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Ensaios de Geografia Crítica

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Ensaios de

Geografia Crítica

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José William Vesentini

Ensaios de Geografia Crítica

História, epistemologia e (geo)política

EP Editora Plêiade

São Paulo

2009

Page 4: VESENTINI, J. W. Ensaios de Geografia Crítica

Copyright © 2009, José William Vesentini

Direitos Reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem

autorização expressa do autor e do editor.

Capa: Débora Gomes Déscio.

Revisado pelo autor.

Ficha de Catalogação

Vesentini, José William

V575e Ensaios de geografia crítica: história, epistemologia e

(geo)política / José William Vesentini. - São Paulo: Plêiade, 2009.

220 p.

ISBN: 978-85-7651-111-3

1. Geografia – História 2. Geografia - Filosofia I. Título

CDU 91

(Bibliotecária responsável: Elenice Yamaguishi Madeira – CRB 8/5033)

Conselho Editorial – Plêiade Profa. Dra. Beatriz Lage - USP

Profa. Dra. Lídia Almeida Barros - UNESP Prof. Dr. Erasmo de Almeida Nuzzi - Fund. Cásper Líbero

Prof. Dr. Flávio Calazans - UNESP Prof. Dr. Gustavo Afonso Schmidt de Melo - USP

Prof. Dr. José Henrique Guimarães - USP Prof. Dr. Luís Barco - USP

Prof. Dr. Maurizio Babini - UNESP Prof. Dr. Nelson Papavero - USP

Prof. Dr. Ricardo Baptista Madeira - UniFMU Prof. Dr. Roberto Bazanini - IMES-SC

Editora Plêiade Rua Apacê, 45 - Jabaquara - CEP: 04347-110 - São Paulo/SP

[email protected] - www.editorapleiade.com.br

Fones: (11) 2579-9863 – (11) 2579-9865

2009

Impresso no Brasil

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SUMÁRIO

Apresentação ...........................................................................................7

Uma ciência periférica? Reflexões sobre a história e a

epistemologia da geografia ...................................................................11

Controvérsias geográficas: epistemologia e política .............................53

O que é crítica? Ou qual é a crítica da geografia crítica? ..................101

Geografia crítica no Brasil: uma interpretação depoente ....................127

A questão da natureza na geografia e no seu ensino ...........................158

A atualidade de Kropotkin, geógrafo e anarquista ..............................173

A crise da geopolítica brasileira tradicional:

existe hoje uma “nova geopolítica brasileira”? ...................................197

Golbery do Couto e Silva, o papel das forças armadas

e a defesa do Brasil .............................................................................211

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7

APRESENTAÇÃO

Os escritos aqui reunidos foram elaborados em distintas ocasiões –

alguns em 2001 e outros mais recentemente – e abordam, sob diversos

prismas, a história, a epistemologia e a política da/na geografia, além

da geopolítica brasileira. Alguns são inéditos e outros foram publicados

anteriormente em revistas acadêmicas e/ou eletrônicas, mas, em geral,

foram lidos por poucos em função da fraca tiragem e da escassa

penetração desse tipo de periódico. A ordem em que se encontram foi

uma escolha subjetiva. De fato, cada um deles é autônomo e pode ser

lido independentemente dos demais.

Os dois primeiros textos desta coletânea tratam da história e da

epistemologia da geografia. O primeiro discute o que é cientificidade,

qual é a natureza epistemológica da geografia e em que sentido se pode

afirmar que as ciências humanas, como também a geografia, são

ciências periféricas. Esse ensaio na verdade procura evidenciar como o

projeto epistemológico da geografia, no século XIX – em especial com

Humboldt –, ficou à margem tanto da crescente especialização nas

ciências naturais, que abandonaram o ideal grego de um estudo

integrado da natureza, como também da noção historicista – o homem

como um produto do tempo histórico, e não mais das condições

naturais, que através de revoluções atinge a sua maioridade – que

estruturou as ciências humanas nesse período.

O segundo ensaio versa sobre aqueles que provavelmente foram os três

mais importantes debates ocorridos na história da geografia: a polêmica

sobre o determinismo, deflagrada por autores franceses a partir da

leitura de uma obra de Ratzel; a discussão a respeito do

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excepcionalismo da geografia ou sobre que tipo de ciência ela é,

ocorrido nos Estados Unidos nos anos 1950; por fim, o embate entre

Kropotkin e Mackinder, na Inglaterra vitoriana, sobre o que é ou o que

deveria ser a geografia. Procuramos demonstrar que essas três

polêmicas se entrecruzam e continuam atuais, ou seja, prosseguem

sendo questões epistemológicas e políticas cruciais da ciência

geográfica.

Os escritos quarto e cinco encetam uma discussão sobre o que é crítica,

como esta vem sendo entendida na geografia crítica e quando e como

esta se instalou no Brasil. Isso significa que também eles têm um

caráter histórico e epistemológico, além de sua evidente expressão

política. O quinto ensaio enfoca a questão da natureza na geografia e no

seu ensino. Também é uma contribuição para o que deve ser afinal uma

geografia crítica, ou melhor, sobre como ela deve incorporar a questão

da natureza, embora neste caso circunscrita à atividade educativa.

O sexto texto é um longo comentário sobre a obra do geógrafo e

anarquista Kropotkin, o grande marginalizado nos estudos relativos à

história do pensamento geográfico. Procuramos demonstrar a inegável

atualidade das ideias desse pensador avant-garde do final do século

XIX e inícios do XX. Apesar de a primeira versão desse artigo ter sido

redigida em 1986, como introdução a uma antologia de textos do

intelectual russo, reescrevemos e ampliamos o escrito para incluí-lo

nesta obra, o que significa que em grande parte ele é original.

Finalmente, os dois últimos ensaios desta antologia tratam da

geopolítica brasileira. Um deles discute o significado da escola

geopolítica brasileira e porque ela ingressou numa crise a partir dos

anos 1980. O outro aborda determinadas ideias de Golbery do Couto e

Silva, o mais célebre dessa plêiade de pensadores geopolíticos que

desde a década de 1920 procurou (re)pensar os rumos do Brasil.

Qual seria a unidade deste conjunto de ensaios? Eles representam

tentativas, em diversos assuntos – embora não tão afastados –, de

construir uma geografia crítica a partir do significado moderno e

kantiano desse adjetivo. Crítica que não se confunde meramente com

“falar mal” dos objetos enfocados, entendimento amiúde encontrável

entre alguns geógrafos autoproclamados radicais ou críticos. Por sinal,

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procuramos também mostrar as diferenças, mesmo que relativas, entre

uma atitude crítica e uma radical. Objetivamos construir uma geografia

crítica, antes de mais nada, democrática e pluralista no sentido

epistemológico apontado, por exemplo, por Habermas1. Pluralismo

epistemológico que dialoga com várias correntes do pensamento, que

aproveita elementos de cada uma, embora sempre procurando manter

uma coerência teórica e uma correspondência com os fatos. Pode-se,

ainda, recordar da leitura de Edgar Morin da complexidade

epistemológica2, na qual não se trata mais de ser positivista (embora

tenha algo aqui a ser resgatado), nem dialético (idem), tampouco

apenas fenomenológico, estruturalista ou historicista, mas aceitar a

complexidade do real e a validade, pelo menos parcial, de cada uma

dessas perspectivas em determinados itens ou aspectos.

Incoerência? Pontos de vista contraditórios e irreconciliáveis, como

diriam os dogmáticos? De maneira nenhuma. Até poderia ser um

discurso incoerente se não houvesse uma coesão teórica interna e,

principalmente, uma preocupação em se adequar aos fatos. Sem a

menor intenção de nos igualarmos e estes, cabe lembrar que, conforme

esclareceu Hannah Arendt3, todo grande pensador utiliza ideias

aparentemente contraditórias, fazendo uso, à sua maneira, de autores

clássicos variados e que construíram teorias por vezes tidas como

antinômicas.

Se esta obra suscitar a crítica e o debate estaremos plenamente

satisfeitos. Este é precisamente o seu objetivo: apresentar outros

olhares, outras falas sobre determinados temas onde vem imperando, no

Brasil, nos últimos anos, uma visão unilateral e hegemônica.

Acreditamos no espírito acadêmico e científico, isto é, de livre debate,

de crítica fundamentada, de crescimento a partir do diálogo com os

outros. A construção do conhecimento, inclusive nas ciências, é uma

atividade social alicerçada numa racionalidade comunicativa. Dessa

forma, quod scripsi, scripsi; e urbi et orbi. Que venham agora as

críticas, exceto – como ironizaram dois intelectuais alemães que viviam

1 HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

2 MORIN, E. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005.

3 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1979.

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na Inglaterra vitoriana – aquelas roedoras dos ratos. Que venham enfim

os reclames, as correções, as discordâncias, os adendos, os acréscimos,

a complementação... Não existe um destino melhor para qualquer obra

intelectual do que ter sido útil para o avanço de algum tipo de

conhecimento.

São Paulo, abril de 2009.

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Uma ciência periférica?

Reflexões sobre a história e a epistemologia da geografia

A ciência, as ciências. Se dizemos ‘a ciência’, acabamos

fazendo um discurso completamente abstrato que esquece

a diversidade entre as ciências [...] É ingênua a ideia que o

conhecimento científico é reflexo do real; ele é uma

atividade construída com todos os ingredientes da

atividade humana [...] A ideia de certeza teórica, enquanto

certeza absoluta, deve ser abandonada. Outra conclusão: a

ciência é impura. A ideia de encontrar uma demarcação

nítida e clara da ciência pura, de fazer uma demarcação

entre o científico e o não científico, é errônea. Também

dizemos que não existe uma fronteira nítida entre ciência e

filosofia [...] A ciência deve ser considerada como um

processo recursivo autoecoprodutor. Nada ilustra melhor

essa ideia que a ideia de objetividade: é o produto último

da atividade científica e esse produto se torna a causa

primeira e o fundamento de onde ela vai partir novamente

[...] O desenvolvimento das ciências da terra e da ecologia

revitalizam a geografia, ciência complexa por princípio,

uma vez que abrange a física terrestre, a biosfera e as

implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas

vitoriosas, privada do pensamento organizador [...] a

geografia reencontra suas perspectivas multidimensionais,

complexas e globalizantes. Desenvolve seus pseudópodes

geopolíticos e reassume sua vocação originária. (EDGAR

MORIN).

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Não é fácil definir o que é ciência – ou ciências, no plural. Ela possui

certa unidade e, outrossim, uma grande diversidade. É diferente e, ao

mesmo tempo, tem similaridades e inúmeros pontos de contato com

outras modalidades do conhecimento humano: o senso comum, as

doutrinas religiosas, a filosofia, as expressões artísticas, os mitos, o

folclore e as tradições etc. Existe, praticamente, um consenso entre os

epistemólogos, os historiadores e os filósofos da ciência, sobre haver

uma diferença perceptível – uma ruptura e também, num certo sentido,

uma continuidade – entre a ciência moderna e os saberes clássicos, na

verdade filosóficos, que são vistos como a ciência tradicional. A

ciência moderna nasceu ou começou a ser construída no século XVII. É

certo, ela fez e continua a fazer uso de muitos elementos herdados

daqueles saberes clássicos, tais como certo rigor e espírito sistemático

(encontráveis, por exemplo, num Aristóteles), além da lógica e da

matemática existentes desde a antiguidade. Alguns chegam até mesmo

a afirmar que “a ciência nada mais é que o senso comum refinado e

disciplinado”1.

Provavelmente sim, especialmente nos seus albores, com a ciência

tradicional, e também nas inúmeras teorias e classificações científicas

mais simples existentes até os dias de hoje. Em todo o caso, a ciência

moderna é vista como algo diverso da tradicional, apesar de essa

diversidade ser objeto de polêmicas. A ciência moderna é mais

empírica, dizem alguns; ou tem como base a indução, afirmam outros;

ou é plena de experimentações, de testes que confirmam ou desmentem

hipóteses, com um permanente confronto das teorias com os fatos ou

com a realidade. Estabelecer essa diferença entre a ciência moderna e a

tradicional passa pelo entendimento do que é científico, do que é

cientificidade, enfim pela definição de ciência moderna.

Alguns – poderíamos dizer, os positivistas lato sensu (categoria na qual

se pode incluir boa parte dos marxistas) – argumentam que o que

caracteriza a ciência moderna é o método científico2. Sabemos que essa

1 G. Myrdal apud ALVES, R. Filosofia da Ciência. São Paulo, Loyola, 2000.

2 “Dentre as ideias maiores da filosofia positivista [encontra-se] a fé na unidade fundamental

do método da ciência. Na sua forma mais geral, trata-se da certeza de que os modos de aquisição de um saber válido são fundamentalmente os mesmos em todos os campos da

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ênfase no método, o método da ciência, começou com René Descartes.

Esse filósofo e matemático do século XVII procurou teorizar, à sua

maneira, os procedimentos de Galileu Galilei, tido como o primeiro

cientista na acepção moderna do termo e, provavelmente, o introdutor

do empirismo e da experimentação na pesquisa científica3. Para

Descartes, o método consistia numa série de regras simples – a dúvida,

a decomposição em partes menores (análise), a hierarquia do simples

até o complexo e a sistematização4. Simples e ao mesmo tempo

inovadoras para a sua época porque tinham como pressuposto a razão

humana – amplamente escorada na lógica e na matemática – e não a

escolástica, a interpretação dos textos sagrados e inquestionáveis. É

evidente que esse método preconizado por Descartes nunca cobriu

plenamente – hoje menos ainda – os requisitos mínimos para se definir

a cientificidade de algum saber. Sequer entre aqueles que continuam

apregoando o “método científico” como a essência da ciência moderna

existe um mínimo consenso sobre o que exatamente seria esse suposto

método unitário. Um desses adeptos desse soi-disant método científico

como definidor da cientificidade afirma o seguinte:

Nem todos concordam com o que seja método científico. E

nem todos acreditam que ele possa estender seu braço

além do seu berço, a ciência da natureza. Seu pai, Galileu,

não se conforma com a observação pura e tampouco com a

conjectura arbitrária. Galileu propõe hipóteses e as

submete à prova experimental. Galileu engendra o método

científico moderno, mas não enuncia seus passos e nem

faz sua propaganda [...] A partir de Galileu introduziram-

se várias modificações no método científico. Uma delas é

o controle estatístico dos dados [...] Uma investigação

procede de acordo com o método científico se cumpre as

seguintes etapas: (1) Descobrimento do problema ou

experiência, como são igualmente idênticas as principais etapas da elaboração da experiência através da reflexão teórica.” (KOLAKOWSKI, L. La filosofia positivista. Madrid, Catedra, 1966). 3 Cf. DESANTI, J. T. Galileu e a nova concepção de natureza, in CHÂTELET, F. História da

Filosofia, volume 3. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, pp. 61-112; e BEYSSADE, J. M. Descartes, in Idem, p. 81-114. 4 Cf. DESCARTES. Discurso do método. In: Os Pensadores – Descartes. São Paulo, Abril

Cultural, 1979, p. 29-71.

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lacuna num conjunto de conhecimentos. (2) Colocação

precisa do problema. (3) Procura de conhecimentos ou

instrumentos relevantes ao problema. (4) Tentativa de

solução do problema com auxílio dos meios identificados.

(5) Invenção de novas ideias. (6) Obtenção de uma

solução. (7) Investigação das consequências da solução

obtida. (8) Prova (comprovação) da solução. (9) Correção

das hipóteses5.

Percebe-se nessa fala de um epistemólogo reconhecido

internacionalmente que não existe, entre os especialistas, uma

concordância sobre no que exatamente consiste esse método e

tampouco se ele pode ser aplicado às ciências que não estudam a

natureza, isto é, as ciências sociais e as formais. Na verdade essas nove

etapas do “método científico” mencionadas pelo autor são de sua lavra,

como ele faz questão de afirmar inclusive como contraponto a uma

série de teóricos da ciência6. Por sinal, algumas páginas após ter

explicitado suas etapas do método científico, Bunge ameniza um pouco

a sua crença num método unitário e afirma: “O nome é ambíguo [...] a

expressão método científico é enganosa, pois pode induzir a crer que

consiste num conjunto de receitas exaustivas e infalíveis que qualquer

um pode manejar para inventar ideias e pô-las à prova [...] O que existe

é uma estratégia de investigação científica. Há também um sem

número de táticas ou métodos especiais característicos das diversas

ciências e tecnologias particulares. Nenhuma dessas táticas é infalível

[...] A pessoa de talento cria novos métodos e não o contrário”7.

Como se vê, um quiproquó. O recurso ao vocabulário militar (estratégia

e táticas) para tentar superar ou aperfeiçoar a ideia de um “método

científico” mais cria confusão do que esclarece e fica a impressão de

que o autor oscila entre a crença num método unificado e a aceitação da

pluralidade de métodos, inclusive com a valorização das

individualidades (do insight ou intuição deste ou daquele cientista etc.).

5 BUNGE, M. Epistemologia. São Paulo, Edusp, 1987.

6 Idem, p. 32-5.

7 Idem, p. 34, grifos do autor.

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Lendo outros especialistas na temática fica ainda mais evidente o

desentendimento sobre esse hipotético método unitário. Um

epistemólogo egrégio propõe que na verdade esse método seja o de

“conjecturas e refutações”. Em suas palavras:

Quando deve ser considerada científica uma teoria? A

resposta comumente aceita é que a ciência se distingue da

pseudociência pelo seu método empírico, que é

essencialmente indutivo, ou seja, parte da observação ou

da experimentação [...] Na realidade, a crença de que

podemos começar com observações puras, sem nada que

se pareça com uma teoria, é absurda. A observação sempre

é seletiva. Necessita um objeto elegido, uma tarefa

definida, um interesse, um ponto de vista ou um problema

[...] O problema ‘O que vem primeiro, a hipótese ou a

observação?’, é solúvel como o problema ‘Quem vem

primeiro, o ovo ou a galinha?’. A resposta à última

interrogação é ‘Um tipo primitivo de ovo’, e a resposta ao

primeiro é ‘Um tipo primitivo de hipótese’ [...] A ciência,

assim, deve começar com mitos e com a crítica de mitos;

não com o resultado de observações nem com a invenção

de experimentos, mas, sim, com a discussão crítica de

mitos e de técnicas e práticas mágicas [...] É possível

resumir tudo o que foi dito afirmando que o critério para

estabelecer o status científico de uma teoria é a sua

refutabilidade ou sua testabilidade. O que temos proposto,

então, é que não existe um procedimento mais racional do

que o método do ensaio e erro, de conjecturas e refutações:

de propor teorias intrepidamente; de fazer todo o possível

para provar que estão erradas; e de aceitá-las

provisoriamente, se nossos esforços críticos fracassam8.

Temos aí uma concepção de método científico bem diferente do

entendimento comum, que enxerga principalmente o empirismo, com a

indução e a experimentação. Esse entendimento comum, por sinal, é

coerente com o nascimento da ciência moderna com Galileu – e, por

8 POPPER, K. El desarrollo del conocimiento científico. Buenos Aires, Paidos, 1967, p. 59-65.

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outro lado, a indução e a experimentação continuam procedimentos

válidos e utilizáveis em vários tipos de pesquisa científica. Mas a

epistemologia de Popper tem como principal alicerce as teorias da

relatividade de Einstein, na qual, ao invés da experimentação e da

indução, como em Galileu, existe uma sofisticada dedução. (Einstein

falava numa “experimentação imaginária”, na qual ele literalmente

fantasiava eventos tais como o de uma pessoa dentro de um elevador

quebrado em aceleração para o chão, que não sentia o peso do seu

corpo, procurando com isso evidenciar uma insuficiência na explicação

newtoniana da força da gravidade “puxando” o elevador e a pessoa para

baixo). Uma dedução “pura” no sentido de encontrar falhas ou lacunas

nas explicações anteriores – neste caso, na física newtoniana – e

procurar, com o uso da razão, estabelecer outras, que necessariamente

teriam de ser testadas pela observação posterior. Se não fossem

submetidas a testes, a experimentos para verificar a validade de suas

proposições, pouca diferença teriam da ciência tradicional e

especulativa. Como se sabe, os astrônomos após a Primeira Guerra

Mundial procuraram fotografar eclipses do Sol para verificarem se

existiria um efeito previsto por Einstein, uma curvatura no espaço ao

redor desse astro que faria a luz das estrelas se afastarem ou sofrerem

certo dobramento. É lógico que nem toda teoria científica vai atender a

esse requisito – isto é, hipóteses ou teorias construídas para sanar

lacunas nas ideias científicas dominantes, que devem ser testáveis ou

verificáveis pela observação ou experimentação posterior –, inclusive

porque os objetos são completamente diferentes. Em todo o caso, trata-

se de uma concepção de ciência (de Popper, inspirada em Einstein) que

valoriza mais a dedução e notadamente processo de uma crítica

permanente, com as conjecturas (ensaios) e as refutações (erros).

Continuando com a nossa seleção de opiniões sobre o “método

científico”, por meio da qual se procura evidenciar que na verdade ele é

um mito – não no sentido de não haver qualquer método científico

(existem vários) e, sim, pela inexistência de um método único –,

apresentamos, agora, o posicionamento de um assumido “anarquista

metodológico”, um influente físico que dialoga com os teóricos da

ciência. Segundo o seu ponto de vista:

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A ideia de que a ciência pode e deve ser elaborada com

obediência a regras fixas e universais é quimérica e

perniciosa [...] Torna a ciência menos plástica e mais

dogmática [...] Os cientistas não resolvem problemas por

possuírem uma varinha de condão – a metodologia ou uma

teoria da racionalidade – mas porque estudaram o

problema por longo tempo e conhecem bem a situação,

porque não são tolos (embora caiba duvidar disso hoje em

dia, quando quase qualquer pessoa pode tornar-se um

cientista) e porque os excessos de uma escola científica

são quase sempre contrabalançados pelos excessos de

alguma outra escola. Além disso, os cientistas só

raramente resolvem os problemas; eles cometem erros

numerosos e oferecem, frequentemente, soluções

impraticáveis [...] Se desejamos compreender a natureza,

devemos recorrer a todas as ideias, todos os métodos e

não apenas a um número reduzido deles. A asserção de

que não há conhecimento fora da ciência moderna nada

mais é que outro conto de fadas. As tribos primitivas

faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas

que as da zoologia e da botânica de nosso tempo;

conheciam remédios cuja eficácia espanta os médicos (e a

indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte de

lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros

do grupo que a ciência por longo tempo considerou

inexistentes; resolviam difíceis problemas por meios ainda

não perfeitamente entendidos (construção de pirâmides,

viagem dos polinésios)9.

Enfim, uma posição pluralista ou “pós-moderna”, na qual não existe

um método unitário e, sim, um grande número deles, que às vezes

podem até ser opostos ou alternativos, mas que funcionam (ou não)

neste ou naquele caso, na resolução (sempre provisória) deste ou

daquele problema, na constituição de teorias que parecem se ajustar aos

fatos ou pelo menos a uma série deles. Métodos nos quais pode-se

9 FEYRABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. Os grifos são do

autor.

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incluir a aceitação (total ou parcial, dependendo do caso) de saberes

tradicionais, do senso comum, da indução e contra-indução, da dedução

e de “experimentos imaginários”, do ensaio e erro, de regras

provisórias e de sua violação como condição para um novo avanço, da

filosofia e das artes (por exemplo, literatura, poesia, música), da

intuição e da criatividade. Como diz o autor, “A ciência é um

empreendimento essencialmente anárquico [...] O único princípio que

não inibe o progresso é: vale tudo”10

. Um ponto de vista que, mesmo

sem negar a importância da ciência moderna, relativiza o seu status

como o “conhecimento mais nobre ou racional”, ou como o “único

saber que deve ser ensinado nas escolas”.

Não é, portanto, o método que define a ciência moderna. Sequer existe

um método científico unitário, como também, conforme reafirmou mais

um especialista na filosofia da ciência11

, no fundo não existe “a”

ciência no singular – a não ser enquanto um conjunto de conhecimentos

objetivos e racionais diferenciados que buscam compreender o mundo

ou a realidade. De fato, existem ciências, no plural, com métodos

variados, que estudam objetos (que, por sinal, não são fixos e

invariáveis; eles variam no tempo, são entendidos de diversas maneiras

e muitas vezes deixam de existir ou se transformam completamente)

relativamente distintos, embora frequentemente sobrepostos, ou

ocupam-se de “regiões do saber” tidas como diferentes.

O que define, então, a ciência e a cientificidade?

O conhecimento científico é objetivo e racional. Esta é uma afirmação

axiomática, embora as ideias de racionalidade e de objetividade – como

quaisquer outras – sejam passíveis de discussões12

. Como afirma com

pertinência Popper, a tarefa das ciências é encontrar explicações

causais e satisfatórias para qualquer coisa que tenha algum interesse13

.

É evidente que causalidade não deve ser entendida como algo mecânico

10

Idem, grifos do autor. 11

Cf. GRANGER, G.G. A ciência e as ciências. São Paulo, Editora da Unesp, 1994. 12

Cf. CASTORIADIS, C. Reflexões sobre desenvolvimento e racionalidade. In: As encruzilhadas do labirinto/2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; e POPPER, K. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1999. 13

POPPER, K. Conhecimento objetivo. Op. Cit., p. 182, grifo do autor.

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e unilateral, na forma de um raciocínio simplista do tipo “causa é causa

e consequência é consequência”. Na verdade, a causa, ou na maioria

das vezes as causas – que consistem amiúde num número

indeterminado de fatores –, pode ser algo probabilístico e não um

fenômeno específico e totalmente delimitado; e a(s) consequência(s)

pode(m) virar causa(s) e vice-versa14

.

Ipso facto, é pura fantasia desprovida de qualquer conteúdo a crença na

existência de uma “lógica dialética” que teria superado o pensamento

racional alicerçado na lógica formal e na causalidade. Como afirmou

Edgar Morin, a palavra dialética tornou-se apenas uma panacéia

utilizada para não enfrentar ou obnubilar as dificuldades teóricas e

práticas15

. Outrossim, o mais famoso antropólogo do século XX já

tinha arrasado a pretensão de um filósofo (Sartre) de teorizar uma

“razão dialética” apartada e superior à “razão analítica”, ao demonstrar

com inúmeros exemplos que esse mesmo filósofo – como também

Marx e Hegel (pelo menos nos trechos onde este não é propositalmente

obscuro e especulativo) –, para explicar suas ideias, tinha

constantemente feito uso da classificação, da distinção, da oposição e

da definição, considerados – dentre outros – atributos da “superada”

lógica formal16

.

Mas explicações causais e satisfatórias, objetivas e racionais, não

significam definitivas. Não existem – e provavelmente nunca vão

existir – explicações finais, isto é, definitivas. As explicações

científicas sempre são aproximações que explicam melhor, mas nunca

integralmente ou exatamente, um aspecto da realidade. O essencialismo

– isto é, a crença numa “essência” dos fenômenos, que seria captada

por alguma teoria – é uma doutrina filosófica (de Platão, Hegel, Marx e

outros) e não científica17

. Só que não é possível separar com exatidão,

demarcando fronteiras rígidas, os conhecimentos científicos dos

filosóficos, daqueles do senso comum, dos saberes de povos

14

Cf. MORIN, E. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005. 15

MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003, p. 190. 16

Cf. LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1976, capítulo 9. 17

POPPER, K. Conhecimento Objetivo, Op.Cit.

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tradicionais e de alguns aspectos das artes. Mesmo sendo relativamente

diferentes, todos esses conhecimentos ou saberes se imiscuem, se

influenciam mutuamente, são enfim parcialmente imbricados. Contudo,

isso não significa que a tarefa de definir o que é – e o que não é –

científico seja inútil18

. Como também não significa que procurar

entender algo sem nunca encontrar uma explicação definitiva seja

estéril. Se o fosse, seria perda de tempo fazer ciência ou mesmo dar

qualquer explicação racional, pois esta sempre é contextualizada e

provisória, ao contrário dos dogmas que se apresentam como absolutos

e eternos. As explicações racionais e, em particular, as científicas são

extremamente úteis e amiúde eficazes, gerando resultados práticos, seja

pela sua aplicação (tecnologia ou ação mais eficiente sobre algo), seja

pelo convencimento, pela sua aceitação como verdade provisória, o que

é importante para as regras da sociedade.

Como sistematizou um filósofo da ciência, esta é, em primeiro lugar,

uma visão de uma realidade; é a busca de uma verdade (relativa), ou

seja, um empreendimento que procura descrever e explicar algo que

supostamente existe, que faz parte de um meta-conceito chamado

realidade; e também, assinala, é um conhecimento que constantemente

busca uma validação, isto é, um confronto permanente da teoria com os

fatos19

.

Outro autor, num manual onde procura explicitar os cânones de uma

pesquisa científica, assinala que a ciência tem quatro requisitos: (1) é

um estudo sobre um objeto reconhecível e definido como tal pelos

outros; (2) é um estudo que diz algo novo sobre o objeto, algo que

ainda não foi dito ou uma nova perspectiva para o seu entendimento;

(3) o trabalho deve ser útil aos demais pesquisadores ou cientistas da

área; (4) deve fornecer elementos para a verificação ou comprovação

das hipóteses apresentadas, o que significa que ele pode ser continuado

18

Neste ponto discordamos de MORIN, E. Ciência com consciência, op.cit., que sugere ser danosa a tentativa de separar, mesmo de forma relativa, a ciência da não ciência. Essa é a principal crítica que ele faz a Popper, autor constantemente mencionado em seus trabalhos. Se isso fosse verdade, nem teria sentido Morin escrever – como de fato escreveu – centenas de páginas explicando o que é ciência, em que períodos ela atravessou “revoluções”, quais são suas relações com a democracia, com a tecnologia etc. 19

GASTON-GRANGER, G. Op.Cit.

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Ensaios de geografia crítica

21

de alguma maneira – refutado total ou parcialmente, prosseguido com

novas contribuições etc.20

.

Em resumo, as ciências consistem num conjunto extremamente

heterogêneo. Elas não são iguais, sequer semelhantes em que pese o

fato de que, por princípio, todas buscam compreender racionalmente

algum aspecto do real, do mundo, de tudo o que existe afinal. Mas a

própria realidade é diversificada, heterogênea, multifacetada, passível

de ser perscrutada neste ou naquele aspecto com princípios ou lógicas

distintos. Basta atentarmos para a coexistência do determinismo com o

indeterminismo, do acaso com a necessidade, da ordem com o caos.

Podemos até especular se a unidade que conferimos ao real não é

apenas uma crença, um produto de nossas mentes. É lógico que não se

está advogando algum tipo de idealismo que denega a existência de

uma realidade exterior. Mas nada garante que esse real – ou realidades

– seja algo unívoco. Acreditamos que o construtivismo

epistemológico21

representa uma ultrapassagem da antiga querela entre

os realistas ou materialistas e os idealistas. Nem o mundo é produto de

nossas mentes e nem é uma realidade externa que se impõe a nós, como

se fosse algo que apenas observássemos de fora, num sobrevôo. Num

certo sentido, são as duas coisas concomitantemente, ou melhor, uma

síntese das duas. Na verdade, o mundo ou o real – que só apreendemos

pelas nossas teorias, nossas imagens, nosso conhecimento enfim – é

construído pelo intelecto humano, embora não no sentido de ser uma

fantasia, de não existir fora deste, mas, sim, pelo fato de só dispormos

de aproximações e nunca verdades exatas ou uma correspondência

perfeita entre as coisas e as nossas representações. Sei que muitos

argumentam que os cometas – ou o relevo de uma área, ou os gases na

atmosfera, ou outro fenômeno qualquer – existem objetivamente. Mas

são as nossas teorias que constituem a ciência, o conhecimento

científico, e não os pretensos “fatos” ou “coisas” que povoam o mundo

externo. Ademais, inúmeros aspectos da realidade ou do mundo são

objetos inventados por nós, pela sociedade, pelos pesquisadores, pelos

20

ECO. U. Como se faz uma tese. São Paulo, Perspectiva, 2000, 15ª reimpressão. 21

Cf. HABERMAS, J. A ética da discussão e questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

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José William Vesentini

22

vencedores de determinados embates (políticos ou intelectuais) etc. Por

exemplo: os juízos de justo ou de verdadeiro, de certo ou de errado; as

leis e as normas sociais; os fatos históricos (que na verdade são

selecionados e reinterpretados pelos investigadores e nunca algo cuja

objetividade e importância está além de qualquer discussão); as regiões

geográficas (idem); as instituições sociais; os números e os teoremas

matemáticos; as regras lógicas e por aí afora. Avaliando pelas teorias

científicas, que afinal de contas constituem em média a melhor

perscrutação que a humanidade dispõe para a explicação desse mundo

objetivo, dessa realidade, é forçoso constatar que muitas vezes elas são

contraditórias, não formando uma totalidade coerente e articulada.

Mesmo assim elas são operacionais ou eficazes, e dão conta, cada uma

à sua maneira, pelo menos durante algum tempo, do entendimento e até

da ação sobre os fenômenos aos quais se referem.

As ciências não vivem apenas no mundo das teorias. Elas se enraízam

na sociedade, da qual dependem e são parte integrante. De forma mais

específica, elas se materializam nas universidades e nos institutos de

pesquisas e de fomento à atividade científica – e, eventualmente, nos

setores governamentais ligados à defesa e ao militarismo.

Indubitavelmente, existe nesse mundo social e acadêmico uma clara

hierarquia com ciências “mais nobres”, ou supervalorizadas, ocupando

o topo de uma pirâmide, e as “plebéias” ou depreciadas, que ficam na

base dessa figura geométrica. Fazendo uma analogia com os Estados

nacionais, existem ciências centrais e periféricas, desenvolvidas e

subdesenvolvidas. Poucas delas servem de modelo para o que se

denomina cientificidade – a física, em primeiro lugar, seguida pela

astronomia, química e biologia; a matemática é tida como uma

linguagem da ciência. São as “ciências desenvolvidas” ou as

“verdadeiras ciências” no entendimento da parcela majoritária dos

epistemólogos. Em contrapartida, um número bem maior de disciplinas

– psicanálise, pedagogia, história, ciência do direito, ciências da

comunicação, criminologia, entre outras, além da geografia e mais

ainda da geopolítica – são taxadas de subdesenvolvidas ou periféricas

(isso na melhor das hipóteses), de embriões de ciência ou até, algumas

vezes, catalogadas como não ciências ou pseudociências.

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Ensaios de geografia crítica

23

Exemplos dessa atitude são incontáveis. Aquele que provavelmente foi

o mais célebre epistemólogo do século XX, após definir cientificidade,

proclamou de forma taxativa que tanto a psicanálise como todas as

formas de saber das ciências humanas (sociologia, economia,

história...) que utilizam o materialismo histórico carecem desse

atributo, ou seja, não são científicas22

. Um especialista em filosofia da

ciência assinalou que “É bastante claro, realmente, que os saberes

sociológicos ou psicológicos, econômicos ou linguísticos, não podem

pretender, em seu estado presente e passado, ter a solidez e a

fecundidade dos saberes físico-químicos, ou até biológicos.” Logo em

seguida ele se pergunta: “Em que sentido, porém, é lícito atribuir-lhes o

nome de ciências?” 23

. Inclusive o autor de quem extraímos alguns

trechos como epígrafe deste ensaio admite que, quando fala em ciência,

se refere principalmente à física:

Privilegiei a física porque é evidente que ela é uma ciência

canônica, a primeira das ciências; ela que se considerou

uma ciência completa, que tratou ao mesmo tempo do real

e do universo, que executou um movimento extraordinário

porque, quando achava ter atingido a perfeição,

bruscamente perdeu seus fundamentos [...] Portanto, a

física é interessante porque põe no estado mais puro, mais

exemplar, todos os problemas da cientificidade24

.

Até mesmo um ferrenho defensor da cientificidade nas ciências

humanas – embora sempre enfatizando que elas, pela peculiaridade de

seus objetos, não podem almejar o mesmo grau de objetividade e

sistematização das ciências da natureza – acredita piamente que nada

mais são do que “ciências novas”25

. Um sociólogo francês de prestígio

assinalou que as disciplinas acadêmicas formam uma pirâmide do

ponto de vista do seu prestígio e status; segundo ele, a geografia ocupa

na hierarquia acadêmica uma posição bem abaixo da ocupada pela

22

POPPER, K. El desarrollo del conocimiento científico. Op. Cit. 23

GASTON-GRANGER, G. Op. Cit. 24

MORIN, E. Ciência com Consciência, p. 71. 25

JUPIASSU, H. Introdução às ciências humanas. São Paulo, CNPq/Letras & Letras, 1994.

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24

economia26

. E aquela que é de longe a mais conceituada premiação do

avanço científico no mundo, o prêmio Nobel, seleciona somente as

conquistas realizadas pela física, química e fisiologia ou medicina;

esses é que são os prêmios cobiçados e de maiores prestígios – o “hall

da fama”, como se diz. Os demais prêmios chamados de Nobel – da

paz, de literatura e de economia – são considerados secundários, com

menor prestígio e, no caso da economia, surgiram depois e à margem

da Fundação Nobel da Suécia.

Não é a premiação o que nos interessa. Tampouco o status social das

ciências ou mesmo das disciplinas acadêmicas. (Duas coisas distintas:

nem toda disciplina acadêmica é uma ciência; mas este não é um

assunto que valha a pena abordar aqui e agora). Afinal, qualquer

concessão de prêmios ou láureas, por melhor que seja o processo de

escolha, sempre é subjetiva e discriminante. E o status social de uma

ciência, de uma tecnologia ou mesmo de uma profissão depende

fundamentalmente do seu maior ou menor sucesso financeiro – e

também, de forma complementar, do seu poder no sentido de mando ou

tomada de decisões sobre a vida das pessoas ou sobre os recursos

econômicos –, o que pouco tem a ver com reais conquistas científicas.

O que importa aqui é discorrer sobre a periferização da geografia, uma

ciência que, nos albores da revolução científica, foi um saber de

vanguarda, ocupando junto com a astronomia e a física (bem mais que

a química, bem mais que a biologia) uma posição central no conjunto

das ciências. Prosseguindo com o nosso paralelo com o

desenvolvimento desigual das nações, não é absurdo afirmar que a

geografia, neste aspecto, tem semelhanças, digamos, com Portugal27

.

Esse pequeno país ibérico estava na vanguarda da expansão marítimo-

comercial européia do século XV – poderíamos mesmo dizer,

respaldados no historiador Paul Kennedy, que era uma grande potência

26

BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998. 27

Esta comparação é aleatória e tão somente metafórica. Ela não deve ser levada a sério em demasia. Poderíamos tomar outros exemplos de países que conheceram um declínio relativo no sistema internacional, mas o caso de Portugal nos parece interessante pelo seu intenso brilho no início da expansão marítimo-comercial européia que resultou na criação de um mundo unificado. Também a geografia conheceu o seu maior brilho, pelo menos até o momento, no período de nascimento da ciência moderna.

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Ensaios de geografia crítica

25

mundial28

– e que, nos séculos seguintes acabou se transformando num

Estado periférico ou atrasado. A geografia também esteve na vanguarda

das ciências. Nos séculos XVI e XVII – período da revolução

científica, moderna com Copérnico, Bruno, Kepler, Bacon e

principalmente Galileu –, a geografia integrava as matemáticas e

desempenhou um importante papel na constituição de um novo mundo

(com os descobrimentos, uma nova visão da superfície terrestre e uma

nova cartografia) e na formação da chamada Scienza Nuova29

. Dois

estudiosos da história do pensamento geográfico assinalaram que:

A geografia teve um papel destacado na revolução

científica do século XVII, que assentou as bases da ciência

moderna. Alguns dos problemas importantes da época

tinham que ver com a estrutura, forma e magnitude da

Terra. Os tratados sobre a esfera terrestre se viram

afetados pela discussão e triunfo da concepção

copernicana, que exigiu a elaboração de uma nova

geografia que levasse em conta os movimentos da Terra e

seus efeitos nos diversos lugares do globo. As travessias

por grandes oceanos haviam colocado novos problemas

para a navegação [...]30

.

O que ocorreu? Primeiro, temos que lembrar que é equivocada aquela

imagem de um Estado (ou um saber) como eternamente desenvolvido

ou, então, periférico – isto é, ele sempre o foi e sempre o será. A

história, de uma forma geral – tanto a política, a econômica, a militar

ou mesmo a cultural e a da tecnologia (nas quais se inclui, como um

capítulo especial, a história das ciências) –, é plena de reviravoltas e

surpresas. Tudo sofre mudanças, tudo se transforma, mesmo que, às

vezes, uma determinada situação perdure por séculos. Os Estados, por

exemplo, podem deixar de existir; ou novos deles, inclusive com traços

completamente diferentes, podem surgir. Não é incomum que eles

ganhem ou percam terras, parcelas do seu território. Isso também

ocorre com as ciências ou os saberes no sentido amplo do termo. A

28

KENNEDY, P. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989. 29

KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. São Paulo, Edusp, 1979. 30

CAPEL, H. e URTEAGA, L. Las nuovas geografias. Barcelona, Salvat, 1988.

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geografia perdeu grande parte do seu antigo território, ou melhor, do

seu campo de estudos. Boa parcela dos conteúdos – ou objetos – atuais

da astronomia, da geologia, da geofísica, da antropologia, da economia

e até da botânica, faziam parte das ciências geográficas durante séculos,

mais de dois mil anos, desde a Grécia antiga (quando surgiu a palavra

geografia, que sistematizou um ramo do saber, com Erastóstenes no

século III a.C.) até por volta do século XVIII. Esse processo, na

verdade, continua a ocorrer: como mostrou Bordieu31

, a partir do

momento – iniciado nos anos 1930 – em que o planejamento regional

se tornou importante, gerando um enorme volume de recursos

financeiros, além de prestígio político e social, os economistas

passaram a se apropriar do objeto “região”, que antes era exclusivo da

geografia. (A tradição geográfica no estudo das regiões vem no mínimo

desde Estrabão, que viveu provavelmente no século I a.C. e criou a

expressão “geografia regional”). Mais recentemente, a nova e

promissora área das ciências geográficas, os Sistemas de Informações

Geográficas (os SIGs ou GIS, Geographic Information System), passou

a ser quase que totalmente controlada por engenheiros e físicos. Se

servir de consolo, pode-se lembrar que tal fato não ocorreu nem ocorre

apenas com a geografia. É algo relativamente comum com o avançar do

conhecimento, o qual, afinal de contas, não é um processo evolutivo e

linear, tal como a (falsa) imagem popular de uma escada com os

degraus que vão subindo por etapas, mas, sim, processos, no plural,

onde há rearranjos, recomposições, parecendo mais um caleidoscópio

do que um filme32

.

As ciências não constituem, como pretendia Comte com o seu

positivismo clássico, estudos separáveis por fronteiras tangíveis, tendo

cada uma o seu “objeto de estudos” bem delimitado33

. Mesmo com a

ocorrência de uma crescente especialização a partir do século XVII – e

mais ainda no século XIX –, as ciências continuam a ser imbricadas,

31

BORDIEU, P. Op. cit. 32

Cf. as brilhantes análises de FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense/universitária, 1986; e também a interpretação do historiador Paul VAYNE. Foucault revoluciona a História. Brasília, Editora da UNB, 1982. 33

Cf. VERDENAL, R. A filosofia positivista de Augusto Comte. In: CHÂTELET, História da Filosofia, volume 5, p. 212-46.

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Ensaios de geografia crítica

27

continuam pelo menos em parte a estudar os mesmos objetos sob

diversas perspectivas, com frequentes “invasões” do terreno da outra (o

que gera inegáveis avanços, para horror dos positivistas) e, muitas

vezes, até “roubando” parcelas deste. A filosofia, por exemplo, apesar

de hoje não se considerar nem ser considerada pela comunidade

acadêmica como uma ciência34

, já foi tida como a “grande ciência”, a

“ciência mais nobre de todas” nas palavras de Platão. Isso antes do

advento da ciência moderna, que afirmou a necessidade de confrontar

as teorias com os fatos e engendrou uma crescente divisão no trabalho

intelectual e de pesquisas. A própria física, na época de Aristóteles, era

vista como um ramo da filosofia. Por sinal, durante muito tempo a

física – physiké, em grego, que significa natureza – era o estudo de toda

a natureza, orgânica ou inorgânica, abrangendo temas que hoje são

objetos da química e até da biologia. A lógica, que durante séculos foi

parte da filosofia, no transcorrer do século XX tornou-se cada vez mais

uma especialização da matemática. Também a pedagogia vem

enfrentando uma crescente apropriação de parte do seu campo de

estudos (e, principalmente, de atuação nos setores mais lucrativos ou de

maior prestígio, em especial a política educacional), com a recente

valorização do ensino como alicerce indispensável para o

desenvolvimento econômico e social. Cada vez mais, economistas e

outros profissionais que, como diria Bordieu, “ocupam posições

hierárquicas na academia e na sociedade superiores às da pedagogia”,

vem se apossando das decisões e dos cargos mais importantes na área

educacional. Isso ocorre em praticamente todos os países do mundo

(pelo menos naqueles que efetivamente possuem uma política

educacional) e até mesmo nas organizações internacionais como a

ONU, o Banco Mundial ou a UNESCO. Exemplos como esses

poderiam ser multiplicados. Mas o que interessa agora é refletir sobre o

caso da geografia. Essa reflexão, contudo, malgrado suas

especificidades, perpassa a questão da cientificidade nas ciências

humanas.

Longe de serem “ciências novas” – uma ideia baseada na descoberta de

Foucault de que o “homem” ou a “população” é um objeto de estudos

34

Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é filosofia? São Paulo, Editora 34, 2000.

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relativamente recente na história do Ocidente, pois foi construído nos

séculos XVIII e XIX –, as ciências humanas (ou pelo menos uma parte

delas: a história, a politicologia, a geografia35

) têm uma longa e rica

tradição que remonta à Grécia antiga. Basta pegarmos algumas análises

ou escritos de Estrabão35b

, que, sem dúvida, continuam relativamente

atuais. É evidente que os lugares ou os povos analisados mudaram

radicalmente, ou deixaram de existir. Mas boa parte da metodologia –

de conhecimento in loco, observações sistemáticas, entrevistas e

inquéritos com pessoas da região etc. – prossegue válida, assim como a

perspicácia nas observações. No caso da história, basta dar uma espiada

na História da guerra do Peloponeso, escrita no século V a.C, para

comprovarmos que muitas interrogações que perpassam a obra (sobre a

distinção entre fatos e interpretações, por exemplo) ainda são

pertinentes36

. No tocante à análise da vida política, quando relemos o

livro Política, de Aristóteles, que viveu no século IV a.C., logo

percebemos que a distância até nós não é tão grande. Sentimos certa

estranheza com os conceitos aristotélicos de monarquia, aristocracia (e

seu contrário, oligarquia) e democracia, mas é perfeitamente possível

apreender o seu raciocínio arguto e até aceitar (mesmo que

parcialmente) o seu ponto de vista. Mais ainda quando ele se refere à

necessidade de uma boa distribuição da terra, principal riqueza da

época, para existir uma forma de governo equilibrada e justa, sem

grandes conflitos sociais37b

.

Inclusive, é perfeitamente possível utilizar esses textos clássicos nos

cursos atuais – de graduação ou pós-graduação – em diversas áreas das

35

Estou colocando neste conjunto a geografia consciente dos problemas e polêmicas a esse respeito. Sem dúvida que durante séculos a geografia era mais ligada às matemáticas (e à astronomia) do que à história, apesar do fato de que alguns autores de obras ou reflexões geográficas (Heródoto, Estrabão) foram ao mesmo tempo historiadores e até antropólogos. Mas é certo que, no transcorrer do século XX, principalmente na sua segunda metade, a geografia acabou se firmando cada vez mais como uma ciência humana e social (apesar dos protestos de alguns poucos na área da geografia física). 35b

STRABO. The Geography of Strabo. Loeb Classical Library edition, 1917, disponível in http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/ (capturado em março de 2009). 36

. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília, Editora da UNB, 2001. 37

ARISTÓTELES. Política. Brasília, UNB, 1985.

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Ensaios de geografia crítica

29

ciências humanas. Não que eles sejam “manuais” no sentido de terem

os conceitos ou as teorias “corretos”. Isso não existe, pelo menos não

nas ciências humanas e na filosofia, sequer no livro mais recente do

mais conceituado especialista; sempre polemizamos qualquer obra e

relativizamos qualquer compêndio. Mas eles continuam a suscitar

reflexões e debates, apresentam problemas ainda relevantes. Em

contrapartida, praticamente ninguém vai utilizar um texto de Aristóteles

ou de qualquer outro clássico da antiguidade num curso de física,

química ou biologia. (A não ser que seja um curso de história da

ciência, mas este tipo de estudo não é uma ciência natural). Na

matemática isso seria possível, mas não nas ciências naturais. Nestas

seria extemporâneo ou mesmo burlesco. O próprio campo de estudos da

física, por exemplo – os seus objetos, o que inclui os conceitos e as

teorias –, daquela época praticamente nada tem em comum com o que

hoje é estudado. Os saberes são completamente diferentes: a física, a

química e a biologia foram, de fato, reinventadas ou reconstruídas a

partir dos séculos XVII e XVIII com a prática da experimentação (que

os antigos e os medievais desconheciam ou não aceitavam), com o

heliocentrismo e a teoria da gravitação universal e, posteriormente, nos

séculos XIX e XX, com a teoria da evolução e a genética, com a

relatividade especial e a geral, com a mecânica quântica etc. Daí se

falar em ciência moderna a partir do século XVII, em contraposição à

ciência (ou saberes) clássica ou tradicional.

Essa revolução científica não ocorreu – embora tenha exercido um forte

impacto – nas ciências humanas. Por esse motivo, até hoje é

extremamente difícil – embora não impossível, ao menos em termos

ideais, isto é, o que “deveria ser” um estudo filosófico em

contraposição a um científico sobre tal ou qual tema (democracia,

modernidade, globalização, crise ambiental etc.) – separar com precisão

a filosofia das ciências humanas. Em contrapartida, é bem menos

problemático diferenciar a filosofia das ciências naturais. Aqui, as

diferenças de abordagem em praticamente qualquer tema (por exemplo,

no que é o universo, a Terra, o espaço e o tempo, os quanta etc.) são

colossais, são perceptíveis à primeira vista até mesmo para um leigo.

Na verdade, foram principalmente as ciências naturais que se apartaram

de forma crescente e visível dos saberes tradicionais, da filosofia, a

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30

partir do século XVII. Nas ciências humanas, em grande parte, isso

ainda não ocorreu, pelo menos não de forma inequívoca. E talvez –

quem sabe? – nunca vá ocorrer. Afinal, os objetos que estudam não

comportam a experimentação, a rígida formalização e tampouco

explicações causais unívocas38

.

É certo que muitas “ciências novas” surgiram no século XIX, em sua

quase totalidade procurando se espelhar na metodologia, na

sistematização e em alguns conceitos e teorias das ciências da natureza.

Pode-se mencionar, entre outras, a sociologia (que, no início, com o seu

fundador, Auguste Comte, pretendia ser uma “física do social”), a

antropologia, a linguística, a ciência do direito, a criminologia, a

ciência política (que, na visão de muitos, foi fundada por Maquiavel no

século XVI39

) e até a economia (a qual, na verdade, teria sido forjada,

na sua forma moderna, no século XVIII –, seja com os fisiocratas, seja

com Adam Smith). Mas, devido aos seus objetos – no fundo, o homem,

a humanidade em algum de seus atributos, em geral as suas obras e

atividades mais abstratas: economia, idiomas, regras e leis, cultura,

instituições –, elas nunca alcançaram o grau de formalização

(matematicidade, leis ou teorias que podem ser expressas em fórmulas

e, principalmente, que são testáveis) das ciências naturais. Ao contrário

do que imaginam alguns, os preconceituosos ou de visão estreita, isso

não decorre de uma incapacidade dos investigadores nas ciências

38

Foi exatamente por esse motivo que, há mais de cem anos, Wilhelm Dilthey e outros propuseram diferenciar as ciências da natureza e as do espírito. Naquelas existiriam explicações e nestas compreensão. As explicações estariam ligadas à experimentação, à ideia de certezas (mesmo que relativas), a uma causalidade menos problemática. E a compreensão, por sua vez, seria composta por leituras ou interpretações – daí a valorização da hermenêutica – que nunca vão esgotar o objeto estudado. 39

FOUCAULT, M., nas suas aulas ministradas em 1978 no Collège de France (Segurança, Território, População, São Paulo, Martins Fontes, 2008), questiona essa ideia mesmo sem negar a importância da obra de Maquiavel e, principalmente, a sua enorme popularidade. A tradição na qual se inscreve O Príncipe (ela não foi a primeira nem a última obra do período com essa preocupação de ensinar ao governante como conquistar ou manter seu principado), segundo Foucault, caracteriza uma relação de exterioridade entre o príncipe e a sociedade. A análise política moderna e ainda atual, por outro lado, só teria sido iniciada a partir do final do século XVIII com as novas ideias de população (que passa a ser o objetivo último do governo no lugar do principado, que era mais identificado com o território) e de economia política, com seus objetivos de bem-estar, crescimento da riqueza nacional etc.

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humanas, isto é, da falta de um “gênio” (um Einstein, um Newton ou

um Darwin) que as revolucionasse. Nada disso. Mesmo com a noção de

QI sendo questionada hoje, em especial a partir da descoberta das

“múltiplas inteligências”, não temos dúvidas de que existiram e existem

inúmeros cientistas sociais com elevadíssimo nível de inteligência

(tanto lógico-matemática como linguística, passando pela musical,

espacial, interpessoal, emocional etc., além de um grau de criatividade

e criticidade provavelmente superior ao encontrável entre os cientistas

da natureza40

), que, mesmo assim, não conseguiram ou não puderam

engendrar novas e revolucionárias teorias tais como as dos genes, dos

quanta ou da relatividade. Principalmente teorias testáveis, que têm

aplicação prática e geram uma tecnologia avançada, como são essas

mencionadas teorias das ciências naturais. Inclusive, há o exemplo de

várias eminências indiscutíveis – até alguns prêmios Nobel – em suas

áreas (física, medicina, química ou matemática) que migraram para a

filosofia ou para as ciências humanas e, de forma aparentemente

inexplicável, nunca conseguiram reproduzir as suas descobertas ou

teorias indiscutivelmente inovadoras nestas últimas áreas do

conhecimento.

Albert Einstein mencionou em algumas entrevistas que, quando era

jovem, tinha o sonho de tornar-se geógrafo. Quando escolheu um curso

superior, com relutância optou pela física e não pela geografia –

segundo ele, porque esta seria “mais difícil” e exigiria muitas viagens

para conhecer os lugares, algo que demandaria tempo livre e recursos

financeiros41

. Ao tomarem conhecimento deste fato, muitos estudantes

40

Digo isso não por algum tipo de preconceito ou de bazófia e, sim, pelo bom senso. Assim como é provável que boa parcela das pessoas que possuem uma inteligência físico-cinestésica mais desenvolvida procure se dedicar aos esportes (desde que as condições sociais e pessoais o permitam, evidentemente), também os que têm uma maior inteligência musical tendem a se dedicar às artes, e aqueles com maior espírito crítico, de uma forma geral (sempre há exceções), se identificam mais com a filosofia e/ou com as ciências humanas. 41

Não se pode esquecer que, no final do século XIX, a imagem do geógrafo identificava-se bastante com Alexander von Humboldt, tido como o grande nome da ciência na primeira metade desse século – na segunda metade, Darwin, que na juventude havia sido um admirador de Humboldt, ocupou o lugar de modelo exemplar de cientista, ou melhor, de naturalista. Humboldt, oriundo de uma família prussiana aristocrática e abastada, foi um incansável viajante e nunca trabalhou no sentido moderno do termo, ou seja, nunca exerceu

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32

ingênuos lamentam ter sido a geografia privada de um gênio que iria

produzir neste campo do saber algo semelhante às duas teorias da

relatividade. Um juízo no fundo popular, todavia singelo, que não

atenta para o fato de que as inovações não dependem tanto das pessoas

como do contexto ou das oportunidades. Não que pairem dúvidas sobre

a genialidade desse cientista, isto é, a sua imensa criatividade e o seu

altíssimo grau de inteligência lógico-matemática. De mais a mais, ele

se dedicava quase integralmente aos estudos, e gostava disso, fatos que

são importantíssimos – às vezes mais até que os níveis de inteligências

ou de criatividade. Talvez, como geógrafo, ele contribuísse bastante

para este ramo do conhecimento, mas, sem dúvida, que aqui ele não

poderia dar origem a uma revolução semelhante à que operou na física.

Sabemos serem, em grande parte, as circunstâncias que fazem o

personagem, inclusive os gênios42

. A física estava amadurecida, isto é,

pronta para ser revolucionada no final do século XIX e inícios do XX.

Mas a geografia não. Uma época da profunda reformulação na

geografia já tinha ocorrido dos séculos XV ao XVII, outra menos

espetacular no século XIX – esta última, na verdade, foi mais uma

redução e redefinição do campo de estudos com uma nova

sistematização. Felizmente para ele e talvez para toda a humanidade,

Einstein optou pela física, pois quase certamente na geografia (como

também na história, na sociologia etc.) não poderia gerar tamanho

impacto como o que produziu na concepção e metodologia da ciência

física, na descoberta da energia contida na massa, no entendimento do

sistema espaço-tempo e do universo; muito menos algo como abrir

caminho para a energia nuclear e para os armamentos atômicos.

