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Viagens Literatura Portuguesa • 10.º ano Apoio à rubrica Construção do Saber 1 VIAG10 © Porto Editora fotocopiável Página 33 Introdução à História Medieval de Portugal A afirmação de Portugal, enquanto reino independente, fez-se numa época em que, no restante ocidente europeu, se vivia uma fase que designamos como baixa idade média. Quer isto dizer que o período auge do medievo a alta idade média que muitas vezes se confunde com esse sistema jurídico-político designado por feudalismo, entrava em franca desagregação. Desde logo se tem colocado, por isso mesmo, uma questão que motiva inúmeros debates académicos: houve ou não feudalismo em Portugal? Claro que, nesses debates, sempre ou quase sempre se considerou o feudalismo apenas como realidade sócio-económica, dando-se relativamente pouca importância à sua definição em termos jurídicos. Assim sendo, não é difícil encontrar no Portugal nascente uma economia de base agrária, centrada na grande propriedade, privilégio de poucos grandes senhores, que a faziam explorar, obtendo, direta ou indiretamente, os respetivos proventos. Em estreita ligação observa-se a bipolarização social, que no topo coloca os senhores e, do lado oposto, os dependentes. Com base nestes pressupostos, não há dúvida que encontramos tais relações de produção em Portugal; mas o feudalismo, enquanto sistema jurídico-político não pode ser encarado como uma realidade neste reino, pois que desde cedo a conquista e organização do território se centrou, pelo menos teoricamente, nas mãos de um único senhor, o Rei, como veremos. Não serão de desprezar, como ilustrativas do objetivo dos senhores da terra portucalense, as manifestações de força do jovem Afonso que, após a batalha de S. Mamede, em 1128, provocou por diversas vezes o poder do seu senhor, situação que levaria à assinatura da paz de Tui, em 1137. No acordo, cujo âmbito não é totalmente claro, o filho do conde D. Henrique teve necessidade de garantir disponibilidade para o serviço militar, se o imperador, dele necessitasse. Mas certo é que, com os sucessos conseguidos na luta contra o mouro e um progressivo afastamento dos deveres de vassalagem, o novo conde tudo esqueceu, passando a usar o título de rei cerca de 1139 e agindo em conformidade. Em 1143, após golpe de mestre, que se apressara a colocar-se a si e à sua terra na direta obediência do Papa, em troca do pagamento de quatro onças de ouro, D. Afonso Henriques logrou obter de seu primo, o imperador Afonso VII, o reconhecimento da independência do condado Portucalense. Porém, tal situação revestia-se de algumas limitações, considerando o significado de um reino inserido num império, tal era o de Afonso VII. Por isso, importava a Afonso Henriques conseguir um documento escrito e esclarecedor por parte da Santa Sé. Duplicando o censo a que se comprometera em 1143, o filho do conde D. Henrique viu reconhecido o régio título, cujo direito lhe vinha dos sucessos conseguidos no âmbito da reconquista, por bula papal de Alexandre III - a bula Manifestis Probatum em 1179. Só então se iniciava o processo de um reino totalmente independente no plano temporal. Nessa base, o respetivo rei continuava a liderar o processo de reconquista, procurando alargar o seu território à custa de terras dominadas pelo poder muçulmano. E se são certos os avanços e recuos dessa ação bélica, cujas vitórias estiveram diretamente relacionadas com momentos de maior afirmação ou fracasso do poder muçulmano, não menos certa se apresenta a primeira tentativa de povoamento e organização do território levada a cabo por D. Afonso Henriques. Nela se cruzam influências diversificadas que, para serem compreendidas, exigem que recuemos aos inícios do Condado Portucalense que, cerca de 1099, terá sido confiado a Henrique da Borgonha. Não é o momento de aludir às razões primeiras, certamente políticas, que trouxeram ao ocidente a Casa da Borgonha, mas é indispensável ter presente que o novo conde era um jovem em busca de riqueza e sucesso. Vinha certamente imbuído de influências variadas, até talvez contraditórias, mas que traduziam o momento histórico que se vivia no ocidente: a persistência da velha mentalidade feudal, mas também uma nova perspetiva de futuro, que passava pela recuperação da importância das casas reais e pelo fortalecimento da ideia de “nacionalismo”. E é nessa junção de influências que se deve entender o projeto do Conde que, ele próprio, trabalhou no CONSTRUÇÃO DO SABER SEQUÊNCIA 1 VIAGEM PELAS LETRAS MEDIEVAIS

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Viagens • Literatura Portuguesa • 10.º ano Apoio à rubrica Construção do Saber

1 VIAG10 © Porto Editora

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Página 33

Introdução à História Medieval de Portugal

A afirmação de Portugal, enquanto reino independente, fez-se numa época em que, no restante

ocidente europeu, se vivia uma fase que designamos como baixa idade média. Quer isto dizer que o

período auge do medievo – a alta idade média – que muitas vezes se confunde com esse sistema

jurídico-político designado por feudalismo, entrava em franca desagregação.

Desde logo se tem colocado, por isso mesmo, uma questão que motiva inúmeros debates

académicos: houve ou não feudalismo em Portugal? Claro que, nesses debates, sempre ou quase

sempre se considerou o feudalismo apenas como realidade sócio-económica, dando-se relativamente

pouca importância à sua definição em termos jurídicos. Assim sendo, não é difícil encontrar no

Portugal nascente uma economia de base agrária, centrada na grande propriedade, privilégio de

poucos grandes senhores, que a faziam explorar, obtendo, direta ou indiretamente, os respetivos

proventos. Em estreita ligação observa-se a bipolarização social, que no topo coloca os senhores e,

do lado oposto, os dependentes. Com base nestes pressupostos, não há dúvida que encontramos

tais relações de produção em Portugal; mas o feudalismo, enquanto sistema jurídico-político não

pode ser encarado como uma realidade neste reino, pois que desde cedo a conquista e organização

do território se centrou, pelo menos teoricamente, nas mãos de um único senhor, o Rei, como

veremos.

Não serão de desprezar, como ilustrativas do objetivo dos senhores da terra portucalense, as

manifestações de força do jovem Afonso que, após a batalha de S. Mamede, em 1128, provocou por

diversas vezes o poder do seu senhor, situação que levaria à assinatura da paz de Tui, em 1137. No

acordo, cujo âmbito não é totalmente claro, o filho do conde D. Henrique teve necessidade de garantir

disponibilidade para o serviço militar, se o imperador, dele necessitasse. Mas certo é que, com os

sucessos conseguidos na luta contra o mouro e um progressivo afastamento dos deveres de

vassalagem, o novo conde tudo esqueceu, passando a usar o título de rei cerca de 1139 e agindo em

conformidade. Em 1143, após golpe de mestre, que se apressara a colocar-se a si e à sua terra na

direta obediência do Papa, em troca do pagamento de quatro onças de ouro, D. Afonso Henriques

logrou obter de seu primo, o imperador Afonso VII, o reconhecimento da independência do condado

Portucalense.

Porém, tal situação revestia-se de algumas limitações, considerando o significado de um reino

inserido num império, tal era o de Afonso VII. Por isso, importava a Afonso Henriques conseguir um

documento escrito e esclarecedor por parte da Santa Sé. Duplicando o censo a que se comprometera

em 1143, o filho do conde D. Henrique viu reconhecido o régio título, cujo direito lhe vinha dos

sucessos conseguidos no âmbito da reconquista, por bula papal de Alexandre III - a bula Manifestis

Probatum – em 1179. Só então se iniciava o processo de um reino totalmente independente no plano

temporal. Nessa base, o respetivo rei continuava a liderar o processo de reconquista, procurando

alargar o seu território à custa de terras dominadas pelo poder muçulmano.

E se são certos os avanços e recuos dessa ação bélica, cujas vitórias estiveram diretamente

relacionadas com momentos de maior afirmação ou fracasso do poder muçulmano, não menos certa

se apresenta a primeira tentativa de povoamento e organização do território levada a cabo por D.

Afonso Henriques. Nela se cruzam influências diversificadas que, para serem compreendidas, exigem

que recuemos aos inícios do Condado Portucalense que, cerca de 1099, terá sido confiado a

Henrique da Borgonha. Não é o momento de aludir às razões primeiras, certamente políticas, que

trouxeram ao ocidente a Casa da Borgonha, mas é indispensável ter presente que o novo conde era

um jovem em busca de riqueza e sucesso. Vinha certamente imbuído de influências variadas, até

talvez contraditórias, mas que traduziam o momento histórico que se vivia no ocidente: a persistência

da velha mentalidade feudal, mas também uma nova perspetiva de futuro, que passava pela

recuperação da importância das casas reais e pelo fortalecimento da ideia de “nacionalismo”. E é

nessa junção de influências que se deve entender o projeto do Conde que, ele próprio, trabalhou no

CONSTRUÇÃO DO SABER SEQUÊNCIA 1 • VIAGEM PELAS LETRAS MEDIEVAIS

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sentido de ultrapassar o condicionalismo que lhe traziam os laços feudais que o ligavam ao rei de

Leão. Contou, para tanto, com a preciosa ajuda da metrópole bracarense que, no seu projeto de

primazia, necessitava de um sustentáculo político. Daí que se possa afirmar que o território que D.

