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216 ISSN 1809-2616 ANAIS VI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009 HARMONIA NA BOSSA NOVA: UM MAPEAMENTO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA Elton Leandro Machado * [email protected] Francisco Koetz Wildt * Resumo: Esta pesquisa integra o Programa Institucional de Iniciação Científica da Faculdade de Artes do Paraná (PIC UNESPAR/FAP) e tem como objeto de investigação a produção científica em torno do tema harmonia na Bossa Nova. O trabalho, que foi desenvolvido por um acadêmico do curso de Licenciatura em Música da FAP, constitui uma revisão bibliográfica a qual tem como principal objetivo a realização de um mapeamento da produção acadêmica/científica em torno da Bossa Nova. O levantamento bibliográfico direcionou o seu foco para trabalhos que tratassem do aspecto harmônico da linguagem musical bossanovista. Palavras-chave: Música Popular; Harmonia; Bossa Nova. INTRODUÇÃO Considerada um marco no panorama histórico da música brasileira, a Bossa Nova costuma ser apontada como um gênero musical arrojado, responsável pela introdução, na música brasileira, de importantes inovações, sobretudo sob o ponto de vista harmônico. Tais inovações fizeram da Bossa Nova uma música com notável vocação para transpor limites culturais e para se tornar internacional, de modo que, mesmo sendo representativa de uma época, tem se mostrado capaz de sobreviver à passagem do tempo. Gênero musical de notável destaque na história da música brasileira, a Bossa Nova foi um movimento que reuniu em torno de si nomes importantes como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e João Gilberto, entre outros. Também do seio desse movimento emerge o músico que veio a se tornar um dos maiores compositores da história musical do nosso país: Tom Jobim. O movimento Bossa Nova foi representativo de um momento na história do Brasil, não só do ponto de vista musical, como também social e político, tendo coincidido com o final do período Acadêmico do curso de graduação em Licenciatura em Música da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Professor do departamento de música da FAP, responsável pela orientação desta pesquisa.

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216

ISSN 1809-2616

ANAISVI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009

HARMONIA NA BOSSA NOVA: UM MAPEAMENTO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

Elton Leandro Machado∗

[email protected] Koetz Wildt∗

Resumo: Esta pesquisa integra o Programa Institucional de Iniciação Científica da Faculdade de Artes do Paraná (PIC UNESPAR/FAP) e tem como objeto de investigação a produção científica em torno do tema harmonia na Bossa Nova. O trabalho, que foi desenvolvido por um acadêmico do curso de Licenciatura em Música da FAP, constitui uma revisão bibliográfica a qual tem como principal objetivo a realização de um mapeamento da produção acadêmica/científica em torno da Bossa Nova. O levantamento bibliográfico direcionou o seu foco para trabalhos que tratassem do aspecto harmônico da linguagem musical bossanovista. Palavras-chave: Música Popular; Harmonia; Bossa Nova.

INTRODUÇÃO

Considerada um marco no panorama histórico da música brasileira, a Bossa

Nova costuma ser apontada como um gênero musical arrojado, responsável pela

introdução, na música brasileira, de importantes inovações, sobretudo sob o ponto

de vista harmônico. Tais inovações fizeram da Bossa Nova uma música com notável

vocação para transpor limites culturais e para se tornar internacional, de modo que,

mesmo sendo representativa de uma época, tem se mostrado capaz de sobreviver à

passagem do tempo.

Gênero musical de notável destaque na história da música brasileira, a Bossa

Nova foi um movimento que reuniu em torno de si nomes importantes como Roberto

Menescal, Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e João Gilberto, entre outros. Também

do seio desse movimento emerge o músico que veio a se tornar um dos maiores

compositores da história musical do nosso país: Tom Jobim. O movimento Bossa

Nova foi representativo de um momento na história do Brasil, não só do ponto de

vista musical, como também social e político, tendo coincidido com o final do período

Acadêmico do curso de graduação em Licenciatura em Música da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Professor do departamento de música da FAP, responsável pela orientação desta pesquisa.

