vera lucia marinzeck de carvalho cabocla

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CABOCLA Romance de Jussara Psicografia deVera Lucia Marinzeck de Carvalho Outros livros psicografados pela mdium Vera Lcia Marinzeck de Carvalho:Pelo Esprito Antnio Carlos Reconciliao Cativos e Libertos Copos que Andam Filho Adotivo Reparando Erros A Manso da Pedra Torta Palco das Encarnaes Aconteceu Muitos So os Chamados O Talism Maldito Aqueles que Amam O Dirio de Luizinho (infantil)Pelo Esprito Patrcia: Violetas na Janela Vivendo no Mundo dos Espritos A Casa do Escritor O Vo da GaivotaPor Espritos diversos: Valeu a Pena! Perante a Eternidade Deficiente Mental: Por que Fui Um?Pelo Esprito Rosngela: Ns, os Jovens Narro a histria de minha vida como falo e escrevo agora, com osconhecimentos espirituais que hoje possuo, usando termos que Allan Kardec,tempo mais tarde, codificou na Doutrina Esprita, de fenmenos existentes epraticados por vrios de ns, negros, e por muitos desde longnqua data. Compalavreado da poca e caracterstico nosso, dos escravos, iria dificultar a leitura.Continuo simples, a simplicidade requer aprendizado e eu tenho tentado aprenderno decorrer do tempo. Dedicamos esta obra a todas as pessoas singelas que esto dando valor naoportunidade da reencarnao. Jussara Inverno de 1998 Dedico este trabalho, com todo o meu amor, ao Gustavo, meu filhoquerido. Vera Atualmente, h diversos livros de Histria, inclusive didticos, que estoresgatando a riqueza da cultura africana e, felizmente, desfazendo algumas idiaserrneas e at mesmo preconceituosas sobre os negros, que foram sendoalimentadas e tidas como verdadeiras durante muitos anos. importante lembrar que os africanos sofreram influncia de outrospovos, inclusive dos rabes, antes mesmo de sarem do continente africano. Comisso as crenas, tradies e religies que eles trouxeram sofreram modificaes aolongo do tempo. O editor Sumrio 1 - A fuga 2 - A cobra 3 - Recordaes 4 - Fatos e fatos 5 - Minha passagem 6 -Visitas 7 - Na enfermaria 8 - Fui escravocrata 9 - Acontecimentos no quilombo 10 - Na fazenda 11 - Meu passado com Jos 12 - Trabalho de reconciliao 1 A FUGA "Preciso conseguir! Ir em frente! Meus Deus, me d foras!" s vezes resmungava, tentando me encorajar a continuar. Estava cansada,com dores, fome e sede. Minhas pernas continuavam a trocar passos impulsionadaspela minha vontade forte, vontade dirigida pelo amor, pela necessidade de salvaraqueles que mais amava: meu filho, minha filha e meu genro. Estava com vrios ferimentos, os galhos me dilaceravam a carne. Algunsarranhes eram profundos e sangravam. Doam, mas no importava, no deveriamme incomodar. Tinha um objetivo, que era me afastar o mais possvel. s vezesolhava meus ferimentos e segurava o choro, estava muito machucada, mas noqueria me apiedar de mim mesma. Um arranho acima do meu olho direitosangrava muito, obrigando-me a fech-lo. Tentava sec-lo com uma blusa de minhafilha. Levou minutos para parar de sangrar, quando parou, suspirei aliviada, porm,continuava a doer, a arder. Os galhos fechavam a passagem, no tinha nada para abrir caminho e nopodia me dar ao luxo de escolher o melhor lugar para passar. Meu tempo eraprecioso, tinha que continuar a andar e assim fiz. Tentava abafar meus gemidos, mas de vez em quando saam dos meuslbios alguns ais. Cada passo que dava era um sacrifcio, dores latejantes nas costase os arranhes continuavam, ardiam, doam. Usava as mos para tentar afastar os galhos, mas eram estas e os braos osmais machucados. Ao entrar na floresta eu marcava um rumo e o seguia, no queria desviar econtinuava a andar... No fcil marcar rumo em mata fechada, mas eu marquei,tinha o instinto forte do povo indgena. Por vezes sentia que ia morrer, meu corpo queria parar, no agentavamais, eu respirava fundo e pedia a proteo de Deus. "Preciso ir! Preciso ir o mais longe possvel! Deus Pai, me ajude!" E continuava, parecia que, ao respirar fundo, uma energia diferente meimpulsionava, sentia como se estivesse sendo protegida, como se algum commuito carinho estivesse me ajudando. "Deus no desampara ningum, Ele me ajudar! Mas e se os que meperseguem pedirem a ajuda de Deus para me capturar? A quem Ele ajudar? -Pensava aflita. - Deus meu Pai, mas Pai deles tambm. Talvez faa como umame que com justia sabe entender uma disputa entre seus filhos e atende aqueleque lhe parece mais justo". E seguia, andava... "Uai!" Um espinho grande entrou no meu brao esquerdo. Tive que pux-lo comfora, o sangue esguichou. Amarrei as roupas que trouxe nos braos, estas estavamem tiras e j no me protegiam. "Au, au, au..." "Os ces..." Escutava o latido dos ces e nesses momentos tentava andar mais rpido.Ao escut-los pela primeira vez, senti mdo, mas tambm alvio, meu plano deracerto, eles estavam atrs de mim. "Se me pegarem, ser pior, bem pior!" E continuava. Comecei a pensar em minha vida. As lembranas vieram eisso at que me fez bem, parecia que os ferimentos doam menos e a dor nas costase pernas ficou mais amena com meu crebro cheio de recordaes. Ali estava eu, fugindo. Fugindo? No era bem isso que estava fazendo.Que me importava agora fugir do cativeiro? No temia a escravido, era livre emesprito, depois de ter vivido trinta e oito anos como escrava, no importava serliberta, tinha poucas iluses, havia sofrido muito e o entusiasmo juvenil daliberdade havia passado. Sabia, tinha a certeza de que ao ter o corpo morto meuesprito seria libertado, livre igual a um passarinho a voar pelas campinas por cimadas copas das rvores das matas. Mas necessitava fugir, tinha que andar ligeiro e me distanciar da fazendapara que meus entes queridos estivessem a salvo. Fazia mais de um dia que estava andando. Sa da fazenda no dia anterior,de madrugada. Nas primeiras horas caminhei com mais facilidade, depois commuito esforo e s estava conseguindo ainda porque queria muito, tinha quecontinuar andando. Trouxera comigo s uma cabaa de gua. Os alimentos queconseguimos guardar, meus filhos levaram. Comi algumas frutas que encontrei nocaminho, no queria parar ou desviar, no podia, estavam atrs de mim, iriam mepegar com certeza, mas precisava prolongar minha captura. Quanto maisdemorassem para me alcanar, maior a chance de meus filhos serem salvos. "E eles pensam que esto perseguindo os quatro. - Sorri com lgrimas nosolhos. - Os quatro!" Recordei os planos de fuga. "Cabocla - perguntou Dito -, voc no quer vir conosco? Tem certeza deque no quer mesmo?" "No, Dito - respondi -, estou velha, ou me sinto velha, e com o meuproblema s iria criar dificuldades e atras-los. Vo vocs, estarei orando para quetudo d certo". "Sinto deix-la, mame - falou Tomasa, minha filha, que todos chamavamcarinhosamente pelo apelido de Tobi. - Tenho receio de que o senhor Lisberto lhe castigue quando derem pornossa falta". "Ele no far isso - respondi. - J me bateu uma vez e quase me aleijou". "Odeio ele por isso, pelo que fez senhora e ao nosso irmo Manu" - disseAntnio, meu filho Tonho. "Precisamos ter cautela - disse Dito -, no bom que nos vejamconversando, podem desconfiar". Nisso Filo, outra escrava da senzala, aproximou-se. "O que vocs tanto conversam? Posso saber?" "Falvamos que, se no chover, as plantaes iro morrer" - disse Tobi. "Ah, que temos com isso? O que nos importa que eles tenham prejuzo?" -Falou Filo com desprezo. "Filo - disse Tonho -, fomos ns que plantamos e seremos ns que iremosreplantar. Depois, se faltarem alimentos, seremos os primeiros a passar fome". " verdade! - Respondeu Filo nos observando. -Pensei que estivessemfalando do interesse do senhor Lisberto por Tobi". Tobi nem respondeu. Filo era uma pessoa boa, trabalhadeira, mas muitofaladeira, tnhamos desconfiana de que ela contava o que ocorria entre ns para ocapataz. Demos por encerrada a conversa e cada um foi para o seu canto. A fazenda em que vivamos era bonita, grande, havia criaes e muitasplantaes a perder de vista. Mas a seca estava castigando aquele ano. Os senhores, donos da fazenda, estavam em viagem pela Europa. Nossosinh, Narciso, deixou um primo para cuidar de tudo. Mas quem cuidava eram osempregados., principalmente dois, o senhor Joo da Tripa, que administrava afazenda, e o senhor Lisberto, que coordenava o trabalho dos escravos. Senhor Lisberto, que passou a ser o nosso terror, era casado, tinha filhos,mas estava sempre cobiando as jovens negras. Era mau, exigente e rancoroso. Continuei a lembrar. Embora isso tivesse acontecido anos atrs, ainda doae lgrimas escorreram fartas pelo meu rosto. A imagem de meu filho Manu veioforte, lembrava de cada detalhe do seu rosto, do seu modo meigo e bondoso, doseu jeito amigo. Manu enamorou-se de uma moa, escrava da fazenda vizinha. Querendov-la, pediu vrias vezes que o deixassem ir at l e lhe foi negado. Numa tarde,num impulso apaixonado, saiu sem permisso e foi encontrar-se com ela. Nocontou a ningum. Senhor Lisberto julgou que havia fugido e procurou-o pelafazenda. Encontrou-o quando voltava, trouxe-o amarrado e no quis escutarexplicaes. Colocou-o no tronco e comeou a chicote-lo. Estava lavando roupas quando me contaram. Fui correndo para o ptioonde ficava o tronco. Gritei desesperada pedindo clemncia. Como no fuiatendida e recebi apenas risadas em resposta, avancei sobre o senhor Lisberto natentativa de que ele parasse e me escutasse. Ele ento me deu uma pancada com ocabo do chicote, que era de madeira, nas minhas costas, e ca com forte dor, semconseguir me mexer. "Fique quieta, negra! Seno morre junto com seu filho!" Ali fiquei, no cho, a dor me tirava o flego. Apavorada, fiquei olhando oterrvel e injusto castigo. As chicotadas, o barulho do chicote nas costas dele, osgemidos abafados eram como um delrio, um pesadelo horrvel que nunca maisesqueci. Naquele momento, ali, sozinha na mata, me esforando para caminhar, aslembranas eram to fortes, to ricas em detalhes que me faziam tremer deindignao. Estava soluando, respirei fundo e parecia ver meu Manu no tronco. Foram minutos que me pareceram horas. Eu ali, inerte no cho, e meufilho amarrado no tronco, sendo castigado. Senhor Lisberto o chicoteou at cansar ou talvez at sua raiva passar. Manuestava desmaiado. Ento, os outros escravos, que vieram correndo e ali ficaramvendo horrorizados o castigo, desamarraram-no e o levaram para a senzala, e comono conseguia me mexer pegaram-me e levaram-me para perto dele. Manu estava com as costas que era uma pasta sangrenta, havia perdidomuito sangue. Pedi aos que me carregavam: "Por Deus, me coloquem perto de meu filho!" Maria e Jacinta, chorando, fizeram o que pedi: me colocaram na esteira, decostas, ao lado dele. Enfaixaram-me e me deram ch de ervas para tirar a