Henrique viria a legar a seu filho, Afonso, era já um projeto de reino. Teria ele, no entanto, que

confrontar-se com velhos poderes que passavam pelos interesses dos grandes senhores, de

mentalidade feudal e de interesses diversos. Desse modo devemos entender a primeira grande cisão,

ocorrida em S. Mamede, que opunha a velha nobreza aos irrequietos barões em busca de fortuna,

que aceitariam de bom grado a liderança do jovem rei, sobretudo na guerra da reconquista. E nos

“reconquistados” encontramos a outra grande força presente no futuro reino de Portugal. Trata-se de

uma influência de mais de 300 anos, com uma cultura, uma economia e uma organização social e

política que deixou marcas, visíveis até hoje, sobretudo no sul de Portugal. […]

Por tudo isto, a formação de Portugal deve ser entendida como um processo complexo, em que

se cruzavam influências e que nascia num tempo em que se caminhava decididamente para uma

nova realidade política europeia. Foi a época em que se tornaram claros dois deveres principais aos

monarcas: alargar e defender os reinos e melhorar o exercício da justiça. Em ligação com esta

melhoria, de igual modo se impunha uma legislação adequada, o que dava aos reis um reforçado

poder legislativo e executivo. Assim, o estado baseava-se na lei e o rei existia para a fazer cumprir,

sendo-lhe necessária a organização das respetivas instituições. Deste modo a justiça passaria a ser

um importante veículo de autoridade régia, pois o recurso ao monarca tornou-se na esperança última

dos povos. Tal situação levaria as justiças régias a entrar nas terras dos grandes senhores o que

viria, em última análise, a limitar os respetivos poderes. Assim se delineou uma tácita aliança entre o

rei e os povos: aquele encontrando no povo a sua base de apoio e este esperando do rei a libertação

do senhor que oprimia. Perspetivava-se, pois, a possibilidade de esbater o poder dos grandes,

substituindo-o por um único, central e forte, que tivesse em atenção a totalidade dos governados. O

avanço neste processo arrastaria consigo a organização de outras instituições, de que se destacarão

as económicas, as fiscais e as administrativas. A par delas, as chancelarias dariam carácter oficial

aos atos, pelo respetivo registo e aposição do selo régio. E desta afirmação do rei e do ofício de

reinar em breve se passaria ao sentimento nacional, que iria sobrepor-se a lealdades particulares.

Ora, no Portugal nascente, rapidamente se caminhou para a organização de similares

instituições, sendo de recordar o favor dispensado por D. Afonso Henriques ao Mosteiro de Santa

Cruz de Coimbra, sem dúvida a primeira sede da Chancelaria Régia. No entanto, o processo de

reconquista em curso não viabilizaria de imediato uma sólida organização territorial, pelo que

podemos distinguir três subperíodos no medievo português: o dos reis que estabeleceram o território;

o dos reis que o organizaram; os reis que consolidaram Portugal. Certo é que, como deve acontecer

na periodização em história, não pretendemos que cada um destes subperíodos corresponda a

compartimentos estantes. Diremos apenas que a ação régia em cada um deles se manifestou mais

fortemente com aquelas características, mas sem exclusão de outras atividades que, por sua vez,

podem manifestar-se com maior intensidade no período seguinte. Temos assim uma continuidade

que situamos entre 1128 e 1484. E se a primeira data não pode oferecer grandes resistências, já o

mesmo se não pode dizer da última. Divide-se a historiografia portuguesa sobre o momento em que

deve considerar-se o fim da idade média em Portugal. Do meu ponto de vista, um novo tempo

começou apenas quando D. João II dominou os velhos poderes senhoriais, ou os poderes

neossenhoriais e, rodeando-se de gente nova e cheia de ambição, iniciou um caminho diferenciado

no processo régio português. Um caminho em que claramente o rei se assumiu como senhor único,

vencendo, ainda que pela força, os seus opositores e assumindo-se como responsável de um

território que, não sendo sua propriedade, devia organizar e gerir em função de todo o povo.

Reconhecendo, embora, a nova realidade portuguesa que se abriu com a expansão marítima, com

todas as possibilidades que viabilizou, certo é que essa realidade só ganhou total sentido, mesmo no

encontro entre os povos, no momento em que coube ao rei e só a ele, liderar os processos. É

aceitando 1484 como momento de total viragem na história de Portugal, que traçaremos agora o que

consideramos serem as principais linhas condutoras de cada um dos subperíodos indicados.

Assumida como tarefa prioritária por D. Afonso Henriques, a reconquista do território ficou

concluída cerca de um século mais tarde, em tempo de D. Afonso III. Daí que afirmemos terem sido

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os cinco primeiros reis de Portugal aqueles que “construíram o território”. Com o primeiro monarca a

aproveitar a decadência da dinastia Almorávida e beneficiando do poder enfraquecido dos reinos

taifas, compreende-se o grande avanço que deu na reconquista, para ela se tendo orientado toda a

economia do novo reino. D. Afonso Henriques, que recebera um território que se estendia até

próximo da linha do Tejo, não se preocupou apenas em ultrapassá-la, no sentido do sul, mas

orientou-se também para o alargamento do território em direção ao oriente peninsular. Contudo,

dando preferência a pontos estratégicos do litoral, como garantes das ligações com outros povos e

ponto de apoio indispensável nas rotas comerciais, o primeiro rei de Portugal assentou posições em

toda a “Estremadura ocidental”. Aqui se inserem as grandes conquistas, de que se destaca

Santarém, domínio que acabaria por se consumar em 15 de março de 1147. Abria-se assim o

caminho para o estuário do Tejo. Seguiu-se Lisboa, que era, no dizer de Joaquim Veríssimo Serrão,

“a cidade mais poderosa que os árabes detinham na zona ocidental da Península” e que viria a cair

em 25 de outubro do mesmo ano de 1147. O rei recebia de seguida castelos igualmente importantes

para a abertura ao mar, tais eram os de Sintra e Palmela. Dominada a primeira linha do Tejo, com ela

caíam as terras limítrofes do rio Zêzere, alargando-se o território a oriente. Deste modo se ampliava o

reino de Portugal, que fixava já a sua fronteira em Palmela. Conquistados os portos mais

significativos do litoral, seguir-se-iam novas ofensivas, enquanto se organizava a vida nos territórios

já dominados […].

Importa ainda salientar que o primeiro rei de Portugal não se preocupou apenas com a

reconquista. Não esquecia que o sucesso do Estado dependia também de uma cuidada

administração e do equilíbrio das forças sociais e económicas, pelo que desenvolveu desde cedo

uma ação de reorganização das suas terras, que passou pela sua ocupação e povoamento, através

de forais e, no que se refere à fronteira com os reinos cristãos, pela construção de fortalezas de vigia.

São também desta época as grandes doações feitas às ordens religiosas, que garantiam povoamento

e, no caso das Ordens militares, também defesa. Criavam-se assim as condições para o

desenvolvimento de grandes poderes protagonizados pelas casas religiosas, de que se destacam os

Monges de Cister; nas ordens de cavalaria deve recordar-se a Ordem do Templo e, na sequência

dela, a Ordem de Cristo; do mesmo modo viriam a ter expressão bem significativa a Ordem de Avis e

a Ordem de Santiago. A Ordem dos Hospitalários, também presente em Portugal desde as origens do

reino, terá sido, porventura, a que menor expressão viria a ter. Estas Instituições, que sem dúvida

tiveram extrema importância no processo de construção do reino, tanto na defesa da fronteira, como

na organização e povoamento, viriam, contudo, a transformar-se em verdadeiros senhorios, ricos e

poderosos, criando problemas que os reis seguintes procurariam solucionar.

O reinado de Sancho I coincidiu com o auge do poder dos almóadas na Península, o que lhe não

permitiu grandes aventuras no âmbito da reconquista, se excetuarmos uma tentativa falhada de

domínio do reino do Algarve, tomando, com o auxílio dos cruzados, a cidade de Silves. […] Justo será

dizer que a ação de Sancho I não descurou, no entanto, a fronteira cristã, nomeadamente frente ao

reino de Leão […]. Desenvolveu igualmente toda uma ação de povoamento, traduzida sobretudo em

múltiplas cartas de foral, que viabilizaram a organização de inúmeros concelhos. O curto reinado de

seu filho, D. Afonso II, ficou marcado por outras preocupações, particularmente visíveis no campo da

justiça. De facto, foi com este rei que se compilou o primeiro corpo documental – as leis de 1211 –

que assentou as bases das relações sociais portuguesas no século XIII. E se não podemos afirmar

que o filho de Sancho I se envolveu no processo de reconquista, não devemos omitir a sua presença

na grande aliança da maioria dos reinos ibéricos contra os muçulmanos, que teve o seu auge na

batalha de Navas de Tolosa, no ano de 1212, acontecimento que marca também o início do declínio

dos almóadas. A sua ação fez-se ainda sentir no equilíbrio de forças dentro do reino, com clara

afirmação do poder régio, frente aos grandes senhores, laicos e eclesiásticos. Se disso são exemplo

as primeiras Inquirições e Confirmações, são-no igualmente as duras lutas que travou com suas

irmãs, na sequência do testamento de D. Sancho I, pelo qual lhes cabiam poderes territoriais e

jurisdicionais capazes de fazer perigar a unidade do reino.

Com o rei Sancho II, monarca tradicionalmente maltratado pela historiografia portuguesa, vemos

claramente recuperado o sonho do alargamento do território, tanto para sul como para o oriente

peninsular. […]

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Segue-se um período complicado na História de Portugal, sendo Sancho II deposto e substituído

por seu irmão, Afonso que, em 1249, concluiria a reconquista portuguesa, com o domínio do reino do

Algarve, dominando Faro, Albufeira, Porches e Silves. E continuando o projeto de Sancho, cruzou o

Guadiana para se apoderar de Arouce e Aracena. A reconquista portuguesa terminara. A sul estava o

mar, pelo que só poderia ser alargada à custa de domínios conseguidos a leste, na margem esquerda

do Guadiana. Mas Afonso III teria que enfrentar as exigências de Leão e Castela já reunificados,

sobretudo depois da morte de Fernando III. Tal confronto devia-se à argumentação de Afonso X, que

defendia pertencer-lhe a terra do Algarve, por força do senhorio que detinha sobre o rei de Niebla, a

quem essa terra estivera sujeita. Das hostilidades entre os dois monarcas resultaram umas primeiras

pazes, pelo ano de 1253. Na concórdia, ou talvez apenas tréguas, o rei de Portugal comprometia-se a

dar as rendas do Algarve a Afonso X, mantendo, no entanto, o senhorio da terra. Dez anos depois,

em 1263, assinou-se nova paz, o que prova que este período não foi isento de lutas. O rei de Castela

comprometeu-se então a desistir das rendas do Algarve, exigindo, em contrapartida, o serviço de 50

lanças quando delas precisasse. Portugal cederia ainda Arouce e Aracena. Entretanto, ficava também

acordado que se iriam fazer demarcações entre os reinos, traçando já uma linha limite em cada um

deles, que, com poucas modificações posteriores, acabaria por ser a linha de fronteira. Assim, em 16

de fevereiro de 1267, assinou-se o “Tratado de Badajoz”. Por ele ficavam aceites as aludidas

demarcações e estabelecida a linha de fronteira sul entre os dois territórios. Trinta anos mais tarde,

quando já rei e liderando um processo em que ditava as regras, D. Dinis completaria este Tratado,

conduzindo negociações até à fixação da fronteira a norte do Tejo, que comportou alguns acertos na

que antes fora negociada para o sul. Tal aconteceu pelo Tratado de Alcanizes, assinado a 12 de

setembro de 1297.

