vianna a cultura do iluminismo
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www.martinsvianna.net Artigo para fins Didáticos – Alexander Martins Vianna – 2007
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A Cultura do Iluminismo1
Alexander Martins Vianna Introdução:
Este artigo, elaborado originalmente para fins didáticos e direcionado a leitores
do terceiro grau, pretende justamente demonstrar a singularidade da “cultura do
iluminismo”, seguindo, neste ponto, algumas sugestões de análise e abordagem que a
distingam dos caracteres mentais daquilo que José Antonio Maravall (1997) definira
como “cultura do barroco”. Afinal, como notara Ernst Cassirer desde a década de 1920,
além de Federico Chabod, Paul Hazard e Reinhardt Koselleck nas décadas seguintes,
por estarem rigorosamente voltadas para si mesmas, tanto a razão crítica iluminista
quanto a justiça subjetiva romântica definiriam pontos de ruptura em relação à forma
mentis dos séculos XVI e XVII, pois não lidariam mais harmoniosamente com
grandezas dadas por dogmas, cânones, tradições, etc; ou seja, não aceitavam que
condicionantes de autoridade fossem tratadas como algo inquestionável ou imutável.
No entanto, as noções iluministas de autonomia crítica, liberdade de opinião e
opinião pública não podem ser confundidas com a concepção hodierna da livre opinião
característica das sociedades democráticas de massa. Em seu artigo “O que é
Esclarecimento?”(1784), o filósofo luterano Immanuel Kant (1724-1804) nos serve
para demonstrar tal diferença, particularmente quando faz uma distinção conceptual
entre “uso público” e “uso privado” da razão, entendendo por “público” o espaço de
convivência de pessoas letradas. Portanto, a liberdade no uso “público” da razão era
restrita ao ciclo dos letrados (membros daquilo que Kant chamava de “comunidade
universal”), ou seja, tratava-se de uma audiência socialmente e intelectualmente distinta
– a intelligentzia iluminista.
Em todo caso, na noção iluminista de autonomia crítica residiria, como notara
Hannah Arendt (1971), um potencial revolucionário e, em certa medida, violento,
particularmente quando a noção cartesiana de sujeito autogarantido fosse trazida para
uma arena política mais ampla e socialmente indistinta, que, aos poucos, também
demonstraria em sua ação uma nova noção de tempo histórico, tal como aquela que
marcou eloqüentemente o cenário político da Revolução Francesa.
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O Iluminismo e a nova experiência do Tempus
Em 1959, Koselleck (1999) sistematizou a tese de que o pensamento utópico
Iluminista seria o resultado da laicização da escatologia judaico-cristã, ou seja, o
resultado da transposição da noção do tempo irreversível da salvação e do Juízo Final
para a história, agora pensada pela filosofia da história do século XVIII como um
processo cujo desenlace permanece aberto. Para tanto, o plano divino da salvação – até
então insondável para a consciência humana – teve de ser transformado em
planejamento de futuro, feito por uma nova elite intelectual moralmente justa e
conformada à Razão. No entanto, a “intelectualidade de Notáveis” do século XVIII
transformou a história em processo sem se dar conta disso. Na verdade, tratava-se de
algo que começou a se delinear na década de 1680, quando as primeiras “repúblicas de
letras” travaram o chamado “embate entre antigos e modernos” (1687-1719).
O “embate entre antigos e modernos” criou um topos intelectual novo no
Ocidente, pois ajudou a elaborar uma concepção de tempo que separava futuro e
passado e, assim, a noção de processo histórico aos poucos suplantou a concepção de
passado como repertório tipológico de modelos e exemplos para o presente.(OLINTO,
2000) Isso porque as concepções dos “modernos” predominaram em meados do século
XVIII, com suas idéias de que as realizações artísticas, culturais e políticas do presente
eram sempre melhores do que as “antigas” (Antigüidade Clássica) e, portanto, estas
pouco ou nada serviriam para os tempos atuais (“tempos modernos”). Nesse sentido, em
vez de celebrada e copiada, a herança antiga deveria ser estudada e criticada em função
das novas necessidades do presente – ou seja, não lhe era mais concedido um lugar de
autoridade irrefutável. Portanto, a partir deste debate intelectual, percebemos que a
história passa a ser concebida como processo à medida que deixa de ser um mero
repertório tipológico de exemplos in nuce imutáveis que poderiam ser aplicáveis à
interpretação ou à ação dos homens no presente.
Podemos pensar esta crise de paradigma como um marco conjuntural (1687-
1719) que distingue o mundo do Renascimento/Barroco do universo cultural do
Iluminismo. Ao final do século XVIII, é possível observar claramente a síntese desta
mudança na história do pensamento filosófico e científico quando Immanuel Kant
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(1724-1804) define o progresso como a própria natureza ou halo constitutivo da
dignidade humana em seu artigo “O Que é Esclarecimento?”(1784). Vejamos:
“Uma época não pode fazer um pacto que comprometa as idades futuras, não pode evitar que elas aumentem suas inspirações significantes, purifiquem-se de erros e gradativamente progridam no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cujo destino assenta-se justamente em tal progresso. Portanto, as idades futuras têm pleno direito de repudiar tais decisões como desautorizadas e ultrajantes”.(Apud: JACOB, 2001: 202-208)
No entanto, a filosofia do Iluminismo obscureceu a dimensão política da crise
filosófica de paradigma trazida pelo “embate entre antigos e moderno”, pois, diante de
suas noções histórico-filosóficas de futuro, muitos eventos políticos cotidianos foram
deixados em segundo plano pelos philosophes. Aliás, quando lemos integralmente o
artigo “O Que é Esclarecimento?”, podemos perceber em Kant que a filosofia do
Iluminismo não se concebia nos termos de uma utopia revolucionária em matérias
políticas e sociais, mas sim nos termos de uma reforma ou aperfeiçoamento moral-
intelectual do indivíduo que, aos poucos, melhoria as instituições e a sociedade. Por
isso, como ressalta Bronislaw Baczko (1989), é importante evitar uma leitura
prospectiva do Iluminismo a partir dos desdobramentos imprevistos da Revolução
Francesa.
Se, como pensa Koselleck (1999), o desejo ou senso iluminista de progresso
moral-intelectual seria o resultado da internalização subjetiva e secularizada da noção
judaico-cristã do juízo divino da salvação, que tradicionalmente opõe “verdade
interior” e “realidade exterior”, não podemos esquecer que ele também seria uma
derivação filosófica, como pensava Ernst Cassirer (1994), da projeção do cogito
cartesiano sobre as coisas do mundo extenso, ou seja, o juízo crítico iluminista seria o
tributário filosófico da noção cartesiana do sujeito autogarantido que se desliga de
exterioridades enganosas, tais como aquelas advindas do senso comum, costumes,
tradições, dogmas de religião, etc. Nesse sentido, é certo dizer que a filosofia do
Iluminismo provoca uma ruptura entre passado e planejamento de futuro, concebendo
cada momento histórico como qualitativamente único numa cadeia processual
irreversível. Portanto, na configuração iluminista do tempo histórico, o presente tem
apenas a si mesmo como “espaço de experiência”, apontando para um “horizonte de
expectativas” que se mantém sempre aberto. Por isso mesmo, a sua forma de
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pensamento muda completamente o modo de interpretar a relação entre os indivíduos e
as instituições sociais.
Ao afirmar isso, podemos entender por que Koselleck tem como objetivo
principal, em sua obra “Crítica e Crise”, complexificar o nexo causal entre a “utópica
filosofia da história” e a Revolução desencadeada em 1789. Para tanto, afirma como
hipótese geral que o Absolutismo teria condicionado a gênese do Iluminismo, e que este
último teria condicionado a gênese da Revolução Francesa. Koselleck constrói tal
hipótese utilizando como referência histórico-conceptual a noção de Estado de Thomas
Hobbes (1588-1679).
Hobbesianismo Político e a Filosofia do Iluminismo
A figura de um poder soberano estabilizador dos vínculos sociais e políticos,
pacificador da sociedade e secularizador das instituições sociais e políticas fora
celebrada como fator de progresso cultural por Immanuel Kant, em 1784, na figura do
rei Frederico II (1712-1786) da Prússia. Podemos observar a mesma expectativa sendo
projetada por Denis Diderot (1713-1784) na figura histórica do rei Henrique IV (1553-
1610) da França. Para Kant e Diderot, estes reis teriam criado as condições de
possibilidade para o progresso do saber em seus reinos ao colocarem os assuntos da fé
ou consciência religiosa fora de sua esfera de atuação, evitando, deste modo, o
despotismo espiritual de algumas poucas lideranças oportunistas que teriam interesse
em manter os súditos numa eterna menoridade espiritual ou intelectual.
Tal tipo de expectativa projetada sobre “monarcas esclarecidos” explica o
interesse intelectual renovado pelos escritos e idéias de Thomas Hobbes desde meados
do século XVIII, a ponto de a “Encyclopédie” dedicar um longo verbete para tratar de
seu pensamento político.(DIDEROT&D’ALAMBERT, 2006:153-191) Afinal, o
Leviathan de Hobbes representa a imagem conceptual de um corpo político recomposto
em novas bases comportamentais, pois figuraria a idéia da ordem política advinda da
superação das rupturas sociais e políticas provocadas pelas guerras confessionais. Nesta
ordem política, o objetivo dos indivíduos seria aperfeiçoar-se moralmente em âmbito
privado até o ponto de saber – por si mesmo – o que era bom e o que era ruim para a
sua salvação, não devendo tal busca de aperfeiçoamento moral-religioso afetar o
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mecanismo criado (Estado Político) pela inteligência humana como contraponto aos
mecanismos condicionantes da guerra civil religiosa (Estado de Natureza)2.
