triturado, dobrado,
esmagado nas oficinas, na lavoura, nas fábricas, dia após dia, sem tréguas, sem
nenhum direito a não ser o direito ao trabalho obrigatório.
As várias superstições
É a escravidão moderna do salário para matar a fome e cobrir a nudez dos filhos,
também cedo destinados à exploração torpe e miserável do parasitismo social,
incansável na sua faina, de acumular bens para gozar à custa do suor exaus tivo
das máquinas de trabalho, dos animais de tiro, do proletariado mundial. Devemos
à superstição governamental, à superstição religiosa sectarista, à superstição
patriótica, à superstição nacionalista, à superstição do progresso material, à
ganância de uns e ao servilismo da maioria – o predomínio desta civilização de
duas classes sociais: a dos ricos e a dos pobres.
A humanidade custará a compreender que a vida social poderia desdobrar -se num
ambiente de solidariedade, de auxílio mútuo, sem amos nem escr avos, sem
protetores e protegidos, sem representações parlamentares em mediocracias
diplomadas...
Religiões - instrumentos de explorações dos incautos
Levará ainda tantos séculos a perceber que as religiões organizadas, política e
economicamente, não são senão instrumentos de exploração dos ignorantes, dos
desfibrados, dos ambiciosos, dos moluscos, dos que carecem de espinha dorsal...
Ninguém cresce na sua individualidade através da consciência ou, talvez, da
inconsciência de outrém. Não é demais repetir que a atual organização social
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baseia-se na ignorância de uns, no servilismo da maioria, na astúcia de outros, no
comodismo de muitos, na exploração dos espertos, na felicidade dos "proxenetas"
e "souteneur ", desse cafetismo, desse regime de concorrência, e m que se compra
e vende tudo, inclusive o Amor e a Consciência – as mais altas manifestações do
que é nobre e belo e grande, do que tumultua na vibração interior da nossa vida
profunda.
Representação parlamentar: circo de cavalhinhos
Sentimos que as mentalidades de "elite" ultrapassaram de há muito a moral atual
que tenta acorrentar ainda as aspirações humanas libertárias. Tudo faliu: a igreja,
o parlamentarismo, a academia, a instituição legal do casamento, o ensino
universitário, o patriotismo. Pois bem: é agora que a mulher vem reivindicar o
direito do voto – quando a representação parlamentar é circo de cavalinhos, o
sufrágio universal uma mentira. A mulher, essa energia latente formidável que
vem despertando para a atividade social, já foi enlaçada pelo passado reacionário
– para dispersar todas as suas forças na corrente das "verdades mortas".
Feminismo de votos e feminismo de caridades
É a razão por que não posso aceitar nem o feminismo de votos e muito menos o
feminismo de caridades. E enquanto isso a mulher se esquece de reivindicar o
direito de ser dona de seu próprio corpo, o direito da posse de si mesma. Sou
"indesejável", estou com os individualistas livres, os que sonham mais alto, uma
sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveit em todas as energias
humanas, onde se possa cantar um hino à alegria de viver na expansão de todas as
forças interiores, num sentido mais alto – para uma limitação cada vez mais ampla
da sociedade sobre o indivíduo. Que representa uma "creche", um hospital ou o
direito de voto ante a vastidão dos nossos sonhos de redenção humana pela própria
humanidade? É subir mais alto o coração e o cérebro, ver horizontes mais
dilatados -além do sectarismo religioso ou da superstição social governamental.
Isso é feminismo? Dêem o nome que quiserem, pouco importa: o que esse
feminismo (não me agrada a expressão tão estreita para ideal tão amplo)
reivindica é o "Direito Humano", o Direito Individual, acima de qualquer outro
direito, além dos direitos limitados ao parlamenta rismo, além dos direitos de
classe.