dor.Fiquei ao lado de Manu, consegui pegar sua mo. "Que a dor dele passe para mim, meu Deus. Tenha piedade de ns, quesofremos!" Jos e outros negros cuidaram de Manu, deram uma beberagem forte paraele, limparam os ferimentos. Ele voltou do desmaio, comeou a balbuciar palavrassem nexo. Meus filhos eram de estatura baixa e Manu era fraco. Temia por ele, achavaque no iria resistir. "Cabocla - falou um dos negros que cuidou dele -, o que pudemos fazerpor Manu foi feito, ele est muito machucado e perdeu muito sangue". Pela manha ele teve febre alta que no abaixou mais, seus ferimentosinfeccionaram. No me afastei do seu lado, fiquei ali deitada. J me mexia, mas noconseguia me levantar. Manu delirava, falava alto: "Vou? Sim, quero! Isso o cu? Quem voc? Branco me ajudando?" "Manu, meu filho, converse comigo!" s vezes eu implorava e ele tentava responder a algumas de minhasrogativas. No conseguia, me olhava somente e foi s uma vez que me respondeusorrindo: "No sofra por mim, mame, no vale a pena. Vou ser muito feliz!" Foi piorando. Aps trs dias de muito sofrimento, ele quietou e Jacinta meabraou. "Cabocla, Manu parou de sofrer!" No chorei, at senti um certo alvio, meu Manu seria feliz, tinha a certeza.Fiquei olhando-o. Dois amigos da senzala pegaram Manu, aproximaram-no de mimpara que pudesse beij-lo e foram enterr-lo. Sofri muito aqueles dias, tive muitas dores fsicas, mas a dor moral foi bemmaior. Sentia-me como que arrebentada por dentro, me revoltei. "Por qu? - Indagava. - Por que tudo isso? Por que sermos escravos, verentes queridos maltratados?" Ningum me respondia. Abaixavam a cabea e algumas escravas choravamcomigo. Foi aps chorar muito que a revolta passou e a vida continuou. Mas fiqueiquase invlida. Minhas costas passaram a doer muito, foi com muito esforo queconsegui me sentar e depois ficar de p. Usava uma faixa apertada e s dei algunspassos doze dias depois. Foi com dificuldade que voltei a andar. Meus dois filhos sofreram muito, tinham medo, choravam, tiveram quevoltar ao trabalho no outro dia e s nos vamos noite. Mesmo cansados,apavorados, com medo do senhor Lisberto e do castigo, todos na senzala nosajudavam noite. Durante o dia s as negras que estavam para ter filhos e as que ostiveram recentemente nos ajudavam. No voltei ao trabalho porque provaram ao senhor Lisberto que eu estavamachucada e minhas colegas de infortnio prometeram trabalhar por mim. Logo que consegui andar, voltei a lavar roupas. Minhas companheiras meajudavam, deixando o servio leve para mim. Era grata a elas, agradecia sempre. Aos poucos melhorei, mas fiquei curvada. As dores iam e vinham; algunsdias me sentia melhor, outros pior. "Ai!" Tropecei e senti uma dor forte nas pernas que me obrigou a parar unsinstantes. Passei a mo no lugar dolorido e escutei os ces. "Preciso continuar! Preciso! Por Tobi..." Minha filha Tobi estava com quase dezesseis anos, mulata bonita,despertou paixo no senhor Lisberto. Mas minha filha amava Dito e elesescondiam esse amor para que o feitor no descontasse sua raiva no pobre rapaz. "Mame - me disse Tobi, dias antes -, amo Dito e ele me ama, estougrvida. Entreguei-me a ele para que o senhor Lisberto no fosse o primeiro,porque se ele cismar me ter de qualquer jeito. Mas estou com medo de eledescobrir; ruim como , matar Dito como matou Manu". Tobi, triste, abaixou a cabea enquanto falava. Tinha o hbito de passar asmos nos cabelos lisos como os meus. "Se Dito morrer, morro junto!" - Exclamou minha menina. "No - pensei -, no vou agentar v-los ser castigados, no vou!" Tobi tinha razo. No entendia como o senhor Lisberto ainda no aestuprara. Achei que era porque a sua mulher, ciumenta, estava vigiando-o ou queele estava aguardando alguma ocasio propcia. Fiquei apreensiva ao saber de suagravidez. Resolvi ajud-los sem que eles soubessem. Os trs planejaram fugir pelo riacho. No seria fcil, teriam que subir ummorro alto, aps ir pela montanha, onde sabamos existir um quilombo. Ningumsabia onde ficava e os brancos tinham medo de ir l. Os fazendeiros que tinhamescravos fujes esperavam ajuda de soldados para invadi-lo. Mas o tempo passava ea ajuda no vinha, e tnhamos conhecimento de que l viviam muitos negros livres. Muitos escravos sonhavam em ir para l, mas os senhores e os feitoresredobraram a vigilncia, dificultando as fugas e aumentando os castigos. Quandocapturavam os fujes, eram castigados at a morte para servir de exemplo. "Eles correm perigo, se ficarem aqui certamente iro ser castigados, secapturados tambm, mas se conseguirem fugir estaro livres" - conclu. "Mame - disse Tobi -, quando o senhor Lisberto descobrir que estougrvida ir me bater at que eu diga de quem. Muitos sabem que Dito e eu nosamamos e, quando de souber, com certeza ir mat-lo. Temos que arriscar. Venhaconosco! No quero me separar da senhora". "Quando amamos, s nos ausentamos, no nos separamos. Estarei semprecom vocs, unidos pelo amor. Eu fico!" "E se ele lhe bater?" "Posso dizer a ele que no sabia. Que fugiram pelo riacho e foram para oquilombo. No se preocupem, ele no ir me bater. Vo com Deus e que sejamfelizes e livres no quilombo." Marcaram o dia, seria na madrugada do domingo, em que os negros selevantariam mais tarde. Aos domingos era feito um rodzio: folgava-se duas vezespor ms e trabalhavam-se dois. Havia servios que no podiam deixar de ser feitos,como tratar dos animais. E aos sbados os empregados da fazenda costumavambeber noite, reunindo-se para conversar, indo dormir altas horas, e a vigilncia eramenor. Arrumei escondida alguns alimentos para que eles levassem e os fiz tomarbanho no sbado e colocar roupas limpas. Como planejei, fiquei sem tomar banhoe com a roupa suja. noite, disfaradamente, me despedi deles. No pude abraarmeu filho e nem meu genro para no desconfiarem, mas discretamente abraceiTobi. " a ltima vez que eu a abrao - pensei. - Que Deus os proteja!" Segurei-me para no chorar, olhei-os como que querendo gravar suasfisionomias dentro de mim. De madrugada, como planejaram, saram. Eu, que no havia conseguidodormir, vi seus vultos sarem da senzala cuidadosamente. Dito saiu primeiro, depoisTonho e Tobi. Era costume algum acompanhar as mulheres, principalmente asjovens, para ir latrina, e por isso no desconfiariam ao ver Tonho indo com Tobi.Meu corao bateu apressado, senti a dor da separao, que chegou a ser fsica; meseparava dos meus familiares, daqueles que amava. Mas no chorei, tentei orar,roguei proteo a Deus para eles. Afastaram-se. Fiquei quieta por minutos.Acompanhei em pensamento o trajeto deles. "Agora passam pelo ptio, pelo curral, devem estar ao lado do pomar,atravessaram a pequena plantao de milho, chegaram ao riacho. Pronto, agoraque devo fazer o que planejei. Que o Senhor dos Cus me ajude!" Como no escutei barulho, tive a certeza de que eles conseguiram chegarao riacho. Porque, se tivessem sido descobertos, j teria ouvido a gritaria. Antes de o primo do nosso sinh vir tomar conta da fazenda no haviafugas, ramos bem tratados e no havia razo para sair de l. A senzala sempre teveum porto que nunca era trancado. Senhor Lisberto at que tentou tranc-lo, masno fazia diferena faz-lo ou no, porque era fcil sair de l. Feita de pau e barro,havia muitos buracos por onde passaramos com facilidade. Para torn-la seguraseria necessrio construir outra e ele no queria dispor de dinheiro para isso,preferiu punir e vigiar mais. Levantei-me com cuidado, mas Filo acordou e me olhou. Dei um sinal deque ia latrina, ela se acomodou e pareceu dormir novamente. Cautelosamente sa da senzala. Havia pegado uma pea de roupa suja decada um dos trs e a cabaa com gua. Andei com muita prudncia. Haviadecorado o caminho. Tinha que passar perto da casa-grande, que estava semprevigiada, dia e noite, para chegar ao outro lado, o da mata. "Vou despistar os empregados para facilitar a fuga deles. Quero quepensem que tomamos esse caminho, no s eu, mas os quatro!" - Resmunguei. Quase que o vigia me viu. Tremi, estava no cho, me arrastei uns cemmetros. Achando que no seria vista, me levantei e andei cuidadosamente. Tivedificuldade de passar pelo muro de pedras, no qual fiz meus primeiros ferimentos.Os joelhos sangravam, mas no me importei. J estava quase clareando quando entrei na mata. "Que beleza o nascer do sol! Como a energia do astro-rei nos fortalece!" Suspirei aliviada por ter chegado at ali, marquei o rumo e me pus a andaro mais rpido que conseguia. Sempre gostei muito das rvores, de admir-las, sentirseu frescor, amava as florestas, mas no prestei ateno em nada dessa vez, tentavapassar pelos lugares mais fceis. Mas naquele momento, cansada, j no escolhia, ape-nas andava... Meudesejo era parar, deitar e chorar, mas no podia... As pernas se moviam, ora aesquerda, ora a direita... Trocava passos... 2 A COBRA Peguei, assim que entrei na mata, um pau que me serviu de bengala, masele se quebrou no meio. "Mais esta! E agora?" - Resmunguei. Olhei ao redor, mas no vi nada que pudesse substitu-lo. "Como uma faca est me fazendo falta!" Ns, os escravos, no tnhamos acesso a nada que pudssemos usar comoarma. Ferramentas como foice e enxada eram distribudas antes do trabalho erecolhidas no fim do dia. E ai daquele que no as devolvesse! Na cozinha dasenzala - assim chamvamos uma parte esquerda, na frente, onde eram preparadasnossas refeies - havia um grande fogo e duas facas, e a responsvel por elas erauma negra que seria castigada se deixasse algum peg-las. Um empregado semprevinha conferir se elas estavam l. Nem cogitamos peg-las, no queramos a velha ebondosa Isaura no tronco. Sem minha bengala, passei a andar com mais dificuldade, mancando muito. Ouvi os ces, tremi de medo, tinha horror dos enormes cachorros dafazenda. "Acho que consegui engan-los, esto atrs de mim, mas devem terpercebido que perseguem apenas uma pessoa -pensei. - Eles devem ter imaginado,quando descobriram a fuga, que, como todos, fomos para o riacho. Mas os ces mefarejaram e eles vieram pela mata atrs de mim e esto atrs de um s". Sempre que escutava os ces tentava andar mais rpido. Quanto mais longeeles me encontrassem, melhor, mais tempo teriam os trs para se distanciar echegar ao destino: o quilombo. Deixava rastro de propsito, pedaos das roupas que levava, e tambmficaram manchas de sangue dos meus ferimentos. "Quando me pegarem iro me torturar - pensei tristemente. - Irodescontar a raiva de t-los enganado, de, em vez de quatro, pegarem s a mim, epor saberem que dificilmente iro capturar os outros. Poderei dizer que fiquei paratrs, mas no se enganam os ces, que no acharo mais os rastros. No acreditaroem nada do que eu falar. No tem importncia, irei morrer de qualquer jeito, entono falarei