Portanto, o Leviathan antecipa conceptualmente uma percepção de ordem
política e poder soberano que soube enquadrar a demanda religiosa por aperfeiçoamento
moral-religioso à esfera da intimidade doméstica. Nesse aspecto, a ordem
política/polida (politesse) laica que o Leviathan propõe teoricamente em meados do
século XVII tornou-se modelo para a maioria dos philosophes, pois, em sua concepção,
isso criaria as condições sociais e institucionais para o progresso do saber. No entanto,
como notara Koselleck, tais condições sociais e institucionais criariam novos espaços de
sociabilidade de onde emergiu um novo tipo de sujeito, que não mais se sentia
constrangido em lançar no mundo as suas demandas morais interiores (agora,
marcadamente laicas) de aperfeiçoamento do espírito. No limite de sua ação no mundo,
o sujeito autogarantido iluminista poderia pôr à prova o próprio fundamento de
autoridade que lhe dera possibilidade de existir historicamente.
Portanto, do ponto de vista prático e moral, há uma diferença histórica evidente
entre o sujeito iluminista, o cogito cartesiano e o homem político de Hobbes: estes dois
últimos, diferentemente do primeiro, estavam geracionalmente marcados por aquilo que
Maravall (1997) definia como “cultura do barroco”, que era caracterizada por uma
moral acomodatícia e uma razão casuística, cuja expectativa de ação era harmonizar
forças contrárias, de modo a adaptar as novas experiências aos dispositivos tradicionais
de autoridade política e ordem social. Vejamos como tal concepção de ação no mundo
aparece em algumas máximas morais de Descartes (1596-1650):
“...[Uma] máxima consistia em obedecer às leis e aos costumes de meu país, tendo presente constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser educado desde a infância, e governando-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do exagero que fossem comumente acolhidas, na prática, pelos mais sensatos entre aqueles com os quais teria de viver...Além disso, entre as várias opiniões igualmente aceitas, optava somente pelas mais moderadas, tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática e, verossimilmente, as melhores – já que todo excesso é habitualmente mau...[Uma outra] máxima era...de modificar mais os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a acreditar que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos...”.(DESCARTES, 1985: 57-58) Ora, em seus escritos, quando Hobbes substituiu o termo consciência pelo termo
opinião, fizera-o justamente porque o seu uso habitual em matéria religiosa tinha
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implicações negativas no espaço público. Em sua concepção, para haver ordem pública,
a consciência deveria tornar-se tão internalizada quanto o cogito cartesiano, de modo a
não abalar o mecanismo pactual que configurava o corpo do Leviathan. Para ele, a
guerra civil inglesa demonstrara que não era possível afirmar de forma unívoca ou
inequívoca o que era bom e o que era ruim para a salvação do homem e que, portanto,
transformar isso em matéria política impediria a realização de qualquer desejo de paz
duradouro.
Por outro lado, a construção artificial do corpo do Leviathan era o testemunho
evidente de que a paz civil não seria alcançada espontaneamente, pois, na verdade,
demandava a configuração de um mecanismo autônomo que transcendesse todos os
interesses e opiniões particulares. Para tal mecanismo funcionar, o monarca deveria
estar acima dos direitos particulares (seria ab solutus porque legibus solutus) no sentido
de ser juiz e disciplinador desvinculado (status neutro), em princípio, de interesses
particulares estamentais e de confissões religiosas. Portanto, a meio caminho entre o
sujeito autogarantido cartesiano e o sujeito autogarantido iluminista, o homem político
hobbesiano aprendeu de forma traumática que a única forma de superação do
mecanismo das guerras civis religiosas era a separação forçada entre
espírito/consciência (mundo moral interior) e ações (mundo político exterior). Era
justamente tal separação que a filosofia do Iluminismo tentaria superar – mas agora
numa atmosfera social laica – ao propagar as noções de liberdade de opinião e de
progresso do saber, baseadas em uma nova concepção de natureza, homem e razão.
A forma política do Leviathan era artificial porque, a partir de um cálculo (ratio)
evidente de custo/benefício – associado ao discernimento voltado para a adequação
entre status e circunstância –, o medo da morte e a insegurança permanente impeliriam
o homem, pragmaticamente, a aceitar a proteção hierárquica leviatânica – ou seja, fazer
parte de um corpo político cujo poder soberano fosse estável e concentrasse em si os
princípios de justiça, dádiva, proteção, punição e polidez –, saindo do bellum omnium
contra omnes por meio de um pacto em que as partes em guerra concordariam em
alienar definitivamente uma parcela de suas antigas liberdades tradicionais e demandas
de consciência em favor da promoção pragmática da paz civil. No entanto, uma vez
feito, o pacto seria irreversível: o Estado Político tornava-se um mecanismo autônomo
(automaton). Portanto, nascido da “ratio” e da “raggione di Stato”, o Leviathan não
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eqüivalia ao “Estado de Razão” iluminista; porém, os philosophes do século XVIII não
tinham uma percepção clara da sua própria diferença moral em relação ao Homem e ao
Estado Político hobbesianos.
O Estado hobbesiano não visava o progresso humano no sentido iluminista, mas
tão somente pôr fim às guerras civis. Tratava-se, pois, de um artifício da razão, o “juiz
racional” de homens-fera, pois somente na associação que surge entre interesse de
proteção e obediência poder-se-ia formar um status neutro em que as leis garantiriam a
paz, a segurança e a contenção do apetite/paixão. A razão somente deixaria de ser mero
cálculo político – associado ao discernimento acomodatício de status e circunstância,
ou seja, a ratio voltada para a fundação da ordem pública a partir da acomodação das
partes de privatae leges3–, para confundir-se com a noção de força constituidora dos
fenômenos políticos, quando os antagonismos religiosos (neutralizados e contidos pela
nova ordem corporatista leviatânica) fizessem parte de um passado distante. Uma vez
distante a experiência geracional das guerras de religião, uma nova consciência (agora
no sentido de opinião crítica secular) faria a sua aparição em novos espaços de
sociabilidade.
Retomando o argumento de Koselleck, podemos afirmar que o sujeito moral do
século XVII – abandonado a si mesmo na tarefa de aperfeiçoar-se moralmente e
interiorizado em nome da paz pública – tornou-se no século XVIII um juiz arguto a
exigir que seu aperfeiçoamento moral (interior) fosse também extensivo ao Estado
(exterior), que o mundo exterior não dilacerasse a sua verdade interior, que não o
forçasse a formalidades e hipocrisias. Isso se torna cada vez mais presente na segunda
metade do século XVIII. Nesse momento, a noção de natureza expressa por Hobbes
como estado de guerra, incompletude, inacabamento ou impulso destrutivo seria
superada por outra, que se estende do Iluminismo ao Romantismo, cuja plenitude
sistemática pode ser observada nos escritos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
É somente num século em que não se vive mais os efeitos dos dilaceramentos
sociais e políticos de guerras religiosas periódicas que as exigências formais de
aceitação de regras e hierarquias de autoridade – tal como ritualizadas na corte –
pareceriam artificiais e hipócritas, ou mesmo sufocantes para o progresso das
capacidades individuais. Assim, em oposição ao homem artificial/artificioso cortesão,
condicionado por regras estamentais de etiqueta, Rousseau falaria do “homem natural”,
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espontâneo, aquele que a sociedade política ainda não havia corrompido com seus
hábitos e costumes.
No “Contrato Social” (1762), o “estado natural” idealizado por Rousseau é o
exato contratipo conceptual do “Estado de Natureza” de Hobbes. No entanto, ambos os
autores têm em comum o objetivo de criar uma ficção metodológica para por em
perspectiva os valores e regras das sociedades de suas respectivas épocas. Logicamente,
como as suas noções de natureza têm sentidos distintos, haverá implicações
antagônicas: em sua geração, aquilo que Hobbes pensou como necessário para superar a
instabilidade política e social não tinha mais sentido para um conjunto de intelectuais na
maturidade de Rousseau, soando para eles como um “sufocamento do espírito”. Assim,
como aprendizado político, Rousseau deixava claro que, para o homem alcançar sua
liberdade e plenitude intelectual, deveria “redescobrir” o “estado natural” e reaprender a
ser um novo homem em sua própria sociedade, tomando para si as “lições” do modo de
vida do homem natural – ou seja, aquele “existente” antes que surgissem as implicações
políticas, comportamentais e institucionais das noções de “meu” e “teu”.
No entanto, Rousseau é estrela solitária na constelação do Iluminismo, pois a
maioria dos autores da época – entre os quais, Voltaire (1694-1778) – afirmaria que
bastaria olhar em toda parte do mundo para se perceber que a propriedade era um dado
comum (portanto, natural) a todos os povos, pois estaria associada aos sentimentos
naturais de autopreservação e amor-próprio. Além disso, desenvolveu-se uma idéia
cara ao liberalismo: a propriedade (preferencialmente desvinculada de personalidade
jurisdicional) era a garantia da liberdade de o sujeito se autoconstituir e, nesse sentido,
quanto mais homens livres [i.e., proprietários desvinculados de obrigações senhoriais e
auto-suficientes (autogarantidos) em proventos] houvesse num país, maior a motivação
para produzir riquezas.