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da chamada República Nova (1945-1964), “período conhecido como democrático e

marcado pela euforia do pós-guerra”1.

A história da Bossa Nova e das personagens em torno dela tem sido

documentada em seu aspecto histórico e social, em livros como Chega de saudade

(1990), de Ruy Castro2, e Balanço da bossa (1968)3, de Augusto de Campos.

Conforme observado por José Estevam Gava, em A linguagem harmônica da Bossa

Nova, as publicações brasileiras referentes à Bossa Nova têm direcionado o seu

foco mais ao aspecto histórico e social desse movimento, e menos à análise técnico-

musical, de modo que as ditas inovações musicais desse gênero parecem carecer

ainda de abordagens que discutam a natureza de seus procedimentos composicionais.

Sendo a harmonia um dos elementos de maior destaque no que tange à

linguagem da Bossa Nova, cuja sofisticação atraiu e ainda hoje tem atraído a

admiração de músicos de diversas procedências e formações (desde o autodidata

até o músico de formação erudita), é justo que um exame sobre a linguagem

harmônica desta música constitua também um foco de interesse acadêmico. Ainda

que, por tradição, a música popular caracterize-se por processos de aprendizado e

transmissão oral, a produção científica recente tem provado que a cultura popular

também é passível de abordagem acadêmica. No caso da Bossa Nova, uma música

de construção elaborada e complexa e que conta com amplo registro não só

fonográfico como também escrito – sendo neste caso o registro mais comumente

utilizado as melodias cifradas (songbooks) – não se pode deixar de confirmar a

possibilidade da música popular como objeto de análise.

É possível salientar, ainda, que a produção acadêmica dedicada ao estudo de

manifestações musicais da vertente cultural popular é recente se comparada com a

da tradição musical erudita, isto é, a produção voltada ao estudo da música dos

grandes compositores europeus. A pesquisa focada nas tradições musicais

populares tem, no entanto, atraído crescente interesse da comunidade acadêmica

brasileira, possivelmente a partir da implementação de cursos de bacharelado em

música popular em instituições como UNICAMP e FAP. O atual incremento na

produção acadêmica voltada à música popular naturalmente impulsiona o

crescimento qualitativo e quantitativo da produção científica que constituirá a base

de referencial teórico para a realização de estudos subseqüentes, num processo

1 GAVA, José Estevam. A linguagem harmônica da Bossa Nova. Dissertação (Mestrado) – UNESP. São Paulo, 1994. p. 27.2 CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.3 CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras Bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.

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cíclico de desenvolvimento da pesquisa. Para que se defina o tema de uma

pesquisa em música é preciso que se conheça o “terreno” em que se transita, isto é,

faz-se necessário o conhecimento da produção científica precedente, não só para

que se estabeleça o referencial teórico, mas para que se tenha uma noção justa das

lacunas teóricas a serem preenchidas.

Desta premissa é que surge o principal objetivo da presente pesquisa, isto é,

realizar um mapeamento da produção científica voltada aos aspectos técnicos da

linguagem da Bossa Nova, notadamente do elemento harmônico, através de um

levantamento bibliográfico. No contexto específico da Faculdade de Artes do Paraná

(FAP), acentua-se a importância de se realizar tal levantamento da produção ao

considerarmos a já mencionada existência, nesta instituição, de um curso de

bacharelado em música popular. Assim sendo, a presente pesquisa se dá tendo

como ponto de partida a importância de se compreender, num contexto acadêmico

formado por estudantes e professores, dentre os quais muitos voltam seu interesse

ao estudo da música popular, as características da atual produção científica, isto é,

suas conquistas e também suas lacunas.