Assim sendo, ainda que terminada a reconquista com D. Afonso III, a fronteira cristã só ficaria

concluída no reinado seguinte. Esse aspeto, no entanto, não impediu que o rei bolonhês exercesse

uma linha de atuação interna conducente à afirmação do seu poder, com o consequente domínio dos

abusos característicos dos grandes senhores. Sinal desse objetivo foram as Inquirições e

Confirmações, iniciadas com D. Afonso II e levadas a efeito, de forma mais sistemática, por D. Afonso

III. Do mesmo modo continuou uma luta, também já antes iniciada e que seria prosseguida nos

reinados seguintes, contra os privilégios dos grandes senhores da Igreja.

Iniciava-se então uma outra fase de vida do reino – a sua organização. Destacamos agora a

ação do segundo grupo de monarcas, ou seja, os que colocámos como “organizadores do reino” – D.

Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando – que tiveram uma tarefa diferenciada dos anteriores.

Concluída que estava a reconquista e definidas as fronteiras do território, emergia a necessidade de

organização do reino, já no campo das atividades económicas, já no âmbito das relações sociais, já

no campo das instituições. No primeiro caso podem destacar-se uma série de medidas tomadas por

D. Dinis, nomeadamente no que se refere à agricultura, mas sobretudo ao comércio. Esta atividade

começava então a desenvolver-se, à semelhança do que acontecera no restante ocidente, o que

levou este monarca, de resto na senda de alguns apontamentos já ditados pelos seus antecessores,

a tomar medidas de proteção e incentivo em larga escala, tanto a nível do comércio interno como

externo. Poderíamos falar, por exemplo, da importância das feiras, mas também da proteção ao

comércio marítimo, com as medidas necessárias ao desenvolvimento da atividade. E esta

preocupação atravessou os reinados seguintes, tendo uma expressão muito significativa com D.

Fernando. No campo da supremacia régia e do controle de poderes, importa também lembrar a

atuação de D. Dinis ao proibir a aquisição de bens de raiz pelo clero – leis da desamortização. Desse

modo pensava limitar o poder temporal da igreja e, com ele, o seu poder espiritual. A luta por este

segundo aspeto viria a intensificar-se com D. Pedro I, ao estabelecer a obrigação do beneplácito

régio, ou seja, a obrigatoriedade de todos as orientações da igreja irem ao conhecimento da

Chancelaria Régia, cujo selo deviam ostentar antes de serem dadas a conhecer ao povo. Esta foi

uma luta que se prolongou no tempo, sendo reforçada por D. Duarte e mantendo-se ainda em tempo

de D. João II.

Quanto às instituições, nomeadamente no campo da justiça, viram-se progressivamente

organizadas, sobretudo, a partir de D. Afonso IV, com significativo desenvolvimento no reinado de D.

Pedro I. Com elas, é notória a preocupação de preencher os respetivos quadros com gente letrada, o

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que se tornou manifesto no tribunal da corte. A casa do Cível e a Casa da Suplicação, com os

respetivos Regimentos, são bem exemplo dessa preocupação. Também as cortes, assembleias

representativas dos grupos sociais que, a partir de 1254, haviam passado a incluir o povo, se

tornaram apoio sistemático dos monarcas, que as reuniam e nelas legitimavam a respetiva atuação.

Do mesmo modo, significavam o momento de “dar voz” aos grupos nelas representados. Os

documentos delas emanados, que o mesmo é dizer, as respostas régias aos pedidos apresentados

pelos três grupos e ainda por concelhos individuais, constituíram verdadeiros corpos documentais,

servindo de orientação aos magistrados e de referência às populações. Grande parte desses corpos

foram recolhidos posteriormente nas chamadas Ordenações de Duarte. Serviram igualmente de base

aos posteriores estudos que dariam origem ao grande monumento das leis do reino, iniciado com D.

João I, mas que viria a ser publicado durante a regência de D. Pedro, com o nome de Ordenações

Afonsinas.

Numa sociedade organizada como a Portuguesa começava a ser, também o desenvolvimento

cultural teve grande importância. Se a valorização da língua vernácula, que, a partir de D. Dinis,

passaria a ser usada nos documentos oficiais, substituindo o latim, até então obrigatório, se tornou

uma imperiosa realidade, certo é que a expressão máxima da cultura, a encontramos na instituição

da Universidade, que seria criada por D. Dinis, no ano de 1290, em Lisboa, para ser, em 1309,

transferida para Coimbra. Sem esquecer que também o próprio rei e a respetiva corte tiveram

manifestações de erudição, concretizadas na produção literária de que ficaram registos.

Mas o processo de estruturação do reino ver-se-ia confrontado, a breve trecho, com uma crise

europeia, a que Portugal não pode ficar alheio. De facto, as indesejáveis consequências da peste

negra, que varreu o ocidente a partir de 1347, condicionaram também este reino, com efeitos

devastadores que se fizeram sentir em todas as áreas, mas que foram particularmente visíveis em

termos sociais e económico. Afonso IV já se confrontou com o flagelo, procurando impor, através das

Leis do trabalho, um regresso aos campos abandonados. Mas a expressão máxima dessas medidas

devemos encontrá-la na Lei das Sesmarias, implementada com D. Fernando, a partir de 1375. E com

este monarca, de personalidade e ação até hoje ainda muito pouco estudada, se caminhou para a

primeira grande crise portuguesa. De facto, ainda a par com a Europa, onde se viveu um clima de

instabilidade, que teve a sua expressão nas revoltas sociais, de que destacamos a de França

(Jacquerie), iniciada em 1358, e de Inglaterra, em 1381, também em Portugal se abriu uma crise.

Teve, no entanto, uma componente diferente de qualquer uma das outras. Repercutindo, sem dúvida,

descontentamentos sociais e económicos, ela abriu-se por razões políticas, à morte deste monarca,

que deixava a sua única filha sem descendência e casada com o rei de Castela, D. João I. Tal

situação foi de molde a criar uma cisão interna protagonizada por dois grupos: as fidelidades

representadas pela velha nobreza, que aclamaram D. Beatriz como rainha, sem preocupações com a

independência e alheios ao significado do sentimento de “nação” e aqueles, constituídos, sobretudo,

pela burguesia e parcelas populares, que rejeitaram essa solução, privilegiando o valor da

nacionalidade. Assim se viveu em Portugal entre 1383 e 1385, ano em que, nas Cortes de Coimbra,

viria a ser aclamado como rei de Portugal o homem que liderara a oposição à velha mentalidade, D.

João, mestre de Avis, que se havia de consagrar como D. João I, o rei da Boa Memória.

Com D. Fernando terminava a primeira dinastia portuguesa, ou de Borgonha, para se iniciar,

com D. João I, a segunda dinastia ou de Avis. Para alguns autores fecha-se assim o ciclo medieval

em Portugal. Não o considero, como já referi, estendendo-o ainda ao longo dos reinados de D. Duarte

e D. Afonso V, no qual se inclui a Regência de D. Pedro. Sem dúvida que esta nova fase do processo

histórico de Portugal trouxe consigo muita novidade. A nova dinastia iniciava-se com a consolidação

da consciência de nação, pela qual se manteve em guerra até ao Tratado de Ayllon, assinado com

Castela em 31 de outubro de 1411, prosseguindo depois numa atitude de paz vigilante até ao Tratado

de Medina del Campo, que ocorreria a 30 de outubro de 1431. Só então se pode considerar uma paz

definitiva com o reino vizinho, que apenas viria a ser quebrada quando, em 1475, D. Afonso V invadiu

aquele território para, casando com a sobrinha, D. Joana, se fazer aclamar rei daquele reino. Da

análise dos documentos referentes a esta etapa da vida do rei Africano, facilmente se conclui que

nesse projeto não era cabalmente apoiado pelos grandes senhores do reino. A proximidade que

estes mantinham com a principal adversária do projeto português – a futura rainha católica –

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sobrepunha-se à identificação com os objetivos do rei de Portugal. Tal se depreende facilmente das

opiniões manifestas nos conselhos reunidos antes do início desta guerra. Por fim, acompanhariam o

seu rei, numa atitude de fidelidade, mas as posições antes tomadas não deixam de traduzir os seus

interesses particulares. Tal não pode deixar de significar um retrocesso relativamente ao que

acontecera na sequência da morte de D. Fernando. Era a velha mentalidade a sobrepor-se a uma

ideia de hegemonia política, que seria concretizada na união ibérica, acarinhada então por Afonso V,

mas sobretudo pelo seu herdeiro, o príncipe D. João. Os grandes senhores que faziam ouvir a sua

voz eram liderados pelas principais casas do reino, ou seja, os duques de Viseu e de Bragança, que

haviam conseguido impor em Portugal um verdadeiro neossenhorialismo, que permaneceria para

além do terceiro quartel do século XV. O seu engrandecimento, que os transformaria em verdadeiros

poderes paralelos ou mesmo alternativos, radicava naquela “centralização descentralizada”, para

usar palavras do saudoso Professor Jorge Borges de Macedo, que permitira a ascensão dos

familiares próximos do rei da Boa Memória, num processo crescente, que só viria a ser travado por

ação do Príncipe D. João, quando seu pai, D. Afonso V, o associou ao governo.