Não por acaso, seguindo tal quadro de idéias, muitos monarcas e príncipes
europeus do século XVIII tentaram reformar a relação homem/solo, eliminando
progressivamente os resquícios das relações jurídicas de obrigações senhoriais no
campo, como as corvéias, para transformar famílias camponesas em rendeiros,
assalariados ou pequenos proprietários. No entanto, tais reformas não significaram um
plano claro de desestruturação de toda a ordem sócio-política estamental. As reformas
foram pontuais, visando somente eliminar a vinculação jurisdicional (ou seja, formar a
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propriedade livre) da terra nos casos em que mexessem com interesses estratégicos, com
necessidades fazendárias e com a política de segurança do Estado. Não por acaso, as
primeiras terras a serem desvinculadas de jurisdições (direitos e obrigações feudais)
pelos príncipes ilustrados foram aquelas de algumas ordens religiosas que passaram a
ser consideradas perigosas para a preservação da autonomia e progresso do Estado,
como a jesuítica. (FALCON, 1982)
Portanto, não podemos perder de vista que, em plano social e político-
institucional, as “monarquias esclarecidas” do século XVIII permaneceram em larga
medida ligadas à ordem senhorial-estamental e empenharam-se em preservá-la através
de reformas pontuais que facilitassem a circulação de bens e a fluidez tributária, o que
não significava necessariamente um completo desmonte da intermediação da “forma
senhorial” de constituição dos vínculos político-sociais.(COTS I CASTAÑÈ, 1993)
Nesse sentido, a constituição de uma unidade fiscal-tributária que facilitasse a
circulação de bens não significava necessariamente uma transformação substancial da
lógica de organização política, que era flexível bastante para incorporar novas formas de
relacionamento social, valores e recursos para dar conta do novo mundo de experiências
advindo da abertura dos lugares para mercados extra-locais ou extra-regionais de
consumo, produção e tributação.
Liberdade de Opinião e Elitismo Reformista
Se a prática intelectual da redescoberta do “homem natural” idealizado por
Rousseau ocorreu em algum lugar, isso restringiu-se – e não com as implicações de suas
idéias – aos ciclos fechados das “repúblicas de letras”, pois eram espaços novos de
sociabilidade privada em que se praticava a “liberdade de espírito” (através dos livres
debates das idéias e das críticas às produções literárias) e deixava temporariamente “de
fora”, no trato social, as condicionantes estamentais de deferência e reciprocidade, pelo
menos tal como eram ritualizados nas cortes régias. Nesse sentido, entre as partes
envolvidas em debates de idéias, deveria haver uma igualdade de coração e espírito
esclarecido para que houvesse autêntica e tolerável reciprocidade. No entanto, deve-se
estar atento a este detalhe: o debate e a crítica apenas poderiam ser exercitados entre os
iguais em espírito, ou seja, aqueles que tinham competência sobre o assunto tratado e
desprendimento de interesse.
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Nos termos de Kant, isso definia a condição de esclarecido como um desafio
moral, mas também configurava uma ambigüidade social cara a este universo novo de
sociabilidade: se, regra explícita, para se fazer parte destas ‘repúblicas’ dever-se-ia ser
“bem letrado”, isso pressupunha, regra implícita, o ócio da riqueza – condição que
excluía uma maioria e para qual poucos, como Rousseau, atentaram criticamente.
Enfim, as “repúblicas de letras” ritualizavam uma sociabilidade em que o mérito
(presumido) do nascimento era colocado em segundo plano em relação ao mérito
manifesto pelo espírito (medido pelas “letras”/“riqueza”). Nesses termos, o homem mais
completamente livre de constrangimentos (natural – mas não no sentido de Rousseau) é
aquele que é bem nascido, bem fornido e bem letrado, pois estaria desvinculado de
interesses imediatos de sobrevivência e, portanto, estaria socialmente capacitado de
envolver-se com os interesses públicos.
Como vimos anteriormente, na estrutura política anunciada por Hobbes em seu
Leviathan (1651), não haveria como conciliar consciência (mundo interior) e as
conveniências políticas do mundo exterior, devendo este sempre predominar sobre
aquele. Ora, isso inscrevia a subjetividade do indivíduo deste Estado no centro da tensão
dramática típica da “cultura do barroco” – pelo menos, tal como esta é pensada por
Maravall (1997). O sujeito (astuto/artificioso) do barroco refugiou-se nos recantos
secretos do coração (ou da mente, se pensarmos em Descartes), onde permaneceu sendo
o seu próprio juiz, ao passo que os fatos externos deveriam ser submetidos ao juízo e
aos tribunais do poder soberano, cuja ação estaria ancorada numa moral acomodatícia e
na força dos costumes e tradições. No entanto, quatro gerações depois, se usarmos como
ponto referencial o artigo “O que é Esclarecimento?”(1784) de Kant, observamos que
um novo processo de individuação ocorrera no século XVIII, mas com as
ambigüidades típicas do elitismo reformista dos pensadores iluministas.
Durante o século XVIII, o surgimento de novos espaços para a elite de
sociabilidade alternativos às cortes régias e as transformações na vida econômica
estimularam novos processos de construção de identidade que libertaram muitos
indivíduos letrados dos referenciais político-jurídicos estamentais. Em larga medida, o
termo “bom nascimento” perdera a exclusividade do referente que o ligava à nobreza de
nascimento. Agora, um leque de novas opções sociais abriu-se devido à progressiva
especialização técnica e funcional da vida social, exigindo dos membros desta sociedade
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boa formação intelectual e recursos materiais. Portanto, ser “bem fornido” e ser “bem
letrado” tenderam a predominar como marcas de “excelência social”. De certa forma,
isso se expressa, por exemplo, na recorrência de termos como “nobreza de espírito”, ou
que determinados títulos acadêmicos passassem a “conferir nobreza” como forma de
premiar o mérito.
No entanto, a nova liberdade (no sentido de autonomia de o indivíduo se
constituir e expressar opinião perita) – ancorada em riqueza e/ou letras – estava
conceptualmente restringida pela própria lógica de valorização da competência técnica e
funcional. Podemos observar isso em Kant: ele entende que uma sociedade em processo
de esclarecimento deve conhecer a liberdade de consciência, mas ela é restringida a
contextos funcionais, o que significa liberdade de criticar somente as coisas em relação
às quais se pode ser esclarecido, condição que exige uma competência intelectual num
saber específico (i.e., ser Scholar ou perito) associada à autonomia de juízo (falar em
seu próprio nome).
Obviamente, há nisso um dispositivo moral restritivo para a crítica, pois, para
Kant, um indivíduo que ocupe um cargo qualquer vive uma menoridade funcionalmente
necessária, já que “fala em nome de alguém” (realiza uma dignidade institucional
particular), ou seja, faz uso privado da razão, devendo seguir as regras da instituição
enquanto não lhe causarem dilemas de consciência. No entanto, caso haja cada vez mais
uma tensão irreconciliável entre as obrigações do cargo e a consciência, o indivíduo
deve abandoná-lo para que, de fora do cargo/posição, possa criticar e aperfeiçoar a
estrutura ou a lógica em que estava inserido. Quando age deste modo, o Scholar
kantiano passa a fazer uso público (i.e., desvinculado de dignidade institucional) da
razão. Na concepção de Kant, seria uma incongruência moral exercer as funções de um
cargo quando não mais se acredita nos princípios que o justificam. Nesses termos, para
ser plenamente confiável, a autonomia crítica do sujeito esclarecido kantiano está
implicada com o desafio moral de se abandonar o comodismo ou o interesse particular
em nome de um desejo verdadeiro de aperfeiçoamento das matérias do mundo.
Portanto, diferentemente do que ocorrera, na prática, durante a Revolução
Francesa, o “uso público da razão” não significa incitar as massas à revolta. Isso seria
completamente estranho para Kant em 1784, pois seria o mesmo que abrir o mundo para
a barbárie e a tirania de lideranças inescrupulosas, tais como aquelas que emergiram, no
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passado recente, durante as guerras confessionais. O Scholar kantiano que faz “uso
público da razão” fala com quem tem competência para ouvi-lo, ou seja, a sua
audiência nunca é indistinta.
De certa forma, a noção kantiana de “uso público da razão” resolve o dilema
hobbesiano a respeito do uso da consciência (agora laica) na esfera pública. Na verdade,
Kant aponta conceptualmente para uma definição estritamente liberal de esfera pública
que marcaria todo o século XIX. Então, devemos entender que a “opinião pública” é a
opinião dos socialmente competentes, não devendo ser confundida com a “opinião
popular”. Nesse sentido, nos termos de Kant, é somente como Scholar autônomo que
se pode exercer a crítica. Seguindo esta lógica, um monarca, por definição, deve ser
especialmente esclarecido, pois somente a ele caberia reformar, como cabeça, o corpo
político de seu Estado. Aquele que não demonstrasse competência para isso entregaria o
seu Estado à luta bárbara de facções de lideranças inescrupulosas. Portanto, no contexto
do Iluminismo, a separação hobbesiana entre homem (sujeito/interior/consciência) e
súdito (indivíduo/exterior/acomodação) deixaria de ser percebida como regra
necessária para a constituição da ordem pública e, assim, diferentemente da geração de
Descartes e Hobbes, a intelligentzia iluminista passou a entender que o homem poderia
realizar-se politicamente como sujeito autogarantido.
No entanto, a exemplo de Kant, não se pode perder de vista que a única crítica
válida é a crítica esclarecida, pois deve-se considerar as situações funcionais em
relação às quais um homem é esclarecido e aquelas em que simplesmente espera pelo
esclarecimento de outrem, sendo, nesse sentido, “passivo”(menoridade funcionalmente
necessária). Por isso, com exceção do curto período jacobino da Revolução Francesa
(junho de 1793/julho de 1794), um princípio político que, depois dela, perdurou até o
final do século XIX foi justamente aquele que diferenciaria “cidadãos ativos” de
“cidadãos passivos”, base conceptual do sistema liberal de sufrágio censitário como
critério de definição da capacidade (competência e discernimento) política de votar e ser
votado.
