vianna a cultura do iluminismo

33
www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007 1 A Cultura do Iluminismo 1 Alexander Martins Vianna Introdução: Este artigo, elaborado originalmente para fins didáticos e direcionado a leitores do terceiro grau, pretende justamente demonstrar a singularidade da “cultura do iluminismo”, seguindo, neste ponto, algumas sugestões de análise e abordagem que a distingam dos caracteres mentais daquilo que José Antonio Maravall (1997) definira como “cultura do barroco”. Afinal, como notara Ernst Cassirer desde a década de 1920, além de Federico Chabod, Paul Hazard e Reinhardt Koselleck nas décadas seguintes, por estarem rigorosamente voltadas para si mesmas, tanto a razão crítica iluminista quanto a justiça subjetiva romântica definiriam pontos de ruptura em relação à forma mentis dos séculos XVI e XVII, pois não lidariam mais harmoniosamente com grandezas dadas por dogmas, cânones, tradições, etc; ou seja, não aceitavam que condicionantes de autoridade fossem tratadas como algo inquestionável ou imutável. No entanto, as noções iluministas de autonomia crítica, liberdade de opinião e opinião pública não podem ser confundidas com a concepção hodierna da livre opinião característica das sociedades democráticas de massa. Em seu artigo “O que é Esclarecimento? ”(1784), o filósofo luterano Immanuel Kant (1724-1804) nos serve para demonstrar tal diferença, particularmente quando faz uma distinção conceptual entre “uso público” e “uso privado” da razão, entendendo por “público” o espaço de convivência de pessoas letradas. Portanto, a liberdade no uso “público” da razão era restrita ao ciclo dos letrados (membros daquilo que Kant chamava de “comunidade universal”), ou seja, tratava-se de uma audiência socialmente e intelectualmente distinta – a intelligentzia iluminista. Em todo caso, na noção iluminista de autonomia crítica residiria, como notara Hannah Arendt (1971), um potencial revolucionário e, em certa medida, violento, particularmente quando a noção cartesiana de sujeito autogarantido fosse trazida para uma arena política mais ampla e socialmente indistinta, que, aos poucos, também demonstraria em sua ação uma nova noção de tempo histórico, tal como aquela que marcou eloqüentemente o cenário político da Revolução Francesa.

Upload: alexander-martins-vianna

Post on 18-Jun-2015

643 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

1

A Cultura do Iluminismo1

Alexander Martins Vianna Introdução:

Este artigo, elaborado originalmente para fins didáticos e direcionado a leitores

do terceiro grau, pretende justamente demonstrar a singularidade da “cultura do

iluminismo”, seguindo, neste ponto, algumas sugestões de análise e abordagem que a

distingam dos caracteres mentais daquilo que José Antonio Maravall (1997) definira

como “cultura do barroco”. Afinal, como notara Ernst Cassirer desde a década de 1920,

além de Federico Chabod, Paul Hazard e Reinhardt Koselleck nas décadas seguintes,

por estarem rigorosamente voltadas para si mesmas, tanto a razão crítica iluminista

quanto a justiça subjetiva romântica definiriam pontos de ruptura em relação à forma

mentis dos séculos XVI e XVII, pois não lidariam mais harmoniosamente com

grandezas dadas por dogmas, cânones, tradições, etc; ou seja, não aceitavam que

condicionantes de autoridade fossem tratadas como algo inquestionável ou imutável.

No entanto, as noções iluministas de autonomia crítica, liberdade de opinião e

opinião pública não podem ser confundidas com a concepção hodierna da livre opinião

característica das sociedades democráticas de massa. Em seu artigo “O que é

Esclarecimento?”(1784), o filósofo luterano Immanuel Kant (1724-1804) nos serve

para demonstrar tal diferença, particularmente quando faz uma distinção conceptual

entre “uso público” e “uso privado” da razão, entendendo por “público” o espaço de

convivência de pessoas letradas. Portanto, a liberdade no uso “público” da razão era

restrita ao ciclo dos letrados (membros daquilo que Kant chamava de “comunidade

universal”), ou seja, tratava-se de uma audiência socialmente e intelectualmente distinta

– a intelligentzia iluminista.

Em todo caso, na noção iluminista de autonomia crítica residiria, como notara

Hannah Arendt (1971), um potencial revolucionário e, em certa medida, violento,

particularmente quando a noção cartesiana de sujeito autogarantido fosse trazida para

uma arena política mais ampla e socialmente indistinta, que, aos poucos, também

demonstraria em sua ação uma nova noção de tempo histórico, tal como aquela que

marcou eloqüentemente o cenário político da Revolução Francesa.

Page 2: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

2

O Iluminismo e a nova experiência do Tempus

Em 1959, Koselleck (1999) sistematizou a tese de que o pensamento utópico

Iluminista seria o resultado da laicização da escatologia judaico-cristã, ou seja, o

resultado da transposição da noção do tempo irreversível da salvação e do Juízo Final

para a história, agora pensada pela filosofia da história do século XVIII como um

processo cujo desenlace permanece aberto. Para tanto, o plano divino da salvação – até

então insondável para a consciência humana – teve de ser transformado em

planejamento de futuro, feito por uma nova elite intelectual moralmente justa e

conformada à Razão. No entanto, a “intelectualidade de Notáveis” do século XVIII

transformou a história em processo sem se dar conta disso. Na verdade, tratava-se de

algo que começou a se delinear na década de 1680, quando as primeiras “repúblicas de

letras” travaram o chamado “embate entre antigos e modernos” (1687-1719).

O “embate entre antigos e modernos” criou um topos intelectual novo no

Ocidente, pois ajudou a elaborar uma concepção de tempo que separava futuro e

passado e, assim, a noção de processo histórico aos poucos suplantou a concepção de

passado como repertório tipológico de modelos e exemplos para o presente.(OLINTO,

2000) Isso porque as concepções dos “modernos” predominaram em meados do século

XVIII, com suas idéias de que as realizações artísticas, culturais e políticas do presente

eram sempre melhores do que as “antigas” (Antigüidade Clássica) e, portanto, estas

pouco ou nada serviriam para os tempos atuais (“tempos modernos”). Nesse sentido, em

vez de celebrada e copiada, a herança antiga deveria ser estudada e criticada em função

das novas necessidades do presente – ou seja, não lhe era mais concedido um lugar de

autoridade irrefutável. Portanto, a partir deste debate intelectual, percebemos que a

história passa a ser concebida como processo à medida que deixa de ser um mero

repertório tipológico de exemplos in nuce imutáveis que poderiam ser aplicáveis à

interpretação ou à ação dos homens no presente.

Podemos pensar esta crise de paradigma como um marco conjuntural (1687-

1719) que distingue o mundo do Renascimento/Barroco do universo cultural do

Iluminismo. Ao final do século XVIII, é possível observar claramente a síntese desta

mudança na história do pensamento filosófico e científico quando Immanuel Kant

Page 3: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

3

(1724-1804) define o progresso como a própria natureza ou halo constitutivo da

dignidade humana em seu artigo “O Que é Esclarecimento?”(1784). Vejamos:

“Uma época não pode fazer um pacto que comprometa as idades futuras, não pode evitar que elas aumentem suas inspirações significantes, purifiquem-se de erros e gradativamente progridam no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cujo destino assenta-se justamente em tal progresso. Portanto, as idades futuras têm pleno direito de repudiar tais decisões como desautorizadas e ultrajantes”.(Apud: JACOB, 2001: 202-208)

No entanto, a filosofia do Iluminismo obscureceu a dimensão política da crise

filosófica de paradigma trazida pelo “embate entre antigos e moderno”, pois, diante de

suas noções histórico-filosóficas de futuro, muitos eventos políticos cotidianos foram

deixados em segundo plano pelos philosophes. Aliás, quando lemos integralmente o

artigo “O Que é Esclarecimento?”, podemos perceber em Kant que a filosofia do

Iluminismo não se concebia nos termos de uma utopia revolucionária em matérias

políticas e sociais, mas sim nos termos de uma reforma ou aperfeiçoamento moral-

intelectual do indivíduo que, aos poucos, melhoria as instituições e a sociedade. Por

isso, como ressalta Bronislaw Baczko (1989), é importante evitar uma leitura

prospectiva do Iluminismo a partir dos desdobramentos imprevistos da Revolução

Francesa.

Se, como pensa Koselleck (1999), o desejo ou senso iluminista de progresso

moral-intelectual seria o resultado da internalização subjetiva e secularizada da noção

judaico-cristã do juízo divino da salvação, que tradicionalmente opõe “verdade

interior” e “realidade exterior”, não podemos esquecer que ele também seria uma

derivação filosófica, como pensava Ernst Cassirer (1994), da projeção do cogito

cartesiano sobre as coisas do mundo extenso, ou seja, o juízo crítico iluminista seria o

tributário filosófico da noção cartesiana do sujeito autogarantido que se desliga de

exterioridades enganosas, tais como aquelas advindas do senso comum, costumes,

tradições, dogmas de religião, etc. Nesse sentido, é certo dizer que a filosofia do

Iluminismo provoca uma ruptura entre passado e planejamento de futuro, concebendo

cada momento histórico como qualitativamente único numa cadeia processual

irreversível. Portanto, na configuração iluminista do tempo histórico, o presente tem

apenas a si mesmo como “espaço de experiência”, apontando para um “horizonte de

expectativas” que se mantém sempre aberto. Por isso mesmo, a sua forma de

Page 4: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

4

pensamento muda completamente o modo de interpretar a relação entre os indivíduos e

as instituições sociais.

Ao afirmar isso, podemos entender por que Koselleck tem como objetivo

principal, em sua obra “Crítica e Crise”, complexificar o nexo causal entre a “utópica

filosofia da história” e a Revolução desencadeada em 1789. Para tanto, afirma como

hipótese geral que o Absolutismo teria condicionado a gênese do Iluminismo, e que este

último teria condicionado a gênese da Revolução Francesa. Koselleck constrói tal

hipótese utilizando como referência histórico-conceptual a noção de Estado de Thomas

Hobbes (1588-1679).

Hobbesianismo Político e a Filosofia do Iluminismo

A figura de um poder soberano estabilizador dos vínculos sociais e políticos,

pacificador da sociedade e secularizador das instituições sociais e políticas fora

celebrada como fator de progresso cultural por Immanuel Kant, em 1784, na figura do

rei Frederico II (1712-1786) da Prússia. Podemos observar a mesma expectativa sendo

projetada por Denis Diderot (1713-1784) na figura histórica do rei Henrique IV (1553-

1610) da França. Para Kant e Diderot, estes reis teriam criado as condições de

possibilidade para o progresso do saber em seus reinos ao colocarem os assuntos da fé

ou consciência religiosa fora de sua esfera de atuação, evitando, deste modo, o

despotismo espiritual de algumas poucas lideranças oportunistas que teriam interesse

em manter os súditos numa eterna menoridade espiritual ou intelectual.