Convém recordar que o espaço geográfico não é o espaço-tempo da

qualquer atividade remunerada. Ele viajava e pesquisava, escrevia livros e, eventualmente, dava alguma palestra somente pelo prazer de expor suas ideias. Quando seu irmão mais velho, Wilhelm, fundou a Universidade de Berlim e, depois de algum tempo, o convidou para formar um departamento de geografia, o primeiro no mundo, Humboldt declinou da tarefa e indicou o nome de Karl Ritter. 42

HEIDEGGER, M. (Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 1989, Parte II) afirmou que um gênio surge quando uma sociedade necessita, “em tempos de grande perigo”. Em geral, isso é válido para toda a história do conhecimento, pois quando as circunstâncias estão favorecendo (o que inclui as demandas sociais, o impasse das velhas teorias, que já não explicam aspectos da realidade, as condições materiais e institucionais favoráveis para o avanço do saber etc.) é que surgem – ou pelo menos são aceitas e incorporadas – as ideias novas e revolucionárias.

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Ensaios de geografia crítica

33

física relativística. Estamos falando, aqui, do espaço de uma cidade ou

meio rural, do território de um Estado, do lugar de vivência de uma

comunidade. É evidente que existem certas relações ou possíveis

similaridades entre esses espaços. Por exemplo, a tridimensionalidade

da localização absoluta no espaço geográfico, algo banal e conhecido

há séculos, pode ser enriquecida pela proposição do tempo como uma

“quarta dimensão”. Mas isso, no fundo, não é nenhuma novidade, pois

os estudos clássicos já mostravam as mudanças na paisagem ou num

determinado lugar com o transcorrer do tempo, assim como as marcas

desta ou daquela época nos aspectos material e cultural dessa paisagem.

Tempo que na física é uma coisa – Einstein gostava de afirmar que, no

fundo, “o tempo é uma ilusão”43

; e na história, na geografia ou na

psicologia, ou mesmo na medicina, é outra coisa diferente. Na física

relativística, o tempo é uma mera dimensão – um aspecto ou uma

“medida” – do espaço. (Por exemplo: a idade o universo depende da

sua extensão; e viajando no espaço, que é curvo, a uma velocidade

superior à da luz é possível retornar ou avançar no tempo). Mas nas

ciências humanas, em geral, o tempo é existência (individual ou

coletiva), é a nossa vida com seus acontecimentos e obras; é, no fundo,

irreversível, único e irrepetível.

A fortiori, relações ou possíveis similaridades não significam uma

identificação total, ou seja, uma subsunção do espaço geográfico no

espaço-tempo da física; tampouco a subsunção do tempo histórico ao

tempo reversível da física relativística44

. Apesar de os geógrafos, em

geral, terem uma clara e injustificada ojeriza pela concepção de

dualidade (como se isso fosse apenas um mal-entendido ou uma

incapacidade de integrar duas coisas), na física mais avançada se

admite a existência de uma dualidade na mecânica quântica entre onda

43

Frase repetida com concordância por HAWKING, S. Uma nova história do tempo. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005. Também lembrada por PRIGOGINE, I. O fim das certezas. São Paulo, Editora da Unesp, 1996, embora neste caso o autor procure relativizá-la (não denegar totalmente e, sim, limitar o seu alcance) com a afirmação de que também existem eventos irreversíveis. 44

Desde pelo menos Heiddeger, os fenomenológicos e existencialistas em geral, além de outros filósofos e cientistas sociais, afirmam que o tempo humano não é o tempo da física inaugurada por Einstein. Não que um esteja certo e o outro errado. Nada disso: cada um deles é adequado ao entendimento da realidade à qual se refere.

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34

e partícula. Nas noções sobre o espaço, ou espaços, existe não apenas

dicotomia, mas no mínimo tricotomia: o espaço na física é diferente do

da geografia, que é diferente do da psicologia etc. A bem da verdade, a

palavra espaço é ambígua e possui significados variados, algo que

muitas vezes gera confusão – tal como na escrita de alguns autores, que

apregoam estarem levando em conta um “espaço relativístico”45

quando, na verdade, estão praticando um mero jogo de palavras que

acarreta pouco ou nenhum avanço no conhecimento da realidade.

Esse tipo de retórica vazia, onde pretensamente se utiliza no

conhecimento do social os conceitos ou proposições da física

relativística, da mecânica quântica, do teorema de Gödel ou da teoria

do caos, é frequente em alguns – poucos, embora normalmente

famosíssimos – autores da filosofia e das ciências humanas em geral,

conforme demonstraram com inúmeros exemplos dois físicos de

renome46

. Não se trata de denegar o valor das análises desses autores,

algumas vezes ricas e originais. (Embora, em geral, predominem os

discursos prolixos e sofísticos). O importante é não confundir o leitor,

sugerindo que se está aplicando conceitos avançados da física ou da

matemática quando, na verdade, se escreve a respeito de uma realidade

completamente diferente. Seria possível fazer analogias entre as

diversas realidades, isso sim, mas não sugerir que o mesmo conceito ou

teoria é utilizável no mundo social e histórico. Como assinalaram os

dois mencionados físicos, esses conceitos ou teorias da matemática e da

física não se referem de forma alguma à sociedade e, quando eles são

empregados na sua análise, inevitavelmente incorre-se numa distorção,

num uso errôneo e inadequado47

.

Na geografia mesmo tornou-se comum, pelo menos no Brasil, tanto em

artigos e livros como em teses acadêmicas, repetir a definição segundo

a qual “espaço é uma acumulação desigual de tempos” como se fosse

alguma novidade e um grande avanço frente ao “espaço

45

Cf. HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres, Edward Arnold, 1969. 46

SOKAL, A. e BRICMONT, J. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro, Record, 2006. 47

SOKAL, A. e BRICMONT, J. Op. cit.

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Ensaios de geografia crítica

35

(tridimensional) newtoniano”48

. Ora, em primeiro lugar essa definição

tão somente reproduz, com outras palavras, uma das concepções de

Kant a respeito do espaço: para esse filósofo, adepto manifesto da física

newtoniana, o espaço mostraria, em suas marcas, em seus objetos, a

ação do tempo nos seus diversos momentos49

. Em segundo lugar, a

referência a Einstein e à sua concepção de espaço-tempo encontra-se

completamente deslocada ou “fora de lugar” nessa caracterização do

espaço geográfico com os seus lugares e paisagens enquanto vivência

e/ou como trabalho e relação interpessoal e com a natureza. Isso fica

mais patente ainda quando recordamos que, para Einstein, o tempo se

define a partir do espaço (e não o inverso, tal como nas grandes

filosofias do século XIX: hegelianismo, marxismo e positivismo

clássico), ao passo que, nessa definição, o espaço subordina-se ao

tempo, passa a ser uma expressão material – uma “instância” – deste.

Enfim, não estamos preocupados se o espaço-tempo relativístico foi ou

não bem entendido e aplicado; isso seria praticamente um novo tipo de

escolástica. Queremos apenas realçar que são realidades variadas e

nada se ganha – a não ser em prolixidade e, para os tolos, uma sensação

de estar acompanhando uma teoria avançada da física – com essa

identificação do espaço geográfico (ou o tempo histórico) com o

espaço-tempo de Einstein.

De fato, o mundo histórico e social é diferente do físico, e mesmo na

física existem alteridades nos objetos estudados pela microfísica – as

partículas subatômicas – e a realidade maior do universo. A crença

metafísica numa só realidade, com uma única lógica para todos os seus

aspectos ou todo o universo, infelizmente fortíssima nas ciências

humanas (e mais ainda na geografia), muitas vezes gera uma espécie de

mimetismo, uma patética tentativa de imitar conceitos da física

avançada que mais atrapalha do que ajuda no entendimento da

48

Cf. SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo, Hucitec, 1979. O autor introduz essa definição após a seguinte afirmação: “A concepção de um espaço relativo [...] em oposição à de espaço continente (container) supõe, em primeiro lugar, que se abandone a ideia de um espaço tridimensional, herdeira da filosofia de Newton, e que se passe a trabalhar com a ideia de um espaço quadrimensional, tarefa possível desde que Einstein introduziu um novo pensamento na física e na filosofia.” 49

Cf. KANT, I. Geografia Fisica. Bergamo, Leading Edizione, 2004.

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José William Vesentini

36

realidade. Nesse sentido, concordamos com a seguinte observação de

um importante filósofo greco-francês:

Como escreveu Norbert Wiener, ‘o sucesso da física

matemática tornou o homem das ciências sociais ciumento

da sua potência, sem que ele compreenda verdadeiramente

as atitudes intelectuais que contribuíram para isso.

Exatamente como tribos primitivas adotam modas

ocidentais de roupa cosmopolita e de parlamentarismo a

partir de um vago sentimento de que essas vestimentas

ridículas e esses ritos mágicos os levarão diretamente ao

nível da cultura e da técnica modernas, assim também os

cientistas sociais forjaram-se o hábito de vestir de modo

ridículo as suas ideias, a bem dizer imprecisas, da

linguagem do cálculo infinitesimal’. A razão desse

fracasso é clara: são escassos os aspectos dos fenômenos

sociais que satisfazem às condições da teoria matemática50

.

Ipso facto, o caráter irreversível, original e único dos fenômenos

histórico e sociais – e também dos lugares na geografia – talvez seja o

elemento essencial para entendermos a especificidade das ciências

humanas, suas diferenças qualitativas frente às ciências da natureza e as

dificuldades que elas possuem para formalizar, para tratar tudo ou

quase tudo como números e fórmulas. Por isso, a economia, entre todas

as ciências do homem, é a que mais se aproxima, embora com enormes

diferenças, do modelo da física. Os fenômenos econômicos – produção

de bens e serviços, que podem ser medidos em termos monetários,

dinheiro, mercadoria, trocas comerciais etc. – se prestam mais ao

agrupamento, à generalização e à quantificação do que os

acontecimentos históricos ou os lugares geográficos. Mas falamos em

diferenças qualitativas, que, sem dúvida, decorrem dos objetos

estudados, e não “atraso” ou mesmo em “juventude”, como apregoam

alguns.

Convém recordar que também existe – algo importantíssimo – a

originalidade do ser humano, em especial o seu livre arbítrio e sua

50

CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto/1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

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racionalidade. Racionalidade definida, de forma simplificada, como

capacidade de avaliar e julgar as coisas, de ponderar suas causas e

consequências. E o livre arbítrio, de forma complementar e inseparável

da racionalidade, enquanto autonomia ou capacidade de decidir

“livremente”. (É óbvio que as condições sempre exercem a sua

influência, às vezes decisiva. Portanto, “livremente” deve ser entendido

não como liberdade total e absoluta, que não existe para nada ou para

ninguém, e, sim, como não condicionamento puro e simples pelo meio

e/ou pela natureza biológica, na medida em que existe algo chamado de

consciência racional junto com certa margem de opções). A

racionalidade e o livre-arbítrio do ser humano produzem esta

capacidade de reelaborar as coisas, inclusive a própria sociedade e o

próprio comportamento, o que implica em transformar radical e

constantemente o seu meio (cultural ou ambiental), algo que, lato

sensu, é conhecido como história. Isso resulta numa diferença

qualitativa fundamental das ciências do homem frente às ciências

naturais, pois naquelas o sujeito é ao mesmo tempo objeto e nunca uma

coisa que pode ser vista como externa, que pode ser manipulada em

laboratório ou testada com certa margem de exatidão em experimentos

controlados.

Dessa forma, outra distinção fundamental entre as ciências da natureza

e as da humanidade é a possibilidade da experimentação, sem dúvida o

fator essencial na eclosão da revolução científica moderna. A

experimentação reproduz fenômenos na física, na química e na

biologia, fazendo com que eles possam ser conhecidos e medidos com

precisão, algo que possibilita uma formalização e até mesmo certa

previsibilidade. Sem dúvida que há diversidades entre, por exemplo, a

física do universo, na qual se faz previsões praticamente exatas sobre a

trajetória dos cometas, em comparação com a biologia, que

normalmente convive com o acaso. Contudo, deixando de lado suas

inúmeras variedades, podemos dizer que essas ciências formam um

conjunto no qual, bem ou mal, existe uma grande margem de

formalização e previsibilidade. Nas ciências humanas em geral – salvo

exceções como determinados objetos na demografia ou na psicologia,

ciências do homem que são em parte biológicas –, isso não é possível.

Como reproduzir em laboratório, num experimento com as condições

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38

controladas, uma revolução, uma crise mundial ou um lugar geográfico

específico? Não é possível porque eles são únicos, originais e em parte

imprevisíveis, além de possuírem uma abrangência gigantesca – com

milhares ou milhões de atores envolvidos, cujas ações se entrecruzam.

Isso sem contar com as questões éticas e jurídicas contidas nos

experimentos que envolvem seres humanos. Mesmo fatos

aparentemente semelhantes – tais como as revoluções denominadas

“socialistas”: a russa de 1917, a chinesa de 1949 ou a cubana de 1959;

ou então a crise econômica mundial de 1929, que segundo alguns teria

se repetido no final de 2008 –, na verdade, possuem diferenças

significativas. Cada situação é específica e até mesmo as generalizações

que fazemos – por exemplo, falar em revoluções “burguesas” e

“socialistas”, ou em crises econômicas, ou mesmo em região no sentido

geográfico do termo – sempre são questionáveis: em qualquer caso será

possível demonstrar que a situação X é alter, é completamente

diferente das situações Y ou Z, também classificadas no mesmo grupo

ou conceito. Via de regra, nem mesmo é possível examinar com

minúcias os fenômenos estudados pelas ciências humanas num

microscópio ou num telescópio, pois, além de sua abrangência, eles são

singulares e não repetíveis, com comportamentos que variam muito no

tempo e no espaço, bem diferentes daqueles dos cometas, dos ventos,

das bactérias e de outros objetos materiais não humanos.

Evidentemente que as generalizações são possíveis, assim como os

conceitos que abrangem um número indefinido de casos ou situações.

Sem isso, seria até mesmo duvidoso falar em ciências humanas ou

sociais. Mas cada situação social e histórica, ou lugar geográfico, é

específico e estudar as suas peculiaridades é algo que faz parte das

ciências do homem.

As ciências sociais, de uma forma geral, são tidas como periféricas

frente às da natureza. É lógico que, assim como no mundo

subdesenvolvido existem Estados mais periféricos e outros nem tanto,

além daqueles casos difíceis de serem classificados, também existe um

amplo espectro de situações variadas na hierarquia das ciências. A

economia, por exemplo, está mais bem posicionada do que a

pedagogia, a sociologia ou a geografia. Não que ela seja vista como

uma ciência indiscutível e modelar, tal como a física, e, sim, que

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desfruta um maior conceito na sociedade e na academia por vários

motivos. Primeiro, a importância do seu campo de estudos, a riqueza

material, na sociedade capitalista. Segundo, a prosperidade de seus

membros: os economistas, em média, ganham mais dinheiro, logo

possuem maior status social do que os historiadores, geógrafos,

sociólogos ou pedagogos. Por fim, em função do fato de que os

temas/conceitos da ciência econômica se prestam mais à formalização

do que a quase totalidade dos objetos das demais ciências humanas. Em

contrapartida, a geografia quase sempre é vista com reticências, seja

principalmente nas ciências naturais (onde alguns, ligados à geografia

física, pretendem que seja o seu lugar) ou até mesmo nas ciências

humanas. Entramos, aqui, no terreno da especificidade epistemológica

da geografia.

As análises epistemológicas sobre a geografia, de uma forma geral, são

incipientes e débeis. Os grandes nomes da teoria do conhecimento, a

partir do final do século XIX, praticamente nunca mencionam esta

ciência. É como se ela não existisse enquanto disciplina científica.

Algumas vezes, eles – isto é, autores como Popper, Carnap, Ayer,

Bunge, Whitehead, Reichenbach, Lakatos ou Feyrabend – mencionam

a sociologia ou a economia, raras vezes a história como disciplina

científica (embora frequentemente façam referências às mudanças

históricas), mas nunca a geografia. Também os filósofos importantes

que refletem sobre as ciências, vistas de regra ignoram a geografia. Um

recente e volumoso manual universitário norte-americano de filosofia,

por exemplo, dedica dezenas de páginas para a filosofia da história, o

mesmo tanto para a filosofia da matemática, para a do direito, da

linguagem e até das ciências sociais, mas não se refere à geografia

sequer neste último tópico51

. Salvo engano, somente uma única obra

relevante em termos internacionais editada nas últimas décadas sobre a

filosofia das ciências destinou um capítulo à geografia. Trata-se da

coletânea História da Filosofia, organizada por François Châtelet que,

no seu volume 7, inclui um artigo sobre essa temática52

. Fica patente,

51

BUNNIN, N. e TSUI-JAMES, E. P. (Org.). Compêndio de Filosofia. São Paulo, Loyola, 2003. 52

LACOSTE, Yves. “A Geografia”, in CHÂTELET, F. (Org.). A filosofia das ciências sociais. Volume 7 da coleção História da filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, p. 221-74.

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40

todavia, que foi uma exceção motivada por amizade de dois professores

universitários franceses, o filósofo organizador da coleção e o geógrafo

convidado para escrever o artigo. Como se trata praticamente de um

resumo ou uma espécie de rascunho do livro que o geógrafo editaria

logo em seguida53

, não é descabido supor que ele tenha comentado

sobre essa obra em andamento advindo daí o convite para compor essa

coletânea. Uma exceção que praticamente confirma a regra: a quase

total omissão da geografia nas reflexões epistemológicas e filosóficas

sobre as ciências desde, pelo menos, o final do século XIX.

Entretanto, até meados do século XIX isso não ocorria. Basta recordar

dos escritos de Montesquieu, no século XVIII, que, na verdade,

construiu uma filosofia (política) a partir da geografia. Ou do maior

filósofo do conhecimento desde a revolução científica moderna até pelo

menos os primórdios do século XX, Kant, que lecionou uma disciplina

chamada “geografia física” durante 48 semestres na universidade de

Königsberg, entre 1756 a 1796, e incluiu a geografia na sua teoria das

ciências. Inclusive, pode-se afirmar que o principal alicerce teórico-

epistemológico desta disciplina prossegue sendo a filosofia kantiana

com a asserção de que o campo de estudos da geografia é o espaço dos

seres humanos. Essa ideia é mais aceita hoje do que a concepção de

Humboldt e Ritter, os quais, influenciados pelo romantismo54

, insistiam

na “harmonia” entre a humanidade e a natureza. (São duas coisas

relativamente diferentes que, por vezes, os geógrafos confundem.

Estudar a “harmonia” ou mesmo as relações entre a humanidade e

natureza não é o mesmo que estudar o espaço da sociedade humana.

Boa parte dos geógrafos que adota esta última postura nos dias de hoje

ignora completamente a natureza em si e considera tão somente o

espaço social). Inclusive, esses dois geógrafos germânicos do século

XIX leram e absorveram, em parte reproduziram, inúmeras ideias de

Kant, embora no entendimento do campo de estudos da geografia eles

53

LACOSTE, Y. La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre. Paris, François Maspero, 1976. Neste livro, o autor praticamente reproduz, com ligeiras alterações e acréscimos, o conteúdo daquele ensaio citado na nota anterior. 54

Sobre a influência do romantismo em Ritter e particularmente em Humboldt, veja-se os dois primeiros capítulos de CAPEL, H. Filosofía y ciência en la geografía contemporánea. Barcelona, Barcanova, 1981.

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Ensaios de geografia crítica

41

tenham sofrido uma forte influência do espírito científico moderno –

isto é, da necessidade de confrontar a teoria com os fatos, de perscrutar

o mundo empírico – e do romantismo alemão da sua época. Essa

sensível presença de Kant até os dias atuais não é nenhum demérito

para a geografia. Inúmeros grandes nomes da teoria do conhecimento

no século XX foram ou são neokantianos: Cassirer, Gadamer, Dawkins,

Piaget e vários outros. As ideias de Kant influenciaram enormemente a

sociologia de Max Weber, a antropologia de Franz Boas, a

fenomenologia de Husserl e de Heidegger e até mesmo a epistemologia

de Karl Popper. Para Kant, a história seria o estudo da humanidade no

tempo, e a geografia seria esse estudo no espaço. Seriam duas ciências

“especiais” e complementares, ambas sinópticas ou sintéticas (ao

fazerem uso de elementos de várias outras ciências) e, em grande parte,

idiográficas, embora a história sob um ponto de vista cronológico ou

temporal e a geografia numa perspectiva corológica ou espacial. Elas

seriam diferentes das ciências sistemáticas, as quais, em tese, estudam

algum fenômeno específico sem grandes preocupações com o tempo e

o espaço, tal como a física, a química, a biologia, a pedagogia etc.

Essa interpretação foi reproduzida pelos dois grandes nomes da

epistemologia geográfica no século XX: Alfred Hettner e Richard

Hartshorne. E continua atual, sendo implicitamente admitida até pelos

que dizem ter superado o espaço newtoniano através da incorporação

do espaço quadrimensional (alguns falam até numa “quinta dimensão”,

que seria o cotidiano!) da física relativística. Tanto os neopositivistas

como os marxistas, os fenomenológicos e os pós-modernos, todos eles

pensam o tempo e o espaço de forma newtoniana e kantiana, isto é,

separadamente, a partir do que a geografia estudaria a humanidade sob

um prisma espacial. Mas há variedades. Os neopositivistas, por

exemplo, exorcizam a noção de ciência idiográfica. Afirmando que

toda e qualquer ciência tem que ser nomotética, eles procuram construir

“leis” ou teorias gerais que dêem conta da espacialidade de alguma

atividade humana. Um labor digno de Sísifo, pois esbarra na referida

originalidade, no caráter único e irrepetível dos fatos históricos e

geográficos. A teoria dos sistemas foi o instrumental metodológico que

mais fez avançar esse tipo de abordagem na ciência geográfica;

contudo, ela é muito mais eficaz e deu seus melhores frutos na

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42

geografia física e não na humana. Já os marxistas enfatizam a noção de

produção do espaço. Como estão utilizando uma filosofia que denega o

espaço em função do tempo, da história, assumem a árdua e talvez

infrutífera tarefa de complementar o materialismo histórico com a

inclusão do espaço geográfico, advindo daí um insosso “materialismo

histórico e geográfico”. Os fenomenológicos procuram perscrutar como

os seres humanos percebem ou se identificam com o espaço, ou melhor,

com os lugares. No fundo, eles não conseguem ir além do relativismo.

Os pós-modernos são pluralistas e utilizam, em maior ou menor grau,

elementos de todas as três correntes do pensamento anteriores, além de

incorporarem ideias ou preocupações do anarquismo, do feminismo, de

Nietzsche, de Foucault etc. Mas, de fato, nenhum deles logrou superar

completamente a herança kantiana. Não por algum tipo de incapacidade

intelectual e, sim, porque o nosso tempo ainda não o permite.

Continuamos a vivenciar, nas ciências humanas e mesmo em nosso

cotidiano, o espaço e o tempo separados, apesar de que todo momento

só tenha concretitude no espaço e todo lugar seja marcado por uma

temporalidade. Tempo e espaço são interligados, inclusive inseparáveis

na prática, na existência dos fenômenos históricos ou geográficos. Mas

são distintos e entendidos de forma separada e até oposta nos estudos,

nas pesquisas, nas ciências humanas enfim.

Um impasse dessa epistemologia kantiana, que em grande parte ainda

norteia a legitimação científica da geografia, é certa idealização da

realidade e, portanto, das ciências que a estudam por diferentes vieses.

Só se pode admitir a existência de “ciências sistemáticas” no mundo

físico e, em parte apenas, no biológico. Sem dúvida, a física e a

química, em suas teorias e conceitos fundamentais, não precisam da

referência ao tempo e ao espaço: o hidrogênio ou os átomos, as reações

químicas ou as forças físicas (gravitacional, eletromagnética, nuclear

fraca e forte), todos esses fenômenos são semelhantes hoje ou a 4

bilhões de anos, tanto aqui na Terra como numa galáxia situada a

bilhões de anos-luz de distância. Não é necessário determinar temporal

e espacialmente esses fenômenos para explicá-los. Mas, nas ciências

humanas (as ciências biológicas ficam numa posição intermediária),

não existem, de fato, conceitos e teorias sistemáticas, isto é, atemporais

e independentes do lugar, de uma sociedade ou uma cultura específica.

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Ensaios de geografia crítica

43

É por isso que todas as ciências sociais são, ao mesmo tempo,

históricas e geográficas. Históricas, pelo fato de terem que levar em

conta, necessariamente, a historicidade ou temporalidade dos

fenômenos; e geográficas, na medida em que todos os objetos que

estudam variam enormemente no espaço, ou seja, são diferentes em

função do lugar onde se situam – diferenças que, no fundo, decorrem

de sociedades e culturas distintas, sem esquecer, evidentemente, que

determinados traços de uma cultura possuem íntimas relações com o

meio físico no qual ela se desenvolveu.

Destarte, não é possível pensar um conceito abstrato de classe social,

ou de sistema escolar, de produção econômica, de Estado ou mesmo de

poder político, sem estabelecer profundas diferenças entre o que

significam esses conceitos nesta e naquela sociedade, neste ou naquele

momento da história. Diferenças por vezes incomensuráveis. Tanto que

inúmeros autores afirmam que, no fundo, não é possível haver um

conceito único de Estado, ou de política, de status social, de educação

etc. Foucault, por exemplo, mostrou cabalmente que o que se entendia

na antiguidade grega por medicina, por sexualidade ou por educação

(poderíamos acrescentar: por geografia) são coisas bem diferentes do

nosso entendimento atual. Por vezes, malgrado o nome em comum,

trata-se de objetos completamente distintos. Tais diferenças,

fatalmente, devem ser levadas em conta pelas ciências humanas.

Normalmente, elas são maiores no tempo do que no espaço, ou pelo

menos são percebidas dessa forma pela filosofia e pelas humanidades.

Daí uma maior valorização da história pelas ciências sociais, isto é,

uma ênfase muito maior nas diferenças suscitadas pelo tempo histórico.

Na verdade, as ciências sociais proclamam abertamente a sua

historicidade: são disciplinas que amiúde e explicitamente dizem

ponderar sobre o tempo histórico com as suas transformações. Mas,

dificilmente elas apregoam a sua geograficidade: isso parece ser visto

como algo inferior ou sem importância.

Foucault foi provavelmente o primeiro autor a escrever sobre essa

depreciação do espaço em prol de uma temporalidade supervalorizada.

Segundo ele, essa ênfase na dimensão temporal, na história,

concomitante com uma desvalorização do espaço, teria se dado no

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44

século XIX a partir da ideia de revolução social55

. Uma noção – ou um

projeto – de revolução social que se tornou dominante a partir da

Revolução Francesa.

Creio que se pode acrescentar, de forma complementar, que também o

mito do progresso contribuiu para essa ênfase no tempo, nas mudanças

temporais, em detrimento das diferenças espaciais. Esse mito do

progresso pressupunha um continuum infinito na história humana

percebida como realizações sucessivas que vão tornando superadas as

condições do passado. É o “mais e mais” ilógico e antiecológico a que

se refere Castoriadis num brilhante ensaio sobre o tema: o mito de um

progresso material que sempre utiliza mais recursos naturais, mais

água, mais solos agriculturáveis, maiores conquistas sobre a natureza

enfim56

. Nesse mito, o espaço é algo inerte, identificado mais com o

universo infinito do que com o nosso espaço geográfico finito; o tempo,

por outro lado, é o locus privilegiado das mudanças. Poderíamos,

talvez, acrescentar que também a teoria da evolução contribuiu, mesmo

sem pretender (pelo menos essa nunca foi uma intenção de Darwin),

para essa percepção do tempo – ou melhor, da história – como o lugar

por excelência das mudanças e das transformações sociais e até

naturais. Todos se recordam da ideia simplista de Marx – por sinal, um

obstinado adepto do progresso e com a declarada pretensão de produzir

“no reino do social” o mesmo impacto obtido por Darwin “no reino da

natureza” – segundo a qual “Só existe uma ciência, a ciência da

história”, que poderia ser dividida em história da sociedade e história

da natureza57

.

Essa percepção, reiteramos, foi tributária da Revolução Francesa e de

uma de suas sequelas: toda uma série de interpretações ou teorias da

história autodefinidas como revolucionárias – anarquistas, positivista,

marxista, socialistas utópicas – que se seguiram a esse evento. Como

não podia deixar de ser, também essa revolução, em grande parte,

decorreu – ou pelo menos contou com a inspiração – de toda uma série

55

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 212. 56

CASTORIADIS, C. Reflexões sobre desenvolvimento e racionalidade. Op. Cit. 57

MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Livraria e Editora Ciências Humanas, 1979.

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Ensaios de geografia crítica

45

de proposições igualitárias ou “comunistas” (palavra que deriva das

“comunas” tão comuns na Idade Média), que se multiplicavam desde o

século XVI a partir de autores como Thomas Morus ou Jean-Jacques

Rousseau, além de outros58

. No transcorrer dessa revolução, ou depois

dela, surgiram as doutrinas anarquistas e socialistas – a palavra

“socialismo” foi inventada por Pierre Lerroux em 1832. Na verdade,

foram continuações, com nuanças, das ideias utópicas de Platão e

Thomas Morus, e também dos juízos de Rousseau e outros, segundo os

quais “a propriedade privada é a origem dos males sociais”, “os

indivíduos nascem bons e a sociedade os corrompe” etc. Esses ideais

são igualitários e louváveis. Bem ou mal, eles serviram de inspiração

para grandes mudanças sociais que construíram a democracia moderna.

Entretanto, eles possuem um viés autoritário na medida em que

encerram propostas de implantação de um novo modelo, apriorístico,

de governo ou de sociedade. Neste, os indivíduos terão que se ajustar a

regras que não foram por eles escolhidas, as quais não podem mudar,

pois seriam teoricamente “universais”, encerrando o “modelo ideal de

sociedade”, o qual é fruto da mente de algum pensador, mesmo que

este afirme que “deduziu objetivamente” esse esquema da análise do

mundo ou da história.

Essas ideias se tornaram hegemônicas nas ciências humanas.

Inquestionavelmente, elas representaram um inegável avanço no

conhecimento do social. Contudo, via de regra, elas ignoram o espaço,

as diferenças territoriais entre os povos ou lugares, os quais, no fundo,

quase sempre são diferenças culturais e sociais. Mas especificidades

culturais e sociais, repetimos, também forjadas a partir da interação do

social com o natural, com o seu espaço ou território, tendo-se em vista

sua localização relativa, seus recursos naturais e como eles foram

aproveitados etc. Imaginam apenas, ou principalmente, mudanças

derivadas basicamente do tempo, da história. É como se a humanidade

– e, no fundo, também a natureza – fosse basicamente uma só, com

uma trajetória em comum. Como se as sociedades, em todos os lugares,

com pequenas variações, tivessem que passar por “etapas” ou

58

Cf. MOSCA, G. e BOUTHOUL, G. História das doutrinas políticas. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.

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46

“estágios” semelhantes. Como se tivessem um futuro pré-determinado e

unívoco. Com isso, o espaço fica anulado, torna-se um simples palco

inerte para os acontecimentos. Em outras palavras, ele passa a ser um

mero quadro físico, negligenciável em face de sua pouca relevância,

sem de fato implicar em diferenças significativas tanto na natureza

quanto, principalmente, nas sociedades; as mudanças ocorreriam

essencialmente na história, esta, sim, vista como um campo de lutas e

alternativas59

. Como afirmam até mesmo alguns geógrafos, o espaço

seria o “corpo” do tempo ou da história, numa leitura organicista na

qual o que importa no indivíduo é a consciência, o seu livre arbítrio e,

principalmente, as suas ações, sendo secundários os traços corporais.

As diferenças espaciais seriam apenas um detalhe, um mero atraso

relativo de alguns lugares frente a outros, em suma, algo que a

dinâmica essencialmente temporal tenderia a desmanchar ou a

homogeneizar. Como ironizou Foucault, o tempo seria “dialético”, rico

e fecundo, enquanto o espaço seria “conservador”, antirrevolucionário e

identificado com o status quo60

.

Um extraordinário problema epistemológico da geografia é que as

ciências sociais foram construídas ou reconstruídas, a partir do século

XIX, com essa perspectiva essencialmente histórica. E o projeto

unitário da geografia foi pensado a partir de uma filosofia kantiana – e

também, como já mencionamos, romântica – anterior e/ou

relativamente isenta dessa desvalorização do espaço. Um projeto que

consiste num conhecimento científico, inspirado no parâmetro

empirista da ciência moderna, que se propõe a unir o estudo da

59

Esse viés já se encontra em HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid, Alianza Editorial, 1982. Nesse ambicioso livro publicado postumamente em meados do século XIX, há uma primeira parte intitulada “os fundamentos geográficos da história universal”, na qual o autor comenta sobre a influência do espaço na história. Mesmo tendo sido em parte influenciado pela leitura de Montesquieu, e também de Kant, Humboldt e Ritter, Hegel desvaloriza o espaço, a geografia, em prol de uma dialética essencialmente temporal e inter-humana, sendo que as condições geográficas representam apenas obstáculos ou possibilidades que o espírito humano pode – e deve – superar. Existe aí uma percepção espacial mística: da mesma forma que o Sol nasce no Oriente e se põe no Ocidente, seria neste lugar – na Europa, mais especificamente – que o espírito tomaria consciência de si, enfim, que a história iria se realizar ou completar. 60

FOUCAULT, M. Op. Cit.

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humanidade (geografia humana) com o estudo da natureza-para-o-

Homem (geografia física) sob um prisma espacial ou territorial, isto é,

do meio ambiente (natural e cultural) ou das paisagens formadas pela

interação entre a humanidade e a natureza. Um projeto que logo se

chocou tanto com o desenvolvimento das ciências da natureza quanto

também com essa visão essencialmente histórica das ciências sociais.

Com as ciências naturais, porque estas logo abandonaram a ideia de

elaborar um estudo integrado do meio físico (justamente este era o

principal objetivo de Humboldt, que pretendeu fundar uma “geografia

física”, na verdade, um estudo sintético ou integrado do clima com o

relevo, com os solos, com a vegetação, com as águas etc)61

.

Era o antigo ideal grego para a física, entendida como a “ciência da

natureza”, abandonado ou deixado de lado a partir da mecânica de

Galileu – prosseguida com Newton, Einstein etc. –, que passou a

estudar somente o mundo físico visto como apartado da química, da

biologia, da hidrologia, da oceanografia e de outras ciências da

natureza. Humboldt pretendeu, num certo sentido, retomar esse projeto

– embora pensando mais na natureza-para-o-Homem, nas paisagens

enfim, nas quais haveria uma harmonia no conjunto formado pelos

elementos naturais e com as quais as comunidades humanas viveriam

adaptadas ou em simetria. Mas retomar esse projeto foi uma ideia

utópica numa época, em pleno século XIX, em que as ciências da

natureza já haviam se compartimentado e se expandiam cada vez mais

de forma autônoma, com as novas teorias na biologia, específicas e

separáveis da física, com novas proposições na química, na geologia

etc. Um projeto ambicioso e holístico para uma época analítica, na qual

61

“A realização mais importante de um estudo racional da natureza é apreender a unidade e harmonia que existe nessa imensa acumulação de forças [...] A tentativa de decompor em seus diversos elementos a magia do mundo físico é plena de riscos porque o caráter fundamental de qualquer paisagem e de qualquer lugar imponente da natureza deriva da simultaneidade de ideias e de sentimentos que suscita no observador. A Física do Mundo que procuro expor [...] é uma Geografia Física unida à descrição dos espaços celestes [...] é um ensaio sobre o Cosmos fundado sobre um empirismo equilibrado, ou seja, sobre um conjunto de fatos registrados pela ciência e submetidos à ação de um entendimento que compara e combina.” (HUMBOLDT, A. Cosmos. Ensayo de una descripcion física del mundo. In: MENDOZA, J. G., JIMÉNEZ, J. M. e CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico. Madrid, Alianza, 1982, p. 159-67).

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separar e analisar as partes em minúcias tornou-se a essência da

pesquisa e do conhecimento em praticamente todas as ciências. Um

projeto no fundo destinado ao fracasso ou, de forma mais amena, a ser

negligenciado e até menosprezado nas ciências naturais. Um projeto

visto com desconfiança nas ciências humanas porque incorporava as

influências do meio físico, algo considerado reacionário numa época

em que predominava o ideal de revolução social feita exclusivamente a

partir do intelecto humano (mesmo que apoiado no desenvolvimento

das forças produtivas, processo no qual a natureza só entra enquanto

recurso inerte).

Como a geografia, com esse projeto holístico e, ao mesmo tempo,

utópico e romântico, no fundo extemporâneo, conseguiu sobreviver –

mesmo que às duras penas? Acredito que, primeiro, porque já era um

saber clássico, de longa tradição – na verdade milhares de anos – e há

tempos ensinado pelos preceptores ou pelas raras escolas que existiam

até o século XIX (as civis e as militares, devido à importância

estratégica dos conhecimentos geográficos). Recordemos, novamente,

que um dos maiores pensadores do século XVIII, Kant, durante várias

décadas foi professor de uma disciplina intitulada “geografia física”,

sendo que as anotações de suas aulas foram editadas em seis livros e

serviram como material de apoio até para Humboldt, apesar da visível

falta de trabalho de campo e de dados empíricos originais ou às vezes

sequer confiáveis62

.

Depois, e principalmente, porque ela se tornou uma disciplina escolar

numa época em que ocorreu uma enorme expansão – na verdade, uma

construção ou invenção – dos sistemas nacionais de ensino. A partir do

século XIX, os Estados nacionais europeus – e, em seguida, o resto do

mundo – precisavam formar um número cada vez maior de professores

de geografia, e, com isso, houve também a sobrevivência desta ciência

62

KANT. Geografia Fisica. Bergamo, Leading Edizione, 2004. Utilizamos esta edição italiana, a única que encontramos após uma demorada pesquisa em bibliotecas e em livrarias on-line, em três volumosos tomos (cada um com 600 páginas), mas a edição original, em alemão, é de 1807-11. Humboldt cita muito esta obra de Kant, embora, como bom naturalista e alguém antenado com o espírito indutivo da ciência do seu tempo, ele buscou separar a especulação (muito comum no filósofo germânico) dos dados empíricos que coletou em suas viagens e observações in loco.

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49

na academia, apesar de mal tolerada pelas ciências naturais e até

mesmo pelas humanidades63

. Mesmo que isso horrorize grande parte

dos geógrafos, notadamente os que teorizam a história do pensamento

geográfico (que quase sempre se inspiram no modelo idealizado da

evolução da matemática ou da física64

), temos que reafirmar este fato

elementar: que a partir do final do século XIX, e durante todo o século

XX, a geografia sobreviveu nas universidades principalmente porque

havia se tornado uma disciplina obrigatória no sistema escolar. É tão

somente uma constatação e não uma depreciação. Cabe, ainda, deixar

claro que esse fato não diminui o valor da geografia para a sociedade e

tampouco invalida sua cientificidade, pois já vimos que esta não

consiste num padrão unívoco e, sim, numa pluralidade de

conhecimentos racionais, obtidos a partir de métodos variados, sobre

aspectos do real ou do mundo.

Retornando novamente à nossa analogia das ciências tidas como

secundárias com os países periféricos, temos que lembrar que, entre

outras coisas, estes sofrem uma carência de capitais, de investimentos

produtivos. Isso também ocorre com as referidas ciências, que sempre

dispõem de poucas verbas em comparação àquelas vistas como

centrais. Alguns falam até em big sciences (as pesquisas que são vistas

como estratégicas ou potencialmente lucrativas, que recebem

investimentos milionários) em contraponto às small sciences (as

63

Cabe recordar que a mais prestigiosa universidade do mundo, Harvard, fechou o seu departamento de geografia após a Segunda Guerra Mundial, período em que ocorreu uma grande retração desta disciplina acadêmica, com fechamento de cursos ou redução de vagas, nas principais universidades do país. Só recentemente, a partir dos anos 1990, com a volta da disciplina escolar geografia no ensino básico, em primeiro lugar (e também, secundariamente, com a crescente aceitação de um princípio holístico que busca derrubar as barreiras entre as diversas ciências), é que algumas universidades norte-americanas voltaram a abrir ou ampliar seus cursos de geografia. 64

É um modelo que, no fundo, não corresponde totalmente à realidade nem na matemática e muito menos na física, embora elas sirvam de inspiração, no qual as teorias científicas vêm primeiro e determinam a “prática”, isto é, a tecnologia, as aplicações e inclusive o seu ensino. Esse viés unilateral não vê que muitas vezes é no ensino, ou em qualquer outro tipo de “prática”, que as teorias são forjadas. E também não percebe que o ensino não se resume à transmissão dos rudimentos das ciências, mas tem outros objetivos como desenvolver no educando a sociabilidade e a criatividade, o espírito crítico, a capacidade de pensar por conta própria etc.

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ciências ou modalidades de pesquisas tidas como de pouca relevância,

que recebem minguadas verbas)65

. Nessa classificação, sem dúvida que

a geografia – como também a história, a sociologia, a antropologia etc.

– são incluídas entre as small sciences. Os gastos aqui, mesmo nos

países mais ricos, são contados em no máximo milhares de dólares,

enquanto, nas big sciences, eles atingem a casa dos milhões ou até dos

bilhões de dólares. Na pesquisa física, por exemplo, foi construído

recentemente, na Europa, um super-acelerador de partículas, o LHC

(Large Hadron Collider), com um custo estimado de 9 bilhões de

dólares. Essa é uma quantia dezenas de vezes maior que o total de

todos os investimentos dedicados às ciências humanas desde meados do

século XIX até os dias de hoje! E é apenas um experimento físico –

obviamente com prováveis aplicações tecnológicas. Embora seja um

mega-projeto, quase uma exceção, existem ainda vários outros com

gastos bastante dispendiosos: só o telescópio Hubble, já considerado

obsoleto, custou U$ 2,5 bilhões na sua construção, sem contar os

volumosos gastos com a sua manutenção; o projeto Apollo,

implementado durante 13 anos, custou cerca de U$ 23 bilhões; e várias

outras pesquisas nas ciências naturais – desde o projeto genoma até um

acelerador de partículas construído em 1999 no Texas – demandaram

orçamentos na casa dos bilhões de dólares. É evidente que esses

investimentos em pesquisas das big sciences sempre encerram

perspectivas de ganhos (econômicos ou militares) com aquisição de

tecnologia. Afinal de contas, são dispêndios compreensíveis, que bem

ou mal ampliam o conhecimento humano. Não são gastos absurdos

apesar de alguns duvidarem de sua eficácia em comparação com um

número bem maior de investimentos na pesquisa de base66

. Não se

questiona aqui esse enorme volume de recursos em determinadas

pesquisas ou explorações físicas, químicas e biológicas, mesmo que

eventualmente elas possam resultar em armamentos mais letais. O que

se evidencia é a descompassada diferença de tratamento entre as

ciências, com algumas delas – a geografia, a história, a sociologia, a

65

LINTON, J.D. Why big science has trouble finding big money and small science has difficulties finding small money. In: Technovation, vol.28, issue 12, december 2008, p. 799-801. 66

BROAD, W.J. Big Science: is it worth the price? In: The New York Times, 27/05/1990.

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Ensaios de geografia crítica

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antropologia e até a pedagogia – recebendo somente algumas migalhas.

Nesse sentido, elas de fato são ciências periféricas. E vão continuar a

ser por um bom tempo, pois o desenvolvimento de um ramo do

conhecimento depende bastante – embora não apenas, pois afinal de

contas existem inegavelmente determinadas temáticas (inclusive alguns

“falsos problemas”) nas quais despender milhões ou bilhões de dólares

seria pura perda de tempo e de preciosos recursos – do volume de

investimentos empregado nas suas pesquisas.

Como o mundo moderno continua – e provavelmente vai continuar

ainda por um longo período – a ser o mesmo, isto é, o mundo dos

Estados-nações com as suas rivalidades, do desenvolvimento material

como escopo básico, da recriação das desigualdades internacionais,

sociais, regionais e até científicas (no sentido já apontado de disciplinas

privilegiadas, ao lado de outras menosprezadas), nada indica que a

periferização da geografia seja algo cujo final esteja próximo. Oxalá o

otimismo dos adeptos do “paradigma da complexidade”, como Edgar

Morin, torne-se realidade e, com isso, as ciências de pretensão

holística, como a geografia, sejam de fato revalorizadas. Talvez isso

seja apenas um sonho, uma utopia irrealizável. Ou talvez acabe por

ganhar concretitude com a crise da modernidade, com o esgotamento

de um modelo de desenvolvimento antiecológico e gerador de

exclusões, com a crise, enfim, de um padrão de pensamento que

desvaloriza o espaço em prol do tempo, que se recusa a ver as obras

humanas – cultura, economia, instituições sociais – como parte

indissociável da evolução da mãe-Terra.

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53

Controvérsias geográficas: epistemologia e política*

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele

à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar

que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que

escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as

mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a

conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado

entre as gerações precedentes e a nossa [...] Articular

historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como

ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma

reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um

perigo. A história é objeto de uma construção cujo lugar

não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado

de “agoras”. (WALTER BENJAMIN).

A história das ciências é plena de conflitos, polêmicas, alternativas que

se contrapuseram num determinado momento. Talvez, esse seja

exatamente o âmago do desenrolar de um saber: os contextos de

indeterminação, de caminhos ou alternativas plurais que se enfrentam e

suscitam um andar, menos ou mais acelerado, neste ou naquele sentido.

O avanço do conhecimento, em especial o científico, não se faz tão

somente com a descoberta de novos aspectos da realidade, de novos

fenômenos ou de encadeamentos entre os mesmos, enfim, de novos

achados sobre o(s) objeto(s) estudado(s) – ou mesmo da (re)construção

dos objetos ou da invenção de novos. Ele também ocorre em oposição a

* Texto elaborado em 2005 e disponibilizado na revista eletrônica Confins:

http://confins.revues.org/personne1322.html?type=auteur

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modelos ou esquemas de pensamento dominantes e/ou tradicionais, no

confronto com as ideias estabelecidas e constantemente reproduzidas.

Esse processo é recorrente no desenvolvimento das ciências e existe

desde os primórdios da chamada revolução científica.

Basta lembrarmos que os primeiros cientistas na moderna acepção do

termo – Copérnico, Leonardo da Vinci, Giordano Bruno e,

principalmente, Galileu Galilei – travaram uma dura batalha contra os

procedimentos cognitivos tidos como legítimos na sua época,

procurando afirmar a racionalidade – a observação e a análise dos

fenômenos, a indução e a dedução, as inferências com base no

raciocínio lógico – contra a autoridade das escritas consideradas

sagradas ou inquestionáveis. Um eminente físico chegou inclusive a

afirmar que: “Na história da ciência, descobertas e ideias novas sempre

suscitaram debates na comunidade científica, com publicações

polêmicas a criticar as novas ideias, mas tais críticas frequentemente

servem de ajuda ao desenvolvimento do novo pensamento”1.

Em contrapartida, a história da geografia é demasiado indigente em

controvérsias, afirma-se com frequência. Um conhecido geógrafo

francês asseverou que existe uma quase total ausência de discussões

teóricas na ou sobre a geografia, que seriam substituídas pelas intrigas

de caráter pessoal:

O sistema universitário não impediu as polêmicas em

outras disciplinas. Em geografia, conflitos entre pessoas,

sim, mas nada de problemas (ou quase nada...). A

indolência dos geógrafos com relação aos problemas

teóricos, indolência que se estabeleceu entre certas pessoas

com alergia às vezes brutal, é acompanhada por uma

preocupação em evitar toda e qualquer polêmica que possa

desembocar num problema teórico2.

Apesar disso, ocorreram, sim, algumas importantes polêmicas teóricas

na geografia, embora em geral elas sejam reiteradamente omitidas ou

1 HEISENBERG, Werner. Física & Filosofia. Brasília, Editora da UNB, 1995, p.15.

2 LACOSTE, Yves. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas,

Papirus, 1988, p. 106.

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Ensaios de geografia crítica

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denegadas – ou então distorcidas –, inclusive nas melhores obras sobre

a história do pensamento geográfico. Nestas, via de regra, se despende

um enorme esforço na ênfase à filiação teórico-metodológica de tal ou

qual autor ou escola de pensamento – se positivista, historicista,

fenomenológico, dialético etc. –, construindo, assim, uma totalidade

homogênea – e, com isso, os conflitos e as tensões que poderiam

implodir essa imagem de processos aparentemente unívocos são

excluídos ou ignorados. Reconhecemos a importância desse tipo de

análise, que valoriza o contexto e as grandes “correntes de

pensamento”, procurando nelas encaixar a produção geográfica deste

ou daquele autor. Mas só isso não basta, principalmente porque esse

tipo de enfoque, mesmo que eventualmente de forma não intencional,

denega o que há de mais importante no avanço do conhecimento

científico: o pluralismo e o diálogo entre correntes de pensamento

diferenciadas. Falta o “agora” a que se refere Walter Benjamim, isto é,

o momento do relampejar no qual várias alternativas eram possíveis e

uma delas acabou predominando.

Iremos aqui retomar e reavaliar três controvérsias significativas na

história da geografia, sendo que uma delas, justamente a de maior

divulgação, foi na realidade um quiproquó, um falso debate, no qual

somente um dos dois lados divulgou a sua versão e estereotipou o

(pseudo-) opositor: a querela entre o determinismo alemão e o

possibilismo francês. As outras duas foram de fato discussões entre

oponentes que se reconheceram como tal, na qual cada um dos lados

assumiu e defendeu o seu ponto de vista: a contenda de Mackinder

versus Kropotkin a respeito do que é (ou deveria ser) a geografia; e o

célebre debate entre os neopositivistas e os neokantianos sobre o

“excepcionalismo” ou a especificidade da geografia enquanto saber

científico: se ela está voltada, no essencial, para a construção de teorias

gerais ou leis nomotéticas, ou, pelo contrário, se ela se ocupa no

fundamental em realizar estudos monográficos, numa compreensão

idiográfica sobre cada lugar ou região particular da superfície terrestre.

Essas três querelas, como procuraremos demonstrar, não são águas

passadas, isto é, problemas já resolvidos ou superados. Num certo

sentido, os tópicos que elas abordam se entrecruzam e permanecem

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atuais; mais ainda, são temas fundamentais e que por diversas

perspectivas continuam a fazer parte das grandes questões

epistemológicas e políticas da geografia.

A distinção entre determinismo e possibilismo, cabe recordar, foi

iniciada a partir de um reproche francês à obra do iniciador – ou

melhor, sistematizador – da geografia política moderna, Friedrich

Ratzel. Essa distinção – ou melhor, essa construção teórica – avançou

a partir do advento e da expansão da geopolítica e das suas pretensas

vinculações com a geografia política ratzeliana. O escrito do geógrafo

alemão que provocou essa reação francesa foi o livro Politische

Geographie, editado em 1897. Nesse trabalho, Ratzel, num certo

sentido, redefiniu ou reestruturou o estudo geográfico da política.

Mesmo não tendo sido pioneiro no uso do rótulo “geografia política”,

Ratzel sistematizou uma certa leitura da política – que muito deve ao

realismo de Maquiavel – na sua dimensão espacial ou territorial e, ao

mesmo tempo, reformulou a maneira pela qual a ciência geográfica

abordava o fenômeno político. Como observou com propriedade um

geógrafo suíço, Ratzel propôs um estudo nomotético da geografia

política3, algo bem diferente dos escritos monográficos e idiográficos

de Vidal de La Blache e discípulos sobre as regiões francesas; e nessa

empreitada ele procurou estabelecer nexos causais entre o poder

político e o espaço, ou melhor, o território. Essa obra de Ratzel suscitou

uma forte reação francesa, que pouco a pouco construiu um inimigo

teórico, a “escola geográfica determinista germânica”, que teria em

Ratzel o seu mentor.

Tanto o sociólogo Émile Durkheim4 quanto o historiador-geógrafo Paul

Vidal de la Blache5, entre 1898 e 1899 – isto é, imediatamente após a

publicação do referido livro de Ratzel e também de uma tradução para

o francês de uma espécie de resumo deste6 –, teceram ácidas críticas às

3 RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993, p. 12.

4 DURKHEIM, Émile. Morphologie sociale. I. Les migrations humaines. In: L’Année

sociologique, 1898-9, p. 550-58. 5 VIDAL DE LA BLACHE, Paul. La Géographie Politique d’après les écrits de M. Fr. Ratzel. In :

Annales de géographie, ano VII, n.32, 1898, p. 97-111. 6 RATZEL, F. Le Sol, la Societé et l’État. In : L’Année Sociologique n.III, 1898, p. 1-14. Existe uma

tradução para o português publicada na Revista do Departamento de Geografia n. 2, FFLCH-

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Ensaios de geografia crítica

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ideias ratzelianas da vinculação necessária entre o “solo” (espaço

físico, ou melhor, território) e o Estado, em especial a dependência

deste em relação àquele e o crescimento estatal sendo identificado com

a expansão territorial. Eles assinalaram um exagero e um dogmatismo

nas vinculações lógicas operadas por Ratzel, enxergando nelas um

determinismo estreito. Mas foi o historiador Lucien Febvre – um ex-

aluno e amigo de Vidal –, na sua monumental obra La Terre et

l’evolution humaine, editada em 1922, quem criou de forma mais

acabada e sistematizada a ideia da existência de duas escolas

geográficas alternativas, uma “determinista” e simbolizada por Ratzel,

e a outra “possibilista” e capitaneada por La Blache.

No ano da edição desse livro de Febvre os dois principais protagonistas

dessa trama já tinham deixado o mundo dos vivos: Ratzel viveu de

1844 a 1904 e Vidal de La Blache de 1845 a 1918. Ratzel, portanto,

nunca chegou a responder – talvez nem mesmo a ler – as críticas

francesas a respeito de sua obra. Febvre, é bom esclarecer, tinha como

escopo principal o relançamento das bases de uma “introdução

geográfica à história” (este é o subtítulo do seu livro, algo que lembra

muito a célebre introdução especial de Hegel7), numa perspectiva na

qual a geografia – o espaço, a “terra” – seria uma espécie de pré-

condição, embora simples e em geral, salvo raras exceções, sem grande

importância, a partir das quais vão se desenrolar os processos

históricos, estes, sim, ricos e complexos. Taxando a geografia humana

como uma “ciência nova” [sic!] e “auxiliar da história”, Febvre elabora

USP, 1988. Este sucinto texto de Ratzel é uma espécie de resumo da sua obra Politische Geographie, de 1897. Lógico que uma síntese empobrecida na medida em que inúmeros temas do livro – fronteiras, política territorial, grandes potências mundiais e outros – ficaram de fora. Como observou en passant Jean BERVEGIN (Déterminisme et Géographie. Les Presses de l'université Lavai, 1992, p. 4-5), parece que todas as citações de Durkheim e de Vidal coincidem com esta tradução, mesmo quando eles citam a edição original, em alemão, daquela obra seminal de Ratzel. 7 HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid, Alianza Editorial,

1982, especialmente o capítulo “La conexion de la natureza o los fundamentos geográficos de la historia universal”, pp.161-99. É interessante que Febvre em momento nenhum cita Hegel, apesar dos inúmeros pontos de contato entre a sua obra e a do filósofo alemão. Será que isso se deveu a uma certa ojeriza pela tradição germânica, em especial a que engrandece o Estado, ou pelo fato de Hegel desprezar os historiadores e a sua história, preferindo uma filosofia da História com H maiúsculo, algo transcendental e teleológico?

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José William Vesentini

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o seu trabalho com vistas a equacionar ou estabelecer três desígnios:

prescrever a geografia como uma disciplina modesta (e subordinada à

história); defendê-la das então recentes críticas de vários sociólogos

franceses (especialmente Durkheim e o grupo ao seu redor, cuja grande

expressão era o periódico L’Année sociologique), que encaravam a

geografia humana como “imperialista” por invadir o campo de estudos

da sociologia e pretender explicar tudo pelas condições geográficas8; e,

por fim, retomar a antiga discussão – que pode ser encontrada em

inúmeros pensadores clássicos, desde Hipócrates até Hegel, passando

por Montesquieu – a respeito da influência das condições geográficas

(especialmente o clima) sobre a história da humanidade. Neste último

item, Febvre assume uma postura ambiciosa, semelhante à de Hegel,

com a diferença que este valorizava a filosofia (só o filósofo capta a

lógica da História, apenas ele poderia teorizar com propriedade; o

historiador seria exclusivamente um cronista que relata os fatos);

logicamente que Febvre enaltece a história e os historiadores (eles é

que poderiam teorizar de forma científica sobre as relações entre os

processos histórico-sociais e o meio ambiente; o geógrafo seria tão

somente um descrevedor de paisagens, um auxiliar que realiza estudos

monográficos sem nenhuma pretensão de teorizar ou “invadir o terreno

da história”).