A par com esta política de manutenção das grandes casas, porventura pensadas para ajudar a

consolidar o poder da própria coroa, por se concentrar nas mãos dos descendentes diretos do rei,

não se nega que D. João I concretizou, noutros campos, projetos diversos dos que haviam

caracterizado os reinados anteriores. O principal terá sido a abertura ao exterior, através da grande

aventura da expansão para além fronteiras, que seria iniciada com a conquista de Ceuta e logo

seguida pelas viagens atlânticas. Do mesmo modo, a atenção dada à burguesia e ao comércio, com

a abertura de novos mercados, o incremento de rotas, a organização de alfândegas, com a regulação

dos respetivos ofícios, foram medidas importantes na consolidação de uma economia de base

fiduciária, que havia de caracterizar os tempos modernos. Mas certo é que, até 1460, ano da morte

do infante D. Henrique, o processo de expansão marítima foi liderado pela casa senhorial de Viseu,

que daí extraiu largos proventos em benefício próprio. E quando, já no reinado de D. Duarte, se

tomou a decisão de avançar sobre Tânger, foi ainda o poder senhorial que ditou a decisão. Para tanto

basta recordar a divisão de opiniões que se fizeram ouvir, com o esclarecido infante D. Pedro a

mostrar o desinteresse do projeto, mas com D. Henrique a influenciar claramente o rei, no sentido de

o aceitar. Foi essa mesma mentalidade que sacrificou o infante D. Fernando, preso na sequência da

tentativa frustrada da conquista. Por isso, nas cortes reunidas por D. Duarte em Leiria, para decidir do

futuro da praça de Ceuta e, consequentemente, do infante sacrificado, perfilaram-se dois grupos de

interesses diferenciados, pondo claramente de um lado D. Pedro e D. João e, do outro, D. Henrique e

D. Afonso, o bastardo de D. João I. Esses grupos acabariam por se identificar com similares

posições, tomadas após a morte do monarca Eloquente. E se é certo que, num primeiro momento,

todos defenderam o afastamento da rainha viúva, a quem D. Duarte deixava o governo do reino, não

é menos certo que rapidamente as posições se extremaram. Assumindo a Regência, o Infante D.

Pedro não alcançaria consensos, vindo a atuar com a oposição, patente ou latente, desses grupos.

Foram os mesmos que, influenciando o jovem Afonso V, seriam responsáveis pela batalha de

Alfarrobeira onde D. Pedro, sem glória, acabaria por perder a vida.

São estas contradições políticas, com as suas repercussões sociais, que nos impedem de ver no

Portugal dos primeiros monarcas de Avis uma clara abertura ao modernismo. Tal não impede,

contudo, que se reconheçam aspetos de mudança, tais foram a privilegiada relação conseguida com

os Concelhos, a clarificação das jurisdições, ou mesmo as preocupações de controle no âmbito de

privilégios assumidos, por vezes abusivamente, por alguns. Como exemplo sempre lembraremos a

Lei Mental que, no entanto, desde a sua conceção, excluía os grandes beneficiados do reino. Não

negaremos também as preocupações de reforma da justiça, através da elaboração de leis mais justas

e adequadas, de que foi sinal a organização das já aludidas Ordenações Afonsinas. Mas a verdade é

que esse corpo documental acabou por não responder às exigências de um reino em mudança, pelo

que D. João II logo gizou o plano da sua reforma, que seria concretizada por D. Manuel e ao qual

corresponderiam as Ordenações Manuelinas. Dos desajustes das relações económicas e sociais, que

os primeiros monarcas de Avis não tiveram capacidade para resolver, falam ainda os estudos

conducentes à reforma dos forais, tarefa pensada também pelo filho de D. Afonso V e concretizada

pelo Rei Venturoso. E, se quisermos abordar outro campo – o da reforma da saúde – facilmente se

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comprova que esse projeto, certamente presente desde D. João I, também só viria a ter um enérgico

arranque com D. João II, tendo, mais uma vez, a sua expressão mais alta com o Regimento do

Hospital de Todos os Santos, dado por D. Manuel ao grande hospital de que D. João II lançara a

primeira pedra.

É certo que o reino se abriu, nesta primeira linha da Dinastia de Avis, aos problemas europeus,

participando nos grandes Concílios ou, simplesmente, preparando-se para a guerra contra o turco,

que então ameaçava o Mediterrâneo ocidental. Mas serão estas ações suficientes para ver em

Portugal sinais da modernidade? Penso que não, pois considero que, no seu todo, esta abertura não

esteve isenta de muitos sinais da velha mentalidade. No que se refere aos Concílios, diríamos que

também eles não eram ainda sinais do projeto moderno. E a ofensiva contra o turco não passou de

episódica presença, liderada por grandes senhores, dos quais destacamos o bispo de Évora, D.

Garcia de Meneses. No rescaldo dos preparativos, os navios portugueses tomariam a direção do

norte de África e as cidades conquistadas em Marrocos, cujo auge foi atingido no tempo de D. Afonso

V, acabariam por transformar-se em redutos de serviço e domínio de uma privilegiada dinastia de

cavaleiros. O próprio projeto atlântico, sem dúvida inovador, viria a enquadrar-se no poder senhorial

liderado pelo seu mentor, o infante D. Henrique. Situação só ultrapassada quando D. João, ainda

príncipe, passou a ocupar-se dos “negócios da Guiné”.

Por tudo isto e independentemente das mudanças ocorridas, ou mesmo de apontamentos de

novidade cultural, com influência direta da capital do humanismo, certo é que as condições sociais e

políticas criadas em Portugal nos levam a considerar a permanência de uma mentalidade que

caracterizou o medievo. Basta recordar que os grandes da corte do rei Africano não se inibiam de

manter um estreito relacionamento com os futuros Reis Católicos. Chegaram mesmo a pedir-lhes

ajuda, enquanto senhores, para afastar o herdeiro do trono, que não servia a sua ambição senhorial.

Por isso, será necessário esperar pela ação de um monarca como D. João II, para assistir ao

corajoso enfrentamento e domínio desses velhos poderes. Confronto necessariamente cruel, mas

que, nas circunstâncias vividas, se impunha concretizar. Só quando o rei consegue concretizar o

projeto político do seu reino, controlando ainda as instituições, as relações sociais e a economia

podemos afirmar a vitória da nova mentalidade. Ela daria então ao monarca o poder de atuar

livremente no seu reino, não como “coisa” própria, mas como território que era necessário gerir em

função de um povo. Isso aconteceu quando D. João II, acusando como traidores os Duques de

Bragança, em 1483 e de Viseu, em 1484, os faria sucumbir, dominando igualmente as respetivas

cortes. Recuperando muito do seu poder económico, mas sobretudo apresentando-se como único

senhor, garantindo a confiança dos povos e controlando as relações sociais, o rei podia finalmente

liderar o processo de centralização. Eram, em Portugal, os alvores da modernidade.

MENDONÇA, Manuela, “Introdução à História Medieval de Portugal”, in OPSIS – Revista do NIESC, vol. 6, 2006

Página 42

Através do link http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=457&pv=sim é possível aceder às

diferentes versões da cantiga de D. Sancho I:

Versões musicais de Amancio Prada

Versão musical de Cláudio Carneyro

Versão musical de Filipe Pires

Versão musical de José Augusto Alegria

Versão musical de José Augusto Alegria, Pedro Caldeira Cabral

Versão musical de João Paulo Esteves da Silva, Filipa Pais

Versões musicais de Tomás Borba

Versão musical de Xoán Eiriz

Versão musical de Ângela Lopes

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Página 100

Cantigas de amor de Rui Queimado

D’ este mundo outro ben non querria

– por quantas coitas me Deus faz sofrer –

que mi a senhor do mui bon parecer

que soubess' eu ben que entendia

como og' eu moir', e non lh’ o dizer eu,

nen outre por min, mais ela de seu

sen1 o entender como seria.

E se eu est’ ouvesse, averia

o mais de ben que eu querri' aver:

sabê-lo ela ben, sem lh’ o dizer

eu! E non attendess’ aquel dia

que eu attend’, onde ei mui gran pavor,

de lhe dizer: por vós moiro, senhor,

ca sei que por meu mal lh’ o diria.

Ca senhor ei que m’ estranharia2

tanto que nunc’ averia poder

de lh’ ar falar, nen sol de a veer.

E mal me vai, mais peor m’ iria.

E por esto querria eu assi

que o soubesse ela, mais non per mi,

e soubess’ eu ben que o sabia.

E rog’ a Deus e sancta Maria,

que lhe fezeron muito ben aver,

que ben assi lh’ o façan entender.

E con tod est’ ainda seria

en gran pavor de m’ estranhar por én.

E par Deus, ar jurar-lh’-ia mui ben

que nulha culpa i non avia.

De m’ entender, assi Deus mi perdon!

nen o gran ben que lh’ eu quer’: e enton

con dereito, non se queixaria. 1 ‘de seu sem’: por si própria;

2 ficaria surpreendida.

Cuidades vós, mia senhor, que mui mal

estou de vós, e cuid’ eu que mui ben

estou de vós, senhor, por ũa ren

que vos ora direi, ca non por al:

Se morrer’, morrerei por vós, senhor;

se m’ i-ar fezerdes ben, aque melhor1!

Tan mansa2 vos quis Deus Senhor fazer

e tan fremosa, e tan ben falar

que non poderia eu mal estar

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de vós, por quanto vos quero dizer:

Se morrer’, morrerei por vós, senhor;

se m’ i-ar fezerdes ben, aque melhor!

Amo-vos tant’ e com tan gran razon,

pero que nunca de vós ben prendi3,

que coid’ eu est’, e vós que non é ‘si4;

mais tant esforç’5-ei no meu coraçon,

Se morrer’, morrerei por vós, senhor;

se m’ i-ar fezerdes ben, aque melhor!

1 aque melhor: tanto melhor;

2 meiga;

3 nunca de vós ben prendi: nunca por vós fui correspondido;

4 coid’ eu est’, e vós que

non é ‘si: tenho a certeza disto e vós (pensais) que não é assim; 5 convicção.