Esta pesquisa tem como objeto de estudo central, o levantamento

bibliográfico de trabalhos relacionados à Bossa Nova em seu aspecto técnico

musical harmônico, para a realização de uma avaliação da bibliografia disponível,

incluindo-se a produção acadêmica das três universidades locais que contam com

cursos de graduação/pós-graduação em música: Universidade Federal do Paraná

(UFPR), Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e Faculdade de Artes

do Paraná (FAP). Além das bibliotecas destas três universidades, também foram

pesquisados trabalhos na biblioteca do Conservatório de MPB (CMPB), na internet,

e em acervo pessoal, entre o período de setembro de 2007 e agosto de 2008. Num

primeiro momento, este trabalho foi realizado a partir de um levantamento

bibliográfico através de pesquisa virtual e de campo (nas bibliotecas citadas), e de

uma catalogação do material levantado. Em seguida foi feita a leitura, análise e

resumo do material pertinente à pesquisa, juntamente com a redação.

DESENVOLVIMENTO

Durante a busca de material sobre a harmonia da Bossa Nova, confirmou-se

um pouco do que já se esperava: mesmo não sendo inexistente, o material que se

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refere especificamente à matéria é bastante escasso. No entanto, foi surpreendente

a quantidade de trabalhos encontrados que tratam do assunto sem muita

profundidade ou indiretamente. Tais materiais não podiam ser deixados de lado

nesta pesquisa. Diante deste quadro, ao ser traçada a listagem bibliográfica, foram

incluídos trabalhos que podem não dizer respeito direta ou especificamente à Bossa

Nova, mas que tratam de aspectos da harmonia popular e acabam por englobar

também essa relevante vertente musical. O inverso também ocorre em trabalhos

que não tratam exatamente de harmonia, mas que falam da Bossa Nova e suas

características. Na listagem, também foram incluídos livros didáticos de métodos de

instrumentos que em algum momento se cita a harmonia bossanovista. Além disso,

são incluídos trabalhos que contém melodias e letras cifradas, os songbooks, que se

referem ao movimento de alguma maneira.

Após a realização da triagem do material disponível para consulta, foram

selecionados os trabalhos a seguir elencados, por conterem informações sobre a

harmonia na Bossa Nova e por serem condizentes com os critérios supracitados.

Biblioteca da FAP

APPEL, Marcos Geroldo. O Estranhamento na MPB da Bossa Nova a Arnaldo Antunes. Monografia (Especialização). Curitiba: Faculdade de Artes do Paraná, 2003.

CHEDIAK, Almir. Dicionário de Acordes Cifrados. 2. ed. São Paulo: Irmãos Vitale, 1984.

CHEDIAK, Almir. Harmonia & Improvisação. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. 2 v.

CHEDIAK, Almir. Songbook: Bossa Nova. 2. ed. Petrópolis: Lumiar, 1990. 5 v.

CHEDIAK, Almir. Songbook: Tom Jobim. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994. 3 v.

CHEDIAK, Almir. Songbook: Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Lumiar, 1995. 3 v.

FÁVERO, Claudenor. Violão gago: a levada rítmica da bossa nova nos violões de Roberto Menescal e Claudenor Fávero. Monografia (Especialização em Música Popular). Curitiba: Faculdade de Artes do Paraná, 2007.

MELLO, Chico. Muito Além da Bossa Nova. Revista Bravo, v. 3, n. 32, 2001.

GAVA, José Estevam. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo: UNESP, 1994.

GUEST, Ian. Harmonia: Método Prático. Rio de Janeiro: Lumiar, 2000. v. 1 e 2.

Biblioteca do Conservatório de MPB

BRAGA, Luís Otávio. Apostila de Harmonia. Curitiba: Conservatório de MPB. Apostila

CAVENDISH, Jarbas. Harmonia Popular. Apostila

CURIA, Wilson. Harmonia Moderna e Improvisação. São Paulo: Fermata do Brasil, 1990.

220

CURIA, Wilson. Moderno Método para Piano Bossa Nova. São Paulo: Fermata do Brasil, 1998.