Tal tipo de expectativa projetada sobre “monarcas esclarecidos” explica o

interesse intelectual renovado pelos escritos e idéias de Thomas Hobbes desde meados

do século XVIII, a ponto de a “Encyclopédie” dedicar um longo verbete para tratar de

seu pensamento político.(DIDEROT&D’ALAMBERT, 2006:153-191) Afinal, o

Leviathan de Hobbes representa a imagem conceptual de um corpo político recomposto

em novas bases comportamentais, pois figuraria a idéia da ordem política advinda da

superação das rupturas sociais e políticas provocadas pelas guerras confessionais. Nesta

ordem política, o objetivo dos indivíduos seria aperfeiçoar-se moralmente em âmbito

privado até o ponto de saber – por si mesmo – o que era bom e o que era ruim para a

sua salvação, não devendo tal busca de aperfeiçoamento moral-religioso afetar o

Page 5: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

5

mecanismo criado (Estado Político) pela inteligência humana como contraponto aos

mecanismos condicionantes da guerra civil religiosa (Estado de Natureza)2.

Portanto, o Leviathan antecipa conceptualmente uma percepção de ordem

política e poder soberano que soube enquadrar a demanda religiosa por aperfeiçoamento

moral-religioso à esfera da intimidade doméstica. Nesse aspecto, a ordem

política/polida (politesse) laica que o Leviathan propõe teoricamente em meados do

século XVII tornou-se modelo para a maioria dos philosophes, pois, em sua concepção,

isso criaria as condições sociais e institucionais para o progresso do saber. No entanto,

como notara Koselleck, tais condições sociais e institucionais criariam novos espaços de

sociabilidade de onde emergiu um novo tipo de sujeito, que não mais se sentia

constrangido em lançar no mundo as suas demandas morais interiores (agora,

marcadamente laicas) de aperfeiçoamento do espírito. No limite de sua ação no mundo,

o sujeito autogarantido iluminista poderia pôr à prova o próprio fundamento de

autoridade que lhe dera possibilidade de existir historicamente.

Portanto, do ponto de vista prático e moral, há uma diferença histórica evidente

entre o sujeito iluminista, o cogito cartesiano e o homem político de Hobbes: estes dois

últimos, diferentemente do primeiro, estavam geracionalmente marcados por aquilo que

Maravall (1997) definia como “cultura do barroco”, que era caracterizada por uma

moral acomodatícia e uma razão casuística, cuja expectativa de ação era harmonizar

forças contrárias, de modo a adaptar as novas experiências aos dispositivos tradicionais

de autoridade política e ordem social. Vejamos como tal concepção de ação no mundo

aparece em algumas máximas morais de Descartes (1596-1650):

“...[Uma] máxima consistia em obedecer às leis e aos costumes de meu país, tendo presente constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser educado desde a infância, e governando-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do exagero que fossem comumente acolhidas, na prática, pelos mais sensatos entre aqueles com os quais teria de viver...Além disso, entre as várias opiniões igualmente aceitas, optava somente pelas mais moderadas, tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática e, verossimilmente, as melhores – já que todo excesso é habitualmente mau...[Uma outra] máxima era...de modificar mais os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a acreditar que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos...”.(DESCARTES, 1985: 57-58) Ora, em seus escritos, quando Hobbes substituiu o termo consciência pelo termo

opinião, fizera-o justamente porque o seu uso habitual em matéria religiosa tinha

Page 6: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

6

implicações negativas no espaço público. Em sua concepção, para haver ordem pública,

a consciência deveria tornar-se tão internalizada quanto o cogito cartesiano, de modo a

não abalar o mecanismo pactual que configurava o corpo do Leviathan. Para ele, a

guerra civil inglesa demonstrara que não era possível afirmar de forma unívoca ou

inequívoca o que era bom e o que era ruim para a salvação do homem e que, portanto,

transformar isso em matéria política impediria a realização de qualquer desejo de paz

duradouro.

Por outro lado, a construção artificial do corpo do Leviathan era o testemunho

evidente de que a paz civil não seria alcançada espontaneamente, pois, na verdade,

demandava a configuração de um mecanismo autônomo que transcendesse todos os

interesses e opiniões particulares. Para tal mecanismo funcionar, o monarca deveria

estar acima dos direitos particulares (seria ab solutus porque legibus solutus) no sentido

de ser juiz e disciplinador desvinculado (status neutro), em princípio, de interesses

particulares estamentais e de confissões religiosas. Portanto, a meio caminho entre o

sujeito autogarantido cartesiano e o sujeito autogarantido iluminista, o homem político

hobbesiano aprendeu de forma traumática que a única forma de superação do

mecanismo das guerras civis religiosas era a separação forçada entre

espírito/consciência (mundo moral interior) e ações (mundo político exterior). Era

justamente tal separação que a filosofia do Iluminismo tentaria superar – mas agora

numa atmosfera social laica – ao propagar as noções de liberdade de opinião e de

progresso do saber, baseadas em uma nova concepção de natureza, homem e razão.

A forma política do Leviathan era artificial porque, a partir de um cálculo (ratio)

evidente de custo/benefício – associado ao discernimento voltado para a adequação

entre status e circunstância –, o medo da morte e a insegurança permanente impeliriam

o homem, pragmaticamente, a aceitar a proteção hierárquica leviatânica – ou seja, fazer

parte de um corpo político cujo poder soberano fosse estável e concentrasse em si os

princípios de justiça, dádiva, proteção, punição e polidez –, saindo do bellum omnium

contra omnes por meio de um pacto em que as partes em guerra concordariam em

alienar definitivamente uma parcela de suas antigas liberdades tradicionais e demandas

de consciência em favor da promoção pragmática da paz civil. No entanto, uma vez

feito, o pacto seria irreversível: o Estado Político tornava-se um mecanismo autônomo

(automaton). Portanto, nascido da “ratio” e da “raggione di Stato”, o Leviathan não

Page 7: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

7

eqüivalia ao “Estado de Razão” iluminista; porém, os philosophes do século XVIII não

tinham uma percepção clara da sua própria diferença moral em relação ao Homem e ao

Estado Político hobbesianos.

O Estado hobbesiano não visava o progresso humano no sentido iluminista, mas

tão somente pôr fim às guerras civis. Tratava-se, pois, de um artifício da razão, o “juiz

racional” de homens-fera, pois somente na associação que surge entre interesse de

proteção e obediência poder-se-ia formar um status neutro em que as leis garantiriam a

paz, a segurança e a contenção do apetite/paixão. A razão somente deixaria de ser mero

cálculo político – associado ao discernimento acomodatício de status e circunstância,

ou seja, a ratio voltada para a fundação da ordem pública a partir da acomodação das

partes de privatae leges3–, para confundir-se com a noção de força constituidora dos

fenômenos políticos, quando os antagonismos religiosos (neutralizados e contidos pela

nova ordem corporatista leviatânica) fizessem parte de um passado distante. Uma vez

distante a experiência geracional das guerras de religião, uma nova consciência (agora

no sentido de opinião crítica secular) faria a sua aparição em novos espaços de

sociabilidade.

Retomando o argumento de Koselleck, podemos afirmar que o sujeito moral do

século XVII – abandonado a si mesmo na tarefa de aperfeiçoar-se moralmente e

interiorizado em nome da paz pública – tornou-se no século XVIII um juiz arguto a

exigir que seu aperfeiçoamento moral (interior) fosse também extensivo ao Estado

(exterior), que o mundo exterior não dilacerasse a sua verdade interior, que não o

forçasse a formalidades e hipocrisias. Isso se torna cada vez mais presente na segunda

metade do século XVIII. Nesse momento, a noção de natureza expressa por Hobbes

como estado de guerra, incompletude, inacabamento ou impulso destrutivo seria

superada por outra, que se estende do Iluminismo ao Romantismo, cuja plenitude

sistemática pode ser observada nos escritos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

É somente num século em que não se vive mais os efeitos dos dilaceramentos

sociais e políticos de guerras religiosas periódicas que as exigências formais de

aceitação de regras e hierarquias de autoridade – tal como ritualizadas na corte –

pareceriam artificiais e hipócritas, ou mesmo sufocantes para o progresso das

capacidades individuais. Assim, em oposição ao homem artificial/artificioso cortesão,

condicionado por regras estamentais de etiqueta, Rousseau falaria do “homem natural”,

Page 8: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

8

espontâneo, aquele que a sociedade política ainda não havia corrompido com seus

hábitos e costumes.

No “Contrato Social” (1762), o “estado natural” idealizado por Rousseau é o

exato contratipo conceptual do “Estado de Natureza” de Hobbes. No entanto, ambos os

autores têm em comum o objetivo de criar uma ficção metodológica para por em

perspectiva os valores e regras das sociedades de suas respectivas épocas. Logicamente,

como as suas noções de natureza têm sentidos distintos, haverá implicações

antagônicas: em sua geração, aquilo que Hobbes pensou como necessário para superar a

instabilidade política e social não tinha mais sentido para um conjunto de intelectuais na

maturidade de Rousseau, soando para eles como um “sufocamento do espírito”. Assim,

como aprendizado político, Rousseau deixava claro que, para o homem alcançar sua

liberdade e plenitude intelectual, deveria “redescobrir” o “estado natural” e reaprender a

ser um novo homem em sua própria sociedade, tomando para si as “lições” do modo de

vida do homem natural – ou seja, aquele “existente” antes que surgissem as implicações

políticas, comportamentais e institucionais das noções de “meu” e “teu”.

No entanto, Rousseau é estrela solitária na constelação do Iluminismo, pois a

maioria dos autores da época – entre os quais, Voltaire (1694-1778) – afirmaria que

bastaria olhar em toda parte do mundo para se perceber que a propriedade era um dado

comum (portanto, natural) a todos os povos, pois estaria associada aos sentimentos

naturais de autopreservação e amor-próprio. Além disso, desenvolveu-se uma idéia

cara ao liberalismo: a propriedade (preferencialmente desvinculada de personalidade

jurisdicional) era a garantia da liberdade de o sujeito se autoconstituir e, nesse sentido,

quanto mais homens livres [i.e., proprietários desvinculados de obrigações senhoriais e

auto-suficientes (autogarantidos) em proventos] houvesse num país, maior a motivação

para produzir riquezas.

