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Revista Filosófica de Coimbra – n.º 30 (2006)

343Projecção da filosofia escolástica portuguesa na Polónia seiscentista

pp. 343-381

PROJECÇÃO DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA PORTUGUESANA POLÓNIA SEISCENTISTA

SERHII WAKÚLENKO*

Na história da filosofia, o século XVII costuma ser considerado comoo início do período moderno, quando tomaram forma as duas grandescorrentes de Empirismo e Racionalismo que iam dominar o pensamentoeuropeu até ao advento de Kant. Para nós, é um século de grandespensadores originais, negadores de velhas tradições e criadores de novas,tais como Francisco Bacon, Galileu Galilei, Pedro Gassendi, RenatoDescartes, Tomás Hobbes, Bento de Espinosa, Nicolau de Malebranche,Isaac Newton, João Locke, Godofredo Guilherme Leibniz. Porém, estahierarquia de valores só aparece na retrospecção, reflectindo um reco-nhecimento posterior dos méritos das respectivas doutrinas. ZbigniewOgonowski, um eminente historiador da filosofia polaco, observa a esterespeito:

Mas se prestarmos maior atenção à vida intelectual daquela época, obser-varemos que estas correntes [modernas – S. W.] do pensamento filosófico nãoeram por nada predominantes nos ambientes dos filósofos profissionais, eem particular, apenas raras vezes penetravam os muros das escolas, nas quaisa filosofia era ensinada.1

Ao contrário, muitos dos inovadores, por terem estudado com mestresde cariz tradicional, integraram nas suas obras numerosos elementos dafilosofia escolar, de orientação, em geral, aristotélica. Esta filosofiaescolar, continuando a ser escolástica, já não era a mesma dos tempos da

* Universidade Nacional Pedagógica de Kharkiv (Ucrânia) e Fundação para aCiência e a Tecnologia.

1 Zbigniew Ogonowski, Filozofia szkolna w Polsce w XVII wieku, Warszawa, 1985,p. 5.

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clássica querela medieval entre nominalistas e realistas; trata-se do queveio a ser chamada a Segunda Escolástica, isto é, um aristotelismo res-taurado e modernizado depois do abalo que sofrera durante a Renascença.Embora fundida nos moldes tradicionais do discurso escolástico, com asua organização interna complicadíssima e intricadíssima, esta filosofiadava amplas provas da sua capacidade de responder aos novos desafiosdo tempo, criando obras de inegável mérito intelectual. É por isso que oilustre autor belga Joseph Maréchal pôde escrever: “A influência destesneo-escolásticos sobre os filósofos modernos anteriores a Kant não é pornada desprezível, não só no campo do direito e da política, mas no campoda metafísica especulativa”, – mencionando neste contexto nomes comoDescartes, Leibniz, Espinosa e Cristiano Wolff.2 Segundo o mesmoMaréchal, os principais centros da renovação da Escolástica foram três:Salamanca, onde este movimento foi avivado, no século XVI, graças aosesforços de Francisco de Vitória (1486-1546); Coimbra, conhecida nãosó pelos excelentes comentários à obra de Aristóteles publicados ali, mastambém pela longa presença de Francisco Suárez (1548-1617), o maisinfluente representante da Segunda Escolástica, à beira Mondego; e,finalmente, Roma com o seu famoso colégio, atracção para a juventudeacadémica de toda a Europa, onde actuaram, entre outros, tantos pro-fessores de proveniência ibérica.

Numa atitude caracteristicamente ocidental, Maréchal nomeia, foradestes centros, uns autores individuais na Alemanha e nos Países Baixos,sem se aperceber minimamente do que se passava no maior país europeude então, cujo nome oficial era Republica das Duas Nações (em polaco,Rzeczpospolita Obojga Narodów), isto é, a união do Reino Polaco com oGrão-Ducado da Lituânia, em que, de facto, estavam reunidos, além destasduas nações estruturantes, várias outras: os Ucranianos, os Bielorrussos, osLetões, os Alemães, os Estónios, os Romenos. No período da máximaexpansão, o seu território estendia-se do mar Báltico até ao mar Negro,abrangendo regiões que pertencem hoje a vários países da Europa do Leste.

Um traço importante deste estado consistia na coexistência, no seuâmbito, de três confissões cristãs: os católicos, os ortodoxos, e os pro-testantes. Destas confissões a primeira ocupava o lugar claramentepreeminente, por serem maioritariamente católicas as duas nações politica-mente dominantes, os Polacos e os Lituanos. Tanto mais fácil foi nessasterras a implantação e a divulgação da Segunda Escolástica que repre-sentava a reacção intelectual católica à perturbação dos espíritos pro-

2 Joseph Maréchal, Précis d’Histoire de la Philosophie Moderne 1: De la Renais-sance à Kant, Louvain, 1933, p. 53.

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vocada pelo pensamento renascentista e pela Reforma. Embora começadocom um retardamento de vários decénios em relação aos países ibéricos,este movimento engendrou também aqui uns avanços notáveis na áreafilosófica. É pelo carácter secundário e assimilador do processo darenovação escolástica na Republica das Duas Nações, pelo menos nosseus primeiros passos, que a questão das influências portuguesas sobre oseu decurso se põe na ordem do dia.