Fonte: Revista Utopia # 9
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De 1974 até 1990 o Anarquismo em Portugal resumiu-se a uma série de publicações e
grémios, frequentemente insulados e mesmo rivais uns dos outros. Por José Nuno
Matos
Em 1986, aquando da adesão à então Comunidade Económica Europeia, Portugal era um país
de contrastes, em que os primeiros sinais de desenvolvimento de uma sociedade de consumo se
faziam acompanhar por situações de extrema pobreza. À semelhança do que se verificou com os
grupos de oposição esquerdistas, o Anarquismo neste período – mergulhado numa realidade
complexa que não correspondia de todo aos paradigmas que defendia – debateu-se pela
sobrevivência. O objectivo do nosso artigo prende-se com uma análise do caminho percorrido
pelas ideias anarquistas durante o período histórico que vai desde a segunda metade da década
de 70 até aos inícios dos anos 90, numa tentativa de compreender até que ponto é que o
Anarquismo em Portugal se repetiu a si próprio, afundando-se num pântano em que já se
encontrava afundado.
«Em qualquer das latitudes interpretativas e explicativas que nos possamos situar, de facto
toda a década de 80 do século XX demonstrou, de uma forma inequívoca, que o Anarquismo
ortodoxo, nas suas vertentes anarco-comunista, comunista libertária e anarco-sindicalista,
estava desactualizado e em termos teóricos e práticos revela-se mais uma crença e uma
“religião” de que uma utopia consequente» [1].
Em finais da década de setenta, Portugal atravessava uma profunda crise económico-social. A
via iniciada com o golpe de Novembro de 75, simbolizada pela mítica expressão de Mário
Soares “colocar o socialismo na gaveta”, culminou com o estabelecimento de um acordo entre o
Anarquismo em Portugal: 1974-1990,
uma breve abordagem
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governo e o Fundo Monetário Internacional (FMI), celebrizado pela igualmente mítica
expressão “apertar o cinto”.
De 1977 a 1986, os vários governos [2] adoptaram uma política de contenção salarial, num
primeiro momento através da fixação de tectos salariais e mais tarde indirectamente, via
indexação dos aumentos salariais à taxa de inflação. Esta iniciativa, consubstanciada pela
desvalorização do escudo e por outras medidas de austeridade social, originou a diminuição dos
rendimentos reais dos trabalhadores, o aumento do desemprego, dos salários em atraso e a
progressiva precarização laboral (em 1985, eram já 500 000 os contratados a prazo). Como
refere Marinús Pires de Lima
«A crise agrava o dualismo, a segmentação do mercado de trabalho e as desigualdades
económico-sociais. Para ultrapassar a rigidez das normas institucionais que limitam a
mobilidade da mão-de-obra, o patronato utiliza políticas de gestão diferenciadas dos
trabalhadores: empregos precários, subempreitadas, cedência de mão-de-obra, contratos a
prazo, individualização. A economia subterrânea desenvolve-se e atinge 20% do PIB, de
acordo com cálculos aproximados» [3].
Portugal era então um país de contrastes, em que os primeiros sinais de desenvolvimento de
uma sociedade de consumo se faziam acompanhar por situações de extrema pobreza, e mesmo
de fome, nomeadamente nos antigos pólos industriais, destronados pela pós-industrialização da
economia.
À semelhança do que se verificou com os demais grupos de oposição esquerdistas, o
Anarquismo no período pós-25 de Abril debateu-se pela sobrevivência. De acordo com João
Freire, desde meados da década de 50 que o Anarquismo havia praticamente desaparecido da
cena política em Portugal, restando apenas pequenos grupos de militantes que «dispersaram os
seus esforços por várias iniciativas oposicionistas, mas não conseguiram manter a ideia de um
movimento ou organização que poderia ressurgir publicamente tão depressa as condições
políticas e repressivas o permitissem» [4].
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De facto, quando em 1974 os condicionalismos políticos se revelaram mais favoráveis ao
renascimento de um movimento social anarquista – à semelhança do que em tempos tinha sido
realidade – as interrogações sobre o que fazer sobrepunham-se às respostas:
«Ao contrário dos restantes agrupamentos de esquerda, eles [os anarquistas] não só não
tinham um programa minimamente definido de actuação em tais circunstâncias, como – dado
de base para quem queira compreender o meio militante libertário – tinham ideias bastante
diferenciadas sobre o que seria possível e desejável fazer» [5].
Nos anos de 1975-76, após o logro que se revelou ser o Movimento Libertário Português,
surgem duas organizações: a Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP) e Aliança
Libertária e Anarquista-Sindicalista (ALAS).