nada, nada!" Tonho calculou que em cinco dias acharia o quilombo, talvez um ou doisdias a mais. "Os feitores vo levar mais dois dias para chegar fazenda e ento, quandoforem procur-los pelo riacho, meus filhos estaro a salvo no quilombo. Conseguiajud-los, antes eu ser torturada do que eles. Tomara que ao me encontraremdeixem os ces me atacarem, pois eles me faro em pedaos cm minutos. Serprefervel a morte rpida tortura." Sabia que quando eles queriam torturar era com extrema maldade, extraamdentes, unhas, queimavam com ferro quente, podiam at furar os olhos. Gemi e roguei: "Meu Deus, tenha piedade de mim. Porm, salve meus filhos e no amim." A tarde estava quente, o calor mido me fazia delirar de sede. Tambmestava faminta. "Ser que estou andando em crculos? - Preocupei-me. - No faz mal, noquero ir a nenhum lugar, se estiver, eles estaro tambm. At quando agentareiandar?" Parei noite e, quando no enxerguei mais nada, me deitei no cho etirei um cochilo. Estava aflita e com medo, por isso no conseguia dormir,descansei pouco e logo nos primeiros raios de claridade me levantei e me pus aandar. Estava ansiosa para parar novamente, mas a noite demoraria a vir. Meusperseguidores pararam tambm noite, ningum se aventuraria a andar pela matano escuro. "Se eles no me pegarem esta tarde, iro faz-lo s amanh - conclu. -Meus filhos..." Tive, noite, ali na mata, um sonho: parecia que eu me desligara do corpopara ir at meus filhos. Os trs dormiam num vo entre as pedras, estavamcansados, mas aliviados, ningum os perseguia. "Ser que meu sonho verdadeiro? - Balbuciei. -Quero crer que sim". No sabia como, mas tinha a certeza de que eles estavam bem. Tentei ver a posio do sol entre as rvores e calculei que deveriam ser trsou quatro horas da tarde. Foi quando me defrontei com uma pedra grande, numlugar onde no havia muitas rvores. Vi o cu, o seu azul bonito. No resisti. "Vou parar um pouquinho! Vou descansar por alguns minutos." Deitei na pedra e me pus a olhar o cu. O barulho dos ces me alertava queeles no haviam parado e que a distncia diminua. Por uns minutos fiquei quieta, esticada sobre a pedra. Resolvi continuar,encolhi as pernas para me levantar, quando senti uma dor aguda, uma pontada notornozelo esquerdo. Olhei assustada e vi uma cobra se afastando, to assustadaquanto eu. "A cobra me picou! Uma cascavel!" Ela certamente estava perto de mim e se assustou com o meu movimentobrusco, deve ter se sentido ameaada e me picou. "Meu Deus! - Resmunguei. - Irei com certeza morrer. E agora, levanto econtinuo a andar ou fico aqui? - Cheguei a sorrir. - Morrer? Vou morrer dequalquer jeito e se for por causa do veneno da cobra ser o melhor que pode meacontecer". Sentia um cansao to grande que s a idia de me levantar e andar me deuenjo. Resolvi ficar. Acomodei-me novamente, esticando meu corpo cansado. Sabia lidar com picadas de cobras, j vira companheiros morrerem porterem sido picados. Tentava aliviar as vtimas desse bicho peonhento, mas rarasvezes conseguia salv-las se a cobra era mesmo venenosa. Aprendi com os negros da senzala a fazer remdios, chs, como tambm acolocar ervas no ferimento. E ali, longe de tudo, nada podia fazer por mim, nemgua tinha para beber. Ao lembrar-me da gua, desejei imensamente saborear esselquido delicioso. "gua, gua - falei. - Que gostoso poder tom-la. gua bno! Quegrande bno! to bom sabore-la!" Ergui a cabea e olhei o ferimento, l estavao sinal dos dois dentes da cobra. Fiquei quieta ali na pedra, no tinha nimo nempara me mexer. E as lembranas vieram... A nica pessoa que me chamava de Jussara era minha me adotiva, a meigae bondosa Jacinta. "Jussara - dizia ela -, foi seu pai que deu esse nome a voc. Ele era livre,branco, empregado da fazenda. Quando o sinh Silva comprou este lugar, ele veiojunto como empregado. Aqui ele se apaixonou por sua me, a ndia Japira. Foi umamor lindo e voc nasceu. Quando sua me morreu, seu pai perdeu a razo, pareciaque ia enlouquecer de dor. Acabou pedindo ao sinh para fazer um servioperigoso e morreu assassinado. Acho que morreu feliz para ir se encontrar com suame. Mas, antes de ir para o tal servio, me pediu para que tomasse conta de voc.Jussara, voc no escrava! cabocla, filha de branco e ndio". "No sou escrava, mas vivo como uma!" - Falava sempre. Jacinta tentava me confortar: "Jussara, o sinh Silva sabia disso. Quando seu pai morreu servindo-o, eleat me falou: 'Negra Jacinta, crie a menina do Limo, ela livre, mas o que ir fazercom essa liberdade sendo to pequena? Ela viver aqui com voc, na senzala, edepois veremos'." Quando encarnada, nunca soube o nome do meu pai, s seu apelido:Limo. Ele era chamado assim porque, como me contaram, um dia ele confundiularanja com limo. Foi alvo de risadas e brincadeiras, e ficou o apelido. Ele sechamava Joo. Tinha oito anos quando o sinh Silva desencarnou e seu filho, sinhFloriano, como herdeiro, ficou dono de tudo. Fui criada como escrava e era tratada como uma. Estava com doze anosquando um dia, estando trabalhando na colheita de milho, o sinh Florianoaproximou-se de mim, verificando o trabalho. Aproveitando a oportunidade,mesmo com medo, lhe falei: "Sinh, por favor, posso lhe dizer algo?" "Diga, negra!" - Respondeu ele me olhando. " que no sou negra, sou filha de um branco, ex-* empregado da fazendado seu pai, com uma ndia." "Nota-se pelos cabelos lisos que filha de ndia. O que voc quer,Cabocla?" - Indagou o sinh. "Ser livre!"- Respondi baixinho. "Livre? Para qu? Aqui voc come, tem lugar para dormir. Voc pensa queirei sustent-la vagabundeando? Se no quiser trabalhar, no ir comer. O que farcom sua liberdade? Vamos, diga!" - Falou meu sinh, j irritado. "Bem, no sei..." - Respondi com medo. "Ento fique como est e no me encha!" "No justo! Vivo como escrava sem ser uma!" -Falei. "No me faa perder a pacincia. O que sabe voc de justia? Acha injustoeu tratar voc como escrava sem ser? Poderamos ter deixado voc morrer de fomee no o fizemos." "Mas que no sou negra e nem escrava!" - Repeti. "Voc j disse isso e eu lhe digo, se tratada com uma, escrava! Chega,menina! Tenho o que fazer. Saia da minha frente!" - Gritou o sinh. Como no sa, um feitor que o acompanhava me deu uma bofetada norosto e eu ca, ele ia me chutar quando o sinh ordenou: "Pare! S essa bofetada est bom. E voc, menina, decida, ou fique aquicomo escrava ou v embora se quiser a liberdade." Lgrimas caram pelas minhas faces e o sangue escorreu do lado esquerdode minha boca. Limpei-a e continuei meu trabalho. Naquela noite chorei muito nos braos de Jacinta. "Cabocla - disse Maria bondosamente -, no chore, seu destino serescrava sem ter nascido uma. Voc pode ir embora. Mas como ir? Para onde? Osperigos so muitos para uma menina que logo ficar mocinha. O que fazer loira dafazenda? Aqui voc tem a gente, tem Jacinta, que a ama como me, conhece todose conhecida. Tem lugar para dormir e alimentos. O que far se sair daqui? Ir paraa cidade? Eu no conheo a cidade, nem sei como , aqui ningum sabe ao certo,s temos as informaes de Onofre, que veio de uma. Diz ele que l estranho,muitas casas, uma ao lado da outra, muita gente branca e escravos. No deve serbom para uma menina sozinha. melhor que fique aqui". "Como escrava sem ser?" - Questionei. Maria me abraou e disse carinhosamente: "Somos o que podemos ser. Se no escrava e no consegue viver deoutro modo, de que lhe adianta ser livre? No fique triste, Cabocla, aceite o que avida lhe oferece." "Voc, Maria, sempre foi, conformada" - disse Filo, que estavaescutando. "Tento ser paciente, Filo - respondeu Maria. - De que adianta viverreclamando, querendo ser o que no somos? Aprendo muito nessa senzala, comessa vida". "Voc, Maria, sempre fala esquisito. Aprende! O que pode aprender comoescrava? A carpir, lavar roupas, ter filhos?" - Indagou Filo. " verdade, Maria - falou Jacinta. - Voc fala muitas coisas esquisitas queno entendo. to boa e conformada". "No falo nada de estranho - replicou Maria- que sonho sempre..." "Sonhos esses bem estranhos" - falou Filo. "Tambm os acho estranhos - repetiu Maria. - Sonho sempre que j fuiuma sinh, passei a vida toda sem fazer nada, nem de bom, nem de mau, umapreguia s. Esqueci de trabalhar, ser til, e sofri por isso. Agora, como negra eescrava, trabalho, ajudo os outros, os doentes, benzo, fao chs que so remdiosque curam, sinto-me til e no temo a morte, estou tranqila. Aprendo sim, Filo,mesmo forada, trabalho muito". "Se seus sonhos so verdadeiros, voc j foi uma sinh. E agora prefere serescrava. Quer continuar sendo uma?" -Perguntou Filo, confusa. "No sei explicar direito - respondeu Maria. - Certamente que eu queria seruma sinh, ter roupas bonitas, me alimentar bem, ter um quarto s para mim. Massinto que j fui uma e que tudo passou, que todo o conforto que tive no me serviude nada. A morte para todos e quando ela vem modifica tudo. Morre pobre,morre rico. Nosso ex-sinh no morreu? Meu pai escravo no morreu? Tudo o quenasce morre, temos uma alma e vamos com certeza continuar vivendo. E acho queaquele que preguioso, nada fez de til, sente-se vazio, triste e aborrecido, logo,infeliz. J aquele que foi til sendo sinh ou escravo est contente, essecontentamento vem l do ntimo, da alma. o que sinto nos meus sonhos, eu,como sinh, tinha tudo, mas era infeliz, vazia, e agora que nada tenho estousatisfeita comigo, tranqila, e sei que serei feliz". "No entendo seus sonhos - disse Jacinta. - Ou ser que os entendo? Estoume lembrando agora de Nau, um negro que viveu aqui quando eu era menina. Eleveio de longe, de um lugar com nome esquisito. O feitor dizia que ele era dafrica. Nau falava de um modo estranho, s vezes no conseguia entend-lo. Masele dizia que sua terra era muito linda, tinha animais grandes e bonitos. Diziasempre que, quando a gente morre, deixa na terra o corpo apodrecer e vai para umlugar por algum tempo, e depois volta e nasce em outro corpo1. Por isso se podeser sinh, morrer e nascer escravo e vice-versa. Riam dele, eu o achava engraado,mas nunca me esqueci de suas palavras. Talvez esse negro estivesse com a razo, eseus sonhos, Maria, no sejam to estranhos. Se Deus bom e misericordioso, porque nos fez escravos? Ser que Ele cria uns para servir a outros? Por que essadiferena? Se Ele no justo, no Deus e a Ele no existe! Se existe e justo, temque haver um motivo para essas diferenas. Agora, se acreditar que o esprito, ns,nascemos muitas vezes, a escravido pode ser uma ocasio de aprendizado, de fazerpreguiosos trabalharem". "Vocs falam muito e no acham soluo para o meu problema" -resmunguei, sentida. "Minha filha, melhor voc ficar aqui conosco - falou Jacinta meabraando. -No quero me separar de voc! Maria tem razo. De que