veredas de guimarães rosa

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A DICOTOMIA ENTRE BEM X MAL PRESENTE NA OBRA GRANDE SERTÃO: VEREDAS

DE GUIMARÃES ROSA: “SERTÃO: É DENTRO DA GENTE”1

Wanessa Rox2 Josiane Aparecida Franzó3

RESUMO: O presente artigo visa analisar a obra Grande Sertão: veredas, do escritor modernista Guimarães Rosa, sendo considerada pela crítica literária como um dos romances mais representativos da literatura brasileira do século XX por transcender o regionalismo e abordar as questões existenciais do Homem. A riqueza de dicotomias presente na narrativa suscita o questionamento, por meio do jagunço Riobaldo, da presença de Deus em contraposição ao diabo durante todo o transcorrer da história. A ambiguidade maior na obra de Guimarães Rosa está pautada e vinculada à questão que atormenta Riobaldo após ele fazer o pacto para vencer Hermógenes, se o diabo existe, se o fato de conseguir atravessar o Liso do Sussuarão, vencer a batalha deve-se a algo que não se vê, mas que possui poder maior. Diante da questão existencialista tratada pelo autor nesta obra, este artigo pretende identificar como a figura do bem versus mal está representada literalmente em toda a narrativa.

PALAVRAS-CHAVE: Dicotomia. Bem versus Mal. Existencialismo. Matéria Vertente.

Introdução

O ser humano, desde a sua percepção existencial, vive em um duelo constante em busca de compreender sua essência. Nessa perspectiva, surgem questionamentos sobre se o mal é inato ao homem ou se apresenta-se durante o seu desenvolvimento.

Em Grande Sertão: veredas, romance escrito por Guimarães Rosa, o relato dos causos presenciados pela personagem Riobaldo, já nas páginas iniciais do livro, gera o questionamento sobre o princípio ordenador do homem no mundo. A obra que será aqui abordada é relatada por um jagunço de nome Riobaldo, sendo esse o narrador-poeta de suas andanças, de suas travessias que transcendem a subjetividade e o particular da personagem, atingindo uma aventura universal.

Vale ressaltar que o relato das histórias vividas no decorrer das travessias pela personagem Riobaldo não seguem, na maioria das vezes, ordem cronológica do narrar, ultrapassando as expectativas de significação e compreensão do leitor por gerar, durante o narrar, recombinações de elementos desconhecidos em uma nova maneira de significação.

Para Kathrin Holzermayr Rosenfield (1992), por meio da nova significação que o narrar de Riobaldo cria, com uso de neologismos, anagramas, metáforas e dicotomias face à amplitude do sentido que as palavras sertão e veredas nos remetem, que se tem a “matéria vertente” da obra. Ou seja, temas como “sertão”, “demo” e “medo”, entre outros, são o cerne da “matéria vertente” na obra aqui abordada. Em última instância, o anagrama formado pelas palavras “demo” e “medo” levam à conclusão de que o demônio aparece como a consequência do medo.

No início da narrativa o protagonista Riobaldo já esboça a ambiguidade máxima que estará presente até o fim da história, sendo essa destacada pela frase “o diabo na rua no meio do

1 Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Literatura Brasileira do Eixo Temático Estudos de Teoria Literária do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). 2 Acadêmica egressa do curso de Letras Português/Inglês e suas respectivas literaturas da Faculdade Santa Amélia (SECAL). [email protected] 3 Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). [email protected]

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redemoinho...” (ROSA, 2001, p. 114), trecho esse que apresenta a questão sobre a existência ou não do mal.

Já a figura do bem é pouco questionada por acreditar-se que esse faz parte da essência humana, ou seja, é inato ao homem, conforme o narrador explica: “[...] Deus existe mesmo quando não há, mas o diabo não precisa existir para haver [...]” (ROSA, 2001, p. 76).

Entretanto, na narrativa de Riobaldo em Grande Sertão: veredas ele busca, a princípio, por meio do diálogo com o leitor/ouvinte, separar o bem do mal. Percebe-se que, diante dos causos contados pelo jagunço, e mais adiante no romance, o contraste versus contradição entre Hermógenes e Joca Ramiro, são inseparáveis, um depende do outro.