Frente a isso, fica evidente a preferência de Febvre pelo tipo de

geografia humana praticada por Vidal – os estudos monográficos, nos

quais há pouca ou quase nenhuma teorização de natureza geral –, assim

como a sua clara aversão pela tentativa ratzeliana de construir teorias e

“leis” gerais a respeito das inter-relações entre o Estado, a sociedade e

o espaço geográfico. A propósito do primeiro, Febvre reproduziu com

concordância a seguinte afirmativa: “Vidal de La Blache disse que a

defesa contra o espírito de generalização prematura é realizar estudos

analíticos, monografias nas quais as relações entre as condições

geográficas e os fatos sociais sejam considerados in loco, em um

8 Entre os sociólogos mencionados por Febvre que criticaram veementemente a geografia

humana – e não apenas a de Ratzel, o alvo principal, mas também obras de Jean Brunhes, Camille Vallaux, Albert Demangeon e outros –, encontram-se principalmente F. Simiand, M. Mauss e M. Halbwachs, além do próprio Durkheim. Cf. FEBVRE, L. La Tierra y la evolución humana. Introducción geográfica a la historia. Barcelona, Editorial Cervantes, 1925, p. 25-35.

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Ensaios de geografia crítica

59

campo bem escolhido e delimitado”9. Mas, em relação ao geógrafo

alemão, ele é impiedoso: “Ratzel, dominado pelo seu parti pris de

antropogeógrafo e por suas preocupações de origem mais política do

que científica, que em certos momentos fazem a sua mais recente e

menos fecunda obra, Politische Geographie, parecer uma espécie de

manual do imperialismo alemão”10

. E no último capítulo do livro ele

esclarece que:

Que não nos pergunte, pois, por que contraditoriamente

defendemos a geografia humana contra as críticas da

morfologia social [a sociologia de Durkheim e discípulos],

ou, mais exatamente, reivindicamos para ela o direito de

uma existência livre e independente [...] e agora dedicamos

todo um esforço na sua crítica. Nossas críticas se dirigem

não contra a geografia humana em geral e, sim, contra uma

concepção viciada e pueril de seu papel e de seus meios.

[...] Nunca cansaremos de repetir que a geografia não tem

por objeto investigar as ‘influências’ da Natureza sobre o

Homem, como se diz, ou do Solo sobre a História. Essas

palavras com maiúsculas não tem nada a ver com um

estudo sério. E ‘influência’ não é uma palavra científica e,

sim, astrológica. Que ela fique, pois, de uma vez para

sempre, com os astrólogos e outros charlatães11

.

O contexto histórico da época é imprescindível para explicamos o

surgimento, a expansão e a popularização dessa construção teórica. Em

primeiro lugar, cabe lembrar da secular rivalidade franco-alemã (ou

prussiana) no crepúsculo do século XIX, com a derrota francesa em

1871, fato ainda dolorosamente nítido na consciência de Vidal e de

Durkheim, que o vivenciaram. Em segundo lugar, a Primeira Guerra

Mundial, que mais uma vez colocou a França e a Alemanha em lados

opostos. E, em seguida, a ascensão do nazismo e a criação e notável

difusão da “geopolítica alemã” dos anos 1920, 1930 e 1940, em

especial ao redor da Zeitschrift fur Geopolitik (Revista de Geopolítica),

9 FEBVRE, L. Op.Cit., p. 489.

10 Idem, p. 57.

11 Idem, p. 477-79.

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José William Vesentini

60

editada pelo general Karl Haushofer, que contou com a colaboração de

inúmeros geógrafos (embora também historiadores, cientistas políticos,

militares, juristas etc), os quais, por diversas vezes e de diferentes

maneiras, reproduziram ou se apropriaram de determinadas ideias

ratzelianas, forneceram mais lenha para a fogueira das críticas à escola

determinista germânica e a sua natureza “mais político-ideológica do

que científica”.

O clima de rivalidade, de disputa de poder entre França e Alemanha,

além do fato de que os colaboradores daquele periódico frequentemente

repercutiam as ideias nazistas de uma “raça ariana superior” e do

“destino manifesto” da Alemanha em se tornar uma grande potência

mundial, foram elementos determinantes no desenrolar dessa

construção segundo a qual existiria uma escola geográfica determinista

e que ela teria gerado a geopolítica de Haushofer e seus colaboradores.

Até mesmo um importante geógrafo alemão da época, Leo Waibel, que

fugiu de seu país devido ao regime nazista e se exilou nos Estados

Unidos (embora tenha vivido alguns anos no Brasil), no afã de desancar

aquela geopolítica germânica bastante identificada com o totalitarismo,

acabou meio apressadamente rotulando-a como um “produto da escola

geográfica determinista” e bastante diferente de outra abordagem

geográfica mais aberta e liberal, que a seu ver não seria tanto

simbolizada por Vidal de La Blache e, sim, pelo seu mestre Alfred

Hettner12

.

A partir daí, e em especial com o desfecho da Segunda Guerra

Mundial, essa identificação do determinismo com a geopolítica e desta

última com os regimes totalitários acabou por predominar durante

algumas décadas, sendo repetida, embora com algumas nuanças, por

importantes geógrafos como Jean Gottman, Camille Vallaux, Pierre

George e inúmeros outros autores, inclusive não geógrafos

(historiadores, cientistas políticos, sociólogos), tanto na França como

em outros países – principalmente latinos –, como o Brasil, a Espanha,

o México, a Argentina etc.

12

WAIBEL, L. Determinismo geográfico e geopolítica. In: Boletim Geográfico. Rio de Janeiro, IBGE, 1961, n.164, p. 613-7.

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Ensaios de geografia crítica

61

Sem dúvida que aquela geopolítica alemã dos anos 1920, 1930 e 1940,

de uma maneira geral, foi racista e dogmática, além de manifestar uma

clara simpatia pelo nazi-facismo. E também é inegável que podemos

encontrar facilmente nas obras de Ratzel, notadamente naquele

mencionado livro de 1897 e também na obra anterior

Antropogeografia, uma série de afirmações que exageram a

importância do tamanho do território para o poderio de um Estado-

nação, as quais, mesmo tendo um fundo de verdade, inflam demais o

peso do espaço físico para o advento e o desenvolvimento da

civilização e, em particular, do Estado moderno, visto por Ratzel como

o coroamento do processo civilizatório. Mas esse rótulo

“determinismo” seria de fato apropriado para Ratzel e, mais ainda, para

toda a tradição geográfica alemã do final do século XIX e da primeira

metade do século XX? Afinal de contas, o que significa determinismo

do ponto de vista epistemológico?

Claude Raffestin reproduz e concorda com a afirmativa de René

Thom, que prefaciou a célebre obra de Laplace – Ensaio filosófico

sobre a probabilidade –, segundo a qual “A ciência é determinista” na

medida em que busca uma ordem, uma regularidade, um encadeamento

entre os fenômenos, uma forma mesmo que complexa de causalidade,

sem a qual o conhecimento científico não seria possível13

.

Quando lemos algum físico teórico importante – Einstein, Max Plank,

Hawding ou até mesmo Heisemberg – logo constatamos que eles

aceitam tranquilamente o que denominam “princípio do determinismo”,

segundo o qual as coisas e os fenômenos são encadeados ou se

influenciam mutuamente, que existem causas – mesmo que por vezes

probabilísticas – e efeitos, razões e consequências. É evidente que o

determinismo absoluto de Laplace, segundo o qual seria possível

conhecer tudo, inclusive o passado e o futuro, desde que se dispusesse

de todas as informações pertinentes, de toda a rede das forças e das

causas que agem no universo, é algo no mínimo duvidoso. Mas o

princípio do determinismo ou causalidade continua a ser aceito pelas

ciências naturais e, em grande parte, apesar de certas nuanças, até

13

RAFFESTIN, C. “Préface”. In: BERGEVIN, J. Déterminisme et Géographie. Les Presses de l'université Lavai, 1992, p. I-XII.

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mesmo pelas ciências humanas. Nas ciências naturais ele foi abalado

pelas relações de incerteza que existem na microfísica, ou o princípio

da indeterminação de Heisemberg, mas continua a ser uma espécie de

norte ou axioma básico14

. Nas ciências humanas e sociais esse

princípio determinista sempre foi amenizado pela questão do livre

arbítrio humano, da natureza original dos seres humanos, que podem

criar coisas novas e decidir entre alternativas possíveis sem se

submeterem a leis férreas e inquebrantáveis. Mas amenizado não quer

dizer anulado e, mesmo no estudo do social-histórico, existe a

preocupação com a busca das “determinações” de um acontecimento ou

de um processo, ou seja, aquele conjunto de fatores que o originaram

e/ou que o explicam. Dessa forma, a discussão mais pertinente aqui não

é sobre o “princípio da determinação” em si, pois sem ele a ciência, tal

como a conhecemos hoje e desde Galileu Galilei, não seria possível,

mas, sim, sobre o caráter ou a substância dessas determinações ou

relações causais. Alguns cientistas e filósofos – os chamados “realistas”

– pensam que elas seriam inerentes ao real, ao mundo, às coisas e

fenômenos. Outros – os “idealistas” –, afirmam que, no final das

contas, elas, essas determinações, seriam um produto da nossa lógica

ou da nossa linguagem, mas que, mesmo assim, seriam imprescindíveis

para se conhecer e agir no mundo15

.

O que se criticou muito em Ratzel – e também, ou principalmente, em

autores que se proclamavam como seus discípulos, como a geógrafa

norte-americana Ellen Semple – foi um determinismo exagerado e

estreito, que não buscava explicações complexas e, sim, uma causa

única e unilateral, que via apenas a importância do meio físico para a

sociedade e não valorizava a criação humana em si, a tecnologia e a

(re)produção da natureza. Mas a critica a esse determinismo estreito –

ou visão unilateral, como preferimos – considerou toda a busca de

determinações espaciais como equivocada, algo absurdo e sem sentido

14

Cf. HAWDING, S. W. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro, Rocco, 1988, p. 87. Cabe ainda lembrar a famosa frase de Einstein: “Deus não joga dados”, pela qual o eminente físico reafirmava a validade do determinismo, mesmo com a introdução do princípio de indeterminação na física quântica. 15

Cf. BERVEGIN, op. cit., p. 15, que reproduz sobre isso uma frase de Ludwig Wittgenstein: “O mundo é constituído de fatos no espaço lógico”.

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Ensaios de geografia crítica

63

do ponto de vista científico. E a contraposição a isso, o chamado

possibilismo, pouco acrescentou a uma antiga discussão filosófica e

científica sobre a originalidade do ser humano, sobre o livre arbítrio e a

sua liberdade de criar e fazer coisas novas.

Desde no mínimo Maquiavel, o criador ou sistematizador da concepção

moderna de política (e da relativa autonomia do político em relação ao

divino, aos fenômenos físicos, à economia etc), por sinal um autor

importante para a obra de Ratzel, que essa questão a respeito do que o

ser humano cria e o que determina a sua ação já vinha avançando

bastante. “Julgo feliz aquele que sabe combinar as suas ações com o

sentido [ou ‘as determinações’] do seu tempo”, afirmou Maquiavel em

O Príncipe, acrescentando ainda que, em parte, os acontecimentos

(políticos) decorrem de circunstâncias externas e, em parte, do livre

arbítrio do(s) sujeito(s) que age(m)16

.

Ora, seria justamente esta a questão que permitiria a Vidal de La

Blache ou a Lucien Febvre se contraporem ao raciocínio causalístico

unívoco que detectaram em Ratzel, complexizando as “causas” ou

motivos das ações ou dos processos políticos – tal como a “evolução

dos Estados”, um dos temas prediletos de Ratzel – e incluindo aí o

livre arbítrio dos seres humanos, a tensão entre a lógica (as

determinações) e a política ou o acaso (as indeterminações, a produção

do novo). Mas, ao invés de trilhar esse caminho – algo que exigiria um

maior esforço intelectual, além de uma aceitação parcial da abordagem

ratzeliana –, eles preferiram a cômoda atitude de rotular o geógrafo

germânico como “determinista”, ignorando a importância do princípio

do determinismo para a ciência moderna, e contrapor a isso uma

inopiosa perspectiva “possibilista”.

Tão somente repetir que as condições geográficas oferecem

“possibilidades”, e que o Homem as aproveita desta ou daquela

maneira, não produz nenhum avanço no conhecimento científico e

tampouco nessa clássica problemática filosófica sobre o maior ou

menor peso das determinações (que não são apenas naturais, diga-se de

passagem) frente à indeterminação ou o livre arbítrio do ser humano.

16

MAQUIAVEL. O Príncipe. São Paulo, Abril Cultural, 1979, col. Os Pensadores, p. 103.

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Um geógrafo inglês, numa obra recente, chegou a afirmar que: “A

crítica exarcebada ao ‘determinismo geográfico’ obnubilou ou

obscureceu a análise das influências do ambiente sobre o social”17

. E

um professor de história econômica na Universidade de Harvard, que

nos anos 1990 publicou um importante livro sobre as causas da riqueza

e da pobreza das nações, comentou que a geografia produziu um

escasso material sobre as possíveis influências da localização, do meio

físico etc, no desenvolvimento de determinados países (Inglaterra,

Estados Unidos, Alemanha) em contraponto ao pouco desenvolvimento

de outros (as nações africanas, por exemplo), provavelmente devido à

forte (auto) repressão que sofreu (ou se impôs) a partir dos exageros

“deterministas” de autores como Ellen Semple, que por sinal também

foi professora nessa mesma universidade norte-americana, que depois

dela – ou devido a ela – fechou o seu curso de geografia18

.

Enfim, acreditamos que essa oposição entre uma geografia determinista

e outra possibilista é e sempre foi algo sem sentido do ponto de vista

epistemológico (embora, como já vimos, tenha tido um forte sentido

para os seus protagonistas sob o aspecto da ideologia nacionalista e até

mesmo da defesa de interesses corporativistas), que mais atrapalhou do

que ajudou no desenvolvimento da ciência geográfica. Mas a

problemática real que perpassa toda essa querela – aquela do livre

arbítrio humano versus as determinações ou o contexto (ambiental e

social) – ainda continua de pé; ela prossegue sem ter incorporado

grandes avanços. Num certo sentido, ela retornou ou reapareceu

naquela controvérsia ocorrida nos Estados Unidos nos anos 1950, na

qual Fred Shaefer se opôs a Richard Hartshorne e a grande questão em

debate era sobre que forma de conhecimento a geografia é, se

idiográfica ou nomotética.

Esse debate entre Shaefer e outros contra Hartshorne passou para a

história da geografia como a questão do “excepcionalismo”, numa clara

demonstração de que os vencedores deixam a sua marca ou o seu rótulo

na memória coletiva. Essa qualificação, na verdade, foi uma forma de

simplificar e estereotipar o pensamento de Hartshorne, o grande nome

17

UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 262. 18

LANDES, P. Riqueza e a pobreza das nações. Rio de janeiro, Editora Campus, 1998, p. 1-16.

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Ensaios de geografia crítica

65

da geografia norte-americana desde o final dos anos 1930 até inícios da

década de 1960, o qual nessa querela foi identificado com o status quo,

como um conservador que não admitia a renovação quantitativa e

cientificista na sua disciplina. Só que a questão é mais complexa e, no

fundo, ela envolve duas aporias: a natureza da geografia como ciência

(se idiográfica ou nomotética) e a utilidade da geografia, a

possibilidade de se construir um saber geográfico essencialmente

pragmático e preditivo.

Fred Shaefer iniciou essa controvérsia com o seu famoso artigo no qual

cognominou de “excepcionalismo” a abordagem corológica na

geografia, então defendida entre outros por Hartshorne (mas que, num

certo sentido, também era a de Vidal de La Blache e, sem dúvida

alguma, a de Hettner), pela qual o objetivo desta ciência seria não o de

estabelecer leis gerais e, sim, conhecer casos (regiões, lugares)

particulares. Retomemos um importante trecho desse autor:

O pai do excepcionalismo é Immanuel Kant. Mesmo sendo

considerado como um dos grandes filósofos do século

XVIII, Kant foi um geógrafo medíocre quando comparado

aos seus contemporâneos ou mesmo a Bernardo Varenius,

que morreu mais de um século e meio antes dele. Kant

produziu a sua asserção excepcionalista não somente para

a geografia, mas também para a história. Segundo ele, a

história e a geografia encontram-se numa posição

excepcional, diferente das chamadas ciências sistemáticas

[...] Ritter usou essas ideias, assim como Hettner e

finalmente Hartshorne. [...] O que os cientistas fazem é

[...] aplicar em cada situação concreta todas as leis que

envolvem as variáveis que eles consideram como

relevantes. As regras pelas quais essas leis são

combinadas, o que é livremente chamado interações das

variáveis, estão elas mesmas entre as regularidades que a

ciência tenta descobrir. Não há nenhum desafio, como

imagina Hartshorne, para o cientista social produzir uma

lei singular que poderia explicar a complexidade da

situação do porto de Nova Iorque. Uma descrição dessa

situação é única no óbvio senso que nunca haverá uma

região ou localidade exatamente como Nova Iorque com

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todos os serviços que fornece para o seu entorno. Nunca

haverá uma lei para um caso assim. Pois, que importância

teria uma lei que levasse em conta somente um caso? Mas,

por outro lado, a geografia urbana atualmente conhece

alguns princípios sistemáticos, os quais, aplicados ao porto

de Nova Iorque, podem explicar, não tudo mas alguma

coisa, sobre a estrutura e as funções dessa realidade. Esse é

o ponto. Ou devemos desistir de explicar porque nós não

podemos explicar todas as coisas? Nesse ponto a geografia

encontra-se na mesma situação das outras ciências sociais.

Ou devemos rejeitar a sociologia porque a predição sobre

o resultado das eleições não é ainda tão confiável como

alguns gostariam, ou porque não podemos assegurar com

certeza se em cinco anos a Argentina terá uma ditadura ou

uma democracia? [...] Qualquer um que rejeite o método

científico em qualquer área da natureza, rejeita por

princípio a possibilidade de predição. Em outras palavras,

rejeita o que é normalmente conhecido como

determinismo científico. A atitude intelectual por trás

dessa atitude na maioria dos casos é alguma versão da

doutrina metafísica do livre arbítrio. [...] Se

determinismo é entendido como a existência generalizada

de leis na natureza, sem nenhuma ‘exceção’, então essa é a

base comum de toda a ciência moderna. [...] O que

podemos inferir disso tudo sobre o futuro da geografia?

Parece-me que, desde que os geógrafos cultivem os

aspectos sistemáticos da sua disciplina, a geografia é uma

ciência como outra qualquer. Todas as formas de leis que

distinguimos contêm fatores espaciais. [...] [Mas] eu não

sou otimista no caso da geografia rejeitar a busca de leis,

exaltando os aspectos regionais e graças a isso limitar-se a

uma mera descrição. Neste caso, os geógrafos sistemáticos

deverão se encaminhar para e finalmente até se integrar

nas ciências sistemáticas19

.

O que salta à vista nesse texto, no qual se critica uma tradição

geográfica que vai de Kant até Hartshorne, passando por Hettner, Vidal

19

SHAEFER, F.K. “Exceptionalism in geography: a methodological examination”. In Annals of the Association of American Geographers, n.43, 1953, p. 226-49. Os grifos são nossos.

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Ensaios de geografia crítica

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de La Blache, Leo Waibel e outros, é a defesa absoluta do princípio do

determinismo “sem nenhuma exceção”, chegando-se ao absurdo de

considerar o livre arbítrio humano como uma mera “doutrina

metafísica”. Existe aí uma influência explícita de Karl Popper20

, o qual,

naquele momento (Popper sofisticou o seu ponto de vista mais tarde,

após os debates com a Escola de Frankfurt nos anos 196021

), encarava a

física como o modelo por excelência a ser seguido por qualquer

disciplina que almejasse o status de ciência. Cabe esclarecer que

Popper pessoalmente não se envolveu nessa querela – e,

provavelmente, nem tomou conhecimento dela. Acreditamos inclusive

que ele teria certa afinidade teórica com o igualmente neokantiano

Hartshorne. Mas a epistemologia popperiana, na sua leitura por Shaefer

auxiliado por Bergmann, serviu como instrumento na luta contra as

ideias de Hartshorne. Não existiriam diversidades no real e, portanto,

tampouco nas ciências, nas quais deveria haver um “método” unitário,

um paradigma único de busca de leis ou princípios lógico-matemáticos,

de preferência construídos de forma dedutivista – a indução e a ênfase

no empírico em si eram menosprezados. Admitia-se que a ciência

nunca conheceria tudo ou a “essência” das coisas – tal como na

imagem kantiana do navegante que se orienta pela estrela Polar sem

nunca a alcançar –, mas acumularia gradativamente um rol de

conhecimentos (ou melhor, de leis e teorias) que permitiriam uma

previsão cada vez mais apurada dos fatos, advindo daí uma forte recusa

em analisar os casos particulares ou únicos, que só teriam algum

sentido se incorporados num esquema ou numa teoria classificatórios.

As teorias ou “leis” nomotéticas, destarte, deveriam necessariamente

desembocar numa forma de previsão e qualquer conhecimento que não

atendesse a esse requisito seria não-científico22

.

20

O autor submeteu o texto, antes da publicação, à leitura e sugestões do filósofo (e seu amigo) Gultav Bergmann, um discípulo (e ex-aluno) de Karl Popper. 21

Cf. ADORNO, T., POPPER, K. e Outros. La disputa del positivismo em la sociologia alemana. México, Ediciones Grijalbo, 1973. 22

“Há um critério para se determinar o caráter ou status científico de uma teoria? [...] Afirmo que o critério para se estabelecer o status científico de uma teoria é a sua refutabilidade ou a sua testabilidade. Uma teoria que não é testável não é científica. Toda ‘boa’ teoria científica implica numa proibição: proibição de que ocorram certas coisas.” (POPPER, K. El desarrollo del conocimiento cientifico. Buenos Aires, Paidos, 1967, p.43-7).

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68

Todavia, fica aqui uma dúvida: e se alguma região ou aspecto do real

não atender a essa exigência, se em determinado campo do

conhecimento não for possível construir leis dedutivistas ou tentar

prever que tal fato poderá ou não ocorrer?

A resposta a isso é simples: quanto um conhecimento, tal como a

geografia tradicional, não corresponder a esse paradigma, não puder

construir leis dedutivistas ou preditivas, então ele não é científico, tal

como afirmou Shaefer. Por sinal, foi exatamente esse o “julgamento”

que Popper fez em relação à psicanálise e a todo estudo do inconsciente

humano, para mencionarmos apenas um exemplo23

.

Também se encontra nesse texto uma desvirtuação dos “oponentes”,

começando por Kant e terminando com Hartshorne, sendo este o

principal alvo das críticas. Ignora-se, provavelmente de forma

deliberada, que esses autores jamais advogaram um “excepcionalismo”

puro e simples (isto é, um caráter único, completamente diferente de

todo o restante, como se esse restante – isto é, a ciência – fosse

homogêneo) para a geografia ou a história, mas, sim, uma ênfase na

complexidade e na diversidade do real e, portanto, das ciências. Basta

recordarmos aqui um texto de Hartshorne, no qual ele afirma que mais

útil do que inquirir “se a geografia é uma ciência” seria refletir sobre

“que tipo de ciência é a geografia”, numa evidente percepção de que a

realidade não é a mesma em todas as suas manifestações e, dessa

forma, existiriam ciências (no plural) e não “a” ciência24

.

23

POPPER, K. Op. Cit., p.44-6. 24

“Podemos substituir a indagação ‘A geografia é uma ciência?’, pela pergunta muito mais útil: ‘Que espécie de ciência é a geografia?’ A geografia é um campo cuja matéria inclui a maior complexidade de fenômenos, e, ao mesmo tempo, preocupa-se, mais do que a maioria das demais ciências, com o estudo de casos individuais – dos inumeráveis lugares do mundo e do próprio caso ímpar do [nosso] mundo. Por essa razão, a geografia é menos capaz do que muitas outras ciências de elaborar e empregar leis científicas. Mas, não obstante isso, a exemplo de outros domínios científicos, ela preocupa-se em elaborar leis na medida do possível.” (HARTSHORNE, Richard. Questões sobre a natureza da geografia. Rio de Janeiro, IPGH, 1969, p. 228-9). Esta obra de Hartshorne, originalmente publicada em 1959, foi uma resposta a determinadas críticas – principalmente as de Shaefer e seguidores – feitas ao seu monumental trabalho de 1939, The Nature of Geography.

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Ensaios de geografia crítica

69

O que na realidade Kant asseverou, por sinal de forma bastante

razoável, foi que existem diversas formas de conhecimento, do artístico

ao filosófico, do científico (que pode ser mais ou menos nomotético ou

idiográfico, e nunca exclusivamente uma coisa ou outra) ao senso

comum, etc, e eles não são estanques ou sequer hierarquizados. Nem

Kant e tampouco Hartshorne afiançaram que a geografia seria uma

saber totalmente idiográfico; eles apenas admitiram que a realidade

estudada pela geografia, e principalmente pela história, tem muito de

particular ou de irrepetível (não recorrente) e, dessa forma, cabe

utilizar, embora não de maneira única ou exclusiva, uma abordagem

idiográfica. Mas existe no texto de Schaefer uma aversão pela

monografia, por qualquer estudo aprofundado sobre uma realidade

específica nas suas determinações (e indeterminações) particulares: isso

é visto como uma mera “descrição” (e não uma explicação), numa total

desvalorização não apenas da geografia regional, mas também da

biologia, embora de forma inconsciente na medida em que o seu

inspirador, Popper, pelo menos até aquele momento, nunca havia

estudado seriamente outras ciências naturais além da física e em

particular as teorias de Einstein. De maneira até mesmo hilária, no final

do seu afamado texto, Shaefer ameaça abandonar à sua própria sorte a

geografia regional – ou a perspectiva geográfica que “exalta os aspectos

regionais” –, caso ela não mude radicalmente, e se juntar de vez ao time

dos cientistas sistemáticos (ele pensava em especial na economia, vista

pelos neopositivistas como a ciência social mais próxima do seu

arquétipo de cientificidade).

Uma questão essencial nesse debate é sobre a existência de uma ciência

no singular – com um “método” universal – ou de diversas ciências no

plural. Ou, sob um outro ponto de vista complementar, sobre a

existência de uma só realidade, com “leis” universais e invariáveis, ou

realidades que possuem especificidades com lógicas relativamente

diferentes. Na sua resposta ao texto de Schaefer, Hartshorne colocou

muito bem o problema:

O fato de a geografia constituir um dos campos do

conhecimento em que uma soma relativamente grande de

esforços é empregada no estudo de casos individuais, e

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José William Vesentini

70

não na tentativa de elaborar leis científicas, tem

preocupado os críticos, em nosso meio, há mais de meio

século [...] Não há dúvida que todos nós podemos

concordar com Hettner, que a ciência não há de permitir

que o conceito do livre arbítrio a impeça de procurar

determinar as causas das ações humanas ao máximo de sua

capacidade como ciência [...] [Todavia] afirmar que a

ciência refutou a possibilidade de um certo grau de livre

arbítrio, ou que se pode esperar que ela venha refutar essa

possibilidade, seria pretender saber o que não podemos

conhecer. [Muitos] aferram-se ao determinismo científico

como um artigo de fé filosófica que deve ser defendido na

qualidade de alicerce do qual depende a estrutura da

ciência. Qualquer sugestão de dúvida, a menor presunção

de que existe a possibilidade do livre arbítrio, deveria, por

conseguinte, ser atacada com veemência e escárnio como

sendo anticientífica [...] A nossa conclusão é a seguinte:

quer pelo fato de que um certo grau de livre arbítrio é uma

realidade, quer pela circunstância de que jamais

poderemos conhecer de maneira completa os fatores e

processos que determinam as decisões humanas

individuais, sempre há de permanecer uma área oculta em

qualquer estudo no campo das ciências sociais, que não

poderá ser explicado por leis científicas. Em resumo, como

afirma Allix, ‘o único determinismo verdadeiro é o

estatístico’. Mas em muitos aspectos da ciência importa

conhecer determinados casos individuais. As mais

fidedignas estatísticas de mortalidade não serão capazes de

dar uma resposta à secular pergunta de quem indaga:

‘quanto tempo de vida eu ainda terei?’[...] Asseverar,

como fazem alguns, que a formulação de leis científicas

constitui o propósito final da ciência, é confundir os meios

com o fim. O propósito da ciência é compreender o

universo ou a realidade, com o maior grau de

fidedignidade possível. Embora os cientistas do século

XIX confiantemente esperassem que todo o conhecimento

da realidade seria em breve organizado segundo leis

gerais, nenhum domínio logrou reduzir todos os seus

resultados a esses termos, e não podemos hoje prever que

isso jamais seja possível [...] A geografia busca descrever

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Ensaios de geografia crítica

71

e classificar fenômenos, estabelecer, sempre que possível,

princípios lógicos ou leis gerais, alcançar o máximo de

compreensão sobre as inter-relações entre esses fenômenos

e organizar esses resultados em sistemas ordenados25

.

Apesar da visão, a nosso ver, limitada que Hartshorne tinha da

geografia – como uma ciência corológica, que estuda as diferentes

áreas ou regiões da superfície terrestre (perspectiva que também

encerra um elemento de verdade, embora não dê conta de toda a

produção geográfica passada, presente ou em devir) –, temos que

concordar com ele que a função primordial da ciência não é estabelecer

“leis” gerais e, sim, conhecer a realidade. Determinadas “leis” ou

princípios lógicos até podem ter – e têm efetivamente – o seu lugar,

dependendo da realidade estudada. Mas elas são instrumentos do

conhecimento, em contextos nos quais isso é possível, e não o seu

objetivo primordial. A realidade ou o “mundo” no sentido geral, enfim

tudo o que existe e/ou que pode ser conhecido, é complexo e

multifacetado e nada nos garante que um método adequado para uma

área do conhecimento também o seja para outra diferente.

Um dos principais dogmas do positivismo, em todas as suas vertentes

(inclusive em determinados meios “dialéticos” ou marxistas), é a

crença de que existe um único método válido para todos os aspectos da

realidade, para todo o conhecimento científico. A ciência atual caminha

numa direção oposta a essa, numa aceitação da pluralidade – de

métodos e de procedimentos, de formas de conhecimento ou de

explicações – do real, conforme atesta um importante filósofo:

Se o método, no sentido profundo do termo, pudesse ser

unificado por toda a parte, a diversidade de regiões [do

real, do conhecimento] se reduziria a uma diversidade

simplesmente aparente [...] Uma tal unificação mais ou

menos direta dos métodos parece fora de questão hoje,

talvez para sempre. Não é nem mesmo possível considerá-

25

HARTSHORNE, op. cit., p. 222-6.

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José William Vesentini

72

la dentro do domínio antropológico [isto é, nas ciências

humanas]26

.

Nessa mesma perspectiva, um conhecido especialista em filosofia da

ciência argumentou que existem ciências, no plural, e não apenas uma

ciência27

.

No entanto, a despeito da flagrante debilidade do ponto de vista de

Schaefer e demais neopositivistas, que no fundo advogavam uma

geografia pragmática e voltada para o planejamento (não podemos

esquecer que vivíamos então na época áurea do capitalismo

keynesiano), o fato é que esse viés tornou-se vencedor naquele

momento e logrou uma profunda repercussão no desenrolar da

geografia, em especial na anglo-saxônica. A partir daí a abordagem

regional na geografia sofreu um enorme declínio, da mesma forma que

as tentativas de integrar o natural com o social. A geografia norte-

americana, dos anos 1960 em diante, procurou imitar o exemplo das

ciências sociais e, em especial, o da economia, tornando-se numa

espécie de prima pobre da “economia espacial”. O discurso sobre o

espaço como categoria abstrata substituiu as análises dos fenômenos na

sua dimensão espacial.

Mencionando um exemplo bastante significativo, David Harvey,

provavelmente o nome mais conhecido da escola geográfica anglo-

saxônica desde os anos 1970, mesmo tendo nas suas palavras operado

um deslocamento de uma abordagem “liberal” até uma “marxista”28

,

nunca deixou de lado uma percepção de ciência com uma forte

influência do artigo de Schaefer. A sua concepção de pesquisa,

inclusive após ter optado pelo marxismo, continua sendo a de aplicar

“o” método científico, no singular (só que agora usando menos a

matemática, como uma linguagem unificadora, e mais o materialismo

histórico, com a mesma função), sem nunca aprofundar as

determinações concretas de qualquer situação específica – isto é, sem

nunca encarar um processo, um lugar ou uma obra (um edifício, por

26

CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto/1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 214. 27

GRANGER. G. G. A ciência e as ciências. São Paulo, Editora da Unesp, 1994. 28

HARVEY. D. A justiça social e a cidade. São Paulo, Hucitec, 1980, p. 7.

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Ensaios de geografia crítica

73

exemplo) em sua singularidade mesmo que contextualizada – e sempre

tentando elaborar “leis” ou conceitos gerais que dêem conta de tudo

num mesmo esquema. O seu entendimento, expresso numa obra

clássica de 1969, com ligeiras alterações, continua a nortear a sua

produção em temas como a justiça social ou a condição pós-moderna:

Os geógrafos tiveram grandes dificuldades para libertar-se

dessa forma particular de explicação [o método

idiográfico] [...] A tese kantiana supõe também que o

espaço pode ser examinado, e os conceitos espaciais

desenvolvidos, independentemente do seu conteúdo. O que

é lamentável é que essa afirmação de um espaço absoluto

não tenha sido explicitamente discutida e reconhecida

como uma das proposições básicas da tese kantiana [...]

Podemos concluir que a geografia é escassa em teorias e

muito rica em fatos. Podemos afirmar que as leis

[científicas] podem ser estabelecidas tanto na geografia

física quanto na humana [...] O complicado e multivariado

sistema que os geógrafos tentam analisar (sem as

vantagens do método experimental) é difícil de manejar. A

teoria, em última instância, requer o uso da linguagem

matemática, pois somente se pode manejar a complexidade

de interações de forma consistente usando semelhante

linguagem. A análise dos dados requer um computador

rápido e métodos estatísticos adequados, e a verificação

das hipóteses também requer métodos. A incapacidade dos

geógrafos em desenvolver teorias reflete em parte um

lento crescimento dos métodos matemáticos apropriados

para tratar os problemas geográficos. Os deterministas

realizaram toscos intentos de explicação sistemática,

porém nos anos 1920 caíram em desgraça29

.

29

HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres, Edward Arnold, 1969, p. 64-8. Também RAFFESTIN (Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993, p.23-4) vai por um caminho semelhante, afirmando que o grande problema de Ratzel na sua tentativa de superar a abordagem idiográfica e estabeler “leis” era a fragilidade dos métodos estatísticos da sua época.

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74

Percebe-se nessa fala uma recusa em distinguir a realidade natural da

social e uma total desconsideração pela questão do livre arbítrio do ser

humano, além do fato – muito estranho para quem apregoa estar

considerando não mais o “espaço absoluto” de Newton e de Kant, mas,

sim, o “espaço relativo” de Einstein – de ignorar completamente a

problemática da indeterminação de certos processos (inclusive físicos,

tal como enuncia o “princípio da indeterminação” de Heisenberg30

, que

mesmo a contragosto Einstein referendou).

Até mesmo nos seus trabalhos mais recentes, por sinal de excelente

qualidade, prevalece um esquematismo lógico-formal que denega as

contradições inerentes e as indeterminações do(s) objeto(s) estudado(s),

nos quais a “justiça social” é subsumida a uma problemática de

“produção e distribuição” (ignorando assim as contradições históricas

e, principalmente, as lutas sociais que determinam a sua realidade

específica em tal ou qual contexto), e a “dualidade” entre modernidade

e condição pós-moderna é vista como reflexos da produção fordista

(estandardizada, baseada na economia de escala, etc.) e da produção

flexível (economia de escopo, descentralização e diversidade, etc.)31

.

Enfim, a tentativa de superação da abordagem idiográfica, a

exorcização do original ou do singular32

, resultou, em grande medida,

30

“Na mecânica quântica as relações de incerteza impõem um limite máximo definido na precisão com que posição e momento linear, ou tempo e energia, podem ser medidos simultaneamente. Como uma separação infinitesimalmente estreita significa uma imprecisão infinita com respeito às posições no espaço-tempo, os momentos lineares ou as energias ficam completamente indeterminados.” (HEISENBERG, op. cit., p. 123). 31

Cf. HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992. Nessa importante obra, talvez o livro (acadêmico) de geografia com maior difusão internacional nos últimos 20 anos, o autor consegue discorrer sobre temas variados – a renovação urbana de Baltimore, a problemática da habitação popular em Los Angeles, o prédio da IBM em Nova Iorque ou o filme Blade Runner – sem nunca mencionar os seus contextos específicos, as contradições e os grupos ou projetos alternativos que se entrecruzaram etc., mas apenas catalogando-os como “modernos” ou “pós-modernos”. Também não existe nenhum mapa, nenhuma localização no espaço concreto desses fenômenos estudados, mas tão somente considerações abstratas sobre “o significado de espaço e tempo” neste ou naquele filme, na pós-modernidade, etc. 32

Não desconhecemos que William BUNGE (Perspectivas de la geografía teorica, in: MENDOZA, J.G., JIMÉNEZ, J.M. e CANTERO, N.O. El pensamiento geográfico. Madrid, Alianza, 1982, pp.521-30), seguindo a trilha de Schaefer, estabeleceu uma esdrúxula diferenciação entre o único ou original e o singular, sendo que este último, a ser levado em consideração pela ciência geográfica, seria tão somente um caso específico e sempre enquadrável numa

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Ensaios de geografia crítica

75

numa análise depauperada, que generaliza em demasia e – malgrado a

sua prolixidade – perde completamente as especificidades de cada

situação ou processo.

Convém esclarecer que não se está, aqui, defendendo os méritos da

“abordagem idiográfica” contra os “nomotéticos” e muito menos

assumindo aquele discutível e limitado ponto de vista – que veio de

Kant, passou por Hettner e talvez tenha se encerrado com Hartshorne –

segundo o qual a geografia estuda as “diferenciações de áreas” na

superfície terrestre. O que se procura demonstrar é que a crítica –

necessária – da geografia como um saber essencialmente idiográfico,

no final das contas, foi superficial em demasia e perdeu algo importante

no seu percurso. Ela não consistiu, afinal, numa verdadeira crítica – na

qual deve existir uma superação com subsunção ou incorporação do

que foi criticado como parte de uma síntese superior – e, sim, numa

mera rejeição. Em função de um modismo – ou comodismo –

epistemológico, denegou-se a contradição inerente ao social-histórico, a

indeterminação do fenômeno social e político enquanto relação de

forças, o papel do contingente ou do acaso e a relação problemática

entre sujeito e objeto no estudo do social:

Impossível falar da História no singular [...] Devemos nos

interrogar sobre as formas da história: sobre a distinção

entre uma história regida por um princípio de conservação

ou de repetição e de uma história que por princípio abre

lugar para o novo [...] O que é, pois interrogar? Em um

sentido é fazer o enterro do seu saber. Em um outro

sentido, aprender graças a esse enterro. Ou ainda:

renunciar à ideia de que haveria nas coisas mesmas [...] um

sentido inteiramente positivo ou uma determinação em si

prometida ao conhecimento, como se isso que analisamos

não se tivesse já formado sob o efeito de um deciframento

de sentido, em resposta a um questionamento da história,

da sociedade [...] como se o ‘objeto’ não devesse nada a

teoria geral, ao passo que aquele primeiro seria algo desprezável pela ciência, um mal-entendido da geografia tradicional. Mas essa perspectiva nos parece facciosa e somente aceitável pelo pressuposto de que existiria um só tipo de conhecimento, o nomotético.

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76

nossa própria interrogação, o movimento do pensamento

que nos faz ir até ele e às condições sociais e históricas nos

quais se exerce33

.

Retomar esse debate, afinal, significa repensar a coexistência

necessária, mesmo que problemática, entre as abordagens idiográfica e

nomotética na geografia. Mais ainda, significa colocar a relação de

complementaridade entre objeto e sujeito, a identificação e tensão, ao

mesmo tempo, entre o investigador e a realidade a ser estudada: as

inter-relações entre ambiente geográfico e o social-histórico, ou mais

especificamente, pensando-se em Ratzel, a política na sua dimensão

espacial. Enfim, deve-se examinar o fenômeno político, base do social-

histórico, como conflito e indeterminação, incorporando a questão da

coexistência entre a necessidade (lógica ou determinação) e a

contingência (abertura para o novo, singularidade ou originalidade). A

nosso ver, esses são os elementos basilares a serem incorporados na

análise geográfica, em especial a geográfico-política, mesmo sem

deixar de lado a superação do idiográfico puro e simples e a

necessidade de construir categorias, conceitos ou princípios lógicos,

que devem ser abertos e provisórios e nunca sobrepostos de forma

dedutiva a qualquer realidade estudada, que sempre encerra as suas

determinações específicas.

Cabe, ainda, recordar a dimensão política dessa controvérsia sobre o

“excepcionalismo”. Tratava-se não apenas de definir o estatuto

epistemológico da geografia como ciência, mas, fundamentalmente,

qual seria a sua utilidade prática. Foi fácil estereotipar Hartshorne como

conservador e adepto do tradicionalismo na geografia e na sociedade.

Como se sabe, ele foi oficial do exército norte-americano durante a

Segunda Guerra Mundial, trabalhou como estrategista no Pentágono,

ajudou a redefinir os limites da Alemanha e de Berlim redivididas no

pós-guerra e, durante a sua vida acadêmica e de pesquisas, elaborou

vários trabalhos de geografia política ou geopolítica (este rótulo,

evidentemente, não era usado) a respeito de fronteiras, territórios e o

papel estratégico dos Estados Unidos no mundo. Ademais, como

33

LEFORT, C. As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 15-7.

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Ensaios de geografia crítica

77

assinalaram vários de seus críticos34

, ele era anticomunista e defensor

radical do sistema político e do way of life europeu-ocidental e

principalmente norte-americano. Schaefer, por outro lado, era

simpatizante do partido comunista (ele próprio afirmava, e vários

outros repetiram, que a CIA o vigiava ou perseguia, uma informação

nunca comprovada) e infelizmente morreu jovem, antes mesmo da

publicação do célebre artigo (por sinal, a sua única contribuição

conhecida para a geografia), fatos que provavelmente tiveram um

grande peso na forte identificação, no clima de simpatia que se criou

entre a sua figura e os então jovens geógrafos norte-americanos ou

britânicos “rebeldes”, que propugnavam uma completa renovação na

tradição geográfica. Contudo, paradoxalmente, o jovem geógrafo

marxista e socialista fazia uso das ideias do neopositivista Popper como

seus alicerces teóricos, propugnando um modelo da física (ou mais

modestamente da economia keynesiana) como o ideal para a renovação

geográfica, para a construção de uma geografia preditiva que fosse útil

nos planejamentos (urbanístico, regional, territorial enfim). Esse

entendimento shaeferiano, vitorioso no transcorrer das circunstâncias –

afinal, ele foi uma espécie de bandeira ou ícone para a chamada

“revolução quantitativa” dos anos 1960 e 1970 –, produziu, no final das

contas, uma ciência geográfica pragmática, voltada para a preparação

de “técnicos” e completamente apartada do ensino, da educação,

atividade que desde meados do século XIX sempre tinha sido a sua

principal raison d’être. Os cientistas sociais, a partir daí, tomaram

conta do ensino das humanidades – história, geografia e sociologia – no

sistema escolar norte-americano, tendo ocorrido uma multiplicação de

cursos superiores de ciências sociais e, de maneira complementar, uma

retração dos cursos de geografia, com fechamentos de vários

departamentos e cursos nas universidades35

.

34

Cf. BUNGE, op. cit., onde há várias referências à “conhecida ideologia anticomunista de Hartshorne”, por sinal um ex-professor de Bunge. 35

É evidente que essas mudanças no sistema escolar norte-americano não se explicam apenas, nem principalmente, pela vitória da perspectiva neopositivista na geografia. Elas também envolveram a disciplina história e têm outras determinações, que neste texto não iremos explicitar. Em todo o caso, até inícios dos anos 1990, eram os departamentos universitários de ciências sociais, e nunca os de geografia ou de história, que preparavam os professores de história, sociologia e geografia, disciplinas que eram lecionadas juntas nos

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78

Foram as circunstâncias, afinal – em especial o avançar do fordismo e

do seu modelo de escola técnica ou profissionalizante, dos

planejamentos que envolviam a reorganização do espaço e,

provavelmente, até mesmo a aspiração de grande parte dos novos

geógrafos em exercer atividades com melhor remuneração e maior

status social (pelo menos na época) que a de professor nas escolas

fundamentais e médias –, e não a maior ou menor veracidade ou

fundamentação das ideias deste ou daquele oponente, que decidiram a

perspectiva vitoriosa nessa contenda. Mas não deixa de ser irônico o

fato de que o lado tido como de “esquerda”, ou supostamente rebelde

frente ao status quo, era antipluralista (pois admitia apenas um único

método científico e, mais ainda, aceitava tão somente o modelo

dedutivista e preditivista de ciência) e acabou por gerar um instrumento

extremamente útil, pelo menos naquele momento, para o sistema

capitalista no seu centro principal, para a multiplicação dos

planejamentos típicos da economia keynesiana ou intervencionista da

época, que ocorreram especialmente nos Estados Unidos. Em

contraposição, o lado tido como conservador e direitista era defensor da

democracia e do pluralismo e, mesmo não recusando uma função

pragmática para a geografia, enfatizava o seu caráter humanístico. Sinal

dos tempos. Relendo os textos daquela controvérsia nos dias de hoje,

após a crise do marxismo e a derrocada do socialismo real, após uma

revalorização da democracia (que não é mais vista como burguesa) e

principalmente do pluralismo, temos a impressão de que os sinais

foram invertidos. Em todo o caso, não é esta a nossa preocupação

fundamental aqui e agora. Ademais, essa controvérsia sobre a função

social da geografia já havia sido iniciada anteriormente, num outro

contexto, no Reino Unido do final do século XIX.

ensinos fundamental e médio. Para se ter uma ideia dessas mudanças, principalmente com a retomada da formação dos professores pelos cursos de geografia nos anos 1990, quando a abordagem neopositivista está em crise (além de ter ocorrido uma revalorização da escola e do ensino da geografia a partir da globalização e da terceira revolução industrial), com a reabertura de alguns departamentos em universidade, veja-se o importante relato de HARDWICK, S.W. e HOLTGRIEVE, D.G. Geography for Educators. Standards, themes and concepts. New Jersey, Prentice Hall, 1996.

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79

O debate entre Mackinder e Kropotkin ocorreu nas seções da então

poderosíssima Royal Geographical Society (RGS) de Londres, na

penúltima década do século XIX. Ambos proferiram falas, em seções

dessa sociedade, a respeito do que é e do que deveria ser a geografia, e,

posteriormente, as publicaram em revistas especializadas36

. Existe aí

uma discórdia, ou uma sensível diferença de perspectiva, que prossegue

talvez até com maior intensidade nos dias atuais: se a geografia deve

ser útil para o sistema, para o “comércio” como dizia Mackinder (isto é,

os interesses imperialistas britânicos da época), ou se ela deve servir

basicamente aos ideais humanísticos de combate aos preconceitos, de

crítica ao imperialismo, às injustiças e desigualdades, tal como

advogava Kropotkin.

Este último abriu o debate com os seus comentários sobre “o que a

geografia deve ser”, que na realidade constituíam uma proposta de

reforma profunda na educação geográfica, no ensino da geografia.

Levando em conta aquele período de colonização européia e

particularmente britânica na Ásia e na África, e o fato que a RGS

congregava não apenas geógrafos, mas principalmente uma boa parte

da elite econômica e social da época interessada nos negócios do

ultramar (negociantes, industriais, membros da família real,

diplomatas), kropotkin proferiu a seguinte fala:

Assistimos hoje o despertar de um interesse pela geografia

que lembra o que ocorreu com a geração anterior, durante

a primeira metade no nosso século [...] Não se deve

estranhar, portanto, que os livros de viagens e os de

descrição geográfica em geral estejam se tornando no tipo

mais popular de leitura. Era também natural que esse

renascimento do interesse pela geografia dirigisse a

atenção do público sobre a escola. Foram realizados

inquéritos e descobriu-se, com estupor, que conseguimos

fazer com que esta ciência – a mais atrativa e sugestiva

para pessoas de todas as idades – resultou nas escolas num

36

KROPOTKIN, P. “What Geography Ought to Be”. In: The Nineteenth Century, XXI, 1885, pp.238-258; e MACKINDER, H.J. “On the scope and methods of Geography”. In: Proceedings of the Royal Geographical Society, n.9, 1887, p. 141-60.

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dos assuntos mais áridos e carentes de significado [...] A

discussão recentemente iniciada pela [Real] Sociedade

Geográfica, o Informe antes mencionado pela sua

Comissão Específica na sua exposição, foram em geral

acolhidos com simpatia por parte da imprensa. Nosso

século mercantilizado parece ter entendido melhor a

necessidade de uma reforma quando se colocou em

evidência os chamados interesses ‘práticos’ da colonização

e da guerra. [A geografia escolar] pode constituir um

poderoso instrumento tanto para o desenvolvimento geral

do pensamento como para familiarizar o estudante com o

verdadeiro método de raciocínio científico [...] A geografia

deve cumprir também um serviço muito mais importante.

Deve nos ensinar, desde a mais tenra infância, que todos

somos irmãos, qualquer que seja a nossa nacionalidade.

Nestes tempos de guerras, de ufanismos nacionais, de

ódios e rivalidades entre as nações, habilmente

alimentados por gente que persegue seus próprios e

egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia

deve ser – na medida em que a escola deve fazer alguma

coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio

para anular esses ódios ou estereótipos e construir outros

sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar que

cada nacionalidade contribui com sua própria e indispensá-

vel pedra para o desenvolvimento geral da humanidade, e

que somente pequenas frações de cada nação estão

interessadas em manter os ódios e rivalidades nacionais.

[...] Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três

objetivos principais: despertar nas crianças a afeição pela

ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes que todos

os homens são irmãos, quaisquer que sejam as suas

nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as

chamadas ‘raças inferiores’. Desde que se admita isso, a

reforma da educação geográfica é imensa: consiste nada

menos que na completa renovação da totalidade do sistema

de ensino de nossas escolas37

.

37

KROPOTKIN, op. cit., p. 240-3.

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Ensaios de geografia crítica

81

Sem dúvida que essa proposta de Kropotkin era inaceitável para o

status quo britânico, mais interessado não tanto no ensino e , sim, na

geografia enquanto conhecimento e mapeamento dos territórios – com

os seus recursos naturais e os seus povos, potenciais trabalhadores e/ou

mercado consumidor – a serem colonizados. Além disso, a sua

concepção de irmandade de toda a humanidade, a sua defesa das

chamadas “raças inferiores” (um conceito frequente na época, mas que

Kropotkin usava com reticências), era algo que se chocava contra a

principal justificativa do colonialismo: a civilização dessas “raças” ou

povos bárbaros, a missão civilizatória européia (isto é, o “fardo do

homem branco”), que deveria levar o progresso e a verdadeira cultura

até essas sociedades arcaicas, as quais, no fundo, se dizia estarem sendo

beneficiadas pelo domínio colonial. Kropotkin é irônico a esse respeito:

Quando um político francês proclamava recentemente que

a missão dos europeus é civilizar essas raças – ou seja,

com as baionetas e as matanças [genocídios] – não fazia

mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos

fatos que os europeus estão praticando diariamente. E não

poderia ser de outra maneira, pois desde a mais tenra

infância inculca-se o desprezo pelos “selvagens”, ensina-se

a considerar determinados hábitos e costumes dos

“pagãos”como se fossem verdadeiros crimes, a tratar as

“raças inferiores”, como são chamadas, como se fossem

um verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado

enquanto o dinheiro ainda não penetrou. Até agora os

europeus têm ‘civilizado os selvagens’ com whisky,

tabaco e sequestros; os têm inoculado com seus vícios; os

têm escravizado. Porém, é chegado o momento em que nos

devemos considerar obrigados a oferecer-lhes algo melhor

– isto é, o conhecimento das forças da natureza, a ciência

moderna, a forma de utilizar o conhecimento científico

para construir um mundo melhor38

.

Kropotkin, como se percebe, era um entusiasta da ciência moderna,

tanto que pensava que ela seria a melhor dádiva que o europeu poderia

38

KROPOTKIN, op. cit., p. 244.

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fornecer aos africanos ou asiáticos em geral. Neste ponto, aliás, ele não

diferia muito da imensa maioria dos grandes pensadores do século XIX,

tais como, dentre outros, Humboldt, Darwin, Marx ou Comte. Só que

Kropotkin, ao contrário destes, inclusive os considerados de “esquerda”

ou extremamente críticos frente ao sistema, como por exemplo Karl

Marx, não aceitava a ideia de que o colonialismo europeu na África e

na Ásia seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o

desenvolvimento das forças produtivas, do capitalismo e,

consequentemente, do posterior socialismo – nessas regiões do globo39

.

Kropotkin viveu exilado em Londres durante cerca de 30 anos, pois

havia fugido de um presídio na Rússia; na RGS, ele provavelmente era

apenas tolerado, ou talvez visto com um misto de benevolência e

curiosidade: afinal ele era originário de uma aristocrática família russa

– a Casa Real de Rurik, que governara a Rússia antes dos Romanov –,

além de ter sido secretário da Imperial Sociedade Geográfica Russa

antes de sua prisão por incentivar e participar de revoltas camponesas.

O fato de ser um utopista, paradoxalmente, deve até ter contribuído

para com essa complacência, pois boa parte da elite econômica e social

também gosta de divagar sobre um mundo perfeito, sobre as

lamentáveis injustiças e desigualdades, principalmente quando a

temática é abstrata e não representa uma ameaça concreta aos seus

interesses materiais. Mas criticar o colonialismo, a “missão civilizatória

européia”, e propor aquele tipo de reforma no ensino – voltada para

combater os preconceitos, inclusive aqueles baseados na ideologia

nacionalista, enfatizar a cooperação e a irmandade entre todos os povos

e “raças” – também já era demais. Não era esse o caminho que a maior

parte dos membros dessa Sociedade Geográfica desejava, muito

embora fosse desagradável ou pouco refinado contestar esse ideário

diretamente, ou seja, sustentar a ideia de “raças superiores” e a

necessidade de brutalidade e matanças para “civilizar os povos

39

Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o colonialismo. Vol.I, Lisboa, Estampa, 1974, p. 47-8 e 103-4. Esse autor, neste e em outros textos onde analisa o colonialismo britânico ou a tomada de terras “dos preguiçosos mexicanos” pelos norte-americanos, chega a menosprezar as matanças e a brutalidade com o argumento de que isso tudo seria secundário, seria tão somente o preço a pagar para se acelerar o “sentido da História”.

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Ensaios de geografia crítica

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bárbaros”. Aqui entra a compreensão de Mackinder, que, segundo a

leitura de Short40

, representou uma alternativa – que se tornou vitoriosa

– frente às propostas geográficas de Kropotkin.

Mackinder, ao contrário de Kropotkin, não era um adepto do ensino

universal, acessível a todos e igual para as diferentes classes sociais.

Ele via a educação geográfica como algo indispensável para as “classes

educadas”, para a elite; mas, por outro lado, ela seria dispensável e até

contraproducente para o treinamento da “classe proletária apenas meio

educada”41

. No final da sua mencionada fala na Real Sociedade

Geográfica, ele conclui:

Acredito que com estas propostas que esbocei [isto é, a

concepção de geografia que ele havia apresentado], pode-

se elaborar uma geografia que satisfaça tanto as demandas

práticas do homem de Estado e do comerciante como as

demandas teóricas do historiador e do cientista, além das

demandas do professor. Sua amplitude e complexidade

inerentes devem ser invocadas como o seu mérito principal

[...] Para o homem prático, tanto para se obter uma posição

no Estado como para acumular uma fortuna, ela pode

constituir uma fonte insubstituível de informações; para o

estudante, uma base estimuladora [...]; para o professor ela

pode constituir um instrumento para o desenvolvimento

dos poderes do intelecto, exceto sem dúvida para esta

velha classe de mestres que medem o valor disciplinar de

um tema pela repugnância que ele inspira nos alunos.

Tudo isso, afirmamos, em função da unidade do tema

[união do aspecto teórico com o prático na geografia]. A

alternativa seria dividir o científico e o prático. E resultado

dessa divisão seria a ruína de ambos42

.

Apesar de a concepção de Sir Mackinder ter logrado uma indiscutível

vitória no transcorrer dos acontecimentos – ele se tornou, pouco a

40

SHORT, John R. New world, new geographies. New York, Syracuse University Press, 1988, p. 97-8. 41

Apud SHORT, op. cit., p. 97. 42

MACKINDER, op. cit., p. 160.

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84

pouco, no grande nome da geografia britânica no final do século XIX e

inícios do XX –, não se pode esquecer, como observou com

propriedade Kearns43

, que existia um clima de diálogo e cordialidade

entre os dois protagonistas, que inúmeras vezes participaram juntos de

reuniões ou de comissões de estudos da RGS. Além disso, entre os

membros da RGS existia uma divisão – ou uma dúvida – quanto a

apoiar ou não o imperialismo (Mackinder era um defensor fervoroso do

império britânico; e Kropotkin um crítico de qualquer forma de

dominação internacional), sendo que essa sociedade geográfica tinha

fama de liberal devido a uma série de atitudes ousadas para a época,

tais como, por exemplo, solicitar insistentemente ao governo britânico

para que pressionasse a França com vistas à libertação do geógrafo-

anarquista Elisée Reclus, preso por ser uma das lideranças da Comuna

de Paris de 1871; e quando de sua soltura, a RGS o convidou para

proferir em Londres uma série de palestras sobre o valor do ensino da

geografia44

.