Não por acaso, seguindo tal quadro de idéias, muitos monarcas e príncipes

europeus do século XVIII tentaram reformar a relação homem/solo, eliminando

progressivamente os resquícios das relações jurídicas de obrigações senhoriais no

campo, como as corvéias, para transformar famílias camponesas em rendeiros,

assalariados ou pequenos proprietários. No entanto, tais reformas não significaram um

plano claro de desestruturação de toda a ordem sócio-política estamental. As reformas

foram pontuais, visando somente eliminar a vinculação jurisdicional (ou seja, formar a

Page 9: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

9

propriedade livre) da terra nos casos em que mexessem com interesses estratégicos, com

necessidades fazendárias e com a política de segurança do Estado. Não por acaso, as

primeiras terras a serem desvinculadas de jurisdições (direitos e obrigações feudais)

pelos príncipes ilustrados foram aquelas de algumas ordens religiosas que passaram a

ser consideradas perigosas para a preservação da autonomia e progresso do Estado,

como a jesuítica. (FALCON, 1982)

Portanto, não podemos perder de vista que, em plano social e político-

institucional, as “monarquias esclarecidas” do século XVIII permaneceram em larga

medida ligadas à ordem senhorial-estamental e empenharam-se em preservá-la através

de reformas pontuais que facilitassem a circulação de bens e a fluidez tributária, o que

não significava necessariamente um completo desmonte da intermediação da “forma

senhorial” de constituição dos vínculos político-sociais.(COTS I CASTAÑÈ, 1993)

Nesse sentido, a constituição de uma unidade fiscal-tributária que facilitasse a

circulação de bens não significava necessariamente uma transformação substancial da

lógica de organização política, que era flexível bastante para incorporar novas formas de

relacionamento social, valores e recursos para dar conta do novo mundo de experiências

advindo da abertura dos lugares para mercados extra-locais ou extra-regionais de

consumo, produção e tributação.

Liberdade de Opinião e Elitismo Reformista

Se a prática intelectual da redescoberta do “homem natural” idealizado por

Rousseau ocorreu em algum lugar, isso restringiu-se – e não com as implicações de suas

idéias – aos ciclos fechados das “repúblicas de letras”, pois eram espaços novos de

sociabilidade privada em que se praticava a “liberdade de espírito” (através dos livres

debates das idéias e das críticas às produções literárias) e deixava temporariamente “de

fora”, no trato social, as condicionantes estamentais de deferência e reciprocidade, pelo

menos tal como eram ritualizados nas cortes régias. Nesse sentido, entre as partes

envolvidas em debates de idéias, deveria haver uma igualdade de coração e espírito

esclarecido para que houvesse autêntica e tolerável reciprocidade. No entanto, deve-se

estar atento a este detalhe: o debate e a crítica apenas poderiam ser exercitados entre os

iguais em espírito, ou seja, aqueles que tinham competência sobre o assunto tratado e

desprendimento de interesse.

Page 10: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

10

Nos termos de Kant, isso definia a condição de esclarecido como um desafio

moral, mas também configurava uma ambigüidade social cara a este universo novo de

sociabilidade: se, regra explícita, para se fazer parte destas ‘repúblicas’ dever-se-ia ser

“bem letrado”, isso pressupunha, regra implícita, o ócio da riqueza – condição que

excluía uma maioria e para qual poucos, como Rousseau, atentaram criticamente.

Enfim, as “repúblicas de letras” ritualizavam uma sociabilidade em que o mérito

(presumido) do nascimento era colocado em segundo plano em relação ao mérito

manifesto pelo espírito (medido pelas “letras”/“riqueza”). Nesses termos, o homem mais

completamente livre de constrangimentos (natural – mas não no sentido de Rousseau) é

aquele que é bem nascido, bem fornido e bem letrado, pois estaria desvinculado de

interesses imediatos de sobrevivência e, portanto, estaria socialmente capacitado de

envolver-se com os interesses públicos.

Como vimos anteriormente, na estrutura política anunciada por Hobbes em seu

Leviathan (1651), não haveria como conciliar consciência (mundo interior) e as

conveniências políticas do mundo exterior, devendo este sempre predominar sobre

aquele. Ora, isso inscrevia a subjetividade do indivíduo deste Estado no centro da tensão

dramática típica da “cultura do barroco” – pelo menos, tal como esta é pensada por

Maravall (1997). O sujeito (astuto/artificioso) do barroco refugiou-se nos recantos

secretos do coração (ou da mente, se pensarmos em Descartes), onde permaneceu sendo

o seu próprio juiz, ao passo que os fatos externos deveriam ser submetidos ao juízo e

aos tribunais do poder soberano, cuja ação estaria ancorada numa moral acomodatícia e

na força dos costumes e tradições. No entanto, quatro gerações depois, se usarmos como

ponto referencial o artigo “O que é Esclarecimento?”(1784) de Kant, observamos que

um novo processo de individuação ocorrera no século XVIII, mas com as

ambigüidades típicas do elitismo reformista dos pensadores iluministas.

Durante o século XVIII, o surgimento de novos espaços para a elite de

sociabilidade alternativos às cortes régias e as transformações na vida econômica

estimularam novos processos de construção de identidade que libertaram muitos

indivíduos letrados dos referenciais político-jurídicos estamentais. Em larga medida, o

termo “bom nascimento” perdera a exclusividade do referente que o ligava à nobreza de

nascimento. Agora, um leque de novas opções sociais abriu-se devido à progressiva

especialização técnica e funcional da vida social, exigindo dos membros desta sociedade

Page 11: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

11

boa formação intelectual e recursos materiais. Portanto, ser “bem fornido” e ser “bem

letrado” tenderam a predominar como marcas de “excelência social”. De certa forma,

isso se expressa, por exemplo, na recorrência de termos como “nobreza de espírito”, ou

que determinados títulos acadêmicos passassem a “conferir nobreza” como forma de

premiar o mérito.

No entanto, a nova liberdade (no sentido de autonomia de o indivíduo se

constituir e expressar opinião perita) – ancorada em riqueza e/ou letras – estava

conceptualmente restringida pela própria lógica de valorização da competência técnica e

funcional. Podemos observar isso em Kant: ele entende que uma sociedade em processo

de esclarecimento deve conhecer a liberdade de consciência, mas ela é restringida a

contextos funcionais, o que significa liberdade de criticar somente as coisas em relação

às quais se pode ser esclarecido, condição que exige uma competência intelectual num

saber específico (i.e., ser Scholar ou perito) associada à autonomia de juízo (falar em

seu próprio nome).

Obviamente, há nisso um dispositivo moral restritivo para a crítica, pois, para

Kant, um indivíduo que ocupe um cargo qualquer vive uma menoridade funcionalmente

necessária, já que “fala em nome de alguém” (realiza uma dignidade institucional

particular), ou seja, faz uso privado da razão, devendo seguir as regras da instituição

enquanto não lhe causarem dilemas de consciência. No entanto, caso haja cada vez mais

uma tensão irreconciliável entre as obrigações do cargo e a consciência, o indivíduo

deve abandoná-lo para que, de fora do cargo/posição, possa criticar e aperfeiçoar a

estrutura ou a lógica em que estava inserido. Quando age deste modo, o Scholar

kantiano passa a fazer uso público (i.e., desvinculado de dignidade institucional) da

razão. Na concepção de Kant, seria uma incongruência moral exercer as funções de um

cargo quando não mais se acredita nos princípios que o justificam. Nesses termos, para

ser plenamente confiável, a autonomia crítica do sujeito esclarecido kantiano está

implicada com o desafio moral de se abandonar o comodismo ou o interesse particular

em nome de um desejo verdadeiro de aperfeiçoamento das matérias do mundo.

Portanto, diferentemente do que ocorrera, na prática, durante a Revolução

Francesa, o “uso público da razão” não significa incitar as massas à revolta. Isso seria

completamente estranho para Kant em 1784, pois seria o mesmo que abrir o mundo para

a barbárie e a tirania de lideranças inescrupulosas, tais como aquelas que emergiram, no

Page 12: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

12

passado recente, durante as guerras confessionais. O Scholar kantiano que faz “uso

público da razão” fala com quem tem competência para ouvi-lo, ou seja, a sua

audiência nunca é indistinta.

De certa forma, a noção kantiana de “uso público da razão” resolve o dilema

hobbesiano a respeito do uso da consciência (agora laica) na esfera pública. Na verdade,

Kant aponta conceptualmente para uma definição estritamente liberal de esfera pública

que marcaria todo o século XIX. Então, devemos entender que a “opinião pública” é a

opinião dos socialmente competentes, não devendo ser confundida com a “opinião

popular”. Nesse sentido, nos termos de Kant, é somente como Scholar autônomo que

se pode exercer a crítica. Seguindo esta lógica, um monarca, por definição, deve ser

especialmente esclarecido, pois somente a ele caberia reformar, como cabeça, o corpo

político de seu Estado. Aquele que não demonstrasse competência para isso entregaria o

seu Estado à luta bárbara de facções de lideranças inescrupulosas. Portanto, no contexto

do Iluminismo, a separação hobbesiana entre homem (sujeito/interior/consciência) e

súdito (indivíduo/exterior/acomodação) deixaria de ser percebida como regra

necessária para a constituição da ordem pública e, assim, diferentemente da geração de

Descartes e Hobbes, a intelligentzia iluminista passou a entender que o homem poderia

realizar-se politicamente como sujeito autogarantido.

No entanto, a exemplo de Kant, não se pode perder de vista que a única crítica

válida é a crítica esclarecida, pois deve-se considerar as situações funcionais em

relação às quais um homem é esclarecido e aquelas em que simplesmente espera pelo

esclarecimento de outrem, sendo, nesse sentido, “passivo”(menoridade funcionalmente

necessária). Por isso, com exceção do curto período jacobino da Revolução Francesa

(junho de 1793/julho de 1794), um princípio político que, depois dela, perdurou até o

final do século XIX foi justamente aquele que diferenciaria “cidadãos ativos” de

“cidadãos passivos”, base conceptual do sistema liberal de sufrágio censitário como

critério de definição da capacidade (competência e discernimento) política de votar e ser

votado.

Resumidamente, podemos afirmar que, no contexto do Iluminismo, muitos

tratadistas políticos transformariam em lugar comum a idéia de que o homem deseja

naturalmente a paz tanto quanto busca o alimento, a reprodução ou a religião. Em

contraste, no contexto do Barroco (século XVII), a exemplo da teoria hobbesiana de

Page 13: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

13

Estado, o “desejo de paz” não teria força suficiente em si mesmo para superar o “estado

de guerra” e, por isso, o homem precisaria de um condicionamento (estatal corporatista)

que viesse de “fora” para “dentro”. Ora, seguindo a tese de Koselleck, tal lógica é

oposta à noção iluminista de autonomia crítica, pois é da insatisfação geracional de um

sujeito constrangido pela Razão de Estado que emergiria a subjetividade específica do

Estado de Razão, levantando-se contra a passividade crítica diante de dogmas,

autoridades, interesses particulares descabidos e tradições injustificáveis. No entanto,

não se pode perder de vista que a valorização da autonomia crítica iluminista esteve

historicamente vinculada à valorização do saber competente e da riqueza como novos

critérios de distinção social. Portanto, não significava que todos poderiam criticar tudo,

como acontece, por exemplo, nas sociedades democráticas da atualidade.