O fragmento de texto abaixo, que é relatado por Riobaldo, conta a história de Pedro Pindó e do seu filho o menino Valtei, menino ruim por natureza, ainda que seja filho de pais bons:

[...] Se a gente – conforme comprade meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem do bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sido bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtêi – nome moderno, é o que o povo daqui agora parecêia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento aluminou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gotoso de ruim de dentro fundo das espécies de sua natureza. Em qual judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar...” – uma ocasião ele pequenino me disse [...] (ROSA, 2001, p. 29).

Em suma, o fragmento acima esboça que a noção de natureza ruim não foi determinada pelo meio em que o filho de Pedro Pindó vivia, uma vez que o menino foi criado por pais com índoles boas, enquanto que a natureza do mal havia nascido com ele.

1. João Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908, na cidade de Cordisburgo. Com base na biografia escrita por Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti Bingemer (2008), sabe-se que, desde sua infância, seu gosto pela leitura, estudo de línguas por meio de tradução de revistas francesas que seus avôs recebiam, e sua curiosidade em conhecer e explorar o mundo em sua volta eram notáveis.

Mais tarde, graduou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, iniciando seu ofício na cidade de Itaguará, no município de Itaúna. Os dois anos vividos nessa cidade exerceram grande influências na produção literária de Guimarães Rosa. Inspirado pela terra, pelos costumes, pelas pessoas e pelos acontecimentos do cotidiano, ele passou a colecionar as terminologias, os ditos e falas, os quais iriam ser distribuídos pelas histórias que escreveria.

No entanto, durante seu ofício de médico uma certa angústia passou a acompanhá-lo. Ante a impossibilidade de salvar alguma vida, provocada pela sua extrema sensibilidade, no convívio entre a doença e a morte, que, algumas vezes, apesar de seus esforços, não conseguiria impedir, acabou por abandonar a medicina.

Diante disso, passa a dedicar-se à carreira diplomática prestou concurso para o Itamaraty, vindo a assumir o cargo na secretaria do Estado, sendo que após um período, foi nomeado cônsul do Brasil na embaixada da Alemanha. Os anos que passou nesse país permitiram um contato direto com a cultura alemã que tanto o seduzia: Hoffman, Heine, Schiller, Goethe, entre outros que lhe haviam fascinado desde muito cedo.

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Anos depois, após seu retorno ao Brasil, conta aos seus filhos sobre a bomba que caiu sobre o Consulado em Hamburgo, lugar esse em que trabalhava, e no qual os bombeiros haviam impedido sua entrada, pois o local ameaçava ruir a qualquer instante. Contudo, conforme seu relato, ele burlou as ordens e entrou para abrir o cofre, a fim de retirar a papelada confidencial. Ao sair, o resto da casa desabou. Diante desse fato ele confidenciou: “Deus me reservava uma missão, por isso salvou-me da morte” (YUNES; BINGEMER, 2008, p. 14). Esses acontecimentos segundo biógrafos, podem ter contribuído para emergir do seu espírito um sentimento místico, que viria a influenciar a sua literatura.

Conforme observa-se no relato de Vilminha, filha de Guimarães Rosa, e presente na biografia de Yunes e Bingemer, pode-se dizer que de fato Guimarães Rosa criou um sertão metafísico, pessoal e atemporal, galopando na imaginação pelas terras que ele mesmo criava:

Meu pai descrevia a inspiração para escrever como um dom divino, e até comparou-a a um especial estado de transe. Foi realmente extraordinário ter escrito Grande Sertão: veredas em Paris, sem jamais ter morado no sertão. Comentei achar curioso que estivesse escrevendo sobre o sertão, longe do verdadeiro sertão. Ele explicou-me apontando para a testa e o coração: “Vilminha, meu sertão é metafísico. “Ele está aqui e aqui” (2008, p. 15-16 - grifos do autor).