Mackinder e Kropotkin concordavam, embora cada um à sua maneira,

num ponto que é fundamental para se entender os seus pontos de vista:

que a teoria da evolução de Darwin deveria suscitar um profundo

impacto na geografia45

. Algo perfeitamente normal para a época, pois

Darwin foi tido como o grande “modelo” de cientista no século XIX

(após algumas décadas nas quais brilhou a figura de Humboldt, por

sinal a grande fonte de inspiração para o naturalista britânico), assim

como Newton o havia sido para o século XVIII. O próprio Marx, como

se sabe, apregoava com vanglória que a sua obra representaria, para o

domínio do social, o mesmo que a de Darwin para o domínio da

natureza.

Mas Kropotkin e Mackinder tinham leituras bem diferentes a respeito

da teoria da evolução, que naquele momento era identificada com

Darwin, sem dúvida, mas também com Lamarck e Huxley, autores

frequentemente mencionados (às vezes com concordância, às vezes

43

KEARNS, Gerry. “The political pivot of geography”. In: The Geographical Journal, vol.170, n.4, December 2004, p. 340. 44

Idem, p. 339. 45

Idem, p. 341.

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Ensaios de geografia crítica

85

com reproches) pelos dois geógrafos. Mackinder enfatizava a luta pela

sobrevivência, a competição entre as espécies e os indivíduos.

Kropotkin, por outro lado, valorizava muito mais a ajuda mútua, o

cooperativismo entre espécies e indivíduos. É evidente que o “reino

animal” era visto mais como uma espécie de metáfora, ou melhor, fonte

de inspiração ou de “legitimação” do social. O que cada autor visava,

no final das contas, era o entendimento da ordem do mundo, do espaço

geográfico mundial, com vistas a pensar não apenas o presente, mas

principalmente o futuro. Mackinder, como um pensador político

realista, entendia a ordem internacional como uma espécie de “lei da

selva”, na qual o poderio militar e as guerras seriam não apenas

inevitáveis, como até mesmo uma condição indispensável para a

existência de um sistema internacional com o exercício da hegemonia

por uma grande potência mundial. A sua leitura direcionava-se para a

manutenção e o fortalecimento do império britânico e acabou lhe

conduzindo às teorias da heartland e da world island, enfim às

condições geográficas que permitiriam a hegemonia no espaço

mundial. Kropotkin, em contrapartida, sendo um utopista e, portanto,

idealista, apesar de reconhecer a importância histórica das lutas e das

guerras, advogava que a cooperação e a ajuda mútua – entre os

indivíduos, os povos, as nações, as culturas – seria um vetor tão ou

mais importante que o conflito. Seu objetivo não era o de pensar as

determinações espaciais para o exercício da hegemonia mundial por

parte de um Estado, mas, sim, as condições para a paz permanente com

a cooperação entre todos os povos e nações.

Dessa forma, Mackinder entendia a evolução – tanto natural como

histórica – como o resultado de conflitos, de lutas e guerras,

principalmente entre os Estados, o sujeito que privilegiava. Já

Kropotkin encarava a evolução – também natural e histórica – como

uma progressiva cooperação ou ajuda mútua entre os sujeitos, mas não

tanto o Estado, instituição que exorcizava, mas, sim, os indivíduos,

classes, povos e culturas46

. Não há qualquer dúvida que, grosso modo, a

46

MACKINDER. H.J. “The geographical pivot of history”. In: The Geographical Journal, London, 1904, n.23, pp.421-37; e KROPOTKIN, P. Mutual Aid, a factor of evolution. London, Freedom Press, 1902.

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José William Vesentini

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história deu razão a Mackinder, pois os acontecimentos subsequentes –

as duas guerras mundiais, a perda de hegemonia mundial por parte do

império britânico e a notável ascensão dos nacionalismos, que

atropelaram até mesmo a chamada “luta de classes” – estiveram muito

mais próximos do seu ponto de vista. Embora não totalmente, pois

sabemos que, em parte, os esquemas mackinderianos foram

desmentidos pelos fatos47

. Mesmo que estes, como sói acontecer,

tenham adequado-se muito mais à visão realista que com a perspectiva

utópica. Mas isso não significa que as ideias kropotkinianas tiveram

pouca ou nenhuma valia. O geógrafo russo representou uma alternativa

idealista, algo do tipo “um outro mundo é possível”, pelo menos em

tese, só que ele se encontra bastante distante da realidade com as suas

determinações essenciais. As suas ideias, entretanto, de início solitárias,

se expandiram enormemente no transcorrer do século XX com a

crescente consciência de que o colonialismo é inaceitável, que a

democracia e os direitos humanos são valores universais, que não

existem “raças superiores e inferiores”, que o ensino deve ser universal

e acessível a todos, além de não admitir qualquer diferenciação de

qualidade da educação de acordo com a classe social dos indivíduos.

Pensando agora no significado conjunto de todas as três polêmicas

analisadas, acreditamos que sejam pertinentes as seguintes

interrogações. Elas produziram algum avanço – seja epistemológico,

seja político ou mesmo gnosiológico – na ciência geográfica? Essas

temáticas estão já superadas ou continuam vivas? Se elas continuam

vivas, sob que formas se manifestam atualmente e qual é a sua

importância?

A nosso ver, as principais questões que perpassaram essas três

controvérsias são: as inter-relações entre o social e o seu meio

ambiente; a natureza idiográfica ou nomotética da geografia; e o papel

social desta disciplina, o para que ela serve ou deveria servir. Não há a

menor dúvida de que estas questões continuam vivas e atuais. Em

variadas e diferentes circunstâncias, sob diversas formas ou roupagens,

elas continuam sendo frequentemente retomadas ou rediscutidas. Elas

47

Cf. ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília, Editora da UNB, 1986, pp. 264-71.

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Ensaios de geografia crítica

87

ainda fazem parte dos grandes dilemas epistemológicos e/ou políticos

da ciência geográfica, sendo, ao mesmo tempo, heranças do passado e

desafios para o futuro.

Examinemos, sucintamente, a velha polêmica sobre as relações ou

influências recíprocas entre o social e o natural. A rigor, é melhor se

falar não tanto em natural e, sim, em ambiental ou mais propriamente

em espacial. Quando Ratzel se referia à importância do “solo” para o

Estado, ele não apontava somente para os aspectos naturais do

território, tal como entenderam os seus críticos. O próprio conceito de

território, assim como a sua conquista e/ou formação – como Ratzel

sabia muito bem –, já é uma realidade histórico-social e nunca uma

obra da natureza. O geógrafo germânico, ao realçar a importância do

“solo” ou do território como uma pré-condição básica para a existência

do Estado, não se referia tanto à natureza original – o clima, o relevo,

as riquezas minerais, a disponibilidade de água ou a fertilidade natural

dos solos –, mas, principalmente, aos elementos que são – e,

reiteramos, ele tinha pleno conhecimento disso – eminentemente

históricos: a localização (não apenas absoluta e, sim, relativa), o

formato, o tamanho e as fronteiras do território. Tudo isso sem se

esquecer do poderio econômico (Ratzel enfatizava principalmente o

“comercial”) e militar. Ora, esses mencionados elementos somente são

inteligíveis ou plenamente dimensionáveis se analisados de uma forma

relacional, o que significa dizer que eles só têm algum significado em

termos de poder quanto contrapostos a esses mesmos elementos nos

demais Estados, algo que varia muito de acordo com o lugar e o

momento, com a tecnologia disponível – principalmente para as

relações comerciais e a guerra, pensando-se, como Ratzel o fazia, em

termos de relações de força –, como partes, afinal, de um contexto

histórico e espacial bem maior, internacional ou até mesmo planetário.

Vejamos um exemplo. Num trecho do seu livro onde examina as

“potências mundiais”, Ratzel esclarece:

Depende do espaço dado em cada época para se saber o

quanto os Estados devem crescer a fim de se tornarem

“potências mundiais”, ou seja, terem como associados todo

o mundo conhecido e nele exercerem a sua influência [...]

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Uma potência assim grande e assim extensa no sentido de

estar diretamente presente em todos os países e em todos

os mares, atualmente, só pode ser o império britânico.

Uma imensa massa territorial como a da Rússia por si só

não faz uma potência mundial, algo que necessitaria

também de uma extensão suplementar sobre o Atlântico e

sobre o Pacífico, pois que somente os oceanos lhe abririam

a rota e lhe permitiriam estender o seu poder sobre os

Estados do hemisfério ocidental e do hemisfério austral.

Daí portanto que a Rússia somente poderá ser uma

potência mundial na medida em que abrir uma rota até o

oceano Índico, o que lhe permitiria um contato direto até o

Atlântico e sobre o Pacífico48

.

A questão, assim, é a importância ou o significado do espacial para o

político (ou o social) e não a influência da “natureza”, algo difícil de ser

identificado com precisão quando pensamos no território de um Estado,

quando consideramos uma sociedade na sua dimensão espacial ou

geográfica, pois praticamente todos os elementos que, com frequência,

são tidos como naturais – a localização e os traços físicos do território:

as riquezas minerais, as águas, as formas de relevo ou os solos –, em

geral, são reapropriados ou, muitas vezes, reconstruídos pela ação

humana e, no fundo, só têm algum sentido quando vistos de forma

histórica e relacional. Mesmo se quisermos pensar apenas na “natureza

em si”, o elemento fundamental, nos dias de hoje, para se entender o

comportamento humano, pelo menos em parte, não seria mais o clima,

tal como especulavam os teóricos do século XVIII e de grande parte do

século XIX, mas, principalmente, a herança genética. Mas este já é um

tema que pouco tem a ver com a pesquisa e a reflexão geográficas.

É certo que Ratzel, em diversos momentos, exagerou a importância do

tamanho do território – e também de certos traços naturais favoráveis

(principalmente o clima e a localização absoluta) desse “solo” – para o

poderio estatal. Mas acreditamos que isso é absolutamente natural em

qualquer autor, de qualquer área do saber, que procura construir ou

desenvolver um objeto – no caso de Ratzel, a importância da geografia

48

RATZEL, F. Géographie Politique. Paris, Editions Régionales Européennes, 1988, p. 279.

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Ensaios de geografia crítica

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ou do espaço geográfico para a vida política. Normalmente, existe uma

tendência de supervalorização do objeto que se estuda ou da

perspectiva que se adota para analisar esse objeto. Não é exatamente

isso que fazem praticamente todos os estudos biográficos? Não é isso

que faz, hoje, a chamada sociobiologia? Não é isso que fazem os físicos

teóricos e os astrônomos em geral, quando falam sobre tempo e espaço

como se fossem tão somente realidades físicas do universo?49

Não foi

exatamente isso que fez Freud quando tentou entender a guerra apenas

pelo viés do milenar comportamento agressivo dos seres humanos?

Esse exagero na importância do seu tema de estudos não é o que

observamos, hoje, em alguns geneticistas, que afirmam que todo o

comportamento dos indivíduos é pré-determinado pelo seu genoma?

Qualquer reducionismo deve ser criticado – e a crítica, cabe insistir, é

um dos instrumentos fundamentais para o avanço do conhecimento

científico. Nenhum autor, nenhum cientista, seja do passado, do

presente ou do futuro, está acima das críticas, isto é, possui uma obra

absolutamente irreprochável. Mas criticar não significa desqualificar o

oponente, tal como fez Lucien Febvre em relação a Ratzel. Significa

contribuir para o avanço do saber, corrigindo determinados aspectos de

um discurso, ajudando a lapidar uma determinada temática. A crítica

científica em geral não invalida o trabalho criticado; ela mostra os seus

limites, apontando fatos ou processos que ele não leva em consideração

ou não consegue explicar. Dessa forma, se, por um lado, as

generalizações ratzelianas foram em parte simplistas, exagerando a

importância do “solo” para o Estado, por outro lado, ele teve a coragem

de inaugurar – ou de se aventurar em – um campo do saber que é

importante e que pouco avançou; que talvez tenha ficado relativamente

estagnado exatamente porque os críticos em geral se limitaram a

denegar essa tentativa, numa atitude proibitiva ou repressora, ao invés

de procurarem expandir as pesquisas e as reflexões sobre a temática. Já

mencionamos que o resultado disso foi catastrófico para a geografia,

que se viu impossibilitada de – ou se recusou a – pensar inúmeros

49

Estamos pensando, aqui, nas observações de Husserl, Heidegger e de vários outros existencialistas ou fenomenológicos, segundo as quais o tempo e o espaço cotidianos do ser humano não são aqueles da física, seja ela newtoniana ou relativística.

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temas fundamentais para se entender a diversidade sócio-econômica no

espaço mundial (ou às vezes até regional ou nacional).

Quanto à natureza idiográfica ou nomotética da ciência geográfica,

pensamos que é melhor abandonar a separação dicotômica entre esses

dois tipos de saberes, como se eles fossem opostos e completamente

diferentes entre si; ou como se apenas as “leis” ou teorias nomotéticas

merecessem o adjetivo científico. Acreditamos que todo ou quase todo

conhecimento científico – ou toda “região” ou aspecto do real, que a

ciência busca compreender – possui elementos originais ou únicos e, ao

mesmo tempo, a possibilidade de se construir “leis” ou teorias de

validade universal. É lógico que, dependendo do campo de estudos,

existe uma maior preeminência de uma dessas duas vertentes. Usando

uma imagem gráfica, podemos visualizar uma linha, um continuum que

vai da ciência mais nomotética até a mais idiográfica. Deixando-se de

lado as lógicas e as matemáticas, isto é, as ciências formais, e

pensando-se apenas nas ciências empíricas, ou melhor, que estudam o

mundo empírico, teríamos próxima daquele primeiro pólo a física,

considerada como a ciência que melhor simboliza o modelo de um

saber nomotético. No pólo oposto ou do outro lado dessa linha – não

exatamente no pólo e, sim, nas suas vizinhanças – teríamos a história, a

ciência mais próxima do modelo idiográfico. Mas nem a física, nem a

história estariam exatamente nos dois pólos, ou seja, nenhuma delas é

totalmente nomotética e tampouco cem por cento idiográfica. Em

posições intermediárias teríamos as demais ciências: apenas para

mencionar alguns exemplos, a química estaria bem próxima da física,

praticamente colada, a geologia e a biologia aproximadamente no meio

dessa linha ou continuum; e a geografia um pouco além delas, mais

para o lado da história, porém, um pouco mais distante que esta do pólo

idiográfico. É um modelo simples e trivial, sem dúvida, mas que nos

ajuda a compreender a complexidade e variedade das ciências que

buscam perscrutar a realidade (ou realidades?) em todos os seus

aspectos.

Não há, portanto, nenhuma a necessidade de dogmas apriorísticos e

imutáveis, tais como a ideia de um único “método científico”, seja ele

positivo ou dialético, ou a crença na cientificidade como atributo tão

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somente do saber nomotético. Se determinados aspectos do real são

únicos e irrepetíveis (por exemplo: um acontecimento ou processo

histórico, uma região geográfica, uma espécie biológica ou mesmo um

indivíduo), por que não conhecê-los cientificamente? A bem da

verdade existe, sim, a presença – e uma presença marcante,

extremamente importante para a compreensão dos objetos de estudos –

do único e irrepetível na geografia, principalmente (embora não só) na

geografia regional e na humana, com especial destaque para a geografia

política. Exemplificando: a conceituação e a classificação das fronteiras

é algo necessário numa perspectiva científica e é um tema

eminentemente geográfico-político. Mas nenhum conceito ou teoria vai

dar conta das especificidades, da concretitude – no sentido de concreto

como “síntese de múltiplas determinações” – de uma fronteira

específica (por exemplo, entre o Brasil e a Argentina). Logo, o

idiográfico (os casos particulares, únicos e irrepetíveis) e o nomotético

(as leis ou teorias de validade geral) se complementam e, ao contrário

da física ou da química, a geografia não pode deixar de lado a

especificidade dos casos que estuda, pois se ficasse apenas nas

fórmulas, nas classificações ou nas teorias gerais, produziria estudos

medíocres que pouco explicariam sobre os objetos concretos com as

suas determinações (o contexto espaço-temporal, em suma) e

indeterminações (a criação ou produção do novo, a presença de um

vivido específico ou original) particulares ou específicas.

Não precisamos lembrar com detalhes o fracasso da geografia

quantitativa (e, mais ainda, da história quantitativa), que nunca

conseguiu produzir nada de novo do ponto de vista de explicações

sobre realidade, sobre o espaço geográfico ou o tempo histórico. Os

próprios expoentes dessa tradição na geografia – tais como David

Harvey, William Bunge e vários outros –, já no final dos anos 1960

denunciavam esse fato e propunham um novo paradigma mais

qualitativo e crítico. Isso não significa que se aboliu o uso da

matemática, dos computadores e da estatística na geografia. Longe

disso. Apenas que a realidade estudada pela geografia (ou, mais ainda,

pela história) não se presta a fórmulas simples, tais como as da física,

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por exemplo (falamos aqui em simples e não em simplistas50

, pois é

fora de dúvida que elas funcionam muito bem na compreensão e até na

previsão dos fenômenos físicos). Essa realidade geográfico-política,

feliz ou infelizmente, sempre demanda explicações longas e complexas,

e que nunca esgotam completamente o tema estudado.

Como é amplamente conhecido, a geografia política é a modalidade da

ciência geográfica mais próxima da história, é um dos flancos

privilegiados onde elas se imbricam ou se sobrepõem parcialmente.

Logo, a problemática do irrepetível, dos processos únicos e originais,

da tensão entre necessidade (determinação) e contingência

(indeterminação) é algo essencial na reflexão geográfico-política. Isso

não quer dizer que ela seja uma forma de conhecimento essencialmente

idiográfica, mas, sim, que esta abordagem também tem um lugar,

mesmo sem desconsiderar a elaboração de teorias ou conceitos gerais.

E não se deve confundir, como fizeram Schaefer e vários outros, o

idiográfico com o descritivo, pois nem todo estudo de um caso único é

descritivo e, em contrapartida, também pode existir a descrição do

objeto estudado numa teoria nomotética. Sem dúvida que a geografia

política anterior a Ratzel era idiográfica e descritiva, mas não é

necessário que esses dois atributos coexistam; ademais, cabe lembrar

que a descrição continua a desempenhar um papel importante em

determinadas áreas do conhecimento científico, inclusive em algumas

ciências naturais, hoje consideradas como paradigmáticas ou avançadas

(em vários campos da biologia, por exemplo).

A geografia política, assim sendo, deve levar em conta e refinar

constantemente os conceitos nomotéticos: de fronteiras, território e

territorialidade, poder ou poderes, Estado (e as suas diversas formas

históricas e geográficas), cidade-capital, média ou grande potência

mundial, ordem internacional etc. Só que nunca podemos ignorar o

estudo específico, que nunca consiste somente na “aplicação” de

50

Lembramos aqui que “simples” não deve ser entendido como o oposto de “complexo”, como é usual no senso comum. Epistemologicamente, o contrário de complexo é simplista e o oposto de simples é complicado. Por sinal, inúmeras explicações complexas – como as teorias da relatividade, de Einstein – no fundo são extremamente claras e simples. Veja-se, a esse respeito, as observações de ARDOINO, Jacques, in MORIN, E. (Org.). A religação dos saberes. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, p. 548-58.

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conceitos ou teorias gerais (apenas os trabalhos medíocres fazem isso),

de tal Estado concreto na sua formação territorial, desta ou daquela

fronteira ou cidade-capital, de tal ou qual ordem geopolítica

internacional etc., com todas as suas determinações (e indeterminações)

características. Enfim, esperamos ter deixado claro o nosso ponto de

vista, no qual a geografia – em especial, a geografia política – é

simultaneamente um saber nomotético e idiográfico (sem

necessariamente ser descritivo) e onde os estudos de caso contribuem

para enriquecer os conceitos que nunca são ou estão completamente

acabados.

Por fim, permanece a questão da finalidade prática da geografia, da sua

utilidade para a sociedade. Que os conhecimentos geográficos têm

serventia para o Estado, para a guerra, para organizar um território, para

mapear e utilizar os recursos naturais (ou até controlar a população e as

atividades econômicas), isso tudo é algo sabido e propalado desde, no

mínimo, o grego Erastóstenes, que afinal foi quem engendrou a palavra

geografia. Sabemos que o geógrafo romano Estrabão, que viveu no

século I a.C., já detalhava a importância da geografia para um caçador,

para um general, para um agricultor. Qualquer conhecimento sobre a

realidade, no final das contas, é um instrumento de poder, isto é, pode

servir para se agir sobre essa realidade. Mas o problema que surgiu nos

debates entre Kropotkin e Mackinder, e que continua a ser reproduzido

em inúmeros congressos ou encontros de geógrafos e em várias

publicações51

, é o para que e para quem serve ou deveriam servir os

conhecimentos geográficos. Se eles servem apenas para o exercício do

poder ou se também poderiam ser usados como contra-poder, se são

úteis apenas para o Estado ou para o sistema, ou se, pelo contrário, são

aproveitáveis para as rebeliões, para as classes populares no sentido de

contribuírem para uma maior justiça social e menores desigualdades

econômicas.

51

Basta lembrarmos da revista Antipode, cujo primeiro número tem um editorial que afirma que os geógrafos deveriam construir uma “geografia radical” para estudar e denunciar as injustiças e as desigualdades. Ou ainda de Yves Lacoste e a sua revista Hérodote, que afirmam que existem “outras geopolíticas” (além daquela do Estado, de Haushofer e Mackinder) e no fundo propõem a elaboração de uma “geopolítica dos dominados”.

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No fundamental, esta é uma questão – ou um dilema – que oscila entre

a necessidade e a ética, ou, numa perspectiva individualista, é a

tentativa de conciliar o imperativo de sobrevivência lato sensu numa

sociedade específica com os princípios ou valores morais nos quais se

acredita. Esta questão acompanha os intelectuais e os cientistas em

geral – e não apenas os geógrafos – desde o advento do pensamento

racional na antiguidade (as críticas de Platão aos sofistas já

demonstram isso), ou talvez até antes disso. Provavelmente, o caso

mais exemplar a esse respeito, pelo menos no século XX, tenha sido o

dilema dos cientistas, especialmente físicos, com a construção da

primeira bomba atômica no laboratório de Los Alamos, Novo México52

.

Eles se engajaram nessa dura tarefa porque acreditavam estar ajudando

a derrotar o totalitarismo, mas, ao mesmo tempo, tinham consciência de

que abriam uma caixa de Pandora, um poderoso instrumento de

destruição de obras e vidas humanas. Um outro exemplo célebre é o do

filósofo Martin Heidegger, que, ao contrário de inúmeros

contemporâneos (como a sua discípula Hannah Arendt, o geógrafo Leo

Waibel ou o mais famoso de todos os que abandonaram a Alemanha

devido ao nazismo, Albert Einstein), ficou na Alemanha no transcorrer

dos anos 1930, foi nomeado reitor da universidade de Freiburg e, de

acordo com inúmeras evidências, teria aderido entusiasticamente ao

regime nacional-socialista53

. Este último exemplo é meridiano: o

nazismo representa praticamente tudo o que há de antiético, de

distorção dos princípios humanistas, democráticos e até mesmo

religiosos. Fica fácil, dessa forma, condenar aqueles pensadores que

trabalharam em prol desse regime e, em contrapartida, elogiar os que se

recusaram a fazê-lo. Mas essa facilidade é apenas aparente, ela se

aplica somente a determinados atos políticos do filósofo alemão e não

às suas ideias, às suas contribuições teóricas, as quais, no final das

contas, são tidas como a grande obra do existencialismo e da

fenomenologia do século XX e, de forma explícita e incontestável,

52

A peça teatral O caso Oppenheimer, de Heinar Kipphaardt, evidencia muito bem as dúvidas e os dilemas dos cientistas participantes do Projeto Manhattan, de 1945, do qual resultou a primeira bomba atômica da história. 53

Cf. FARIAS, Victor. Heidegger e o nazismo. São Paulo, Paz e Terra, 1988.

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Ensaios de geografia crítica

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influenciaram importantes autores liberais (como Hannah Arendt) e até

mesmo radicais (como Jean-Paul Sartre).

Qualquer teoria que, de fato, procure explicar (ou construir) algum

objeto segundo os cânones científicos (algo que não tem nada a ver

com um “método” único e excludente), qualquer pesquisa científica

realizada de forma séria e honesta, sempre tem um valor que independe

da opção ideológica do investigador. É por isso que os dois grandes

nomes das ciências sociais da segunda metade do século XIX até

meados do século XX foram Marx e Weber, dois personagens com

opções éticas e ideologias bastante distintas54

, mas que produziram

importantes obras que já foram utilizadas – por autores com diferentes

concepções – na economia, na sociologia, na ciência política, na

história e mesmo na geografia. A própria Escola de Frankfurt, ou teoria

crítica, que segundo alguns seria fundamental para alicerçar a geografia

crítica55

, fez amplo uso de ideias de Marx, de Weber, de Freud e até de

Heidegger. Essa natureza perscrutadora das ideias científicas – que

nada mais são que tentativas de explicar ou compreender algum aspecto

do real – permite que elas sejam utilizadas de diferentes maneiras e por

diversos sujeitos, independentemente de seus princípios éticos ou de

seus posicionamentos políticos.

É por isso que tanto Kropotkin quanto Mackinder, apesar de suas

sensíveis diferenças no tocante a princípios e posicionamentos sobre o

colonialismo europeu e as desigualdades sociais e internacionais, ou

sobre o papel da geografia na sociedade, produziram ambos obras

clássicas e de alta relevância científica. As ideias pedagógicas de

Kropotkin parecem ter sido escritas hoje, tal a sua atualidade: quase

que todas as reformas educacionais do final do século XX e desta

primeira década do século XXI, normalmente com base num

importante documento produzido sub o patrocínio da UNESCO56

,

54

É amplamente conhecido o fato de que Weber concebia uma “ética da responsabilidade”, baseada principalmente em Maquiavel, ao passo que Marx convencionalmente é visto como um adepto da “ética da convicção” ou de “princípios”. Cf. WEBER, Max. A política como vocação. In: Ciência e Política, duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1998, p. 55-124. 55

UNWIN, op. cit., p. 262. 56

Cf. DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco/Cortez, 1996.

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reafirmam que o principal objetivo da atividade educativa é combater

todas as formas de preconceitos ou estereótipos, aprendendo a conviver

ou viver junto com os outros. Mas também Mackinder não é um

“cachorro morto”; suas teorias geopolíticas, segundo alguns, ainda

continuam válidas e imprescindíveis para uma boa compreensão do

mundo pós-guerra fria57

.

Entretanto, a imensa maioria dos intelectuais e cientistas em geral,

geógrafos incluídos, não produz teorias ou ideias novas, mas tão

somente reproduz desta ou daquela forma as que existem. O problema

da utilidade do conhecimento, neste caso, não se refere tanto à natureza

das ideias ou das teorias científicas e, sim, às atividades que cada um

exerce. A realidade cotidiana desses profissionais da ciência é prosaica,

com opções bem menos evidentes que aquelas de Oppenheimer ou de

Heidegger, que, no fundo, são casos extremos ou exemplos

paradigmáticos. Quase ninguém dispõe de uma escolha tão cristalina

como a de ajudar ou não a fabricação de uma bomba atômica, de

trabalhar ou não em proveito do regime nazista ou então de poder optar

por exercer a sua profissão de forma a estar, de forma inequívoca,

contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e

igualitária. A quase totalidade dos intelectuais e cientistas – sejam

filósofos, matemáticos, físicos, sociólogos, historiadores ou geógrafos –,

a bem da verdade, possui limitadas opções de escolha sobre o que

fazer, que tipo de atividade exercer levando-se em conta os seus

princípios éticos. O que predomina é a necessidade material aliada às

oportunidades, e estas dependem das circunstâncias. Existem diversas

atividades comumente exercidas por esses profissionais: a educação

elementar e média, a universidade, as consultorias, as pesquisas de

opinião e de mercado, os planejamentos, as análises ambientais,

eventualmente alguma assessoria para ONGs ou movimentos sociais

etc. Mas ninguém pode asseverar, a priori, qual dessas atividades ou

ramos de atuação seria melhor do ponto de vista dos princípios de não

reproduzir o sistema e contribuir para minimizar as injustiças e as

desigualdades sociais. Todos podem meramente reproduzir o status

57

Cf. MELLO, Leonel I. A. A geopolítica do poder terrestre revisitada. Lua Nova. São Paulo, Cedec, 1994, n.34, p. 55-69.

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quo, como também podem contribuir para alterá-lo; e essa alteração

tanto pode ser boa como ruim, tanto pode reduzir como ampliar as

injustiças e desigualdades.

Existe um juízo bastante popular segundo o qual o trabalho num

movimento social ou numa ONG seria uma garantia do uso

“politicamente correto” do conhecimento científico. A nosso ver, isso é

um equívoco. Apesar de importantíssimas para a vida democrática, as

ONGs, em geral, são norteadas pela promoção ou defesa de uma causa,

que defendem com unhas e dentes (mesmo que pesquisas científicas

mostrem sua inadequação ou inoperância; ou que pesquisas de opinião

pública mostrem que são antidemocráticas). Isso sem falar que, nas

últimas décadas, a criação de ONGs virou um bom negócio e uma boa

parte delas está preocupada tão somente com a sua expansão a qualquer

custo, com as verbas que pleiteiam junto aos governos ou às

instituições internacionais, com as contribuições dos simpatizantes e,

em geral, a sua principal atuação é na mídia, com vistas a se

promoverem, a ficarem em evidência, o que lhes permite conseguir

mais verbas ou mais contribuições voluntárias. Nesses termos, via de

regra – malgrado existirem exceções –, elas apenas manipulam o

conhecimento científico com vistas aos seus objetivos. Quanto aos

movimentos sociais, apesar de, em média, serem indiscutivelmente

mais sérios ou legítimos que as ONGs, também podem, eventualmente,

batalhar por causas corporativistas que se chocam com os interesses

maiores da sociedade; como também podem ser – algo, infelizmente,

não muito raro no Brasil – instrumentalizados por lideranças que visam

a interesses (ou valores) pessoais, com frequência espúrios, ora

dogmáticos, ora meramente arrivistas (ou ambos). Ademais, nada

garante que um intelectual que trabalhe numa ONG séria ou num

movimento social legítimo (essas seriedade e legitimidade, é bom

deixar claro, nunca são eternas ou constantes e sempre variam de

acordo com as circunstâncias) vá de fato produzir algo de relevância ou

de valor científico. Não é incomum que ele apenas reproduza, com

outras palavras, com uma roupagem mais ou menos acadêmica, o

discurso das lideranças – ou de certas lideranças –, nem sempre

correspondendo aos anseios dos participantes comuns (e muito menos

aos da sociedade em geral). Esse viés, normalmente, é resultado de um

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José William Vesentini

98

excesso de engajamento com uma correlata ausência de distanciamento

crítico, ou melhor, uma forte e ingênua identificação desse

empreendimento com determinados sonhos ou desejos pessoais, fato

que gera uma recusa inconsciente de enxergar as suas tensões e

contradições. É o deslumbramento estorvando o rigor da análise.

Isso explica porque raramente encontramos uma produção científica de

qualidade, a respeito de processos vistos como inovadores ou

revolucionários, por parte de intelectuais que estavam neles engajados.

Quase toda contribuição teórica importante de autores coetâneos a esses

processos, que de fato compreenderam os seus diferentes aspectos e,

muitas vezes, até anteciparam o seu devir, foi produzida por pessoas

que estavam à margem deles, ou que, mesmo participando, lograram

manter sua autonomia intelectual. Basta lembrar que as duas mais

importantes análises coevas da revolução russa de 1917 não foram

engendradas por simpatizantes que vivenciaram e participaram

ativamente dos acontecimentos, mas, sim, por dois pensadores críticos

e que não deixaram o redemoinho das paixões anular o seu

discernimento: Kropotkin e Rosa Luxemburgo58

. Ambos eram

entusiastas defensores de uma futura sociedade socialista e igualitária,

ambos viam com regozijo os sovietes ou movimentos espontâneos de

camponeses, operários e soldados. Mas nenhum deles permitiu que seus

desejos – tampouco a amizade com alguns protagonistas –

obscurecessem a sua percepção e consciência crítica. Eles acertaram em

cheio nas suas apreciações sobre o significado essencial dos

acontecimentos, enxergando com clareza que, ao contrário do discurso

de personagens mitificados (como Lênin ou Trotsky), a realidade nua e

crua é que se iniciava em outubro de 1917 a implantação de um regime

burocratizado e repressor das mais elementares liberdades

democráticas, em suma, a emergência da primeira experiência

totalitária do século XX.

Fica a lição: nenhum tipo de atividade, por si só, garante o uso

“politicamente correto” dos conhecimentos científicos e/ou

58

LUXEMBURG, R. A Revolução Russa. Lisboa, Ulmeiro, 1975 (original de 1918); e KROPOTKIN, P. “Cartas a Lênin (1920)”. In: ZEMLIAK, M. (Org.) Kropotkin – Obras. Barcelona: Editorial Anagrama, 1977, p. 270-294.

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Ensaios de geografia crítica

99

geográficos. Tudo depende do contexto e da forma específica de

atuação. E o engajamento, por princípio algo louvável, não deve nunca

obstaculizar o imprescindível distanciamento crítico, pois, sem ele, não

há uma produção de conhecimento científico de qualidade a respeito do

social-histórico. Esse debate ou desafio a respeito do por que e para que

serve ou deveria servir a geografia, enfim, continua atual e não

resolvido, porquanto não é um problema apenas teórico e, sim, práxico

no sentido de ação humana com suas determinações e indeterminações.

Ou seja, essa não é uma problemática que pode ser teorizada de uma

forma nomotética ou universal. É uma questão que se repõe

constantemente, ontem, hoje e sempre, embora com diferentes

roupagens. Ela envolve circunstâncias, formas de luta e estratégias,

além de princípios, que não são eternos e imutáveis, mas que, pelo

contrário, conhecem nuanças ou, às vezes, se metamorfoseiam, na

medida em que o discurso científico é uma forma de poder e as relações

de poder são complexas, dinâmicas e instáveis, são relações sociais e

históricas plenas de tensões e conflitos.

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101

O que é crítica?

Ou qual é a crítica da geografia crítica?*

Geografia ou geografias críticas. A bibliografia da/sobre essa vertente

geográfica já é bastante significativa. Entretanto, uma dúvida se impõe:

o que é crítica? Em que sentido esse verbete vem sendo empregado

na(s) geografia(s) crítica(s)? Qual é, afinal, o significado do adjetivo

crítico, frequentemente utilizado, algumas vezes com diferentes

sentidos, em várias áreas do conhecimento? (Basta lembrarmos das

ideias de reflexão crítica, atitude crítica, teoria crítica, pensamento

crítico, ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismo crítico e

inúmeras outras).

Esta preocupação, longe de ser diletante ou superficial, é algo que se

impõe fortemente com as mudanças na realidade social, em especial

com a crise terminal do antigo mundo socialista e com a relativização

das noções políticas de esquerda e direita, as quais, para muitos, não

têm mais sentido na realidade atual. Como iremos esquadrinhar logo

adiante, a noção de crítica (especialmente a de crítica social), a partir da

Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX,

viu-se associada à ideia política de uma esquerda, isto é, àqueles que

propugnavam uma mudança radical na sociedade com vistas a uma

maior igualdade e liberdade. Por isso, tornou-se muito comum a

identificação das noções de crítica e de radical, algo que também

iremos problematizar.

* Texto elaborado em 2009 para a revista Geousp, São Paulo, Depto. de Geografia da FFLCH-

USP, no prelo.

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Para início de conversa, a verdade é que ninguém mais sabe ao certo o

que é esquerda e direita hoje. Isso por várias razões. Pelo fracasso de

todas as experiências autodenominadas socialistas, fundamentadas bem

ou mal no marxismo e tendo se apresentado como “críticas” ao

capitalismo e alternativas “radicais” a ele. Pela crescente

complexização da sociedade moderna, em especial com o declínio das

lutas trabalhistas que tanto marcaram o século XIX e a primeira metade

do XX, lutas essas sempre identificadas com a esquerda e com todas as

vertentes libertárias ou socialistas. Pelo advento de novos sujeitos e

frentes de lutas no plural – feministas, ecológicas, étnicas, de

orientação sexual, de moradia, de imigrantes de regiões pobres em

áreas mais desenvolvidas etc. –, por vezes até antagônicos. Pela

expansão e o enorme poderio da mídia, a qual, juntamente com as

pesquisas de opinião, faz com que praticamente todos os partidos

políticos reformulem os seus discursos em função do que o público

quer neste ou naquele momento, independentemente de sua posição

ideológica (se é que isso ainda existe). Por tudo isso, reiteramos, as

noções de esquerda e direita tornaram-se problemáticas para definir

todo um espectro de posições políticas no mundo atual. Existe ainda

uma perda de referências. A grande bandeira de luta da velha e heróica

esquerda, aquela do século XIX e da primeira metade do século XX, a

de uma sociedade utópica1 que garantisse concomitante o máximo de

liberdade e de igualdade, foi completamente destroçada por inúmeros

acontecimentos e estudos científicos: pela soturna realidade de todos os

socialismos reais, em primeiro lugar, e também por pesquisas e

reflexões lógico-matemáticas, tais como, por exemplo, aquelas do

prêmio Nobel de economia Amartya Sen, nas quais se demonstra

1 Na verdade, estamos generalizando de forma proposital para evitar uma digressão sobre as

controvérsias a respeito da utopia no pensamento crítico (que nunca foi nem é apenas marxista), no qual há autores que a exorcizam e outros que a assumem. Por exemplo: Marx e Engels, em primeiro lugar, além de grande parte dos marxistas do início do século XX (Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Kautsky e outros) nunca foram adeptos da utopia e, pelo contrário, desancaram os socialistas utópicos, acreditando firmemente que o socialismo não era uma ideia utópica e, sim, “científica”, um resultado de “leis” inexoráveis da História (assim mesmo, com H maiúsculo). A respeito da aversão do pensamento marxiano pela utopia remeto às análises de FAUSTO, Ruy: A esquerda difícil. São Paulo, Perspectiva, 2007, p. 31-50. Em todo o caso, não há dúvida de que, durante o transcorrer do século XX, o projeto socialista passou a ser visto como utópico e essa defasagem entre ciência e utopia se estreitou sensivelmente.

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Ensaios de geografia crítica

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cabalmente que é impossível existir um máximo de igualdade sem

sacrificar a liberdade e vice-versa2.

Nesses termos, alguns autores que se consideram progressistas e

apregoam um mundo melhor, com maior justiça – entendida como

garantias para as liberdades democráticas, que não são algo eterno e

acabado e, sim, partes de um processo de constante criação e

reinvenção de direitos – e igualdade (embora nunca total), falam em ir

“além da esquerda e da direita”3, enquanto alguns poucos outros

despendem os maiores esforços no sentido de conservar, embora

redefinindo, essas categorias políticas4.

A manutenção desses rótulos – algo que no Brasil e na América Latina

em geral é um esforço quase exclusivo da autodenominada “esquerda”,

sendo que, nos Estados Unidos, ao inverso, é mais identificado com os

conservadores – não deixa de pagar um elevado preço teórico. De fato,

trata-se mais de um apego a uma identidade vista como “positiva”

(esquerda na América Latina e direita nos Estados Unidos), que, no

fundo, faz parte da autodefinição de certas pessoas e grupos, uma

tentativa de se manter fiel a um certo passado (ou a determinadas

tradições) e, no extremo – no caso de alguns partidos –, é algo que visa

angariar simpatias e votos.

Sem dúvida que existem teóricos sérios e bem-intencionados

procurando manter esses rótulos políticos. Não estamos nos referindo a

autores panfletários com visíveis insuficiências teóricas, que não

conseguem ir além do marxismo-leninismo, do tipo Ignácio Rangel,

Emir Sader, Robert Kurz e outros, que escrevem como se ainda

vivêssemos no século XIX, se recusando a analisar seriamente – e

aprender com – a experiência dos totalitarismos (nazismo e

comunismo), que menosprezam as conquistas democráticas. Pensamos

em teóricos do calibre de Norberto Bobbio e Ruy Fausto5, dentre

2 SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.

3 Cf. LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983; e GIDDENS, A.

Para além da Esquerda e da Direita. São Paulo, Unesp, 1995. 4 BOBBIO, N. Esquerda e Direita. São Paulo, Editora Unesp, 1995; e FAUSTO, R. A esquerda

difícil, op. cit. 5 Idem, idem.

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poucos outros. Bobbio, por exemplo, acredita que a esquerda, hoje,

define-se fundamentalmente pela busca de uma maior igualdade social,

enquanto a defesa da liberdade seria mais um atributo da direita. E

Fausto pensa que uma esquerda nos dias atuais deve ser defensora

intransigente da democracia – por sinal, Bobbio também advoga essa

posição, embora identificando democracia com o liberalismo, algo que

Fausto repudia – e ir além do marxismo (posição também defendida

pelo liberal Bobbio), deixando de lado a ideia de uma “ditadura do

proletariado” (ou de qualquer outro tipo de ditadura) e mesmo a de uma

economia planificada sem a propriedade privada nos moldes

genericamente apontados por Marx, recuperando o ideal anarquista e

socialista utópico de autogestão, de cooperativas de pequenos

produtores ou trabalhadores etc.

Essas proposições, contudo, embora sejam as mais palatáveis (sem

dúvida que as mais democráticas) entre os que se autointitulam

esquerda, nos parecem, em certa medida, frágeis. Primeiro, no caso de

Bobbio, significaria deixar de lado os reclames por liberdades (contra

as prisões arbitrárias e a tortura, contra a violação dos direitos

humanos, pela ampliação dos direitos das mulheres, dos homossexuais,

das etnias minoritárias, dos idosos etc.) para a direita, algo

evidentemente absurdo e oposto a toda tradição progressista da

esquerda. É certo que Bobbio assinalou que a liberdade mais defendida

pela direita é a do mercado, mas, mesmo assim, insistiu em que a

bandeira de luta da esquerda é basicamente a igualdade e não as

liberdades. Entretanto, mesmo a liberdade do mercado – algo que nos

dias atuais inclui a proteção dos consumidores, o combate aos cartéis e

monopólios, inclusive àqueles estatais etc. – é fundamental para

qualquer democracia moderna, na medida em que ainda não foi

encontrado um substituto aceitável. Durante algum tempo pensou-se

que a estatização e a planificação da economia fossem melhor que o

mercado, mas isso já foi completamente descartado ao ponto de alguns

autores da new left, inclusive economistas que participaram de planos

quinquenais na Hungria e na China na época em que vigorava a

economia planificada, terem afirmado que, se houver um novo

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Ensaios de geografia crítica

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socialismo no século XXI, sem dúvida que ele terá por base a economia

de mercado6.

Depois, existe o fato óbvio de que somente a vigência da democracia,

logo, das liberdades e da participação, é que se pode garantir um

mínimo de igualdade – mas nunca total, pois isso é um sonho utópico

no sentido literal da palavra (isto é, “que não existe em lugar algum”),

tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Na prática, a própria

vigência das liberdades conduz a certa desigualdade na medida em que

as pessoas e os grupos são desiguais nas suas potencialidades, nas suas

necessidades, no seu valor de barganha para a sociedade, na

criatividade ou nas formas de luta etc. E tentar impor uma igualdade

total através da única forma possível, qual seja, pela força através de

um regime não democrático – um partido único no poder (ou um líder

carismático) que diz representar os trabalhadores ou o povo –, como foi

demonstrado exaustivamente, é algo que sempre resulta em privilégios

abusivos para alguns, que mandam e desmandam de forma arbitrária,

que usam em seu proveito pessoal os bens tidos como públicos.

Quanto à posição de Fausto, acredito que de fato seja interessante

investir esforços na busca de alternativas libertárias do tipo economia

com base em cooperativas, autogestão em empresas e outras

instituições etc. O problema é que, muitas vezes, essas experiências

cooperativas ou autogestionárias resultam na ditadura de uma pessoa ou

um grupo; ou então na promoção de interesses corporativos – ou de

grupelhos específicos – que são opostos aos interesses maiores da

sociedade. Não podemos continuar a ser ingênuos hoje, depois de

tantas experiências de manipulação de assembléias – basta lembrar,

sem a menor pretensão em denegar, de inúmeras instrumentalizações

da “vontade popular” em alguns orçamentos participativos –, a respeito

do assembleísmo. Vistas de regra existem partidos ou grupelhos

organizados que conseguem impor os seus pontos de vista apriorísticos

nas resoluções, seja pelo cansaço da maioria, seja pela manipulação dos

votos. E, ao contrário de Bobbio, Fausto não enfrenta o dilema da

igualdade versus a liberdade; ele continua – tal como no século XIX – a

escrever como se essa antinomia não existisse. Parodiando o título do

6 Cf. NOVE, Alec. A economia do socialismo possível. São Paulo, Ática, 1989.

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seu livro, podemos dizer que, de fato, é difícil ser (inequivocamente) de

esquerda – como também de direita – no século XXI.

Essa polêmica evidentemente já chegou até a geografia crítica. Desde a

última década do século XX, logo depois da debacle do socialismo real

no Leste europeu e na ex-União Soviética, surgiram várias listas de

discussão – ou fóruns, como se denominam – na Internet a respeito do

que seria uma geografia crítica hoje7. Dando uma rápida espiada em

algumas dessas mensagens – pois é praticamente impossível ler todas

(são milhares), algo que provavelmente nem mesmo o mediador de

cada um desses grupos consegue fazer –, logo se percebe que não existe

sequer um mínimo consenso entre os participantes a respeito do que é

ou deveria ser uma geografia crítica: para alguns, é sinônimo (ou no

mínimo complementar) ao adjetivo radical, e/ou do adjetivo socialista

(embora nunca fique claro que tipo de socialismo); para outros,

simplesmente de denúncia de grupos neonazistas, de alguma forma de

desigualdades ou injustiças, ou de agressões à natureza em qualquer

parte do mundo, e assim por diante.

Também em livros e artigos acadêmicos esse debate se encontra em

andamento. Dois geógrafos britânicos, apesar de admitirem haver

“inúmeras desavenças sobre o que seria esquerda”, concluíram o seu

artigo de forma extremamente otimista, afirmando que ela, hoje,

“representa o futuro”8. Esse texto suscitou um enorme debate. Tanto

que é já é considerado o ensaio mais citado entre todos os que já foram

publicados nessa revista – Antipode –, que em 1969 inaugurou a

“geografia radical” anglo-saxônica. Nesse mesmo número da revista

existe um diálogo com esse texto, por parte de um autor marxista que

censura a ênfase no pluralismo em Thrift e Amin e os chama – de

forma depreciativa, pois acredita por um motivo obscuro qualquer (não

explicitado) que há semelhanças entre o pluralismo científico e a

“conversão ao neoliberalismo” da esquerda trabalhista britânica (Tony

7 Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit-geog-forum.html, fórum de geografia

crítica existente desde março de 1996. 8 THRIFT, Nigel e AMIN, Ash. What is Left ? Just the Future. In : Antipode. A Radical Journal of

Geography. Vol.37, Issue 5, November 2005, p. 220-238.

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Ensaios de geografia crítica

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Blair e outros) – de neocríticos9. Logo no ano seguinte, veio uma

intervenção de uma geógrafa norte-americana, que estranhou tanto

otimismo – ou tanta ingenuidade – por parte daqueles dois autores num

momento em que inegavelmente a esquerda se encontra em crise10

.

Outro autor norte-americano, nesse mesmo ano, assinalou – para horror

de autores como Smith – que, a partir do final dos anos 1980 nos

Estados Unidos, por influência do pensamento pós-moderno em

ascensão, que gradativamente passou a substituir o neomarxismo como

referência teórica nos círculos engajados da geografia acadêmica,

pouco a pouco a bandeira de uma “geografia radical” foi sendo

substituída pela de “geografia crítica”11

.

Considero pertinente este último ponto de vista, pois na verdade a

proposta de uma geografia crítica surgiu primeiramente na França, em

1976, com Yves Lacoste e outros participantes da revista Hérodote, que

desde o início se mostraram reticentes em relação ao marxismo e

incorporaram ideias de pensadores anarquistas (Réclus) e,

principalmente, pós-modernos (Foucault). Esse geógrafo francês

chegou mesmo a assinalar, de forma foucaultiana, que o marxismo

negligenciou o espaço em prol de uma supervalorização do tempo12

.

É bem verdade que com a expansão da geografia crítica para a Itália,

Espanha, Brasil e outros países da América Latina, um certo marxismo-

leninismo com fortes influências de Althusser e discípulos passou a

ocupar o lugar do pensamento pós-moderno, pelo menos em grande

parte, conforme já havíamos assinalado em dois textos dos anos 8013

.

9 SMITH, Neil. What is left? Neo-critical Geography, or the flat pluralist world of business

class. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37, Issue 5, november 2005, p. 887-889. 10

WILLS, Jane. What’s left? The left, its crisis and rehabilitation. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.38, Issue 5, November 2006, p. 907-15. 11

BLOMLEY, Nicholas. Uncritical critical Geography? In : Progress in Human Geography. Vol.30, n.1, 2006, p. 87-94. 12

LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas, Papirus, 1988, p. 139-51. 13

VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do conhecimento científico. In: Anais do 4º. Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB, 1984, Livro 2, Vol.2, p. 423-32 e Geografia e discurso crítico (da epistemologia à crítica do conhecimento). In: Revista do Departamento de Geografia 4. São Paulo, USP, 1985, p. 7-13.

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Basta lembrar, para exemplificar, do livro extremamente dogmático do

geógrafo italiano Massimo Quaini14

, que conseguiu enxergar nos

escritos de Marx e de Engels toda uma análise e até mesmo a “solução”

para os problemas ambientais e territoriais hodiernos! Em todo o caso,

mesmo continuando a existir uma forte presença de marxistas

ortodoxos nesta geografia – aqueles que têm por base teórica e

filosófica os escritos de Lênin, Althusser e discípulos como Martha

Harnecker (com a sua leitura estruturalista e empobrecida da obra de

Marx), o velho Lúckas ou Trotsky –, não há dúvidas de que ela

avançou no sentido de incorporar autores marxistas heterodoxos ou

neomarxistas (como Léfebvre), intelectuais pós-marxistas (como

Habermas) e até mesmo pós-modernos (como Foucault, Guattari,

Giddens e outros).

Prosseguindo com o seu pensamento, o mencionado geógrafo norte-

americano questiona sobre o que seria de fato uma atitude crítica e

coloca a seguinte dúvida: será que todos nós, que dizemos praticar uma

geografia crítica, somos realmente críticos?15

. Ele ainda se pergunta,

com base num questionamento de um colega seu da universidade (cujo

nome não mencionou), se o adjetivo crítico, na verdade, não se tornou

redundante; e afirma que a tradição crítica nas ciências sociais teria

começado com Marx, que num trecho célebre decretou: “Entretanto os

filósofos somente têm interpretado, de várias maneiras, o mundo. A

questão principal é transformá-lo”16

. A meu ver, o autor acertou em

cheio ao questionar o significado de crítica (ou mesmo de radical, num

outro plano) nos dias de hoje. Mas errou completamente ao identificar

o conceito de crítica com esse chamado ao engajamento que Marx

proclamou em 1845 nas suas Teses contra Feuerbach. Como iremos

mostrar a seguir, esse é um tremendo desacerto, típico da geografia

anglo-saxônica em geral que, via de regra, não conseguiu discernir os

significados (diferentes) de crítica e de radical, nem tampouco

esquadrinhar o longo percurso, que começou muito antes de Marx, da

crítica na vida social e política.

14

QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. 15

BLOMLEY, 2006, op. cit., p. 87. 16

MARX, K., apud BLOMLEY, op. cit.

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Ipso facto, este nosso ensaio constitui uma modesta tentativa de

contribuição, por meio de uma releitura dos significados de crítica em

primeiro lugar, e também dos adjetivos radical e esquerda. Uma

releitura que vai até as origens e procura mostrar as mudanças que a

noção de crítica sofreu em alguns momentos históricos cruciais.

Tentaremos, principalmente, polemizar o que significa uma atitude

crítica hoje e se essa adjetivação ainda é necessária na geografia do

século XXI.

Vamos iniciar pela semântica. No senso comum, a palavra crítica

normalmente é vista sob um viés negativo, enquanto uma censura ou

condenação, como um julgamento sempre desfavorável. Criticar, no

entendimento comum, amiúde encontrável na mídia, em filmes, em

discursos políticos e mesmo em assembléias populares ou trabalhistas,

significa basicamente “falar mal” de alguma pessoa, ideia ou teoria, de

algum projeto ou de alguma proposição17

. Entretanto, essa não é a

acepção filosófica e científica do conceito. Na filosofia, na

epistemologia e nas ciências humanas em geral, o significado de crítica

é o de um procedimento que implica em discernimento, critério,

apreciação minuciosa e julgamento que não precisa ser,

necessariamente, negativo. Mais ainda: é um procedimento tido como

necessário e até mesmo imprescindível para o aprimoramento e o

avanço do conhecimento18

.

Etimologicamente, a palavra crítica vem do grego kritikòs, que

significa o ato de examinar ou julgar alguma coisa. Essa palavra é um

derivativo do vocábulo grego krinò, que pode ser entendido como a

17

Até mesmo alguns poucos cientistas sociais incorporaram esse viés equivocado. Um autor brasileiro bastante citado e tido como especialista em metodologia científica, por exemplo, asseverou que: “Do ponto de vista metodológico, critica é sempre negativa. Crítica ‘positiva’ é outra coisa, quer dizer, é elogio.” (DEMO, Pedro. Mitologias da avaliação. São Paulo, Cortez, 2002, p. 30). 18

“A postura crítica torna-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é um instrumento de progresso [científico]; é a crítica que distingue a postura científica da experiência pré-científica, onde se fazem erros e se espera até que se esteja arruinado com eles [...] Quando se tem postura crítica, explora-se os erros de forma positivamente crítica, aprendendo-se conscientemente a partir deles.” (POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Brasília, Editora da UNB, 1994, p. 51).

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capacidade de distinguir, de estabelecer uma distinção19

. Com os

gregos da antiguidade, portanto, os criadores do vocábulo, a crítica

implicava numa reflexão, num ato reflexivo no qual se avaliava ou

examinava alguma coisa: uma ideia, uma teoria, um comportamento,

uma peça de teatro, uma obra literária etc. Uma avaliação tanto dos

aspectos positivos como negativos, um julgamento, digamos assim, da

“qualidade” dessa coisa, de sua validade ou veracidade (total ou

parcial) e de seus erros ou equívocos (idem).

Michel Foucault procurou datar o momento em que a crítica passa a ter

um significado político. Numa conferência pronunciada em 1978 na

Sociedade Francesa de Filosofia, ele afirmou que, no Ocidente, com o

advento da modernidade, especialmente entre os séculos XV e XVI, a

palavra crítica começa a denotar um tipo de posição política, uma

oposição ao ato de governar, que, convém recordar, naquele momento

se identificava com a nascente monarquia absolutista. Na interpretação

desse autor:

Eu proporia então, como uma primeira definição da crítica,

esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma

governado. Não querer ser governado assim, não é não

mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas,

porque, sob sua antiguidade ou sob o seu brilho mais ou

menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas

escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é então,

desse ponto de vista, em face do governo e à obediência

que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis,

aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do

monarca, do magistrado, do educador, do pai de família,

deverá se submeter. À questão “como não ser

governado?”, responde-se dizendo: “quais são os limites

do direito de governar”?20

.

19

Cf. SIERRA, Pelayo Garcia. Diccionario Filosófico. Biblioteca Filosofía en Español, Oviedo, 1999 ; e também CARROLL, Robert. The Skeptic’s Dictionary, disponível in http://www.skepdic.com/, consultado em julho de 2007. 20

FOUCAULT, M. Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. In : Bulletin de la Société Française de Philosophie, Vol. 82, nº 2, avr/juin 1990, p. 35-63.

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111

Mas foi com Kant, no século XVIII, que a crítica assumiu o seu

significado moderno, praticamente o mesmo posteriormente retomado

por Hegel, por Marx e por tantos outros filósofos ou cientistas sociais

que se utilizaram desse conceito para definir alguma teoria ou corrente

de pensamento: Adorno e Horkheimer com a sua teoria crítica, Karl

Popper com o seu racionalismo crítico, Paulo Freire e Giroux, dentre

outros, com a proposta de uma pedagogia crítica etc. Tanto que a

filosofia kantiana também é conhecida pelo nome de criticismo21

. Sua

monumental obra, Crítica da Razão Pura, é uma tentativa de examinar

minuciosamente as propriedades da razão pura, aquela desligada da

experiência, estabelecendo os seus limites. Não se trata, porém, de uma

radical negação da razão e, sim, uma autocrítica desta, uma espécie de

continuação do projeto iluminista de, utilizando a razão com base na

ciência moderna, combater todas as formas de escuridão (ignorância

por crenças e superstições, dogmatismo religioso, autoritarismo no

conhecimento e na vida política). Nas suas palavras:

O objetivo desta Crítica da razão pura especulativa reside

na tentativa de mudar o procedimento tradicional da

Metafísica e promover assim uma completa revolução nela

segundo o exemplo dos geômetras e investigadores da

natureza [...] Com base num lance superficial de olhos

sobre esta obra, poder-se-ia pensar que a sua utilidade seja

somente negativa, ou seja, de não ousarmos jamais elevar-

nos com a razão especulativa acima dos limites da

experiência [...] Ela se tornará, porém, imediatamente

positiva quando nos dermos conta de que os princípios,

com cujo apoio a razão especulativa ultrapassa os seus

limites, na verdade têm como resultado inevitável, se os

observarmos mais de perto, não uma ampliação mas uma

restrição do uso da nossa razão [...] Contestar a utilidade

positiva deste serviço prestado pela Crítica equivaleria a

dizer que a polícia não possui nenhuma utilidade positiva

por ser a sua principal ocupação fechar a porta à

violência22

.