Da casuística ao espírito sistemático: Cogitando o mundo...

No século XVIII, a filosofia do Iluminismo começou a quebrar o molde do

sistema metafísico cartesiano. Não se acreditava mais no privilégio nem na fecundidade

do espírito dedutivo de sistema: via-se nisso não a força, mas o obstáculo e o freio da

razão filosófica. No entanto, o abandono do espírito dedutivo de sistema não significou

renunciar ao “espírito sistemático”. Em vez de se fechar nos limites de um edifício

doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de

axiomas fixados de uma vez por todas, a filosofia devia agora tomar livremente o seu

impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, a

forma de toda a existência, tanto natural quanto espiritual. Assim, os conceitos e os

problemas que o século XVIII herdou do século XVII passaram da condição de

princípios e objetos prontos e acabados para aquela de forças atuantes, que tanto

poderiam interferir no mundo extenso quanto poderiam ser postas à prova por ele.

A filosofia do Iluminismo acreditava na espontaneidade originária do

pensamento e, longe de restringi-lo à tarefa de comentar e de refletir a posteriori –

como acontecera com a ratio acomodatícia nos contextos do Renascimento e do

Barroco –, reconheceu nele o poder e o papel de organizar a vida. Nesse sentido, mais

do que duvidar, analisar e examinar, o pensamento deveria também provocar, fazer

nascer a ordem da qual percebera ou concebera a necessidade. Trata-se da época em

Page 14: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

14

que apaixonadamente se afirmou a autonomia da razão no mundo extenso como força

criativa, partindo originalmente do método sistemático cartesiano.

É comum se pensar o contexto do Iluminismo como o “século da Razão”, como

se representasse o ápice do aperfeiçoamento de um processo de racionalização do

mundo que vinha desde o Renascimento. No entanto, tal teleologia seria descabida pelo

simples fato de que, nos contextos do Renascimento e do Barroco, a ratio – entendida

como cálculo ou discernimento na relação entre meios e fins, de modo a se realizar

adequadamente a correspondência entre o status do indivíduo e a circunstância de sua

ação – pressupunha um tipo de operação baseada na capacidade de adaptação ou

variação acomodatícia em relação às leis e significados recebidos pelas tradições.

Ora, em contraste com isso, o exercício iluminista da Razão (entendida como

força ou princípio criativo autônomo) não implicava em submissão a priori a qualquer

marco de autoridade. Este exercício crítico da razão em relação a leis e significados

herdados inaugurou um novo tipo de pensamento, que se impôs gradativamente aos

vários campos do saber, do debate de idéias e das ações políticas. Portanto, mais do que

fazer um arranjo ou reacomodação de vários fragmentos do passado, costumes e

tradições interpretativas, o pensamento esclarecido buscou identificar os princípios que

fundamentavam a sua constituição e/ou modo de operação no mundo, de forma a poder

aperfeiçoar ou superar a sua manifestação.

Nesse sentido, a exemplo de Monstesquieu (1689-1755) em “O Espírito das

Leis”(1748), a busca da multiplicidade tem o sentido de encontrar nela a certeza da

unidade, posto que a variedade das formas é tão somente o desenvolvimento e o

desdobramento de uma força constituidora única – o outro nome da Razão. Assim, mais

do que se acomodar à variedade da matéria do mundo extenso – tal como sugeria a

moral de Descartes –, a filosofia iluminista buscou a unidade por trás dos fenômenos,

considerando que tal busca ampliava os horizontes de ação no mundo, mesmo que

apenas de modo aproximativo, para se poder transformá-lo com alguma eficiência e

segurança. Nesse sentido, o fato de se conceber que era possível apostar em conhecer a

força constituidora existente tanto no pensamento (intellectus) quanto na matéria do

mundo (res) era o que diferenciava, paradigmaticamente, o racionalismo cartesiano da

filosofia do Iluminismo.(CASSIRER, 1994: 21-23)

Page 15: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

15

Em termos estritamente sociais, há aqui implícita a noção de Universalidade: a

razão como força constituidora da matéria e do pensamento é una e idêntica para todo o

indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. Isso significa que, de

todas as diversidades ou variações de dogmas religiosos, máximas e convicções morais,

idéias e julgamentos teóricos, era possível destacar um conteúdo firme e imutável, cuja

unidade e consistência eram a expressão da própria essência da Razão. Isso delineia um

aparente paradoxo na filosofia do Iluminismo: do mesmo modo que se concebe o

mundo, o tempo e o pensamento como processos, busca-se por trás de todos estes

fenômenos o imutável, a substância ou uma unidade fundamental. No entanto, apenas

formalmente isso lembraria a metafísica cartesiana.

O cartesianismo do século XVII via na construção de “sistemas filosóficos” a

tarefa própria do conhecimento filosófico. Tais sistemas pressupunham alcançar a idéia

primordial de um ser supremo e de uma certeza suprema. A luz dessa certeza suprema

seria transmitida a todo o ser e a todo saber dela deduzido. É o que efetivamente ocorre

quando, pelo método da demonstração e da dedução rigorosa, outras proposições são

mediatamente ligadas à certeza primordial, a fim de se percorrer, por meio dessa

conexão mediata, toda a cadeia do cognoscível e de a encerrar sobre si mesma. Nenhum

elo dessa cadeia pode ser separado do conjunto, nenhum deles se explica nem se conclui

por si mesmo. Ora, a filosofia do Iluminismo justamente renunciou a esta forma de

“dedução”, de derivação e explicação sistemática centrada apenas no pensamento,

embora sem rivalizar com Descartes (1596-1650) no que tange ao rigor e autonomia do

método.

A filosofia do Iluminismo tem uma outra concepção de verdade, dotada de maior

amplitude, mobilidade e liberdade, pois os axiomas de pensamento encontram algo que

pode resistir-lhes: a matéria do mundo extenso, cuja força constituidora (razão)

esconde-se sob os véus aparentes de fragmentos e diversidades, comunicando-se

imperfeitamente com a força constituidora (razão) do pensamento humano. Por isso, tal

como pensava Voltaire, conhecer se torna um eterno desvelar, visto que nunca há

perfeita adequação, em âmbito humano, entre as forças constituidoras da matéria e

aquelas do pensamento. Nesse sentido, nenhum dogma deve impedir ou constranger o

espírito de sempre mover-se na direção dos fenômenos do mundo extenso. Portanto,

superando as limitações do cartesianismo, a filosofia do Iluminismo concilia o

Page 16: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

16

“positivo/empírico” com o “racional/lógico”, tal como ocorre na “Crítica da Razão

Pura”(1781) de Kant.

Resumidamente, pode-se afirmar que a filosofia do Iluminismo estabelece a

reciprocidade entre “sujeito” e “objeto”, “verdade interna” e “realidade externa”, que

faltava no pensamento sistemático de Descartes. É nesses termos que surge a demanda,

kantianamente positiva, da adaequatio res et intellectus, que é a condição/dilema de

todo conhecimento que se pretenda modernamente científico. Portanto, nos termos da

filosofia do Iluminismo, o caminho do conhecimento desenrola-se indefinidamente, pois

depende tanto da natureza do objeto (res) quanto da força específica do pensamento

(intellectus).

Aliás, desde Galileu (1564-1642), em seu “O Ensaiador” (1623), o “infinito

livro da natureza” apresentava-se como unidade autônoma de processos, cujas

totalidades eram indivisíveis. A partir daí, lança-se o desafio que continuou na física de

Isaac Newton (1643-1727) e que seria usado por Montesquieu (1689-1755) na teoria

política: não bastava que um fenômeno fosse apresentado em seu ser ou em sua maneira

de ser, pois era necessário fazer ver de que condições particulares tal fenômeno

dependia e reconhecer, com impecável rigor, em que espécie de dependência ele se

encontrava a respeito dessas condições. Com isso, substituiu-se o método dedutivo

pelo analítico: a imagem sintética de um fenômeno deveria ser decomposta para ser

“resolvida” em seus momentos constitutivos.(CASSIRER, 1994: 28-30)

O reconhecimento do diálogo imperfeito entre “realidade positiva” e “realidade

subjetiva” – que justamente criou a demanda pós-cartesiana de busca de “adequação”

entre fenômeno e racionalização (adaequatio res et intellectus) – significava renunciar

à esperança metafísica de penetrar definitivamente no ser absoluto da matéria ou da

alma humana. Reconhecendo que isso não era possível, a menos que o humano se

tornasse Deus, o verdadeiro philosophe não se prendia a fatos e crenças simples

baseados em testemunhos da tradição, dogma ou revelação. Ele somente descansava

quando decompunha (analisa), parte por parte, o edifício da crença e da “verdade

prefabricada”. No entanto, após seu trabalho de decomposição (análise), advinha a

tarefa de reconstituição lógica (síntese) da totalidade do edifício; mas o philosophe

sabia, desde o início, que as suas conclusões eram provisórias e, portanto, revisáveis

frente à crítica. Nesse sentido, a idéia iluminista de Razão se concretizava plenamente

Page 17: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

17

não como a idéia de um ser, mas como a de um fazer – a libido sciendi (desejo de

conhecer) sem pretensões metafísicas, que a dogmática teológica havia banido como a

marca ignominiosa do orgulho intelectual.

Em meados do século XVII, Thomas Hobbes definiria o pensamento em geral

como “cálculo”, que consistiria em adicionar e subtrair, valendo o mesmo raciocínio

para o pensamento político. A forma sistêmica e desvinculada de deferências religiosas

do pensamento político de Hobbes teve influência duradoura na filosofia política do

século XVIII, que imaginou encontrar nele uma continuidade de forma, conteúdo e

princípios. Hoje, sabemos que isso foi uma impressão enganosa dos philosophes, mas

podemos tentar compreender porque isso ocorrera: a ratio/cálculo hobbesiana parecia

compor o Estado a partir da decomposição (análise) do antigo vínculo que unia as

vontades particulares, reatando-o (síntese) depois à sua maneira e pelo seu próprio

método. Portanto, em pensamento, Hobbes dissolve o status civilis no status naturalis

para, demonstrando ficticiamente o antagonismo radical, propor uma recomposição

racional que refaça os vínculos sócio-políticos que ajudam a conformar o corpo do

Leviathan.