Consoante a isso, sabe-se que, em busca da compreensão da carga subjetiva presente na obra de Guimarães Rosa, constantemente depara-se com as questões que visam explorar os abismos da condição humana, o bem versus mal, sendo essa dicotomia fundamental para entendimento da história.

Na constituição da narrativa observa-se que há apenas um cenário, o Sertão, e, será nele que a história se desenvolverá. Por meio da análise literária é possível compará-lo ao mundo em que o homem está inserido, sendo que a traição, o medo, a coragem, a angústia, a bondade, a maldade, o amor e a fé são os problemas universais que acometem o homem.

Nessa mesma linha de pensamento, Dilma Castelo Branco Diniz (2006, p. 04) expõe em sua análise que a relação espaço/tempo pode ser comparada ao Sertão, enquanto um espaço imenso, árido, deserto, onde a comunicação é difícil, um espaço impermeável de mudanças, um tempo que não passa, que volta sempre ao ponto inicial. Portanto, algo que podemos remeter à condição humana.

Diante dessa problemática, procura-se, neste trabalho, verificar na obra Grande Sertão:

veredas como o bem e o mal estão sendo representados sob a perspectiva de Riobaldo ao

estabelecer a reconstrução de sua travessia pelo diálogo entre narrador/leitor, diante da

problemática dos abismos da condição humana, problemática essa, antiga e própria à

humanidade. De acordo com Elson Dias de Oliveira:

O jagunço Riobaldo Tatarana, narrador protagonista do romance, demonstra estar envolvido nesse dualismo ao questionar a real existência e a atuação/operância dessas forças que adentram as mesmas veredas. Ele ousa colocar em cheque a existência do diabo e a atuação de Deus: este, por se mostrar instável e indiferente em certos momentos, aquele, por não possuir realidade efetiva, por não poder ser revelado sobre o prisma ontológico (OLIVEIRA, 2014, p. 139-140).

2. Grande Sertão: veredas

Publicado no ano de 1956, Grande Sertão: veredas é uma narrativa épica composta por aproximadamente 600 páginas e que tem, como já mencionado, a história de um ex-jagunço,

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representado por Riobaldo, que narra suas memórias, andanças e aventuras pelo sertão. O narrador relata sua trajetória de vida em primeira pessoa evidenciando a linguagem oral que constitui a narrativa.

Nesse monólogo, repleto de casos isolados sobre a plebe rural, impera a linguagem ambígua, intensa e extensa. A complexidade do discurso é sustentada por elementos paradoxais. Na saga de Riobaldo há matizes de objetividade épica e subjetivismo lírico, e nessa dicotomia tudo se funde e se confunde: simplicidade e erudição; natureza e cultura; violência e paz; amor e ódio; humano e divino; concessão e censura; bem e mal; Deus e Diabo; feminino e masculino; solidão e bando (ARAUJO, 2012).

Na narrativa em questão o ex-jagunço Riobaldo expõe suas memórias, fatos vivenciados durante o período de sua infância, desde lembranças da sua mãe até sua entrada no bando de Hermógenes. Esse relato depende de um ouvinte para que a travessia literária da obra transcenda, a travessia da audição, onde há a representação do leitor pela figura do “senhor”. Por meio do diálogo com o leitor/ouvinte que Riobaldo irá penetrar profundamente em suas lembranças e revelar as questões existenciais que o atormentam. De acordo com Paulo Rónai esse “recurso fértil confere à narração estilo oral e dramaticidade direta, e permite a Riobaldo esmiuçar com toda meticulosidade suas lembranças mais secretas” (2006, p.177).

A estrutura do romance, segundo Elson Dias de Oliveira, está focada nas temáticas que de um certo modo debatem os problemas e os questionamentos da condição humana sob a ótica riobaldiana. Desse modo, o romance possui “vertentes filosóficas e religiosas que no decorrer da travessia existencial de Riobaldo, as especulações e questionamentos irão afetar no modo como os acontecimentos ocorrerão, vindo a deixá-lo diante do dualismo vida versus morte” (OLIVEIRA, 2014, p. 141).