adianta serlivre se no tem para onde ir?" "Cabocla, sabe que me revolto por ser negra e escrava, queria ter nascidofilha dos sinhs, mas tambm no vejo outra soluo para seu caso, deve ficar aquiconosco na senzala e como escrava" - opinou Filo. Chorei muito naquele dia, resmungando: "Se no tivesse ficado rf no estaria sendo tratada como escrava. Meu paicertamente teria cuidado de mim." O tempo passou e acabei por aceitar a situao. "Minha infncia! -- Balbuciei baixinho. - No posso reclamar de minhainfncia!" I- Muitos negros vindos da frica tinham conhecimentos sobre vrios assuntos,principalmente os africanos pertencentes a algumas tribos. Nau foi um rei em sua aldeia, era umesprito que em existncias anteriores teve a compreenso da reencarnao e nessa, com o sofrimentoque a escravido lhe- imps, recordou. (Nota da Autora Espiritual) Falava devagar, estava ofegante, respirava com dificuldade e fazendobarulho, suava e ansiava por gua, minha boca estava seca. Levantei a cabea, sentitontura e escutei os ces mais perto. As lembranas de minha infncia, a imagem de cenas vividas, vieramfortes. Brincava com a garotada na senzala, era amiga de todos. Jacinta cortavameus cabelos bem curtos para evitar falatrio, porque os tinha diferentes dosoutros. Gostava muito de ir ao pomar, subir nas rvores, colher frutos. Fazamosarmadilhas para passarinhos, mas eu acabava soltando-os, no gostava de veranimais presos. Brincvamos que ramos os sinhs e eu gostava de imitar o padre que virasomente duas vezes, que fora benzer a fazenda. Pegava um galho em que deixavaumas folhas na ponta e o balanava, falando enrolado. Ramos, achando graa. Ns, as crianas, ramos bem alimentadas e vestidas, andvamos soltaspela fazenda. Os adultos tambm tinham lazer, s que estavam proibidos derealizar os cultos africanos e eles foram esquecidos. Desde pequena gostava de um negro, Jos, que era casado e tinha filhos.Quando menina, queria que ele fosse meu pai; adolescente, o quis para marido. "Jos, Jos... - Balbuciei. - Meu primeiro e nico amor..." Mas Jos era srio,trabalhador e bondoso, estava sempre acalmando osnegros, ajudando todos. Um dia, um de seus filhos foi ferido com a enxada.Cuidaram dele na senzala, mas o ferimento infeccionou e ele ficou mal. Jos pediuajuda ao nosso sinh, este nem respondeu e o mocinho desencarnou. Jos choroumuito, ficou quieto e tristonho por dias, escutou muitas ironias, como: "Voc, Jos, sempre nos pediu pacincia, sempre fez tudo para os sinhs eagora, quando precisou deles, nada fizeram por voc, nem foram buscar obenzedor na outra fazenda e nern chamaram o mdico da cidade" -- falou umjovem amigo do mocinho morto. "Chamar mdico para negro, s na sua cabea" - retrucou uma negra. "Mas para Jos bem que poderia - opinou uma escrava. - Ele sempre foiexemplar". "Mas negro e escravo!" - Disse um negro maldosamente. Jos no respondia a nenhum comentrio. Sua esposa -Morou muito pelofilho morto. Eles tinham oito filhos. Ela, desesperada, disse: "Eu no terei mais filhos, no vou dar mais escravos para servir os sinhs,que nem cuidam de ns." Tive vontade de consolar Jos, mas no o fiz, evitava falar com ele. E aesposa dele cumpriu a promessa, passou a dormir com as mulheres semcompanheiros e no teve mais filhos. Algum tempo depois da morte do filho de Jos, reunidos aps um dia detrabalho, ele disse: "Sofri, sofro muito com a morte do meu filho. Acredito em Deus e O achojusto. Estive pensando e cheguei concluso de que a morte, para os bons, no castigo, , deve ser, um acontecimento bom. Mas a morte no deve ser voluntria,no devemos acabar com a nossa vida, cada um tem um tempo certo para ficar nocorpo fsico. Devemos nos conformar com a vida que temos, porque no Deusquem escolhe nossa sina, a gente que faz por merecer t-la de um modo ou deoutro. Meu filho morreu jovem, sentiu muitas dores, mas no momento da morteestava tranqilo e agora deve estar num bom lugar." "Ora, Jos, o que nos importa morrer e ir para um bom lugar! - Exclamouuma negra com ironia. - Ir para o cu dos brancos? Se formos para l,continuaremos servindo!" Jos a olhou por um instante e respondeu tranqilo: "Minha cara, Deus, ao criar tudo, a Terra, o sol, as estrelas, no estavaservindo? Tudo isso no foi um trabalho d'Ele? Por que ns no podemos servir?Tenho a impresso de que h apenas um cu para onde vo todos os homens bons,sejam eles brancos ou negros. E que este cu temporrio, porque aqui, na Terra,que acertamos nossos erros. No sei por que, mas acredito nisso." "Que ningum da casa-grande escute isso - disse Jacinta. - Os sinhs noquerem que se fale sobre isso. Eles no acreditam. Talvez porque no tolerempensar que j podem ter sido negros e escravos ou que podero vir a ser". ,"Mas, se pensarmos que o esprito tem muitas existncias fsicas emcorpos diferentes, a gente cr que Deus justo e bondoso" - falou Maria. Escutei a conversa atenta, sem coragem de opinar. Achava que, se Deusera justo, Ele no ia fazer diferena entre seus filhos, e se estas existiam era porquens mesmos as fizemos. Continuei a amar Jos, nunca fiquei sabendo se ele soube ou no dessemeu amor, nunca me deu ateno e nem conversou comigo a ss. E ele continuousempre sendo o amigo de todos de todas as horas. Caolho interessou-se por mim. Chamava-se Jernimo, mas, como tinha osolhos tortos, todos o chamavam por esse apelido. Era um rapaz simptico.Acabamos por namorar e at gostei dele, passamos a viver como marido e mulher. Tivemos trs filhos, deixei os cabelos crescerem e nem falava mais que noera escrava. Como no ser, se era casada com um e os filhos eram mulatos eescravos? Um dia Caolho, indo atrs de uma vaca, caiu do cavalo e fraturou a perna,o fmur, na altura dos quadris. Ficou imobilizado, cuidamos dele, mas a pernagangrenou e, como no tnhamos recursos para cort-la, a doena se espalhourapidamente pelo corpo. Caolho sofreu muito. Fui afastada do trabalho para cuidardele e o fiz com toda dedicao e carinho. "Cabocla - disse ele -, devo partir, vi hoje ao meu lado minha me e meuamigo Tiu, que esto mortos h tempo. Eles me disseram para ter calma que logomeu sofrimento ir acabar e que iro me levar para um lugar onde no terei maisdores. Confio e no tenho medo. Cuide dos nossos filhos, olhe sempre por eles". Fiz que sim com a cabea e comecei a chorar. Ele comeou a delirar,desencarnou tranqilo e suas ltimas palavras foram: "Me, eu vou!" No quis mais me unir a ningum, aprendi ento a cuidar dos doentes epassei a faz-lo com carinho. Voltei a me lembrar de Jos, sempre calmo, tranqilo, conselheiro dasenzala. J estava velho e eu o respeitava e admirava. Agora, ali deitada naquelapedra, fraca, compreendi que meu amor por Jos sempre foi uma jia que guardeino fundo do meu ser. "A cobra! Seu veneno est me matando! Bendita ou maldita? Nem umacoisa nem outra, ela s um animal que, se sentindo ameaado, me picou. Talvezseja melhor morrer pelo seu veneno que nas mos dos feitores. Deus misericordioso, teve, tem misericrdia de mim. A cobra..." 3 RECORDAES "Por que ser que recordo tanto? - Indaguei-me. - Ser porque estou fraca?Ser o veneno da cobra? No, j o fazia antes de ela me picar. Essas lembranas meso agradveis, no me sinto s..." S que as recordaes no vinham em seqncia; me lembrava de fatosocorridos anos atrs e outros que tinham acontecido havia apenas alguns dias. Ascenas iam e vinham na minha memria e me deixei envolver, pois me pareciam toreais que era como se eu as estivesse vivendo novamente. O sinh Floriano era mal-humorado e resmungo, mas boa pessoa. Comoj mencionei, naquele tempo no era ruim nossa vida, a dos escravos da fazenda.ramos bem alimentados, vestidos, tnhamos folgas e festas. Era raro havercastigos, a senzala era grande, espaosa. No havia abusos sexuais. Mas eles, muitocatlicos, proibiram nossos cultos e, embora ns no entendssemos a religiodeles, tnhamos que dizer que tambm ramos catlicos. "Ser que esse Jesus morreu por ns tambm, os negros?" Negrito, um jovem escravo, estava sempre indagando e ningum sabiaresponder. A sinh, a esposa de sinh Floriano, estava nos ensinando sua religio.Ela, quando tinha vontade, nos reunia aos domingos tarde e nos falava de suacrena ,nos ensinava a orar, mas era difcil decorar aquelas oraes grandes que noentendamos. Rezvamos pela metade, s vezes modificando a prece. Sorri aorecordar. Uma vez, uma amiga minha rezou: "Pssaro de Maria, cheio de graa..." A sinh ficou brava e ela perguntou: "Ave no pssaro?" A sinh no respondeu e ordenou: " ave e acabou..." Acho que nem ela sabia que ave era no sentido de salve. Um dia Negrito perguntou sinh aquilo que tanto o incomodava: "Jesus ou no o salvador dos negros?" "No - respondeu a sinh - , acho que no. Creio que no havia negrosnaquele tempo". "Um dos reis magos no era negro? Ouvi o padre falar isso quando eleesteve aqui no Natal" - disse Maria. "Bem, no sei - respondeu a sinh. - Pode ser que sim, pode ser que no.No quero que pergunte mais nada, vamos aprender orar". No perguntamos mais nada. Jacinta comentou aps a aula: "Esse Jesus estranho, poderoso e foi morto na cruz..." "Para nos dar exemplo - disse Maria. - Ele foi humilde e no estranho". "Jesus nasceu para nos ensinar, certamente incomodou a muitos com Suaspalavras e por isso morreu - disse Jos, concentrado. - Acho que no foi Sua mortea passagem mais importante de Sua existncia. Penso que foi Sua vida, o que fez, oque falou, o que ensinou. Muitos focalizam Sua crucificao como o pontoprincipal, esquecendo-se de Seus ensinamentos. A sinh at chora ao contar Suasdores, mas diz Seus ensinamentos sem emoo. Concordo, Jesus sofreu, mas novemos tantos aqui sofrerem tambm? No sabemos de muitos negros que morremnos troncos, em torturas? Claro que no so como Jesus, mas so filhos de Deustambm. O importante o que Ele ensinava, Sua orientao, e devemos seguir Seuexemplo. Gostaria de saber mais, tudo sobre Jesus. Que homem excepcional foiEle!" Concordei com Jos, embora tenha ficado quieta. Achei que a maior lioque Jesus nos deixou foi que Ele amou muito mais do que foi amado. Foram muitoboas aquelas aulas, aprendi a amar Jesus e Maria, Sua me. O sinh Floriano desencarnou e a sinh foi morar com a filha longe dafazenda, e seu filho, sinh Narciso, veio com a esposa tomar conta de tudo. Esse novo sinh era bom, s que no ligava para a fazenda e eram osempregados que cuidavam de tudo. O sinh Narciso e a sinh Frano tinham uma histria interessante. Osinhozinho Narciso, na idade de casar, no o fez. A famlia havia tentado arrumarcasamento para ele, porm o sinhozinho recusou-se a aceitar. Comentavam emcochichos que ele no gostava de mulheres. Os pais sonhavam em v-lo casado ecom filhos. E, numa viagem que ele fez Frana, voltou