Resumidamente, podemos afirmar que, no contexto do Iluminismo, muitos
tratadistas políticos transformariam em lugar comum a idéia de que o homem deseja
naturalmente a paz tanto quanto busca o alimento, a reprodução ou a religião. Em
contraste, no contexto do Barroco (século XVII), a exemplo da teoria hobbesiana de
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Estado, o “desejo de paz” não teria força suficiente em si mesmo para superar o “estado
de guerra” e, por isso, o homem precisaria de um condicionamento (estatal corporatista)
que viesse de “fora” para “dentro”. Ora, seguindo a tese de Koselleck, tal lógica é
oposta à noção iluminista de autonomia crítica, pois é da insatisfação geracional de um
sujeito constrangido pela Razão de Estado que emergiria a subjetividade específica do
Estado de Razão, levantando-se contra a passividade crítica diante de dogmas,
autoridades, interesses particulares descabidos e tradições injustificáveis. No entanto,
não se pode perder de vista que a valorização da autonomia crítica iluminista esteve
historicamente vinculada à valorização do saber competente e da riqueza como novos
critérios de distinção social. Portanto, não significava que todos poderiam criticar tudo,
como acontece, por exemplo, nas sociedades democráticas da atualidade.
Da casuística ao espírito sistemático: Cogitando o mundo...
No século XVIII, a filosofia do Iluminismo começou a quebrar o molde do
sistema metafísico cartesiano. Não se acreditava mais no privilégio nem na fecundidade
do espírito dedutivo de sistema: via-se nisso não a força, mas o obstáculo e o freio da
razão filosófica. No entanto, o abandono do espírito dedutivo de sistema não significou
renunciar ao “espírito sistemático”. Em vez de se fechar nos limites de um edifício
doutrinal definitivo, em vez de restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de
axiomas fixados de uma vez por todas, a filosofia devia agora tomar livremente o seu
impulso e assumir em seu movimento imanente a forma fundamental da realidade, a
forma de toda a existência, tanto natural quanto espiritual. Assim, os conceitos e os
problemas que o século XVIII herdou do século XVII passaram da condição de
princípios e objetos prontos e acabados para aquela de forças atuantes, que tanto
poderiam interferir no mundo extenso quanto poderiam ser postas à prova por ele.
A filosofia do Iluminismo acreditava na espontaneidade originária do
pensamento e, longe de restringi-lo à tarefa de comentar e de refletir a posteriori –
como acontecera com a ratio acomodatícia nos contextos do Renascimento e do
Barroco –, reconheceu nele o poder e o papel de organizar a vida. Nesse sentido, mais
do que duvidar, analisar e examinar, o pensamento deveria também provocar, fazer
nascer a ordem da qual percebera ou concebera a necessidade. Trata-se da época em
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que apaixonadamente se afirmou a autonomia da razão no mundo extenso como força
criativa, partindo originalmente do método sistemático cartesiano.
É comum se pensar o contexto do Iluminismo como o “século da Razão”, como
se representasse o ápice do aperfeiçoamento de um processo de racionalização do
mundo que vinha desde o Renascimento. No entanto, tal teleologia seria descabida pelo
simples fato de que, nos contextos do Renascimento e do Barroco, a ratio – entendida
como cálculo ou discernimento na relação entre meios e fins, de modo a se realizar
adequadamente a correspondência entre o status do indivíduo e a circunstância de sua
ação – pressupunha um tipo de operação baseada na capacidade de adaptação ou
variação acomodatícia em relação às leis e significados recebidos pelas tradições.
Ora, em contraste com isso, o exercício iluminista da Razão (entendida como
força ou princípio criativo autônomo) não implicava em submissão a priori a qualquer
marco de autoridade. Este exercício crítico da razão em relação a leis e significados
herdados inaugurou um novo tipo de pensamento, que se impôs gradativamente aos
vários campos do saber, do debate de idéias e das ações políticas. Portanto, mais do que
fazer um arranjo ou reacomodação de vários fragmentos do passado, costumes e
tradições interpretativas, o pensamento esclarecido buscou identificar os princípios que
fundamentavam a sua constituição e/ou modo de operação no mundo, de forma a poder
aperfeiçoar ou superar a sua manifestação.
Nesse sentido, a exemplo de Monstesquieu (1689-1755) em “O Espírito das
Leis”(1748), a busca da multiplicidade tem o sentido de encontrar nela a certeza da
unidade, posto que a variedade das formas é tão somente o desenvolvimento e o
desdobramento de uma força constituidora única – o outro nome da Razão. Assim, mais
do que se acomodar à variedade da matéria do mundo extenso – tal como sugeria a
moral de Descartes –, a filosofia iluminista buscou a unidade por trás dos fenômenos,
considerando que tal busca ampliava os horizontes de ação no mundo, mesmo que
apenas de modo aproximativo, para se poder transformá-lo com alguma eficiência e
segurança. Nesse sentido, o fato de se conceber que era possível apostar em conhecer a
força constituidora existente tanto no pensamento (intellectus) quanto na matéria do
mundo (res) era o que diferenciava, paradigmaticamente, o racionalismo cartesiano da
filosofia do Iluminismo.(CASSIRER, 1994: 21-23)
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Em termos estritamente sociais, há aqui implícita a noção de Universalidade: a
razão como força constituidora da matéria e do pensamento é una e idêntica para todo o
indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. Isso significa que, de
todas as diversidades ou variações de dogmas religiosos, máximas e convicções morais,
idéias e julgamentos teóricos, era possível destacar um conteúdo firme e imutável, cuja
unidade e consistência eram a expressão da própria essência da Razão. Isso delineia um
aparente paradoxo na filosofia do Iluminismo: do mesmo modo que se concebe o
mundo, o tempo e o pensamento como processos, busca-se por trás de todos estes
fenômenos o imutável, a substância ou uma unidade fundamental. No entanto, apenas
formalmente isso lembraria a metafísica cartesiana.
O cartesianismo do século XVII via na construção de “sistemas filosóficos” a
tarefa própria do conhecimento filosófico. Tais sistemas pressupunham alcançar a idéia
primordial de um ser supremo e de uma certeza suprema. A luz dessa certeza suprema
seria transmitida a todo o ser e a todo saber dela deduzido. É o que efetivamente ocorre
quando, pelo método da demonstração e da dedução rigorosa, outras proposições são
mediatamente ligadas à certeza primordial, a fim de se percorrer, por meio dessa
conexão mediata, toda a cadeia do cognoscível e de a encerrar sobre si mesma. Nenhum
elo dessa cadeia pode ser separado do conjunto, nenhum deles se explica nem se conclui
por si mesmo. Ora, a filosofia do Iluminismo justamente renunciou a esta forma de
“dedução”, de derivação e explicação sistemática centrada apenas no pensamento,
embora sem rivalizar com Descartes (1596-1650) no que tange ao rigor e autonomia do
método.
A filosofia do Iluminismo tem uma outra concepção de verdade, dotada de maior
amplitude, mobilidade e liberdade, pois os axiomas de pensamento encontram algo que
pode resistir-lhes: a matéria do mundo extenso, cuja força constituidora (razão)
esconde-se sob os véus aparentes de fragmentos e diversidades, comunicando-se
imperfeitamente com a força constituidora (razão) do pensamento humano. Por isso, tal
como pensava Voltaire, conhecer se torna um eterno desvelar, visto que nunca há
perfeita adequação, em âmbito humano, entre as forças constituidoras da matéria e
aquelas do pensamento. Nesse sentido, nenhum dogma deve impedir ou constranger o
espírito de sempre mover-se na direção dos fenômenos do mundo extenso. Portanto,
superando as limitações do cartesianismo, a filosofia do Iluminismo concilia o
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“positivo/empírico” com o “racional/lógico”, tal como ocorre na “Crítica da Razão
Pura”(1781) de Kant.
Resumidamente, pode-se afirmar que a filosofia do Iluminismo estabelece a
reciprocidade entre “sujeito” e “objeto”, “verdade interna” e “realidade externa”, que
faltava no pensamento sistemático de Descartes. É nesses termos que surge a demanda,
kantianamente positiva, da adaequatio res et intellectus, que é a condição/dilema de
todo conhecimento que se pretenda modernamente científico. Portanto, nos termos da
filosofia do Iluminismo, o caminho do conhecimento desenrola-se indefinidamente, pois
depende tanto da natureza do objeto (res) quanto da força específica do pensamento
(intellectus).
Aliás, desde Galileu (1564-1642), em seu “O Ensaiador” (1623), o “infinito
livro da natureza” apresentava-se como unidade autônoma de processos, cujas
totalidades eram indivisíveis. A partir daí, lança-se o desafio que continuou na física de
Isaac Newton (1643-1727) e que seria usado por Montesquieu (1689-1755) na teoria
política: não bastava que um fenômeno fosse apresentado em seu ser ou em sua maneira
de ser, pois era necessário fazer ver de que condições particulares tal fenômeno
dependia e reconhecer, com impecável rigor, em que espécie de dependência ele se
encontrava a respeito dessas condições. Com isso, substituiu-se o método dedutivo
pelo analítico: a imagem sintética de um fenômeno deveria ser decomposta para ser
“resolvida” em seus momentos constitutivos.(CASSIRER, 1994: 28-30)
O reconhecimento do diálogo imperfeito entre “realidade positiva” e “realidade
subjetiva” – que justamente criou a demanda pós-cartesiana de busca de “adequação”
entre fenômeno e racionalização (adaequatio res et intellectus) – significava renunciar
à esperança metafísica de penetrar definitivamente no ser absoluto da matéria ou da
alma humana. Reconhecendo que isso não era possível, a menos que o humano se
tornasse Deus, o verdadeiro philosophe não se prendia a fatos e crenças simples
baseados em testemunhos da tradição, dogma ou revelação. Ele somente descansava
quando decompunha (analisa), parte por parte, o edifício da crença e da “verdade
prefabricada”. No entanto, após seu trabalho de decomposição (análise), advinha a
tarefa de reconstituição lógica (síntese) da totalidade do edifício; mas o philosophe
sabia, desde o início, que as suas conclusões eram provisórias e, portanto, revisáveis
frente à crítica. Nesse sentido, a idéia iluminista de Razão se concretizava plenamente
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não como a idéia de um ser, mas como a de um fazer – a libido sciendi (desejo de
conhecer) sem pretensões metafísicas, que a dogmática teológica havia banido como a
marca ignominiosa do orgulho intelectual.