21

LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1986, p. 103-4. 22

KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Abril Cultura, Col. Os Pensadores, 1974, p.14-5.

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José William Vesentini

112

A crítica, nesses termos, não é somente negativa – o “falar mal” de algo

ou mesmo somente apontar lacunas, problemas, insuficiências,

contradições –, mas também positiva na medida em que auxilia no

avanço ou no aprimoramento do objeto criticado, promove, enfim, uma

revolução no sentido de propor novas alternativas ou perspectivas. Mas

o criticismo kantiano vai mais além. Prosseguindo com a interpretação

de Foucault, temos que a crítica kantiana vincula-se à de

esclarecimento, isto é, da conquista da maioridade pelo ser humano:

A definição que Kant dava de crítica não é distante de

como ele entendia a Aufklärung [esclarecimento,

ilustração]. É característico, com efeito, que, em seu texto

de 1784 sobre o que é a Aufklärung, ele a definiu em

relação a um certo estado de menoridade no qual estaria

mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em

segundo lugar, ele caracterizou essa menoridade por uma

certa incapacidade na qual a humanidade estaria retida,

incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem

alguma coisa que fosse justamente a direção de um outro

[...] Em terceiro lugar, creio que é característico que Kant

tenha definido essa incapacidade por uma certa correlação

entre uma autoridade que se exerce e que mantém a

humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre

este excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele

considera, que ele chama uma falta de decisão e de

coragem. [...] Enfim, é característico que, nesse texto Kant

dá como exemplos de retenção da menoridade da

humanidade, e por consequência, como exemplos, pontos

sobre os quais a Aufklärung deve erguer esse estado de

menoridade e maioridade em, certo tipo, os homens,

precisamente a religião, o direito e o conhecimento. O que

Kant descrevia como a Aufklärung, é o que eu tentei até

agora descrever como a crítica, como essa atitude crítica

que se vê aparecer como atitude específica no Ocidente a

partir, creio, do que foi historicamente o grande processo

de governamentalização da sociedade. Com relação a essa

Aufklärung (cujo emblema, vocês bem o sabem e Kant

lembra, é ‘sapere aude’ [atreva a conhecer, a pensar por

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Ensaios de geografia crítica

113

conta própria], praticamente um contraponto a uma outra

voz, aquela de Frederico II, que dizia ‘que eles raciocinem

tanto quanto querem contanto que obedeçam’). Como

Kant vai definir a crítica? Eu diria que a crítica será aos

olhos de Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem até

onde pode saber? Raciocina tanto quanto queira, mas você

sabe bem até onde pode raciocinar sem perigo? A crítica

dirá, em suma, que está menos no que nós empreendemos,

com mais ou menos coragem, do que na ideia que nós

fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites, que aí

vai a nossa liberdade, e que, por consequência, ao invés de

deixar dizer por um outro “obedeça”, é nesse momento,

quando se terá feito do seu próprio conhecimento uma

ideia justa, que se poderá descobrir o princípio da

autonomia e que não se terá mais que escutar o obedeça;

ou antes que o obedeça estará fundado sobre a autonomia

mesma23

.

Nesses termos, a crítica para Kant implica um projeto de autonomia, de

libertação da razão das amarras do autoritarismo, do tradicionalismo e

das crendices. É uma contribuição para a revolução democrática no

sentido de maior autonomia da humanidade e dos indivíduos ou

cidadãos, isto é, de ousar pensar o impensável, de raciocinarmos por

conta própria independentemente dos dogmas e das proibições. Ou seja,

um convite a “mudar o mundo” no sentido de construir uma sociedade

com maior justiça e igualdade, com maior progresso científico, com

esclarecimento enfim. Não podemos negligenciar que, em grande parte,

a obra de Kant representa certa continuação do iluminismo e, ao

mesmo tempo, reflete uma admiração pela Revolução Francesa.

Hegel retomou essa concepção de crítica, mesmo procurando à sua

maneira superar o criticismo kantiano. Sabemos que ele valorizou a

História – com H maiúsculo, vista como a realização paulatina da razão

através de etapas ou avatares, num processo teleológico com um final

pré-definido. A dialética, para ele, não é apenas um procedimento –

visto como algo sem grande importância – de oposição (tese e antítese)

23

FOUCAULT, M. Op. cit., p. 40.

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114

que gera uma síntese, como em Kant. Para Hegel, a dialética é

supervalorizada e tem uma dimensão ontológica: ela se dá ou surge no

mundo sob a forma dos processos históricos. A dialética hegeliana não

pretende ser apenas uma forma de lógica, mas também uma ontologia.

De forma extremamente pretensiosa, ela se apresenta como a “verdade”

– o que capta a “essência” – ou o movimento da História.

Marx prosseguiu com esse viés hegeliano da dialética como a

realização da História, sendo esta uma dinâmica complexa que

atravessaria várias fases e, afinal, desembocaria na completa libertação

do ser humano. Afirmando ter colocado Hegel em posição invertida,

com os pés no chão, ele substituiu a razão ou o espírito pelas condições

materiais e a luta de classes, que também num processo teleológico, por

etapas, conduziriam ao socialismo e, após um período de transição, ao

comunismo, a História enfim realizada ou acabada. Sua principal obra,

O Capital, tem como subtítulo Crítica da Economia Política, numa

inegável inspiração kantiana na qual a crítica é uma superação com

subsunção e, mais ainda, é um procedimento revolucionário que aponta

para uma libertação do ser humano, para uma completa autonomia no

futuro. Procurando estabelecer os limites da economia política clássica

(de Adam Smith, David Ricardo e outros) – que seria, antes de tudo,

uma economia burguesa ou justificadora do sistema capitalista –, Marx

acreditou ter encontrado a sua superação com a análise das contradições

do capitalismo, o qual inexoravelmente cederia lugar a um novo modo

de produção sem a propriedade privada dos meios de produção.

Ao contrário do que pensam alguns, a crítica de Marx ao capitalismo e

à economia política não significou uma “crítica negativa” no sentido de

apenas apontar erros, problemas, mistificações ou contradições. Como

mostrou com propriedade Berman24

, é na obra de Marx – muito mais

do que na de Ricardo, de Smith, de Keynes ou de qualquer outro autor

tido como ideólogo da economia de mercado – que vamos encontrar os

mais rasgados elogios ao capitalismo, em especial ao imenso

“progresso” que ele promoveu, à sua “missão civilizadora”, à criação

de um mercado mundial integrado. O sentido que Marx dava ao termo

24

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 85-125.

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Ensaios de geografia crítica

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crítica, convém repetir, era o de um procedimento kantiano de entender

profundamente algo, inclusive nos seus aspectos positivos, assinalando

a sua importância histórica e, ao mesmo tempo, apontando os seus

limites ou as suas insuficiências (ou as suas “contradições”, nos termos

da dialética hegeliana).

Sabemos que, a partir do final do século XIX – e até o final do século

XX –, a noção de crítica esteve identificada basicamente com o

marxismo, como se fosse um atributo somente da “esquerda” (vista

como os adeptos do socialismo) e tendo o capitalismo como objeto

privilegiado, o alvo por excelência das críticas. No entanto, ao contrário

do procedimento crítico adotado por Marx, o marxismo posterior, com

raras exceções, somente viu aspectos “negativos” e inaceitáveis no

capitalismo (e mesmo na democracia!), como se este fosse um sistema

que de forma inelutável amplia as desigualdades e entrava o

“progresso”, isto é, o desenvolvimento das forças produtivas. É

evidente que, hoje, essa leitura precisa ser reexaminada e superada.

Precisa ser criticada enfim. Não é mais possível levar a sério a

concepção de dialética como portadora do segredo da história, ou como

o “método científico” por excelência; muito menos, a existência de um

sujeito qualquer (o proletariado, os trabalhadores, o espírito, as massas,

a multidão, os movimentos sociais, as ONGs ou qualquer outro agente)

que seria o redentor da humanidade. Não apenas o capitalismo, mas

também o socialismo real, assim como qualquer outro projeto de

sociedade que repudie o mercado e a democracia (por exemplo, aqueles

alicerçados em valores religiosos; ou o populismo autoritário “de

esquerda” da América Latina), deve igualmente ser objeto de profundas

críticas.

Malgrado os equívocos e as insuficiências de Marx e de Hegel – em

especial a tentativa de teleologizar a história e a pretensão de identificar

um agente portador do futuro e do segredo da história (a razão ou o

proletariado) –, não se pode perder de vista o que há de comum entre

eles e Kant. Ou, em outras palavras, o entendimento da crítica não

como falar mal ou desancar um pensamento, mas, sim, como

compreensão minuciosa dos seus fundamentos e limites, como

superação na qual se incorpora o que foi superado como parte de uma

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José William Vesentini

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síntese ou teoria superior. Ao mesmo tempo, crítica como um projeto

de autonomia da humanidade, de crescimento do ser humano no sentido

de libertação das amarras do tradicionalismo, das crendices, da

exploração social e do autoritarismo.

Acreditamos que esta deva ser a concepção reproduzida pela geografia

crítica – ou pelo menos por grande parte dela, que afinal é plural.

Crítica como superação com subsunção e, ao mesmo tempo, como um

engajamento em algum projeto de libertação que amplie o espaço da

democracia, que combata todas as formas de dogmatismo e de

autoritarismo. Todavia, existe hoje um grande dilema: a ideia de

projeto de libertação tornou-se extremamente problemática, embora de

maneira alguma dispensável. Mas a profunda compreensão desse fato

requer algumas explicações.

Em primeiro lugar, ao contrário do que pensam alguns, não se trata de

denegar completamente a geografia clássica ou tradicional,

substituindo-a pelo materialismo histórico com os seus conceitos

fundamentais (modo de produção, formação econômico-social, classes

sociais alicerçadas na produção, a teoria marxista do valor, o

socialismo como etapa que substituirá o capitalismo etc.). Com tal

procedimento, mesmo quando existe a tentativa de enriquecer ou

completar o marxismo com a incorporação do espaço geográfico – a

formação econômico-social transforma-se em formação sócio-espacial,

a luta de classes passa a abarcar os conflitos ambientais e territoriais, o

materialismo histórico passa a ser chamado de materialismo histórico-

geográfico etc.25

–, não existe uma verdadeira crítica da tradição

geográfica. Não há uma superação com subsunção e tampouco um

projeto de libertação realista e coerente com a nossa época. O que

existe nesse procedimento é apenas a substituição da tradição

geográfica por uma teoria do século XIX (mesmo que esta seja lida a

partir de algum autor posterior: Luckács, Althusser ou até Lèfebvre)

que imaginou ter superado o capitalismo pela análise de suas

contradições e limites, os quais pretensamente conduziriam ao

socialismo. Sem dúvida, naquele momento de ascensão dos

25

HARVEY, D. Spaces of Capital. Towards a Critical Geography. New York, Routledge, 2001, passim.

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Ensaios de geografia crítica

117

movimentos operários, essa construção teórica era crítica. Mas, nos

dias de hoje, ela se encontra envelhecida, até mesmo caduca, além de

completamente deslocada dos verdadeiros projetos de libertação, que

não se identificam mais com esse agente idealizado por Marx, o

proletariado, o qual, sejamos francos, sequer existe no mundo

empírico26

. Insistir nessa via sem levar em conta a experiência dos

totalitarismos do século XX – que em boa parte nela se alicerçaram – e

as mudanças na vida social e econômica, com o advento de novos

sujeitos e campos de luta, nada mais é que, consciente ou

inconscientemente, partilhar um projeto de ascensão ao poder por uma

camada de burocratas que fala em nome dos trabalhadores, dos

excluídos ou da História27

.

Destarte, a história do século XX – e em especial a crise do mundo

socialista, a emersão de novos sujeitos e formas de luta social, a par das

profundas mudanças ocorridas no capitalismo, que não pode mais ser

entendido pelas análises marxistas clássicas –, evidencia que a crítica

da economia política também deve ser criticada, que ela também possui

os seus limites e insuficiências, cada vez mais evidentes. Assumir o

materialismo histórico como “a” teoria na qual a geografia deve ser

diluída é um procedimento acrítico, que não realiza, sequer

minimamente, uma análise crítica da geografia, tal como aquela de

Kant frente à razão pura, ou mesmo a de Marx frente ao capitalismo.

Apenas se incorpora, de forma mecânica e sem grande criatividade,

determinados conceitos ou preocupações espaciais a um corpo teórico

já constituído, este, sim, nascido de uma tradição crítica, embora datada

e integrada a outros tempos, outras circunstâncias. Pouco se avança no

26

Claude LEFORT (As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 249) foi um dos primeiros a perceber isso, tendo sugerido que o proletariado foi mais uma invenção da “fértil imaginação de Marx”. 27

Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS, C. (A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 82-5), o marxismo no século XX pouco a pouco degenerou numa ideologia da burocracia, num discurso legitimador de um partido ou um grupo de burocratas que pretende alcançar o poder e/ou que já o exerce de forma totalitária, isto é, sempre reprimindo violentamente as criticas e oposições, que são taxadas de “burguesas” e antirrevolucionárias, e sempre falando em nome de uma pretensa comunidade dos trabalhadores, do povo ou do proletariado.

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118

conhecimento da realidade; em geral tão somente velhos chavões ou

estereótipos são regurgitados.

Devemos, então, indagar sobre o que seria um procedimento crítico nos

dias de hoje. Nesta época de pós-modernidade, com múltiplos sujeitos e

verdades, com visões de mundo alternativas e igualmente aceitáveis,

cada uma dentro de seu ponto de vista, continuar propagando a ideia de

crítica como a realização do sentido da história é algo completamente

extemporâneo. Ninguém mais tem o direito de falar em nome da

história e nenhum sujeito ou agente social é o detentor da verdade

entendida como algo unívoco. Outro problema é que não temos mais

aquele otimismo dos séculos XVIII e XIX a respeito da unicidade da

humanidade. Poucos acreditam hoje num projeto de libertação que

inclua todas as culturas e civilizações, todos os povos num único

modelo societário para o futuro. Cada vez mais se valorizam as

diferenças e as alteridades, a questão dos Outros, com suas diferentes

concepções a respeito do ideal de uma sociedade no futuro.

Isso posto, cabe uma interrogação: qualquer discurso que critique

outro(s) no sentido de incorporá-lo(s) numa nova síntese, e que

contenha um projeto qualquer de autonomia, pode ser considerado

crítico? Exemplificando: se pensarmos numa perspectiva cristã

fundamentalista, adepta do criacionismo, crítica seria uma compreensão

dos fundamentos e limites da ciência – neste caso, do neodarwinismo –

procurando superá-la com o ato de a incorporar como parte de uma

teoria que mantivesse os dogmas da religião e ao mesmo tempo

admitisse certas mudanças temporais na natureza e no advento dos

seres vivos? (E também existiria um projeto de autonomia ou libertação

nesse caso, mesmo que em outra vida). O mesmo valeria para os

fundamentalistas islâmicos, para os hinduístas, para os adeptos da

supremacia branca etc?

Cairíamos então num relativismo segundo o qual todos os pontos de

vista se equivalem e, assim sendo, qualquer discurso que procurasse

compreender uma teoria e incorporá-la num projeto qualquer de

“libertação” seria considerado crítico? É evidente que não. Então, como

sair desse impasse?

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Ensaios de geografia crítica

119

Em primeiro lugar, temos que lembrar que, para Kant, existe um

vínculo indissociável entre crítica e democracia, sendo que esta

consiste num processo que implica na crescente libertação da

humanidade em relação às crendices, ao autoritarismo, às tradições que

reproduziam ou reproduzem uma sociedade rigidamente estratificada e

com privilégios para alguns. Crítica, nessa concepção kantiana e

moderna, deve ser algo que contribui para a liberdade e a igualdade dos

seres humanos, e nunca algo que justifique ou legitime qualquer tipo de

ditadura, de autoritarismo ou de totalitarismo, de privilégios, de

racismo ou de preconceitos. Não vivemos mais uma batalha entre

direita e esquerda, tampouco entre capitalismo e socialismo. Um

intelectual que enxergou muito bem um dos principais conflitos neste

novo século foi o escritor Francis Wheen, que afirmou:

A nova batalha será entre o melhor do legado do

Iluminismo (racionalismo, empirismo científico, separação

da Igreja e do Estado) por um lado e, do outro, várias

formas de obscurantismo e relativismo destituído de

valores, frequentemente mascarado como ‘anti-

imperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para dar um verniz

atraente radical a atitudes profundamente reacionárias28

.

Assim sendo, não tem sentido adotar aquela posição comodista que

considera críticas determinadas ideias que servem de propaganda para

fundamentalismos ou dogmatismos, mesmo que elas sejam

extremamente ácidas em relação ao capitalismo, que é exorcizado como

o demônio do nosso tempo. Críticas essas, por sinal, que estão mais

para o “falar mal” de algo e nunca para a análise de seus fundamentos e

limites; que, no fundo, constituem tão somente impropérios a respeito

do capitalismo, da globalização e até mesmo da democracia.

Em segundo lugar, temos que levar em conta que a geografia é ou

pretende ser uma ciência. O que Kant almejava com a sua crítica como

prolongamento do iluminismo era exatamente libertar a humanidade

28

WHEEN, F. Answer to the question: Left and right defined the 20th century. What's next?, in Prospect, march 2007, http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=8342, capturado em março de 2007.

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120

das amarras dos dogmatismos e dos autoritarismos, da escuridão enfim.

Essa iluminação através da razão seria comandada pela ciência

moderna. O escopo da ciência – ou melhor, das ciências, no plural, para

evitarmos o mito de um método único para todos os aspectos do real –

é desenvolver ou dilatar o conhecimento humano sobre a realidade em

todas as suas dimensões. Um conhecimento que, não raro, serve para

ampliar nosso controle sobre a natureza, tanto a interna (nosso corpo e

mente) como a externa (através da redução das distâncias, da ampliação

da oferta de alimentos, ou mesmo de novas substâncias, da produção de

máquinas e até de armamentos etc.).

Sem dúvida, esse controle hoje, ao contrário dos séculos XVIII e XIX,

é tido como problemático. Sabemos que muitas vezes ele gera

consequências nocivas para determinados ecossistemas e grupos

humanos ou, em alguns casos, até mesmo para a biosfera e para a

humanidade como um todo. Contudo, bem ou mal, ele sempre foi e

continua sendo o motor que impulsiona o chamado desenvolvimento,

inclusive nas suas possíveis formas sustentáveis. Mesmo que

critiquemos o conhecimento científico – algo que, como vimos, faz

parte do seu próprio modo de ser, no qual a crítica é necessária para

suas correções e rearranjos. Mesmo que deneguemos essa excrescência

da ciência moderna, o cientificismo, que advoga uma absurda atitude

arrogante e imperialista frente às demais formas de conhecimento –

desde o artístico ao filosófico, passando pelos diversos sensos comuns,

pela experiência de vida das comunidades tradicionais e dos povos

ditos selvagens etc. Mesmo assim, os cânones do conhecimento

científico continuam sendo a melhor maneira de superar o relativismo

puro e simples e avançar nessa problemática do que é uma atitude

crítica hoje.

Um dos grandes méritos da ciência ou das ciências é admitir que suas

verdades, embora frequentemente úteis e eficazes, sempre são

provisórias e sujeitas a correções ou superações. O conhecimento

científico não procura nem aceita o Absoluto. Ele relativiza os

conceitos e teorias, embora não no sentido do relativismo ingênuo, ou

puro e simples, na qual tudo é igual e, portanto, não existe qualquer

hierarquia e tampouco nenhuma forma de aprimoramento ou avanço

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Ensaios de geografia crítica

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gradativo do conhecimento. A ciência relativiza os conceitos e teorias –

e até mesmo os objetos – ao considerá-los como verdades provisórias e

sempre sujeitas a testes, a confrontos com a realidade e com outras

explicações, mas cujo sentido, mesmo havendo encontros e

desencontros, avanços e possíveis recuos, sem dúvida que tem um

norte, que é um crescente acúmulo de informações cada vez mais

eficazes no sentido de compreender (e agir sobre) o mundo, o real em

todos os seus aspectos.

É justamente aqui que encontramos a via que nos permitirá reconhecer

a criticidade numa teoria, num discurso: a sua relatividade em termos

de contextualização e significado para o universo do qual faz parte.

Não existem ideias ou teorias críticas em si. Elas só o são em função

do papel que desempenham no seu contexto, razão pela qual podem ser

críticas numa época, num momento e num lugar determinados – por

exemplo, o marxismo na Europa Ocidental do século XIX –, e também

podem ser completamente acríticas em outra época ou lugar, tal como

ocorre, como já mencionamos, com o marxismo em praticamente todo

o mundo nos dias de hoje.

Voltando, agora, para a seara da geografia, podemos seguir com a

inquietação de Blomley. Sem dúvida que existe certa verdade na

afirmação que há diferentes vertentes autodenominadas críticas na

geografia (como na ciência social e na filosofia em geral) e que talvez o

melhor seja deixar de lado esse adjetivo, pois, afinal de contas, já não

teria ele cumprido o seu papel? (Que foi o de servir de bandeira de luta

contra a geografia tradicional, que praticamente não existe mais ou,

pelo menos, já não conta com teóricos que a defendam).

Mas, por outro lado, cabe uma indagação. Como os geógrafos ditos

críticos vêm enfrentando esse problema da crítica? Uma parte deles,

felizmente minoritária (talvez não na América Latina), continua a agir e

escrever como se nada de importante tivesse ocorrido nos últimos anos

e décadas, como se vivêssemos ainda uma luta entre “esquerda” (os

adeptos do socialismo e críticos do capitalismo) e “direita” (os adeptos

do capitalismo, que seriam por definição conservadores e inimigos do

pensamento crítico). Crítica aqui é entendida como “falar mal” dos

demônios do nosso tempo: o capitalismo, naturalmente, junto com a

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122

globalização vista como neoliberal, a democracia “burguesa” e a

imprensa livre (principalmente quando esta desanca regimes

autoritários e populistas “de esquerda”, quando denuncia os abusos dos

direitos humanos em Cuba etc.). São produzidos panfletos – ou estudos

pouco fundamentados, onde o objeto criticado sequer é compreendido

de fato –, nos quais, via de regra, existe uma interpretação paranóica ou

conspiracionista da história: foi a CIA quem promoveu os atentados de

11 de setembro de 2001, com vistas a obter apoio para as invasões do

Afeganistão e do Iraque; as cobranças de organizações internacionais,

especialmente o Banco Mundial, com a qualidade do sistema escolar, é

apenas parte de um projeto neoliberal com vistas a privatizar o nosso

ensino público; as preocupações com os desmatamentos na Amazônia

são meramente uma faceta do imperialismo que objetiva

internacionalizar aquela região (o que significaria deixá-la aos cuidados

dos países ricos, principalmente dos Estados Unidos); as denúncias de

presos políticos em Cuba ou da pobreza e do autoritarismo na Coréia

do Norte ou na Venezuela, no fundo, fazem o jogo do imperialismo

norte-americano, que almeja derrubar aqueles regimes revolucionários

etc. Para essa vertente, o pluralismo é um mal, o marxismo (entendido

como se fosse algo unívoco) é o único “método” científico válido, as

citações de algum autor (seja do próprio Marx ou, mais

frequentemente, de algum marxista posterior) substituem as análises ou

até mesmo o raciocínio, não existiria nenhum aspecto positivo na

globalização e nas novas tecnologias, mas tão somente uma constante

ampliação das desigualdades sociais e espaciais, e por aí afora.

Contudo, sem dúvida que existem sérias tentativas de renovar dentro

das geografias críticas, que não são meramente panfletárias e

comodistas, que procuram enfrentar os desafios de uma nova realidade,

inclusive aquele da crise do marxismo e da absoluta incapacidade de

grande parte das geografias críticas, e principalmente das radicais, em

incorporar essa questão até os primórdios dos anos 1990. Nem todos os

geógrafos ditos críticos são dogmáticos e meramente reproduzem

estereótipos. Existe uma vertente crítica na boa acepção do termo, que

procura realizar uma análise crítica tanto do capitalismo como também

– ou talvez mais ainda – do socialismo real, que buscou e busca

subsídios não apenas no marxismo (embora também criticado pelo

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Ensaios de geografia crítica

123

reducionismo econômico e, principalmente, pela valorização do tempo

em detrimento do espaço), mas notadamente nos anarquismos

(especialmente de Réclus e Kropotkin), em Foucault e na pós-

modernidade. Mencionando apenas um exemplo entre muitos, uma

expressiva parte dos geógrafos autointitulados críticos, ao constatar as

radicais mudanças no capitalismo e o final do socialismo real, vem

procurando, nos últimos anos, renovar as suas teorias, com o uso de

conceitos ou ideias da teoria crítica, isto é, da Escola de Frankfurt, em

especial as de Habermas. Um dos expoentes dessa vertente, ao procurar

superar a “geografia radical” e construir uma “geografia crítica”, assim

se expressou:

As correntes radicais da geografia, em todas as suas

variantes, não apenas procuraram elaborar uma crítica do

positivismo lógico, como também efetuar mudanças

sociais e políticas. Em face do visível êxito do capitalismo

nos anos 1980 e da queda dos regimes comunistas da

Europa durante os anos 90, a geografia radical fracassou

retumbantemente nos seus objetivos práticos. No exame

das razões desse fracasso, devemos reexaminar as cinco

características chaves da teoria crítica de Habermas: as

relações entre teoria e prática, a teoria dos interesses

cognoscitivos, a teoria da competência comunicativa, o

interesse pela emancipação e a prática da autorreflexão [...]

O trabalho da geografia crítica consiste em exprimir as

desigualdades e convencer as pessoas do poder sobre suas

prováveis repercussões, além de participar ativamente na

criação de novas formas de organização social e

econômicas. Em poucas palavras, devemos reconhecer o

mal-estar de nossa sociedade, adotar uma postura

autorreflexiva frente a ela e atuar como psicanalistas da

situação da qual fazemos parte29

.

Notamos um grande avanço nessa proposta que, como havia assinalado

Blomley, significa a passagem de uma geografia radical para uma

geografia crítica, pois crítica não se identifica com – embora

29

UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 250-3.

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124

pressuponha – um mero engajamento. O engajamento com os

problemas sociais e territoriais, inclusive os ambientais, foi a grande

bandeira de luta dos radicais anglo-saxônicos contra a geografia que

predominava na sua realidade até o final dos anos 1960: a geografia

pragmática ou quantitativa, voltada para planejamentos e

aparentemente “técnica” ou “neutra”. Ele teve o seu papel positivo.

Mas o mundo mudou, os problemas se modificaram – alguns se

ampliaram, outros se contraíram, outros novos surgiram e outros ainda

adquiriram distintas facetas – e o simples engajamento, embora

necessário, se tornou problemático (engajamento, por sinal, que de

forma visível hoje pode denotar uma atitude intransigente,

antidemocrática ou até terrorista, principalmente quando tido como

“radical”30

).

Não existe engajamento apenas por um “outro mundo” ou um “mundo

melhor”. Afinal de contas, o que quer dizer “melhor”? Sem dúvida, é

algo que pode ser defendido com convicção até mesmo por neonazistas,

maoístas, bolivaristas e vários outros tipos político-ideológicos com

viés autoritário. Assim, os termos radical e crítica não se identificam

completamente. Eles podem se sobrepor em algumas ocasiões, mas, em

geral, apontam para atitudes diferentes. Voltando à proposta de Unwin,

observamos que, nela, o papel do geógrafo crítico não é o de

meramente ser um terrorista intelectual ou um incendiário – isto é, um

engajado de forma radical – e, sim, um “psicanalista” que detecta

problemas e, ao mesmo tempo, potenciais. Como se sabe, o psicanalista

30

O termo radical, ao contrário de crítica, não possui uma rica tradição filosófica e epistemológica. Na verdade, ele veio do latim (radic = raiz) e, deixando de lado o seu uso na matemática, na química, na linguística etc., ele tem dois significados principais. Primeiro, denota uma atitude intransigente, inflexível, sem um verdadeiro diálogo com os outros. Segundo, e de acordo com a sua origem etimológica, significa ir às origens ou à raiz das coisas. É amplamente conhecida a frase tautológica de Marx segundo a qual “a raiz do Homem é o próprio Homem”, ou melhor, as suas relações no mundo do trabalho. O problema é que os dois significados frequentemente se misturam – inclusive em Marx, famoso pela sua arrogante intransigência frente a qualquer ideia que não as suas (inclusive dos socialistas utópicos, anarquistas etc.) – e, ademais, a “raiz” das coisas, exceto das árvores, é algo extremamente problemático: para os geneticistas a raiz de um indivíduo está na sua herança genética; para determinados antropólogos e também num outro plano, para os psicanalistas, a raiz de uma sociedade está nos seus mitos e valores; para os ecologistas, está nas relações com a natureza; e assim por diante.

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Ensaios de geografia crítica

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não destrói a personalidade que analisa e, sim, a reconstrói, a ajuda no

seu encontro, na superação dos seus problemas e fobias. A esse

respeito, alguns diriam, citando Gramsci, que para o novo nascer o

velho tem que morrer. Talvez sim, mas somente num sentido

metafórico. Pois o novo sempre significa certo prolongamento, com

determinadas nuanças, do velho. Não se trata do nascimento de um

indivíduo que vai – depois de várias décadas – substituir outro que

envelhece e morre. Essa visão organicista é equivocada na medida em

que é a mesma sociedade, embora transformada, que perdura. Ela pode

mudar sua estrutura produtiva, revolucionar seus valores, melhorar

substancialmente a qualidade de vida de seus membros. Mas sempre

haverá certa continuidade, uma herança que permanece. O velho,

portanto, nunca morre totalmente. É por isso que ainda hoje somos

herdeiros dos egípcios, dos gregos e dos romanos da antiguidade31

, dos

iluministas do século XVIII ou dos socialistas, no plural, do século

XIX.

Quanto a Unwin, a filiação desse geógrafo à teoria crítica na sua versão

habermaniana pressupõe uma aversão ao tradicional dogmatismo do

marxismo-leninismo e, principalmente, uma aceitação da democracia,

que, ao invés de ser combatida, deve ser preservada e inclusive

expandida. Mesmo sem concordarmos inteiramente com a posição de

Unwin (deixando de lado, por ora, o porque disso), cabe elogiar o

avanço teórico e político contido na sua proposta (como também na de

Blomley e outros) de uma transição da geografia radical para uma

geografia crítica pós-marxista aberta e plural.

31

FREUD, S. (Moisés e o monoteísmo. São Paulo, Imago, 1997), por exemplo, analisou com argúcia como o egípcio Moisés propagou uma religião monoteísta cujos mitos até hoje influenciam uma grande parte do mundo. Quanto à importância da filosofia – e das artes – grega ou do direito romano para a nossa vida atual, creio que é desnecessário insistir nesse item.

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127

Geografia crítica no Brasil:

uma interpretação depoente*

O advento e a expansão da geocrítica no Brasil

Existe um mito que, neste ensaio, procuramos questionar, o de que a

geografia crítica no Brasil se iniciou com o Encontro da AGB

(Associação dos Geógrafos Brasileiros) realizado em 1978 em

Fortaleza. A nosso ver, existe aí uma supervalorização dessa associação

e uma completa desconsideração dos professores de geografia que,

muito antes desse evento e à revelia da AGB, combatiam a ditadura

militar e implementavam um ensino crítico da disciplina. Este texto tem

o caráter de um depoimento pessoal na medida em que foi elaborado a

partir da memória de quem viveu esse período e tem uma visão

diferente daquela que, pelo menos nos meios acadêmicos, se tornou

hegemônica.

Em primeiro lugar, surge uma dúvida: do que estamos falando de fato?

O que é uma geografia crítica? Assim, para discorrermos sobre o

itinerário da geografia crítica no Brasil, temos obrigatoriamente que

definir do que estamos falando e quando esse fenômeno se iniciou.

Alguns identificam geocrítica tão somente com um discurso geográfico

não mnemônico que procura explicar ao invés de descrever. Já li uma

dissertação de mestrado, por sinal premiada, que reproduz esse viés

superficial e equivocado. Ora, se isso fosse verdade, existiria uma

geografia crítica no país desde os anos 1910 (com as obras de Delgado

* Texto elaborado em outubro de 2001 para integrar nosso site na net:

www.geocrítica.com.br. Fizemos ligeiras alterações na redação para o incluir nesta coletânea.

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José William Vesentini

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de Carvalho) ou, pelo menos, a partir da década de 1950 (com os

estudos de Pierre Monbeig). Mas essa é uma visão ingênua, que

estereotipa a geografia tradicional, não vê as suas diversas nuances e os

seus trabalhos mais ricos e profícuos. E também não compreende a

verdadeira reviravolta operada pelas geografias críticas, no plural, que

não apenas procuram explicar as relações sociedade/natureza (não

confundir com a “adaptação do Homem ao meio”, algo que a geografia

tradicional algumas vezes fazia muito bem) e as relações de poder no

espaço, como, principalmente, buscam atuar no mundo, desenvolver o

espírito crítico do educando, engajar-se nas questões e lutas sociais (das

mulheres, dos moradores, dos ambientalistas, enfim dos que pleiteiam

uma sociedade democrática e tolerante, dos que contribuem para

engendrar uma realidade mais justa).

Não se pode dissociar o advento das geografias críticas da reação ou do

posicionamento crítico dos geógrafos frente a dois processos ou marcos

fundamentais para a história do pensamento geográfico na segunda

metade do século XX: os movimentos sociais contestatórios dos anos

1960 e 1970 (contracultura, lutas pelos direitos civis e sociais, reação à

guerra do Vietnã, movimento feminista, maio de 1968 etc.) e a falácia

da razão instrumental ou, mais especificamente – em nossa disciplina –,

da geografia pragmática e voltada para o planejamento. A geografia

crítica, no final das contas, foi aquela – ou, mais propriamente, aquelas,

no plural – que não apenas procurou superar tanto a geografia

tradicional quanto a quantitativa, como principalmente procurou se

envolver com novos sujeitos, buscou se identificar com a sociedade

civil, tentou se dissociar do Estado (esse sujeito privilegiado naquelas

duas modalidades anteriores de geografia, a tradicional e a pragmática)

e se engajar enquanto saber crítico – isto é, aquele que analisa,

compreende, aponta as contradições e os limites, busca contribuir par

um projeto de autonomia – nas reivindicações dos oprimidos, das

mulheres, dos indígenas, dos afro-descendentes e de todas as demais

etnias subjugadas, dos excluídos, dos dominados, dos que ensejam criar

algo novo, dos cidadãos em geral, na invenção de novos direitos.

Os primórdios da geografia crítica no Brasil, a nosso ver, enraizaram-se

em dois elementos principais. Primeiro, a influência e os subsídios

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Ensaios de geografia crítica

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oriundos do Primeiro Mundo e, em especial, da França – o nosso

grande farol até inícios dos anos 1980. Segundo, e principalmente, a

luta contra a ditadura militar e, ao mesmo tempo, contra o projeto de

capitalismo dependente e associado, contra a ideologia da guerra fria e

os seus tristes reflexos na repressão policial, nas torturas, no

cerceamento do pensamento crítico etc.

Ao contrário do que se pensa (se é que quem crê nisso pensa!), a

geografia crítica no Brasil – como também na França, segundo o

depoimento de Yves Lacoste1 – não se iniciou nem se desenvolveu

inicialmente nos estudos ou teses universitários. Tampouco no IBGE e

muito menos nas análises ambientais ou nas de planejamento. Ela se

desenvolveu, a partir em especial nos anos 1970, nas escolas de nível

fundamental (de 5a à 8

a séries) e principalmente no ensino médio, o

antigo colegial ou 2o grau. E também, cabe reconhecer, em alguns

pouquíssimos cursinhos pré-vestibulares que, até inícios dos anos 1970,

tinham um perfil bem diferente daquele que é praticamente exclusivo

hoje. Ao invés de serem fábricas que apenas massificam os alunos e

visam lucros, eram, em alguns poucos casos, redutos de leituras e

discussões de obras críticas. Eram espaços de contestação e livre

discussão – inclusive de filmes por vezes censurados, venda de jornais

alternativos, peças teatrais que alguns grupos apresentavam

especialmente para os professores e alunos etc. Eu mesmo tive o

privilégio de discutir em seminários num cursinho, em 1969, obras

como Geografia do Subdesenvolvimento (de Yves Lacoste), Panorama

do mundo atual (Pierre George), Capitalismo e subdesenvolvimento na

América Latina (Gunder Frank), Formação do Brasil contemporâneo

(Caio Prado Jr.), Formação econômica do Brasil (Celso Furtado),

Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels) e outras.

A geocrítica no Brasil, portanto, se iniciou como um esforço, por parte

de alguns docentes, em superar (o que não significa abandonar

totalmente) a sua tradição, a sua formação universitária, aquilo que as

universidades diziam que “deveria ser ensinado”. Esses professores de

geografia procuravam suscitar nos seus alunos a compreensão do

1 Cf. o texto desse autor – “O ensino da geografia” –, disponível na rede in:

http://www.geocritica.hpg.com.br/geocritica04.htm

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subdesenvolvimento (a importância, nos anos 1970, do livro Geografia

do subdesenvolvimento de Yves Lacoste foi enorme, embora esse tema

incorporasse também outros autores e obras significativos da época:

Paul Baran e Paul Sweezy, Harry Magdoff, Teotônio dos Santos, Rui

Mauro Marini, André Gunder Frank etc.), ligando esse tema com o

sistema capitalista mundial e as suas áreas centrais e periféricas. Eles

procuraram também enfatizar a questão agrária do Brasil, a questão da

distribuição social da renda (um tema recorrente no nosso pensamento

crítico desde os anos 1970), a questão da pobreza e da violência

policial. Eles – esse pequeno grupo de professores do ensino médio,

principalmente, os verdadeiros introdutores da geografia crítica no

Brasil – estavam fazendo tudo isso enquanto os “setores avançados” da

universidade – é evidente que estamos nos referindo aos cursos

superiores de geografia, inclusive na USP – enfatizavam obras/temas

como A organização do espaço, de Jean Labasse, os Pólos de

desenvolvimento, de François Perroux, ou, no máximo, o livro

Geografia ativa, de Pierre George e outros, em suma, temáticas

distantes de qualquer posicionamento crítico e claramente

comprometidas com o planejamento estatal.

Em grande parte, pode-se mesmo afirmar que a introdução da geografia

crítica na academia deveu-se ao “encontro” ou diálogo desses

professores de nível médio (ou de alguns cursinhos pré-vestibulares)

mais engajados e críticos com alguns raros docentes universitários que

também estavam descontentes com toda aquela situação de controle,

repressão e censura que existia na segunda metade dos anos 1960 e nos

anos 70 no Brasil. Só para mencionar um exemplo significativo,

podemos lembrar que, nesse período, sequer se podia falar em

geografia política e muito menos em geografia do subdesenvolvimento

nas universidades. Na própria USP, no Departamento de Geografia

(considerado, com razão, como o “mais avançado” do país nessa época,

o único que não foi subjugado nem pelos cursos de curta duração –

estudos sociais – e muito menos pelo pragmatismo de inspiração norte-

americana que rebaixava, ou melhor, travestia, a nossa disciplina de

uma ciência humana e social para uma geociência), havia uma

disciplina chamada “geografia do mundo tropical”, que ocupava o lugar

do estudo do subdesenvolvimento e procurava “analisar” a realidade da

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Ensaios de geografia crítica

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América Latina, da África e de grande parte da Ásia sob esse parâmetro

alicerçado na “Terra”, isto é, o tropicalismo!

Alguns poucos docentes universitários “abriram as portas” da academia

para esses professores críticos e, com uma boa dose de coragem,

aceitaram orientar (ou melhor, conceder a sua assinatura ou aval, pois

em geral eles dominavam esses novos temas menos que certos

orientandos) a elaboração de dissertações de mestrado ou teses de

doutorado sobre assuntos/objetos que até então eram oficialmente

interditados à pesquisa e ao saber geográficos: a autoajuda dos

moradores de bairros populares, os problemas do desenvolvimento

capitalista no campo, análises críticas da geopolítica brasileira e de seus

projetos, a escola e o ensino da geografia como aparatos ideológicos, a

industrialização e a produção do espaço em alguma região específica, o

espaço geográfico como locus (e instrumento) de lutas sociais, as

desigualdades (e a natureza classista) das formas de apropriação social

do espaço etc. A nosso ver, foi a partir desta confluência – entre uma

meia dúzia (se tanto) de docentes universitários com doutorado e um

punhado de (ex-)professores do ensino médio que já estavam

revolucionando há anos esse saber nas salas de aula – que surgiu

oficialmente, enquanto legitimação pela academia, a geografia crítica

no Brasil.

A geografia acadêmica e a AGB

A influência de Gramsci, direta ou indireta, foi notável nessa referida

confluência que oficializou, via academia, a geocrítica no Brasil. O

conceito gramsciano de hegemonia com base cultural foi o leitmotiv

que conduziu esses professores críticos até a pós-graduação, até as

pesquisas e a carreira universitária. É lógico que não foram todos os

professores críticos de geografia que caminharam até a universidade

nos anos 1970 ou inícios dos anos 80. Alguns desses professores foram

presos, torturados e até assassinados nos porões da ditadura. Outros se

engajaram em movimentos de “guerrilha” urbana ou rural. Outros,

ainda, “sumiram” dos grandes centros urbanos, como São Paulo, onde a

repressão policial era mais acirrada e constante, indo trabalhar em

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José William Vesentini

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regiões distantes de onde eram conhecidos, muitas vezes em pequenos

centros urbanos do interior (ou do litoral), temerosos e, ao mesmo

tempo, relativamente desiludidos pelo desmantelamento dos grupelhos

autointitulados revolucionários. Mas uma parcela deles fez esse

referido percurso, procurando gramscianamente “tomar a

universidade”, local a partir do qual teriam uma maior influência

cultural e, consequentemente, política. Foram eles que produziram as

primeiras obras – as primeiras teses ou dissertações, as primeiras

pesquisas acadêmicas –, aquelas que ficaram, em muitos casos sendo

publicadas total ou parcialmente, as quais estão disponíveis em certos

arquivos e bibliotecas e, dessa forma, servem de marco como os albores

(pelo menos no sentido documental) da geocrítica no Brasil. Essa foi a

primeira geração dos geógrafos críticos no Brasil. Convém reiterar,

para evitar mal-entendidos, que estamos nos referindo à geocrítica no

sentido dado a partir dos anos 1970 por Yves Lacoste e outros, na qual

evidentemente existem altos e baixos, trabalhos de excelente nível e

outros nem tanto. Não devemos ser maniqueístas. Não existem apenas

boas pesquisas e ótimos textos nesta nova modalidade de geografia;

pelo contrário, alguns são dogmáticos e até panfletários! Por outro lado,

malgrado a predominância do mnemônico e dos assuntos tratados de

forma compartimentada, existiram excelentes trabalhos na chamada

geografia tradicional, por exemplo os de Pierre Monbeig.

Foi a geração que produziu trabalhos pioneiros de pesquisas e/ou

reflexões críticas acadêmicas nos anos 1970 (principalmente no final

dessa década) e nos anos 1980. Depois dela, veio a segunda geração,

aquela dos anos 1990 e desta primeira década do século XXI, a qual,

em grande parte, é constituída por ex-alunos ou orientandos dessa

primeira geração (com a qual convive). Talvez a principal diferença

entre elas seja que a primeira geração era, pelo menos até o final dos

anos 80, essencialmente gramsciana no sentido de acreditar que estava

promovendo uma revolução (anticapitalista e igualitária) na geografia e

na universidade. A segunda geração, por sua vez (é lógico que toda

regra admite exceções e que existem interpenetrações ou

sobreposições), preocupa-se muito mais com o método, com novos

enfoques para analisar o “espaço”, com o prestígio científico ou social.

Mas essas diferenças são, antes de mais nada, relativas e, desde o

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Ensaios de geografia crítica

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início, já havia determinadas ambiguidades ou aporias nas geografias

críticas tanto no Brasil como no exterior2.

Afirma-se, comumente, que o Encontro de 1978 da AGB teria sido o

marco fundamental da introdução da geocrítica no Brasil. Sem

nenhuma intenção de desmerecer esse importante Encontro, que

ocorreu em Fortaleza e teve inúmeros méritos, acreditamos que essa

interpretação é exagerada e mitificadora. É uma espécie de “discurso

dos vencedores”, isto é, propagado por um punhado de geógrafos, na

época estudantes (de graduação ou de pós-graduação) ou professores

universitários sem grande prestígio (mas com potencial) e

dominados/subordinados institucionalmente pelos medalhões, que

contestaram a supremacia destes e democratizaram a AGB. Este foi,

afinal, o grande significado desse encontro: uma democratização,

mesmo que relativa (como toda democratização afinal, pois a

democracia não é uma forma acabada e permanente e, sim, um

processo de (re)invenção de direitos e que se expande continuamente),

da AGB no nível nacional. A partir daí, deixaram de existir duas

categorias de sócios na AGB nacional: os plenos, os professores

universitários, que podiam ser membros da diretoria; e os demais, que

pagavam suas anuidades mas não podiam concorrer aos cargos

decisórios. A partir desse evento, todos, pelo menos em tese, podiam

votar e ser votados, se inscrevendo na época apropriada – a cada dois

anos – para concorrer aos cargos diretivos dessa associação.

É lógico que esse punhado de “contestadores” (como foram chamados

na ocasião) acabou por dominar a AGB nacional – e talvez até eles

tenham se tornado nos “novos mandarins” – daí a expressão que

empregamos, “discurso dos vencedores”. Mas também o tema

engajamento social, a favor dos explorados/dominados, foi apregoado,

pela primeira vez num Encontro nacional da AGB, tendo como base

(ou como uma espécie de “aval”, pois era uma obra oriunda da França)

o livrete de Yves Lacoste, A Geografia – isso serve, em primeiro lugar,

2 Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do

conhecimento científico, publicado nos Anais do 5o Congresso Brasileiro de Geógrafos (São

Paulo, julho de 1984, v. 2, p. 423-33).

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para fazer a guerra3. Mas, a partir dessa democratização da AGB

nacional (pois a AGB-SP, a seção regional de São Paulo da associação,

já havia sido democratizada dois anos antes, desde 1976, e inclusive foi

dela que surgiu a “edição pirata” dessa obra de Lacoste), não se pode

falar em “introdução da geografia crítica no Brasil”, como muitos

fazem. Isso consiste numa espécie de história institucional, algo que

lembra muito os historiadores tradicionais, que denegam as lutas

populares e só promovem as mudanças nas instituições oficiais, além

de desqualificar toda uma ação anterior de centenas de professores de

geografia, alguns dos quais pagaram caro por essa ousadia de

revolucionar o conteúdo geográfico (e a prática pedagógica) nas salas

de aula.

Por outro lado, não se pode exagerar a importância – que todavia existe

– ou a difusão da AGB. Provavelmente, no mínimo 80% do

professorado de geografia do país, a imensa maioria dos geógrafos

portanto (pois o ensino sempre foi e ainda é o grande mercado de

trabalho para os formados em geografia), até hoje nunca sequer ouviu

falar dessa associação4. (Imagine-se, então, em 1978, quando a AGB

era bem mais elitizada!). Apesar de uma louvável (e relativa)

democratização a partir de 1976-78, a AGB ainda prossegue como um

reduto de alguns professores universitários, principalmente dos mais

3 A primeira edição dessa obra, em francês, deu-se em 1976 (e logo surgiu uma tradução

portuguesa, que foi xerocada em São Paulo e originou uma “edição pirata” brasileira, com milhares de exemplares que, em grande parte, foram vendidos em Fortaleza durante o Encontro de 1978). Uma edição mais recente, traduzida de uma nova versão ampliada escrita pelo autor, foi publicada em 1988 pela editora Papirus, de Campinas. Nesta, existe uma introdução de nossa autoria que realiza uma espécie de “balanço” a respeito do significado dessa obra na geografia brasileira. 4 Utilizo esse número (e esse raciocínio) com base em pesquisas feitas em 1995-6 por alunos

do meu curso, Geografia crítica e Ensino, nas antigas Delegacias Regionais de Ensino da Grande São Paulo, quando constatamos que 54% dos professores de geografia na rede pública (de 5

a a 8

a séries e no ensino médio) não são formados nesta disciplina, sendo estudantes

(principalmente de história, ciências sociais ou geografia) ou engenheiros, advogados, teólogos ou seminaristas, historiadores ou sociólogos etc. A única referência que grande parte desse pessoal possui, sobre as mudanças na geografia, é a que está contida nos (poucos) bons livros didáticos, que algumas vezes eles usam para preparar suas aulas (mas não como livro-texto dos alunos, que no máximo possuem um caderno). Se essa é a realidade da Grande São Paulo, o centro dinâmico da economia nacional, imagine-se então a situação mediana no restante do país!

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Ensaios de geografia crítica

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jovens (doutores) e não mais apenas dos “figurões” (catedráticos) como

era anteriormente, e pouco tem a ver com a realidade da geografia que

predomina no Brasil e no mundo (e que contém o futuro desta

disciplina), que é a geografia escolar no ensino fundamental e médio.

Não se trata de uma apreciação destrutiva e, sim, de uma mera

constatação, ou, se preferirem, uma autocrítica construtiva no sentido

de se identificar com essa associação e se preocupar com suas

insuficiências. Para sermos sinceros (e autocríticos), temos que aceitar

que a AGB tem uma escassa representatividade entre os próprios

geógrafos – cabe lembrar que o professor de geografia também é um

geógrafo, apesar de sofrer preconceitos por parte dos “técnicos”.

Ademais, apesar de ela ter se tornado mais aberta a partir dos anos

1980, continua não sendo uma instituição de fato democrática. Creio

ser desnecessário lembrar que em seus encontros e congressos –

principalmente na escala nacional, pois existe muito mais abertura em

algumas AGBs locais –, via de regra, existe um verdadeiro

“pensamento único”, com mesas-redondas nas quais, praticamente,

todos têm a mesma ideologia (só existem briguinhas por motivos

pessoais), com os mesmíssimos convidados a cada novo evento para

exporem suas surradas ideias, com uma completa ausência de “outras

falas” em palestras ou mesas-redondas que abordam temas

considerados “quentes”, tais como a reforma agrária e as

transformações no campo, as novas tendências da geografia (aqui

somente os marxistas-leninistas dogmáticos são convidados),

geopolítica, globalização etc. Alguns dizem, sem pejo, que isso é

absolutamente “normal”, pois os “revolucionários” chegaram ao poder

na AGB, o que, com isso, está impedindo que os “reacionários” tenham

voz. Afora a absoluta ausência de um espírito democrático e mesmo

crítico nesse posicionamento (no sentido de crítica como troca de

opiniões, como crescimento mútuo a partir de várias alternativas), não

são apenas os “reacionários” ou os tradicionalistas que são reprimidos.

Até mesmo os pontos de vista libertários são desestimulados a

participar. Toda instituição democrática – vide, por exemplo, os

Encontros da ANPOCS, nas quais sempre há diferentes pontos de vista

sobre temas considerados “quentes” ou controversos –, principalmente

as culturais e acadêmicas, deve ser pluralista e aberta às diferentes

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interpretações. Rosa Luxemburgo, criticando os bolchevistas em 1918,

afirmou com propriedade que “a liberdade de quem pensa igual não é

liberdade. A verdadeira liberdade é para os que pensam de forma

diferente”. Existe, assim, um bolchevismo hegemônico na AGB, pelo

menos em grande parte de sua direção nacional.

É lógico que existem inúmeras razões que justificam (embora não

legitimem) essa elitização da AGB. Estamos falando agora da

elitização, de sua pouca representatividade, pois nada justifica o

bolchevismo em pleno século XXI. Primeiro, existe a necessidade de

suporte das universidades para que as AGBs locais – que, afinal, são a

base da nacional – possam existir: elas, em geral, inclusive a de São

Paulo, na qual a nacional está ancorada, mal conseguem pagar sozinhas

a conta do telefone ou do provedor da internet (imagine-se, então, o

aluguel de alguma sala); e tanto os diretores quanto os funcionários são

professores ou estudantes que realizam voluntaria e gratuitamente essas

tarefas. Temos, aliás, que elogiar o trabalho voluntário e gratuito de

todos os que contribuem para manter essa associação, que sem eles

deixaria de existir. Mas não há porque esconder que a maioria dos

estudantes que colabora acaba sendo manipulada, é apenas mão-de-

obra barata para que alguns poucos professores universitários

prossigam com sua doutrinação marxista-leninista. Depois, há o

excesso de trabalho e os baixíssimos salários percebidos pelos

professores do ensino fundamental e médio no Brasil, os quais, por esse

motivo, não têm tempo nem o mínimo de recursos financeiros

necessários para pagar as anuidades e frequentar assiduamente as

assembléias e os encontros da AGB. Mas esses fatores atenuantes, se

em parte justificam o elitismo (isto é a AGB como reduto de alguns

poucos professores universitários e, no fundo, uma instituição

desconhecida pela imensa maioria dos geógrafos), de maneira alguma

justificam o bolchevismo, principalmente após a crise do marxismo e

do socialismo real, após a constatação da total ausência de democracia

– ou mesmo de qualquer eficácia econômica sob o ponto de vista do

bem-estar da imensa maioria da população – nesses países que

seguiram os ensinamentos do marxismo-leninismo. Ademais, confundir

a AGB com a geografia do Brasil, como fazem aqueles que divulgam a

ideia de que o Encontro de Fortaleza teria sido o “deflagrador” da

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Ensaios de geografia crítica

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geografia crítica no país, é não enxergar a realidade, é confundir o todo

com uma pequena parte.

A geografia educativa

Já vimos que foi a partir da atividade educativa que a geocrítica se

iniciou e se desenvolveu no Brasil. Daí, ela se expandiu até a atividade

de pesquisas nas universidades, em especial na pós-graduação. Muitos

cometem o equívoco de identificar a geografia escolar com o conteúdo

dos livros didáticos, o que é um viés unilateral e, portanto, deformador.

Nessa ótica, surgiram determinados trabalhos, principalmente algumas

dissertações de mestrado defendidas nos anos 1990, que afirmaram que

a geografia escolar crítica no Brasil teria nascido ou com o livro

Estudos de Geografia, de Melhem Adas, cuja primeira edição saiu no

final de 1972, introduzindo nos compêndios da disciplina uma vertente

geográfica inspirada em Pierre George, ou com a nossa obra Sociedade

e espaço, originalmente editada em julho de 1982. A nosso ver,

nenhuma dessas opções é a rigor verídica, embora a segunda seria mais

correta se estivéssemos falando tão somente dos manuais escolares e

não da geografia escolar crítica como um todo. O livro didático é

apenas uma parte da geografia escolar; inclusive, nem é a mais

relevante. Ele é mais ou menos importante de acordo com o lugar e a

conjuntura: será fundamental no caso de professores/escolas que o têm

como base única e inquestionável, como uma “muleta” afinal. Mas ele

será pouco importante no caso, mais comum do que se pensa, em que

os professores/escolas os utilizam como ele deve ser utilizado: como

um complemento, como um material didático de apoio ao professor e

não como o definidor de toda a atividade educativa5.

Para mencionar a minha experiência pessoal, pois lecionei geografia

nas escolas fundamentais e médias desde que ingressei no primeiro ano

da graduação, no início de 1970 (a falta de docentes desta disciplina era

e ainda é imensa aqui em São Paulo), portanto, muito antes de publicar

o meu primeiro livro didático, já elaborava textos ou traduzia/adaptava

5 Cf. MOLINA, O. Quem engana quem? Professor versus livro didático. Campinas, Papirus,

1987.

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outros, de autores variados e que em sua maioria sequer eram

mencionados nos departamentos de geografia das universidades:

Lacoste, Kropotkin, Brunhes, Gunder Frank, Magdoff, Sartre, Simone

de Beauvoir, Baran e outros, a respeito do capitalismo e do “socialismo

real”, do sistema capitalista mundial, do movimento feminista e as

conquistas das mulheres no mundo e no Brasil, dos movimentos sociais

urbanos, da geopolítica mundial etc.

Lembro, em especial, de duas experiências marcantes na minha carreira

docente no ensino médio: o COE (Centro de Orientação Educacional,

uma escola particular no bairro da Lapa, São Paulo, que virou uma

cooperativa dirigida pelos próprios professores) e o curso supletivo do

Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema.

Lecionei naquele primeiro colégio, de 1973 até 1977 (tendo como

grande parceiro Gumercindo Milhomem), e no sindicato, de 1974 até

1976 (tendo como grande companheiro “Toninho” Pavanello). No

COE, em primeiro lugar, nós redefinimos todo o conteúdo da geografia

escolar – inicialmente, em 1973, tentamos usar livros didáticos,

especialmente aquele primeiro de Melhem Adas recém-lançado na

época, mas depois concluímos que eles eram inadequados para a nossa

“proposta gramsciana” e passamos a só trabalhar com textos

especialmente elaborados em função da realidade dos alunos e dos

novos temas que abordávamos. Em segundo lugar, também mudamos a

relação professor/aluno e a própria organização espacial da sala de aula.