casado. Ele deixou aesposa no Rio de Janeiro e veio fazenda dar a notcia aos pais. Contou & queela, a esposa, era de famlia nobre, mas arruinada, e que estavam muitoapaixonados. Os sinhs foram corte conhecer a nora. Parece que a aceitaram e ocasal ficou morando no Rio de Janeiro. Com a morte do sinh Floriano e a sinhindo embora da fazenda, eles tiveram que ir morar nela. E era Filomeno, um velhoempregado, quem cuidava de tudo. A francesa, a nova sinh, despertou curiosidade em ns. Era bonita, lourade olhos claros, alegre e risonha, os dois pareciam se dar bem. No tinham filhos.Achvamo-la estranha, no tinha nenhuma escrava para ajud-la a se vestir, a sebanhar, e as escravas que serviam a casa-grande comentavam que ela tinha algumasatitudes diferentes. As lavadeiras afirmavam que ela no tinha menstruao. Nosprimeiros meses at pensamos que estava grvida. Depois conclumos que a sinhdeveria ter alguma doena, mas ela parecia saudvel. Era muito simptica, tratavatodos bem, passeava a p ou a cavalo pela fazenda e levava sempre algumasescravas com ela. Ria e brincava muito. Ela se chamava Georgette, mas passamos acham-la de Frano; no comeo escondido, depois ela veio a saber, gostou doapelido e todos ns passamos a cham-la assim, com a sua aprovao. Foi um perodo feliz, em que ouvamos sempre sua risada alegre eescandalosa. Mas eles resolveram ir para a Frana numa longa viagem, ficando emseu lugar um primo do sinh Narciso, o cruel sinh Honorato, que tinha idiasdiferentes em relao escravido. Sua primeira providncia foi substituir os empregados da fazenda poroutros que vieram com ele. Despediu Filomeno com a desculpa de que ele estavavelho e levou-o junto com a esposa para a cidade. Ficamos sem proteo, notnhamos a quem nos queixar. Diminuiu nossa alimentao, passou a exigir maistrabalho e comearam os castigos. Muitos velhos escravos voltaram a trabalhar.Tnhamos saudade do tempo antigo. Foi um perodo difcil, em que muitos de nspassaram a desejar a liberdade e a querer fugir. Ficamos sabendo que um quilombo foi formado no alto da montanha eque muitos escravos da regio tinham ido para l. Na nossa fazenda houve uma fuga de onze escravos, que no foramcapturados. A o sinh Honorato adquiriu ces ferozes, contratou mais empregadose a vigilncia aumentou. E foi logo aps a fuga desses escravos que meu filho saiusem permisso e foi castigado para servir de exemplo. No gostei do empregado Lisberto desde a primeira vez que o vi, nenhumdos escravos gostou dele. Fiquei apreensiva quando ele comeou a se interessar porTobi. Minha filha era muito bonita, mulata com os olhos castanho-claros, comtraos do av branco e corpo bonito. Lisberto no havia feito Tobi de amante porque a esposa do sinhHonorato no gostava, no queria abusos sexuais, mas ela viajava muito e, comoestavam ocorrendo muitos abusos, tudo indicava que poderia acontecer de tudonaquela fazenda e que nem a esposa do Lisberto, que era jovem e bonita, salvariaTobi das taras desse feitor desumano. Torcamos para que o casal voltasse logo, mas eles estavam sempre dandonotcias adiando o regresso. Comeamos a perceber que o sinh Honorato estava roubando o nossosinh, depois tivemos a certeza. Mas no tnhamos como avisar nosso sinhozinhoNarciso, ningum sabia escrever na senzala. Tnhamos que ficar quietos, tentandonos adaptar nova administrao. Parei de recordar por instantes, olhei o cu. Como olhar o infinito nosacalma. Estava me sentindo muito mal, no tinha foras nem para me mexer.Conclu: "Logo irei morrer!" Todos ns sabemos que iremos morrer, que o corpo fsico que usamos,ns, espritos, para nos manifestar no mundo fsico, ir um dia parar suas funesbiolgicas, mas quando esperamos pela morte com tempo determinado outracoisa. Conhecendo os efeitos do veneno, sabia que logo iria falecer. Fiqueiarrepiada. "Calma, Jussara - resmunguei para mim mesma. -Todos morrem..." Por que ser que a morte nos causa pnico? Ser que por no saber o quese passar conosco? Meu instinto de preservao veio forte. "No quero morrer!" - Exclamei. "Mas ser que nesse caso querer poder?" - Pensei. "No!" - Cheguei a balbuciar. No tinha poder sobre a vida ou a morte. E a morte uma continuao davida. "Tudo passageiro!" Realmente, a vida uma s, mudamos a forma de viv-la. Mas naquelemomento, ali, sozinha, esperando essa mudana, tive perodos que foram instantesde medo e pavor, mas depois de paz e tranqilidade, em que senti que algum meamparava, me transmitia profundo e puro amor. Senti que deveria me ligar a essesentimento que me acalmava, mas vacilava e esperava... E esperar sempre angustioso. Aguardar a morte me foi estranho. No estava esperando por algoqualquer, ou por uma pessoa, mas pelo desconhecido. O que viria a ser essamudana? Vieram as indagaes. Ser que iria acabar? Desaparecer para sempre? "No - conclu. - Isso no! Sinto meu esprito, sinto-o dentro desse corpocansado. A vida continua!" Iria para o inferno? Cu? No fui to m para ir para o inferno e nem toboa para merecer o cu. Que vida iria ter? Iria me encontrar com aqueles que ameie que j morreram? Nesse momento os erros nos afligem e desejamos no t-los cometido. Eos acertos nos do tranqilidade. "Poderia ter sido melhor, ter feito mais o bem, ajudando mais os outros." Quase sempre desejamos isso, felizes os que aproveitam a oportunidade,porque o tempo passa e no volta mais. E a morte do corpo fsico chega, levando-nos a desencarnar, a viver de outra forma, que ser de acordo com nossas aes. "O que fiz de errado? - Indaguei. - No sei... Ser que amar um homemque tem uma companheira foi um erro?" Envolvi-me novamente nas recordaes... Nunca aconteceu nada entre mim e Jos. Foi somente eu a am-lo. Ele eramuitos anos mais velho que eu. Quando pequena, Jos j era adulto e eu o olhavaadmirada. Quando ele se juntou com Zefa, fiquei triste, tinha quase nove anos echorei escondida. Acompanhei sua vida, sabendo tudo o que acontecia com ele.Era discreta, tinha horror de que descobrissem meu amor. Acho que eledesconfiou, porque um dia estava sozinho encostado na cerca junto senzala, meviu olhando para ele, por um instante pensei que fosse me falar algo, mas afastou-serpido e desde aquele dia me evitou. "No, meu amor por ele no podia, no pode ser errado." No houve nenhuma ao errada decorrente desse sentimento. No fizningum sofrer por isso. Foi algo belo, que por muitas vezes me incentivou a viver,alimentou minha iluso, me deu esperanas. Foi um amor lindo! Os anos se passaram e eu fiquei mocinha. Jacinta sempre me dizia: "Jussara, voc est na idade de casar. Tem alguns pretendentes, escolha umpara ser seu marido." "Casar? Como casar?" - Indagava rindo. "Aqueles que seajuntam aqui na senzala como o casar dos brancos. So companheiros e isso que importante" - respondeu Jacinta pacientemente. "De fato - disse nossa amiga Maria -, todos os casais deveriam sercompanheiros, amigos que se ajudam enquanto esto caminhando juntos. O amorpaixo deve ser substitudo pelo amor desinteressado, sem apego. Quando um casalse une s por fatos externos no h nada nessa unio que dure ou permanea. nontimo que est o verdadeiro amor carinho, que no passa com o tempo". Achei que Jacinta tinha razo. Pensei bastante. Amava e no eracorrespondida, ele no seria meu companheiro, estava ligado a outra. Resolviescolher dentre os jovens solteiros um companheiro. "Senzala, meu lar! A moradia que tive durante esta vida!" A senzala era a casa de todos os escravos da fazenda. Uma grande moradiaonde havia muitas pessoas que pensavam diferente. s vezes l era agradvel, haviademonstrao de afeto, principalmente entre pais e filhos. Tambm foi bero degrande amizades, lugar em que havia sempre ocasio de fazer o bem, ajudar oprximo. Mas tambm s vezes tornava-se desagradvel por serem muitos adesfrutar de um mesmo espao que nem sempre era respeitado. Havia muitosdesentendimentos, fofocas, discusses e at brigas. E os motivos eram diversos,mas o maior era a inveja que um tinha do outro. Tanto que os escravos que serviamna casa dos sinhs eram invejados e iam pouco senzala, eles dormiam no poroda casa-grande. Davam muitos palpites um na vida do outro, havia quase sempre brigasentre casais, at algumas traies, que para no acabar em mortes eram apaziguadas. Sei que existiram muitas senzalas no Brasil, em inmeras fazendas, e queno foram idnticas e os escravos foram tratados de muitas maneiras. Masdescreverei aquela em que vivi. A senzala era feita de barro e pau, tinha espao para todos. Havia o cantopara a cozinha, uma latrina, que era uma fossa funda cercada de tbuas e ficava dolado direito, frente. Era usada s em casos especiais: por doentes ou noite. Issoevitava que a senzala ficasse com cheiro ruim. As outras latrinas eram fossasexternas, do lado esquerdo, a alguns metros de distncia, entre as rvores. Tinhaseis casinhas de barro, trs para as mulheres e trs para os homens. Tomvamos banho no riacho, as mulheres o faziam de roupa, quetrocvamos numa casinha, que tambm era de barro e pau, perto do riacho. Essesbanhos, dependendo da poca, eram de duas a trs vezes por semana. Guardvamos nossos pertences, sempre poucos, nas nossas esteiras dedormir. Ns, as mulheres, sempre deixvamos a senzala limpa, varrida eorganizada. As jovens colhiam flores e as colocavam por toda ela, enfeitando-a.Mas, mesmo assim, seu cheiro no era agradvel. Mesmo o espao sendo grande,era para muita gente. Houve senzalas em que os escravos eram presos, s vezes pequenas paramuitos, onde as latrinas ficavam na parte interna, mal ventiladas, o odor erarealmente desagradvel. No calor, a senzala em que vivi era abafada, no inverno entrava muitovento, era fria. Estvamos sempre reclamando. Mas foi o lar que tive, uma escola na qual aprendi muito, como a convivercom outras pessoas, a respeitar quem no pensava como eu, a repartir, a sersolidria e a dar valor a um lar, a uma casinha simples em que morasse s minhafamlia. Era isso que desejava quando estava na senzala, foi a isso que aprendi a darvalor. 