Direi-vos qui mi-avẽo1, mia senhor,

i logo quando m’ eu de vós quitei:

ouve por vós, fremosa mia senhor,

a morrer; e morrera... mais cuidei

que nunca vos veeria des i,

se morress’... e por esto non morri.

Cuidando en quanto vos Deus fez de ben

en parecer e en mui bem falar,

morrera eu; mais polo mui gran ben

que vos quero, mais me fez Deus coidar

que nunca vos veeria des i,

se morress’... e por esto non morri.

Cuidand’ en vosso mui bon parecer

ouv’ a morrer assi Deus me perdon!

e polo vosso mui bon parecer

morrera eu; mais acordei-m’ enton

que nunca vos veeria des i,

se morress’... e por esto non morri.

Coidand’ en vós ouv’ a morrer2 assi!

e cuidand’ en vós, senhor, guareci3!

1 qui mi-avẽo: o que me aconteceu;

2 ouv’ a morrer: estive para morrer;

3 renasci.

TORRES, Alexandre Pinheiro, 1987. Antologia da Poesia Trovadoresca Galego-Portuguesa. Porto: Lello & Irmãos (2.ª ed.)

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Página 117

Pedro, Conde de Barcelos

Primogénito bastardo de D. Dinis, e também trovador, D. Pedro de Barcelos é umas das figuras

culturalmente mais importantes da Idade Média peninsular. Nascido por volta de 1285, da ligação de

D. Dinis com D. Graça Anes Fróiaz (dona de Torres Vedras, cujo túmulo se encontra na Sé de

Lisboa), D. Pedro Afonso parece ter sido criado, a partir de certa altura (como, aliás, outros filhos

bastardos de D. Dinis), na corte régia, na casa da rainha, D. Isabel de Aragão. O documento mais

antigo que o refere data de 1289, e dá-nos conta de um conjunto de doações que lhe são concedidas

por seu pai, e que se repetirão nos anos posteriores. Casa, nos primeiros anos do século XIV, com a

rica herdeira D. Branca Peres, filha de D. Pero Anes de Portel e D. Constança Mendes de Sousa,

enviuvando pouco depois, devido à morte prematura, por parto, de D. Branca (1305). Herdando os

avultados bens da mulher, D. Pedro, já então largamente beneficiado por seu pai, transforma-se num

dos homens mais ricos do reino.

Em 1307 desempenha o cargo de mordomo da infanta D. Beatriz, futura mulher de Afonso IV, seu

irmão (que veio para Portugal ainda muito jovem). Em finais de 1308, casa novamente, desta vez

com a também rica herdeira aragonesa D. Maria Ximenes Coronel, casamento eventualmente

negociado pela rainha D. Isabel (muito embora, como sugere Resende de Oliveira1, D. Pedro possa

ter conhecido a noiva em 1304, quando acompanhou D. Dinis na sua viagem a Aragão). Por motivos

algo obscuros, mas em que entram em jogo factos caluniosos imputados a D. Maria Ximenes

(referidos mas nunca claramente explicitados na abundante correspondência trocada entre D. Dinis,

D. Isabel e o rei Jaime II de Aragão sobre o assunto2), o casal desentende-se gravemente, e, em

1316, separa-se de facto, decorrendo, a partir daí, um complicado processo de partilha de bens, que

se arrasta longos anos.

Entretanto, desde 1314, D. Pedro Afonso ostentava já o título de Conde de Barcelos, que lhe tinha

sido concedido por seu pai, pelos serviços prestados à Coroa, ocupando igualmente o cargo de

alferes-mor do reino (título e cargo deixados vagos pela morte de D. Martim Gil de Riba de Vizela, em

1312). A partir de 1317-1318, no entanto, momento em que estala abertamente o conflito entre D.

Dinis e o infante D. Afonso, seu primogénito e herdeiro, o Conde de Barcelos parece ter tomado

preferencialmente o partido de seu irmão, motivo pelo qual o rei lhe confisca todos os seus bens,

levando-o igualmente a exilar-se em Castela, onde permanece até 1322. No seu regresso a Portugal,

retoma, contudo, a posse da maior parte do seu vasto património, muito certamente pela posição

apaziguadora que passa a tomar no conflito.

Seja como for, com a morte de D. Dinis, em 1325, e a subida ao trono de seu irmão, parece ter

optado por viver preferencialmente nos seus domínios de Lalim, Arouca, com a sua companheira, a

castelhana Teresa Anes de Toledo, e onde, para além de ter mantido, ao que tudo indica, um círculo

restrito de trovadores e jograis, leva a cabo um notabilíssimo trabalho cultural, de que resulta, desde

logo, a organização do seu Livro de Linhagens e a redação da Crónica Geral de Espanha de 1344, o

primeiro grande texto historiográfico português. Mas será certamente também em Lalim que o Conde

D. Pedro procede à compilação dos materiais de que resultará o seu Livro das Cantigas (que doa,

em testamento datado de 1350, ao seu sobrinho Afonso XI de Castela), seguramente a última grande

antologia da poesia trovadoresca, matriz do manuscrito que será copiado em Itália no século XVI, e

de que resultam os dois apógrafos italianos onde hoje podemos encontrar a parte mais substancial

das cantigas galego-portuguesas.

D. Pedro morre em Lalim, nos primeiros meses de 1354, estando sepultado, num túmulo de

interessante feitura artística, no mosteiro de S. João de Tarouca, conforme determinado no seu

testamento.

1 Oliveira, António Resende de (1994), Depois do espetáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as

recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa, Edições Colibri. 2 Fernandes, A. de Almeida (1990), A história de Lalim, Câmara Municipal de Lamego, Junta de freguesia de Lalim.

In http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=119&pv=sim

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Página 124

(Versão da) Lenda de Dom Ramiro

D. Ramiro II, rei das Astúrias e de Leão, que reinou desde o ano de 931 até ao de 950, numa

excursão que fez de Viseu, onde então residia, por terras de mouros, viu e enamorou-se da

formosa Zahara, irmã de Alboazar, rei mouro, ou alcaide do castelo de Gaia sobre o rio Douro.

Recolheu-se D. Ramiro a Viseu com o coração tão cativo, e a razão tão perdida, que sem respeito

aos laços que o uniam a sua esposa, D. Urraca, ou, como outros lhe chamavam, D. Gaia, premeditou

e executou o rapto de Zahara.

Enquanto o esposo infiel se esquecia de Deus e do mundo nos braços da moura gentil, num

palácio à beira-mar, o vingativo irmão de Zahara, trocando afronta por afronta, veio de cilada,

protegido pela escuridão de uma noite, assaltar e roubar nos seus próprios paços a rainha D. Gaia.

A injúria vibra na alma de Ramiro o ciúme e o desejo de vingança.

O ultrajado monarca voa à cidade de Viseu, escolhe os mais valentes de entre os seus mais

aguerridos soldados e lá vai à sua frente a caminho do Douro.

Chegando à vista do castelo de Alboazar, deixa a sua corte oculta num pinhal e, disfarçado em

trajos de peregrino, dirige-se ao castelo e, por meio de um anel, que faz chegar às mãos de D. Gaia,

lhe anuncia a sua vinda.

O peregrino é introduzido imediatamente à presença da rainha, que fica a sós com ele. Alboazar

tinha ido para a caça. D. Ramiro atira para longe de si as vestes e as barbas, que o desfiguravam, e

corre a abraçar a esposa. Esta, porém, repele-o, indignada, e lança-lhe em rosto a sua traição.

No meio de um vivo diálogo de desculpas de uma parte, e de recriminações da outra, volta da

caçada Alboazar. D. Ramiro não pode fugir. Já se sentem na próxima sala os passos do mouro. A

rainha, parecendo serenar-se, oculta o marido num armário, que na câmara havia. Mas apenas

entrou Alboazar, ou fosse vencida de amor por ele, ou cheia de ódio para com o esposo pela fé

traída, abre de par em par as portas do armário, e pede vingança ao mouro contra o cristão traidor.

Daí a pouco era levado el-rei D. Ramiro a justiçar sobre as ameias do castelo. Chegado ao lugar

da execução, pediu o infeliz que lhe fosse permitido antes de morrer despedir-se dos sons acordes da

sua buzina. Sendo-lhe concedida esta derradeira graça, D. Ramiro empunha o instrumento e toca por

três vezes com todas as suas forças.

Era este o sinal ajustado com os seus soldados, escondidos no próximo pinhal, para que,

ouvindo-o, lhe acudissem apressadamente. Portanto, num volver de olhos, foi o castelo cercado,

combatido, tomado, e depois incendiado. A desprevenida guarnição foi passada ao fio da espada, e

Alboazar teve a sorte dos valentes: – expirou combatendo. E D. Gaia, como ao passar o Douro para a

margem oposta se lastimasse e mostrasse dor, vendo abrasar-se o castelo, foi vítima também do

ciúme de D. Ramiro, que cego de ira a fez debruçar sobre o bordo do barco, cortando-lhe a cabeça

de um golpe de espada. À fortaleza em ruínas ficou o povo chamando o castelo de Gaia, e à margem

do rio, onde aportou o barco do D. Ramiro, deu-lhe o nome de Miragaia, em memória daquele fatal

mirar da mísera rainha.

PINHO LEAL, Augusto Soares d’ Azevedo Barbosa de, 2006 [1873]. Portugal Antigo e Moderno. Lisboa: Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, tomo XII (citado em http://www.lendarium.org/narrative/viseu-lenda-de-d-ramiro/) [Grafia atualizada]

Página 134

Cf. texto de apoio à rubrica Construção do Saber da página 158.

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Página 138

D. Pedro I

D. Pedro I (n. em Coimbra a 8 de abril de 1320, m. a 18 de janeiro de 1367), oitavo Rei de

Portugal, filho de D. Afonso IV e de D. Beatriz de Castela, cognominado O Justiceiro ou O Cruel.

Coroado rei em 8 de maio de 1357, é especialmente renomado pelo episódio dos seus amores ilícitos

com Inês de Castro, sendo a história dos seus amores um dos principais mitos da Língua Portuguesa.