Abolimos as aulas expositivas e só trabalhávamos com leituras de

textos (alguns com mapas e gráficos, que deviam ser interpretados),

debates, dinâmica de grupos e estudos do meio. Chegamos levar todos

os alunos para uma praia em Cananéia, no litoral de São Paulo, ficando

lá uma semana inteira realizando um estudo de campo interdisciplinar

que envolvia as marés, os recursos naturais e os problemas ambientais

locais, a economia e a população (valores, cultura, demografia) de uma

comunidade de pescadores, além da história oral e documental do

lugar. Orientamos os alunos nos levantamentos sobre mendigos e

população de rua no bairro da Lapa, sobre os problemas ambientais e

de moradia nesse bairro etc. Por sinal, tudo isso incomodava alguns,

que denunciaram o colégio como “subversivo”, e o antigo DOPS, a

polícia política da época, dirigida em São Paulo pelo delegado-

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Ensaios de geografia crítica

139

torturador Fleury, duas vezes invadiu o colégio e prendeu para

interrogatório alguns professores (aqueles que, por azar, estavam lá

naquele momento), além de ter roubado equipamentos da nossa gráfica

(nossa aparelhagem para imprimir textos e apostilas, inclusive com

cores). Por iniciativa minha, reorganizamos o espaço das salas de aula:

abolimos o quadro-negro, a mesa do professor e as carteiras individuais

dos alunos e no seu lugar colocamos algumas mesas redondas, para os

alunos ficarem permanentemente em grupos – cada um olhando para os

outros ao invés de todos olharem para o professor ou para o quadro-

negro – e, com frequência, abríamos uma imensa mesa-redonda na sala

para realizar algum debate. Quanto ao Sindicato dos Metalúrgicos,

onde lecionei em cursos supletivos durante cerca de 3 anos para alunos

trabalhadores, também introduzimos textos críticos e novos temas

(inclusive o direito de greve e a luta de classes), mas não mudamos a

organização espacial da sala de aula e nem mesmo a relação

professor/aluno, pois cada classe tinha centenas de estudantes e as aulas

expositivas eram uma imposição. No entanto, fomos advertidos várias

vezes pela direção do sindicato (na época pelega) que deveríamos

“maneirar” nas aulas, pois o pessoal do DOPS havia entrado em

contado com o sindicato, dizendo que receberam algumas denúncias e

poderiam até fechar o curso supletivo. Inclusive, foi esse o motivo da

nossa demissão (minha e do outro colega da área, o Pavanello, que há

alguns anos morreu num acidente de carro) pela diretoria pelega do

sindicato; afinal, não ensinávamos “o que deveria” (isto é, nomes de

rios ou de planaltos) e, sim, outros temas “sociais” que não eram

geográficos! Enfim, concluindo esta “digressão” de natureza pessoal

(recordando que este texto tem um caráter depoente), gostaria de deixar

claro que essas experiências – em especial, os textos que elaborei nesse

período (coloco na primeira pessoa do singular porque tanto o

Gumercindo quanto o Pavanello, dois importantes companheiros nessas

jornadas, não gostavam de redigir textos e, sim, de lecionar; os textos,

principalmente aqueles com os novos temas, eram de minha exclusiva

responsabilidade) – foram a base para a edição posterior dos meus

primeiros livros didáticos, Sociedade e espaço (de 1982) e Brasil,

sociedade e espaço (de 1984), que, não por acaso, são direcionados

para o ensino médio.

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José William Vesentini

140

O parágrafo anterior, quase que biográfico, só tem sentido porque

acredito que isso foi o que ocorreu, mutatis mutandis, com dezenas,

talvez centenas de outros professores de geografia pelo Brasil afora,

alguns anteriormente, desde o final dos anos 1960. Ouvi falar sobre

experiências similares, talvez até mais férteis, aqui em São Paulo

(inclusive em alguns raríssimos cursinhos pré-vestibulares), em Santo

André, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras cidades. Não

posso escrever a respeito delas por falta de material de apoio. Mas

acredito que foram experiências desse tipo que, no final das contas,

deram início à geografia crítica no Brasil. Mesmo porque, quando

examinamos a história de vida de muitos dos que produziram no final

dos anos 1970 e nos anos 1980 as obras pioneiras da geocrítica

brasileira, logo percebemos que, via de regra, eles começaram como

professores no ensino médio (ou em cursinhos) e, antes mesmo de

ingressarem na pós-graduação ou na carreira universitária, já

elaboravam textos e abordavam em suas aulas determinados temas que

eram considerados “não-geográficos”.

Quanto aos compêndios escolares, reitero o que já afirmei: que eles não

têm tanta importância assim (inclusive é no seu uso pelos professores

na sala de aula que eles adquirem tal ou qual característica) e que a

incorporação por alguns deles, nos anos 1970, das ideias georgeanas

(isto é, de Pierre George e a sua “geografia ativa”) não significou de

maneira nenhuma uma reviravolta crítica. Foi somente uma renovação

dentro do tradicional, na qual houve a abertura para alguns poucos

novos temas – o planejamento, a conservação dos recursos naturais e o

subdesenvolvimento entendido enquanto um rol de “características” –,

mas que eram assuntos e abordagens ainda não críticos e

comprometidos com o Estado enquanto sujeito, além de reproduzirem

uma visão idílica de sociedade – uma comunidade nacional sem

contradições – típica da geografia chauvinista. Algo, portanto, muito

distante daquilo que, desde o início, foi essencial na geocrítica, ou seja,

a crítica do capitalismo e do socialismo real, a compreensão do

subdesenvolvimento como parte periférica e integrante do sistema

capitalista mundial, a incorporação crítica da geopolítica, a questão

ambiental (e não meramente a “conservação dos recursos naturais”), o

distanciamento relativo frente ao Estado e, principalmente, uma

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Ensaios de geografia crítica

141

abertura para as contradições e para os sujeitos sociais (desde o

proletariado até as mulheres, passando pelos moradores, consumidores,

etnias subjugadas etc.) e as suas lutas.

As publicações e a difusão na mídia

A expansão da geocrítica no Brasil também ocorreu no plano das

publicações (revistas acadêmicas e em especial livros) e, pelo menos

em parte, na difusão pela mídia – rádio, televisão, revistas para o

grande público e jornais. Houve um sensível aumento – embora ainda

insuficiente quando comparado à história ou às demais ciências sociais

– nas publicações geográficas não didáticas. No caso das obras

didáticas, ocorreu, a partir do final dos anos 1980, uma progressiva

mudança, com praticamente todos os autores tradicionais passando a

incorporar – algumas vezes de forma indevida e tão somente mecânica

ou imitativa – parte dos conteúdos críticos. Sem dúvida que houve

neste setor um avanço inegável. Mas, coincidentemente ou não, a

vendagem dessas obras no conjunto vem diminuindo bastante e

constantemente com o decorrer dos anos. Isso porque, no tocante às

escolas públicas, verificou-se uma perda de poder aquisitivo das

famílias de baixas rendas, o que implicou num sacrifício do compêndio

escolar – de todas as disciplinas e, em particular, das estereotipadas

como “menos importantes”. Por outro lado, no que se refere às escolas

particulares, tornou-se cada vez mais comum o uso de apostilas

padronizadas elaboradas por grandes redes que vendem as suas

franquias: Objetivo, Positivo, Anglo, Pitágoras etc., que são

essencialmente voltadas para o sucesso no vestibular e acabaram por

dominar cerca da metade das escolas particulares existentes no

território nacional.

Talvez pela primeira vez, pelo menos no Brasil, livros geográficos não

didáticos passaram a ser lidos e até citados por profissionais de áreas

diversas: urbanistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos,

economistas etc. Para mais uma vez mencionar um exemplo pessoal

(afinal esta é uma escrita de natureza depoente), o meu livro A capital

da geopolítica, de 1987 (mas baseado na minha tese de doutoramento,

de 1985, portanto uma obra acadêmica), conheceu sete edições e foi

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José William Vesentini

142

lido não apenas por geógrafos, mas também – ou talvez até

principalmente – por urbanistas, cientistas políticos, militares,

historiadores e estudiosos de relações internacionais. Sei disso por

informações de livreiros e também pelos inúmeros convites para falar

sobre o assunto oriundos de departamentos de história ou de ciências

sociais, de seções do IAB, de associações de moradores etc. Mas sem

dúvida que o trabalho pioneiro nesse sentido foi aquele mencionado

livro-manifesto de Yves Lacoste, de 1976, que foi lido e citado por

centenas de profissionais de outras áreas e também por jornalistas

(lembro-me de uma resenha dessa época, assinada por Giles Lapouge,

no sisudo jornal O Estado de S. Paulo, que ocupou duas páginas

inteiras num domingo!). Por sinal, esse livrete de Lacoste, que nem de

longe é sua principal obra, foi provavelmente o trabalho geográfico

(deixando-se de lado publicações não acadêmicas tais como a revista

National Geographic) mais divulgado em todo o mundo desde pelo

menos os anos 1960, tendo sido traduzido e reeditado em dezenas de

idiomas: do inglês ao árabe, do japonês ao alemão, do sueco ao italiano

etc. Depois dele, só o livro A condição pós-moderna, de David Harvey

(de 1989), alcançou tamanha difusão internacional. E a geografia

brasileira passou a publicar muito mais que anteriormente, com o

revigoramento de alguns periódicos já existentes (como o Boletim

Paulista de Geografia) e o surgimento de novos outros (como a revista

Terra Livre e inúmeras outras de seções locais da AGB e/ou de

departamentos de geografia das universidades). Autores que

escreveram sucintos livros de divulgação da geocrítica, como

principalmente Rui Moreira (O que é geografia, de 1980) e Antonio

Carlos Robert de Moraes (Geografia: pequena história crítica, de

1981), alcançaram enormes vendagens e sucessivas reedições. Também

os livros dogmáticos Introdução à geografia – geografia e ideologia,

de Nelson Werneck Sodré (de 1976), e Marxismo e geografia, de

Massimo Quaini (editado no Brasil em 1979), tiveram uma grande

importância na propagação da geografia crítica para o grande público

brasileiro e para os estudantes universitários, pelo menos durante uma

fase inicial que ocorreu de meados dos anos 1970 até o final dos anos

1980. Para os professores de geografia em geral, que afinal são – pelo

menos em tese – os grandes consumidores dessas obras, na medida em

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Ensaios de geografia crítica

143

que o grande mercado de trabalho no Brasil para os geógrafos sempre

foi o ensino, duas coletâneas de textos sobre a geografia escolar, de

autores variados (brasileiros e franceses), tiveram e ainda têm uma

grande importância: Para onde vai o ensino da geografia? (editora

Contexto, 1989, organização de Ariovaldo U. de Oliveira) e Geografia

e ensino: textos críticos (editora Papirus, 1989, por nós organizada).

São obras que passaram a ser recomendadas em quase todos os

concursos para professores, que conheceram várias reedições e que

incorporam pontos de vista diferenciados (e às vezes até alternativos) e

refletem bem a natureza pluralista da geocrítica no que se refere ao

entendimento do ensino da disciplina. Depois delas, nos anos 1990 e

nesta primeira década do século XXI, surgiram inúmeros outros livros

que podem ser classificados como geografia crítica, inclusive alguns

sobre as novas perspectivas para o ensino da geografia. Essas obras

mencionadas representam apenas os primeiros livros críticos no Brasil,

no final dos anos 1970 e nos anos 1980.

Um autor que merece um destaque à parte nessa trajetória da geocrítica

no Brasil é Milton Santos. Não tanto pela sua influência nas pesquisas

ou nos trabalhos científicos, muito menos pela sua influência no ensino

da disciplina, mas, sim, pela sua presença marcante na academia (como

um “novo mandarim”) e principalmente na mídia. Ele publicou, em

1978, a obra Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma

geografia crítica, que, no fundo, pretendeu emular com o mencionado

livro-manifesto de Yves Lacoste e também propugnar uma “nova

geografia”, só que “científica” e “não ideológica” (com uma forte

clivagem entre ciência e ideologia, inspirada em Althusser, que Lacoste

considera sem importância) e que enfatizasse o espaço enquanto

“totalidade”. Mas essa proposta, a nosso ver, é problemática e

representa um atraso em relação à de Lacoste ou mesmo em relação ao

pensamento gramsciano dos professores que já lecionavam uma

geografia crítica anteriormente. Isso devido, em primeiro lugar, a um

ecletismo (não confundir com pluralismo), isto é, mistura ou

sobreposição sem coerência, sem trabalhar a interligação das

perspectivas, da análise sistêmica via ecossistemas com a concepção

kantiana do “espaço como acumulação desigual de tempos”, com a

ideia hegelo-marxista de totalidade (entendida pelo viés althusseriano,

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José William Vesentini

144

que afinal de contas é stalinista), com certo cientificismo (separação

rígida entre ciência e ideologia, na pretensão de “fundar” uma geografia

científica ou uma espaciologia) e com visível flerte com determinadas

ideias terceiro-mundistas panfletárias. Em segundo lugar, devido à falta

de engajamento e de sujeitos sociais, além das ambiguidades na noção

de espaço, que se torna fetichizado. Se Lacoste escreveu a sua obra em

face do maio de 1968 na França e como uma análise/denúncia da

importância do raciocínio geográfico para a guerra do Vietnã, tendo

como interlocutores os cidadãos em geral, pensando em contribuir para

a expansão dos direitos democráticos (entre os quais ele incluiu o

“saber ler os mapas” e “conhecer o espaço geográfico para nele atuar

mais eficazmente”), Santos, por sua vez, não soube muito bem a quem

se dirigir e com um viés positivista propôs uma “nova ciência” –

inclusive sugeriu o termo espaciologia – que enfocasse o espaço

enquanto sujeito (sic) e como totalidade (ou melhor, como formação

sócio-espacial, inspirada na leitura althusseriana de formação sócio-

econômica; Althusser afirma que essa formação tem instâncias – a

econômica, a política e a ideológica – e Santos nela acrescenta a

“instância espacial”).

É evidente que tal proposta teórico-metodológica não poderia ter

grande aplicabilidade nas análises de fato críticas, ou mesmo nas

pesquisas engajadas (que, em alguns casos, não são críticas), pois quem

estuda, por exemplo, as lutas pela terra no meio rural tem que

privilegiar os sujeitos sociais envolvidos nos conflitos e não uma

espaciologia abstrata; quem estuda a questão da moradia nas cidades

tem que privilegiar os movimentos sociais urbanos – ou então a política

estatal – em contraposição aos interesses imobiliários; e quem estuda as

fronteiras ou o território tem que buscar os atores e os seus

instrumentos (inclusive ideológicos) que (re)construíram esses objetos

e não ficar regurgitando a respeito do espaço enquanto totalidade. Por

isso, autores como Foucault (nas relações entre espaço e poder e no

entendimento deste como uma rede e não uma pirâmide, como algo

mais amplo que o Estado) e Lèfebvre (no entendimento do espaço

produzido pelo capitalismo e pelas lutas sociais), principalmente, além

de outros (Lipietz e Francisco de Oliveira, na questão regional, José de

Souza Martins, na análise dos sujeitos do meio rural brasileiro, Claude

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Ensaios de geografia crítica

145

Raffestin, na redefinição de conceitos como território/territorialidade,

espaço/espacialidade etc.), foram e são muito mais importantes nos

trabalhos acadêmicos da geocrítica brasileira – em especial, nas

geografias política, social, regional, demográfica, urbana e agrária – do

que a espaciologia de Milton Santos. Este, no final das contas, só

acabou produzindo uma meia dúzia de discípulos bem comportados e

pouco criativos, que recolhem informações ou dados estatísticos sobre

temas “novos” (telecomunicações, aeroportos, hotéis, sistema bancário

etc.) e tão somente os reproduzem acompanhados de frases

estereotipadas extraídas do mestre (tais como “este espaço manda e

aquele obedece”, “isto é um fixo e aquilo é um fluxo” ou “o território é

desigualmente apropriado”), sendo incapazes de engendrar qualquer

tese ou mesmo qualquer ideia nova a respeito do assunto abordado.

Pode-se exemplificar isso com o último livro de Santos, uma

publicação praticamente póstuma, O Brasil, território e sociedade no

início do século XXI (editado em 2001 em co-autoria com Silveira,

além da ajuda de inúmeros estagiários, que receberam bolsas de

iniciação científica durante anos e fizeram levantamentos bibliográfico

e de dados, além de resenhas de livros e teses). É o mais ambicioso de

todos os trabalhos da espaciologia: os autores sugerem na introdução

que ele já nasceu como um clássico comparável às obras de Caio Prado

Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes (sic). Essa obra representa,

com perfeição, a incapacidade da espaciologia em produzir qualquer

trabalho importante ou mesmo criativo. Existe nas 473 páginas dessa

obra um amontoado de dados estatísticos, cartogramas e informações

descritivas, que podem ser facilmente obtidos por qualquer pessoa em

almanaques ou anuários especializados (inclusive na internet) – sobre a

rede bancária no Brasil e sua localização no território, os aeroportos, as

redes de transportes, as refinarias de petróleo e os dutos, os shopping-

centers, os telefones e computadores etc. – e nenhuma tese ou ideia

nova a respeito do significado disso tudo, apenas a constante repetição,

em cada capítulo, de clichês ou frases estereotipadas do seguinte tipo:

“alguns espaços mandam” (o Sudeste, especialmente São Paulo) e

outros “obedecem”, “o território é desigualmente apropriado”, “o lugar

é continuamente extorquido” etc. Não existe nenhuma análise dos

sujeitos, das classes ou grupos sociais, e nem mesmo qualquer

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José William Vesentini

146

referência às lutas e conflitos ou aos projetos que (re)constroem o

espaço ou o território. É uma obra que lembra muito aqueles longos

artigos tradicionais do IBGE, editados na revista brasileira de

geografia nos anos 1950, 1960 e parte dos anos 1970, sobre a atividade

industrial, as cidades grandes e médias, os estabelecimentos

agropecuários etc., nos quais nunca havia uma explicação geográfico-

científica e, sim, um acúmulo de informações e dados estatísticos,

sempre acompanhados de cartogramas que mostravam a distribuição do

objeto estudado no território nacional. A única diferença é que este

livro procurou “sintetizar”, ou melhor, abordar na mesma obra todos

aqueles temas – e alguns outros – que as publicações do IBGE

enfocavam separadamente. Mas, no fundo, eles não estão integrados no

livro e, sim, divididos em capítulos distintos nos quais sempre é

repetida ad nauseam a retórica pseudo-crítica de que o “território é

apropriado desigualmente”, que a “guerra fiscal é uma guerra de

lugares” (e não de sujeitos sociais) e que existem “áreas que mandam”

(ou exploram) e outras que são “subordinadas”.

Antes que algum desinformado imagine que estamos negando que o

território é “desigualmente apropriado” ou que existem regiões mais e

outras menos desenvolvidas – pensando-se não somente em termos de

localização de indústrias ou de shopping-centers e, sim, de padrão de

vida dos habitantes (algo meio negligenciado no livro) –, gostaria de

lembrar que essa é uma velha discussão das ciências sociais (desde,

pelo menos, Marx e já abordada por geógrafos do passado como

Kropotkin e outros) e que o pensamento crítico, em todas as suas

vertentes, sempre reprochou essa interpretação conservadora de que

uma região (ou lugar, ou mesmo país) explora outras. Isso porque essa

ideia implica num fetiche do espaço, que passa a ser visto como um

“sujeito”. Ela omite as relações sociais de dominação e faz o jogo dos

dominantes ao espacializar ou reificar uma atividade inter-humana. O

próprio Marx, autor que teoricamente serve de alicerce para esse tipo de

raciocínio panfletário, citado várias vezes na obra (sempre com frases

descontextualizadas), já afirmava que a exploração é essencialmente

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Ensaios de geografia crítica

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social e nunca espacial6. É lógico que ela se manifesta ou se concretiza

no espaço, mas é produto de relações sociais. Não é por acaso que as

elites ou as oligarquias regionais dessas áreas consideradas atrasadas se

identificam plenamente com esse discurso pseudo-crítico – do tipo, por

exemplo, deste raciocínio simplista encontrável dezenas de vezes com

ligeiras alterações no livro: “Se São Paulo, que é apenas um estado,

possui 30 aeroportos – ou shopping-centers ou universidades –, por que

o Piauí, que também é um estado, só possui dois?”. Existe aí uma

entidade mitificada, o território dos estados, que acaba sendo mais

importante que os cidadãos. Em nenhum momento do livro se mostra

que São Paulo tem cerca de 25% da população nacional e o Piauí

apenas 1,5%, Roraima 0,2% e Tocantins 1,5%. Mas, a todo momento,

se repete que São Paulo tem 61 shopping-centers (em 1999), o Rio de

Janeiro 23 e, em contrapartida, nos estados nordestinos e nortistas os

shopping-centers são restritos a algumas capitais ou áreas

metropolitanas7. Ou que, na “região concentrada” (o Centro-sul),

existem 72% da rede bancária do país e uma agência bancária para cada

142,4 quilômetros quadrados, algo 126 vezes maior do que essa mesma

densidade na região Norte8. Uma bobageira, pois qualquer estudante de

ensino médio um pouco perspicaz irá recordar que o Centro-sul do

Brasil concentra mais de 65% da população nacional e que a região

Norte, com apenas 5% desse total possui uma extensão territorial

gigantesca, o que torna óbvia essa densidade bem menor de agências

bancárias por Km2.

Existem, sim, desigualdades regionais – por sinal, perceptíveis e

importantes – no Brasil, mas esse tipo de discurso que nivela todos os

Estados, que substitui a análise das desigualdades sociais por

comparações simplistas entre unidades da Federação, que fetichiza os

territórios estaduais e as regiões – as quais, no fundo, são uma ficção,

uma construção dos políticos ou do investigador – nada revela de novo

6 Para evitar uma enorme digressão, no final deste texto incluímos um adendo no qual se

discute com mais detalhes essa questão do sujeito nas relações de exploração e dominação – se regiões ou classes/grupos sociais. 7 Cf. SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. Rio

de Janeiro, Record, 2001, p. 151-2. 8 Idem, p. 188.

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(pelo contrário, esconde muita coisa) e nada tem de crítico. Esse

raciocínio ideológico acaba por encobrir a dominação social autoritária

(que normalmente acompanha qualquer situação de

subdesenvolvimento), criando um “inimigo” a ser combatido por todos

(isto é, as “regiões mais desenvolvidas”), igualando dominantes e

dominados, as elites regionais e a imensa maioria da população. Não

por acaso, esse tipo de discurso conta com a total adesão das

oligarquias regionais na medida em que implica na reivindicação de

mais investimentos para a “região explorada”, mais verbas que no final

das contas, vão ser apropriadas por essa elite. Observe-se, ainda, que

existe um sujeito implícito nesse tipo de discurso – o Estado,

naturalmente –, que seria o ator encarregado de “corrigir (de cima para

baixo) os desequilíbrios territoriais” através de uma realocação dos seus

gastos (que, logicamente, originam-se nos impostos pagos em especial

pelos cidadãos das áreas mais ricas e populosas, os quais nunca são

consultados ou sequer auscultados nesse raciocínio autoritário).

Entretanto, é inegável a importância que Milton Santos teve na difusão,

através da mídia, da geocrítica brasileira. Que eu saiba, ele foi o único

geógrafo a sair nas páginas amarelas da revista Veja, a ser longamente

entrevistado em praticamente todos os programas importantes da

televisão e também por todos os principais jornais e revistas do país, a

escrever periodicamente colunas na página 3 do jornal Folha de S.

Paulo etc. Ao seu redor, criou-se um grupo com ramificações em todo

o território nacional (e até no exterior – por exemplo, na Argentina) que

constantemente o promovia. Foram realizados, na primeira metade dos

anos 1990, vários encontros ou seminários internacionais sobre a nova

ordem mundial ou sobre o novo mapa-mundi, com subsídios oriundos

do CNPq e de outros órgãos públicos de financiamento (nos quais

Santos e o seu grupo sempre tiveram um grande poder), sendo

convidados vários importantes geógrafos franceses e norte-americanos

e, indefectivelmente, ele era designado para ser o conferencista da

abertura, a grande estrela do evento. Esse entourage conseguiu até – e

essa foi a verdadeira “pedra de toque” de toda a estratégia de promoção

da sua figura e, por tabela, de todo o grupo – forjar uma imagem sua

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como “refugiado esquerdista” da ditadura militar9 e, principalmente,

convencer a mídia brasileira que o então recém-criado e desconhecido

prêmio Vautrin Lud, que Santos ganhou em 1993, era uma espécie de

“prêmio Nobel da geografia”. Enfim, a partir dos anos 1990, pouco a

pouco a figura de Santos e a geocrítica brasileira passaram a se

confundir na mídia. Isso nunca ocorreu no plano da realidade – isto é,

das pesquisas acadêmicas, das teses e das obras publicadas – e muito

menos na consciência da maior parte dos geógrafos, em especial do

professorado. Mas sem dúvida que ocorreu na mídia e, por conseguinte,

na compreensão de boa parte do público e até dos profissionais de

outras áreas. Eu mesmo há alguns anos ouvi uma pergunta-afirmação,

feita por um jornalista que fazia doutorado na USP e lecionava no

departamento de jornalismo de uma universidade federal num estado

sulino, se foi depois e devido a Milton Santos que a geografia deixou

de ser uma disciplina descritiva e voltada para a memorização de

nomes de capitais ou de rios... E, também há alguns anos, um professor

universitário de geografia de um país latino-americano me enviou um

e-mail solicitando ajuda no levantamento das obras de Santos (e apenas

dele) para que ele pudesse escrever um artigo sobre a “história da

geografia crítica no Brasil”...

Resta apenas avaliar se essa identificação da geocrítica brasileira com a

figura do Milton Santos, operada através da mídia, foi positiva ou

negativa. Talvez tenha sido positiva, na medida em que contribuiu para

ampliar, embora não muito, o espaço da geografia nos meios de

comunicação de massas. Mas talvez tenha sido negativa, na medida em

que obliterou outras falas, outros caminhos e alternativas diferenciadas,

sugerindo uma homogeneidade onde sempre houve pluralidade e uma

rica complexidade. Em todo o caso, devemos lamentar a sua morte

prematura em junho deste ano (2001), num momento em que ele estava

9 Uma imagem, a rigor, maquiada, pois, até o golpe militar de 1964, Santos foi muito ligado a

José Aparecido, uma das figuras-chave do governo populista e direitista de Jânio Quadros. Ele se auto-exilou na França por conveniência e não devido a qualquer perseguição séria por parte dos órgãos de repressão. Ademais, só podemos lamentar nossa cultura subdesenvolvida que transforma em “heróis” aqueles que, no pós-64, saíram do país e viveram durante algum tempo no Chile, em Cuba ou na França, pois quem de fato contribuiu na luta contra a ditadura militar foram os que permaneceram e continuaram a atuar apesar de todos os riscos.

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numa grande efervescência intelectual. Pois, bem ou mal, ele sempre

buscou incorporar novos temas ao discurso geográfico e,

indiscutivelmente, teve o mérito de acompanhar as mudanças que

ocorreram nos últimos anos e décadas no espaço mundial e no território

brasileiro. Que ele descanse em paz e que, mesmo sem sua importante

contribuição, as geografias críticas do/no Brasil prossigam neste seu

itinerário de revolucionar o ensino da disciplina, de abordar/incorporar

novos temas e de realizar novos – de preferência de forma inovadora e

original, além de comprometida socialmente – estudos e pesquisas.

ADENDO – A POLÊMICA SOBRE O ESPAÇO COMO SUJEITO

Os comentários que fizemos sobre a obra de Milton Santos – em

especial, sobre o livro póstumo – demandam uma discussão mais

detalhada sobre o que alguns geógrafos denominam fetiche do

espaço10

. Ou seja, o espaço visto não apenas como condição e

expressão material das relações sociais, mas como um sujeito, um ator

nos processos históricos. Trata-se de uma interpretação oriunda do

marxismo-leninismo – acredito que a sua origem remonta ao livro de

Lênin, Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de 1917, que já

analisamos num escrito anterior11

. Cabe apenas recordar que esse livro

foi escrito basicamente como contraponto à social-democracia de

Kautsky e com o nítido propósito de legitimar a “tomada do poder” por

um partido supostamente marxista num país considerado atrasado, a

Rússia, o qual, para Marx, não era ainda, devido ao fraco

desenvolvimento de suas forças produtivas – e, consequentemente, à

reduzida proporção do proletariado na população total –, um candidato

a transitar do capitalismo ao socialismo. Nesse livro, Lênin, mesmo

sem o dizer ou talvez perceber, contrariou as ideias de Marx (alguns

10

Cf. VILLENEUVE, P. Y. Classes sociais, regiões e acumulação do capital. In: Seleção de Textos n. 8, AGB-SP, 1981, p. 1-20. 11

Cf. VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas, Papirus, 2003.

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Ensaios de geografia crítica

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dogmáticos dizem que “superou” ou “enriqueceu”) sobre a exploração

social, e sugeriu que existiria uma exploração entre Estados nacionais,

ou seja, entre espaços nacionais diferenciados – os países

desenvolvidos ou exploradores (na época, potências coloniais) e os

países periféricos ou explorados. A ideia de nações oprimidas (e não

apenas classes exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença –

já ultrapassada pelos fatos – na impossibilidade do capitalismo

prosseguir para além dessa fase, isto é, a fase do imperialismo. Num

trecho do livro, Lênin assinala:

Os monopólios, a oligarquia, a tendência à dominação

em detrimento da liberdade, a exploração de um

número cada vez maior de nações pequenas ou débeis

por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes:

tudo isso deu origem a essas características distintivas

do imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de

capitalismo parasitário ou em estado de decomposição12

.

Essa assertiva contraria frontalmente os escritos de Marx, que, afinal,

foi o forjador da noção de exploração social alicerçada no trabalho vivo

não pago, isto é, na mais-valia. Só existe exploração ou transferência de

mais-valia entre pessoas, entre o trabalho e o capital, afirmou com

clareza Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em suas palavras:

Já vimos que a taxa da mais-valia depende, em primeiro

lugar, do grau de exploração da força de trabalho [...]

Outro fator importante para a acumulação é o grau de

produtividade do trabalho social. [Assim] um fiandeiro

inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo número de

horas com a mesma intensidade [...] Apesar dessa

igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do

produto semanal do inglês, que trabalhou com uma

poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha

com uma roda de fiar. No mesmo espaço de tempo em que

12

LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, Anteo, 1971, p. 153, grifo nosso.

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152

um chinês fia uma libra-peso de algodão, o inglês

consegue fiar várias centenas de libra-peso13

.

Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do

que a China porque tinha uma tecnologia mais avançada – o que, para

Marx, significava maior quantidade de mais-valia relativa e, portanto,

uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o

chinês – e não devido a uma transferência de riquezas da China para a

Inglaterra. Para Marx, a Inglaterra era mais rica porque produzia

internamente mais riquezas ou mais-valia – e isso mesmo com os

operários ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por

semana que os chineses, ou até mesmo com estes últimos trabalhando

bem mais; só que eles produziriam menos valor devido ao menor

desenvolvimento tecnológico. Assim, para Marx, a exploração do

trabalho é um processo inter-humano, uma relação social e nunca uma

relação inter-regional ou internacional. As pessoas, na verdade as

classes – e não os espaços –, é que são os sujeitos dos processos sociais

e das relações no mundo do trabalho. É exatamente por esse motivo que

a “revolução social”, para esse clássico, deveria necessariamente

ocorrer primeiro nas regiões mais desenvolvidas pela ótica capitalista.

Ou seja, pela ótica marxiana, regiões com maior acumulação de capital,

com tecnologia mais evoluída e, portanto, com maior exploração do

trabalho; não se deve confundir exploração do trabalho com pobreza.

Afinal, de onde Santos retirou esse juízo de que algumas regiões

“mandam” e outras “obedecem” ou que as primeiras exploram as

segundas? Indiretamente foi de Lênin, do marxismo-leninismo pela via

de autores posteriores ao líder bolchevique. Como se sabe, Santos

retornou ao Brasil no final dos anos 1970, após um exílio voluntário no

exterior, e trouxe com ele, através de inúmeras publicações e cursos ou

orientações de alunos, uma visão estruturalista influenciada pelo

marxismo althusseriano (ou seja, de Luis Althusser e discípulos, tão em

moda na Paris da primeira metade dos anos 1970). Sem dúvida que no

Brasil, nos círculos mais enfronhados com as discussões marxistas ou

pós-marxistas, já se havia superado essa leitura empobrecida do

13

MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 696-704, passim.

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Ensaios de geografia crítica

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marxismo. Alguns intelectuais brasileiros tinham escrito ácidas críticas

ao althusserianismo (Giannotti, por exemplo, que era tido nos meios

uspianos como o “mais proeminente marxista brasileiro”; hoje, ele

afirma ter superado essa sua fase da vida14

); também o importante texto

do historiador inglês Thompson, que evidenciou o stalinismo insidioso

que existe na leitura althusseriana do marxismo, era amplamente

conhecido15

. Mais ainda, nessa época já trabalhávamos com outros

autores, críticos embora não-marxistas, na geografia brasileira:

Foucault, principalmente, como também Lefort, Castoriadis e outros,

que Santos nunca admitiu no seu esquematismo teórico, provavelmente

porque isso implicaria numa “implosão” do seu edifício conceitual

fechado e alicerçado na ideia de totalidade. Do althusserianismo Santos

incorporou a ideia de totalidade enquanto formação sócio-espacial e o

espaço como uma “instância” dessa sociedade total. Outra grande

influência que sofreu e assimilou na sua obra foi da fase neomarxista de

Henri Lefèbvre, por sinal um crítico de Althusser e um dos poucos

marxistas (depois de Gramsci) que valorizou o espaço na análise do

capitalismo. Lefèbvre, nos seus trabalhos a partir do final dos anos

1960 (ocasião em que deixou de ser o principal teórico do Partido

Comunista Francês, sendo substituído pelo seu desafeto Althusser), não

mais admitia uma “totalidade fechada” e esquematizada, mas isso não

impediu que Santos pinçasse algumas ideias de suas obras para

construir uma espaciologia fundamentada na formação sócio-espacial e

na percepção do espaço como um sujeito. Enfim, Santos aproveitou

uma ou outra coisa desse autor – como a noção de “produção do

espaço” e principalmente a “luta de lugares”, de contradições “do

espaço” e não apenas “no espaço” –, mas sempre encaixando todas

essas noções no seu edifício estrutural, na sua leitura althusseriana de

“instâncias” e de “formação sócio-espacial”.

14

GIANNOTTI, J. A. Contra Althusser. In: Teoria e Prática n.3, São Paulo, 1968; e Certa herança marxista, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. No primeiro texto, o então filósofo marxista reprocha Althusser por fazer uma leitura cientificista e anti-historicista de Marx centrada na oposição (que seria estranha para o criador do materialismo histórico) entre objeto de conhecimento e objeto real. Já no recente livro, o pensador pós-marxista e em tese pluralista afirma que Marx é apenas um clássico como outro qualquer e que sua leitura do real cometeu o equívoco de confundir contradição com contrariedade. 15

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

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154

Uma leitura frágil e equivocada. Não porque denuncia as desigualdades

regionais ou territoriais, algo trivial e teorizado com mais propriedade

pelos filósofos e cientistas sociais desde pelo menos o século XIX (E

mesmo pelos economistas brasileiros que, desde no mínimo os anos

1950, já tinham feito diagnósticos das desigualdades regionais do país

muito mais ricos e operacionais que o amontoado de informações

díspares coletadas por Santos. Basta lembrar da obra de Celso Furtado

de 1959, A operação Nordeste); mas, sim, porque amiúde cai num

discurso meramente prolixo e vazio, inclusive panfletário. Nem tem a

sofisticação do marxismo, no qual supostamente se apóia, porque não

consegue teorizar a transferência interespacial de valor, base da

exploração. Fica apenas no que Marx denominava aparências: tantos

aeroportos, agências bancárias ou shopping-centers aqui nesta região,

outros tantos ali na outra região, um número menor que, dessa forma,

“comprova uma apropriação desigual do espaço”, logo uma exploração.

Simplista, não? Mas é isso mesmo.

Enfim, um quiproquó sobre a hipotética exploração de alguns lugares

sobre outros. Mas exploração é uma categoria social, inter-humana, que

não pode existir entre coisas, entre espaços. É por isso que grande parte

dos pensadores marxistas ou neomarxistas, desde as últimas décadas,

deixou de lado a ideia leninista de “nações exploradas” – ou mesmo de

classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos

sem terra etc. Pois, para haver exploração, é necessário existir trabalho

não pago, ou seja, geração de mais-valia. Ninguém é explorado porque

não tem emprego, terra ou capital. Tampouco porque não tem na sua

localidade um aeroporto ou um shopping-center. Por isso a noção de

excluídos tornou-se mais usada para se referir a essa situação – social,

regional ou internacional – de pobreza ou de carência16

.

16

Um importante intelectual brasileiro [que nada tem a ver com Santos, exceto por um grupelho de sequazes em comum] encetou uma crítica à noção de exclusão, argumentando que todo excluído de uma forma ou de outra é útil ao sistema ou, em outras palavras, a exclusão seria “uma expressão da contradição do desenvolvimento capitalista” (MARTINS, J. de S. Exclusão social e a nova desigualdade. S. Paulo, Paulus, 1997). Considero equivocado esse ponto de vista – devedor da filosofia de Hegel e de seu maior discípulo, Marx – que sempre parte de uma totalidade imaginada explicando tudo, como algo onipresente e com um destino pré-fixado, o que implica em desconsiderar as anomalias, o contrapoder que não se subsome à pretensa “luta de classes”, o contingente e o surgimento do novo. Ademais, esse

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155

A categoria exploração pressupõe trabalho, atividade produtiva,

extração de riquezas, mais-valia enfim, enquanto a noção de exclusão

significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa –

seja do trabalho, do acesso à escola ou à saúde gratuitas e/ou de boa

qualidade, do acesso à moradia ou à terra etc. Essa percepção teórica

mais sofisticada é algo que falta a Santos. Mas, no fundo, ele nunca se

preocupou com isso, pois aparentemente o que objetivava era gerar

impacto, ser promovido na mídia e na academia, publicar dezenas de

livros em pouco tempo e ter uma trupe ao seu redor ajudando na sua

promoção. Um conto de Machado de Assis – um diálogo entre pai e

filho, com conselhos daquele para este – retrata bem o seu objetivo

plenamente alcançado:

O meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo

menos notável [...] Nenhum [ofício] me parece mais útil e

cabido que o de medalhão [...] Sentenças latinas, ditos

históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas,

é de bom-tom trazê-los consigo para os discursos de

sobremesa, de felicitação ou de agradecimento. Melhor

que tudo isso, porém, que não passa de mero adorno, são

as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas

consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual

e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar

os outros a um esforço inútil [...] Não te falei ainda dos

benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona

loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de

pequenos mimos [...] Que Dom Quixote solicite os favores

dela mediante ações heróicas ou custosas [mas] o

verdadeiro medalhão tem outra política. Quanto à matéria

do discurso, tens à escolha: ou os negócios miúdos ou a

metafísica. Mas se puderes adota a metafísica. Um

discurso de metafísica política apaixona naturalmente os

argumento apenas retoma as críticas feitas pela sociologia latino-americana dos anos 1970 contra a ideia de marginalidade, identificada sem mais com a exclusão como se esta última fosse apenas uma nova roupagem daquela, como se não tivesse pressupostos diferentes. Longe de ser “um estado, uma coisa fixa e irremediável”, como o autor interpreta, a exclusão é uma noção ética – no sentido dado por Richard Rorty – que implica em ação afirmativa, em demanda por novos direitos.

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partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E

depois não obriga a pensar e descobrir. Neste ramo dos

conhecimentos humanos tudo está achado, formulado,

rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.

Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma

invejável vulgaridade. Foge a tudo o que possa cheirar a

reflexão, originalidade etc17

.

17

MACHADO DE ASSIS. Teoria do Medalhão, publicado originalmente in Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1881.

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A questão da natureza na geografia e no seu ensino*

Uma grande verdade é uma verdade cujo oposto também é

verdadeiro. (NIELS BOHR).

O processo histórico da humanidade como um todo

consiste em uma gradual apropriação da natureza pelo

espírito, a qual encontra-se fora dele, mas também de certa

maneira dentro dele. (GEORG SIMMEL).

I

A natureza é histórica e, portanto, social. A natureza é uma realidade

objetiva independente do social-histórico. Essas duas afirmações

aparentemente contraditórias são verdadeiras, embora parciais se

entendidas isoladamente. Elas se complementam e podemos mesmo

dizer que formam um conjunto complexo, que costumava ser

denominado “dialético”, enfim, um processo contraditório de oposição

e, ao mesmo tempo, complementação. A natureza é histórica enquanto

discurso(s), enquanto percepção pelo conhecimento humano, que

logicamente varia no tempo e no espaço. É histórica também enquanto

* Texto elaborado com vistas a ser apresentado numa reunião de professores de geografia de

colégios de aplicação de diversas partes do Brasil, a ser realizada em outubro de 1995 e que acabou não ocorrendo por falta de verbas. O convite que os organizadores fizeram para que realizássemos uma fala sobre esse tema acabou, portanto, sendo desfeito, mas o texto foi redigido, após inúmeras leituras e reflexões, e acreditamos que mereça uma discussão por parte dos geógrafos e, especialmente, dos professores de geografia.

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relação com a sociedade, na qual, mesmo influenciando alguns aspectos

do social, ela com frequência é modificada pela ação humana. Mas a

natureza é igualmente uma realidade objetiva, um encadeamento de

processos naturais (ou seja, físico-químicos e biológicos) que possui a

sua dinâmica própria e autônoma. Como realidade objetiva, a natureza

é um complexo que inclusive originou, num certo momento, a vida

humana, que continua a fazer parte dela enquanto organismo que nasce

e morre, que necessita de oxigênio, comida, repouso, que possui, enfim,

um ritmo biológico independente do social apesar de intimamente

interligado a ele.

Justamente o grande problema da ciência geográfica, e em particular do

seu ensino, é o entendimento desse processo contraditório, desse ser e

não ser concomitante da natureza. Para alguns – e isso desde os

clássicos do século XIX, que em sua maioria tinham uma visão

empirista e objetivista do real –, só existe o aspecto material e

autônomo da natureza. Ela seria apenas uma coisa em si, uma realidade

objetiva e à margem do social-histórico. Nesses termos, quer a natureza

seja vista como um palco (ou a “terra”) que o homem vai ocupar, ou

mesmo quer ela seja entendida como recurso para a sociedade moderna,

trata-se de algo pré-definido e cuja objetividade nunca é posta em

questão. Já outros, em contrapartida, vêem somente o subjetivo, o(s)

discurso(s) sobre a natureza, como se ela fosse essencialmente uma

ideologia no sentido mais vulgar dessa categoria. A primeira natureza,

ou natureza original e independente da ação humana, não mais existiria

e, no seu lugar, haveria tão somente uma segunda natureza ou natureza

humanizada, reelaborada pela sociedade moderna. O grande desafio,

aqui, seria o de estudar as contradições da sociedade, sendo a natureza

compreendida como um subproduto destas.

Na primeira interpretação, a empírico-objetivista, a realidade é uma só

(o universo enquanto categoria mais abrangente do ponto de vista das

coisas que existem), mas sem a preocupação com a conceituação de

totalidade ou de globalidade. Seria uma somatória de fenômenos na

qual o importante não é partir do todo e, sim, das partes, analisando ou

até descrevendo cada uma isoladamente e depois, se possível,

realizando sínteses provisórias. E, na segunda interpretação, a

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ideológico-subjetivista, a realidade também é uma só (a sociedade

moderna ou capitalista, com suas ideias sobre universo, natureza,

formação sócio-espacial etc.) e existe uma grande preocupação com a

conceituação de sua unidade, ou melhor, de sua totalidade. O ideal aqui

é partir do todo para se chegar às partes, sendo que uma lógica pré-

determinada de totalidade (as contradições do modo de produção

capitalista) é que determina a dinâmica de cada parte e mesmo a da

natureza, que afinal de contas nada mais seria que recurso(s)

instrumentalizado(s) pelo social.

Para superarmos esses dois vieses, temos que absorver o que há de

verdadeiro em cada um, procurando compatibilizá-los e tentando ir

além deles. É o que iremos encetar neste ensaio. Nossa intenção é

mostrar que a natureza é uma realidade objetiva, obviamente que

dinâmica e complexa, e ao mesmo tempo um (ou vários) discurso(s) ou

interpretação(ões). Indo mais além, procuraremos avaliar em que

medida a natureza é e não é social, o que, por um lado, dá certa razão

aos que advogam uma separação ou até oposição entre o natural e o

social-cultural e, por outro lado, também justifica a ideia de uma certa

unidade ou complementaridade entre a sociedade e a natureza. Por fim,

no tocante ao ensino da geografia, justamente o campo no qual essa

problemática se coloca de forma mais aguda, iremos demonstrar que o

ponto de partida não é a concepção de natureza – como normalmente se

pensa – e, sim, a realidade do educando, podendo-se, dessa forma,

enfocar a dinâmica natural desta ou daquela maneira, com ou sem

integração imediata com o social, tudo dependendo do conteúdo a ser

estudado e, principalmente, do nível de desenvolvimento intelectual e

da realidade existencial dos alunos.

II

Que a natureza seja uma realidade objetiva parece haver poucas

dúvidas. Uma realidade extremamente complexa e, provavelmente, até

contraditória em vários aspectos, é certo, mas com sua(s) própria(s)

dinâmica(s) que independe(m) do pensamento ou da ação humanos.

Imaginar o contrário, que a natureza é só discurso ou interpretação,

seria regredir até um idealismo já há muito superado pela história da

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filosofia e, em particular, pelos avanços das ciências naturais nestes

últimos dois ou três séculos. A história da ciência nesses séculos pode

ser vista como uma longa narrativa de lutas contra a religião e o

idealismo, como uma afirmação cada vez mais categórica da autonomia

dos fenômenos naturais frente aos ideais humanos. Sabemos dos

escândalos ocasionados pelo desmanche do sistema geocêntrico, pela

teoria da evolução biológica, pelas novas ideias sobre a origem do

universo e da Terra, pela genética com as suas aplicações...

Pode-se argumentar que a ideia de natureza é uma abstração e o que

conhecemos de fato são coisas ou fenômenos isolados, que os cientistas

fazem uso de paradigmas diferentes e até antinômicos de acordo com o

aspecto do real a ser estudado, que nossa interpretação sobre o mundo é

plena de reviravoltas. Tudo isso é correto, ao menos parcialmente. Só

que nada disso elimina o fato segundo o qual a categoria natureza é

essencial para a ciência moderna, que busca cada vez mais abordagens

integradoras – sejam interdisciplinares, transdisciplinares ou até

holísticas – e produz não só teorias e, sim, resultados concretos

incontestáveis.

Alguns afirmam que o estudo de um rio ou de um relevo com sua

estrutura geológica só tem sentido quando o relacionamos com a

dinâmica social, com o uso que o homem faz desses recursos – seja

poluindo o rio e/ou usando suas águas para abastecimento urbano, seja

construindo uma estrada ou um túnel nessa unidade de relevo, ou

explorando algum minério no subsolo. Creio que ninguém discorda que

esse uso é importantíssimo, notadamente no ensino elementar e médio.

No entanto, convém não esquecer que a humanidade só constrói

modernas estradas, túneis ou mecanismos de captação e filtragem de

águas fluviais porque existem estudos científicos sobre o rio em si e

enquanto parte das águas e da sua dinâmica no planeta, sobre os

minérios ou as unidades de relevo em si, como dinâmicas próprias e

autônomas frente à lógica social. O estudo da natureza em si, de

processos naturais em sua autonomia, é condição sine qua non para o

seu uso pela sociedade moderna. Mais ainda, é um pré-requisito

indispensável para se resolver os enormes problemas ambientais

colocados por esse uso de forma intensiva, um dos grandes desafios do

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século XXI. Como afirmou com propriedade o filósofo e cientista

político italiano Norberto Bobbio, sempre é melhor uma análise sem

síntese do que uma síntese sem análise. Alguns geógrafos não

compreendem isso e pensam, de forma simplista, que pode existir uma

síntese sem análises prévias.

A visão de natureza que a geografia herdou e reproduziu no seu ensino

foi a cartesiano-newtoniana, na qual a física é a ciência chave para se

explicar o universo, categoria que nessa leitura se confunde com a de

natureza em seu nível mais abrangente. Daí o estudo geográfico da

natureza ter sido denominado “geografia física” e as escassas tentativas

de abordagens globalizantes – ou de criar sínteses – tinham por base

princípios da física clássica: causalidade simples, analogia, espaço

absoluto, natureza como fenômenos físicos em primeiro lugar, que não

têm vida consciente, mas, quando muito, vida vegetativa ou passiva,

isto é, determinada pelo meio abiótico. No fundo, nem poderia ter sido

diferente, pois a geografia moderna nasceu na época da Primeira

Revolução Industrial, no século XIX, destinada essencialmente, por um

lado, a mapear e descrever territórios para que o emergente Estado-

nação pudesse controlá-los de forma mais eficaz, e, por outro lado,

destinada a reproduzir uma ideologia nacionalista para as crianças e

adolescentes que cursavam o ensino de massas que se expandia na

época e passava a se tornar obrigatório.

Ocorre que o contexto histórico-social dos nossos dias – a nova ordem

mundial com uma revalorização da questão ambiental, a revolução

técnico-científica com as profundas mudanças que ocasiona na

sociedade moderna e nos seus valores dominantes – exige uma revisão

nessa concepção de natureza. Pouco a pouco, no discurso científico em

geral (e não somente na geografia em particular), a visão cartesiano-

newtoniana de natureza, na qual os fenômenos físicos constituem a

chave para a sua unidade e dinâmica, vai cedendo lugar a uma visão

mais ecológica, na qual a natureza-para-o-Homem passa a ser entendida

como a biosfera e os processos de vida começam a ganhar terreno nas

explicações da dinâmica e mesmo da unidade dessa natureza em nosso

planeta, que, afinal de contas, é a única que interessa ao estudo da

geografia.

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É interessante registrar, sem nenhuma pretensão de estabelecer nexos

de causalidade linear, que essa mudança ocorre paralelamente à

passagem da Segunda para a Terceira Revolução Industrial. De fato, na

Primeira e na Segunda Revolução Industrial os avanços da humanidade

sobre a natureza – a criação de uma segunda natureza, de acordo com

as formulações clássicas de Marx – tinham um forte conteúdo

mecânico: a máquina a vapor como símbolo dos primórdios da

industrialização original, as máquinas elétricas e o automóvel como

símbolos da segunda etapa desse processo industrial. Durante muito

tempo, os notáveis avanços da ciência e da tecnologia moderna, que no

fundo sempre permitiram ao homem libertar-se cada vez mais (embora

nunca totalmente) das amarras da natureza, estiveram bastante

identificados com as descobertas e aplicações da física (e, em segundo

lugar, da química, que alguns epistemólogos dizem ser praticamente

um segmento da física). Isso é válido para o desenvolvimento dos

meios de transportes e comunicações, para o aperfeiçoamento das

máquinas industriais, para as construções de edifícios e outras obras de

engenharia, para o aprimoramento dos armamentos etc. Quando

consultamos qualquer obra a respeito da história da ciência moderna

com ênfase em suas aplicações, com ênfase na tecnologia que gerou,

logo notamos que a maior parte das referências será para descobertas

físicas – da eletricidade à energia nuclear, do estudo da atmosfera e sua

dinâmica aos aviões e satélites artificiais, do estudo dos materiais às

construções ou às explicações sobre o centro da Terra. Desde Galileu

Galilei (e Descartes como o seu “complemento” em nível teórico) até

os “grandes nomes” da ciência do século XX (Einstein, Mach, Bohr,

Heisenberg e outros), o progresso técnico do capitalismo confunde-se,

em grande parte, com as aplicações das descobertas físicas. Não

pretendemos com essa constatação ideologizar a física, o que seria

ridículo frente aos inegáveis avanços que ela suscitou no conhecimento

humano, e, sim, mostrar a sua eficácia para a modernidade e, ao mesmo

tempo, o porquê de sua primazia na visão capitalista de natureza, visão

pragmática e mecânica que entende a natureza basicamente como

recurso(s) e objeto(s) sem vida.

O “novo paradigma” nos estudos sobre a natureza, a respeito do qual

tanto se especula desde as obras de Kuhn e de Capra, provavelmente

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não vai derivar da relatividade ou da teoria dos quanta, como

geralmente se imagina, e, sim, da biotecnologia, em particular da

ecologia e da genética. Não devido a um pretenso equívoco daquelas

duas primeiras teorias – longe disso! – e, sim, em razão de uma maior

aplicabilidade, nos moldes da revolução técnico-científica em

andamento, da abordagem ecológica e da engenharia genética. Cada

vez mais a natureza (repito: natureza-para-o-Homem) deixa de ser vista

como o universo ou como um complexo sistema físico e passa a ser

entendida como um encadeamento de ecossistemas – o que leva até a

biosfera ou, segundo alguns, até Gaia –, como um imenso complexo

vivo no qual o homem pode intervir, não mais apenas fazendo

máquinas ou obras de engenharia, não mais desmatando e/ou

aplainando de forma acelerada e construindo cidades ou monoculturas,

e, sim, agindo de acordo com os princípios da ecologia (controlando

biologicamente as pragas, conservando certos ecossistemas ou

espécimes etc.) e/ou com os princípios da genética (mapeando e

manipulando genes, criando novos organismos e substâncias). Aliás, ao

contrário do que pensam certos militantes ambientalistas ingênuos,

ecologia e genética não se contradizem (sendo uma voltada para a

conservação dos seres vivos e a defesa dos alimentos naturais e a outra

apregoando a modificação dos seres vivos e criando alimentos

artificiais), mas, sim, se complementam no avançar da Terceira

Revolução Industrial. A ecologia, entendida como

pesquisa/conservação de ecossistemas e seres vivos em sua máxima

diversidade, é condição básica para o avanço da genética, do estudo de

genomas dos seres vivos e da criação artificial de novos seres vivos ou

organismos geneticamente modificados. E, como veremos a seguir,

ambas são fundamentais para esta nova fase de expansão industrial (ou

pós-industrial, como advogam alguns), que é a revolução técnico-

científica.

A ação do homem na natureza, a partir do advento do capitalismo e da

sua visão pragmática sobre o mundo, sempre foi a de um conquistador

frente aos domínios que anexou. Dominar a natureza foi o lema

básico da modernidade desde no mínimo o século XVII. Neste final de

século e de milênio, começa a haver uma mudança significativa nessa

visão e também, embora de forma mais tímida, nessa ação. Os motivos

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Ensaios de geografia crítica

165

para isso são vários: crescente consciência ecológica ou ambiental da

humanidade, que teve como marcos importantíssimos a Primeira

Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) e,

vinte anos depois, a Eco-92 no Rio de Janeiro; o acúmulo de problemas

ambientais (buraco na camada de ozônio, efeito-estufa com o acúmulo

de CO2 na atmosfera, acidentes nucleares e advento novas armas letais

produzidas em massa nos anos 1960 e 1970, intensos desmatamentos

nas poucas reservas florestais ainda originais, crescente carência de

água potável em diversas regiões do planeta, ampliação das áreas

desérticas ou semiáridas em inúmeros lugares etc.), juntamente com a

percepção de que eles não têm uma dimensão meramente local ou

regional, como se imaginava até o início dos anos 70, e, sim, planetária

ou global; e, por fim, a crise da bipolaridade e da Guerra Fria, entre

1989 a 1991, com o advento da nova ordem mundial, na qual a

preocupação dos países ricos com uma hipotética guerra mundial, em

grande parte, desloca-se para os problemas ambientais planetários.

É lógico que essa cada vez mais aguda preocupação dos países ricos

com a questão ambiental planetária não se fundamenta apenas nos

riscos de catástrofes, ou nas possibilidades de empobrecimento da

diversidade biológica e cultural para as futuras gerações, mas tem,

igualmente, um motivo bastante prático: a biodiversidade vem se

transformando num negócio lucrativo (e com um vastíssimo campo de

expansão), com o desenvolvimento da biotecnologia e com todos os

demais aspectos interligados, quais sejam: as indústrias de novos

materiais, as pesquisas biológicas de novas fontes de energia, os novos

remédios e tratamentos médicos com a engenharia genética, a nova

agropecuária com o melhoramento genético de animais e plantas,

inclusive com a futura produção in vitro numa escala gigantesca etc.