Em meados do século XVII, Thomas Hobbes definiria o pensamento em geral
como “cálculo”, que consistiria em adicionar e subtrair, valendo o mesmo raciocínio
para o pensamento político. A forma sistêmica e desvinculada de deferências religiosas
do pensamento político de Hobbes teve influência duradoura na filosofia política do
século XVIII, que imaginou encontrar nele uma continuidade de forma, conteúdo e
princípios. Hoje, sabemos que isso foi uma impressão enganosa dos philosophes, mas
podemos tentar compreender porque isso ocorrera: a ratio/cálculo hobbesiana parecia
compor o Estado a partir da decomposição (análise) do antigo vínculo que unia as
vontades particulares, reatando-o (síntese) depois à sua maneira e pelo seu próprio
método. Portanto, em pensamento, Hobbes dissolve o status civilis no status naturalis
para, demonstrando ficticiamente o antagonismo radical, propor uma recomposição
racional que refaça os vínculos sócio-políticos que ajudam a conformar o corpo do
Leviathan.
No entanto, como mero exercício dedutivo, desde o início a forma hobbesiana de
apresentação do status naturalis já pressupõe uma certeza absoluta: o status civilis. Tal
exercício de pensamento o aproxima de Descartes, mas o afasta dos iluministas, basta
observar o exemplo de Montesquieu que, em sua obra “O Espírito das Leis”, não
criaria primeiro um sistema formal abstrato para depois propor que o mundo se
conformasse a ele; pelo contrário, a sua obra é um estudo comparado de sistemas
políticos existentes no mundo (marcadamente, a Europa) que não propõe meramente
descrever as suas maneiras de ser e classificá-los, mas sim identificar a sua força
constituidora (Razão), pois, uma vez descoberta, ele poderia prescrever como que cada
constituição política4 européia realizaria a sua maior porção possível de liberdade.
Portanto, a forma de análise de Montesquieu, o seu objeto e o seu propósito
político não são equiparáveis àqueles de Hobbes. Na base de “O Espírito das Leis” está
o ideal político de impedir que cada sistema político europeu caia no despotismo – o
“Outro” da Europa, representado paradigmaticamente pelas impressões estereotipadas
que se tinha do Império Otomano. Não sem sentido, Montesquieu dedica uma parte de
seu livro a tal caso: segundo a sua compreensão do fenômeno, numa constituição
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despótica, o medo é a “mola” que a tudo faz mover, pois não há espaço para contra-
poderes que limitem uns aos outros; daí, na constituição despótica, o governante faz
com que o medo e a insegurança permaneçam continuamente no coração de seus
súditos, tornando-os escravos de seus caprichos e fazendo do Estado um negócio
privado. Deste modo, Montesquieu constrói um exato contratipo aos regimes europeus,
pois é nestes que considera encontrar as constituições políticas que, por meios próprios,
possuem como princípio de ação (necessitas ou fieri) a máxima newtoniana de que o
“poder limita o poder”.
Enfim, do ponto de vista metodológico, observamos em Montesquieu a tentativa
de adequar o empiricismo e o racionalismo, a lógica do fenômeno e a lógica do
pensamento, o fazer-se (fieri) do mundo e o fazer-se (fieri) da mente para, deste modo, o
homem esclarecido agir no mundo com mais eficácia:
“...Examinei primeiro os homens e achei que, nesta infinita diversidade de leis e costumes, eles não eram conduzidos somente por fantasias...Não tirei meus princípios de meus preconceitos e sim da natureza das coisas...Quanto mais se pensa os pormenores, mais se sentirá a certeza dos princípios...; seguia meu objeto sem formar objetivo; não conhecia nem as regras, nem as exceções; só encontrava a verdade para perdê-la. Porém, quando descobri os meus princípios, tudo o que procurava veio a mim; e, durante vinte anos, vi minha obra começar a crescer, avançar e terminar...”(MONTESQUIEU, 1993: 5-7)
Portanto, partindo do método cartesiano, o novo ideal filosófico do século XVIII
ultrapassou-o em implicação ao pensar na presença da Razão, como força
constituidora, tanto na matéria (res) quanto no pensamento (intellectus) – sendo, pois,
o centro do filosofar não a negação do mundo, mas a busca da correlação entre res e
intellectus. Daí, em vez de negar a validade do mundo para o pensamento – como fizera
Descartes com seu cogito devido ao seu incômodo pessoal com a grande diversidade de
coisas e opiniões no mundo extenso –, a filosofia do Iluminismo estendeu para o
mundo o uso do método sistemático cartesiano e, deste modo, pôde dedicar-se à tarefa
de extrair/desvelar da diversidade aparente das coisas uma identidade fundamental.
Deste modo, observamos emergir uma nova atitude filosófica que busca a unidade, a
uniformidade e a simplicidade, enfim, a identidade lógica existente por trás das coisas
sociais e naturais do mundo, de forma que o pensamento não se perca em meio a uma
miríade de fenômenos sobre os quais não poderia operar/agir constitutivamente.
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Estado Prismático: Entre Tradição e Esclarecimento
No artigo enciclopédico “Autoridade Política”, de Denis Diderot, podemos
observar pontos de ruptura e continuidade em relação às idéias de Thomas Hobbes a
respeito do Estado, já que ambos concebem-no como um mecanismo governamental
(automaton) que possui lógica própria e independente das – uma vez que fora instituído
pelas – vontades individuais.(DIDEROT&D’ALAMBERT, 2006: 37-46) No entanto,
deve-se considerar que o “Leviathan”(1651) é uma versão teórica radicalmente
secularizada do Estado de Antigo Regime e não se confunde com a experiência
política de Estado que se firma ao final do século XVIII.
Como sabemos, há uma distinção geracional entre Hobbes e Diderot, pois é para
a época de Diderot que se firma como princípio que, sem a laicização das relações civis
(a separação dos Poderes Soberanos das questões dogmáticas confessionais), nenhum
monarca conseguiria promover o progresso do saber. Além disso, em termos
conceptuais, o mecanismo contratual do Estado do monarca esclarecido, ou Estado de
Razão, ultrapassava em larga medida o mecanismo pactual do Estado Político de
Hobbes, pois seria uma res publica em que os “objetivos públicos” dos poderes
soberanos progressivamente deixariam de ter nos corpos de privilégios os suportes ou
intermediários exclusivos da ação administrativa (potestas). Nesse sentido, o Estado de
Razão pressupõe um tipo de potestade pública que aos poucos abandonou a atitude
jurisdicionalista (acomodação das partes de privilégios) e tornou-se apenas disciplina
(conformadora da natureza das partes) – mudança de paradigma que apenas se
concretiza plenamente com a institucionalização burocrática do Estado durante o
século XIX. (HESPANHA, 1990: 91-108)
Antes de isso acontecer, o que observamos no século XVIII é o início de uma
experiência de Estado como força constituidora que opera como um grande prisma
invertido, tentando fazer das várias cores do arco-íris (corpos de privilégios) que o
atravessavam uma única luz, o que não implicava imediatamente na anulação da ordem
político-social de Antigo Regime. Entretanto, a ação do poder soberano deste Estado
não era mais de mera acomodação das partes, mas de clara intervenção pontual e de
reconfiguração da natureza dos corpos de privilégios, o que esteve longe de ser uma
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simples ação operada de cima para baixo, como demonstra o trabalho de Cots I
Castañè(1993) sobre a Catalunha do século XVIII.
Ao estudar os padrões de conflitos senhoriais na Catalunha da segunda metade
do século XVIII, Cots I Castañè chegaria a conclusões que contrariariam as expectativas
analíticas desejosas de encontrarem uma espécie de preparação institucional para a
propriedade de tipo capitalista como marco do processo social de transição para a forma
burocrática de Estado, particularmente quando se entende por isso o fim das relações
senhoriais como formas constitutivas de vínculos sociais e políticos. Cots I Castañè
percebeu que os conflitos senhoriais deste lapso de século não se justificavam pelo fato
de tais instituições serem percebidas como um freio ao desenvolvimento econômico e
social, já que demonstravam considerável capacidade adaptativa, conseguindo que seus
rendimentos aumentassem durante o período.
Com isso, percebe-se que o desenvolvimento regional catalão da economia de
mercado (no sentido de fim dos dispositivos tradicionais de controle de preços)
potencializava os ganhos senhoriais e que, portanto, o surgimento de novos regimes
econômicos na relação homem/bens não implicava na anulação das formas senhoriais
de relação homem/homem. Além disso, Cots I Castañè percebeu um padrão recorrente
de conflitos na Catalunha: embora o seu número seguisse sendo reduzido, tratavam-se
daqueles que se referiam às tentativas de reincorporação na Coroa da jurisdição e dos
outros direitos de uma vila ou povoação por iniciativa da própria comunidade e/ou
grupo de vizinhos contrários aos senhores locais.
Entretanto, como aponta Cots I Castañè, a apelação local à justiça régia não
deveria fazer supor que as comunidades catalãs estivessem se entrosando com uma
concepção de vida pública abstrata. Os opositores aos senhores locais fundavam a sua
ação numa concepção particularista de seus interesses, mesmo porque a distribuição dos
senhorios econômicos e/ou jurisdicionais costumava ser muito diversa de uma região
para outra. Daí, os conflitos obedeciam a variáveis díspares que não ultrapassavam o
âmbito local: algumas vezes, gerava conflitos o próprio intento de os senhores
receberem de forma mais favorável certos direitos antigos que se tornaram pouco usuais
(por exemplo, o dízimo ou alguma prestação), ou o intento de outorgar-se novos direitos
(como a nomeação dos cargos da comunidade ou as competências inovadoras dos
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procuradores jurisdicionais); outras vezes, geravam conflitos os próprios vizinhos que
se negavam a pagar ou aceitar velhos direitos que estavam vigentes por décadas.