Tem sido amplamente discutido o carácter de D. Pedro, complexo, irascível, sádico e obcecado

pela aplicação de justiça, fatores que resultaram na sua dupla cognominação – O Cruel e O Justiceiro

– e que refletem, respetivamente, a sua complexa personalidade e a obsessão pelo castigo,

frequentemente desproporcionado e de critério discutível (como afirma J. Veríssimo Serrão). Parece,

no entanto, ter gozado de franca popularidade.

Enquanto administrador do reino, D. Pedro revelou prudente sapiência ao enveredar por uma

política de neutralidade no que toca às lutas peninsulares. Já a nível interno, conduziu importantes

medidas legislativas, como a regulação dos prazos dos despachos administrativos e judiciais e a

instauração do beneplácito régio, destinado a prevenir a circulação de documentos papais sem a

anuência do Rei, prática que conduzira a abusos e prejuízos múltiplos.

A posteridade associará sempre D. Pedro ao seu relacionamento com Inês de Castro, que, mais ou

menos romanceado, se tornou parte integrante da Cultura e da História Portuguesa. Este acontecimento,

profundamente marcante dos reinados de D. Afonso IV e de seu filho D. Pedro, continua a ser alvo de

controvérsia em virtude do tema da confluência entre matérias de estado e do foro privado.

Inês de Castro chega a Portugal integrada na comitiva da princesa D. Constança em 1340,

quatro anos depois do casamento por procuração com o herdeiro do trono português, D. Pedro.

Rezam as crónicas que este terá ficado enamorado da dama de companhia da sua esposa, numa

ligação que geraria quatro filhos. Com a morte de parto de D. Constança (ao dar à luz o futuro rei D.

Fernando), D. Pedro passa a viver maritalmente com D. Inês, gerando uma situação de escândalo

público. Para agravar a situação, D. Pedro instala a amante perto do Mosteiro de Santa Clara, ação,

como refere J. Veríssimo Serrão, injuriosa para a memória da Rainha Santa. D. Afonso IV terá

realizado esforços para conter o escândalo mas, perante a pressão dos seus conselheiros, armados

do argumento da perigosa influência crescente dos irmãos de D. Inês na política nacional e da

existência de bastardos que poderiam fazer perigar a futura ascensão de D. Fernando ao trono,

acaba por lhes permitir decidir sobre o futuro da amante do seu filho. Assim, a 7 de janeiro de 1355,

D. Inês é assassinada, gerando louca fúria em D. Pedro e conduzindo a uma devastadora guerra civil

que duraria até 15 de agosto de 1356, data em que é celebrado o acordo de paz entre pai e filho, em

muito resultado da ação conciliadora da rainha D. Beatriz. Sete meses mais tarde, D. Afonso IV morre

e D. Pedro ascende ao trono, o que lhe permite vingar a morte de D. Inês com o brutal assassínio de

dois dos seus executores (contrariando o que prometera no tratado de 1356) e ainda tentar provar

que secretamente casara com Inês.

O nome de D. Pedro ficaria assim associado a esta narrativa de amor e vingança, eventos que

obscurecem as suas ações administrativas e diplomáticas e que parecem sustentar as interpretações

sobre a instabilidade das suas emoções e a complexidade do seu temperamento.

In http://www.mosteiroalcobaca.pt/pt/index.php?s=white&pid=235

Página 158

A Dinastia de Avis e a refundação do reino

Quando D. Fernando morreu, a 22 (1) de outubro (2) de 1383 (3), a sucessão no trono e no

governo de Portugal estava determinada pelo Tratado de Salvaterra (4). Nos termos por este fixados,

a regência do reino caberia a Leonor Teles (5) até que D. Beatriz, já casada com o monarca (6)

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castelhano, viesse a ter um filho varão de 14 anos. Ora, contando D. Beatriz, à época, cerca de 12

anos, a viúva de D. Fernando seria, no curto e no médio prazo, a principal beneficiada com a

situação, uma vez que previsivelmente a regência se prolongaria por muito tempo. É, de resto,

provável que tenham sido a rainha e os que lhe eram próximos que manobraram, do lado português,

para que o Tratado de Salvaterra ficasse com o clausulado com que ficou. De uma assentada, Leonor

Teles via a sua filha tornar-se rainha (7) de Castela e de Portugal, garantia o governo deste reino por

muitos anos e podia ainda contar com a proteção do monarca castelhano, seu genro. Entre os diretos

e diletos apoiantes da rainha estava um nobre de origem galega, João Fernandes Andeiro (8),

conde de Ourém, uma das mais importantes figuras da corte e amante de Leonor Teles ainda em

vida de D. Fernando. Na Crónica de D. João I Fernão Lopes aponta mesmo João Fernandes como

“dormindo com a mulher de seu Senhor”, ou seja, o rei.

Mas as reações contra a aclamação de Juan I de Castela e da sua mulher D. Beatriz como reis

de Portugal não se fizeram esperar. Em várias cidades e vilas eclodiram tumultos, assim relançando

as uniões populares que anos antes tinham assolado o reino. E mesmo entre a nobreza foi crescendo

a oposição (9) a Leonor Teles e à influência do conde Andeiro (10). De tal maneira se agudizavam

as tensões que este último veio a ser morto às mãos de D. João (11), o mestre da ordem militar de

Avis (12), no final de 1383 (13) (6 de dezembro (14)), apenas um mês e meio após o falecimento de

D. Fernando. Este episódio, bem como a intensa revolta popular que alastrou em Lisboa e noutros

locais, terá sido decisivo para que Leonor Teles pedisse auxílio a Juan I, a fim de garantir a

continuação da regência. Ainda no mês de dezembro, concretizou-se a invasão (15) castelhana,

comandada pelo próprio monarca. Em janeiro (16) de 1384 (17), Leonor Teles renunciou à regência,

em favor da sua filha e do rei de Castela.

A avaliar pelo relato de Fernão Lopes na Crónica de D. João I, a morte do conde Andeiro foi o

resultado de uma conspiração que envolveu diversas figuras da nobreza que se lhe opunham. E de tal

maneira o plano foi bem urdido que logo se lançou a ideia, rapidamente espalhada por Lisboa, de que

era o mestre de Avis que corria perigo de vida. O eficaz boato, lançado pelos que apoiavam o executor

do conde galego, fez de imediato acorrer às ruas uma multidão de populares que expressou de maneira

clara o seu ódio ao amante da rainha. A dinâmica então criada culminou na nomeação de D. João,

mestre de Avis, como “Regedor (18) e Defensor (19) do reino”. A população de Lisboa marcava assim

o ritmo do que iriam ser aqueles vertiginosos tempos.

Este D. João, agora guindado à condição de líder de muitos dos que se opunham a Leonor Teles e

a Castela, estava longe de ser uma figura desconhecida que apenas tivesse emergido dos

acontecimentos recentes. É verdade que ele próprio se mostrou hesitante, titubeante até, quando os

homens-bons e os mesteirais de Lisboa como que o empurraram para que assumisse a

responsabilidade de dirigir os que o apoiavam naquele momento crítico. Clarificada a situação na maior

cidade do reino, os principais centros urbanos como o Porto, Coimbra (20) ou Évora (21) declararam

seguir o mestre […].

Como se pode compreender até pelos apoios recebidos, a condição do novo regedor e defensor

do reino não era, de modo algum, a de uma personagem menor. De facto, este D. João era filho

bastardo (22) do rei D. Pedro (23) e, portanto, meio-irmão (24) do defunto D. Fernando. A bastardia

nobre e, sobretudo, a bastardia régia estavam longe de ser um estigma social; pelo contrário, esta

última constituía até um claro sinal de distinção entre a nobreza. […]

A ação imediata de D. João, depois de investido nas suas novas funções de regedor e defensor do

reino, orientou-se no sentido de conseguir uma reorganização das forças disponíveis para fazer face à

situação e, desde logo, para combater a invasão castelhana. […]

[…] O ano de 1384 trouxe vários sucessos às hostes do mestre. A 6 de abril, em Atoleiros (25) (no

atual concelho de Fronteira), o exército chefiado por Nuno Álvares Pereira (26) alcançou uma

importante vitória sobre os castelhanos, que sofreram pesadas baixas; em maio, o Porto conseguiu

resistir ao ataque dirigido pelo bispo de Santiago de Compostela e no qual participaram nobres

portugueses partidários de D. Beatriz; Lisboa, cercada no fim de maio por terra e na foz do Tejo com a

participação pessoal de Juan I, resistiu igualmente, vindo a contar com a ajuda da peste (27) que

grassou entre os castelhanos e dizimou o seu exército e a sua armada, obrigando a que o cerco fosse

levantado em setembro desse ano, com a subsequente retirada do invasor para Castela.

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Estas vitórias militares tiveram claros reflexos nos realinhamentos de apoiantes da causa do

mestre de Avis. […] A posição do mestre de Avis saiu reforçada dos confrontos bélicos e este viu

aumentar o seu prestígio, com o consequente engrossar das fileiras dos que o aceitavam como

governador do reino. O passo seguinte deu lugar a um outro tipo de batalha, a da legitimação de jure de

quem era cada vez mais de facto o defensor e o regedor do reino. Ou seja, aquele que desempenhava

as funções atribuídas a um verdadeiro rei.

Convocadas pelo mestre, as Cortes teriam lugar em Coimbra (28), entre 3 de março (29) e 10 de

abril (30) de 1385 (31). […] A assembleia, maioritariamente integrada por apoiantes (32) do mestre,

recusou a ocupação do trono por D. Beatriz e pelo rei de Castela e debateu a possibilidade de a coroa

vir a recair em D. João, filho do rei D. Pedro e de Inês de Castro, ou no até aí mestre de Avis e regedor

e defensor do reino. A argumentação do doutor João das Regras (33) e a intervenção de Nuno Álvares

Pereira em favor do segundo foram decisivas para a aclamação do novo monarca, no dia 6 de abril

(34). […]

Continuaram as campanhas militares, com nova vitória dos portugueses em Trancoso (35), a 29

de maio. Seguiu-se aquele que haveria de ser o decisivo triunfo, na Batalha de Aljubarrota (36), lugar

situado entre Leiria e Alcobaça, em 14 (37) de agosto (38) de 1385 (39), tendo então o exército de D.