Se destruir a natureza foi um princípio essencial da modernidade

nestes últimos séculos, agora o imperativo de a conservar vem cada

vez mais ganhando terreno. Mas não conservar como guardar ou não

usar e, sim, como utilizar de outra forma, como banco de dados

genéticos, como ecoturismo, como reserva de expansão da

biotecnologia. De uma ação semelhante ao de um exército conquistador

que extermina grande parte da população dominada, que procura

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José William Vesentini

166

arrasar o terreno e reconstruir tudo, a estratégia da sociedade moderna

frente à natureza passa atualmente por uma transição no sentido de

tornar-se semelhante ao do colonizador que conserva e utiliza as

populações nativas, que procura não eliminá-las e, sim, redirecioná-las

para seus valores e interesses (mesmo que, para isso, tenha também que

fazer transigências ou adaptações de seus próprios valores em função

da realidade do colonizado). É aí que a engenharia genética se encontra

com a ecologia: para manter essa nova expansão com a criação de

novos seres vivos, de novas substâncias resultantes da manipulação

genética, torna-se necessário dispor de organismos selvagens ou

originais, que constituem uma espécie de reserva ou de banco de dados

para as presentes ou futuras necessidades de correções ou

melhoramentos dos organismos já manipulados, os quais sempre

necessitam de proteção do homem, de constantes introduções de novos

genes em função de novas pragas ou agentes patogênicos que

inevitavelmente surgem. Exemplificando, podemos dizer que a

agropecuária avançada, que tem por base a engenharia genética e até

dispensa grandes extensões de solo ou de espaços naturais, que

prescinde mesmo das boas condições naturais, e que, por esse motivo,

representa um novo patamar no domínio do homem sobre a natureza

(no qual se chega até a criar novos seres vivos, algo que até a pouco

era tido como atributo apenas de Deus), na realidade precisa mais do

que nunca de reservas de natureza nativa ou selvagem, de grande

diversidade biológica enquanto condição mesmo de sobrevivência a

longo prazo. Esse fato deixa patente que nunca haverá somente a

segunda natureza, que sempre deve haver reservas de primeira natureza

como elemento indispensável para a sobrevivência da sociedade

moderna e da própria humanidade. No seu limite, como se percebe

hoje, a produção humana de uma segunda natureza necessita e até

depende da existência de reservas da primeira natureza, de ecossistemas

nativos. Daí ser completamente absurda aquela ideia marxista –

infelizmente reproduzida por alguns geógrafos que se dizem críticos –

sobre o final da primeira natureza, ou sua pouca importância na

sociedade moderna, enfim, sobre um pretenso domínio absoluto do

homem frente à natureza original.

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Ensaios de geografia crítica

167

Dessa forma, a nossa visão atual sobre a natureza passa por uma

transição no sentido de considerá-la não mais essencialmente como um

sistema físico sem vida e, sim, como um complexo (e um

encadeamento de processos) biológico, no qual logicamente também

entram os fenômenos abióticos ou físico-químicos, mas no qual o

fundamental passa a ser a diversidade orgânica como essência da

permanência e da dinâmica das coisas. De uma interpretação

cartesiano-newtoniana, fundada na causalidade e no espaço e tempo

absolutos, passamos a uma visão ecológica (um encadeamento de

ecossistemas ou paisagens naturais que sempre vivem um equilíbrio

instável) que valoriza bastante a probabilidade e até o acaso (o caos, a

indeterminação, o papel da contingência nas mudanças), que revaloriza

a vida em sua diversidade e onde o espaço e o tempo, categorias

indissociáveis, são normalmente relativizados. Do universo infinito

passamos à biosfera com seus limites tangíveis. Não que isso signifique

que a biosfera deixe de fazer parte do universo, cuja finitude é

constantemente demonstrada, mas com suas características próprias e

talvez até sem paralelo no cosmos, como a verdadeira natureza-para-o-

Homem enfim.

Isso tudo exige, não o final do estudo geográfico da natureza em si,

como apregoam aqueles que pretendem reduzir tudo ao econômico ou

ao “modo de produção”, e, sim, uma passagem da geografia física para

uma verdadeira geografia da natureza, algo que por sinal já vem

ocorrendo nos últimos anos ou décadas, como comprovam os

estudos/propostas sobre geossistemas, as análises integradoras do meio

ambiente ou de paisagens naturais, a renovada preocupação com a

dimensão temporal nos fenômenos naturais.

III

Isso posto, podemos agora voltar nossa atenção para o ensino da

geografia. Também, aqui, temos que considerar o atual contexto

histórico-social da nova ordem mundial, da globalização e da revolução

técnico-científica. Ensino de geografia para quê? Para formar cidadãos,

afirma-se comumente com certa razão. Mas cidadãos de um novo

mundo no século XXI, no qual o mais importante não é inculcar um

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José William Vesentini

168

patriotismo exacerbado (o que a geografia tradicional fazia muito bem)

e, muito menos, fornecer informações (sobre unidades de relevo, rios,

cidades, cultivos etc.) para serem memorizadas ou “assimiladas”.

Tampouco “conscientizar” o aluno, naquela perspectiva de haver uma

consciência “verdadeira” ou “revolucionária” que o professor deveria

transmitir ou ensinar. Tudo isso são valores ou princípios já superados,

de outros momentos históricos ou de outros papéis sociais para a

escola. O mais importante hoje, na escola para a Terceira Revolução

Industrial – e, provavelmente, não haja outro caminho para a

modernidade neste final de século –, é ensinar o aluno a aprender, a

pesquisar, a ter autonomia, pois a reciclagem constante e um novo

papel mais valorizado do conhecimento, que sempre se renova, é uma

característica marcante da nova força de trabalho (e até do cidadão

pleno neste mundo cada vez mais globalizado) sob a revolução técnico-

científica.

O fundamental no ensino da geografia, que se revaloriza com a

globalização atual, é deixar o educando conhecer o mundo em que vive,

desde a escala local até a regional, a nacional e a planetária. Deixá-lo

conhecer o mundo em que vive não significa meramente transmitir

informações e, sim, orientar pesquisas, discussões, interpretação de

bons textos e mapas, elaborar e operacionalizar com frequência

trabalhos de campo (estudos do meio, excursões, visitas a fábricas,

museus, bairros específicos etc.). A grande preocupação do ensino da

geografia, em nível fundamental e médio, não é com a

unidade/dicotomia entre o social e o natural, como insistem alguns (que

no fundo estão apenas levando até as crianças ou adolescentes uma

velha e talvez já superada discussão da geografia acadêmica), e, sim,

com o desenvolvimento intelectual do educando, com o aprender a

aprender sendo mais importante que o conteúdo específico a ser

ensinado. A geografia escolar, cabe recordar, é um instrumento e não

um fim em si no processo de desenvolvimento intelectual dos alunos

do ensino fundamental e médio. Entender isso é básico para se

posicionar frente à questão da natureza no ensino da geografia.

Não existe uma fórmula ou um modelo único de estudo da natureza no

ensino da geografia. Tudo depende do conteúdo a ser ensinado e da

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Ensaios de geografia crítica

169

realidade (econômica, social, cultural, psicogenética e até espacial, no

sentido de local onde residem) dos alunos com os quais se trabalha.

Caso estejamos lecionando uma realidade regional, por exemplo – seja

a Amazônia, o Nordeste ou o sul da Ásia –, então, é lógico que teremos

que integrar (e não embaralhar ou fundir) os conteúdos referentes ao

social e ao natural, sem a preocupação em um ter que vir

necessariamente antes do outro, ou que cada uma dessas partes tenha

exatamente 50% do espaço das aulas, o que seria ridículo e artificial na

medida em que o importante é motivar o educando e fazê-lo se

interessar pelo conhecimento dessas realidades e não ficar

reproduzindo no ensino fundamental ou médio as picuinhas dos

departamentos de geografia das universidades (nos quais, normalmente,

há constantes brigas por contratações de novos professores, por maior

ou menor carga horária das disciplinas de geografia física e humana,

que, no fundo, nada mais são que disputas por poder).

Não dá para se estudar o sul da Ásia sem fazer referências às monções e

às chuvas torrenciais, por exemplo, assim como não é possível lecionar

o Nordeste brasileiro sem discutir o clima semiárido e as secas (mesmo

que seja para desmistificá-las enquanto fator explicador para a pobreza

ou as migrações), e tampouco é possível um estudo adequado da

Amazônia sem uma especial atenção para o meio natural com ênfase na

floresta e sua diversidade. Só que esses elementos ou processos naturais

não devem ser necessariamente o ponto de partida desses estudos e,

muito menos, ocupar metade de todo o conteúdo a ser ensinado. Seria

muita ingenuidade ou falta de bom senso negar que os processos sociais

(a luta pela terra e os desmatamentos na Amazônia, os choques

culturais-religiosos e a herança da dominação colonial no sul da Ásia, a

concentração das riquezas no Nordeste e o poderio das oligarquias

tradicionais) são muito mais importantes para a compreensão de todas

essas realidades regionais mencionadas. Mas o estudo dos processos

naturais em si não deve ser omitido, pois ele também possui a sua

parcela de contribuição para o conhecimento dessas realidades.

Já, no caso de estarmos trabalhando com crianças de 5a ou 6

a séries, o

ideal é partir do concreto para se chegar ao abstrato, a melhor forma

para deixá-las descobrir ou construir os conceitos básicos da geografia.

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170

Nesse ensino não tem sentido pretender fundir a parte humana com a

física, pois os conceitos elementares – seja o de coordenadas

geográficas, de mapa, de densidade demográfica, de tipos de clima, de

espaço geográfico, de lugar, de região ou de Estado-nação – são muito

mais facilmente compreendidos quando estudados isoladamente, com

exemplos e, na medida do possível, com experiências ou trabalhos de

campo, e só depois é que podem ser interligados com os demais

aspectos do real. Não se pode fazer sínteses a todo momento, pois antes

delas devem existir análises. Não há nada de incorreto em se estudar a

natureza em si, o clima, por exemplo (com observações das nuvens, da

direção dos ventos, com visitas a estações meteorológicas etc.), ou a

vegetação (inclusive com excursões a bosques ou matas para examinar

as plantas, os solos, a hidrografia local etc.). O importante é, sempre

que possível, estabelecermos relações dos elementos naturais entre si

(numa visão globalizante da paisagem ou do ecossistema) e também

deles com a ocupação humana (real ou potencial); mas existem alguns

momentos em que o estudo ou explicação de um aspecto do real,

isoladamente, torna-se necessário.

A ideia de nunca separar o social do natural é fantasiosa, sem nexo do

ponto de vista científico. Existe o momento de separar e o de unir, o

momento de isolar um elemento para melhor estudá-lo e o de relacioná-

lo com outros fatores, da mesma forma que tanto a análise quanto a

síntese são imprescindíveis ao avanço do conhecimento. E não adianta

ficar repetindo que a “lógica dialética” supera a lógica formal e a

ciência moderna (que a tem como alicerce), pois isso é apenas um

chavão que só foi levado a sério de fato na União Soviética dos anos

1930, na época áurea do stalinismo – e que, por sinal, ocasionou um

enorme atraso no desenvolvimento científico soviético. A dialética não

é nenhuma teoria ou lógica redentora ou messiânica, mas tão somente

uma questão filosófica bastante polemizada na segunda metade do

século XX. Não será a partir dela que iremos reavaliar o estudo da

natureza no ensino da geografia e, sim, em função dos objetivos da

geografia escolar, da realidade dos alunos e dos avanços do

conhecimento científico, o qual não deve ser meramente reproduzido

no ensino elementar e médio e, sim, adaptado, reelaborado em função

da necessidade do educando pesquisar e construir conceitos.

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A atualidade de Kropotkin, geógrafo e anarquista*

Piotr Ayexeyevich Kropotkin viveu entre 1842 e 1921. Foi um

moscovita de família rica e aristocrática que decidiu viver

modestamente de seu próprio trabalho – como geógrafo e secretário,

durante alguns anos, da Sociedade Geográfica Russa, como professor,

como jornalista e até como tipógrafo. Sua vasta obra, que procura

incorporar ou integrar determinadas ideias libertárias na geografia, bem

como sua peculiar concepção do que a geografia deveria ser, representa

seguramente um dos principais capítulos ainda não escritos de uma

história crítica do pensamento geográfico. Sem nenhuma dúvida, ele foi

o principal omitido em quase todas as obras que discorreram sobre esta

tradição discursiva. Sua fala e seus inúmeros escritos, via de regra,

foram solenemente ignorados e, assim, silenciados, e isso numa

proporção muito maior do que em relação a Élisée Réclus, seu grande

amigo. Mesmo a “geografia crítica” francesa, que em grande parte

nasceu ao redor da revista Hérodote, buscou recuperar certas ideias de

Réclus – principalmente por ele ter sido francês – e deixou Kropotkin

de lado. E a “geografia radical” norte-americana, que o homenageou

com um número especial da revista Antipode, em 1976, na realidade

incorporou muito pouco seus ideais e proposições, preferindo aquilo

que ele denominava “socialismo autoritário”, ou seja, as teorias

econômicas marxistas e o princípio da planificação no lugar da

autogestão.

* Artigo originalmente escrito como introdução para uma coletânea de textos de Kropotkin

por nós organizada e publicada pela Associação dos Geógrafos Brasileiros, seção São Paulo (AGB-SP): Seleção de Textos n.13, Piotr Kropotkin, março de 1986, 80 páginas. Fizemos várias alterações e acréscimos nesta versão, mas boa parte do texto de 1986 foi mantida.

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Por outro lado, no entanto, esse anarquista russo constitui

provavelmente o geógrafo que, desde Humboldt, recebeu o maior

número de citações – elogios, críticas ou referências – oriundas de não-

geógrafos: inúmeros biólogos, antropólogos, filósofos, cientistas

políticos, sociólogos, militantes políticos de esquerda, escritores etc., de

várias partes do globo, o mencionaram. Juntamente com Proudhon,

Bakunin, Godwin e Stirner, Kropotkin representa um dos cinco grandes

nomes do anarquismo. Ele é sempre exaustivamente analisado nos

trabalhos que abordam as ideias socialistas do século XIX e dos

primórdios do XX. Ao contrário de Réclus, que costuma ser lembrado

apenas de passagem – e nem sempre –, Kropotkin com frequência é

objeto de capítulos inteiros nas obras de autores que analisam o

anarquismo, tais como Daniel Guérin, George Woodcock, Ivan

Ivakumovic, Paul Avrich, I. L.Horowitz, James Joll e vários outros.

Também os estudiosos que trabalharam com as ideias urbanísticas –

como são os casos de Lewis Munford e de Françoise Choay –, que

tratam da metodologia das ciências – como Paul Feyerabend – ou que

abordam a evolução humana – como Ashley Montagu, dentre outros –,

costumam fazer longas referências a esse geógrafo e anarquista que

abordou de forma original essas questões, além de outras, em seus

estudos. Literatos eminentes escreveram sobre Kropotkin: desde Leon

Tolstoi (que influenciou Gandhi) até Noam Chomsky, passando por

autores tão diferentes como Bernard Shaw, Paul Goodman, Oscar

Wilde e Hebert Read, podemos encontrar em seus livros e artigos

considerações elogiosas sobre o “príncipe anarquista”. (Kropotkin

recebeu esse apelido, por parte de alguns biógrafos, devido ao fato de

descender da antiga Casa Real de Rurik, que governara a Rússia antes

dos Romanov; todavia, desde os 22 anos de idade que ele decide não

mais receber auxílio da família, passando a ser autossuficiente e

inclusive contrário às ideias aristocráticas, na medida em que opta por

ser um militante da luta contra as desigualdades sociais e a dominação

social). E as ideias de Kropotkin exerceram uma inegável influência em

vários movimentos populares com ênfase na autonomia, com especial

destaque para as experiências de autogestão na Espanha revolucionária

de 1936-7.

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Ensaios de geografia crítica

175

Qual teria sido o motivo dessa exclusão de Kropotkin na geografia? Por

que esse geógrafo (e militante político), que chegou a receber uma

medalha de ouro na Sociedade Geográfica Russa pelas suas

investigações sobre aspectos da geografia física da Sibéria, que até o

fim de sua vida preocupou-se com (e escreveu sobre) o ensino da

geografia, com as relações sociedade/natureza e outros temas

congêneres, acabou sendo marginalizado pela geografia acadêmica em

praticamente todas as suas vertentes? Por que, até mesmo nos últimos

anos e décadas, as análises ditas críticas ou radicais relutam em

incorporar ou recuperar Kropotkin, preferindo normalmente a cômoda

(mas incorreta) atitude de identificá-lo com Réclus, passando então a

falar quase que exclusivamente deste último?

Provavelmente, isso tenha ocorrido porque Kropotkin é difícil de ser

enquadrado, classificado, delimitado nos moldes da epistemologia

tradicional da geografia, seja ela “positivista” ou “dialética” – como

muitos gostam de diferenciar, de forma maniqueísta e simplificadora.

Geografia e anarquismo (ou socialismo libertário), ciência e militância

a favor dos interesses populares (algo que não se confunde com o

ideário de qualquer partido ou burocracia), para Kropotkin, eram

elementos indissociáveis. Já em Élisée Réclus é possível, ou pelo

menos é menos difícil, separar o joio do trigo, isto é, a “ciência” da

“não-ciência”, a geografia do anarquismo. Suas obras libertárias, tais

como o relato sobre a Comuna de Paris de 1871 (da qual participou e

inclusive foi um dos líderes) ou a exposição dos princípios anarquistas,

não são apresentadas como geografia e, de fato, diferem bastante dos

trabalhos geográficos tais como L’Homme et la Terre ou a Nouvelle

Géographie Universelle1. Em Kropotkin, ao contrário, salvo em raras

1 É bem verdade que Réclus, especialmente na obra L’Homme et la Terre (cujo título, por si

só, já representa uma inversão do rótulo que simbolizava o paradigma da geografia tradicional: a Terra e o Homem), aborda temas avançados para o discurso geográfico da sua época, tais como a luta de classes, a educação e as ciências, as formas de propriedade, a colonização e a dominação dos países desenvolvidos em relação aos demais. Todavia, apesar de Réclus proclamar o seu ideal libertário na introdução e/ou na conclusão das suas obras geográficas, predomina em L’Homme et la Terre, e principalmente nos 19 volumes da sua Nouvelle Géographie Universelle, um discurso geográfico separável do anarquismo e na qual os elementos físicos, em especial as bacias hidrográficas e as unidades de relevo que servem como seus divisores, têm destaque como agentes definidores das regiões estudadas. Mas esse

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exceções – como em trabalhos de juventude, em particular sobre

geomorfologia; ou na colaboração com Réclus na parte sobre a Rússia na

enciclopédia deste, na qual se procurou respeitar o espírito da obra –, os

aspectos geográficos e os libertários entrelaçam-se, são de fato

inseparáveis. Para ele, a filosofia anarquista, vista como um ser-em-

construção, caminha junto e enleada com a ciência moderna tanto na

perspectiva metodológica quanto na contribuição conjunta para a

libertação da humanidade do reino da necessidade e da opressão de

alguns sobre muitos2. Quando Kropotkin critica – no sentido moderno

da palavra crítica: percebendo sua originalidade e seu caráter inovador

na ciência e, ao mesmo tempo, apontando limitações – Darwin e

especialmente a leitura de Huxley sobre a evolução das espécies,

mostrando como a “ajuda mútua” (expressão que criou) é tão ou mais

importante que a luta pela sobrevivência no processo evolutivo3, ou

quando critica a divisão do trabalho e a hierarquização das tarefas,

propondo uma reordenação societária e espacial baseada em comunas

autogeridas e sem os poderes instituídos nos Estados nacionais4, ele

logra ser ao mesmo tempo anarquista e geógrafo. Ou melhor,

Kropotkin – apesar de reconhecer as diferenças individuais e as

aptidões de cada um, que deveriam ser respeitadas e até estimuladas –

argumenta que a verdadeira liberdade pressupõe a supressão da

autor, longe de representar uma “geografia descritiva” que teria se tornado ultrapassada com o surgimento da obra de Vidal de La Blache, como argumentaram alguns trabalhos sobre a história do pensamento geográfico, na realidade aponta para caminhos negligenciados até muito recentemente nesta disciplina, como demonstraram muito bem LACOSTE, Yves – Géographicité et géopolitique: Élisée Reclus (in: revista Hérodote n.22, 1981), e GIBLIN, Béatrice – Réclus: um écologiste avant l’heure? (in: revista Hérodote n. 22, 1981). 2 Cf. KROPOTKIN, P. La ciencia moderna y el anarquismo. In: HOROWITZ, I.L (org.). Los

Anarquistas. Madrid, Alianza, 1975, p. 181-202. (Trata-se de uma parte da obra de Kropotkin publicada originalmente em francês no ano de 1913). 3 Cf. KROPOTKIN, P. El apoio mutuo, um factor de evolucion. Buenos Aires, Proyección, 1970.

(Original, em inglês, de 1902, com o título de mutual aid). Neste importante livro, Kropotkin acrescenta algo à teoria da evolução, posteriormente reconhecido por Darwin – embora não pelo agressivo Huxley, o “buldogue de Darwin”: a ajuda mútua entre os animais. Ao mesmo tempo ele critica Marx por ser demasiado “darwinista” no mal sentido, isto é, alguém que só vê a luta de classes e não a cooperação, a auto-ajuda intra e entre as classes, além das “não-classes” (mulheres, etnias ou “raças” subjugadas etc.). 4 Cf. KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres. Madris, Ediciones Júcar, 1978. (Original de

1898, em inglês).

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Ensaios de geografia crítica

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oposição entre o trabalho manual e o intelectual, assim como a

supressão de toda compartimentação rígida que a divisão capitalista do

trabalho engendra no conhecimento científico5.

Além disso, Kropotkin abominava o Estado-nação (assim como

qualquer forma de Estado), as fronteiras políticas, os chauvinismos e a

glorificação da pátria. Ao se referir aos objetivos do ensino da

geografia, Kropotkin assinalou:

É tarefa da geografia mostrar que a humanidade é uma só,

que as diferenças nacionais ou locais não devem servir

para ocultar a imensa semelhança que existe especialmente

entre as classes trabalhadoras de todo o mundo, que as

fronteiras políticas são relíquias de um passado bárbaro e

que os nacionalismos exarcebados, as guerras e os

preconceitos entre nações ou em relação às ‘raças

inferiores’ só servem para manter ou reforçar os interesses

de grupos ou classes dominantes6.

Como se percebe, alguns dos escopos que ele propunha à geografia

colidiam frontalmente com as determinações essenciais que originaram

a institucionalização da ciência geográfica. Essa institucionalização

acadêmica em meados do século XIX – ou, pela ótica oficial, o

“nascimento” da geografia moderna e científica –, esse lugar então

conseguido junto à divisão capitalista do trabalho intelectual,

fundamentalmente pela via dos patrocínios estatais, foi inseparável do

engendramento dos Estados-nações e da escolarização das sociedades.

Naquele contexto de rápida industrialização e urbanização, a

construção dos Estados tipicamente capitalistas, isto é, os Estados

nacionais, foi um processo no qual o papel desempenhado por

instituições que impunham uma unidade nacional – como a escola e o

exército – foi crucial. A consolidação de uma certa geografia no

sistema escolar em expansão, desde as universidades até o ensino

5 Cf. KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres, op.cit., especialmente capítulo VIII, p. 142-64.

6 KROPOTKIN, P. What geography ought to be. In: Antipode: a Radical Journal of Geography,

vol.10-11, n.1-3, 1976, p. 6-15. (Ensaio foi publicado originalmente in The Nineteenth Century, Londres, dezembro de 1885).

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elementar, ligou-se à “naturalização” do Estado nacional, à ênfase no

território em sua conceituação. O “país”, com o seu território e as suas

fronteiras, com a sua população e a sua economia, com a sua

organização político-administrativa “nacional” e as suas tradições (em

geral inventadas), passa a ser entendido como um ente telúrico, fruto de

um processo natural7.

Não é por acaso que inúmeros geógrafos ilustres, tidos como

fundadores de “escolas geográficas”, sempre foram bem relacionados

com importantes personagens ligados à unificação nacional via

expansão da escola enquanto instituição subordinada ao Estado que se

redefinia e fortalecia. Por exemplo, o linguista e educador Wilhem von

Humboldt, irmão mais velho de Alexander, o forjador ou

sistematizador da geografia moderna, foi o escolhido pelas autoridades

prussianas da época (1810) para construir um modelo de universidade –

cume de todo o sistema escolar – apropriado ao Estado-nação que se

unificava, ou melhor, que estava sendo construído. Vidal de La Blache,

tido como o “fundador da escola geográfica francesa”, elaborou um

modelo de geografia caracterizado pela sua eficácia no sistema escola

francês reformulado por Jules Ferry. Também sir Halford Mackinder, o

grande nome da geografia britânica no final do século XIX e inícios do

XX, foi um dos responsáveis pela introdução da disciplina escolar

geografia no sistema escolar do Reino Unido.

Kropotkin, em contraponto, trilhou um caminho inverso. Ele também

defendia a introdução e/ou expansão da geografia nos currículos

escolares, mas com outros objetivos completamente diferentes da

promoção do nacionalismo. Mesmo tendo origens nobres, tendo

cursado as melhores escolas de Moscou, onde sempre foi o aluno mais

brilhante, chegando até a receber elogios do Tzar Nicolau I, e com um

eventual futuro garantido como um dos mais jovens generais do

exército russo (atividade na época reservada à nobreza), Kropotkin,

para decepção da família, resolve tornar-se geógrafo e, posteriormente,

o que é ainda mais grave, anarquista, inimigo declarado de qualquer

forma de autoridade e, principalmente, do Estado. Sua opção de vida

7 Cf. HOBSBAWN, E. e RANGER. T. (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra,

1984; e também HOBSBAWN, E. A era do capital. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 101-116.

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acabou por levá-lo, em 1874, à prisão-fortaleza de Pedro-e-Paulo, por

incentivar e participar de algumas revoltas camponesas. Dois anos

depois ele consegue fugir desse cárcere, indo para alguns países da

Europa Ocidental (Suíça, França e finalmente Inglaterra, onde acaba se

estabelecendo), nos quais viveu durante cerca de 40 anos e onde

escreveu e publicou as suas obras mais importantes. Sua concepção

libertária fez com que ele acabasse sendo marginalizado pela geografia

acadêmica da sua época, já que ela era organicamente ligada ao

Estado8. E também quase todas as obras sobre a história do pensamento

geográfico omitiram a importância de Kropotkin, o que não é

surpreendente se atentarmos para o fato de que toda história linear ou

evolutiva, como nos ensina Walter Benjamin, é sempre um discurso

dos vencedores9.

Posto que os vencidos representam sempre alternativas possíveis mas

não efetivadas, o continuum da história, o procedimento historicista de

estabelecer conexões casuais (como se tal processo tivesse

necessariamente que resultar naquilo que ocorreu), subsume-se

indefectivelmente na memória construída pelos vencedores. É nesse

sentido que Walter Benjamin refere-se à cumplicidade dos vencedores

de todas as épocas. Por outro lado, não é possível uma história linear

“dos vencidos”, mas apenas críticas a momentos específicos nas quais

se recuperam fragmentos de alternativas que romperiam com esse

continuum. Dessa forma, apesar das diferenças teórico-metodológicas

entre os inúmeros autores que construíram esse objeto denominado

história do pensamento geográfico, todos eles reproduziram por

distintos vieses o discurso do poder na medida em que fixaram essa

história como um processo linear, como algo que possui um sentido

unívoco. Kropotkin não tem, assim, lugar nesse tipo de construção – a

não ser como curiosidade, ou então como caricatura, como “discípulo

de Réclus”, o qual, afinal, não teria dito coisas muito diferentes de seus

contemporâneos –, pois ele foi um dos que “combateram contra a

história”, para usar uma expressão de Nietzsche e, portanto, seria uma

8 Cf. VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo, Ática, 1987, capítulo 1; e também

RAFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993. 9 Cf. BENJAMIN, W. Tesis de filosofia de la historia. In: Discursos interrumpidos I, Madris,

Taurus, 1972, p. 177-191.

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fala que, ao ser registrada com fidelidade, implodiria essa imagem de

“evolução”, esse sentido histórico construído a partir de (pretensas)

necessidades inelutáveis.

Kropotkin representou, no interior do anarquismo, o principal teórico

de uma corrente denominada anarco-comunismo ou comunismo

libertário. Outros nomes representativos dessa tendência foram Enrico

Malatesta (o mais importante após Kropotkin), Carlo Cafiero, François

Dumartheray e os irmãos Elie e Élisée Reclus, entre outros. O

anarquismo, que como se sabe tem como característica básica uma

recusa radical do Estado (mesmo que “provisório” ou de transição) e de

qualquer forma de autoridade, sempre foi marcado pela pluralidade, por

tendências ou correntes bem diferenciadas, por posições extremas que

vão do individualismo mais arraigado até um coletivismo social, além,

evidentemente, da clássica oposição entre os que apregoam a violência,

os atos terroristas, os assassinatos de personagens ligados ao poder, e

aqueles que condenam esse tipo de violência e defendem um pacifismo,

uma rebelião não-violenta no estilo da “desobediência civil”.

Se o anarquismo foi individualista – e até simpático ao egoísmo – com

Max Stirner (que chegou a exercer certa influência em Nietzsche), por

outro lado, foi também coletivista ou mutualista com Proudhon,

passando por posições intermediárias que se manifestam de forma

especial no contraditório (mas sempre fértil intelectualmente)

Bakunin10

. Dentro desse emaranhado de posições, Kropotkin ganhou

um lugar de destaque por dois motivos principais. Pelo seu pacifismo e

recusa de métodos violentos e individualistas, pela sua crença na

solidariedade humana e no progresso da ciência, ele contribuiu para que

o anarquismo deixasse de ser identificado como uma doutrina de

violência e destruição indiscriminadas para se consolidar como um

projeto de reordenação societária pela via da ação conjunta dos povos11

.

E a sua inspiração baseada nas comunas, assembléias ou sovietes,

possui como finalidade a criação de uma sociedade comunista (esse

10

Cf. ARVON, H. El anarquismo. Buenos Aires, Paidos, 1971; e GUÉRIN, Daniel. Anarquismo. Rio de Janeiro, Germinal, 1968. 11

Cf. WOODCOCK, George. Anarquismo – uma história das ideias e movimentos libertários. Porto Alegre, L&PM, 1983, vol.I, p. 163-70.

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Ensaios de geografia crítica

181

termo vem de comuna, tendo como grande exemplo a de Paris de 1871,

embora Kropotkin tenha feito algumas críticas a esta pelo fato de ter

aplicado, em alguns casos, o sistema representativo ao invés da

democracia direta12

).

Kropotkin foi vítima de um grande mal teórico do século XIX: o

cientificismo. Bastante próximo ao marxismo neste ponto, ele

acreditava que a sociedade seria regida por “leis” – conceito inspirado

na metodologia das ciências naturais da época – e que esse mecanismo

oculto que determinaria o funcionamento e a evolução histórica do

social tenderia naturalmente para o comunismo, que seria uma

sociedade sem classes e sem Estado. Influência do iluminismo, sem

dúvida, com sua concepção de “progresso” inevitável da humanidade.

E também uma crença na “cientifização” progressiva da sociedade

humana e da sua ação sobre a natureza. Portanto, assim como Marx, ele

tinha uma concepção de “sentido” unívoco para a história, de

“progresso”.

Contudo, diferentemente do “socialismo autoritário” (é assim que ele

denominava o marxismo), o “socialismo libertário” que propunha não

fazia qualquer concessão ao Estado, nem conhecia nenhum período de

transição entre o capitalismo e o socialismo. Comunismo e socialismo,

dessa forma, para ele eram sinônimos. Nesses termos, o Estado não

deveria ser “tomado” ou instrumentalizado por qualquer “classe

revolucionária”, mas pura e simplesmente extinto. No seu lugar deveria

ser construída uma nova forma de gestão do social, que iria das

comunas autogeridas – isto é, com democracia direta, onde todos se

conhecessem e tivessem os mesmos direitos de falar, fazer as leis,

participar da administração etc. –, até uma federação mundial formada

por várias nações (mas não Estados-nações), que no fundo nada mais

seria do que a reunião das comunidades autônomas13

.

Ele manifestou uma grande sensibilidade, e isso ainda no final do

século XIX, para a situação das mulheres. Inclusive essa é um das

12

Cf. KROPOTKIN, P. A Comuna de Paris, 1871. In: WOODCOCK, G. (org.). Os grandes escritos anarquistas. 13

Cf. KROPOTKIN, P. La conquista del pan. In: ZEMLIAK, M. (org.). KROPOTKIN – Obras. Barcelona, Anagrama, 1977, p. 80-126.

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José William Vesentini

182

críticas que fez a Marx, que só enxergava o proletariado. De nada

adiantaria uma libertação do homem frente ao capital, afirmou, se as

mulheres continuassem subordinadas na sociedade e na família,

ocupando posições subalternas e fazendo os serviços domésticos. Ele

propunha que esses serviços fossem mecanizados e que fossem

realizados tanto pelas mulheres quanto pelos homens, e que aqueles

tivessem também uma participação igualitária no trabalho extralar e na

condução das questões políticas14

.

Era radicalmente contrário a qualquer forma de hierarquia e diferenças

nos rendimentos, além de abominar o sistema de assalariamento. Uma

das mais ácidas críticas que fez a Marx refere-se à questão da

hierarquia dos rendimentos numa sociedade socialista: para Marx,

deveria existir, provisoriamente, uma diferenciação salarial entre o

trabalho manual e o intelectual, entre, por exemplo, um engenheiro

(que teria um “custo de produção” maior devido à sua formação) e um

faxineiro, que teria que ganhar menos. Kropotkin não aceitava essa

diferenciação nos rendimentos e muito mesmo essa divisão do trabalho

entre um indivíduo que fosse permanentemente faxineiro e outro que

apenas trabalhasse como engenheiro: para ele, as pessoas deveriam

realizar atividades tanto manuais quanto intelectuais e, se ocorressem

longas diferenciações de atividades, estas deveriam ser produzidas

“naturalmente” pelos gostos e aptidões de cada um e nunca de forma

premeditada, sendo que, dessa forma, não poderiam implicar em

diferenças em nível de rendimentos15

.

Frente a Marx, Kropotkin adota uma posição crítica, mas de respeito à

obra intelectual desse autor, apesar de considerar o “pai do socialismo

científico” como um “revolucionário de gabinete”, que apenas propõe

autoritariamente os seus esquemas teóricos para a “classe proletária”

vista como revolucionária. A seu ver, em grande parte, Marx ainda

estaria ligado aos valores mentais do capitalismo (pela aceitação da

divisão do trabalho e pela atitude dúbia em relação ao poder político

instituído, ao Estado, entre outras coisas). Entretanto, o teórico do

socialismo libertário cita com frequência O capital em suas obras,

14

Cf. KROPOTKIN, P. La conquista del pan, op.cit., p. 119-126. 15

CF KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres, op.cit.

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Ensaios de geografia crítica

183

algumas vezes de forma elogiosa, com um respeito que advêm do

reconhecimento do esforço intelectual de Marx, da dedicação deste aos

estudos da realidade social. Kropotkin também foi um investigador

infatigável – provavelmente, o maior dentro do anarquismo – e um

crítico da neutralidade do labor científico. Daí, então, essa sua simpatia

(ou identificação) para com o autor de O capital, mesmo possuindo

sérias divergências com este no tocante ao significado de socialismo e

de revolução. Sua obra de maior vigor teórico – Mutual aid: a factor of

evolution, trabalhada de 1888 até 190216

–, por exemplo, representa um

tour de force intelectual que dificilmente encontra paralelos. Nessa

obra, Kropotkin cita documentos e livros de cerca de uma dúzia de

idiomas diferentes, do russo ao francês, inglês, polonês, italiano e

alemão, passando pelo latim e por dialetos medievais (como certas

línguas eslavas ou latinas faladas no século XI em cidades que

interessavam a Kropotkin devido à organização comunitária que

adotavam), além de citar – e, em alguns casos, realizar – pesquisas

avançadas, na época, de biologia e antropologia. Mas Kropotkin não foi

apenas um teórico. Ele com frequência se disfarçava de camponês ou

de operário, adotando pseudônimos, trabalhando na lavoura ou na

indústria e participando, nessa condição, de revoltas e movimentos

populares. Quando foi preso, em 1874, ele estava usando a

identificação de “o camponês Borodin” para encobrir agitações que

promovia, junto com amigos anarquistas, em bairros operários e áreas

rurais vizinhas a São Petersburgo.

Frente ao marxismo posterior a Marx, principalmente frente ao

bolchevismo, Kropotkin assume uma posição de crítica radical, que

ficou patente no seu posicionamento por ocasião da Revolução russa de

1917. Para ele, a revolução de fato ocorreu em fevereiro, ocasião em

que houve uma multiplicação espontânea dos sovietes com o correlato

enfraquecimento do poder do Estado. O poder “à margem do Estado”,

criado pela expansão dos sovietes ou comunas de operários,

marinheiros, soldados ou moradores, além das cooperativas

espontâneas de camponeses, competia com a autoridade estatal e, em

muitos locais, até prescindia desta. Quando os bolcheviques chegaram

16

KROPOTKIN. El apoyo mutuo, un factor de evolucion, op. cit.

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184

ao poder estatal em outubro, com o apoio de grande parte dos setores

populares e até mesmo da maioria dos anarquistas (devido à promessa

de acabar com a guerra e ao slogan oportunista de Lênin: “Todo poder

aos sovietes”), Kropotkin, ao saber da notícia por um amigo eufórico,

declarou, para decepção deste: “Isso enterra a revolução”17

.

Tal posição é compreensível, tendo-se em vista a ideia kropotkiana de

revolução como uma ação popular contra (e nunca via) o Estado. A

própria noção de “governo revolucionário” era para ele um absurdo,

uma verdadeira contradição nos termos, uma vez que o objetivo de uma

revolução social seria o de abolir o governo e fundar uma nova forma

de gestão do social com base na democracia direta18

. As palavras que

Kropotkin proferiu em 1919, relativas à atuação dos bolcheviques pelo

fortalecimento do Estado, foram exemplares:

A Rússia mostrou a maneira como o socialismo não dever

ser feito [...] A ideia de conselhos operários para controle

da vida política e econômica do país é, em si mesma, de

extraordinária importância [...] mas, enquanto o país

estiver dominado por uma ditadura de partido, os

conselhos de operários e camponeses perdem naturalmente

o significado. Estão degradados num papel passivo

idêntico ao que desempenhavam os representantes dos

estados na monarquia absolutista19

.

Kropotkin, por sinal, já havia desenvolvido em 1905, num verbete

sobre “anarquismo” que escreveu para a Enciclopédia Britânica, um

conceito de capitalismo de Estado, que aplicou posteriormente à Rússia

sob o domínio dos bolcheviques: Os anarquistas consideram, portanto, que entregar ao

Estado todas as fontes principais da vida econômica (a

terra, as minas, as ferrovias, os bancos, os seguros, etc.),

17

Citado por WOODCOCK, George. Anarquismo – uma história das ideias e movimentos libertários, op.cit., p.193. 18

Cf. JOLL, James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1977, p. 177-80. 19

Citado por CHOMSKY, Noam. O poder americano e os novos mandarins. Lisboa, Portugália, s/d, p. 33.

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assim como o controle de todos os principais ramos da

indústria, além de todas as funções que acumula já em suas

mãos (educação, defesa do território, etc.), significaria

criar um novo instrumento de domínio. O capitalismo de

Estado não faria mais que incrementar os poderes da

burocracia e o próprio capitalismo. O verdadeiro progresso

consiste na descentralização, tanto territorial quanto

funcional, em desenvolver o espírito local e de iniciativa

pessoal, e numa federação livre que esteja construída de

baixo para cima, ao invés da hierarquia atual que vai do

centro para a periferia20

.

No início de 1919, Kropotkin enviou uma carta aberta aos

trabalhadores da Europa ocidental explicando a situação russa e

solicitando aos trabalhadores que pressionassem os seus governos no

sentido de evitar intervenções armadas na Rússia, pois esse “cerco”,

essas invasões e o apoio ocidental aos militares tzaristas revoltosos, a

seu ver, iria tão somente resultar no fortalecimento dos bolcheviques (e

do poder estatal), devido à união frente ao inimigo comum e ao

enaltecimento da ideologia nacionalista21

. Percepção sem dúvida

alguma bastante perspicaz, pois o que ocorreu naquele momento foi de

fato um fortalecimento do Estado russo – e, portanto, dos bolcheviques

– e um correlato enfraquecimento dos sovietes e demais órgãos

populares de gestão da economia ou de microespaços. Esse

fortalecimento do Estado e da burocracia, junto com o atrelamento dos

sovietes, das cooperativas espontâneas e dos sindicatos, ao partido

único (os demais foram declarados ilegais), além da proibição de

qualquer forma de greve, das violentas restrições à liberdade de

imprensa, da implantação do taylorismo na indústria e do

fortalecimento do exército e da polícia (a Tcheca, precursora da KGB),

realmente muito se beneficiou da guerra civil e das invasões ocidentais

na Rússia. A “pátria em perigo” foi uma palavra de ordem e de

mobilização muito utilizada pelos bolchevistas para reforçar os

20

KROPOTKIN, P. Folletos revolucionarios II. Barcelona, Tusquets editor, 1977, p. 126, grifos nossos. 21

KROPOTKIN, P. Carta a los trabajadores de la Europa occidental. In: Folletos revolucionarios II, op.cit., p. 87-93.

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aparatos estatais de repressão e o seu controle sobre esse poder

instituído que renascia após ter sido semidestruído pela revolução dos

sovietes. É por demais sabido que esse período de 1918 a 1921, com

um certo caos na economia e no abastecimento agrícola às cidades,

com a guerra civil e as invasões, significou uma quase total liquidação

do operariado russo mais avançado politicamente: a produção industrial

do país caiu para menos de 20% do seu total em 1916, o operariado

passa de cerca de 3 milhões, em 1917, para menos de 1,5 milhão em

1921. Nesse contexto, a preocupação de Kropotkin, em 1919,

demonstra uma acuidade espantosa, uma lucidez ímpar em relação ao

que estava acontecendo e ao provável futuro da Rússia. Salvo engano,

somente Rosa Luxemburgo teve na mesma época uma percepção tão

aguda do que ocorria na revolução russa. Para ela, a concepção

leninista de partido, se levada às últimas consequências, tenderia à

ditadura de uma minoria de burocratas sobre a massa. Sua percepção de

“ditadura do proletariado” implicava numa afirmação radical da

democracia: “A liberdade reservada apenas aos membros do partido,

por mais numerosos que eles sejam, não é liberdade. A liberdade é

sempre a liberdade de quem pensa diferentemente”22

. Mas Kropotkin,

ao inverso de Rosa Luxemburgo, que escreveu essa sua obra sobre a

revolução russa em 1918, não raciocinava em termos de partido e de

“tomada do poder” (isto é, do governo e da máquina estatal). Ele

percebia claramente um antagonismo entre o projeto de revolução

alicerçado em partidos (e organização nacional via Estado) e o projeto

de revolução oriundo dos sovietes, das comunas, dos conselhos (com

organizações locais, regionais e até mundial, com base na destruição do

Estado e a estruturação de múltiplas formas de autogestão).

Enfim, encerrando esta sucinta apresentação sobre a obra de Kropotkin,

cabe deixar claro que, para ele, geografia e liberdade devem caminhar

juntas, são mesmo inseparáveis. Uma geografia libertária? Talvez,

embora esse rótulo nunca tenha sido usado por Kropotkin. Mas a sua

percepção de ciência expressa um engajamento do sujeito do

conhecimento na libertação dos homens frente aos imperativos da

natureza e, principalmente, frente à dominação de alguns sobre muitos.

22

LUXEMBURGO, R. A revolução russa. Lisboa, Ulmeiro, 1975, p. 65.

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Não se trata apenas do combate ao capital, da ingênua (mas

politicamente “realista”, num realismo burocrático) ideia de que a

socialização dos meios de produção vai trazer naturalmente a sociedade

sem classes e sem exploração. Trata-se, antes de mais nada, de dar

primazia às relações de dominação, de combater qualquer forma de

autoridade23

e, principalmente, o Estado. Até o final de sua vida,

Kropotkin foi coerente com a sua filosofia política: em fevereiro de

1917, Kerensky lhe ofereceu um cargo de ministro no seu governo,

oferta recusada; e, logo em seguida, em novembro desse ano, Lênin lhe

solicitou uma colaboração com o “governo revolucionário”, tendo

proposto uma edição em russo das principais obras de Kropotkin, que

ele recusou por não aceitar ajuda ou alianças com qualquer tipo de

governo. Apesar de já velho e debilitado na época, a grande

preocupação de Kropotkin na revolução russa foi contribuir para que os

sovietes e as cooperativas espontâneas se desenvolvessem livremente,

de baixo para cima, sem subordinação ao Estado e a qualquer partido

político.

Em que as ideias kropotkianas poderiam subsidiar uma geografia

crítica? Ora, neste momento em que a problemática de uma construção

da geografia crítica se coloca, surgem já certos percalços ou

descaminhos24

. Um marxismo vulgar e mecanicista em muitos casos

substitui a criticidade ou tenta encobrir a ausência de uma adequada

reflexão filosófica, e um certo stalinismo – mesmo que “renovado” via

Althusser ou via o velho Luckács – algumas vezes serve apenas como

amparo para frágeis críticas à geografia tradicional que mal conseguem

esconder o desejo de dominação, de instrumentalização desse “nova

geografia” para fins burocrático-estatais. Uma recuperação crítica da

obra de Kropotkin – e também, é bom ressaltar, de outros autores

fecundos, críticos e não autoritários, tais como Foucault, Lefort,

23

No próprio enterro de Kropotkin em 1921, em Moscou, acompanhado por cerca de 100 mil pessoas (foi talvez o último movimento de massas tolerado ou não controlado pelos bolcheviques), havia inúmeras faixas onde se lia uma das ideias mais veementemente defendidas por ele: “Onde há autoridade não há liberdade”. 24

Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do conhecimento científico. In: Anais do 4

o Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB,

1984, livro 2, v. 2, p. 423-432.

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Habermas, Castoriadis25

etc. – bem que poderia contrabalançar esse

dogmatismo que se faz presente, essa crença soteriológica na unidade,

na uniformidade, na recusa das diferenças.

Kropotkin, apesar de um otimismo acrítico em relação ao

conhecimento científico e ao “progresso” da humanidade, manifestou,

já no sinal do século XIX, uma salutar sensibilidade frente às

diferenças e particularidades, assim como uma aguda compreensão do

fato de que a questão do poder transcende (e incorpora) o problema

econômico stricto sensu. Pode-se, ainda, mencionar que na vasta obra

kropotkiana existe muita novidade, em relação ao discurso geográfico

clássico ou tradicional, que poderia ser retomada ou recuperada. Por

exemplo, a sua preocupação com os jovens e com os conflitos de

gerações, a sua preocupação com o ensino e com a degradação

ambiental. Sua percepção de natureza já superava a querela sobre quem

domina quem, o homem ou a natureza. Para ele, era evidente que a

evolução tecnológica trazia um domínio da humanidade sobre a

natureza circundante; o problema que via nessa questão era que essa

instrumentalização da natureza pela sociedade moderna também

acarreta consequências negativas para o social e, o que considerava

crucial, agrava ou se soma às diferenças sociais.

ADENDO – KROPOTKIN E O ENSINO DA GEOGRAFIA

Uma das grandes preocupações de Kropotkin era o ensino, que para ele

deveria ser universal, gratuito e igual para todas as classes, para toda a

população. Esse posicionamento, hoje, pode parecer banal e

indiscutível, mas até os primórdios do século XX era comum a ideia

que deveria existir um ensino diferenciado para a elite, mais completo,

25

Por sinal, é visível a proximidade de inúmeros escritos de Castoriadis – principalmente aqueles dos anos 1950 e inícios dos 60, publicados inicialmente na revista Socialisme ou barbarie, sobre o conteúdo do socialismo, as críticas à burocracia e a necessidade de autogestão – com as ideias de Kropotkin.

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Ensaios de geografia crítica

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ao lado de outro mais simples para a maioria da população, para os

trabalhadores manuais. Mackinder, por exemplo, advogava esse ponto

de vista elitista. Kropotkin arrolou as seguintes ideias, numa

conferência sobre o que a geografia (escolar) deveria ser:

A criança busca em todas as partes o homem, a atividade

humana, as lutas contra os obstáculos. Os minerais e as

plantas deixam-na fria; ela está atravessando uma etapa em

que prevalece a imaginação. Quer dramas humanos, o que

significa que a melhor maneira de suscitar-lhe o desejo de

estudar a natureza é pelos relatos de pescadores e

caçadores, de navegantes, de enfrentamentos com os

perigos, de costumes e hábitos, de tradições e migrações

[...] Esta é a tarefa da geografia na primeira infância:

tomando a humanidade como intermediária, desenvolver

nas crianças o interesse pelos grandes fenômenos da

natureza, despertar seu desejo de conhecê-los e explicá-

los. A Geografia deve cumprir, também, um serviço muito

mais importante. Ela deve nos ensinar, desde nossa mais

tenra infância, que todos somos irmãos,

independentemente da nossa nacionalidade. Nestes tempos

de guerras, de ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades

entre nações, que são habilmente alimentados por pessoas

que perseguem seus próprios e egoísticos interesses,

pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em

que a escola deve fazer alguma coisa para contrabalançar

as influências hostis – um meio para anular esses ódios ou

estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e

humanos. Deve mostrar que cada nacionalidade contribui

com sua própria e indispensável pedra para o

desenvolvimento geral da humanidade, e que somente

pequenas frações de cada nação estão interessadas em

manter os ódios e rivalidades nacionais [...] Existe uma

terceira, que talvez o seja ainda mais: a de combater os

preconceitos que nos foram inculcados em relação às

chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo

nos leva a crer que os contatos que vamos ter com elas vão

ser cada vez mais intensos. Quando um político francês

proclamava recentemente que a missão dos europeus é

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190

civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e as

matanças [genocídios] – não fazia mais do que elevar à

categoria de teoria esses mesmos fatos que os europeus

estão praticando diariamente [notadamente na África e na

Ásia, no final do século XIX]. E não poderia ser de outra

maneira, pois desde a mais tenra infância inculca-se o

desprezo pelos ‘selvagens’, ensina-se a considerar como se

fossem verdadeiros crimes determinados hábitos e

costumes dos ‘pagãos’, a tratar as “raças inferiores”, como

são chamadas, como se fossem um verdadeiro câncer que

somente deve ser tolerado enquanto o dinheiro ainda não

penetrou. Até agora os europeus têm “civilizado os

selvagens” com whisky, tabaco e sequestros; os têm

inoculado com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é

chegado o mo mento em que nos devemos considerar

obrigados a oferecer-lhes algo melhor – isto é, o

conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna, a

forma de utilizar o conhecimento científico para construir

um mundo melhor. Assim, o ensino da Geografia deve

perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a

afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes

que todos os homens são irmãos, quaisquer que sejam as

suas nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as

chamadas ‘raças inferiores’ [...] Existe atualmente na

pedagogia uma tendência no sentido de cuidar

demasiadamente da mente infantil, até o ponto de frear o

raciocínio individual e de restringir a originalidade; e

existe também uma tendência dirigida no sentido de

facilitar em demasia a aprendizagem, até o ponto de

produzir uma criança desacostumada a realizar qualquer

esforço intelectual próprio [...] Concedamos a nossos

educandos mais liberdade para seu desenvolvimento

intelectual! Deixemos mais espaço para o seu trabalho

independente, sem mais ajuda do professor do que a

estritamente necessária26

.

26

KROPOTKIN. What geography ought to be. Op. cit. Os grifos são do autor.

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Esse é um texto, a nosso ver, exemplar. Mesmo tendo sido elaborado

em 1885, ele continua sendo de uma grande atualidade e importância.

Para entendermos a sua originalidade e profundidade, temos que

lembrar o contexto que o cerca. Afinal, que tipo de escola existia – e

que tipo de geografia era ensinada – e o que Kropotkin propõe de

novo? Com quem ele dialogava?

Temos que recordar que o final do século XIX era um momento de

colonialismo, de partilha da Ásia e especialmente da África pelas

potências européias, que justificavam essa dominação – que implicava

até mesmo em genocídios, no uso do trabalho exaustivo e compulsório,

na tentativa de imposição aos colonizados dos idiomas, valores e

hábitos dos colonizadores – através da ideia de que os europeus tinham

a “nobre missão” de levar a verdadeira “civilização” para os demais

povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele momento

histórico. Além disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados,

de ferrenhas disputas entre as potências européias por terras e

mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino. Basta lembrar dos

livros didáticos de geografia dessa época, que normalmente

estereotipavam os “outros”, os estrangeiros, e supervalorizavam a “sua”

nação, chegando até mesmo a arrolar o número de soldados ou de

navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre

subestimando o potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a

Alemanha e a Inglaterra, no caso da França, e vice-versa) e inflando os

dados sobre a “nossa pátria”. Inúmeros geógrafos, que em grande parte

eram mais viajantes ou exploradores a serviço do colonialismo,

participavam intensamente dessa aventura expansionista, seja

produzindo ideias pretensamente científicas sobre a superioridade do

modelo civilizatório europeu, seja pela compilação de dados sobre os

recursos naturais e humanos de uma dada região: mapeamentos e

estudos sobre minérios, rios e lagos, relevo e solos, climas, povoamento

e suas características etc. A Royal Geographical Society of London,

onde Kropotkin proferiu essa fala, tinha concorridas reuniões com a

presença de membros da família real, comerciantes, banqueiros,

industriais interessados no alargamento de seus negócios etc. A título

de parêntesis, poderíamos lembrar do filme Mountains of the Moon (As

montanhas da Lua, de Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente

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192

disponível em vídeo ou DVD nas locadoras), que mostra algumas

dessas reuniões dessa instituição com ênfase na polêmica entre dois

geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da nascente

do rio Nilo. Kropotkin participou em várias dessas reuniões da Royal

Geographical Society e este seu texto foi uma intervenção nessa

sociedade, depois publicada numa revista científica. Uma fala,

portanto, destinada não apenas aos geógrafos como também à elite

britânica da época, aquela que decidia os rumos da política externa e

educacional.

Como se deduz facilmente, Kropotkin era uma “voz vencida”, alguém

visto com um misto de benevolência e curiosidade – afinal ele era de

uma aristocrática família russa e, ao mesmo tempo, de forma paradoxal,

anarquista e, consequentemente, um utopista que apostava numa

humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de classe, de

gênero, de etnias etc. Como um exilado russo que viveu em Londres

durante décadas, ele polemizou com os “grandes nomes” da geografia

britânica do período – a começar por sir Halford Mackinder. Mackinder

apregoava, de forma “realista”, que a geografia “deve servir aos

homens do Estado e aos comerciantes”, embora também deva satisfazer

“os reclames do sistema escolar”27

. Kropotkin, ao contrário, exorcizava

qualquer tipo de serviço para o Estado e, principalmente, para os

“comerciantes” (ou seja, os interesses colonialistas) e tinha uma clara

aversão ao tipo de geografia descritiva e chauvinista que era ensinado

nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso como

algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência

do conhecimento – e no princípio de que os seres humanos são iguais

por natureza e que as divisões em nações, classes, gêneros, grupos

étnicos ou religiosos etc, seriam apenas provisórias e tenderiam a se

anular com o desenrolar da história humana. Daí a sua ideia de que a

educação deveria combater qualquer forma de ufanismos nacionalistas,

de preconceitos ou estereótipos, qualquer tipo de racismo ou de

discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua ideia de que, ao

invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a

27

Cf. MACKINDER, H. J. “On the Scope and Methods of Geography”. In: Proceedings of the Royal Geographical Society, IX, 1887, p. 159-60.

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Ensaios de geografia crítica

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Europa poderia lhes fornecer seria a ciência moderna, o conhecimento

da dinâmica da natureza como uma forma da humanidade controlar

sem depredar o seu meio e construir uma sociedade mais rica e mais

justa. E como um bom seguidor das ideias de Pestalozzi e de Fröbel,

educadores de vanguarda na época, Kropotkin advogava um ensino que

não fosse meramente discursivo e, sim, alicerçado em trabalhos de

campo, em observações da realidade, em uma gradativa construção

pelos educandos de conceitos, valores e atitudes. Nota-se, no final

desse trecho, que reproduzimos um apelo aos professores para que

deixem os alunos descobrir as coisas, para não facilitarem em demasia

a aprendizagem, para que os educandos enfrentem desafios que

contribuam para desenvolver sua imaginação, sua inteligência, sua

criatividade.

Como avaliar a importância das ideias de Kropotkin para a sua época?

E qual seria a sua possível atualidade? Sem dúvida que Kropotkin deve

ser visto como uma das vozes daquele rico e diversificado grupo de

pensadores “de esquerda”, tal como eles se posicionavam a partir do

exemplo da Revolução Francesa: os “socialistas” em geral – os

anarquistas, socialistas utópicos, marxistas – da segunda metade do

século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi amigo de

Élisée Reclus, também geógrafo e anarquista e um dos líderes da

Comuna de Paris de 1871. Ele leu com atenção as principais obras

“socialistas” desse período, desde as de Marx até as de Phoudon e

Bakunin, passando pelos escritos de Owen, Fourier e outros. Mas esse

grupo, convém reiterar, era extremamente heterogêneo e possuía ideias

muitas vezes antinômicas. Por exemplo: Marx e também alguns outros

pensadores de “esquerda” da época, ao contrário de Kropotkin, não

criticavam o colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo

chegaram a defender as brutalidades e as matanças com o argumento de

que, apesar dos pesares, isso seria “progressista” no sentido de acelerar

a história – isto é, o desenvolvimento do capitalismo e, posteriormente,

do socialismo – nessas regiões do globo28

. E também o sistema escolar

era visto por alguns (Owen, Fourier, Kropotkin) como “progressista”

28

Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: Sobre o colonialismo. Op. cit., p. 47-8 e 103-4.