No entanto, como mero exercício dedutivo, desde o início a forma hobbesiana de

apresentação do status naturalis já pressupõe uma certeza absoluta: o status civilis. Tal

exercício de pensamento o aproxima de Descartes, mas o afasta dos iluministas, basta

observar o exemplo de Montesquieu que, em sua obra “O Espírito das Leis”, não

criaria primeiro um sistema formal abstrato para depois propor que o mundo se

conformasse a ele; pelo contrário, a sua obra é um estudo comparado de sistemas

políticos existentes no mundo (marcadamente, a Europa) que não propõe meramente

descrever as suas maneiras de ser e classificá-los, mas sim identificar a sua força

constituidora (Razão), pois, uma vez descoberta, ele poderia prescrever como que cada

constituição política4 européia realizaria a sua maior porção possível de liberdade.

Portanto, a forma de análise de Montesquieu, o seu objeto e o seu propósito

político não são equiparáveis àqueles de Hobbes. Na base de “O Espírito das Leis” está

o ideal político de impedir que cada sistema político europeu caia no despotismo – o

“Outro” da Europa, representado paradigmaticamente pelas impressões estereotipadas

que se tinha do Império Otomano. Não sem sentido, Montesquieu dedica uma parte de

seu livro a tal caso: segundo a sua compreensão do fenômeno, numa constituição

Page 18: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

18

despótica, o medo é a “mola” que a tudo faz mover, pois não há espaço para contra-

poderes que limitem uns aos outros; daí, na constituição despótica, o governante faz

com que o medo e a insegurança permaneçam continuamente no coração de seus

súditos, tornando-os escravos de seus caprichos e fazendo do Estado um negócio

privado. Deste modo, Montesquieu constrói um exato contratipo aos regimes europeus,

pois é nestes que considera encontrar as constituições políticas que, por meios próprios,

possuem como princípio de ação (necessitas ou fieri) a máxima newtoniana de que o

“poder limita o poder”.

Enfim, do ponto de vista metodológico, observamos em Montesquieu a tentativa

de adequar o empiricismo e o racionalismo, a lógica do fenômeno e a lógica do

pensamento, o fazer-se (fieri) do mundo e o fazer-se (fieri) da mente para, deste modo, o

homem esclarecido agir no mundo com mais eficácia:

“...Examinei primeiro os homens e achei que, nesta infinita diversidade de leis e costumes, eles não eram conduzidos somente por fantasias...Não tirei meus princípios de meus preconceitos e sim da natureza das coisas...Quanto mais se pensa os pormenores, mais se sentirá a certeza dos princípios...; seguia meu objeto sem formar objetivo; não conhecia nem as regras, nem as exceções; só encontrava a verdade para perdê-la. Porém, quando descobri os meus princípios, tudo o que procurava veio a mim; e, durante vinte anos, vi minha obra começar a crescer, avançar e terminar...”(MONTESQUIEU, 1993: 5-7)

Portanto, partindo do método cartesiano, o novo ideal filosófico do século XVIII

ultrapassou-o em implicação ao pensar na presença da Razão, como força

constituidora, tanto na matéria (res) quanto no pensamento (intellectus) – sendo, pois,

o centro do filosofar não a negação do mundo, mas a busca da correlação entre res e

intellectus. Daí, em vez de negar a validade do mundo para o pensamento – como fizera

Descartes com seu cogito devido ao seu incômodo pessoal com a grande diversidade de

coisas e opiniões no mundo extenso –, a filosofia do Iluminismo estendeu para o

mundo o uso do método sistemático cartesiano e, deste modo, pôde dedicar-se à tarefa

de extrair/desvelar da diversidade aparente das coisas uma identidade fundamental.

Deste modo, observamos emergir uma nova atitude filosófica que busca a unidade, a

uniformidade e a simplicidade, enfim, a identidade lógica existente por trás das coisas

sociais e naturais do mundo, de forma que o pensamento não se perca em meio a uma

miríade de fenômenos sobre os quais não poderia operar/agir constitutivamente.

Page 19: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

19

Estado Prismático: Entre Tradição e Esclarecimento

No artigo enciclopédico “Autoridade Política”, de Denis Diderot, podemos

observar pontos de ruptura e continuidade em relação às idéias de Thomas Hobbes a

respeito do Estado, já que ambos concebem-no como um mecanismo governamental

(automaton) que possui lógica própria e independente das – uma vez que fora instituído

pelas – vontades individuais.(DIDEROT&D’ALAMBERT, 2006: 37-46) No entanto,

deve-se considerar que o “Leviathan”(1651) é uma versão teórica radicalmente

secularizada do Estado de Antigo Regime e não se confunde com a experiência

política de Estado que se firma ao final do século XVIII.

Como sabemos, há uma distinção geracional entre Hobbes e Diderot, pois é para

a época de Diderot que se firma como princípio que, sem a laicização das relações civis

(a separação dos Poderes Soberanos das questões dogmáticas confessionais), nenhum

monarca conseguiria promover o progresso do saber. Além disso, em termos

conceptuais, o mecanismo contratual do Estado do monarca esclarecido, ou Estado de

Razão, ultrapassava em larga medida o mecanismo pactual do Estado Político de

Hobbes, pois seria uma res publica em que os “objetivos públicos” dos poderes

soberanos progressivamente deixariam de ter nos corpos de privilégios os suportes ou

intermediários exclusivos da ação administrativa (potestas). Nesse sentido, o Estado de

Razão pressupõe um tipo de potestade pública que aos poucos abandonou a atitude

jurisdicionalista (acomodação das partes de privilégios) e tornou-se apenas disciplina

(conformadora da natureza das partes) – mudança de paradigma que apenas se

concretiza plenamente com a institucionalização burocrática do Estado durante o

século XIX. (HESPANHA, 1990: 91-108)

Antes de isso acontecer, o que observamos no século XVIII é o início de uma

experiência de Estado como força constituidora que opera como um grande prisma

invertido, tentando fazer das várias cores do arco-íris (corpos de privilégios) que o

atravessavam uma única luz, o que não implicava imediatamente na anulação da ordem

político-social de Antigo Regime. Entretanto, a ação do poder soberano deste Estado

não era mais de mera acomodação das partes, mas de clara intervenção pontual e de

reconfiguração da natureza dos corpos de privilégios, o que esteve longe de ser uma

Page 20: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

20

simples ação operada de cima para baixo, como demonstra o trabalho de Cots I

Castañè(1993) sobre a Catalunha do século XVIII.

Ao estudar os padrões de conflitos senhoriais na Catalunha da segunda metade

do século XVIII, Cots I Castañè chegaria a conclusões que contrariariam as expectativas

analíticas desejosas de encontrarem uma espécie de preparação institucional para a

propriedade de tipo capitalista como marco do processo social de transição para a forma

burocrática de Estado, particularmente quando se entende por isso o fim das relações

senhoriais como formas constitutivas de vínculos sociais e políticos. Cots I Castañè

percebeu que os conflitos senhoriais deste lapso de século não se justificavam pelo fato

de tais instituições serem percebidas como um freio ao desenvolvimento econômico e

social, já que demonstravam considerável capacidade adaptativa, conseguindo que seus

rendimentos aumentassem durante o período.

Com isso, percebe-se que o desenvolvimento regional catalão da economia de

mercado (no sentido de fim dos dispositivos tradicionais de controle de preços)

potencializava os ganhos senhoriais e que, portanto, o surgimento de novos regimes

econômicos na relação homem/bens não implicava na anulação das formas senhoriais

de relação homem/homem. Além disso, Cots I Castañè percebeu um padrão recorrente

de conflitos na Catalunha: embora o seu número seguisse sendo reduzido, tratavam-se

daqueles que se referiam às tentativas de reincorporação na Coroa da jurisdição e dos

outros direitos de uma vila ou povoação por iniciativa da própria comunidade e/ou

grupo de vizinhos contrários aos senhores locais.

Entretanto, como aponta Cots I Castañè, a apelação local à justiça régia não

deveria fazer supor que as comunidades catalãs estivessem se entrosando com uma

concepção de vida pública abstrata. Os opositores aos senhores locais fundavam a sua

ação numa concepção particularista de seus interesses, mesmo porque a distribuição dos

senhorios econômicos e/ou jurisdicionais costumava ser muito diversa de uma região

para outra. Daí, os conflitos obedeciam a variáveis díspares que não ultrapassavam o

âmbito local: algumas vezes, gerava conflitos o próprio intento de os senhores

receberem de forma mais favorável certos direitos antigos que se tornaram pouco usuais

(por exemplo, o dízimo ou alguma prestação), ou o intento de outorgar-se novos direitos

(como a nomeação dos cargos da comunidade ou as competências inovadoras dos

Page 21: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

21

procuradores jurisdicionais); outras vezes, geravam conflitos os próprios vizinhos que

se negavam a pagar ou aceitar velhos direitos que estavam vigentes por décadas.

Portanto, a incorporação à jurisdição régia ou a negação de antigos direitos e

tradições não significava a entrada nas concepções abstratas e universalizantes do

Estado Liberal ou a completa negação da forma tradicional de conceber ações,

vínculos sociais e papéis políticos. Outro dado importante assinalado por Cots I

Castañè é que, malgrado o maior número de senhorios laicos em relação aos religiosos,

eram estes últimos os mais afetados pelos conflitos. Isso corrobora a hipótese do autor

de que, em certas regiões da Catalunha, ocorreu uma mudança de mentalidade em

determinados setores da “opinião pública”, que fez com que tais instituições senhoriais

fossem cada vez menos aceitáveis num contexto de debate de idéias iluministas.

Na gama de casos de conflitos estudados por Cots I Castañè, o comportamento

da comunidade e/ou grupo de vizinhos pode ser ordenado nos seguintes tópicos: (1)

líderes contrários ao senhor com apoio majoritário da opinião dos vizinhos; (2) líderes

contrários ao senhor com o apoio minoritário dos vizinhos; (3) a comunidade ou grupos

determinados de vizinhos confrontavam-se com o senhor, sem que seja possível

conhecer a opinião do resto da vizinhança; (4) uma parte pequena da comunidade ou

vizinhança colabora com o senhor, enquanto que o resto dos vizinhos se confronta com

ele. À margem destes casos tão particulares, Cots I Castañè afirma que, no resto das

povoações de senhorio jurisdicional, era freqüente que os senhores contassem com o

apoio de um grupo mais ou menos numeroso de vizinhos fiéis, muitos dos quais

costumavam ser nomeados – se fiarmos nas acusações que lhes são dirigidas pelos

outros vizinhos – como alcaides ou como regedores para proteger os interesses

senhoriais.