João I contado com o importante apoio de tropas inglesas (40). A escolha do local do embate, uma

meticulosa preparação do terreno (com fossos e “covas de lobo” onde a pesada cavalaria castelhana

literalmente se afundou) e a destreza de peões armados de arco ou besta, aliadas a um eficaz comando

militar encabeçado pelo condestável Nuno Álvares Pereira, permitiram reverter a desvantagem

numérica da hoste luso-britânica (cerca de 10 mil homens) face às tropas castelhanas (entre 20 mil e 30

mil combatentes). A “Batalha Real”, como a designou Fernão Lopes, traduziu-se num enorme sucesso

para o campo português e numa pesada derrota para o rei de Castela, que aí perdeu milhares de

homens. No confronto direto entre os dois monarcas, D. João I de Portugal, aclamado cerca de três

meses antes nas Cortes de Coimbra, levou a melhor sobre o seu homólogo invasor e passou uma

prova decisiva. […]

A guerra ainda se iria manter, com recontros vários, passando pelas tréguas de 1389, pelas

novamente celebradas em 1393, pelo recrudescimento das hostilidades entre 1396 e 1402, até ao

definitivo estabelecimento da paz entre Portugal e Castela, nesse mesmo ano, e sua reafirmação pelo

tratado de 1411. […]

SOUSA, Bernardo Vasconcelos e, “A Dinastia de Avis e a refundação do reino” in RAMOS, Rui (coord.), 2012. História de

Portugal, vol. 2. Paço de Arcos: A Esfera dos Livros

Página 178

Outra eleição

No momento em que escrevo, anda muito falada a eleição presidencial. Por isso convido-vos a

assistir a uma outra eleição, crucial, que se realizou no passado. Teremos de voltar a uma época bem

chegada à da batalha de Aljubarrota […]. O local, agora, é Coimbra. E os leitores atentos já terão

percebido que se trata da eleição de D. João I, nas Cortes de 1385.

Não é a primeira vez que falo do assunto, mas, agora, vou centrar esta viagem histórica na

intervenção que o Dr. João das Regras teve naquelas Cortes. Ou, para ser mais exato, na sua

intervenção tal como o cronista Fernão Lopes a descreveu; é impossível saber qual é a parte de João

das Regras e qual a de Fernão Lopes, mas isso não nos interessa agora; o que pretendo é mostrar

qual a conceção de poder que serviu de fundamento para a revolução de 1383-85.

Portanto, estamos em Coimbra, nas Cortes que vão decidir sobre o futuro do reino, cujo trono

está vago – e dizer isto já é revolucionário, porque a filha do falecido rei, D. Beatriz, foi aclamada em

vários lugares e porque estas Cortes decorrem da recusa em aceitar a sucessão dinástica normal e a

regência da mãe da rainha, Leonor Teles.

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João das Regras, ao tomar a palavra (segundo Fernão Lopes), diz várias coisas de importância

capital. Não posso mencioná-las todas, limito-me a alguns pontos essenciais. O primeiro: contra a

opinião de alguns, ele declara que aquelas Cortes têm suficiente poder representativo para deliberar.

A dúvida estava no reduzido número de nobres e prelados presentes, pois o reino estava “deviso”, ou

seja, dividido (muitos nobres e eclesiásticos mantinham a fidelidade a D. Beatriz); ora, um dos

argumentos que o orador usa é, a meu ver, notável: “aqui são juntos bem cinquenta procuradores de

vilas e cidades do reino”. Ou seja, a presença dos procuradores dos concelhos – o elemento mais

“popular”, digamos – chegava para dar às Cortes aquilo a que podemos chamar de poder soberano.

Poder para eleger um rei entre os vários herdeiros – eram eles o rei de Castela e a mulher, D.

Beatriz, e ainda os dois filhos de D. Pedro I e Inês de Castro, os infantes D. João e D. Dinis.

Significativamente, João das Regras não mencionou o mestre de Avis, que era o seu candidato; de

facto, como bastardo de D. Pedro, não podia ser considerado herdeiro. E depois de enumerar os

herdeiros, foi dizendo, caso a caso, por que razão não podiam receber a coroa portuguesa. A

argumentação é longa – e extremamente hábil; retenhamos somente que, no caso dos filhos de Inês,

um dos argumentos a que o orador deu mais força foi o facto de ambos terem entrado em Portugal

em som de guerra, integrados no exército castelhano. Este não era, contudo, um argumento de peso

à luz da mentalidade medieval; mas era-o à luz da nova mentalidade.

Porém, o que mais me impressiona, em toda esta cena, são as palavras que Fernão Lopes põe

na boca de João das Regras, quando este fala com o mestre de Avis: “Senhor, eu hei assaz

trabalhado por mostrar […] que estes reinos são vagos de todo, e a eleição deles fica livremente ao

povo” […].

Não há dúvida: estamos em plena revolução. Uma afirmação deste teor seria muito mal aceite,

por exemplo, durante o Estado Novo. E pensar que foi dita no século XIV…

AGUIAR, João, in Tempo Livre (citado a partir de http://sorumbatico.blogspot.pt/2007/05/outra-eleio.html - 07/05/2007)

As “razões” de João das Regras nas Cortes de Coimbra

[…] Fernão Lopes começa o seu capítulo 183 fazendo a apresentação “jurídica” de João das

Regras nas Cortes coimbrãs, por estas conhecidas e textuais palavras: “era hi huũ notavell barom,

homem de perfeita autoridade, e comprido de sçiemçia, mui gramde leterado em lex, chamado doutor

Joham das Regras, cuja sotilldade e clareza de bem fallar amtre os leterados, oje em dia he theuda

em comta”. Tinha o “sotil” doutor em mira “mostrar per sçiemçia e rrazom” o que considerava

“verdade e proveito” para os povos. “Mas quem poderia rreteer segundo alguũs escprevem, a

avomdamça de seu boom falar”? Porém alguns leigos (leigos em direito, certamente), “leixamdo [nos]

as migalhas do que percallçar poderom em escprito, dizem que começou desta guisa”. E o chamado

“génio literário” de Fernão Lopes, como se nas Cortes de Coimbra assistira um hábil taquígrafo,

preenche nada menos de sete capítulos da sua aliciante crónica, com os dois longos discursos do

“grão doutor”, transcritos entre aspas!

São manifestos o artifício, o ardil, a habilidade, o génio literário de Fernão Lopes. Será sempre,

qualquer que possa ser a ideia que a crítica dele venha a fazer como historiador, um escritor

fulgurante, encantador, dramático, um mestre da língua e da arte de bem dizer. Mas a nós, o que nos

interessa antes de mais nada e acima de tudo, em estudo desta natureza, são, naturalmente, os seus

dotes e processos de historiador. Evidente como é, que os discursos atribuídos a João das Regras

por Fernão Lopes são arranjo seu e de mais ninguém […] vamos examinar a pontos largos as razões

do cronista de D. João I para produzir a prova da sua tese, isto é, da vacatura do trono de Portugal

em abril de 1385.

DA ILEGITIMIDADE DOS PRETENDENTES

Para demonstrar que após o falecimento de D. Fernando estes reinos “ficarom vagos e

desemparados, sem rei e deffemsor lidemo que os possa e deva herdar de dereito, pera sobrello

proveermos como nos Deos ajudar”, feita a comparação entre a eleição do Papa e a situação em que

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se encontravam – sofística e falsa do ponto de vista histórico-canónico – passa João das Regras, isto

é, o cronista Fernão Lopes, a examinar, um por um, os pretendentes legitimistas ao trono vago.

a) O rei de Castela, por sua mulher D. Beatriz; b) Os filhos varões de D. Pedro I e de D. Inês de

Castro, os infantes D. João e D. Dinis.

Prova João das Regras, isto é, Fernão Lopes, que tanto pelo sangue como pela fé, nem era

legítimo nem conveniente, eleger ou aceitar o Rei de Castela. […]

O caso dos filhos de D. Pedro I, reconheceu-o o próprio cronista e panegirista de D. João I, é

bem mais difícil de resolver. As Cortes não parecem ter posto qualquer objeção à liquidação do Rei

de Castela. Não admira. A elas não compareceram senão nacionalistas da melhor têmpera. […] A

longa arenga de João das Regras a propósito do Rei de Castela não se dirigia aos homens que

tomavam assento na assembleia, mas aos ausentes, aos dos castelos e vilas e cidades que tomaram

voz por D. Beatriz; ou melhor – já que estamos a raciocinar sobre um artifício literário forjado muito

posteriormente aos acontecimentos – a longa arenga de Fernão Lopes tem por fim provar aos

dissidentes e seus rebentos, a bem pensada e a excelente resolução em Coimbra tomada por uma

minoria, mas por uma minoria que representava ali a verdadeira Nação.

O caso dos filhos de D. Pedro I é pois de difícil solução. Tão difícil, que do ponto de vista

histórico-jurídico não está solucionado ainda.

Fernão Lopes põe na boca de João das Regras a afirmação de que vai tratar do intrincado

problema “sem afeiçom que se de nós assenhore”, mas “segundo a rrazom e dereito rrequere[m]”.

Logo veremos, ou iremos vendo, a pouco e pouco, como consegue o cronista-jurista o seu programa

de incorrupta objetividade histórica.

A primeira cousa que a “amtiiga verdade protesta saber” deste negócio é “se foi çerto, que dona

Enes era molher delRei dom Pedro”; “a outra, posto que a reçebesse, se podia seer sa molher de

dereito, e os filhos taes que podessem herdar”.

João das Regras, ou melhor, Fernão Lopes, passa a examinar, pelo fio de uma cerrada crítica, a

sua tese, que enuncia por estas palavras: “digo que numca foy çerto, em vida delRei dom Affomsso

nem depois”, que D. Pedro recebesse por mulher a D. Inês […].