4 FATOS E FATOS "Ser que eu, ao morrer, virarei alma penada? No quero! Certamente ireicom uma alma boa para algum lugar. No quero assombrar ningum.Assombraes..." Lembrei-me de um fato que ocorreu quando ainda era pequena. Por causade uma negra faceira, dois escravos brigaram, se machucando. Dias depois, ummatou o outro pegando uma enxada e golpeando o rival na cabea. O escravo quematou ficou preso no tronco por no ter outro lugar para ficar. A escrava escolheuum terceiro, outro jovem, para ser seu companheiro. O assassino ficou preso suma semana. Achando que estava solucionado o problema, o sinh mandou solt-lo. Mas, ao ser liberto, ele pegou um pedao de pau e foi tentar matar a jovem queamava. Ela gritou e um feitor foi acudi-la, sendo atingido por uma paulada. Umoutro feitor pegou uma faca e matou o negro assassino. Foi um fato triste, e os paisdos que morreram sofreram muito com o ocorrido. Nada aconteceu com a escravae o feitor atingido s se machucou. Meses depois, a alma desse escravo passou a assombrar a fazenda. Eu tinhamuito medo. Ns, as crianas, nem ficvamos mais ao escurecer na porta dasenzala. Foram muitos a ver o escravo com a faca no peito, com o olhar rancorosoe blasfemando. O sinh Floriano mandou chamar Maria e outros escravos mais velhos nacasa-grande e lhes pediu: "Dem um jeito na alma desse escravo! Faam o que for preciso para queele no assombre mais. Todos da fazenda esto amedrontados e essa alma penadateve a ousadia at de vir assombrar a casa-grande. Chamei o padre da cidade, eleveio benzer, orou, mas j no outro dia a assombrao estava aqui novamente." "Bem - falou Maria -, que no se manda em esprito como se manda emns. No sabemos o que fazer". "Ele era escravo como vocs e devem seentender. Minha esposa est com medo e no quer ficar aqui. Faam o que forpreciso!" - Exigiu o sinh. Joaquim aventurou-se a falar: "Sinh Floriano, tenho um irmo que mora na Fazenda Santa Helena, elesabe fazer esse trabalho, ele e alguns amigos conversam com os mortos e creio queeles podero falar com essa assombrao e orient-la para que no assombre mais." "Voc deve ir l hoje mesmo com o capataz. Vou escrever ao meucompadre, o dono da Fazenda Santa Helena, para deixar que seu irmo e amigosvenham aqui nos ajudar" - disse o sinh. E assim foi feito. Logo tarde estavam os visitantes, o irmo de Joaquim eduas mulheres j idosas, hospedados na nossa senzala. Ficaram conversando,trocando idias, at tarde da noite. As crianas foram afastadas para que noescutassem. No outro dia, o trio saiu a andar por toda a fazenda, orando e queimandoervas, foram at a casa-grande. tardinha se reuniram no ptio em frente senzala.Fizeram um crculo, riscaram o cho, cantaram. Todos ns, inclusive as crianas,ficamos vendo. Quando escureceu, eles pediram para quem tivesse medo entrar nasenzala. S algumas mulheres o fizeram, e ns, as crianas, fomos obrigadas aentrar. Mas ns tnhamos nossos truques para fazer o que nos convinha. O medo era grande, mas a curiosidade era maior, ficamos a espiar pelasfrestas do porto, interessados em ouvir e ver o que se passava no ptio. "Meu Deus! - Exclamou um menino de oito anos. -Estou vendo o negroassassino! Valei-me, Nossa Senhora! Ele est sendo obrigado a vir, tem doisespritos pegando-o pelos braos "2. "No vejo nada - disse um outro menino -, mas acredito em voc. Mameme disse que eles falavam que iam mesmo buscar a alma penada para conversarcom ela e explicar os inconvenientes de ficar a vagar com tanto dio. E eles fazemisso porque tm amigos que tambm so mortos, s que so bons e os ajudam". "E, pelo que ouvi - disse uma mocinha -, quando uma pessoa boa viva,tambm boa depois de morta. Tanto aqui como l os bons ajudam sempre e osmaus tentam fazer maldade". "Os bons sempre vencem .'"-Exclamou uma menina. "No acredito nisso! S se for l do lado dos mortos -disse um menino. -Aqui os maus dominam, maltratam". "? - Disse a mocinha. - s ver o assassino, como ele est, para perceberque os maus so castigados". "Vamos ficar quietos, seno no escutaremos nada" -pedi. No deu para ouvir tudo, mas entendemos que o negro, o esprito queassombrava, falou por uma, das mulheres e o irmo do Joaquim conversou comele. Exigiram que fosse embora e largasse de assombrar a fazenda. Foi umaconversa demorada. Ajudaram-no tirando a faca de seu peito e curando oferimento. Ele foi embora para o alvio de todos e o irmo de Joaquim falou alto*: 2- A criana que viu era sensvel, um mdium vidente. (N.A.E.) * O esprito falou por meio de incorporao. A mulher, que era mdium, serviu deintercmbio entre o esprito e os escravos. Assim, o irmo de Joaquim pde esclarec-lo, e este, tomando conscincia de que haviadesencarnado, deixou de ter a impresso da dor do ferimento de seu corpo fsico. (Nota do Editor) "Esse jovem ir para um lugar aonde devem ir todos os que morreram. Foiorientado a no voltar mais aqui. Vamos orar por ele desejando que fique em paz eque receba a orientao necessria. Ele tem que perdoar a todos e a si mesmo,esquecendo o rancor. Esse moo estava sofrendo muito, como fazem os que noperdoaram, e esperamos que agora ele tenha alvio, siga o seu caminho e no voltemais aqui." O trio voltou para sua fazenda no outro dia e ficamos a comentar oepisdio por muito tempo. Deu certo o ritual deles, que nada mais foi que umaevocao e incorporao para uma orientao. E a assombrao no apareceu mais. Contavam-se na senzala muitos casos de assombrao. A maioria tinhamedo e eu sempre temi alma de outro mundo, mas sempre gostava de ouvir. "Quem se suicida so os que sofrem mais aps a morte do corpo -comentou Joaquim. - Embora creia que cada caso seja visto por Deus de formadiferente, justa. Lembro-me bem de um fato ocorrido quando eu era criana:suicidaram-se em curto espao, aqui na fazenda, um negro, um capataz e suamulher. Uma negra velha, muito bondosa, pediu a todos ns que fizssemosoraes e pensssemos com firmeza em no nos suicidar. Ela dizia que vibraesde suicdio estavam sobre a fazenda e que aquele que se ligasse a essa energia teriavontade de se suicidar. Recomendou tambm que falssemos com ela se tivssemosvontade de morrer. Pois no que foram muitos os que pensaram em se suicidar?At a sinhazinha, a irm do sinh Floriano, que era menino naquela poca. O sinhSilva mandou-a para a casa de sua irm passar uns tempos e foi ento que elaconheceu o marido e por l ficou". "E os suicidas? Os trs que se mataram? Como ficaram? Assombraram afazenda?" - Indagaram. "Pelo menos ningum os viu. Mas falaram que eles sofreram porque no sepode matar um corpo que Deus nos deu para viver aqui na Terra. Ao sofrer, deve-se ter pacincia, tudo passa e sempre se tm momentos felizes" - respondeuJoaquim. Joaquim, sempre que possvel, nos falava sobre o suicdio, que ningumdeveria faz-lo porque no se foge dos problemas arrumando outros piores. E achoque no falou em vo. Enquanto vivi na fazenda, ningum se suicidou. Algumasvezes se desejou a morte, mas nunca a ponto de pensar em acabar com a vida,porque acreditvamos que a vida no acaba e que continua com a morte do corpo.E suicidar-se no resolve nada, os problemas continuam os mesmos e, ao saber quese continua vivo, surgem outras dificuldades e o remorso vem quase sempre forte.E sabendo que existe a reencarnao que no devemos mesmo pensar em tirarnossa vida fsica e nem a de ningum, porque a reao para essa insensata ao sempre dolorosa, embora se tenha sempre o socorro e a ajuda de outros, irmosauxiliando irmos. A colheita de quem plantou. Um dia, conversando sobre assombrao, Jos comentou: "Por que almado outro mundo? Ser que ao morrer passamos a ser do outro mundo? De outrolugar? Penso que todos os que morrem devem ir para um lugar nesse mundomesmo. E os que no vo e por algum motivo ficam aqui conosco podem servistos e assombram aqueles que os vem." "Por que ser que uns vo para esses lugares e outros no?" - Indagou umanegra. Jos respondeu, aps pensar uns instantes: "Acho que se tem sempremotivos para ficar. As pessoas boas so os bons espritos, esses no assombram,continuam sendo teis. H aqueles que foram bons, s que, apegados s suasposses, no querem abandonar o que julgam ser deles, se sentem presos aos seusbens, que na verdade no lhes pertencem mais. E at pelo amor egosta, paixo,muitos no conseguem entender que necessitam viver separadamente por algumtempo. Outros ficam pelo dio, odeiam tanto que se ligam aos seus desafetos,querendo faz-los sofrer e sofrem junto. Os que ficam so sempre imprudentes." Ficamos quietos a pensar, conclu que Jos tinha razo. Morrer deveria seruma partida da qual no se leva nada, iramos s conosco mesmo, com nossasaes boas e ms. Filo quebrou o silncio: "Voc, Jos, deve ter razo. A sinh antiga, que morreu h tempo, vagoupela fazenda. Dizem que ela no foi m, mas que era apegada demais a sua casa e aseus filhos, li, na fazenda vizinha, aquele capataz maldoso, depois que morreu,assombrou por anos a fazenda, perseguido por alguns negros. Acho que o capatazno encontrou sossego porque foi mau e os negros por no terem perdoado." "So muitos os fatos ouvidos e vistos - falou Jos -que servem para nosconfirmar que o esprito continua vivo aps a morte. Os bons tm o merecimentode ficar bem, os maus sofrem pelas suas maldades e os que no perdoam sofremtambm, embora possam ser vtimas e bons". Naquele tempo no pensava na morte para mim, parecia que nascera parano morrer. Mas essa passagem para todos. Mesmo quando planejei a minha fugapara despistar a dos meus filhos, no pensei em morrer. Enganei a mim mesma.Quando queremos fugir da realidade, conseguimos. No pensei muito nasconseqncias. Agora, ali estava esperando por ela, pela morte, ou pela chegada dosfeitores. "Quem chegar primeiro?" - Indaguei-me. Olhei para a pedra em que estava deitada, era cinzenta e irregular. Ao ladodo meu rosto estava passando uma fileira de formigas. Cada uma levando algo,pedaos de folhas, gros, at pedacinhos de pau para sua casa, o formigueiro.Observei-as por instantes. "Ser - me indaguei - que as formigas vivem no formigueiro juntas comons, negros, nas senzalas?" Vi-me criana... Dormia junto com outras meninas, muitas preferiam dormir com os pais,mas, como eu era rf, dormia sempre com um grupo de amigas. Brincava e faziapequenos trabalhos, conversvamos muito e aprendi logo a ter medo. Temor dosobrenatural, das pessoas, de alguns escravos que eram pessoas com qualidades edefeitos e que olhavam para ns com cobia, a ns, as jovenzinhas, e muito paramim, que era diferente, pele mais clara, cabelos lisos. Jacinta temia por mim e estava sempre me protegendo, queria quecasasse porque um companheiro me protegeria da cobia,de alguns homens. Mas queria encontrar um amor, um sentimento forte como o dos meuspais. Pedia a Jacinta com olhar suplicante: "Conte, Jacinta, me conte a histria dosmeus pais." "Voc, menina, no se cansa mesmo de escutar. Eu no agento maisfalar dessa histria. Dizem que aqui nessas terras, antes de o branco vir e trazer osnegros como escravos, viviam os ndios, que eram os donos de tudo." Interrompi: "No entendo, Jacinta, se eles estavam aqui e eram donos da terra, comopuderam vir outras pessoas e mandar em tudo?" "Acho que poder mesmo no podiam, mas no so feitas tantas coisas queno se podem fazer? Ns, os negros, ramos livres na nossa terra e os brancosforam l e nos tiraram de nossos lares como se fssemos pedras, nos trouxerampara c e nos obrigaram a trabalhar