GARCIA, Walter. Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

GODOY, Amilton. Princípios de Harmonia Moderna. 4 v. São Paulo, 1985. Apostila

GUEST, Ian. Harmonia. v. 1 e 2. Apostila

IMPROTA, Tomás. Curso de Harmonia Popular. S.l.: H. Sheldon, 1998.

PASCOAL, Maria Lúcia; PASCOAL NETO, Alexandre. Estrutura Tonal: Harmonia. Instituto de Artes – UNICAMP. Apostila

POLLACO, Carlos Alberto Oliva. Método completo de harmonia funcional e escalas para improvisação. Curitiba: Pura Música, 2000. Apostila

RIBEIRO, Vicente. Harmonia Aplicada à Música Popular Brasileira. v. 1 e 2. Apostila

Biblioteca da EMBAP

MILLLÉO, Marcos Daniel Júnior. Bossa Nova (1959-1962). Monografia (Especialização em História da Música). Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 1997.

QUEIROZ, Suzy. O Piano na Bossa Nova. Monografia (Especialização em Estética e Interpretação da Música do Séc. XX). Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2002.

Biblioteca da UFPR

JOBIM, Helena. Antonio Carlos Jobim: um homem iluminado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

POLETTO, Fabio Guilherme. Tom Jobim e a modernidade musical brasileira (1953-1958). Dissertação (Mestrado em História). Curitiba: Universidade Federal do Paraná – UFPR. (arquivo digital: pdf)

SANCHEZ, Jose Luis. Tom Jobim: a simplicidade do gênio. Rio de Janeiro: Record, 1995.

Acervo Pessoal

ADOLFO, Antônio. Harmonia e Estilos para Teclado. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994.

ADOLFO, Antônio. O Livro do Músico. Rio de Janeiro: Lumiar, 1986.

AEBERSOLD, Jamey. Antonio Carlos Jobim. v. 98. New Albany: Jamey Aebersold Jazz, 2000.

AEBERSOLD, Jamey. Bossa Novas. v. 31. New Albany: Aebersold, 1984.

AEBERSOLD, Jamey. Jazz aids, handbook. New Albany: Aebersold, 1982.

FARIA, Nelson. The Brazilian Guitar Book. Petaluma, CA: Sher Music, 1995. (arquivo digital: pdf)

FREITAS, Sergio Paulo Ribeiro de. Repertório e textos de apoio. Apostila utilizada no II Simpósio de Música da Faculdade de Artes do Paraná. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Florianópolis, 2006.

221

FREITAS, Sergio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na música popular. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1995.

GUEST, Ian. Harmonia Intensiva (Curso de Harmonia Funcional). Apostila utilizada no 1º Seminário Brasileiro de Música Instrumental. Ouro Preto, 1986.

LEVINE, Mark. The jazz piano book. Berkeley: Sher Music, 1989.

LEVINE, Mark. The jazz theory book. Petaluma, CA: Sheer Music, 1995.

LYRA, Carlos. Harmonia Prática da Bossa-Nova. São Paulo: Irmãos Vitale, 1999.

MEDEIROS, Flavio Henrique; ALMADA, Carlos. Brazilian Rhythms for Solo Guitar. Pacific, MO: Mel Bay, 1999.

Internet

BITTENCOURT, Alexis da Silveira. A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e João Donato. Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000397325>. Acesso em: 26 ago. 2008.

FREIRE, Ricardo Dourado. O uso de acordes de empréstimo modal (AEM) na música de Tom Jobim. Disponível em: <http://www.anppom.com.br/anais/anais congresso_anppom_2005/sessao16/ricardofreire_heitoroliveira.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2008.

GOULART, Diana. Bossa Nova: uma batida diferente. Disponível em: <http://www.dianagoulart.pro.br/bibliot/bossa.htm>. Acesso em: 26 ago. 2008.

PAULINO, Conrado. A Harmonia da Bossa Nova. Disponível em: <http://www. conradopaulino.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2008.

PAULINO, Conrado. A Harmonia da Bossa Nova II. Disponível em: <http://www. conradopaulino.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2008.