A primeira era uma federação de diversos grupos libertários portugueses, de cariz local, tendo
chegado a agrupar cerca de uma centena de pessoas. O seu principal objectivo era a criação de
ligações entre as várias tendências anarquistas, numa tentativa de quebrar o isolamento e
fomentar o apoio mútuo entre as várias associações e entre os diversos Anarquismos. Entre as
suas actividades várias, podemos referir a edição de textos, o debate e conversa em torno de
assuntos outros que não apenas os clássicos temas do Estado e do Capital – como a ecologia, a
luta antinuclear ou o feminismo –, ou as datas históricas do Anarquismo (1 de Maio, Julho de
1936, 18 de Janeiro de 1934). Organizava ainda alguns actos públicos, como o comício
realizado no salão da “Voz do Operário” em Janeiro de 1977. De destacar, a importância
concedida aos contactos com grupos e associações anarquistas de outros países, nomeadamente
França e Espanha, por razões geográficas, históricas e políticas [6].
A ALAS, formada em 1976, partia de uma abordagem anarco-sindicalista centrada sobretudo na
questão do trabalho e não em outros fenómenos sociais cada vez mais centrais.
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O que aparentava ser o ressurgimento do movimento anarquista em Portugal foi igualmente
expresso na publicação de vários jornais e revistas, como a A Batalha (ressuscitada após
décadas de censura), A Ideia, A Voz Anarquista, a Acção Directa ou A Merda [7], bem como,
mais tarde, no surgimento de espaços, como os Ateneus Libertários de Leiria (1978), do Porto e
de Coimbra (1979).
Estas organizações pautaram-se, contudo, por uma vida breve. A FARP – politicamente mais
relevante devido ao seu número de aficionados e ao cariz das suas propostas – perdeu o seu
dinamismo inicial, verificando-se, até à sua extinção em 1979, a saída de vários grupos.
Reflectir sobre as causas desta crise assume-se como uma tarefa um pouco difícil, uma vez que
a bibliografia existente não só é escassa, como é da autoria de ex-militantes que protagonizaram
estes acontecimentos e que, como tal, estão longe de ter uma visão minimamente imparcial
sobre o assunto; ainda assim, analisando os vários artigos e relatos, parece ser possível tirar
algumas conclusões.
Constatamos, em primeiro lugar, que a tentativa de fazer renascer o movimento anarquista em
Portugal partiu de paradigmas obsoletos, tanto em termos organizacionais como doutrinários.
Invocar as experiências fantásticas de Julho de 1936 em Aragão e na Catalunha – por mais
inspiradoras que estas possam ser –, num contexto de intensa mudança social, em que o
processo de alienação e exploração se tornou cada vez mais complexo, revelou-se inadequado.
Como afirmam Carvalho Ferreira e Rui Pinto, os colectivos anarquistas «esqueceram-se que
estavam inseridos numa realidade contemporânea que não correspondia mais a um passado
repleto de heróis e experiências revolucionárias mecanicamente idolatradas e mitificadas» [8].
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Em segundo lugar, podemos mencionar a diversidade de tendências [9] que, ao invés de se
concentrarem nos pontos em comum, optaram pela evocação de incompatibilidades, acusações e
“bodes expiatórios” [10]. É de referir que a fragmentação do Anarquismo esteve igualmente
associada a um conflito geracional. Analisemos, como exemplo, o seguinte excerto de João
Freire, retirado do seu livro de memórias:
«Ao lado desta prudência e atentismo dos militantes da velha geração (rapazes e raparigas
[moças] entre os 15 e os 25 anos de idade) que haviam afluído ao movimento e à sede da Rua
Angelina Vidal tinham comportamentos e orientações bem diversas. Geralmente, eram pessoas
revoltadas contra o autoritarismo da educação paterna, ávidos de experiências sexuais e de
experimentações afectivas e emocionais, para quem o Anarquismo era sobretudo a violação de
todas as normas e a vertigem de uma liberdade existencial, em busca de objectos perante os
quais ela se pudesse afirmar, contestando-os» [11].