para eles. Somos como animais." Filo, que escutava, indagou indignada: "Jacinta, se nascemos para aprender, qual ser a lio que um escravoaprende?" l "Deve ser trabalhar, sem dvida" - respondi. ' "A obedecer e a domar oorgulho" - respondeu Jacinta. "Parece que vocs duas esto pensando como Jos -disse Filo. - No acredito nisso. No creio que aprendemos aqui na Terra. AchoDeus injusto, se fosse justo, Ele no seria deus s dos brancos, ou no farianegros". "Filo - falou Jacinta -, os negros sofrem, mas os brancos tambm. Ficamcomo ns, doentes, sentem a morte de entes queridos, h brancos pobres". "No venha defender esse Deus em que voc cr!" -Exclamou Filo. "Como se Ele precisasse de minha defesa! Se o que Jos fala estiver certo,Deus justo! Talvez sejamos ns que diferenciamos, que fazemos por merecer avida que temos. No sei se Jos est certo, mas aprendemos quando queremos. Eeu aprendi muito aqui na fazenda." Filo riu de gargalhar. "No ria de Jacinta" - defendi-a. "Ora, Cabocla, no estou rindo dela, mas do que ela disse. Aprender algoaqui? O qu? Na senzala?" "Sim, aqui na fazenda, na senzala - respondeu Jacinta. -Hoje no souorgulhosa, tenho f, amo a vida, sou obediente e gosto de trabalhar". "Jacinta - pedi -, fale de meus pais..." Minha me de criao, querendo pr fim na discusso, me atendeu: "Limo era branco, de sorriso bonito, era um timo empregado. Sua mevivia com sua tribo nessas passagens, na floresta. Conheceram-se, mas no falavama mesma lngua. Comunicavam-se por sinais e um foi aprendendo a linguagem dooutro. A tribo de sua me, que era composta de poucos ndios, porque com umadoena trazida pelos brancos, muitos morreram, no gostou do namoro de suame. Japira, sua genitora, era muito bonita e geniosa, e resolveu fugir com seu pai.Os ndios resolveram ir para outro local se reunir com outra tribo. Seus paisviveram felizes o tempo que ficaram juntos. Moravam numa pequena casa aqui nafazenda, sua me ficou grvida e voc nasceu, mas infelizmente ela morreu. Seu paidesesperou-se e o sinh me pediu para cri-la, tinha dado luz um de meus filhos etinha leite para ambos e assim a criei. Seu pai, aps o falecimento de sua me,tornou-se triste, ningum o viu mais sorrir, mas vinha todos os dias ver voc. Ateve o acidente e ele morreu." Jacinta calou-se e Filo, que escutava, comentou: "Filha de branco com ndio, criada na senzala e escrava!" Quis dizer que no era escrava, mas estava cansada de faz-lo semresultado. E, aps escutar a histria de meus pais, ficava sonhando com eles.Imaginava-os belos e carinhosos comigo. Na senzala repartamos o ambiente com folhas tranadas ou tbuas. Eramcomo biombos que dividiam alguns espaos para as famlias. Todos dormiam nocho, mulheres e meninas de um lado, homens e garotos de outro. Fazamosesteiras de palha, s vezes colocvamos penas, que serviam de colches. Quando seajuntavam, casavam, iam dormir numa parte bem fechada, um quadrado num cantopor dias, depois nos quadrados das famlias. At certa hora da noite, o fogo aceso dava uma fraca claridade, depois queele se apagava ficvamos na escurido. Mas, se precisssemos, um lampio eraaceso. Desde pequena, como todas as crianas, sabia o que acontecia entre oscasais. Falava-se abertamente sobre sexo 3. Tinha vergonha de me ajuntar. Mas,achando que Jacinta tinha razo, escolhi um rapaz simptico e bondoso paranamorar. Caolho ficou feliz por ter sido o escolhido, ele era simples, trabalhador eme amava. Depois, de um tempo de namoro, passamos a viver juntos. A primeiranoite foi de carinho e no outro dia agentamos risos e gozaes. Vivemos bem juntos, ele era pacato, me tratava bem, com delicadeza. Sempre trabalhei perto da sede. Quando criana, no pomar, secando caf,colhendo milho. Depois, nas lavouras, costurando e lavando roupas dos escravos. Tive meus trs filhos sem problemas. s escravas grvidas era dado serviomais leve e no oitavo ms no trabalhavam e s voltavam com o nen desmamado.Isso acontecia entre o oitavo e o dcimo segundo ms. Mas elas ficavam na senzala,trabalhavam nela, cuidando das crianas, cozinhando para todos os escravos. Tnhamos poucas diverses, algumas festas, conversvamos noite,fazendo rodas com afins. No perodo da sinh Frano ela fazia festas para ns, nasquais tnhamos carne de vaca para comer vontade. Senti muito quando Caolho morreu e resolvi no casar mais. Jacinta meaconselhava: "Jussara, voc jovem, arrume outro companheiro." "No quero, Jacinta.Vou ficar viva at morrer." Houve pretendentes, que recusei. O tempo passou e aaconteceu a morte triste do meu filho mais velho, a vida tornou-se difcil nafazenda e ns fugimos. Na vida de todos ns h acontecimentos, so fatos e fatos que formamhistria, e a nossa, por sermos o personagem principal, nos importante. 3- Fao essa ressalva para dizer que essa foi minha experincia na senzala. A vida dosescravos no Brasil diferiu muito: houve lugares em que foram bem tratados e em outros viverammiseravelmente. E certamente a escravido foi. uma perodo de muito aprendizado. (N.A.E.) 5 MINHA PASSAGEM Parecia que me lembrava de tudo o que me acontecera, at fatos semimportncia me vieram mente. Lembrei-me at de que, quando criana, achamosno pomar, Tnica e eu, um ninho com ovinhos. Todos os dias amos v-lo at quenasceram os filhotes, ficaram grandes e voaram. Quando o ninho ficou vazio, fiqueitriste, havia me acostumado a ir v-lo. Quando somos privados de algo a que nosacostumamos, sentimos falta. E isso acontece com tudo o que faz parte de nossavida. "Ser que sentirei falta do meu corpo? Sim, acho que sim, uso-o h tantosanos como roupa do meu esprito. Mas ele da natureza e a ela deve voltar. Quepensamentos estranhos, parece que me so sugeridos" - nunca pensara isso antes. Jamais imaginei que pudesse recordar toda a minha vida em poucosminutos. No deveria estar deitada na pedra muito tempo. Escutei o barulho dosmeus perseguidores, agora estavam bem perto. Tinha dores, garganta seca, muita sede e suava. Estava agonizando e notive mais medo, me senti segura, amada, protegida e tranqila. O temor da mortepassou como por encanto e comecei a ter a sensao de que estava sendo erguidado cho. Sentia pessoas junto a mim, me esforcei para abrir os olhos do meu corpofsico, mas no consegui. Porm conseguia ver vultos. "No so meus perseguidores - pensei. - Esses me amam e querem meajudar". -- Me, mame, fique calma! -- Meu filho! Ser? voc, Manu? Parece que balbuciei, mas no falei, no mexi os lbios. Senti-me maiscalma com os fluidos de carinho dele. No escutei mais minha respirao, queestava ofegante, mas continuei a respirar. As dores acalmaram e um dos socorristasgentilmente me levantou a cabea e me deu gua. Tomei-a apressada, levando asmos caneca prateada. -- Tome devagar! Que gostoso saborear aquela gua limpa e fresca! Quis agradecer, mas sentisono. Estava tranqila, meu filho apertou minha mo. -- Estarei com a senhora. Meus perseguidores chegaram. ---A Cabocla! Deixaram a Cabocla! Parece morta! Um dos feitores me chutou. No senti nada, mas seus fluidos de raiva edio me despertaram. Foi como se me chacoalhassem e o sono passou, temi epassei a ver tudo nitidamente. Meu filho me abraou e me beijou. -- Manu, vo maltratar voc - falei preocupada. Ele sorriu. "Meu filho est morto e eles no podero mais maltrat-lo" -conclu. Aconcheguei-me mais perto dele e fiquei observando. Manu estava sentadona pedra e eu deitada no seu colo. Os dois vultos, os quais agora via bem, eramuma mulher e um homem simpticos e tranqilos, que calmamente mexiam nomeu corpo e me faziam sentir separada dele. Eram dois socorristas que medesligavam da matria. Preferi olhar para meu filho. Que saudade! Ele estava feliz,sadio e lindo. Passava com delicadeza a mo nos meus cabelos. Voltei meu olhar para a pedra e vi meu corpo deitado, cheio de ferimentos.Estava com as roupas rasgadas e sujas. Olhei para mim, sim, porque eu era aquelaque meu filho acariciava; estava com a mesma roupa, do mesmo jeito, s que nosentia os ferimentos. Escutei os feitores: -- Cabocla est morta! Olhem, picada de cobra! Mas e os outros? -- Os ces no acham mais rastros. Eles no existem. Eu estava certo,perseguamos uma s pessoa. Cabocla nos enganou! Os fujes foram para um ladoe ela pela floresta, para despistar, para que os filhos fugissem. Esperta! -- E agora? - Indagou um deles. -- Vamos voltar - respondeu o senhor Lisberto. - Andamos muito eestamos longe da fazenda. Devemos ter cuidado, h cobras por aqui. Que raiva!Tanto trabalho por nada e ainda teremos que ouvir as gozaes dos outros.Andamos pela mata fechada, no pegamos ningum, uma escrava tola nos enganoue os fujes devem estar longe. -- S por sorte iremos captur-los - queixou-se um deles. -- Eu bem que falei que seguamos um rastro s! - Repetiu o outro. -- Voc tem razo! Um rastro s! Enganados por uma maluca! - Disse osenhor Lisberto, irritado. -- Por uma me que ama! - Consegui dizer e at me assustei, minha vozera normal, s que os feitores no escutaram. -- Mame, durma nos meus braos. Cuidarei da senhora! -- Ficaremos aqui? - Indaguei --Vou lev-la para onde moro! - Respondeu meu filho. Comecei a sentirsono, mas escutei os feitores. -- Temos pouca gua. Vamos reparti-la com os ces, um pouco paracada um. Amanh tarde chegaremos fazenda. Vamos voltar! - Ordenou osenhor Lisberto. -- E Cabocla? - Perguntou um deles. --Vamos deix-la a, no devemos perder tempo enterrando-a. s umaescrava! - Respondeu o senhor Lisberto. Foram embora. Olhei para Manu, ele me transmitiu calma. Adormeciconfortada nos seus braos. Acordei disposta num leito. Apalpei, o colcho era macio, com leniscomo os dos sinhs, cheirosos e muito limpos. Estava num quarto grande comvrias camas, quase todas ocupadas por mulheres brancas e negras. Olhei tudoespantada, sem coragem de me mover. Uma moa branca, muito bonita, veio at mim e sorriu agradavelmente. -- Bom dia! Como est passando? Precisa de alguma coisa? No tive coragem de falar, s respondia com movimentos de cabea. Sentimuita vergonha. Uma moa branca me dirigindo a palavra como se eu fosse igual aela. A jovem, sempre risonha, sentou-se no leito em que eu estava e ajeitou comcarinho os lenis. A percebi que estava vestida com um camisolo branco, demangas longas e com detalhes de renda, de tecido macio, passei a mo, encantadacom a pea de roupa. Olhei novamente para a moa, que continuava me olhandocom carinho. Segurou a minha mo e disse sorrindo: -- Por favor, no se sinta envergonhada! Como voc prefere que eu achame, Cabocla ou Jussara? -- Cabocla - respondi, abaixando a cabea e os olhos. A moa passou a mo pelo meu rosto, levantou-se e disse delicadamente: -- Seja bem-vinda, Cabocla! Aqui no mais escrava e no se sintainferior. Voc no ! Aqui somos