Portanto, como vêm demonstrando muitos trabalhos desde a década de 1980,

não é possível entender os padrões de conflito e as instituições do Estado no século

XVIII sem atentar para as redes clientelares e relações de dom e contra-dom senhoriais

que constituem o cerne de seu fazer político.(WINDLER, 1997) Nesse sentido, embora

a leitura de Koselleck da obra de Hobbes ofereça ferramentas de análise úteis para se

pensar o contexto cultural e político geral do Iluminismo, a sua interpretação do

“Leviathan”(1651) torna-se anacrônica por ver nesta obra uma antecipação lógica e

conceptual do paradigma burocrático de Estado. Além disso, Koselleck(1999:20) afirma

Page 22: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

22

que as monarquias do século XVIII seriam estamentais “em plano social” mas não “em

plano político”. No final das contas, esta forma de interpretação que separa o “social”

do “político” reproduz o modelo analítico tocquevilleano – “absolutismo” versus

“sociedade de corpos” –, que fora objeto de revisão historiográfica ao longo da década

de 1990.(VIANNA, 2007)

Na verdade, Koselleck (ao lado de Hannah Arendt) faz parte de uma geração de

intelectuais que indagaram se não haveria uma correlação formal entre Cristianismo

(como Promessa Messiânica de Salvação) e Iluminismo (como Utopia de Progresso),

pensando isso como a base conceptual de uma noção de Estado imaginado como uma

força reformadora da sociedade e com inegável potencial para o terror: em seus termos,

a ação humana estaria subordinada a um ideal necessário de progresso

(heteronomia), em vez de o progresso existir em função da necessidade humana

(autonomia). Daí, não surpreende que, em seus respectivos planos analíticos, Koselleck

e Arendt enxergassem nas pretensões cristãs e iluministas de igualdade (“em Cristo” e

“em espírito/moral/razão”, respectivamente) e de universalidade (da “Fé cristã” ou da

“Razão”, respectivamente) um potencial inevitável para intolerância ou terror, contido

na própria idéia de processo de “salvação da alma”, “aperfeiçoamento moral” ou

“esclarecimento”, pois o individual, o pontual ou o específico perder-se-ia em meio a

“forças totalizantes” (“Deus”, “Estado”, “Razão”, “Revolução” e “Raça”).

Portanto, Koselleck trata o Iluminismo – e Hannah Arendt a Revolução – como

uma praxiologia secularizada da escatologia cristã porque vivem, na segunda metade do

século XX, um clima intelectual de desencanto frente aos horrores do nazismo e à

experiência do socialismo soviético, abrindo um manancial de crítica que coincide com

os efeitos politicamente minguados do “degelo” soviético ao final da década de 1950 –

momento de efervescência da crítica liberal aos “totalitarismos”. A partir deste viés

crítico, constituiu-se contemporaneamente o hábito de apresentar como forças

necessariamente opositivas os princípios da Liberdade e da Igualdade. No entanto, não

se pode descontextualizar o debate iluminista de idéias do século XVIII, ou reduzi-lo a

um rio de única foz. O potencial crítico do pensamento iluminista não pode ser pilhado

pelas ansiedades, ceticismos ou ansiedades do presente.

Em várias áreas de conhecimento no contexto do Iluminismo, estendeu-se o

princípio de que se deve operar o entendimento do particular (miríade de fenômenos

Page 23: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

23

do pensamento e do mundo) para o geral (a força constituidora dos fenômenos,

percebida como lei, razão ou necessidade). Ora, tal processo indutivo-analítico

iluminista apenas tem sentido porque a existência do particular é vista como estando

ligada a uma força constituidora imanente (razão, lei, necessidade), que o inscreve

num plano fenomênico causal (em vez de casual) igualmente imanente. Logicamente,

podemos observar nisso um novo modo de pensamento em que o particular deixa de ser

auto-referencial e, a posteriori, justaposto artificialmente num plano de conjunto por

uma vontade arbitral.

A partir da matriz de entendimento iluminista, houve algumas implicações

práticas do ponto de vista político-institucional: diferentemente do tenso cálculo(ratio)

político que envolve os artifícios de acomodação entre tradição e imprevisibilidade, ou

status e circunstância – característico da Razão de Estado no contexto do Barroco (que

é, não esqueçamos, o contexto de Thomas Hobbes) –, as implicações políticas da forma

de pensamento iluminista (do Estado de Razão) serão tentativas de reformas

institucionais menos afeitas a uma simples acomodação, por justaposição, das partes de

privatae leges. Por isso mesmo, na virada do século XVIII para o XIX, o

“todo”(Estado) deixaria de ser definitivamente entendido como uma mera soma de

partes de “tempos e lugares” (tradições, costumes e privilégios) adequadamente

subordinadas – tal como era a imagem de Estado idealizada por Hobbes –, pois tais

partes passaram a ser ultrapassadas e reconfiguradas por uma força constituidora

(Estado de Razão) que, tal como num prisma invertido, começara a tentar fazer delas

um único “tempo e lugar”, alterando a sua natureza enquanto “partes”.

Assim, efetivamente, surgiu no século XVIII uma forma de pensamento que

diluiu o individual no processual imanente, mas isso somente adquire feições de terror

quando, em recaída metafísica, os atores políticos definem para o processo um ponto

final inquestionável, esvaziando o pensamento iluminista de sua auto-reflexividade

crítica. No fundo, embora não se dessem conta disso, as críticas ao Iluminismo nas

décadas de 1950 e 1960 centraram-se apenas em suas feições metafísicas, como se estas

fossem as únicas a enformar o pensamento iluminista, esquecendo-se que a condição da

superação da metafísica cartesiana foi justamente a cogitação do mundo, o que

implicou no desafio infinito de adequação entre res e intellectus.

Page 24: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

24

Como notara Ernst Cassirer, se o paradoxo da filosofia do iluminismo estava em

pensar em progresso e em buscar sistematicamente a substância imutável residente na

miríade dos fenômenos humanos e naturais, não há, entretanto, um ponto definitivo de

chegada, pois, tal como notara Voltaire(1694-1778), há sempre um abismo no conhecer

que torna sempre provisória qualquer explicação sobre o homem e sobre o mundo e,

nesse sentido, não deve haver aceitação dogmática sobre qualquer assunto.

Considerando isso, uma outra chave interpretativa de Iluminismo, que não aquela da

crítica de Koselleck ou Arendt, poderia partir de um ensaio de Voltaire: “O Filósofo

Ignorante”. Através deste ensaio, poderemos observar outras implicações da descoberta

do exercício da autonomia crítica iluminista e, assim, demonstrar que seu universo é

muito mais rico para o pensamento contemporâneo do que nos permitiu perceber a

crítica liberal aos totalitarismos nas décadas de 1950 e 1960 – mesmo porque, sem a

experiência histórica do Iluminismo, tanto o liberalismo quanto o socialismo dos

séculos XIX e XX não seriam possíveis.

‘Sapere Aude!’ e Antimetafísica em Voltaire

Em 1932, às vésperas da emergência do regime fascista alemão, Ernst Cassirer

assim terminou o prefácio de seu livro “A Filosofia do Iluminismo”:

“Essa suficiência do ‘eu sei mais’ de que recriminam o Século das Luzes e sobre a qual ninguém se cansa de acumular provas gerou inúmeros preconceitos que ainda hoje impedem um julgamento isento do Iluminismo. (...) O século que viu e glorificou na razão e na ciência ‘a suprema faculdade do homem’ não pode estar para nós inteiramente superado; devemos encontrar o meio de descobrir sua verdadeira fisionomia e, sobretudo, de libertar as forças profundas que produziram e modelaram essa fisionomia”.(CASSIRER, 1994: 14-15) Quase dois séculos antes, uma das principais referências do Iluminismo francês,

Voltaire(1694-1778), desenvolveu um tratado de ironia filosófica chamado “O Filósofo

Ignorante”, que bem serviria para responder ao apelativo de Cassirer. À primeira vista,

o título da obra parece paradoxal: Como que na era do Iluminismo o philosophe poderia

ser ignorante? Na verdade, o título não é uma ofensa, mas um convite para uma nova

forma de procedimento em relação à busca de conhecimento no homem e sobre as

coisas existentes no mundo. Este convite era um passaporte para a liberdade de

Page 25: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

25

consciência e autonomia crítica do homem. Para alcançar tal autonomia, o homem

deveria ser ignorante... Mas ignorante em relação a quê?

O texto faz pouco caso dos filósofos metafísicos cartesianos, que se

preocupavam com especulações sobre as causas primeiras das coisas. Voltaire ironiza

tal pretensão da busca das origens, pois, além de serem necessariamente inacessíveis à

mente humana, não teriam nenhum efeito prático para suas coisas cotidianas, quase

sempre resolvidas pelo repertório de hábitos e costumes. Além disso, “na cadeia dos

acontecimentos”, há vazios e lacunas, pois a natureza das coisas não é compacta. Não se

trata, logicamente, de um libelo contra o progresso do conhecimento ou da instrução,

mas de uma tentativa de usar o bom senso para delimitar claramente uma esfera para o

conhecimento que efetivamente o homem poderia ter domínio e desenvolver livremente.

Nesse sentido, Voltaire está inscrito no processo de secularização do

conhecimento e da busca iluminista do progresso ou aperfeiçoamento humano, sem se

preocupar em estabelecer ou alcançar um ponto final para a “cadeia dos

acontecimentos”. Por isso, Voltaire faz um convite para que o homem desenvolva um

saber prático, aplicável à vida. E fazer isso era também ratificar a submissão do Homem

ao seu Criador, era diferenciar a esfera daquilo que o homem poderia fazer/pensar

(imperfeito, incompleto e limitado no tempo e no espaço) daquilo que fazia parte da

esfera do divino (perfeição e completude).

Segundo Voltaire, a busca do conhecimento sobre o mundo extenso é ir dos

efeitos às causas, mas sem a pretensão de se colocar “de um único lance à testa da

origem das coisas”, como pretendera Descartes, pois haverá sempre para o homem algo

por descobrir, uma qualidade por desvelar que desafia seus sistemas explicativos.

Portanto, somente para o homem faz sentido dizer que deve permanentemente buscar a

adequação entre matéria e pensamento (adaequatio res et intellectus). Por isso, entre

uma causa primeira para as coisas e a experiência que temos delas, haverá sempre um

abismo do que não se pode saber, de “ignorância”. Eis o infinito da matéria do

conhecimento em relação à capacidade de o homem conhecê-la.

Ora, podemos observar nesta “ignorância”, assumida por Voltaire, relações

diretas com suas concepções de tolerância, engajamento político e universalismo: se

minha mente não pode alcançar tudo que tem a ver com as causas primeiras das coisas,

nenhum conhecimento pode se tornar dogma. Nesse sentido, não pode haver crédito

Page 26: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

26

nenhum para os sistemas de pensamento que tentam estabelecer-se de uma vez por toda

“à testa da origem das coisas” e, em nome disso, perseguem, matam, desqualificam ou

impedem a emergência de portadores de outras idéias.