SANTOS, Fabio Saito dos. As Funções da Harmonia e da Melodia na Bossa Nova e no Jazz. Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/iaspm/rio/Anais2004%20(PDF)/Fabio SaitodosSantos.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2008.

SCARABELOT, André Luis. Música Brasileira e Jazz – o outro lado da história. Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/iaspm/rio/Anais2004%20(PDF)/AndreLuisScarabelot.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2008.

* * *

A listagem acima é a relação bibliográfica completa de todo o material

selecionado durante o trabalho. O próximo passo foi a realização de resumos do

material. Devido à grande quantidade de trabalhos que não tratam especificamente

da harmonia na Bossa Nova, foram selecionados para o resumo apenas os mais

significativos neste sentido, utilizando como critério principal de escolha aqueles que

mais se predispunham a apresentar especificamente os assuntos referentes a esta

pesquisa.

A partir da leitura e resumo dos trabalhos selecionados, foram possíveis

algumas considerações, apresentadas a seguir.

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Paulino4 faz uma observação bastante interessante que tenta sintetizar a

prática harmônica bossanovista. O autor aponta quatro recursos básicos para se

obter uma sonoridade característica da Bossa Nova: o uso de tensões; as

substituições harmônicas; a inversão dos acordes; e o encadeamento das vozes

internas dos mesmos. Sendo que “a soma desses recursos é a essência da bossa

nova e do acompanhamento de João Gilberto”.

Em se tratando de harmonia bossanovista não é novidade apontar que os

acordes compostos de três sons, as tríades – tão usadas em gêneros anteriores

como o samba tradicional e o choro – não são tão bem aceitos. Em vez deles,

prefere-se adotar como estrutura acordal básica quatro sons simultâneos, as

tétrades. Medeiros5 ressalta que as tríades são raras e que acordes com sétima são

usados com uma ou mais tensões. Tal estrutura harmônica básica dá margem para

que estas tensões (nona, décima primeira, décima terceira etc.) sejam adicionadas a

estes acordes.

Há, portanto, um uso generalizado de acordes sensivelmente mais alterados do que os empregados na música popular brasileira anterior. Neste aspecto fica bastante nítida a já mencionada influência do jazz e do be-bop6.

No artigo do qual provém esta citação, Goulart afirma ainda que na Bossa

Nova existe um uso recorrente de acordes de empréstimo modal (AEM) e aponta as

cadências [I7M – bVII7M] e [Vm7 – I7M] como características do gênero. Estas duas

progressões têm muito em comum já que, na primeira, o AEM é oriundo do modo

menor natural homônimo, assim como o acorde Vm7 da segunda progressão.

Observa-se que estes dois acordes têm a mesma função de subdominante visto que

são acordes que mantém proximidade por serem acordes relativos um do outro (em

dó maior, por exemplo, o grau bVII7M é Bb7M e seu acorde relativo, o Gm7, é o

próprio Vm7). Outros trabalhos também asseguram a recorrência dos acordes de

empréstimo modal nas harmonias deste gênero. Em alguns, porém, ao invés do

termo “AEM” se faz uso de outros como “alternância entre os modos”.

4 PAULINO, Conrado. A Harmonia da Bossa Nova. Disponível em: <http://www.conradopaulino.com .br>. Acesso em: 26 ago. 2008.PAULINO, Conrado. A Harmonia da Bossa Nova II. Disponível em: <http://www.conradopaulino.com .br>. Acesso em: 26 ago. 2008.5 MEDEIROS, Flavio Henrique; ALMADA, Carlos. Brazilian Rhythms for Solo Guitar. Pacific, MO: Mel Bay, 1999.6 GOULART, Diana. Bossa Nova: uma batida diferente. 2000. Disponível em: <http://www.diana goulart.pro.br/bibliot/bossa.htm>. Acesso em: 26 ago. 2008.