todos iguais! Fique vontade. Vou avisar Manu que voc acordou. Tive vontade de falar, fazer perguntas sobre muitas coisas, mas fiqueiquieta, sem me mexer. Ela se afastou. Passei as mos pelo meu rosto, nada de ferimentos. Levantei as mangas eolhei para meus braos e mos, nenhum arranho. Suspirei aliviada e sorri feliz. Respirei fundo. Como gostei de sentir o cheiro daquele lugar. A senzala,por mais que a limpssemos, no tinha bom cheiro e nos ltimos tempos, com oservio aumentando, no tnhamos mais disposio para limp-la melhor. Manu entrou no quarto, olhei-o maravilhada. Cumprimentoueducadamente todos que estavam no quarto e aproximou-se de mim, emocionado. -- A bno, minha me! -- Deus o abenoe, meu filho! - Respondi com lgrimas de alegria nosolhos. Beijou-me a mo, depois meu rosto e nos demos um forte abrao. Apercebi que no sabia onde estava e por que estava ali. Indaguei-o: -- Manu, meu filho, que fao aqui? Por que estou num quarto igual aodas sinhs, com essas roupas cheirosas? -- A senhora est bem? Quer alguma coisa? - Indagou meu filho em vezde responder. -- Estou muito bem, muito confortvel! - Respondi. -- Mame, a senhora desencarnou! Seu corpo fsico morreu com a picadada cobra. Ficamos quietos uns segundos. "Estranho - pensei -, morri e estou como viva!" -- Mame - continuou Manu a explicar -, a senhora morreu mesmo, querdizer, seu corpo fsico morreu. Temos mais este corpo, que igual ao que usamosquando encarnados. Este corpo chama-se perisprito, que uma roupagem doesprito. -- Onde est meu corpo morto? - Perguntei. -- Ficou l na pedra, est apodrecendo e logo ser esqueleto e p -respondeu Manu. -- Hum... -- Entendeu? - Indagou meu filho. Estava um tanto confusa. Mas, se meu corpo morrera, eu agora deveria seralma e graas a Deus no era penada. -- Morri... Que vai ser de mim agora? - Perguntei. -- Ir morar comigo numa bela casinha. Ir aprender muitas coisas eseremos felizes. -- Manu, a moa me tratou como se eu fosse uma sinh. -- Mame, diferenas existem s no mundo fsico, aqui diferente.Somos todos iguais, filhos do mesmo Deus. -- Ns, os escravos, somos filhos de Deus? Tem certeza? Manu riu. -- Sim, mame, somos todos filhos de Deus, porque fomos criados porEle. -- Onde est Caolho, seu pai? - Quis saber. -- Papai nasceu de novo, reencarnou. um lindo menino. -- Branco ou negro? -- Branco. Nosso esprito, mame, vive num corpo fsico, quando estemorre, vive-se ento um perodo na erraticidade * ( erraticidade perodo em que oesprito passa desencarnado, aguardando uma nova encarnao . N.E.), em que se pode serfeliz ou infeliz, dependendo do seu merecimento, depois ele nasce de novo numoutro corpo, reencarna. Ficamos quietos por momentos e eu pensei no que ouvi e achei bem certo.Falei com entusiasmo: -- Se Jacinta ouvisse isso ficaria muito alegre e Jos entenderia muitascoisas. Ambos dizem que Deus no injusto. Eu at que em certos momentosduvidei dessa justia. Mas, se Caolho foi negro e agora branco, ns nascemos na Terra,reencarnamos, para aprender mesmo. Manu riu. Sempre segurando minha mo, falou: -- Mame, Deus justo. Temos, na Terra como na erraticidade, a reaode nossas aes, o aprendizado a que fazemos jus. Mas agora chega de conversa.Durma, a senhora precisa se refazer, descansar. Mais tarde virei busc-la para umpasseio. No queria dormir, mas tive sono e adormeci tranqila. Quando acordei fiquei quietinha, respirei fundo, sentindo o aromaagradvel daquele lugar. Abri os olhos devagarinho e me alegrei por no terningum perto ou me observando. Prestei ateno em tudo, nos detalhes, achandoo quarto maravilhoso. A moa risonha aproximou-se de mim e me cumprimentou baixinho: -- Oi, Cabocla! Chamo-me Regina. Trouxe um alimento para voc. Sentei-me na cama sem saber o que fazer e muito envergonhada. Estavamesmo com vontade de me alimentar. "Mas morto se alimenta?" - Indaguei-me.Regina, lendo meus pensamentos, disse calmamente: -- Cabocla, voc est aqui h dez dias somente. Logo aprender a viversem os reflexos do corpo fsico e a no necessitar se alimentar mais. Isso caldode legumes e tomar suco. No uma alimentao como a do encarnado, mas sesentir melhor aps se alimentar. Aprender muitas coisas e creio que logo no sentir falta de nada do quefazia encarnada, porque voc no era apegada a nada. -- S aos meus filhos... - Suspirei, me esforando para falar, porque tinhareceio de dizer algo que fosse inconveniente. --Voc aqui saber deles e poder, logo que possvel, v-los. Vamos,alimente-se! - Disse ela carinhosamente. Regina afastou-se e eu tomei a sopa, achando-a deliciosa. Logo queterminei, ela veio pegar o prato. "Tratada como sinh!" - Pensei. - "Como sinh!" Uma senhora branca, elegante, aproximou-se do leito ao lado do meu,abraou com amor a moa que nele estava e disse em tom baixo, mas, como estavaao lado, escutei: -- Filha, como est? -- Mame, sofro, no estou bem. Morrer de parto, que injustia! Agoraque ia ter nosso primeiro filho! -- Filha, no reclame! Por seu merecimento pude traz-la para c. Htantos lugares feios e tristes a que um desencarnado pode ir. -- Preocupo-me com meu nen! Que ser dele sem me, sem mim? -Queixou-se a moa, chorosa. -- Seu esposo ir trat-lo bem. Sua cunhada est cuidando dele - tentou asenhora consolar a filha. -- Mame, no amava meu esposo, sabe bem que fui obrigada a casarcom ele e que era minha cunhada quem governava a casa. No fui feliz nocasamento, mas no queria morrer. Estou muito triste! S tenho dezoito anos! -- Filha - disse a senhora pacientemente -, aqui ser feliz. No tenha dde si mesma, o pior que nos pode acontecer deixarmos a autopiedade nos privarde ser feliz ou de tentar ser. -- Mame, aqui ficam todos juntos, negros, brancos e ndios. -- Isso faz diferena para voc? - Indagou a senhora. -- No - respondeu a jovem -, sabe bem que no. Sempre achei aescravido uma grande injustia e amei Juvelina, a nossa me negra, como minhasegunda me. -- Vamos, nimo, voc j podia ter se levantado e est h uma semana sse lastimando! Com muito custo a senhora conseguiu que a filha se levantasse e saram doquarto para um passeio. "Brancos, negros e ndios tm os mesmos sentimentos: bons e maus,sofrem pelos mesmos motivos" - pensei. Estava achando muito gostoso estar ali naquele quarto e naquela cama. "Meu ltimo leito na Terra foi aquela pedra. Meu corpo deve estar l. Oque importa que eu estou agora aqui." Estava feliz, cochilei e acordei com um beijo gostoso de Manu. -- Mezinha, vim v-la! -- Bom dia, filho! - Exclamei, me sentando na cama. -- A senhora quer ir ao jardim? - Perguntou Manu. -- Quero! - Respondi de imediato, me levantando do leito. Olhei para mim, o camisolo ia at os ps. Perguntei a ele: -- Posso ir assim? -- Claro! Venha! - Disse meu filho, sorrindo. Passamos pela porta, por um corredor e chegamos ao jardim. Encantei-me,nunca vira flores to bonitas e perfumadas. Sentamos num banco e lgrimasescorreram pelo meu rosto. Manu me abraou. -- O que se passa, mezinha? Por que chora? O que lhe falta? O quesente? -- Gratido! - Respondi emocionada. - Estou como vida com tantasbelezas, com o tratamento que estou recebendo. Nunca pensei que merecessetanto. Mas no quero ser servida por muito tempo. Quero ser como Regina, queserve com alegria. -- Fico muito contente em ouvir isso da senhora, esperava por issomesmo. E logo estar apta a servir. A ociosidade, mame, tanto para encarnadoscomo para os daqui do plano espiritual, a causa de pararmos no caminho doprogresso. Felizes aqueles que servem, trabalham e so teis, porque essescaminham e, se fazem com amor, a caminhada prazerosa e alcanam seusobjetivos mais depressa do que imaginam. -- Manu, voc est falando certo, como um sinh que estudou - observeicontente. -- Mame, aqui estudei e ainda estudo. O aprendizado para todos. Aquina colnia no h escravos e para c vm s pessoas boas. -- A escravido acaba com a morte do corpo fsico? - Quis saber. -- Infelizmente h os cativos dos desejos, prazeres e vcios. As pessoasms, as que abusaram, podem sofrer entre aqueles que no as perdoaram. Quandodesencarnam, por afinidades podem vir para c ou para outros locais de socorro,porm os que no tm merecimento podem ir para outros lugares que nada tm deparecido com este que v. So os imprudentes, que podem tanto vagar por lugaresem que viveram encarnados como ir para o Umbral, que um local triste onde sesofre muito. E l h escravos, s que a cor externa no importa, so as aeserradas que os ligam queles lugares. Olhei para meu filho, ele deveria ter aproveitado bem o que aprendera ali.Achei-o sadio, me orgulhei dele. Fiquei calada uns instantes, depois lhe indaguei: -- Manu, se o merecimento que nos fez estar aqui e muitos em outroslugares tristes, por que encarnamos como escravos? Foi por essa tal lei deafinidades ou por que nos foi necessrio? Manu riu, ele estava muito belo. -- Mame, Deus justo nos dando oportunidade de aprender todas aslies. Quando no queremos aprender, no dando valor oportunidade do amor,a dor pode vir ensinar. Esse planeta, que temos por abenoada moradia, deexpiaes e provas. Expiaes quando perdemos a oportunidade de reparar nossoserros pelo amor, pelo trabalho edificante no bem. A sentimos a reao de nossasaes erradas, o sofrimento tentando ensinar. S que a dor persistente, no nosdeixa at que tenhamos aprendido, e assim vamos tendo novas oportunidades atque nos harmonizemos. Provas. E muitos aprendem ou acham que aprende ram. ATerra uma grande escola e as provas nada mais so que ocasies que nosmostram se estamos ou no aptos, se aprendemos de fato a lio que nos foi dada. Confesso que no entendi bem o que Manu disse naquele dia, mas guardeibem suas palavras, vindo a compreend-las depois. Segurei forte a mo dele eindaguei: -- Manu, por que sofreu tanto se nada fez de errado? Voc sempre foi to bom! Esqueceu seu amor por Juvencia? -- Gostava de Juvncia, foi um amor de adolescncia, agora a amo comouma irm e quando posso vou v-la e tento ajud-la. De fato, no errei nessaencarnao, mas j cometi muitos erros no passado. O sofrimento para mim foiuma lapidao que me fazia falta. Tive necessidade de passar pela prova de sofrer eperdoar. Precisava provar a mim mesmo que perdoaria sem rancor e ao faz-lo mesenti muito feliz. Sinto-me forte ao lembrar-me de tudo o que me aconteceu. Amoa vida e todas as suas manifestaes. -- Voc disse que errou? Onde? Como? Perguntei curiosa, sementender. -- Mame, somos espritos eternos e, pela bondade e justia do nosso PaiAmoroso, nos revestimos de muitos corpos fsicos, reencarnamos. -- o que aconteceu com seu pai? Voc disse que o esprito dele agoraest em outro corpo, de branco. -- Sim, mame, temos, pela bondade de Deus, sempre oportunidades deacertar, reparar... -- Ou errar mais..