Adriano Botelho
O antagonismo entre velhos e novos militantes, mais do que conflituoso, caracterizava-se por
uma atitude de indiferença, incomunicabilidade e mútua ignorância em relação às tácticas
utilizadas: os velhos discursos anarco-sindicalistas de um lado, e a ideia de abolição do trabalho,
de outro; a necessidade de um corpo organizado, com funções delimitadas e quotas a pagar, em
contraste com a organização baseada na espontaneidade; os chavões anarquistas, por um lado, e
as frases non sense pintadas nas paredes, por outro.
Finalmente, importa citar uma quase total ausência anarquista das (poucas) lutas sociais que
então se travavam salvo raras excepções a algumas lutas operárias e empresas autogeridas [12],
ou a participação de alguns libertários em grupos ecológicos activos na luta contra o nuclear em
Portugal [13], um factor essencial na divulgação das ideias anarquistas na sociedade portuguesa
dos anos 80.
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Assim, ao longo desta década, o Anarquismo em Portugal resumiu-se a uma série de
publicações e grémios, frequentemente insulados e mesmo rivais uns dos outros.
Notas
[1] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, “Que futuro para o Anarquismo”, In
Revista Utopia, Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004, pg.16.
[2] Governos do Partido Socialista – PS – (mais tarde em coligação com o Centro Democrático
Social – CDS –), de iniciativa presidencial e da Aliança Democrática (Partido Social Democrata
– PSD – coligado com o CDS e o Partido Popular Monárquico – PPM –).
[3] Lima, Marinús Pires, “Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego”, In AAVV,
Estruturas Sociais e Desenvolvimento: Actas do II Congresso Português de Sociologia, Vol. I,
Lisboa, Edições Fragmentos, 1992, pgs.613,614.
[4] Freire, João, “1974-1984: Evocação ou Renovação da Ideia Anarquista”, in Revista Crítica
das Ciênciais Sociais, Nº15/16/17, Coimbra, 1985, pg.163.
[5] Idem, pg.164.
[6] Por parte do movimento anarquista francês, onde se encontravam muitos exilados ibéricos,
havia um forte apoio logístico. No que respeita à relação com os anarquistas das várias regiões
de Espanha, esta fundava-se não só na solidariedade para com companheiros ainda sujeitos a
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uma campanha de terror por parte do Estado, mas igualmente pela esperança de que uma
alteração radical da situação política espanhola pudesse vir a influenciar directamente o
contexto português.
[7] De referir ainda o Pasquim (Cascais), o Satanaz (Almada), a Sabotagem, o Rastilho e a
Terra Livre (Amesterdão), a Revolta (Leiria), a Acção (Tomar), a Libertação (Pombal) e, mais
tarde, o Apoio Mútuo (Évora), A Sementeira (Lisboa), a Lanterna Negra (Lisboa) e o
Anarquista (Leiria), (Tavares, 2004).
[8] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, op. cit., pg.15.
[9] João Freire defende que no Anarquismo português de 1974 a 1984, é possível distinguir três
grupos, com base em atitudes distintas: os possibilistas ou realistas, que encaravam com
realismo as condições sociais (sem contudo descriminar os princípios e valores), mantendo
“uma linha de referência aos movimentos sociais que lhe parecem poder escutar o discurso
libertário” (Freire, 1985: 167); os populistas ou colectivistas, nos quais a preocupação de
militar junto das massas – nas comissões de trabalhadores, nos sindicatos, nas comissões de
moradores – originou um esvaziamento ideológico e, ocasionalmente, a adesão a forças
estranhas e até antagónicas com os princípios anarquistas; e finalmente, os pessoalistas e
inflexíveis, adeptos da mudança rápida e intransigente da realidade social. O negrito é nosso.
[10] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, op. cit., pg.15.
[11] Freire, João, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na
Segunda Metade do Século XX, Porto, Edições Afrontamento, 2007, pg.437.
[12] Como o apoio por parte de alguns militantes, definidos por João Freire como “marxistas
libertários”. Freire, João, op.cit., 2007, pg.450.
[13] No dia 15 de Março de 1976, o povo de Ferrel, conjuntamente com grupos e militantes
ecologistas, marchou sobre o local onde decorriam trabalhos preparatórios para a então
projectada central nuclear. Uma demonstração de recusa que marcou o início da luta contra o
nuclear em Portugal.
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Bibliografia
AAVV, Okupa, Preokupa !?, Lisboa, s.d.
AAVV, Porquê Okupação?, Queluz, 1999.