Portanto, a antimetafísica de Voltaire relativiza qualquer forma de autoridade

(religiosa, cultural ou política) e reconhece que a verdade é filha do tempo, pois é um

consenso momentâneo que se alcança a partir do livre confronto de idéias. Nesse

sentido, a consciência esclarecida é aquela livre de qualquer constrangimento de dogma

ou autoridade, pois as verdades se sucedem no tempo sem plano previamente definido.

Daí, como conseqüência lógica, deve-se superar o império tradicional do respeito cego

ao passado, aos preconceitos e aos instintos, pois todo conhecimento, em relação à

capacidade humana de entendimento, será sempre relativo no tempo. Isso é exatamente

oposto à forma de entendimento de caráter metafísico, pois neste a razão humana

pode almejar dois tipos de transcendência: um passado como ponto inicial causal a

partir do qual há certeza e pleno preenchimento da vagueza das coisas; ou um ponto

final (futuro utópico ou apocalíptico) para o processo de conhecimento e para o agir do

homem, eximindo-o da ansiedade da eterna busca, da aposta e da incerteza em relação

às escolhas de planos provisórios de futuro.

Com seu ideal filosófico de “ignorância da metafísica”, Voltaire expressa a

reflexividade criativa do pensamento filosófico iluminista. Ao livrar sua mente de

qualquer pretensão metafísica, Voltaire imagina um filósofo inserido numa perpétua

transcendência de si mesmo que é circunscrita ao que é cabível ao humano. É

somente em relação ao homem que faz sentido falar em progresso do conhecimento.

Portanto, a incerteza não gera nele ceticismo, desengajamento ou apatia, porque desde o

início o seu “filósofo ignorante” está livre do modo metafísico de pensar, não se sente

traído ou desencantado em relação a qualquer paradigma que venha a perder validade,

posto que simplesmente não opera com o desejo de completude filosófica ou existencial

– não cabe a ele tal atributo, posto que isso é da ordem do divino. Ao homem caberia

sempre pensar e agir porque, diferentemente do Artesão do Universo, não pode ser ao

mesmo tempo “pensamento e matéria”(intellectus et res).

Deste modo, Voltaire pode celebrar o progresso do saber humano a partir da

crítica à forma dogmática de pensamento, sem que isso o leve a pensar na inexistência

de “Deus”, pois, neste caso, seria o mesmo que dizer que o mundo é uma fatalidade

Page 27: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

27

cega, que não existiria nele uma força constituidora (Razão/necessidade). Segundo

Voltaire, todos os povos do mundo a reconhecem (eis o princípio da Religião Natural)

e, por isso, criam seus próprios sistemas explicativos sobre ela. No entanto, enquanto

vários povos do mundo tentam dar uma forma doutrinal explicativa para “Deus”,

Voltaire contenta-se tão somente em saber que ele existe e reverenciá-lo por sua obra,

pois não é possível ao homem explicá-lo, o que torna completamente injustificáveis as

violências cometidas em nome deste ou daquele dogma de fé.

Assim, podemos observar em Voltaire uma dimensão de idéia de progresso

que foi indissociável da noção de incompletude filosófica. Tal dimensão fora muito

distinta daquela que, nos séculos XIX e XX, foi apresentada como “última instância”

civilizadora ou como “arma contra a barbárie”. Ora, quando a noção de progresso

humano é alienada de sua consciência da incompletude e entendida – metafisicamente –

como última instância de “bem” ou “belo”, a riqueza cultural da crítica iluminista

desaparece. Como parte da condição humana, a incompletude cultural pressupõe

igualmente o específico e o universal, o histórico e o estrutural, o pontual e o

processual, cuja interação dialética livra-nos de uma noção de mundo meta-estável. Tais

convergências fazem com que a espécie humana possa reconhecer-se em múltiplas

realidades, perceber constantes de pensar e agir calcadas nas mesmas necessidades

vitais – fundamentos de seus “direitos naturais” –, cujas demandas são respondidas de

forma variável no tempo e no espaço.

Nesse sentido, o autoconhecimento da espécie humana terá sempre esta

ambigüidade: compreender a especificidade, mas considerando que sua apreensão

depende das condições mínimas (estruturais) que tornam possível o entendimento

recíproco. Trata-se de um exercício intelectual que não é simples, pois o homem não

pode ser Deus e, por isso mesmo, não deve abandonar o desejo de instruir-se e nem

deve pretender estabelecer um limite para a sua curiosidade a respeito de tudo que pode

conhecer através de experiências lógicas e sensuais. Portanto, o “filósofo ignorante” de

Voltaire serve-nos como um alerta tanto contra governos que estabeleçam fórmulas

fixas e inquestionáveis para reformas ou transformações das paisagens naturais e

humanas quanto contra as insulações culturais identitárias contemporâneas que queiram

trazer para a esfera do humano os atributos de perfeição, completude ou de “última

instância paradigmática” pertencentes ao “divino”.(VIANNA, 2004a)

Page 28: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

28

Conclusão: Nova Razão e Distinção Social Como temos observado, o contexto do Iluminismo preencheu com novos

sentidos velhas palavras dos vocabulários filosófico e político dos séculos XVI e XVII,

o que torna tanto maior o nosso risco de perceber continuidades onde efetivamente há

rupturas. No centro do debate filosófico iluminista está uma nova idéia de razão e, nesse

sentido, o chamado “Século da Razão” não poderia ser pensado como mais racional ou

racionalizador do que os anteriores, mas como um período em que um novo significado

foi criado para o termo, passando do sentido de mero cálculo circunstancial

acomodatício para aquele de força constituidora do pensamento e da matéria. Por isso,

a Razão Iluminista teria implicações filosóficas, morais e políticas bastante

contrastantes em relação à ratio dos contextos do Barroco e do Renascimento.

Entender a razão como força constituidora altera a relação entre passado e

presente, pois torna este último o elo constitutivo de um processo de futuro, em vez de

ser entendido como um ponto inercial de perspectiva a partir do qual se acomodariam

as partes de uma paisagem (política, moral, filosófica ou natural) em enquadramentos

significativos a priori fixos.(VIANNA, 2001) Nesse sentido, na concepção de tempo

iluminista, o presente diluiu-se numa necessidade histórica, em que o movimento das

coisas humanas em direção ao futuro expressaria um processo infinito de

aperfeiçoamento da sociedade. Deste modo, os momentos históricos seriam agora

percebidos como qualitativamente distintos entre si, em vez de serem pensados como

tipologicamente equivalentes in nuce. Como observamos anteriormente, Koselleck

interpretou tal transformação iluminista da relação entre passado, presente e futuro

como uma forma de secularização da escatologia cristã.

Portanto, entender o passado como presente superado e o futuro como

superação do presente representa um ponto de inflexão que diferencia intelectualmente

e moralmente o Iluminismo dos contextos do Barroco e do Renascimento. Tal inflexão

ocorrera na virada do século XVII para o XVIII, cujo marco intelectual seria o chamado

“embate entre antigos e modernos”. No entanto, somente na segunda metade do século

XVIII é que predominou a tese dos “modernos”, ou seja, que a produção artística e

intelectual dos “tempos atuais”(modernos) não deveria seguir os cânones do passado,

mas sim constituir seus próprios modelos, pois cada tempo seria moderno em si mesmo

Page 29: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

29

e todo cânone (clássico ou moderno) poderia ser revisado pela crítica pessoal dos

letrados.

Nesse sentido, não deveria haver uma forma última autorizadora da opinião e,

portanto, o passado perderia o seu lugar de autoridade fomentadora de um repertório

tipológico de modelos ou exemplos. Logicamente, tudo isso implicaria numa nova

forma de pensamento: se cada passado foi moderno em si mesmo, isso significa que

cada época tem o seu próprio princípio criativo, a sua própria força constituidora,

cabendo à inteligência humana saber explorá-la, potencializá-la e superá-la. A prática

política deste novo tipo de razão não tardaria de se manifestar na ação administrativa do

Estado.

O Estado de Razão tenderia a interferir mais contundentemente na teia dos

privilégios, alterando o estatuto de muitos cargos administrativos e criando novos mais

dependentes dos salários pagos pelo poder soberano central do que de ganhos

emolumentares ligados ao seu usufruto local como patrimônio. Tratava-se de algo que,

no século XVIII, mais sinalizava uma tendência do que definia um perfil para este

Estado. Em todo caso, entendida como força constituidora, a razão operante na

dinâmica administrativa do Estado do Iluminismo transformaria a relação entre poder

político e território, pois, dos vários tempos e lugares (tendencialmente auto-

referenciais e mediados por privatae leges) em que o seu território estava dividido,

dever-se-ia fazer um único tempo no espaço, processo que poderia ser metaforizado,

como demonstrei anteriormente, pela imagem do prisma de efeito invertido.

Assim, não sem sentido, podemos observar nas próprias idéias econômicas dos

fisiocratas e economistas clássicos da segunda metade do século XVIII a ênfase na

necessidade de se facilitar a circulação dos bens num território através da redução,

simplificação e uniformização do sistema tributário, devendo-se superar a fragmentação

legal e, por extensão, o patrimonialismo do sistema fiscal. Eles enxergavam na

eliminação dessa estrutura um meio de estimular o equilíbrio entre as regiões de um

Estado, uma vez que seria desobstruída a relação natural entre oferta e demanda. Ora,

concretizar tal idéia significaria alterar o estatuto político-jurídico da relação

homem/terra em seus efeitos econômicos e fiscais, buscando-se uma certa

uniformidade no espaço e estabilidade no tempo para os negócios, cujo modelo jurídico

é o contrato comercial de bens móveis.

Page 30: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

30

Como se viu no caso da Catalunha da segunda metade do século XVIII, uma

reforma administrativa nessa proporção não era necessariamente opositiva à

manutenção de certas prerrogativas vinculadas a antigos direitos e obrigações

jurisdicionais na relação homem/homem; pelo contrário, poderia até fortalecer social e

economicamente determinadas posições senhoriais locais como intermediárias do poder

soberano central. Em todo caso, não se deve perder de vista que um Estado que atua

prismaticamente – e não como simples acomodador de partes autoconstitutivas de

privilégios – exige de seus agentes um tipo de competência administrativa muito mais

centrada no mérito demonstrado pela capacidade de ação do que no mérito presumido

pelo lugar estamental de nascimento.