Entra depois o orador no exame dos impedimentos matrimoniais de D. Pedro com D. Inês, isto é:

“se per vemtuira reçebida fosse, se era tall casamento valioso”. […]

[…] Está provado que eram parentes em grau que anulava o contrato e portanto o sacramento,

pois estavam nas relações de tio e sobrinha (2.° grau). Contenta-se o jurista com assinalar o facto

(capítulo 187), mas cala o que não deveria ocultar: que D. Pedro tinha dispensa pontifícia para casar

com qualquer senhora católica, exatamente no grau de consanguinidade que o unia a D. Inês. […]

João das Regras, sentindo o terreno falso, passa à frente, como gato sobre brasa, para produzir

esta sensacional afirmação: “Mas venhamos a huü gramde impedimento, aallem dos outros, com que

o Papa nom despemssara por cousa que aviinr podesse, por o quall ella nom podia seer sua molher

per nenhüa guisa”. E relata como D. Inês fora madrinha do infante D. Luís, filho de D. Pedro e de D.

Constança, facto largamente atestado […].

Certo é que Fernão Lopes tenta emendar, em contradição consigo próprio, o que momentos

antes afirmara, revelando que “alguüs emtemdidos que disto parte sabem” afirmavam que D. Pedro

mandara a D. Inês que se não furtasse ao convite da Rainha, que estivesse presente ao batismo,

mas que não dissesse as palavras que os padrinhos costumam dizer em nome do afilhado, e que ela

desta guisa o fez, e que se tal vontade não levava, nem nunca em tal consentiu, que “tall compradigo

era nhuũ, e podia depois sem pecado casar com o padre de tall afilhado”. […]

DA ILEGITIMIDADE DOS FILHOS DE D. PEDRO

Tornando à fala, no mesmo Paço das Escolas, começou a dizer o grão doutor:

“Senhores fidallgos, e homrradas pessoas, bem sabees como neestos Cortes forom per mim

propostas alguũas rrazoões a mostrar que estes rreinos som de todo pomto vagos, e nehuũ ha hi que

os deva e possa herdar per linhagem, nem a quem de dereito perteeçam”. (capítulo 189). Como a

assembleia, visivelmente não estava convencida, especialmente os senhores da Beira, que

positivamente se opunham à eleição do Mestre de Avis, por julgarem legítimo herdeiro o infante D.

João, em aberta contradição, portanto, com a tese de João das Regras, resolveu o hábil advogado

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queimar os últimos cartuchos trazendo à assembleia as suas armas secretas, “propoemdo em praça

o que callar quisera e nom faliar em ello”, isto é, o “defeito de sua naçemça sem legitimaçom”.

[…] Segundo o testemunho, “jurado aos sanctos Euãgelhos”, de Diogo Lopes Pacheco, exarado

na Inquirição de 30 de março de 1385, testemunho afirmado também pelo Dr. João das Regras

quando pretendeu provar que nunca foi certo que D. Inês fosse mulher de el-rei D. Pedro (capítulo

186), foi o próprio declarante com os conselheiros mestre Joane e João Durães suplicar ao infante D.

Pedro, residente no paço de Santa Clara de Coimbra, “que casasse cõ a dicta doña Enes poys a

muyto amaua, [...] que a seu padre e a sua madre prazia muuyto” e honrá-la-iam “como sa molher”.

“E que o dicto Rey dom Pedro lhy dissera e dera ê reposta que nõ era seu talante de o fazer nê o

cuydaua de fazer ê todos os dias de sa vida por aficamento que lhy aueesse”.

Temos pois, segundo o testemunho “jurado” de Diogo Lopes Pacheco e do próprio “grão doutor”,

que o perfilhou plenamente, D. Pedro a negar-se terminantemente a casar com D. Inês em dias de

sua vida, e seus pais a suplicar-lhe insistentemente que o fizesse! Esta doutrina se afirma e prova

largamente no capítulo 186 da Crónica de Fernão Lopes.

Três capítulos avante, olvidando totalmente o que antes dissera, afirma que “huũs três anos,

ante que dona Enes fosse morta” – portanto aí por 1352 – empregara D. Pedro todos os esforços

junto do arcebispo de Braga D. Gonçalo Pereira, que então se encontrava em Roma, para obter

dispensa para casar com D. Inês, trabalhando el-rei de o contrariar quanto pôde, escrevendo

secretamente ao mesmo prelado […].

É notável – e lamentável – que nenhum dos documentos aduzidos por João das Regras nas

Cortes de Coimbra subsista, que todos tenham levado tão total como incrível sumiço... Total, sim,

incrível, talvez não! Nem o teor da carta se ajusta com os sentimentos, por outra parte conhecidos, de

D. Afonso IV, nem está datada, nem D. Pedro precisava de dispensa para casar com D. Inês, pois

estava autorizado a fazê-lo “per hüa geerall despemssaçom”, obtida por seu Pai em 18 de fevereiro

de 1325. Este breve, inserto no documento de 18 de junho de 1360, perfeitamente concorde com a

cópia autêntica da chancelaria pontifícia, anda publicado por António Caetano de Sousa nas suas

Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, e Aires de Sá no seu Frei Gonçalo Velho,

um e outro incrivelmente estropiado e intraduzível. Por ele podia D. Pedro, como aliás sua irmã D.

Maria, mutatis mutandis, casar “cum quacumque Nobili Muliere Ecclesie Romane deuota” [com

qualquer mulher devota da Igreja Romana], ainda que parentes […].

O Prelado de Lisboa consultado, afirma Fernão Lopes, disse ter visto o documento pontifício de

João XXII e que falando sobre o seu valor com vários letrados, respondeu que “bem lhe pareçia

avomdosa (a despenssaçom) pera casarem per ella”.

Seguidamente inventa João das Regras uma embaixada e um documento de que não há rasto

em parte nenhuma, mesmo onde obrigatoriamente o deveria haver, a suplicar várias graças, mas

sobretudo a “legitimaçom do casamento” de D. Pedro, e logo depois a “comfirmaçom” do mesmo ato,

“em guisa que os moços fiquem legítimos”. O orador põe o facto em cena desta guisa:

“Emtom mostrou huũ grãde rrooll de purgaminho husado de velhiçe”, etc. Vejamos que espécie

de pergaminho poderia ser este. […] É estupendo que um rol de pergaminho, que deveria fatalmente

estar cuidadosamente arquivado, pois todos aqueles Prelados, juristas e nobres senhores “forom

todos mui espantados” do seu conteúdo, estivesse, apesar dos naturais cuidados postos na sua

guarda, a cair de velho! A cair de velho?! Supondo, na mais desfavorável das hipóteses, que seja do

primeiro ano do reinado de D. Pedro (1357), estava em 1385 na juventude dos seus 28 anos! Pois

com 28 anos apenas e já “husado de velhiçe!”. […]

E depois que triste sorte esta a dos documentos apresentados nas Cortes por João das Regras!

Documentos de inestimável valor, pois constituíam a prova jurídica esmagadora, na expressa

confissão do orador, de que estava vago o trono! Pois, senhores, enquanto não subsiste hoje um só

desses documentos, nem nos Arquivos Portugueses nem nos Arquivos Romanos – pelo menos

ninguém ainda os desencantou – guardam-se, mas em perfeito estado de conservação, todos os

pergaminhos que atestam a tese contrária e pulverizam a de João das Regras!

Aliás, este documento é pura invenção do Cronista, como passamos a prová-lo. Efetivamente, se

o “grãde rrool de purgaminho” foi enviado a Roma, como o tinha João das Regras em sua mão e o

leu nas Cortes de Coimbra?! Por outro lado, é sabido ser praxe inabalável da Corte romana, que os

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documentos desta natureza, os Rotuli Ambasciatorum Régis Portugalie, de que existem tantos

exemplares transcritos e sumariados nos códices da coleção de Súplicas do Arquivo Secreto do

Vaticano, eram inutilizados pelo escrivão da Cúria, subsistindo hoje apenas raríssimos originais. […]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não resta dúvida de que havia em Portugal uma enorme e fortíssima corrente de opinião pública,

à data das Cortes de Coimbra, de que eram legítimos os filhos de D. Pedro e D. Inês de Castro e de

que lhes pertencia o trono. E não somente em Portugal, pois apenas D. Fernando fechou os olhos,

logo o Rei de Castela se apressou a meter a ferros o Infante D. João, que por lá andava homiziado,

com as mãos e a consciência manchadas de sangue. O próprio Mestre de Avis expressamente o

considerava o único herdeiro de direito, aceitando o encargo de governador e defensor do Reino

somente “ataa que o Iffamte dom Joham fosse solto, pera lho depois emtregar”. Afirma Fernão Lopes

(capítulo 17) que o móbil do assassínio do Conde Andeiro fora “soomente por husar dhuũa homrrosa

façanha, viimgamdo a desomrra de seu irmaão”.

Para rejeitar os Infantes D. João e D. Dinis, não parece que tivesse sido necessário João das

Regras, ou melhor, Fernão Lopes, lançar mão dos expedientes que vimos, que certamente não

honram o jurista nem acreditam o historiador. […]

Bastava que João das Regras mostrasse, como aliás mostrou, que os Infantes tinham pegado

em armas contra a pátria, ao lado dos reis de Castela D. Henrique e D. João e que eram cismáticos,

pois nomeadamente D. João era partidário do antipapa Clemente VII, do qual recebeu muitas e

variadas mercês, como abundantemente o provam os registos das Súplicas e da Chancelaria deste

falso pontífice. Não era preciso, positivamente não era preciso, lançar mão da sofística, nem de jogos

de raciocínio malabárico, nem, muito menos, de aduzir documentos falsos. O sentimento nacional

perante Castela e o verdadeiro e velho sentimento católico do País não toleravam então, como hoje,

como sempre, chefes com as mãos manchadas de sangue fratricida, ou marcados com o ferrete do

cisma! […]

BRÁSIO, António, “As razões de João das Regras nas Cortes de Coimbra”, in Lusitana Sacra, tomo 3, 1958.