Sendo seu discurso conflituoso, o desafio proposto para o leitor não é somente o de formar um entendimento geral, mas compreender que nessas contradições, como cada acontecimento adquire um sentido próprio; cada parada; cada conversa, cada tumulto, cada contemplação, falam por si (OLIVEIRA, 2014, p.142).

Assim, há a apresentação de um espaço impermeável de mudanças, um tempo que não passa, que volta sempre ao ponto inicial: “Sertão é isso: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é o que menos se espera; digo” (ROSA, 2001, p. 302). Em outras palavras, a narrativa fica em um constante vai e vem mostrando que as coisas não são inseparáveis, que nem bem termina um conflito, inicia-se outro, que se combate o mal em um lugar, ele surge em outro, e que o bem tenta reinar sobre o mal e vice-versa. A ambiguidade é, portanto, a luta constante do homem contra si enquanto viver.

Nessa perspectiva, a reflexão que a narrativa provoca no leitor durante o romance todo é o de despertar o homem para seu conflito interior, para algo que é inseparável dele, para algo que não há respostas, para algo subjetivo, ou seja, para o questionamento sobre a existência ou não de Deus e do diabo, sobre a existência do bem e do mal. Questionamentos esses que Riobaldo procura responder em sua reflexão final, a de que o bem e o mal estão dentro do homem, são próprio homem.

3. Dicotomia maior em Grande Sertão: veredas

Conforme Lima para estudar a subjetividade nesta obra um dos caminhos passa pelas dicotomias:

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Essas dicotomias estão quase sempre estabelecendo relação intrínseca entre dois elementos componentes marcados pelo real e pelo imaginário. Mesmo assim por ser essa obra de Guimarães Rosa multifacetada e marcada por subjetividades, essas dicotomias são formadas por componentes que, por sua vez, estabelecem às vezes outras dicotomias (LIMA, p. 279).

Segundo o dicionário Michaelis, dicotomia é uma palavra de origem grega, sendo que entre os seus sinônimos estão termos como diferenças e divergências. No entanto, o seu conceito é mais amplo e se aplica em diferentes áreas. Um de seus significados refere-se a um tipo de classificação no qual as divisões ou subdivisões contam apenas com dois termos. Para a Filosofia, assemelhase ao conceito da Psicologia, sendo dicotomia um preceito, segundo a dialética platônica, dividido em dois e geralmente de caráter contrário ou integrante. Enquanto isso, para a Teologia, parte-se do princípio, na definição do ser, que sua essência está dividida entre o corpo e a alma1.

Nos estudos literários, de acordo com Massaud Moisés (1974), com o surgimento do Barroco e o esforço de reduzir a polaridade a uma unidade: corpo e espírito congregando, de modo que a alma se converta numa entidade concreta e a carne se espiritualize, é que, surgem as características dicotômicas, sendo, algumas delas, o retorcido da sintaxe, o rebuscamento das metáforas, a tensão entre fé e a razão, o misticismo entre o apolíneo e o dionisíaco. Nessa questão mística nota-se um aspecto muito importante encontrado na obra Grande Sertão: veredas quando faz-se um paralelo do misticismo de Apolo e Dionísio, com o tema bem versus mal no que diz respeito às dicotomias.

Sabe-se que na Mitologia Apolo e Dionísio são os deuses que protegem a “Arte”, no entanto, o primeiro está vinculado à arte escultural, enquanto o segundo designa-se à música. Porém, ambos são totalmente divergentes. Apolo diz respeito ao espaço governado por “Deus da Luz”, que também reina na “bela aparência do mundo interior”, conduzido pela ausência de impulsos brutais, pela calma e pela sabedoria, ou seja, “Apolo guarda a fé inquebrantável no princípio da individuação e da tranquilidade do homem, que nele encontra a sua expressão mais sublime” (MASSAUD, 1974, p. 33).

Em contrapartida, ainda de acordo com Moisés, as emoções dionisíacas incitam a um mergulho no plano da vida, ou seja, transcender a subjetividade das emoções humanas, pressupondo a inexistência de um “para – além”, levando o indivíduo a opor-se à visão de mundo cristã que postula o desprezo do real em favor de uma vida extraterrena. Suas concepções acabam por revelar em que todo real, bom ou mau, é divinizado (MOISÉS, 2004, p. 33- 53). Assim, diante da divergência encontrada nas duas entidades que são designadas para proteger a mesma matéria, a “Arte”, percebe-se a congruência de ambos para manter a unidade da essência artística.