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As substituições harmônicas são citadas por alguns autores, dentre eles

Nelson Faria7, que mostra como progressões harmônicas típicas do gênero são

“variações” do II–V–I. Neste livro o autor apresenta alguns exemplos na tonalidade

de dó maior, em que vemos uma comparação do II-V-I básico com rearmonizações

bossanovistas.

O autor parte de uma harmonização diatônica básica [Dm7 – G7 – Cmaj7],

para uma rearmonização “bossa nova”: 1) [Dm9 – Db9 – C6(9)]; 2) [Dm9 – Abm6 –

Cmaj9/G]; 3) [D9 – Db7(#9) – C6(9)]; 4) [Am6 – Abº(b13) – C6(9)/G]. Nota-se que

em todos os exemplos rearmonizados mantiveram-se as funções subdominante,

dominante e tônica, respectivamente. Tais funções não foram alteradas mesmo nos

exemplos 3 e 4, em que o primeiro acorde da cadência se torna dominante

secundária.

Ainda sobre as substituições harmônicas, Bittencourt8 se refere à progressão

[II – V7] como usada em larga escala nas composições de Johnny Alf (compositor

considerado o grande precursor da Bossa Nova). O autor mostra que o grau II pode

aparecer de formas variadas (IIm7, IIm7(b5), II7) e o V7 tem a importância de

fornecer possibilidades diversas para o uso de tensões. Esta progressão “que pode

ser entendida como um esqueleto ou resumo do sistema tonal” é aproveitada por

Johnny não somente como [II – V7] da tonalidade principal de cada música, mas

também como preparação secundária, ou de modo que vão “simplesmente se

sucedendo, sem que haja necessariamente uma resolução, ou uma lógica e derivam

a partir da coerência com o motivo melódico”. O autor afirma ainda que “não existe

necessariamente um esquema fixo de uma tonalidade” e que “tudo pode acontecer”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme comentado anteriormente pôde-se observar que trabalhos tratando

especificamente de harmonia na Bossa Nova são raros quando comparados com a

produção referente à teoria e harmonia clássica, ou mesmo com outros gêneros

musicais como o Jazz, por exemplo, que já contam com uma produção bastante

volumosa e específica sobre sua harmonia, entre tantos outros aspectos.

7 FARIA, Nelson. The Brazilian Guitar Book. Petaluma, CA: Sher Music, 1995. (arquivo digital: pdf)8 BITTENCOURT, Alexis da Silveira. A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e João Donato. Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000397325>. Acesso em: 26 ago. 2008.

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O quadro de escassez de produção muda, porém, quando começamos a

analisar aqueles materiais que tem algum capítulo ou tópico referente ao assunto. É

interessante notar que existe um número relativamente expressivo de trabalhos que

tratam em algum momento sobre a harmonia na Bossa Nova. Porém, em geral, tais

trabalhos não têm preocupação em apresentar uma analise teórica dos

procedimentos harmônicos e composicionais, fazendo apenas citações do que é

mais recorrente na prática harmônica bossanovista. De maneira geral, observa-se

que a ausência de critérios técnicos em alguns trabalhos gera divergências na

terminologia, bem como na escolha de elementos citados como mais recorrentes ou

típicos da linguagem em questão. A análise e o tipo de abordagem técnica do

fenômeno harmônico são consideravelmente diferentes e próprios de cada autor e,

apesar de alguns aspectos de senso comum, cada um entende a harmonia de

maneira própria e diferenciada dependendo de sua formação e influências.

É normal que haja certo grau de divergência vinda de uma matéria que não

pretende ser uma ciência exata, e não se pode esperar que todos os autores

discutam e teorizem sobre o assunto da mesma maneira. Diferenças podem ocorrer

em qualquer área da teoria musical que busca a sistematização a partir dos

procedimentos práticos. Entretanto, um grau elevado de diferenças neste sentido

denota uma carência do ponto de vista teórico. A partir da realização deste trabalho,

pode se verificar que, com a crescente sistematização e academização de assunto

pertinentes à música popular, estas divergências, principalmente no que diz respeito

à termos técnicos, tendem a ser cada vez menores. Cabe ressaltar que, em se

tratando de música popular, uma sistematização única pode ser ainda mais

complexa devido ao seu grande dinamismo e atualização permanente.