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José William Vesentini

194

no sentido de possibilitar uma maior igualdade entre as pessoas e a

inculcação de novos valores e atitudes mais igualitários, sendo que,

para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela universalização e

democratização do ensino – por ele tido como “burguês” – era algo

superficial e até mesmo histriônico29

.

Kropotkin jamais professou a crença numa “classe predestinada” a

fazer a revolução, o proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou

os inúmeros “sujeitos” ou campos de lutas que deveriam ser levados em

consideração com a mesma ênfase: a natureza com a sua dinâmica e o

seu equilíbrio, que deveria ser respeitado (e nunca aquele desprezo

absoluto pela “natureza em si” que existe em alguns socialistas desse

período), as classes trabalhadoras (no plural), as crianças e os jovens, as

mulheres, as etnias minoritárias e as “raças” tidas como inferiores, os

povos estrangeiros, em especial aqueles mais diferentes de “nós” e,

dessa forma, mais discriminados etc. Neste sentido, será que

poderíamos ver em Kropotkin um pensador mais próximo daquilo que,

a partir dos anos 1970, seria rotulado como pós-modernidade?

O pensamento de Kropotkin, inegavelmente, tem atualidade. Quando

consultamos algum bom texto sobre como deve ser a educação no

século XXI – por exemplo, o excelente trabalho de Edgar Morin30

ou,

então, o relatório de um grupo de pesquisadores/educadores realizado a

pedido da UNESCO31

– logo notamos que há uma ênfase na educação

não enquanto um mero ensinamento de conceitos, mas, sim, como

atividades direcionadas para o educando aprender a aprender, a ser, a

conviver (combatendo, assim, todas as formas de preconceitos) e a

fazer. Mais importante do que levar o aluno a assimilar um conceito ou

mesmo a aprender a escrever corretamente é fazê-lo perceber o absurdo

dos preconceitos e estereótipos, é contribuir para nele desenvolver

atitudes democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada

tem de burguês, mas, pelo contrário, deve, sim, ser visto como um

passaporte para a cidadania, que inclusive deveria ser global ou

29

Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, p. 32-3. 30

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco, 2000. 31

DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998.

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Ensaios de geografia crítica

195

planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior herança ou

tesouro da humanidade, como aparece naquele mencionado estudo da

UNESCO. Um importante filósofo francês, estudioso da democracia

moderna, já havia observado que Marx se enganou cabalmente quando

menosprezou tanto a democracia quanto o ensino como instrumentos de

mudança social no final do século XIX:

A democracia que conhecemos instituiu-se por vias

selvagens, sob o efeito de reivindicações que se mostraram

indomesticáveis. E todo aquele que tenha os olhos

voltados para a luta de classes, se deixasse os sendeiros

marxistas (é verdade que se finge, às vezes, não mais

segui-los, mas conserva-se a direção), deveria convir que

ela foi uma luta para a conquista de direitos [...] Seus

representantes mais ativos [da burguesia], na França,

tentaram de mil maneiras atravancar sua dinâmica [da

democracia em sua expansão] no século XIX. Viram no

sufrágio universal, no que era, para eles, a loucura do

número, um perigo não menor que o socialismo. Durante

muito tempo julgaram escandalosa a extensão do direito de

associação e escandaloso o direito de greve. Procuraram

circunscrever o direito à educação e, de modo geral,

fechar, longe do povo, o círculo das “luzes”, da

‘superioridade’ e das “riquezas”32

.

As propostas de Kropotkin para o ensino da geografia têm uma grande

atualidade. Como ele já preconizava no final do século XIX, ensino

deve levar o aluno a adquirir uma paixão pela natureza e pela sua

conservação racional, e isso sem entrar num atrito cego ou mítico com

a ciência moderna. Deve ter como uma de suas preocupações essenciais

mostrar – ou melhor, como preconizada Kropotkin, deixar o aluno

descobrir oferecendo a ele desafios – que a humanidade é uma só

apesar das diferenças, que todos ou povos ou “culturas” (Kropotkin

falaria em “raças”, mas esse termo era absolutamente normal na sua

época) contribuem à sua maneira para a rica complexidade de toda a

humanidade.

32

LEFORT, C. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 26.

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197

A crise da geopolítica brasileira tradicional:

existe hoje uma “nova geopolítica brasileira”?*

Durante grande parte do século XX existiu no Brasil uma verdadeira

escola geopolítica com um peso significativo nos destinos do país. A

nosso ver, ela se encontra em crise desde os anos 1980. Será que existe

uma “nova geopolítica brasileira”? Se existir, mesmo que

potencialmente, quais seriam os seus pressupostos? Examinaremos essa

ideia nas linhas a seguir.

Há praticamente um consenso, entre os acadêmicos que estudam esta

temática, que existiu, no Brasil, uma importante (inclusive em termos

internacionais) escola geopolítica que incluiu nomes como o de

Golbery do Couto e Silva (o mais famoso de todos, devido à sua forte

presença nos governos militares), Mario Travassos, Everardo

Backeuser, Octávio Tosta, Lysia Rodrigues, Carlos de Meira Mattos,

Therezinha de Castro, José E. Martins, Juarez Távora e vários outros.

Existem inúmeras teses, livros, artigos de revistas acadêmicas e até

atlas geopolíticos e geoestratégicos que realçam a importância desta

escola de geopolítica, tais como – apenas para citar alguns – os de

Tambs, Chaliand e Rageau, Vesentini, Costa, Miyamoto, Mello e

Lorot1.

* Texto publicado com o título La crisis de La geopolítica brasileña tradicional. Existe hoy uma

nueva geopolítica brasileña?, na revista Política y Estrategia, Santiago de Chile, n.108, outubro de 2007. 1 TAMBS, L. A. “Latin American geopolitics: a basic bibliography”. In: Revista Brasileira de

Geografia, Rio de Janeiro, IBGE, n.73, 1970, p. 71-105; CHALIAND, G. e RAGEAU, J. P. Atlas estratégico y geopolítico. Madrid, Alianza Editorial, 1983; VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo, Ática, 1987; COSTA, W. M. Geografia política e geopolítica. São Paulo,

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198

Essa escola geopolítica brasileira produziu uma rica e vasta

bibliografia – sob a forma de livros, artigos e ensaios em revistas,

principalmente militares, planos e projetos a serem operacionalizados

pelo Estado etc. – desde a década de 1920 até os anos 1980, quando

ingressou numa fase de declínio. Nosso objetivo, aqui, é mostrar

sucintamente no que consistiu essa escola geopolítica brasileira, quais

foram suas preocupações e temas básicos, quando e porque entrou em

crise e, principalmente, como ficou o pensamento geopolítico brasileiro

a partir de então.

O emprego do termo escola geopolítica requer algumas explicações. É

comum, por parte de vários autores o uso desse vocábulo, mas sem

nenhuma preocupação justificatória. Um recente estudo voltou a

empregar essa palavra, mas em parte alguma surge alguma explicação

para o seu uso; existe nesse livro tão somente uma descrição – embora

bastante cuidadosa – dos temas e análises desenvolvidos por três

geopolíticos brasileiros daquele período que mencionamos (Castro,

Golbery e Meira Mattos), uma escolha, por sinal, subjetiva e

questionável2. O mesmo poderia ser dito em relação aos demais autores

que empregaram essa expressão, escola geopolítica brasileira, que na

verdade nunca foi muito bem explicitada. Apesar disso, a nosso ver

essa denominação tem a sua razão de ser. Acreditamos que é, de fato,

possível falar numa escola geopolítica brasileira devido às seguintes

razões. Em primeiro lugar, porque todos os autores representativos de

uma forma ou de outra dialogaram entre si, se complementaram,

mesmo que eventualmente tenham discordado em determinados itens –

tais como, por exemplo, na questão de como integrar o território

brasileiro, seja através de rodovias, para alguns, seja por ferrovias, para

outros, ou por hidrovias, para uns poucos; ou, então, na maior ou menor

ênfase na região platina ou na Amazônia; ou ainda, no período da

guerra fria, entre uma clara opção pelo campo ocidental e norte-

americano ou uma tentativa de alcançar alguma liderança no mundo em

desenvolvimento, particularmente na América do Sul e nas nações

Edusp, 1988; MIYAMOTO, S. Geopolítica e poder no Brasil. Campinas, Papirus, 1995; MELLO, L. I. A. A geopolítica do Brasil e a bacia do Prata. S.Paulo, Annablume, 1997; LAROT, P. Histoire de la géopolitique. Paris, Econômica, 1995. 2 FREITAS, J. M. C. Escola geopolítica brasileira. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 2004.

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Ensaios de geografia crítica

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africanas onde se fala o português. Contudo, apesar das discordâncias

pontuais, existiu algo em comum a todos eles: a preocupação com as

fronteiras e com a integração nacional ou territorial, uma crítica ao

federalismo com uma correlata defesa de um Estado centralizado e,

principalmente, uma preocupação ou uma aspiração sobre o futuro do

país, consubstanciado na ideia de um “Brasil, grande potência”, seja ela

regional (na América do Sul ou, eventualmente, na América Latina e no

Atlântico Sul) ou mundial.

Indo um pouco além, e aqui talvez resida a principal razão para o uso

dessa expressão, acredito que existiu um projeto geopolítico para o

Brasil, ou melhor, um projeto de reestruturação político-territorial

pensado pelos geopolíticos brasileiros daquele período – dos anos 1920

aos anos 1980 – e que, se implementado, faria com que o país se

modernizasse caminhando rumo ao status de uma potência regional ou

até global. Destarte, aqueles geopolíticos formaram uma verdadeira

escola de pensamento porque tinham um projeto em comum, tinham os

seus autores clássicos ou inspiradores (Alberto Torres, Oliveira Viana

e, um pouco mais tarde, Mario Travassos), além de abordarem temas

comuns, que foram muito bem arrolados por Miyamoto3, quais sejam: a

geografia dos transportes e das fronteiras, a mudança da capital federal

para o interior e a redivisão territorial do país. Poderíamos, ainda,

acrescentar um tema central, a segurança nacional (entendida

essencialmente como segurança do Estado e não da sociedade), além da

integração nacional, da necessidade do país se tornar autossuficiente

em armamentos, da presença do Brasil no mundo e na América do Sul.

Sabemos que esse pensamento geopolítico brasileiro – ou melhor, esse

projeto para o país – não ficou só no papel. Da teoria ele se incorporou

à prática. A partir do Governo Getúlio Vargas, que chegou ao poder em

1930, o ideário geopolítico foi sendo cada vez mais implementado. Já

mostramos num estudo anterior que esse projeto geopolítico, por volta

de 1927-30, se encontrou e se amalgamou com os reclames do

empresariado industrial, basicamente paulista, que naquele momento

começava a tomar consciência dos seus interesses específicos e dos

3 MIYAMOTO, S. Geopolítica e poder no Brasil , op. cit.

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200

rumos que gostaria que o Brasil trilhasse4. Também aos empresários

industriais desagradava o regime federativo da chamada República

Velha (de 1889 a 1930), principalmente os impostos que cada estado

cobrava para os produtos oriundos dos demais. Em resumo, o governo

Vargas foi o primeiro que colocou em prática, pelo menos em grande

parte, algumas ideias dessa escola geopolítica e do empresariado

paulista: a marcha para o oeste, a construção de estradas com vistas à

integração nacional (e não mais visando tão somente interligar alguma

área agropecuária ou mineradora a um porto de exportação), o final dos

impostos alfandegários entre os estados e, por fim, um notável

fortalecimento do governo federal – e também das forças armadas, que

passaram a ter o monopólio de certos armamentos que antes eram

utilizados também pelas milícias estaduais – que se sobrepôs aos

estados e municípios, os quais, durante a República Velha, tiveram

maior poder e autonomia.

Depois de Vargas, inúmeras propostas geopolíticas foram

operacionalizadas pelo governo de Juscelino Kubitscheck (1956-60),

principalmente a interiorização da capital federal (e também a

construção de inúmeras rodovias que permitiram a ocupação efetiva do

Brasil central e parte da Amazônia) e, sem a menor dúvida, pelo regime

militar que se instalou em 1964 e perdurou até 1985. Uma boa parte

dos dirigentes desse regime militar era de geopolíticos, inclusive alguns

presidentes da República e vários ministros. Cabe aqui, mais uma vez,

recordar que o nome mais famoso foi o do general Golbery do Couto e

Silva, que exerceu uma influência notória nos governos Castelo Branco

(1964-67), Ernesto Geisel (1974-79) e Figueiredo (1979-85). Durante o

regime militar, houve uma expansão da indústria bélica no Brasil, com

fortes subsídios estatais, a ponto de o país ter se tornado num grande

exportador mundial de armamentos. Não podemos esquecer que

quando do término da ditadura militar no Brasil, em 1985, foi

descoberto na Serra do Cachimbo, no sul do Pará, um fosso –

perfurações de 320 metros de profundidade revestidas de concreto –

destinado a ser o local de experiência da primeira bomba atômica do

país, uma informação a princípio desmentida pelas autoridades, mas

4 VESENTINI, J. W. A Capital da Geopolítica. Op. cit., p. 123-33.

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201

depois confirmada pelas análises de cientistas – inclusive pela

Sociedade Brasileira de Física – e até mesmo, passados vários anos, por

entrevistas de militares que participaram do programa. Também

durante o regime militar ocorreu uma maior ocupação da Amazônia

brasileira, com a construção de rodovias e com a criação da SUDAM

(superintendência para o desenvolvimento da Amazônia), além de ter

havido o término e a consolidação de Brasília como capital federal de

fato5.

Por que esse pensamento geopolítico, com o seu ideário, entrou em

crise nos anos 1980? Por que depois da morte de Golbery, em 1987,

praticamente não foram criadas novas ideias nessa escola geopolítica?

(Alguns poucos sobreviventes, mesmo que aposentados ou na reserva,

como o general Meira Mattos, falecido em 2007, continuaram a

propagar as ideias geopolíticas clássicas, mas, a meu ver, sem se

adequarem de fato ao novo mundo pós-guerra fria, às novas tecnologias

da terceira revolução industrial, que, conforme esmiuçamos em outro

trabalho6, mudaram inclusive os conceitos de guerra e de grande

potência).

Acreditamos que isso ocorreu devido a vários fatores, mas o principal

deles é que ficou evidente, a partir da década de 1980, que esse projeto

para o Brasil tinha pressupostos questionáveis, enfim, que ele deveria

ser radicalmente repensado. Sem dúvida que também a crise do

“modelo econômico” aplicado pelo regime militar contribuiu para isso.

O final dos fáceis empréstimos internacionais baseados nos eurodólares

e notadamente, a partir de meados dos anos 1970, nos petrodólares,

junto com a consciência na nova conjuntura internacional dos anos

1980 de que a enorme dívida externa do país deveria ser paga, a par do

progressivo declínio de determinados parâmetros da segunda revolução

industrial – produção em massa, sem controle de qualidade, o uso

massivo de uma força de trabalho não qualificada etc. – fizeram com

que o “modelo” de desenvolvimento do Brasil, que havia sido a

economia com maior crescimento em todo o mundo nos anos 1970,

entrasse em crise. Desde os anos 1980 que o Brasil conhece medíocres

5 Cf. VESENTINI, J. W. Op. cit., p.163-9.

6 VESENTINI, J. W. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2000.

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taxas anuais de crescimento da economia, em geral inferiores à média

mundial e até mesmo à média dos países latino-americanos. Também

nos anos 80 ficou evidente que o crescimento econômico não foi

acompanhado por melhorias sociais – ao contrário, a distribuição social

da renda se tornou cada vez mais concentrada a partir da década de

1960. E, nos anos 1980 – como também, infelizmente, malgrado ter

ocorrido algumas melhorias, nos dias de hoje –, o Brasil não estava

preparado para as novas demandas exigidas pela revolução técnico-

científica em andamento. Um sistema escolar com uma qualidade em

franca decadência desde o final dos anos 1960 – apesar de uma sensível

expansão quantitativa –, que resulta numa força de trabalho em geral

pouco qualificada e com baixíssimo nível de escolaridade em termos

internacionais, a par de um poder aquisitivo médio extremamente

reduzido para a imensa maioria da população, fez com que o país

perdesse inúmeras oportunidades no mundo globalizado.

Sem dúvida que isso tudo – e muitos outros processos, que não

caberiam neste ensaio – contribuiu para o final do regime militar. Mas a

crise da geopolítica não foi apenas um subproduto da crise desse

regime; ela foi também um resultado de sua própria aplicação.

Paradoxalmente, pode-se dizer que a geopolítica brasileira entrou em

crise porque, tendo sido operacionalizada em grande parte, em suma,

não produziu os resultados que prometia. Depois de várias décadas de

implementação do ideário geopolítico, o Brasil não se transformou num

país de fato moderno e desenvolvido, numa potência indiscutível na

América do Sul e no mundo. O Brasil quase chegou a possuir a bomba

atômica – algo que não teria alterado praticamente em nada seu status

na comunidade internacional e muito menos melhorado o padrão de

vida da população –, mas continua a ser um país problemático, com

uma sociedade carcomida, com desigualdades sociais bem maiores que

a imensa maioria das demais nações do globo, e ainda dependente de

investimentos e tecnologia estrangeiros.

De fato, o ideário geopolítico da escola brasileira era alicerçado numa

concepção ultrapassada de potência, de segurança, de modernização e

de desenvolvimento. Uma concepção geopolítica sem dúvida clássica,

que poderíamos chamar de napoleônica, coerente com as ideias dos

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“grandes nomes” da geopolítica clássica (Kjellén, Mackinder, Mahan

ou Haushofer), mas completamente equivocada por não valorizar

minimamente os chamados “recursos humanos”, o “poder cerebral” na

denominação de alguns economistas. Havia uma visão militarista de

potência, que levou em conta apenas a dimensão do território, com sua

localização e suas características, o tamanho da população e sua

distribuição no espaço, os recursos econômicos brutos e o poder

militar; mas que ignorou a importância da educação e da melhor

qualidade de vida e até mesmo do poder aquisitivo da maioria da

população – isso sem falar na expansão das liberdades, fundamental

para o desenvolvimento, segundo o premio Nobel Amartya Sen7. Em

suma, uma concepção de potência mundial ou regional – e não de uma

sociedade democrática e com um desenvolvimento sustentável – que,

sem dúvida, a nosso ver, fracassou não porque tenha sido “desvirtuada”

ou aplicada de forma incorreta, como diriam alguns, e, sim, exatamente

porque foi operacionalizada e não deu – nem poderia dar, em face de

seus pressupostos – os resultados almejados.

A partir daí, será que existe uma “nova” geopolítica brasileira, com

novos pressupostos, com novas ideias, enfim, uma nova escola ou uma

nova safra de bons geopolíticos? Minha resposta é não. No mundo

político e governamental pode-se dizer que existe um momento de

perplexidade a esse respeito. As ideias geopolíticas foram durante

décadas criticadas de forma radical por praticamente todos os espectros

da esquerda, que agora está no poder (seja via PT ou PSDB) e que, na

verdade, nunca teve, e continua a não ter, nenhum projeto viável ou

realista para o futuro do país. Teve, sim, o sonho ou devaneio de que

combater o capitalismo seria suficiente para garantir a construção de

uma sociedade igualitária e não dependente, sempre pensando apenas

em termos de luta de classes e modos de produção, nunca em termos de

relações internacionais ou do papel do Brasil no mundo. Daí a

perplexidade e a falta de um projeto para o século XXI.

Quanto ao mundo acadêmico, nele ocorreu, a partir dos anos 1980, uma

multiplicação de estudos sobre geopolítica – ou de geografia política,

de relações internacionais, de ciência política com ênfase no espaço e

7 SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2000.

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no papel do Brasil no mundo etc. –, por sinal, com trabalhos de boa

qualidade. Mas não estudos de fato geopolíticos no sentido de pensar o

Brasil como potência regional ou mundial. Por sinal, uma boa parte

desses estudos é histórica, isto é, propõe-se a historiar ou analisar a

geopolítica brasileira, e não a recriá-la. Não existe mais nenhum projeto

coerente (a não ser propostas casuísticas e oportunistas de criação de

novos Estados) de reordenação político-espacial para o país. A escola

geopolítica brasileira virou uma fonte de pesquisas, só que ela não

existe mais. Talvez surja uma “nova escola geopolítica” (ou de

geoeconomia, como dizem alguns) que refaça um projeto para o Brasil,

mas, até o momento, desde os anos 1980 até esta primeira década do

século, o que existe são estudos em geral isolados, que pouco dialogam

entre si e, via de regra, de natureza histórica, que esmiúçam tal ou qual

ideia ou proposta de ação, que comparam este e aquele autor, mas sem

o caráter abrangente ou genérico, sem o pragmatismo da “velha”

geopolítica.

A geopolítica clássica sempre implicou numa forte identificação com o

Estado, que subsumia a nação e a sociedade, que as incorporava e

comandava. Sempre pensou o mundo como um palco de disputas e

guerras entre os Estados, esse ator privilegiado e quase exclusivo, uma

espécie de “selva” onde só os fortes sobrevivem. Muitos continuam a

pensar dessa maneira, às vezes até reproduzindo ainda hoje velhas

propostas (como a do Brasil desenvolver armas nucleares, voltar-se

mais para o “interior”, ou numa outra leitura para a América do Sul e o

mundo subdesenvolvido, deixando de lado o chamado Norte

geoeconômico), mas não creio na seriedade nem no alcance dessas

ideias. Dificilmente elas conseguirão lograr a influência que a escola

geopolítica brasileira teve, que praticamente chegou a ser um partido

político à margem da disputa eleitoral – mas disputando o poder do

Estado por outras vias – e que se tornou vitorioso em vários momentos

e circunstâncias.

A escola geopolítica brasileira alcançou tamanha repercussão e teve

tanta influência na vida política do país, em grande parte, devido ao

fato de ter sido produzida quase que exclusivamente por militares – os

poucos civis que colaboraram via de regra eram professores em

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colégios militares. Os militares no Brasil, pelo menos durante boa parte

do século XX formaram um grupo coeso e fortemente politizado, quase

um partido político no sentido de proporem mudanças, terem um

projeto, um ideário, e lutarem pela sua implementação pelo Estado8.

Podemos, talvez, afirmar que a geopolítica representou uma espécie de

“porta de entrada” dos militares brasileiros na vida política, isto é, uma

forma de teorizarem – e pressionarem – sobre os destinos do país, ao

mesmo tempo em que aparentemente estavam apenas discutindo

questões militares ou geoestratégicas, pois a geopolítica tinha os

conflitos armados no seu âmago (o poder era sempre visto, antes de

tudo, como relações de força) e contava com inúmeros militares entre

seus autores clássicos (Haushofer, Mahan e vários outros). A partir de

1985, com a redemocratização do país, mesmo que indiscutivelmente

capenga ou relativa, os militares se retraíram, passaram a se ocupar

basicamente dos seus problemas corporativos – ou então das questões

específicas de estratégia militar – e, ao mesmo tempo, começa a

predominar uma percepção de que seriam os verdadeiros partidos

políticos que deveriam se encarregar dessa tarefa de produzir ideários

ou projetos para o futuro do país.

Mas, para encerrar, não poderíamos afirmar que algumas ideias da

escola geopolítica continuam a nortear a política do governo federal

brasileiro? Certos analistas parecem sugerir essa ideia, ao afirmarem

que no governo Lula a política econômica é neoliberal, uma

continuação do governo anterior, ao passo que a política externa seria

nova e ousada, uma espécie de atualização do terceiro-mundismo – ou

meridionalismo, como querem alguns. Existem, de fato, certas

evidências que poderiam corroborar essa ideia. Por exemplo: logo no

início do primeiro governo Lula, em 2003, o ministro da ciência e

tecnologia afirmou que o Brasil deveria buscar o conhecimento

necessário para a fabricação da bomba atômica. Ele durou pouco no

cargo. Mas a imprensa constantemente noticia que, nesse mesmo

governo, muitos estão apregoando a ideia de que o Brasil deve retomar

o intento – que existia como parte do “projeto nuclear paralelo

brasileiro”, cujo grande escopo era a bomba – de fazer um submarino

8 Cf. STEPAN, A. Os militares na política. São Paulo, Artenova, 1975.

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movido a reatores nucleares. Isso, sem contar com as tentativas do

governo brasileiro de liderar a América do Sul e a América Latina

como um todo, que resultou em inúmeras concessões ao Peru, ao

Uruguai e até – nas rediscussões sobre tarifas do Mercosul – à

Argentina9. Mas esse assistencialismo internacional na América do Sul,

com vistas a alcançar uma “liderança natural” – nas palavras do

chanceler Celso Amorim –, logo foi atravancado pela política externa

do governo Hugo Chaves da Venezuela, que dispõe de fartos recursos

oriundos dos altos preços internacionais do petróleo. Mas há também os

esforços diplomáticos – consubstanciados com criação do G-4 – no

sentido do Brasil se tornar o país latino-americano que dispõe de uma

cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU numa possível

reestruturação desta. Ou ainda o envio de tropas brasileiras para ajudar

na pacificação do Haiti, em 2004. Ou uma pretensa ênfase no

fortalecimento do Mercosul, como uma tentativa de se contrapor à

influência norte-americana nesta parte do mundo. Ou ainda, segundo

alguns, uma “nova” política externa que procura mais e mais se

aproximar dos países do Sul – Índia, China, África do Sul e,

principalmente, países latino-americanos – ao mesmo tempo em que,

supostamente, amplia sua independência em relação a Washington.

No entanto, todas essas evidências – ou algumas outras no mesmo

sentido – não comprovam que a escola geopolítica brasileira continua

ativa e, muito menos, a existência de um novo ideário geopolítico. São,

de fato, ocorrências mais de política externa do que doméstica. Nesta

última, na política stricto sensu, predomina um populismo de caráter

assistencialista que, na substância, pouco difere dos antigos regimes

populistas de Vargas, Kubitschek ou Jango. Na política econômica

prossegue o modelo, construído no governo anterior (de Fernando

Henrique Cardoso), que alguns equivocadamente denominam

neoliberal: uma ênfase na busca de credibilidade perante o mercado

financeiro internacional, com juros altos para atrair capitais externos e,

ao mesmo tempo, conter a inflação, um notável esforço no sentido de

9 Cf. FERREIRA, O. S. “A política externa do governo Lula”. Palestra proferida em agosto de

2004 na PUC-SP e disponível in http://br.monografias.com/trabalhos/politaca-externa-governo/politaca-externa-governo.shtml.

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ampliar o volume das exportações, com vistas a acumular divisas,

determinadas políticas populistas e assistencialistas para a população

mais carente etc. Mas, na política externa, segundo a leitura de alguns,

existiria algo de novo e radicalmente diferente dos governos anteriores.

Essa leitura de natureza dualista, que enxerga uma política interna

ortodoxa e uma política externa nova ou até revolucionária, é

extremamente duvidosa. Primeiro, porque ambas as políticas se

imbricam, já que em grande parte a externa – por exemplo, a busca de

novos parceiros comerciais – depende da interna. Segundo, porque

esses “fatos novos” na política exterior – pelo menos uma boa parte

deles – podem ser vistos como atitudes ou orientações isoladas, muitas

vezes movidas pelas circunstâncias e não por um projeto de longo

prazo. Eles não constituem um verdadeiro projeto geopolítico para o

século XXI, tampouco um projeto de desenvolvimento, no sentido de

se forjar uma grande potência. A bem da verdade, a maior parte desses

procedimentos são já antigos – uma constante no Estado brasileiro,

independente deste ou daquele governo – tal como, por exemplo, o fato

de que, desde a criação da Liga das Nações, em 1919, o país já

pleiteava uma vaga como membro permanente do Conselho de

Segurança daquela organização. E o envio de tropas brasileiras para o

Haiti, no atual governo, foi precedido pelo envio de tropas para o

Timor Leste, no governo anterior. Também não se pode esquecer que o

Mercosul, visto por alguns como o símbolo de uma nova geopolítica

regional, foi criado em 1991 – ou seja, muito antes do atual governo –

e, por sinal, nos anos recentes anda meio estagnado e necessitando de

uma reformulação. Ademais, o Mercosul surgiu como uma decorrência

da reprodução de uma tendência mundial, a partir da globalização e do

sucesso da União Européia, de constituir mercados supranacionais em

várias partes do mundo. Embora importantíssimo, ele representou mais

um mimetismo do que uma nova e efetiva iniciativa local, ou seja, uma

geopolítica regional mais empurrada pelos ventos da globalização do

que por uma vontade própria e deliberada com vistas a unir o Cone Sul.

Quanto a uma maior aproximação com alguns países do Sul – se é que

a China pode continuar a ser incluída nesse grupo –, não se deve ver

nisso nenhuma nova geopolítica ou mesmo uma radicalmente nova

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José William Vesentini

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política externa, pois, por um lado, é consequência do notável

crescimento da China, a qual, a bem da verdade, estreita seus laços com

praticamente todos os países do mundo, inclusive e principalmente com

os Estados Unidos e a União Européia, e não apenas com os do Sul; por

outro lado, temos que lembrar que, apesar da impressão em contrário,

ou dos textos panfletários, em média as economias do Sul – desde que

se inclua neste grupo a Índia, a China, os “tigres asiáticos” etc. –

cresceram percentualmente bem mais que as do Norte nas últimas duas

ou três décadas. Com isso, várias dessas economias chamadas de

emergentes – inclusive a brasileira – se tornam cada vez mais

complexas e industrializadas, o que vem gerando uma nova divisão

internacional do trabalho na qual os intercâmbios Sul-Sul em geral – ou

seja, não apenas os do Brasil com outros países meridionais –

cresceram enormemente nesse período de tempo.

Por sinal, ao mesmo tempo em que amplia suas relações de troca com

outros países do Sul, o Brasil, de forma insistente e pragmática,

também procura – embora nem sempre consiga – encetar acordos

especiais de comércio e/ou de transferência de tecnologia com a

Europa, com o Japão e até com os Estados Unidos. Não existe – nem

deveria existir, pois seria puro idealismo desprovido de senso de

realidade – qualquer orientação no sentido de dar primazia aos países

do Sul, como sonham alguns. Existe, sim, uma notável mobilização,

desde pelo menos o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),

com vistas à abertura do mercado, especialmente das exportações, algo

que tem sido particularmente bem-sucedido nos últimos anos. Bem-

sucedido, convém aclarar, não devido a um pretenso novo

direcionamento da política externa, mas basicamente em função da

crescente procura internacional por certas commodities – como a soja e

seus derivados, as carnes, os minérios e seus derivados etc. – que o

Brasil produz em grande quantidade e que, além do mais, conheceram

um sensível aumento nos seus preços nestes últimos anos (isto é, entre

2004 e meados de 2008).

Em resumo, não existe uma nova geopolítica para o Brasil no sentido

de um projeto coerente para os desafios do século XXI. Uma

geopolítica diferente da clássica, alicerçada em novos pressupostos: não

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Ensaios de geografia crítica

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mais o poderio militar e, sim, o econômico-social, que depende

fundamentalmente do softpower e dos chamados recursos humanos –

educação, tecnologia, poder aquisitivo para a população em geral,

influência cultural em outros países etc. – e também da expansão das

liberdades, de uma maior participação dos cidadãos nas decisões e no

controle dos gastos públicos, enfim, da implementação de uma

democracia entendida como processo permanente10

. Será que algum

partido político engendrará um novo projeto com esses pressupostos?

Duvido muito, pois todos eles estão preocupados apenas com cargos e

vantagens – sejam legais ou ilegais –, com o uso da máquina pública

em benefício pessoal e de apadrinhados. Surgirá esse novo projeto na

academia? Talvez, mas é forçoso reconhecer que o mundo mudou tão

radicalmente desde o final do século passado e os intelectuais

acadêmicos, salvo raríssimas exceções, são demasiadamente lentos em

rever as suas ultrapassadas ideias. Uma boa parte deles, no Brasil, ainda

vive sob a ideologia da guerra fria, raciocinando em termos de

“derrubar o capitalismo”. (Com vagas propostas de um “socialismo

democrático”, que soam estranhas vindas de vozes que não admitem

contestações ou críticas, que não admitem outros caminhos que não os

seus, e que, de forma declarada ou disfarçada, continuam a ter como

norte o marxismo-leninismo). Ou, então, de se “vingar” da derrocada

do antigo mundo socialista, como se o mundo fosse um campeonato de

futebol no qual neste ano ganha o time X e no ano seguinte o Y. Uma

outra parte, a que se voltou para a geopolítica antes repudiada, recupera

– de forma entusiasta e não crítica – determinadas ideias de

geopolíticos militares como Mário Travassos, Meira Mattos ou Golbery

do Couto e Silva, como se não vivêssemos em uma nova realidade na

qual os pressupostos dessa geopolítica clássica já se tornaram

superados. Mas o mundo intelectual é rico e complexo, pleno de

aporias e controvérsias, e em alguns casos é aberto para o mundo, para

pensar as mudanças. Por isso mesmo constitui um campo no qual

podem surgir novas ideias ou um novo paradigma geopolítico.

10

Cf. LEFORT, C. A invenção democrática. S. Paulo, Brasiliense, 1983.

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Golbery do Couto e Silva, o papel das forças armadas e

a defesa do Brasil*

Este ensaio procura analisar criticamente alguns aspectos do

pensamento geopolítico do general brasileiro Golbery do Couto e Silva

(1911-1987). Como é amplamente conhecido, Golbery foi um dos

principais nomes da chamada “escola geopolítica brasileira”. Não foi o

grande ideólogo dessa escola – posição normalmente atribuída a Mario

Travassos1 –, mas, sem dúvida, se tornou na sua figura mais conhecida

após ter participado, como uma espécie de “conselheiro do Príncipe”,

dos governos militares de Castelo Branco (de 1964 a 67), Geisel (de

1974 a 79) e Figueiredo (1980-81)2. Em face do seu desempenho como

uma espécie de intelectual orgânico desses referidos governos, ele

* Texto elaborado em 2008 a pedido de uma revista militar chilena. Publicação no prelo.

1 TRAVASSOS, M. Projeção continental do Brasil. São Paulo, Brasiliana, 1935.

2 O governo do general Figueiredo prosseguiu até 1985, mas Golbery solicitou a sua demissão

como Chefe da Casa Civil em 1981, após a recusa do executivo em apurar com rigor o episódio conhecido como Riocentro. Nesse pavilhão, o Riocentro, milhares de pessoas comemoraram o Dia do Trabalho quando uma bomba explodiu no estacionamento. A explosão ocorreu no carro de um militar, matando o seu ocupante, um capitão lotado nos chamados “órgãos de inteligência”, na verdade um membro da “linha dura” dos órgãos de repressão da época. Ao que tudo indica, ele pretendia detonar a bomba no meio da multidão para culpar os “terroristas de esquerda”, fato que justificaria a continuidade – e maiores verbas e pessoal – para a organização na qual trabalhava. Mas, por um acidente qualquer, o artefato explodiu no seu carro e as tentativas de incriminar uma suposta rede terrorista de oposição ao regime ficaram completamente desmoralizadas. Malgrado o receio de Figueiredo em apurar com rigor o fato e punir os responsáveis, a “abertura lenta e controlada” imaginada por Golbery, com o apoio de Geisel (foram eles que escolheram Figueiredo para ser o último presidente militar), prosseguiu e, em 1985, a presidência da República no Brasil foi novamente ocupada por um civil. Veja-se, sobre isso, as análises de STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à Nova República. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 44-55.

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recebeu os epítetos de “satânico Doutor Go”, “mago” ou “feiticeiro”,

além de outros.

O papel de conselheiro ou consultor de governo, exercido por Golbery,

muitas vezes foi exagerado pela mídia ou pelos comentaristas. É

sempre mais fácil e cômodo criar ou hipostasiar um personagem

maligno e onipotente, que manipula tudo, do que estudar os diversos

grupos em oposição e diálogo numa conjuntura, enfim, o entrechoque

de interesses que resulta numa ação muitas vezes diferente do

pretendido por qualquer grupo isoladamente. Existe ainda a carência de

fontes, ou a dificuldade de acesso a elas, inclusive hoje, passados mais

de vinte anos do final da ditadura militar no Brasil. Apesar disso, não

há dúvidas de que Golbery desempenhou um papel importante naqueles

três governos militares citados, embora tenha sido execrado e colocado

no ostracismo pelos outros dois, os governos mais “linha dura” dos

generais Costa e Silva (1967-69) e Médici (1969-74). Como assinalou

um influente jornalista brasileiro, no prefácio à reedição de textos

variados de Golbery: “Numa época em que o poder político esteve em

poucas mãos, as de Golbery estão entre as que mais poder tiveram”3.

Também um acadêmico, especialista em ciência política e relações

internacionais, lembrou com propriedade a importância das ideias de

Golbery para a chamada “abertura controlada” que ocorreu no Brasil no

início dos anos 1980, quando os militares, após uma fase transitória de

distensão ou afrouxamento – e negociação a respeito de anistia de

ambos os lados (governo militar e oposição) e a escolha de “pessoas

confiáveis” entre os civis –, entregaram novamente o poder para os

civis4. E, por fim, uma dissertação de mestrado assinalou o seguinte:

Golbery foi uma das principais personagens da história

brasileira, desde os anos 50. Unia perfeitamente as

qualidades de intelectual e homem prático – era um

intelectual orgânico da burguesia brasileira. Sua

3 GASPARI, Elio, Prefácio, in COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica e Poder. Rio de Janeiro,

Universidade, 2003, p. X. 4 MELLO, Leonel I. A. “Golbery Revisitado: da democracia tutelada à abertura controlada” in

MOISÉS e ALBUQUERQUE - Dilemas da Consolidação da Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989.

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peculiaridade: agir nas sombras. Mas o fato de atuar quase

sempre nos bastidores não diminui sua, às vezes,

dramática importância para a história do Brasil5.

A nosso ver, pode-se afirmar que toda a obra de Golbery está norteada

por duas preocupações maiores: o futuro desejável do Brasil e o papel

dos militares na sua concretização. O futuro do país é entendido como

algo complexo, decorrente de uma quase fatalidade geopolítica –

localização, tamanho e características do território (e logicamente

também das fronteiras, vistas como a epiderme do território), população

com seus valores, especialmente o nacionalismo, sua distribuição

geográfica, sua coesão, suas lideranças – aliada a um planejamento

estratégico que procure explicitar e direcionar os recursos e os esforços

do país no sentido da sua “vocação geopolítica”. Justamente aqui entra

o papel dos militares, que seriam os guardiões da integridade territorial,

os responsáveis pela resolução dos inevitáveis conflitos externos e

também pela paz interna, além dos teóricos do planejamento

estratégico.

Logicamente, existe toda uma filosofia da história por trás desse

entendimento. O mundo todo é atomizado, compartimentado em

Estados, nos quais existem as nações (mas, hierarquicamente, aqueles

primeiros precederiam e dirigiriam estas últimas), numa anarquia

internacional onde reinam as disputas, os conflitos, as guerras por

expansão ou engrandecimento. Trata-se, fundamentalmente, de uma

concepção hobbesiana segundo a qual:

Francamente não entendemos [...] que alguém possa

acreditar hoje nos velhos sonhos de uma paz mundial

estável, fundada [...] na justiça internacional, na inatingível

liberdade das nações, reconhecida e respeitada por todos, e

nesse princípio tão lógico, tão moral, mas não menos

irreal, da autodeterminação e absoluta soberania dos

povos, o qual, nem por não se poder nele confiar de forma

alguma, importa que se deixe de usá-lo e defendê-lo a todo

5 ASSUNÇÃO, Vânia N. F. O satânico Doutor Go. A ideologia bonapartista de Golbery do Couto

e Silva. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 1999.

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custo com argumento único, que é, dos fracos contra os

fortes. O ideal da ‘renúncia à guerra como instrumento da

política’, proclamado ingenuamente [...], viu-se

inteiramente ultrapassado pela realidade indiscutível dos

fatos6.

Mas o avanço da história, dos direitos democráticos e dos tratados

internacionais, além da tecnologia moderna, não teria amenizado essa

luta de todos contra todos? Golbery acredita que não. Da mesma forma

que inúmeros pensadores gregos (por exemplo, Platão ou mesmo

Aristóteles), Golbery pensa que a própria democracia – em especial

com a demagogia já conhecida pelos gregos acrescida hoje pela

expansão de uma imprensa livre – encerraria os perigos do uso da

palavra para ludibriar as massas e chegar ao poder, desvirtuando os

verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Ademais, a tecnologia

moderna na verdade coloca meios mais poderosos para conquistar ou

subjugar outros Estados. Em suas palavras:

Os progressos surpreendentes da técnica e da

industrialização acelerada rompem, pela continuidade do

ar e pela permeabilidade do éter, a escala de todas as

compartimentações espaciais em que se educara o espírito

moderno. Abre-se a era da história continental que Ratzel

predissera. Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes

e os fracos dia a dia mais fracos; as pequenas nações se

vêem, da noite para o dia, reduzidas à condição humilde de

Estados pigmeus [...] E num mundo em que as distâncias

dia a dia mínguam, em que os continentes viram ilhas ou

penínsulas e os mares tornam-se apenas lagos [...] em que

todas as barreiras físicas vão perdendo sua histórica

significação de obstáculos intransponíveis, a vida de

relação dos Estados pela interdependência [...] sobrepõe-se

à sua vida própria7.

6 COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica do Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1967,

p. 21-2. 7 Idem, p. 22-3.

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O mundo, portanto, é uma espécie de “lei da selva” na qual os povos ou

nações, organizados sob a forma civilizada de Estado, devem procurar

sobreviver e se fortalecer. Existem ameaças tanto internas (a falta de

coesão e de nacionalismo, a luta de classes, a demagogia de certas

lideranças políticas) quanto principalmente externas (os outros Estados

com os seus propósitos, vistos como absolutamente naturais e até

inevitáveis, de expansão ou engrandecimento). Nesse sentido, deve-se

elaborar um planejamento estratégico para pensar o papel do país no

mundo, o seu futuro desejável. Esse futuro – ou “vocação” – deve

alicerçar-se na geopolítica, isto é, como esclarece o autor, “na política

feita em decorrência das condições geográficas”8.

O planejamento estratégico, tendo por base uma análise geopolítica,

deve indicar os Objetivos Nacionais Permanentes, deve avaliar com

critério a conjuntura (interna e internacional), deve medir os potenciais

e as ameaças, para, enfim, definir as diretrizes governamentais. Neste

ponto, o autor envereda por uma discussão teórico-geográfica sobre a

(pretensa) antinomia entre determinismo e possibilismo9, para em

seguida concluir que, malgrado não mais haver lugar para um

monocausalismo nas ciências sociais, não há dúvidas que o Estado é

uma espécie de organismo – e, como tal, deve crescer para se

desenvolver – profundamente interdependente com o seu meio

geográfico, que oferece ou permite determinadas potencialidades, as

quais o Estado deve despertar ou desenvolver:

A antiga luta entre deterministas e possibilistas transcende

os limites restritos da geografia para o âmbito da filosofia

política. Mais uma vez a força telúrica do meio físico é o

pomo de discórdia, segundo nela se queira enxergar a

verdadeira modeladora do homem, da sociedade e do

Estado [...] ou se entenda ao contrário apenas como um

condicionamento mais ou menos elástico que sempre

8 COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica e poder, op. cit., p. 537.

9 Já demonstramos anteriormente (ver o capítulo 2 deste livro) que essa querela entre

deterministas e possibilistas, na verdade, não existiu e foi inventada por pensadores franceses (Durkheim, Vidal de La Blache e especialmente Lucien Febvre) no início do século XX. Em todo o caso, muitas vezes ela é apenas um pretexto para retomar essa antiga discussão entre a determinação das circunstâncias, inclusive o meio físico, versus o livre arbítrio humano.

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faculte, com maior ou menor largueza, o direito de livre

escolha, a natureza como um ‘reservatório de energias’

que ao homem cabe despertar [...] De qualquer forma,

porém, avaliando a conjuntura internacional à luz de

objetivos nitidamente nacionais [...] os dois mestres da

geopolítica prática – um marinheiro [Mahan] e o outro

geógrafo e estadista [Mackinder] – o que realmente

fizeram foi estratégia, não apenas estratégia militar ou

naval, mas estratégia em sua mais elevada acepção. É por

isso que na obra de ambos encontramos de fato não só

formulados, mas debatidos e defendidos os verdadeiros

conceitos estratégicos que sugeriam aos respectivos

governos: Mahan [queria] afirmar a hegemonia norte-

americana no continente ocidental e no Extremo Oriente,

visando no futuro suceder a Inglaterra na liderança do

mundo; e Mackinder [queria] conservar a supremacia

britânica, impedindo a emergência no continente de um

poder capaz de controlar o ‘coração do mundo’ [...]

impedir qualquer aliança entre a Alemanha e a Rússia,

estabelecendo entre as duas uma cintura de países-

tampões, o célebre “cordão sanitário”10

.

Assim, caberia ao estrategista pensar as diretrizes nacionais com base

numa análise das condições geográficas e da conjuntura, especialmente

a internacional. Esta é a tarefa à qual se dedica o autor. Seguindo a

trilha iniciada, ou pelo menos identificada, com o general Góis

Monteiro11

– uma figura mitológica nas forças armadas brasileiras,

ideólogo do papel político ativo dos militares, que foi a principal base

de apoio militar para a chamada revolução de 1930 (isto é, a deposição

pelas armas do governo de Washington Luis) e importante sustentáculo

da manutenção de Getúlio Vargas no presidência de 1930 até 45, assim

como da sua deposição nesta última data –, Golbery, desde que era

coronel, já vinha atuando como um intelectual militar preocupado com

os rumos da política. Ele escreveu o famoso Memorial dos Coronéis, de

10

Idem, p. 25-6. 11

GÓIS MONTEIRO. A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. Rio de Janeiro, Andersen, 1932.

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1954, assinado por 81 oficiais do exército que, por meio desse

manifesto, expressaram publicamente a sua insatisfação com a vida

política no Brasil, protestando contra determinadas medidas

legislativas, contra a inflação e a corrupção, contra o “clima de

negociatas” que envolve a vida política e contra o abandono de certos

quartéis, com escassez de soldados e de equipamentos, fatos que

colocariam em risco a segurança nacional12

. Apesar de na ocasião ter

apenas a patente de tenente-coronel (portanto, inferior à de coronel),

nesse mesmo ano ele ainda redigiu o Manifesto dos Generais, assinado

por 30 generais, que pedia a renúncia do Presidente da República do

Brasil, que novamente era Getúlio Vargas13

. Já despontava, assim, a

sua vocação como escriba e estrategista, como um intelectual dos

militares encarregado de elaborar e redigir manifestos, ideias e planos

para o país.

Por sinal, as principais preocupações de Golbery sempre foram a

Segurança Nacional, junto com os Objetivos Nacionais Permanentes,

que aparecem com destaque em todos os inúmeros textos, depois

reunidos em livros, que escreveu desde 1952 até inícios dos anos 1980.

Muito mais do que o Desenvolvimento (também um objetivo a

alcançar, mas sempre dentro da ordem ou da segurança) ou do que a

Democracia (também valorizada, embora não a “liberal” e, sim, a

“responsável”, isto é, que não coloque em risco a Segurança). Por sinal,

a democracia só é apregoada pelo autor na medida em que seria um

contrapeso ao arbítrio, ao totalitarismo que gera divisões e tensões e

produz uma espécie de panela de pressão que pode estourar a qualquer

momento. Não estaria aqui justamente a ideia na qual germinou a

“abertura lenta e controlada” da segunda metade dos anos 1970 e

primeira metade dos anos 1980 no Brasil? A concepção de democracia

do autor deixa claro que:

Na verdade, sem controle social não haveria sequer

sociedade [...] O método democrático caracteriza-se na

verdade por um jogo balanceado de sanções e de

estímulos, nunca interditando nem abafando, antes

12

COUTO E SILVA, G. Op. cit., p. 503-10. 13

Apud GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 133.

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revigorando, um pleno e salutar exercício da iniciativa

individual, tornando este tanto mais benéfico e útil para o

próprio cidadão quanto mais se enquadre nos objetivos

visados [...] Não sou, estou longe de ser, um esquerdista,

mas acho que as contradições são, até certo ponto, o ‘sal

da vida’, porque elas obrigam a buscar soluções aos

problemas [...] Eu também penso, como Huntington e

antes dele Toynbee, que as elites precisam ter desafios

pela frente para que sejam capazes de manter a

criatividade a condução dos negócios do país. Elite sem

contestação acaba perdendo inteiramente o poder criador14

.

Qual seria o papel do Brasil no mundo, de acordo com Golbery? Um

papel importante em face de sua dimensão territorial (quase metade da

América do Sul), de sua localização (distante da arena conturbada da

Eurásia e controlando todo o Atlântico sul) e de seu efetivo

populacional (cerca de metade da América do Sul). Analisando a

conjuntura internacional no pós-1945, Golbery assinala que existem

dois campos em luta, o “Ocidente democrático e cristão”, liderado

pelos Estados Unidos, e o “Oriente comunista”, capitaneado pela

Rússia ou pela União Soviética (o autor usava essas duas denominações

como sinônimas). Sua opção é claramente por um alinhamento

brasileiro ao “mundo ocidental e cristão”, como um guardião na

América do Sul e também no Atlântico Sul (o que inclui boa parte da

África), dos ideais deste mundo. Ao contrário do entendimento da

imensa maioria dos pensadores que comentou essa opção de Golbery,

acreditamos que ele a assumiu não por uma questão de princípio – isto

é, uma ferrenha ideologia anticomunista e pró-capitalismo – e, sim, por

pragmatismo, por acreditar ser esse o melhor alinhamento para os

interesses nacionais do Brasil. A seu ver, os Estados Unidos

representavam um campo virtualmente ganhador – mais eficiente em

sua estratégia militar, com uma economia mais sólida e dinâmica –,

além de geograficamente mais próximo do Brasil. Especulando um

pouco, creio não ser incorreto afirmar que Golbery – como quase toda a

14

COUTO E SILVA, G. Planejamento estratégico, 2ª edição. Brasília, Editora da UNB, 1981 p.408 e p.509.

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sua geração de militares autoritários e preocupados com a “subversão”

social, com os distúrbios ou a “anarquia” que minariam a coesão da

nação – até mesmo preferia um regime político do tipo soviético à

democracia liberal (que detestava!), pois aquele primeiro exercia um

maior controle sobre a sociedade civil15

. Mas a análise geopolítica,

junto com os interesses econômicos em comum (os investimentos

norte-americanos no Brasil), além de outros fatores – como a luta

conjunta contra o fascismo na Itália, a assunção da religiosidade cristã

(apesar das diferenças do catolicismo brasileiro frente ao

protestantismo norte-americano) em contraposição ao ateísmo

declarado do regime soviético, o treinamento de vários oficiais do

exército, inclusive Golbery, nos Estados Unidos no pós-guerra, ocasião

em que ficaram impressionados com a eficiência militar daquele país

etc. –, induziram o autor a apregoar um alinhamento com os Estados

Unidos ou com o “Ocidente”. Um alinhamento pragmático e

conjuntural, portanto, e não uma posição permanente norteada por

algum princípio inquebrantável.

Entretanto, não se tratava de um alinhamento passivo, de um liderado

que somente espera – e eventualmente acompanha – as iniciativas do

líder, e, sim, de um posicionamento ativo na defesa da América do Sul

e do Atlântico Sul, uma região do globo que estaria destinada a uma

hegemonia brasileira. Nas suas palavras:

Se a geografia atribuiu à costa brasileira e a seu

promontório nordestino um quase monopólio de domínio

do Atlântico Sul, esse monopólio é brasileiro e deve ser

exercido exclusivamente por nós, por mais que estejamos

sem tergiversações dispostos a utilizá-lo em benefício dos

15

Evidências disso são as constantes invectivas do autor contra a democracia vista como liberal. Ademais, um colega seu – e companheiro de ministério em dois governos militares, que ele recomendou para cargos nesse regime –, o coronel Jarbas Passarinho, que em 1984 chefiou a delegação brasileira nas cerimônias do funeral de Yuri Andropov, ficou encantado com o que viu na União Soviética. A ordem aparente e sem contestações (greves proibidas, sindicatos controlados, um partido único no poder, uma polícia política supostamente eficiente e bem informada sobre tudo) encantou o coronel, que chegou a afirmar – algo amplamente noticiado nos jornais na época – que “é exatamente isso que ele sempre sonhou para o Brasil”.

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nossos irmãos do norte, a quem nos ligam tantos e tão

tradicionais laços de amizade e de interesses, e em defesa

ao mesmo tempo da civilização cristã, que é a nossa,

contra o imperialismo comunista de origem exótica [...] E

se a velha Inglaterra soube reconhecer, desde cedo, o

destino norte-americano, facilitando-lhe uma política de

mãos livres no continente ocidental, à sombra protetora da

esquadra britânica [...] não parece demais que os EUA

reconheçam também aquilo que devemos defender, a todo

custo, como um direito inalienável, traçado pela própria

natureza no mapa do Atlântico Sul16

.

Por sinal, o Brasil é visto como uma potência regional ao mesmo tempo

marítima (no Atlântico Sul) e continental (na América do Sul). Nesse

contraponto existiria inclusive um dilema brasileiro: “É que entre essas

duas se situa um grande dilema brasileiro, muito mais importante

amanhã do que mesmo hoje – o do antagonismo entre as forças

continentais e as atrações marítimas”17

.

O Brasil deveria se preparar para agir – principalmente contra as

ameaças da expansão socialista – tanto na América Latina,

especialmente na América do Sul, como também na África, a começar

pelas então colônias de Portugal. Um apoio à luta maior, à guerra fria

liderada pelos Estados Unidos. Mas com cautela, sem ser subordinado

em demasia, pois não se admite qualquer ingerência estrangeira, nem

mesmo norte-americana, no Brasil e no seu entorno:

Mas, na hipótese acima figurada [expansão comunista na

América do Sul] não só não devemos contar com qualquer

apoio exterior, antes, tudo devemos fazer para que este

venha a ser inteiramente desnecessário, evidentemente

supérfluo e até mesmo injustificado, a fim de que a

ocupação estrangeira, sob pretextos quaisquer ou

quaisquer razões por muito ponderáveis que sejam, não se

torne a preço desmesurado de uma segurança que não

16

COUTO E SILVA, G. Geopolítica do Brasil, op. cit., p. 52, grifos nossos. 17

Idem, p. 61.

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tenhamos sabido manter como homens [...] E, além disso,

prepararmo-nos, na América Latina, para dar uma mão a

qualquer de nossos vizinhos na defesa de um inigualável

patrimônio comum, contra quaisquer investidas exóticas18

.

Em síntese, a defesa do Brasil é pensada por Golbery no contexto do

mundo pós-1945 até inícios dos anos 1980, qual seja, o mundo da

guerra fria e da luta do capitalismo contra o pretenso expansionismo

soviético. Ele não prestou muita atenção à Amazônia, embora na

citação anterior ela fique implícita quando se refere à “defesa de um

inigualável patrimônio comum”. Ele também não se referiu à expansão

do crime organizado e em especial do narcotráfico, praticamente

inexistente ou pouco visível até a sua morte, em 1987. Tampouco fez

qualquer menção aos problemas territoriais e diplomáticos ocasionados

pelos milhares de brasileiros que adquiriram terras nas faixas de

fronteira no território do Paraguai, os “brasiguaios”, atualmente

ameaçados por invasões de movimentos sem terra e/ou por

desapropriações no país vizinho; assim como não viu ou preferiu se

calar sobre os milhares de brasileiros que, da mesma maneira,

adquiriram terras na região de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.

Quanto à Argentina, tradicional rival ou adversário do Brasil na

América do Sul, em especial no Cone Sul, o autor também não dedica

nenhuma atenção especial. O contrário é que é verdadeiro, pois a obra

de Golbery repercutiu bastante nos geopolíticos do país vizinho19

. Ele

considerava as fronteiras no sul e sudoeste do Brasil, com a Argentina,

Uruguai e Paraguai, como já consolidadas, oferecendo poucos riscos,

dando maior atenção para as fronteiras a oeste e ao norte, prescrevendo

novas etapas de ocupação demográfica e militar do território em

18

Idem, p. 194. 19

Um general argentino não esconde a sua contrariedade quando analisa a obra de Golbery: “El autor brasileño se muestra como um pensador de imaginación y hábil expositor [...] Pero lo que es grave desde un punto de vista geopolítico es que sua análisis, especialmente cuando se refiere a la América del Sur o al África Suroccidental, es francamente tendencioso. Lo que sucede es que Golbery trata de presentar al Brasil como el núcleo central de la América del Sur, área este sobre cual debe ejercer um ‘destino manifesto’ que non choca con los intereses norteamericanos.” (GUGLIALMELLI, J. E. Geopolítica Del Cono Sur. Buenos Aires, El Cid Editor, 1979, p. 212. Os grifos são do autor).

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José William Vesentini

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direção do centro-oeste e ao norte do país (a Amazônia). Mas o maior

risco no tocante à defesa do Brasil, a seu ver, era o expansionismo

soviético com a sua busca de possíveis aliados na América do Sul.

Acreditava piamente que a geografia reservou ao Brasil um destino

grandioso, de potência regional na América do Sul e de partes da África

por via do Atlântico Sul, cabendo apenas aos brasileiros – em especial

ao governo – não deixar escapar as oportunidades criadas pela sua

geopolítica.