Desse modo, nota-se que a representação do bem e do mal na obra de Guimarães Rosa, apesar de serem totalmente divergentes uma da outra, estão congruentes no ser humano, não há como separar, sendo que, a misticidade do homem definirá para qual dos lados a questão humana irá pender, se para o bem ou para o mal:

Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, e no vento...Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemoinho... [...] Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma – mas que a gente não sabe

1 Para exemplo meramente ilustrativo, seguem-se outras classificações para o termo dicotomia: divisão de um conceito cujas as partes, geralmente, são opostas. Classificação cujas divisões possuem somente dois termos. Repartição cujos os preceitos são contrários à ética; divisão de honorários que não obedece às normas éticas. Religião. Princípio de acordo com o qual a essência do ser está dividida entre corpo e alma. Filosofia. Platão. Preceito que se divide em dois cujo caráter pode ser contrário ou integrante. Astronomia. Aparência de um astro, satélite ou planeta, quando separado ao meio, sendo que uma de suas metades está clara e a outra permanece escura. Botânica. Divisão de uma célula apical em duas, sendo que cada uma individualmente, dá origem a outras (MELHORAMENTOS, 2009).

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em que rumo está - em bem ou mal, todo o tempo reformado? (ROSA, 2001, p. 26 – 558, grifos do autor).

Assim, com base nas definições de o que seria dicotomia, segundo o dicionário, mais as afirmações de Moisés e Rosenfield, verifica-se que as dicotomias possibilitam uma dupla leitura e contribuem para uma nova contextualização, auxiliando na definição de conceitos, ou seja, a “matéria vertente” da obra.

Vale ressaltar que no romance aqui definido como objeto de estudo encontram-se várias dicotomias que se referem ao sujeito-objeto como: sertão versus veredas; Riobaldo versus Diadorim, bem versus mal, Joca Ramiro versus Hermógenes, entre outras. Para este trabalho o enfoque está voltado para as dicotomias que representam a relação entre Deus/diabo, bem/mal, sertão/veredas.

Já no início do romance tem-se o ápice da ambiguidade suprema que permeia a obra toda quando Riobaldo faz um comparativo do mal em sua “matéria vertente”, recombinando a terra com seus elementos: a mandioca mansa com a mandioca-brava, gerando a significação do surgimento do mal de modo a ultrapassar as compreensões imediatas aferidas pelo leitor/ouvinte:

[...] Mal haja-me! Sofro pena de contar não...Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei: às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E ora veja: a outra, a mandioca- brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal (ROSA, 2001, p.10).

Observa-se que essa comparação tem relação com a figura humana "terreno do corpo, onde está a raiz da alma..." (ROSA, 2001, p. 250), pois em um mesmo meio, tendo as mesmas condições de desenvolvimento, ética e moral, o indivíduo pode crescer e ser bom ou, inversamente, se tornar mal. Motivos esses que não são determinados pelo meio.

4. Bem e mal: máxima existencial

Segundo Enrico Lippolis (2008, p. 78) em Grande Sertão: veredas “tudo é misturado”, ao mesmo tempo em que Riobaldo sente desejo de vingança pela morte de Joca Ramiro, ele sente desejo por Otacília, sonha em casar-se e largar a vida de jagunço; o medo que Riobaldo sente de assumir o controle do bando para ir em busca de vingança contra Hermógenes, ao mesmo tempo sonha e deseja o poder, a chefia do bando:

O universo revela uma face ora benéfica ora maléfica e potencialmente diabólica, tornando-se complexo o jogo de espelhos sob o signo da contradição permanente: a ambiguidade e a perplexidade impregnam todos os níveis da realidade, e impedem uma comunicação duradoura entre as criaturas. O sentimento de comunhão entre o homem e o mundo é sempre acenado, contudo, nunca estavelmente realizado. Quem evita esse corajoso reconhecimento, e ignora ou nega a existência efetiva do diabo como mal interior, cai inexoravelmente nas mãos dele. E Riobaldo sabe disso: “A gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo” (LIPPOLIS, 2008, p. 78-79, grifos do autor). [...] O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim, terminam por espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança. Moço! Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra,

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vão se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece[...] Deus espalha no meio, um pingado de pimenta [...] (ROSA, 2001, p.33).