Conclui-se também que a Bossa Nova apresenta especificidades

significativas no campo da harmonia, o que faz com que esta matéria possa vir a ser

um campo fértil de estudo científico. Pois, apesar de ter sido um movimento que –

como todo o gênero musical – recebeu diversas influências, foi uma manifestação

que se mostra possuidora de alto grau de originalidade e características próprias.

Isto faz com que muitos aspectos da linguagem musical bossanovista possam ser de

fato abordados como típicos de um gênero ou estilo. Podemos ver, ou mesmo ouvir,

que determinadas progressões – como o “clichê” [II7(13) - II7(b13) - IIm7 - V7(b9)],

por exemplo – “soam Bossa Nova” devido ao uso recorrente e específico neste

gênero musical. Desse modo, a harmonia seria também um desses aspectos, o

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qual, no ponto de vista deste autor, abre espaço para analises e discussões no

âmbito acadêmico.

Por fim, cabe aqui colocar que alguns procedimentos harmônicos

bossanovistas podem ser compreendidos à luz de outros trabalhos teóricos que não

chegam a tratar especificamente da Bossa Nova. Principalmente em livros sobre

harmonia popular ou mesmo sobre o jazz (Sérgio Freitas9, Ian Guest10 e Mark

Levine11, por exemplo), que tratam de explanar teoricamente os procedimentos

harmônicos comuns na música popular. O estudo de tais livros se mostra

indispensável para quem deseja compreender a prática harmônica bossanovista

visto que, por se tratar do estudo da teoria harmônica tonal na música popular,

mesmo que de forma geral, isto é, independente de fixar-se em um gênero musical

ou outro, podem elucidar muitas questões neste sentido.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Alexis da Silveira. A Guitarra Trio inspirada em Johnny Alf e João Donato. Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000397325>. Acesso em: 26 ago. 2008.

BOSCOLI, Ronaldo. Eles e Eu: memórias de Ronaldo Boscoli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

CABRAL, Sérgio. Nara Leão – Uma Biografia. Rio de Janeiro: Lumiar, 2001.

CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras Bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.

CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CURIA, Wilson. Harmonia Moderna e Improvisação. São Paulo: Fermata do Brasil, 1990.

FARIA, Nelson. The Brazilian Guitar Book. Petaluma, CA: Sher Music, 1995. (arquivo digital: pdf)

FREITAS, Sergio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na música popular. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1995.

GAVA, José Estevam. A linguagem harmônica da Bossa Nova. Dissertação (Mestrado) – UNESP. São Paulo, 1994.

GOULART, Diana. Bossa Nova: uma batida diferente. 2000. Disponível em: <http://www.dianagoulart.pro.br/bibliot/bossa.htm>. Acesso em: 26 ago. 2008.

9 FREITAS, Sergio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na música popular. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1995.10 GUEST, Ian. Harmonia: Método Prático. v. 2. Rio de Janeiro: Lumiar, 2000. 11 LEVINE, Mark. The jazz theory book. Petaluma, CA: Sheer Music, 1995; entre outros.

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GUEST, Ian. Harmonia: Método Prático. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Lumiar, 2000.

LEVINE, Mark. The jazz theory book. Petaluma, CA: Sheer Music, 1995.

LYRA, Carlos. Harmonia Prática da Bossa-Nova. São Paulo: Irmãos Vitale, 1999.

MEDEIROS, Flavio Henrique; ALMADA, Carlos. Brazilian Rhythms for Solo Guitar. Pacific, MO: Mel Bay, 1999.

PAULINO, Conrado. A Harmonia da Bossa Nova II. Disponível em: <http://www. conradopaulino.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2008.

PAULINO, Conrado. A Harmonia da Bossa Nova. Disponível em: <http://www. conradopaulino.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2008.