Naturalmente, a presença do pensamento filosófico português naPolónia é de muito mais longa data, não tendo escapado este país aascendência que exerciam em toda a Europa as Súmulas Logicais de PedroHispano (1205 [?]-1277), na expressão de João Ferreira, “o pedagogoabsoluto das universidades” 3 durante a Idade Media. O livrinho de PedroHispano – “indubitavelmente o mais importante de todos os manuaismedievais de lógica” 4 – teve de facto um destino excepcional. Segundoconsta, foi o segundo livro, após a Bíblia, que saiu dos prelos de JoãoGutenberg, sendo tão grande o número total das suas edições impressas(sem contar os manuscritos) que só se pode avaliar em cifras apro-ximativas (que atingem, entretanto, várias centenas).5 Conhecido, nahistória da escolástica, sob a alcunha de “Summulator”, Pedro Hispanopossui, se calhar, as melhores credenciais possíveis em ser elogiado naDivina Comédia de Dante Alighieri (“[…] Pedro Hispano / O qual naTerra brilha em doze tomos […]”).6

A nós, no entanto, interessa sublinhar que este livro, originariamenteconcebido como um simples compêndio auxiliar, bastante cedo passou aser objecto de vastos e numerosos comentários. Entre os autores, encon-tramos os nomes de lógicos de primeira categoria, como Roberto Kil-wardby (ca. 1215-1279), João Buridan (1300-1358), Marsílio de Inghen(1330-1396), Nicolau de Orbellis (ca. 1400-1475), Domingos de Flandres(ca. 1425-1481), João Versor (m. ca. 1485), Pedro Crockaert de Bruxelas(m. 1514), Pedro Tartareto (m. 1522), João Maior (1470-1550), etc.7 As

3 João Ferreira, “Linhas fundamentais e caracterização do pensamento filosófico dePedro Hispano”, in: Pedro Calafate (dir.), História do Pensamento Filosófico Portugu-ês 1, Lisboa, 1999, p. 299.

4 Erland Sellberg, Filosofin och nyttan I: Petrus Ramus och ramismen, Göteborg,1979, p. 51.

5 Cf. João Ferreira, op. cit., p. 300.6 Dante Alighieri. A Divina Comédia III. O Paraíso / Trad. de Armindo Rodrigues,

s. l., 1981, p. 128 (canto XII, 46-47); cf.: Lothar Thomas, Geschichte der Philosophiein Portugal: Ein Versuch 1, Lisboa, 1944, p. 66.

7 Cf. João Ferreira, “As Súmulas Logicais de Pedro Hispano e os seus comen-tadores”, in: Colectânea de Estudos, 2.ª Série, III/3 (1952), pp. 374-392.

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Súmulas atravessaram as fronteiras de todas as escolas e de todas asdoutrinas, aceites por todas como um texto fundamental. A este respeito,José Francisco Meirinhos nota:

Os comentários que subsistem abrangem a totalidade dos círculos intelectuaismais importantes do período: dominicanos e franciscanos, nominalistas erealistas, albertistas, tomistas e escotistas, filósofos e teólogos. As centenasde manuscritos, de edições impressas e de comentários são o testemunhomonumental da influência que o príncipe dos lógicos exerceu durante quasetrês séculos […]8

Também a Polónia teve o seu grande comentador das Súmulas dePedro Hispano. João de Glogóvia (1445-1507), um representante qua-trocentista da corrente tomista, professor na Universidade de Cracóvia,é o autor dum Exercitium super omnes tractatus parvorum logicaliumM. Petri Hispani que foi publicado várias vezes no início do século XV,e de mais um comentário, intitulado Quæstiones super primum et quartumtractatum Summularum logicalium Petri Hispani, que permanece inédito.

Todavia, no século XVI, o interesse pelas Súmulas repentinamente cai,o que se reflecte claramente até na repartição estatística das edições.9Segundo José Francisco Meirinhos, este facto deve-se ao “efeitodevastador das críticas renascentistas à lógica escolástica e à inversão doperfil de formação universitária”.10 Contudo, o desaparecimento não foitotal. Por exemplo, como atesta Romanas Pleckaitis, na Academia deVílnio (Vilnius), a capital actual da Lituânia, o nome de Pedro Hispanocontinuava a surgir obrigatoriamente nas aulas de filosofia – ao lado deOccam, Buridan, Alberto de Saxónia (ca. 1316-1390) e outros – duranteos séculos XVI e XVII.11 Mesmo tendo-se, sim, deixado de estudar a obraenquanto tal, a maioria das ideias nela contidas foram incorporadas nosnovos manuais escolásticos modernizados.12 Entre eles, pode-se assinalar

8 José Francisco Meirinhos, “Pedro Hispano e as Summulæ logicales”, in: PedroCalafate (dir.), História do Pensamento Filosófico Português 1, Lisboa: Caminho, 1999,p. 360.

9 Cf. Stephan Meier-Oeser, Die Spur des Zeichens. Das Zeichen und seine Funktionin der Philosophie des Mittelalters und der frühen Neuzeit, Berlin; New York, 1997,p. 173.

10 José Francisco Meirinhos, l. cit.11 Romanas Pleckaitis, “Filozofia scholastyczna i jej rozpad w dawnym Universytecie

Wilenskim”, in: Ryszard Jadczak, Józef Pawlak (eds.), Filozofia na UniwersytecieWilenskim, Torun, 1997, p. 27.

12 José Francisco Meirinhos, l. cit.

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