Portanto, a incorporação à jurisdição régia ou a negação de antigos direitos e
tradições não significava a entrada nas concepções abstratas e universalizantes do
Estado Liberal ou a completa negação da forma tradicional de conceber ações,
vínculos sociais e papéis políticos. Outro dado importante assinalado por Cots I
Castañè é que, malgrado o maior número de senhorios laicos em relação aos religiosos,
eram estes últimos os mais afetados pelos conflitos. Isso corrobora a hipótese do autor
de que, em certas regiões da Catalunha, ocorreu uma mudança de mentalidade em
determinados setores da “opinião pública”, que fez com que tais instituições senhoriais
fossem cada vez menos aceitáveis num contexto de debate de idéias iluministas.
Na gama de casos de conflitos estudados por Cots I Castañè, o comportamento
da comunidade e/ou grupo de vizinhos pode ser ordenado nos seguintes tópicos: (1)
líderes contrários ao senhor com apoio majoritário da opinião dos vizinhos; (2) líderes
contrários ao senhor com o apoio minoritário dos vizinhos; (3) a comunidade ou grupos
determinados de vizinhos confrontavam-se com o senhor, sem que seja possível
conhecer a opinião do resto da vizinhança; (4) uma parte pequena da comunidade ou
vizinhança colabora com o senhor, enquanto que o resto dos vizinhos se confronta com
ele. À margem destes casos tão particulares, Cots I Castañè afirma que, no resto das
povoações de senhorio jurisdicional, era freqüente que os senhores contassem com o
apoio de um grupo mais ou menos numeroso de vizinhos fiéis, muitos dos quais
costumavam ser nomeados – se fiarmos nas acusações que lhes são dirigidas pelos
outros vizinhos – como alcaides ou como regedores para proteger os interesses
senhoriais.
Portanto, como vêm demonstrando muitos trabalhos desde a década de 1980,
não é possível entender os padrões de conflito e as instituições do Estado no século
XVIII sem atentar para as redes clientelares e relações de dom e contra-dom senhoriais
que constituem o cerne de seu fazer político.(WINDLER, 1997) Nesse sentido, embora
a leitura de Koselleck da obra de Hobbes ofereça ferramentas de análise úteis para se
pensar o contexto cultural e político geral do Iluminismo, a sua interpretação do
“Leviathan”(1651) torna-se anacrônica por ver nesta obra uma antecipação lógica e
conceptual do paradigma burocrático de Estado. Além disso, Koselleck(1999:20) afirma
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que as monarquias do século XVIII seriam estamentais “em plano social” mas não “em
plano político”. No final das contas, esta forma de interpretação que separa o “social”
do “político” reproduz o modelo analítico tocquevilleano – “absolutismo” versus
“sociedade de corpos” –, que fora objeto de revisão historiográfica ao longo da década
de 1990.(VIANNA, 2007)
Na verdade, Koselleck (ao lado de Hannah Arendt) faz parte de uma geração de
intelectuais que indagaram se não haveria uma correlação formal entre Cristianismo
(como Promessa Messiânica de Salvação) e Iluminismo (como Utopia de Progresso),
pensando isso como a base conceptual de uma noção de Estado imaginado como uma
força reformadora da sociedade e com inegável potencial para o terror: em seus termos,
a ação humana estaria subordinada a um ideal necessário de progresso
(heteronomia), em vez de o progresso existir em função da necessidade humana
(autonomia). Daí, não surpreende que, em seus respectivos planos analíticos, Koselleck
e Arendt enxergassem nas pretensões cristãs e iluministas de igualdade (“em Cristo” e
“em espírito/moral/razão”, respectivamente) e de universalidade (da “Fé cristã” ou da
“Razão”, respectivamente) um potencial inevitável para intolerância ou terror, contido
na própria idéia de processo de “salvação da alma”, “aperfeiçoamento moral” ou
“esclarecimento”, pois o individual, o pontual ou o específico perder-se-ia em meio a
“forças totalizantes” (“Deus”, “Estado”, “Razão”, “Revolução” e “Raça”).
Portanto, Koselleck trata o Iluminismo – e Hannah Arendt a Revolução – como
uma praxiologia secularizada da escatologia cristã porque vivem, na segunda metade do
século XX, um clima intelectual de desencanto frente aos horrores do nazismo e à
experiência do socialismo soviético, abrindo um manancial de crítica que coincide com
os efeitos politicamente minguados do “degelo” soviético ao final da década de 1950 –
momento de efervescência da crítica liberal aos “totalitarismos”. A partir deste viés
crítico, constituiu-se contemporaneamente o hábito de apresentar como forças
necessariamente opositivas os princípios da Liberdade e da Igualdade. No entanto, não
se pode descontextualizar o debate iluminista de idéias do século XVIII, ou reduzi-lo a
um rio de única foz. O potencial crítico do pensamento iluminista não pode ser pilhado
pelas ansiedades, ceticismos ou ansiedades do presente.
Em várias áreas de conhecimento no contexto do Iluminismo, estendeu-se o
princípio de que se deve operar o entendimento do particular (miríade de fenômenos
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do pensamento e do mundo) para o geral (a força constituidora dos fenômenos,
percebida como lei, razão ou necessidade). Ora, tal processo indutivo-analítico
iluminista apenas tem sentido porque a existência do particular é vista como estando
ligada a uma força constituidora imanente (razão, lei, necessidade), que o inscreve
num plano fenomênico causal (em vez de casual) igualmente imanente. Logicamente,
podemos observar nisso um novo modo de pensamento em que o particular deixa de ser
auto-referencial e, a posteriori, justaposto artificialmente num plano de conjunto por
uma vontade arbitral.
A partir da matriz de entendimento iluminista, houve algumas implicações
práticas do ponto de vista político-institucional: diferentemente do tenso cálculo(ratio)
político que envolve os artifícios de acomodação entre tradição e imprevisibilidade, ou
status e circunstância – característico da Razão de Estado no contexto do Barroco (que
é, não esqueçamos, o contexto de Thomas Hobbes) –, as implicações políticas da forma
de pensamento iluminista (do Estado de Razão) serão tentativas de reformas
institucionais menos afeitas a uma simples acomodação, por justaposição, das partes de
privatae leges. Por isso mesmo, na virada do século XVIII para o XIX, o
“todo”(Estado) deixaria de ser definitivamente entendido como uma mera soma de
partes de “tempos e lugares” (tradições, costumes e privilégios) adequadamente
subordinadas – tal como era a imagem de Estado idealizada por Hobbes –, pois tais
partes passaram a ser ultrapassadas e reconfiguradas por uma força constituidora
(Estado de Razão) que, tal como num prisma invertido, começara a tentar fazer delas
um único “tempo e lugar”, alterando a sua natureza enquanto “partes”.
Assim, efetivamente, surgiu no século XVIII uma forma de pensamento que
diluiu o individual no processual imanente, mas isso somente adquire feições de terror
quando, em recaída metafísica, os atores políticos definem para o processo um ponto
final inquestionável, esvaziando o pensamento iluminista de sua auto-reflexividade
crítica. No fundo, embora não se dessem conta disso, as críticas ao Iluminismo nas
décadas de 1950 e 1960 centraram-se apenas em suas feições metafísicas, como se estas
fossem as únicas a enformar o pensamento iluminista, esquecendo-se que a condição da
superação da metafísica cartesiana foi justamente a cogitação do mundo, o que
implicou no desafio infinito de adequação entre res e intellectus.
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Como notara Ernst Cassirer, se o paradoxo da filosofia do iluminismo estava em
pensar em progresso e em buscar sistematicamente a substância imutável residente na
miríade dos fenômenos humanos e naturais, não há, entretanto, um ponto definitivo de
chegada, pois, tal como notara Voltaire(1694-1778), há sempre um abismo no conhecer
que torna sempre provisória qualquer explicação sobre o homem e sobre o mundo e,
nesse sentido, não deve haver aceitação dogmática sobre qualquer assunto.
Considerando isso, uma outra chave interpretativa de Iluminismo, que não aquela da
crítica de Koselleck ou Arendt, poderia partir de um ensaio de Voltaire: “O Filósofo
Ignorante”. Através deste ensaio, poderemos observar outras implicações da descoberta
do exercício da autonomia crítica iluminista e, assim, demonstrar que seu universo é
muito mais rico para o pensamento contemporâneo do que nos permitiu perceber a
crítica liberal aos totalitarismos nas décadas de 1950 e 1960 – mesmo porque, sem a
experiência histórica do Iluminismo, tanto o liberalismo quanto o socialismo dos
séculos XIX e XX não seriam possíveis.
‘Sapere Aude!’ e Antimetafísica em Voltaire
Em 1932, às vésperas da emergência do regime fascista alemão, Ernst Cassirer
assim terminou o prefácio de seu livro “A Filosofia do Iluminismo”:
“Essa suficiência do ‘eu sei mais’ de que recriminam o Século das Luzes e sobre a qual ninguém se cansa de acumular provas gerou inúmeros preconceitos que ainda hoje impedem um julgamento isento do Iluminismo. (...) O século que viu e glorificou na razão e na ciência ‘a suprema faculdade do homem’ não pode estar para nós inteiramente superado; devemos encontrar o meio de descobrir sua verdadeira fisionomia e, sobretudo, de libertar as forças profundas que produziram e modelaram essa fisionomia”.(CASSIRER, 1994: 14-15) Quase dois séculos antes, uma das principais referências do Iluminismo francês,
Voltaire(1694-1778), desenvolveu um tratado de ironia filosófica chamado “O Filósofo
Ignorante”, que bem serviria para responder ao apelativo de Cassirer. À primeira vista,
o título da obra parece paradoxal: Como que na era do Iluminismo o philosophe poderia
ser ignorante? Na verdade, o título não é uma ofensa, mas um convite para uma nova
forma de procedimento em relação à busca de conhecimento no homem e sobre as
coisas existentes no mundo. Este convite era um passaporte para a liberdade de
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consciência e autonomia crítica do homem. Para alcançar tal autonomia, o homem
deveria ser ignorante... Mas ignorante em relação a quê?