No fragmento acima estabelece-se a relação citada na fala de Lippolis das questões sobre

a existência do bem versus mal que se fundem intimamente, por meio “do contato do fio da faca com outra faca gera ação do amolar”, e, o mesmo princípio segue o contato das pedras umas com as outras. A essas ações cria-se o aprimoramento do existencial do homem, sendo necessário a presença do mal nesse processo para provocar o atrito até lapidá-lo (o homem).

Diante disso, verifica-se na obra que o tempo todo Riobaldo tenta separar o bem do mal, mas observa-se, também, que isso é impossível, pois os dois processos caminham juntos, não há como separá-los:

[...] Explico ao senhor: o diabo vige dentro da homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido[...] Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens [...] (ROSA, 2001, p. 26).

Deus, em última instância, é a garantia de equilíbrio e esperança de solução dos conflitos no mundo e na vida do homem. Conforme a concepção do narrador, cada ser humano é originariamente destinado a um papel específico no mundo, e, é portador de uma lei interior de conduta individual, sendo que a misticidade interior do homem irá determinar se sua conduta prevalecerá para o bem ou para o mal. Mas, Riobaldo desconhece esse papel, ou o descobre quando já é demasiado tarde. O homem é parte de um desígnio transcendente, e tem que descobrir e reconhecer em si mesmo a sua colocação harmônica no universo. A condição humana tratada na obra Grande Sertão: veredas faz dela um romance universal, uma vez que todos que a lerem podem identificar e reconhecer-se através da personagem Riobaldo. Cada leitor terá suas indagações sobre as questões em torno da vida, da moral, religião e qual resposta será verídica acerca dos conflitos internos que carregamos e até qual limite podemos questionar nossa condição humana:

[...] Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? [...] o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem [...] (ROSA, 2001, p. 40).

A questão envolvida acerca da vida e do viver que o fragmento acima aborda evidencia que para a verdade em torno da questão existencial não há respostas e caminhos certos, é algo particular e individual de cada ser humano. Além disso, as questões que se constroem diante dos acontecimentos e relatos que Riobaldo narra, determinam a efemeridade dos sentimentos, e, também, a posição que se toma para existir e permanecer em pé diante da vida:

Considera-se que há uma norma individual que o homem deve conscientemente seguir para tornar-se parte integrante e funcional do universo, e que é o signo do divino no homem. Entretanto, é difícil identificar os sinais e o sentido do próprio caminho individual como parte de uma totalidade, e acessar a norma interior que transcende a mutabilidade dos acontecimentos. A totalidade é visão fugaz raramente intuível, no seu desenho, para quem a vive de dentro como “parte”. À parte é negado ou parcialmente negado o todo, exceto para poucos homens iluminados (LIPPOLIS, 2008, p. 80).

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Nessa perspectiva, nota-se que o jagunço Riobaldo tem algo que o diferencia do bando de Hermógenes. Ele possui a predominância do bem em sua conduta, porém, para ele ser aceito no bando tinha que agir como outros: “[...] o que foi no eu dizer que Zé Bebelo não matava os presos; porque, se do nosso lado se matava, então não iam gostar de escutar aquilo de mim, que podia parecer forte reprovação [...]” (ROSA, 2001, p. 291).

Outra questão que aborda a existência do mal na obra rosariana é a cena do pacto que Riobaldo faz com o demônio, e a sua inquietação em saber se houve esse pacto ou se é algo imaginário. Segundo Rosenfield (1993), “a cena do pacto vincula-se a reversão do nada no tudo, da morte na vida, é o segredo que determinará ambivalência e o aspecto contraditório do Urutu Branco” (ROSENFIELD, p.20).