Ao final do século XVIII, como demonstra a produção literária deste momento,

firma-se como expectativa comportamental na elite letrada iluminista um novo princípio

de distinção social, no qual ser “bem fornido” e ser “bem letrado” tornaram-se, cada vez

mais, marcas centrais de excelência social, o que atenuou ou reconfigurou (mas não

eliminou) o papel dos velhos referenciais estamentais. Atrelada a isso esteve a idéia de

que o valor social (embora não necessariamente político) do indivíduo seria uma

conquista do mérito pessoal e não uma condição presumida pelo lugar social de

nascimento.(MORAES, 2005)

Portanto, nessa configuração, a identidade social seria cada vez mais entendida

como um processo/ação(fazer-se), em vez de ser encarada como uma

condição/estado(ser), o que atenuava a idéia de excelência social transmissível pelo

sangue (nobreza de nascimento). Assim, se antes os homens apenas poderiam dizer-se

iguais entre si pelo amor em Deus, agora a sua igualdade seria calcada na Razão, pois

todos nasceriam com a mesma potência de pensar e sentir, que se desenvolveria

conforme talentos inatos e/ou treinados pelas oportunidades. Deste modo, podemos

perceber que se criou um novo princípio ou percepção de universalidade para os

homens, agora medida em termos exclusivamente seculares.

Afinal, foi no contexto do Iluminismo que as discussões sobre direitos naturais

ajudaram a conformar novos universais que pintaram um quadro mais otimista para o

homem – e que era particularmente distinto da visão hobbesiana da natureza humana.

Para os iluministas, a natureza do homem impeli-lo-ia naturalmente para a paz e o

desejo de liberdade, pois as leis naturais da autopreservação e amor-próprio conduzi-

Page 31: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

31

lo-iam para a companhia de seus semelhantes e para a rejeição de tiranias. Nesse

sentido, a guerra é intolerável porque fere o direito natural ao conturbar a produção de

riqueza, ameaçar e tornar imprevisível a preservação física de bens e pessoas,

desagregar a reciprocidade natural entre os homens, além de dar margem para a ação de

lideranças políticas inescrupulosas e, potencialmente, tirânicas.

Aliás, com exceção da tendência rousseauniana, a maioria dos philosophes

pensava que os direitos naturais serviam para mostrar que a propriedade privada era

algo natural e, portanto, comum à espécie humana – e a guerra seria, por extensão,

antinatural, pois justamente tornaria instável a sua manutenção e estorvaria a produção.

Além disso, os philosophes não acreditavam que houvesse bens para todos no mundo

em mesma proporção, mas pensavam que quanto mais gente pudesse ter acesso a bens

próprios – principalmente terras sem vínculos de obrigações senhoriais – e tivesse

facilidade no escoamento da produção, maiores seriam as motivações para produzir

riqueza. Ora, é justamente dessa conjuntura a máxima econômica e ética do fisiocrata

Quesnay (1694-1774) de que “a carência não torna ninguém mais laborioso”; pelo

contrário, deprime e desestimula.

Nesse sentido, a igualdade (interior) na Razão teria efeitos (externos) pouco

práticos se o homem não pudesse ser minimamente livre de vínculos de subordinação

econômica, ou seja, as pessoas deveriam possuir bens próprios para o natural exercício

de sua autopreservação. Assim, pode-se dizer que a propriedade seria a condição para o

homem sair de uma menoridade material; enquanto tornar-se letrado e autônomo no

domínio de idéias seria escapar da menoridade intelectual, embora para ser “bem

letrado” fosse necessário “ócio”, somente garantido pelo acúmulo de propriedade. Disso

advém a equação liberal que relaciona propriedade, liberdade e progresso. É a partir

deste debate de idéia que tanto os resquícios de servidão na Europa quanto a escravidão

nas colônias passaram a ser criticados como marcas de atraso e ignomínia. No entanto, o

debate é menos simples do que parece, pois o tráfico de escravos e o cativeiro

permaneceram tratados oficialmente no século XVIII como “resgate” (da barbárie

cultural, religiosa, política ou sociológica).

Ao lado das transformações econômicas do século XVIII, a noção de que havia

uma igualdade (interior) do homem baseada na Razão e nos universais de seus direitos

naturais afetou consequentemente o trato social em determinados círculos de

Page 32: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

32

sociabilidade, embora isso não significasse uma ameaça geral imediata à estrutura

político-jurídica estamental de constituição dos vínculos sociais e políticos. Ora, se

lembrarmos do exemplo da Kant, poderemos perceber que a crítica iluminista não

questionava a existência de hierarquias sociais e políticas, desde que demonstrassem

funcionalidade e não chocassem a consciência.

De qualquer forma, é inegável que (1) a descoberta do princípio de igualdade

baseado na Razão (entendida como força constituidora), que (2) a competência

presumida da riqueza suplantando a competência presumida pelo nascimento, que (3)

as demandas cada vez maiores por uniformidade e previsibilidade no sistema fiscal-

orçamentário do Estado e que (4) os marcantes não cumprimentos dos deveres sociais,

econômicos e políticos vinculados a privilégios e isenções de muitos patrimônios nobres

e não-nobres acabariam por desenhar progressivamente um quadro para demandas de

reformas que desembocariam na própria superação das estruturas sociais, políticas e

jurídicas de Antigo Regime.

Referências Bibliográficas: ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa: Moraes Editores, 1971[1961]. ASCH, Ronald; DUCHHARDT, Heinz(eds.). El Absolutismo: Un Mito? Barcelona: Idea Books, 2000. BACZKO, Bronislaw. “Iluminismo”. In Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. pp.754-763 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. São Paulo: Campinas, 1994. CAVALCANTE, Berenice. ‘Ser Moderno’: a propósito de uma tradição. Semear, vol.4. Petrópolis: Vozes, 2000. pp.115-126. CLAVERO, Bartolomé. “Senhorio e Fazenda em Castela nos finais do Antigo Regime”. In Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982. pp.155-177. COSANDEY, Fanny; DESCIMON, Robert. L’Absolutisme en France: Histoire et Historiographie. Paris: Seuil, 2002. COTS I CASTAÑÈ, Albert. “Instituições sociais e opinião pública na Catalunha entre 1751 e 1808: uma perspectiva a partir do estudo de alguns conflitos senhoriais”. In Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. pp.261-285 DeJEAN, Joan. Antigos contra Modernos: As Guerras Culturais e a Construção de um fin de siècle. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. DESCARTES, René. Discurso do Método. Brasília: Editora da Univ. de Brasília, 1985. FALCON, Francisco Calazans. A Época Pombalina. São Paulo: Ática, 1982. DIDEROT & D’ALAMBERT. Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006. GINZBURG, Carlo. “O Alto e o Baixo: o tema do conhecimento proibido nos séculos XVI e XVIII”. In Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp.95-117 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993.

Page 33: VIANNA a Cultura Do Iluminismo

www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007

33

HESPANHA, António Manuel. A Nobreza nos Tratados Jurídicos dos séculos XVI a XVIII. Penélope, n.12. Lisboa: Cosmos, 1993. pp.27-42. HESPANHA, António Manuel. “De la Iustitia a la Disciplina”. In Sexo barroco y otras transgresiones premodernas. Madrid: Alianza Universidad, 1990. pp.91-108 JACOB, Margaret C.. The Enlightment: A Brief History with Documents. Boston/New York: Bedford/St. Martin’s, 2001. KANT, Immanuel. O que é Esclarecimento? Revista Espaço Acadêmico, n.31. Maringá: UEM/Departamento de Sociologia, 2003. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 1999. KOSELLECK, Reinhardt. Futuro passado. Barcelona: Paidós, 1993. MARAVALL, José Antonio. Cultura do Barroco. São Paulo: Edusp, 1997. MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1993. MORAES, Aline de Jesus. ‘Kultur versus Zivilisation’: Distinção Social e Desconforto Burguês em ‘Werther’. Revista Espaço Acadêmico, n.49. Maringá: UEM/Departamento de Sociologia, 2005. OLINTO, Heidrun Krieger. Afinal, (não) queremos ser modernos? Pequenas Dúvidas acerca da Cultura Contemporânea. Semear, vol.4. Petrópolis: Vozes, 2000. pp.39-51. SANTOS, Boaventura de Souza. “Por uma concepção multicultural dos Direitos Humanos”. In Identidades: Estudos de Cultura e Poder. São Paulo: Hucitec, 2000. pp.19-39 VIANNA, Alexander M.. ‘Absolutismo’: Os limites de uso de um conceito liberal. Revista Eletrônica Urutágua, n.14. Maringá: UEM-Departamento de Sociologia, 2007. VIANNA, Alexander M.. A Antimetafísica de Voltaire: Um alento de Modernidade Crítica para as Identidades Contemporâneas. Revista Diálogo, vol.8. Maringá: UEM-Departamento de História, 2004a. pp.131-147 VIANNA, Alexander Martins. Liminaridade Indesejada: Por uma Leitura Anti-Romântica de ‘Romeu e Julieta’. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, n.39. Maringá: UEM-Departamento de Sociologia, 2004b. VIANNA, Alexander Martins. “O poder político na Europa Moderna, sécs. XV-XVIII”. In Escritos de História e Educação: Homenagem a Maria Yedda Leite Linhares. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.pp.171-196 VOLTAIRE. “Filósofo Ignorante”. In Pensadores, vol. XXIII. São Paulo: Abril Cultural, 1973. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Sociedade Estamental e Estado: As leituras de bacharéis e o ingresso à burocracia judiciária – O caso Luso-Brasileiro. Revista do IHGB, vol. 156, n. 387. Rio de Janeiro: IHGB, 1995. pp.253-263 WINDLER, Christian. Clientèles Royales et Clientèles Seigneuriales vers la fin de l’Ancien Régime. Annales(HSS), vol.52, 1997(2): pp.293-319 Notas Finais: 1Artigo originalmente publicado em: Revista Espaço Acadêmico – Agosto (n.51) e Outubro (n.53) de

2005 – ISSN 1519.6186 2Observe que “político” em oposição à “natureza” aparece em Hobbes no sentido de “polidez”(autocontrole dos impulsos), entendida como contraponto à “guerra, barbárie, appetitus et fuga, impulsos descontrolados”. Daí a relação complementar, percebida por Koselleck, entre a interiorização do aperfeiçoamento moral e a construção do Estado Político. 3Prefiro o termo latino a traduzi-lo por “privilégios”, devido aos riscos de uma compreensão anacrônica das formas de se estabelecer vínculos sociais e políticos no Antigo Regime. Nesse sentido, privatae leges devem ser entendidas como as leis particulares que vinculam indivíduos, grupos, famílias, lugares ou patrimônios a responsabilidades e direitos próprios, que assim se tornam corpos de privilégios, genericamente referidos a uma dignidade estamental. 4Constituição política não deve ser entendida como “leis máximas de um Estado”, tal como seria no

sistema jurídico liberal, mas como corpo político-social composto pela união de diferentes ordens, estamentos ou corpos de privilégios. Nesse sentido, tratar analiticamente de várias formas de constituição

política no Antigo Regime significa observar os dispositivos institucionais e sociais existentes de vínculos de reciprocidade hierárquica entre as partes constitutivas de uma corporação política.