O texto faz pouco caso dos filósofos metafísicos cartesianos, que se
preocupavam com especulações sobre as causas primeiras das coisas. Voltaire ironiza
tal pretensão da busca das origens, pois, além de serem necessariamente inacessíveis à
mente humana, não teriam nenhum efeito prático para suas coisas cotidianas, quase
sempre resolvidas pelo repertório de hábitos e costumes. Além disso, “na cadeia dos
acontecimentos”, há vazios e lacunas, pois a natureza das coisas não é compacta. Não se
trata, logicamente, de um libelo contra o progresso do conhecimento ou da instrução,
mas de uma tentativa de usar o bom senso para delimitar claramente uma esfera para o
conhecimento que efetivamente o homem poderia ter domínio e desenvolver livremente.
Nesse sentido, Voltaire está inscrito no processo de secularização do
conhecimento e da busca iluminista do progresso ou aperfeiçoamento humano, sem se
preocupar em estabelecer ou alcançar um ponto final para a “cadeia dos
acontecimentos”. Por isso, Voltaire faz um convite para que o homem desenvolva um
saber prático, aplicável à vida. E fazer isso era também ratificar a submissão do Homem
ao seu Criador, era diferenciar a esfera daquilo que o homem poderia fazer/pensar
(imperfeito, incompleto e limitado no tempo e no espaço) daquilo que fazia parte da
esfera do divino (perfeição e completude).
Segundo Voltaire, a busca do conhecimento sobre o mundo extenso é ir dos
efeitos às causas, mas sem a pretensão de se colocar “de um único lance à testa da
origem das coisas”, como pretendera Descartes, pois haverá sempre para o homem algo
por descobrir, uma qualidade por desvelar que desafia seus sistemas explicativos.
Portanto, somente para o homem faz sentido dizer que deve permanentemente buscar a
adequação entre matéria e pensamento (adaequatio res et intellectus). Por isso, entre
uma causa primeira para as coisas e a experiência que temos delas, haverá sempre um
abismo do que não se pode saber, de “ignorância”. Eis o infinito da matéria do
conhecimento em relação à capacidade de o homem conhecê-la.
Ora, podemos observar nesta “ignorância”, assumida por Voltaire, relações
diretas com suas concepções de tolerância, engajamento político e universalismo: se
minha mente não pode alcançar tudo que tem a ver com as causas primeiras das coisas,
nenhum conhecimento pode se tornar dogma. Nesse sentido, não pode haver crédito
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nenhum para os sistemas de pensamento que tentam estabelecer-se de uma vez por toda
“à testa da origem das coisas” e, em nome disso, perseguem, matam, desqualificam ou
impedem a emergência de portadores de outras idéias.
Portanto, a antimetafísica de Voltaire relativiza qualquer forma de autoridade
(religiosa, cultural ou política) e reconhece que a verdade é filha do tempo, pois é um
consenso momentâneo que se alcança a partir do livre confronto de idéias. Nesse
sentido, a consciência esclarecida é aquela livre de qualquer constrangimento de dogma
ou autoridade, pois as verdades se sucedem no tempo sem plano previamente definido.
Daí, como conseqüência lógica, deve-se superar o império tradicional do respeito cego
ao passado, aos preconceitos e aos instintos, pois todo conhecimento, em relação à
capacidade humana de entendimento, será sempre relativo no tempo. Isso é exatamente
oposto à forma de entendimento de caráter metafísico, pois neste a razão humana
pode almejar dois tipos de transcendência: um passado como ponto inicial causal a
partir do qual há certeza e pleno preenchimento da vagueza das coisas; ou um ponto
final (futuro utópico ou apocalíptico) para o processo de conhecimento e para o agir do
homem, eximindo-o da ansiedade da eterna busca, da aposta e da incerteza em relação
às escolhas de planos provisórios de futuro.
Com seu ideal filosófico de “ignorância da metafísica”, Voltaire expressa a
reflexividade criativa do pensamento filosófico iluminista. Ao livrar sua mente de
qualquer pretensão metafísica, Voltaire imagina um filósofo inserido numa perpétua
transcendência de si mesmo que é circunscrita ao que é cabível ao humano. É
somente em relação ao homem que faz sentido falar em progresso do conhecimento.
Portanto, a incerteza não gera nele ceticismo, desengajamento ou apatia, porque desde o
início o seu “filósofo ignorante” está livre do modo metafísico de pensar, não se sente
traído ou desencantado em relação a qualquer paradigma que venha a perder validade,
posto que simplesmente não opera com o desejo de completude filosófica ou existencial
– não cabe a ele tal atributo, posto que isso é da ordem do divino. Ao homem caberia
sempre pensar e agir porque, diferentemente do Artesão do Universo, não pode ser ao
mesmo tempo “pensamento e matéria”(intellectus et res).
Deste modo, Voltaire pode celebrar o progresso do saber humano a partir da
crítica à forma dogmática de pensamento, sem que isso o leve a pensar na inexistência
de “Deus”, pois, neste caso, seria o mesmo que dizer que o mundo é uma fatalidade
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cega, que não existiria nele uma força constituidora (Razão/necessidade). Segundo
Voltaire, todos os povos do mundo a reconhecem (eis o princípio da Religião Natural)
e, por isso, criam seus próprios sistemas explicativos sobre ela. No entanto, enquanto
vários povos do mundo tentam dar uma forma doutrinal explicativa para “Deus”,
Voltaire contenta-se tão somente em saber que ele existe e reverenciá-lo por sua obra,
pois não é possível ao homem explicá-lo, o que torna completamente injustificáveis as
violências cometidas em nome deste ou daquele dogma de fé.
Assim, podemos observar em Voltaire uma dimensão de idéia de progresso
que foi indissociável da noção de incompletude filosófica. Tal dimensão fora muito
distinta daquela que, nos séculos XIX e XX, foi apresentada como “última instância”
civilizadora ou como “arma contra a barbárie”. Ora, quando a noção de progresso
humano é alienada de sua consciência da incompletude e entendida – metafisicamente –
como última instância de “bem” ou “belo”, a riqueza cultural da crítica iluminista
desaparece. Como parte da condição humana, a incompletude cultural pressupõe
igualmente o específico e o universal, o histórico e o estrutural, o pontual e o
processual, cuja interação dialética livra-nos de uma noção de mundo meta-estável. Tais
convergências fazem com que a espécie humana possa reconhecer-se em múltiplas
realidades, perceber constantes de pensar e agir calcadas nas mesmas necessidades
vitais – fundamentos de seus “direitos naturais” –, cujas demandas são respondidas de
forma variável no tempo e no espaço.
Nesse sentido, o autoconhecimento da espécie humana terá sempre esta
ambigüidade: compreender a especificidade, mas considerando que sua apreensão
depende das condições mínimas (estruturais) que tornam possível o entendimento
recíproco. Trata-se de um exercício intelectual que não é simples, pois o homem não
pode ser Deus e, por isso mesmo, não deve abandonar o desejo de instruir-se e nem
deve pretender estabelecer um limite para a sua curiosidade a respeito de tudo que pode
conhecer através de experiências lógicas e sensuais. Portanto, o “filósofo ignorante” de
Voltaire serve-nos como um alerta tanto contra governos que estabeleçam fórmulas
fixas e inquestionáveis para reformas ou transformações das paisagens naturais e
humanas quanto contra as insulações culturais identitárias contemporâneas que queiram
trazer para a esfera do humano os atributos de perfeição, completude ou de “última
instância paradigmática” pertencentes ao “divino”.(VIANNA, 2004a)
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Conclusão: Nova Razão e Distinção Social Como temos observado, o contexto do Iluminismo preencheu com novos
sentidos velhas palavras dos vocabulários filosófico e político dos séculos XVI e XVII,
o que torna tanto maior o nosso risco de perceber continuidades onde efetivamente há
rupturas. No centro do debate filosófico iluminista está uma nova idéia de razão e, nesse
sentido, o chamado “Século da Razão” não poderia ser pensado como mais racional ou
racionalizador do que os anteriores, mas como um período em que um novo significado
foi criado para o termo, passando do sentido de mero cálculo circunstancial
acomodatício para aquele de força constituidora do pensamento e da matéria. Por isso,
a Razão Iluminista teria implicações filosóficas, morais e políticas bastante
contrastantes em relação à ratio dos contextos do Barroco e do Renascimento.
Entender a razão como força constituidora altera a relação entre passado e
presente, pois torna este último o elo constitutivo de um processo de futuro, em vez de
ser entendido como um ponto inercial de perspectiva a partir do qual se acomodariam
as partes de uma paisagem (política, moral, filosófica ou natural) em enquadramentos
significativos a priori fixos.(VIANNA, 2001) Nesse sentido, na concepção de tempo
iluminista, o presente diluiu-se numa necessidade histórica, em que o movimento das
coisas humanas em direção ao futuro expressaria um processo infinito de
aperfeiçoamento da sociedade. Deste modo, os momentos históricos seriam agora
percebidos como qualitativamente distintos entre si, em vez de serem pensados como
tipologicamente equivalentes in nuce. Como observamos anteriormente, Koselleck
interpretou tal transformação iluminista da relação entre passado, presente e futuro
como uma forma de secularização da escatologia cristã.