Bey, Hakim, Zona Autónoma Temporária, Braga, Edições Discórdia, 2004.
Edições Antipáticas, “Divergência e Afinidades”, Prefácio Da Miséria nos Movimentos Subversivos,
Lisboa, Edições Antipáticas, 2006.
Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, “Que futuro para o Anarquismo”, In Revista Utopia,
Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004.
Freire, João, “1974-1984: Evocação ou Renovação da Ideia Anarquista”, in Revista Crítica das Ciênciais
Sociais, Nº15/16/17, Coimbra, 1985.
Freire, João, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda
Metade do Século XX, Porto, Edições Afrontamento, 2007.
Lima, Marinús Pires, “Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego”, In AAVV, Estruturas
Sociais e Desenvolvimento: Actas do II Congresso Português de Sociologia, Vol. I, Lisboa, Edições
Fragmentos, 1992.
Santos, Boaventura de Sousa, O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1984), Porto, Edições
Afrontamento, 1998.
Tavares, José, “Anarquismo em Portugal (1974-1984): Conclusão provisória”, In Revista Utopia, Nº17,
Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004.
Fonte: ttp://passapalavra.info/?p=54819
Vida Nova nº 4 Dezembro de 2012 Página 16
Artur Jaime Brasil Luquet Neto foi escritor e jornalista.
(N. Angra do Heroísmo, 1896 – m. Lisboa, 1966)
Cursou o liceu e, durante a Grande Guerra, a escola de oficiais milicianos, entrando para o
Exército como alferes.
Jornalista brilhante, crítico literário e de arte, foi redactor do Primeiro de Janeiro, do Século, do
Século da Noite, da República, do Diabo, dirigiu o jornal O Globo, de efémera duração, e
muitos foram os jornais e revistas em que colaborou, sendo à data da sua morte chefe da
delegação em Lisboa de O Primeiro de Janeiro, cuja excelente página «Das Artes, das Letras»
organizou, desde início, durante muitos anos, e na qual colaboraram José Régio, Casais
Monteiro, Gaspar Simões, Jorge de Sena, bem como inúmeros dos melhores autores das
décadas de 40 e 50; as recensões críticas eram, nessa página – que passou a ser dirigida pelo
poeta Alberto de Serpa –, assinadas com a letra A. (correspondente a Artur, de seu primeiro
nome).
Grande amigo do seu patrício Vitorino Nemésio, ajudou-o quando este, em 1921, vindo dos
Açores, se estreou no jornalismo profissional.
Jaime Brasil, para além de jornalista culto e probo, distinguiu-se como polemista, não poupando
o adversário nas pugnas que travou (com o diário católico Novidades, a propósito do livro A
Questão Sexual; com Agustina Bessa-Luís, acerca de Os Super-Homens, em 1950; e com um
camilianista a quem chama «camelianista», em 1958).
Em 1925 fundou o Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa, do qual foi o primeiro
secretário-geral. Em Paris, onde residia desde 1937 e para onde voltou, algum tempo, no final
dos anos 40, fundou em 1939 a Union des Journalistes Amis de la République Française.
Obras principais: O Problema Sexual, 1931; A Questão Sexual, 1932; Os Padres e a Questão
Sexual, 1932; Os Órgãos Sexuais, 1933; A União dos Sexos, 1933; O Japão Actual, 1936;
Diderot e a Sua Época, 1941; Vida e Obras de Zola (assinado A. Luquet), 1943; Rodin, 1944;
Os Novos Escritores e o Movimento Chamado «Neo-Realismo», 1945; Vítor Hugo, 1940;
Chalom…Chalom!... Uma Reportagem na Palestina, 1948; O Caso de «A Infanta Capelista» de
Camilo Castelo Branco ou Como se Arrancam as Penas a Um Empavonado «Camelianista»,
1958; Leonardo Da Vinci e o Seu Tempo, 1959;Velásquez,1961; Ferreira de Castro. A obra e o
Homem, 1961; Zola – O Escritor e a Sua Época, 1966.
Fonte: http://pimentanegra.blogspot.pt/2007/11/jaime-brasil-notvel-escritor-e.html (Fotografia e
textos retirados do jornal O Primeiro de Janeiro)
JAIME BRASIL