Diante da batalha do Tamanduá-tão haverá duas fases, a primeira de ascensão de Riobaldo, se apoderando de sua posição de chefe dos jagunços, e a segunda fase sua decadência se deixando dominar pelas perturbações da paixão e posterior morte de Diadorim, na batalha do paredão ao enfrentar Hermógenes:

[...] Que fiz o sinal da cruz, em respeito. E isso era de pactário? Era de filho do demo? Tanto que não; renego! E mesmo me alembro do que se deu, por mim: que eu estava crente, forte, que, do demo, do Cão sem açamo, quem era era ele - o Hermógenes! Mas com arrojo de Deus eu queria estar; eu não estava? [...] (ROSA, 2001, p. 569).

Outro ponto no que concerne às dicotomias está ligado à relação do sertão e as veredas. Sendo que, o real está representado pela figura do sertão na obra e o imaginário permeia as travessias internas da personagem, no diálogo entre o “Compadre Quelemém” e o pacto com o diabo:

[...] Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não se adianta dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar nos outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta [...] Travessia perigosa, mas é da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos se estendem sempre para mais longe. Ali se envelhece vento. E os brados bichos, do fundo dele (ROSA, 2001, p. 558).

No fragmento acima o autor faz relação do sertão com a vida humana, mais precisamente com a questão existencial. Na vida a efemeridade dos acontecimentos está aliada com o envelhecer. Todavia, tudo que se vive volta em forma de lembranças, pois o passado é real, fato concretizado. E, a travessia perigosa nada mais é do que libertar-se do vazio, do seco, do calor e da aridez do sentimento de culpa, do medo, do desejo, ainda que tudo faça parte do ser humano, tudo está misturado. E nas curvas da vida, do novo, do belo, do bem, tudo é efêmero.

Considerações finais

Diante das questões dicotômicas apresentadas nessa análise, observou-se que Riobaldo, durante o relato de sua travessia, tentou separar o bem do mal, mas que acaba por perceber que ambos são congruentes, pois se apresentam no homem como a polaridade em um mesmo ser.

O sertão e as veredas, desse modo, esboçam o imaginário das travessias internas e as lutas e duelos constantemente travados pelos sentimentos e questionamentos da personagem no decorrer da sua andança pelo existencialismo humano.

Diante dessa perspectiva, a narrativa do romance de Guimarães Rosa visa expor para o leitor/ouvinte o conflito interior do homem, em seu aspecto universal. Assim, considera-se, também, que por meio de questões subjetivas que se tornam aspectos paradoxal e incognoscível

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nas dimensões da condição humana sobre a existência do bem e do mal, o que se tira da narrativa em relação à dubiedade humana pode ser comparada ao pensamento de Friedrich Nietzsche que diz que: “O homem é um rio turvo” (NIETZSCHE, 2006). A reflexão que a narrativa provoca ao leitor durante o romance inteiro é de despertar o homem para seu conflito interior, para algo que é inseparável dele, para algo que não se encontra respostas, para algo subjetivo, ou seja, Deus e o diabo existem? O bem e o mal existem?

O narrador poeta de Grande Sertão: veredas termina seu relato respondendo ao questionamento que o atormentou durante toda sua travessia: o pacto com o diabo existiu? E, junto com esta resposta ele conclui que o bem e o mal fazem parte do ser humano, não há como separá-los, estão misturados. E que o diabo não existe, uma vez que é o próprio ser humano que cria seus demônios ou anjos na luta interna consigo mesmo. Além disso, a palavra “Nonada” descrita no fragmento remete a algo sem existência, ao nada: “[...] minha ideia se confirmou: o diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for. Existe é homem humano. Travessia (ROSA, 2001, p. 624).

Por fim, a narrativa do jagunço termina com o símbolo do infinito, evidenciando que a travessia de Riobaldo terminou, mas o Sertão, ou os sertões, e as travessias do Homem, a história do mundo, e a história do leitor continuam, é um ciclo infinito, uma vez que, enquanto houver o questionamento das experiências vividas e um leitor/ ouvinte para se reportar, nunca acabará.

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