Portanto, entender o passado como presente superado e o futuro como
superação do presente representa um ponto de inflexão que diferencia intelectualmente
e moralmente o Iluminismo dos contextos do Barroco e do Renascimento. Tal inflexão
ocorrera na virada do século XVII para o XVIII, cujo marco intelectual seria o chamado
“embate entre antigos e modernos”. No entanto, somente na segunda metade do século
XVIII é que predominou a tese dos “modernos”, ou seja, que a produção artística e
intelectual dos “tempos atuais”(modernos) não deveria seguir os cânones do passado,
mas sim constituir seus próprios modelos, pois cada tempo seria moderno em si mesmo
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e todo cânone (clássico ou moderno) poderia ser revisado pela crítica pessoal dos
letrados.
Nesse sentido, não deveria haver uma forma última autorizadora da opinião e,
portanto, o passado perderia o seu lugar de autoridade fomentadora de um repertório
tipológico de modelos ou exemplos. Logicamente, tudo isso implicaria numa nova
forma de pensamento: se cada passado foi moderno em si mesmo, isso significa que
cada época tem o seu próprio princípio criativo, a sua própria força constituidora,
cabendo à inteligência humana saber explorá-la, potencializá-la e superá-la. A prática
política deste novo tipo de razão não tardaria de se manifestar na ação administrativa do
Estado.
O Estado de Razão tenderia a interferir mais contundentemente na teia dos
privilégios, alterando o estatuto de muitos cargos administrativos e criando novos mais
dependentes dos salários pagos pelo poder soberano central do que de ganhos
emolumentares ligados ao seu usufruto local como patrimônio. Tratava-se de algo que,
no século XVIII, mais sinalizava uma tendência do que definia um perfil para este
Estado. Em todo caso, entendida como força constituidora, a razão operante na
dinâmica administrativa do Estado do Iluminismo transformaria a relação entre poder
político e território, pois, dos vários tempos e lugares (tendencialmente auto-
referenciais e mediados por privatae leges) em que o seu território estava dividido,
dever-se-ia fazer um único tempo no espaço, processo que poderia ser metaforizado,
como demonstrei anteriormente, pela imagem do prisma de efeito invertido.
Assim, não sem sentido, podemos observar nas próprias idéias econômicas dos
fisiocratas e economistas clássicos da segunda metade do século XVIII a ênfase na
necessidade de se facilitar a circulação dos bens num território através da redução,
simplificação e uniformização do sistema tributário, devendo-se superar a fragmentação
legal e, por extensão, o patrimonialismo do sistema fiscal. Eles enxergavam na
eliminação dessa estrutura um meio de estimular o equilíbrio entre as regiões de um
Estado, uma vez que seria desobstruída a relação natural entre oferta e demanda. Ora,
concretizar tal idéia significaria alterar o estatuto político-jurídico da relação
homem/terra em seus efeitos econômicos e fiscais, buscando-se uma certa
uniformidade no espaço e estabilidade no tempo para os negócios, cujo modelo jurídico
é o contrato comercial de bens móveis.
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Como se viu no caso da Catalunha da segunda metade do século XVIII, uma
reforma administrativa nessa proporção não era necessariamente opositiva à
manutenção de certas prerrogativas vinculadas a antigos direitos e obrigações
jurisdicionais na relação homem/homem; pelo contrário, poderia até fortalecer social e
economicamente determinadas posições senhoriais locais como intermediárias do poder
soberano central. Em todo caso, não se deve perder de vista que um Estado que atua
prismaticamente – e não como simples acomodador de partes autoconstitutivas de
privilégios – exige de seus agentes um tipo de competência administrativa muito mais
centrada no mérito demonstrado pela capacidade de ação do que no mérito presumido
pelo lugar estamental de nascimento.
Ao final do século XVIII, como demonstra a produção literária deste momento,
firma-se como expectativa comportamental na elite letrada iluminista um novo princípio
de distinção social, no qual ser “bem fornido” e ser “bem letrado” tornaram-se, cada vez
mais, marcas centrais de excelência social, o que atenuou ou reconfigurou (mas não
eliminou) o papel dos velhos referenciais estamentais. Atrelada a isso esteve a idéia de
que o valor social (embora não necessariamente político) do indivíduo seria uma
conquista do mérito pessoal e não uma condição presumida pelo lugar social de
nascimento.(MORAES, 2005)
Portanto, nessa configuração, a identidade social seria cada vez mais entendida
como um processo/ação(fazer-se), em vez de ser encarada como uma
condição/estado(ser), o que atenuava a idéia de excelência social transmissível pelo
sangue (nobreza de nascimento). Assim, se antes os homens apenas poderiam dizer-se
iguais entre si pelo amor em Deus, agora a sua igualdade seria calcada na Razão, pois
todos nasceriam com a mesma potência de pensar e sentir, que se desenvolveria
conforme talentos inatos e/ou treinados pelas oportunidades. Deste modo, podemos
perceber que se criou um novo princípio ou percepção de universalidade para os
homens, agora medida em termos exclusivamente seculares.
Afinal, foi no contexto do Iluminismo que as discussões sobre direitos naturais
ajudaram a conformar novos universais que pintaram um quadro mais otimista para o
homem – e que era particularmente distinto da visão hobbesiana da natureza humana.
Para os iluministas, a natureza do homem impeli-lo-ia naturalmente para a paz e o
desejo de liberdade, pois as leis naturais da autopreservação e amor-próprio conduzi-
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lo-iam para a companhia de seus semelhantes e para a rejeição de tiranias. Nesse
sentido, a guerra é intolerável porque fere o direito natural ao conturbar a produção de
riqueza, ameaçar e tornar imprevisível a preservação física de bens e pessoas,
desagregar a reciprocidade natural entre os homens, além de dar margem para a ação de
lideranças políticas inescrupulosas e, potencialmente, tirânicas.
Aliás, com exceção da tendência rousseauniana, a maioria dos philosophes
pensava que os direitos naturais serviam para mostrar que a propriedade privada era
algo natural e, portanto, comum à espécie humana – e a guerra seria, por extensão,
antinatural, pois justamente tornaria instável a sua manutenção e estorvaria a produção.
Além disso, os philosophes não acreditavam que houvesse bens para todos no mundo
em mesma proporção, mas pensavam que quanto mais gente pudesse ter acesso a bens
próprios – principalmente terras sem vínculos de obrigações senhoriais – e tivesse
facilidade no escoamento da produção, maiores seriam as motivações para produzir
riqueza. Ora, é justamente dessa conjuntura a máxima econômica e ética do fisiocrata
Quesnay (1694-1774) de que “a carência não torna ninguém mais laborioso”; pelo
contrário, deprime e desestimula.
Nesse sentido, a igualdade (interior) na Razão teria efeitos (externos) pouco
práticos se o homem não pudesse ser minimamente livre de vínculos de subordinação
econômica, ou seja, as pessoas deveriam possuir bens próprios para o natural exercício
de sua autopreservação. Assim, pode-se dizer que a propriedade seria a condição para o
homem sair de uma menoridade material; enquanto tornar-se letrado e autônomo no
domínio de idéias seria escapar da menoridade intelectual, embora para ser “bem
letrado” fosse necessário “ócio”, somente garantido pelo acúmulo de propriedade. Disso
advém a equação liberal que relaciona propriedade, liberdade e progresso. É a partir
deste debate de idéia que tanto os resquícios de servidão na Europa quanto a escravidão
nas colônias passaram a ser criticados como marcas de atraso e ignomínia. No entanto, o
debate é menos simples do que parece, pois o tráfico de escravos e o cativeiro
permaneceram tratados oficialmente no século XVIII como “resgate” (da barbárie
cultural, religiosa, política ou sociológica).
Ao lado das transformações econômicas do século XVIII, a noção de que havia
uma igualdade (interior) do homem baseada na Razão e nos universais de seus direitos
naturais afetou consequentemente o trato social em determinados círculos de
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sociabilidade, embora isso não significasse uma ameaça geral imediata à estrutura
político-jurídica estamental de constituição dos vínculos sociais e políticos. Ora, se
lembrarmos do exemplo da Kant, poderemos perceber que a crítica iluminista não
questionava a existência de hierarquias sociais e políticas, desde que demonstrassem
funcionalidade e não chocassem a consciência.
De qualquer forma, é inegável que (1) a descoberta do princípio de igualdade
baseado na Razão (entendida como força constituidora), que (2) a competência
presumida da riqueza suplantando a competência presumida pelo nascimento, que (3)
as demandas cada vez maiores por uniformidade e previsibilidade no sistema fiscal-
orçamentário do Estado e que (4) os marcantes não cumprimentos dos deveres sociais,
econômicos e políticos vinculados a privilégios e isenções de muitos patrimônios nobres
e não-nobres acabariam por desenhar progressivamente um quadro para demandas de
reformas que desembocariam na própria superação das estruturas sociais, políticas e
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2005 – ISSN 1519.6186 2Observe que “político” em oposição à “natureza” aparece em Hobbes no sentido de “polidez”(autocontrole dos impulsos), entendida como contraponto à “guerra, barbárie, appetitus et fuga, impulsos descontrolados”. Daí a relação complementar, percebida por Koselleck, entre a interiorização do aperfeiçoamento moral e a construção do Estado Político. 3Prefiro o termo latino a traduzi-lo por “privilégios”, devido aos riscos de uma compreensão anacrônica das formas de se estabelecer vínculos sociais e políticos no Antigo Regime. Nesse sentido, privatae leges devem ser entendidas como as leis particulares que vinculam indivíduos, grupos, famílias, lugares ou patrimônios a responsabilidades e direitos próprios, que assim se tornam corpos de privilégios, genericamente referidos a uma dignidade estamental. 4Constituição política não deve ser entendida como “leis máximas de um Estado”, tal como seria no
sistema jurídico liberal, mas como corpo político-social composto pela união de diferentes ordens, estamentos ou corpos de privilégios. Nesse sentido, tratar analiticamente de várias formas de constituição
política no Antigo Regime significa observar os dispositivos institucionais e sociais existentes de vínculos de reciprocidade hierárquica entre as partes constitutivas de uma corporação política.