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Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 45 No mundo atual, a consciência de que estamos vivendo mudanças profundas que ainda não somos capazes de compreender adequadamente é cada vez mais aguda. Para muitos intelectuais e atores sociais, não estamos simplesmente vivendo uma época de mudanças significativas e aceleradas, e sim uma mu- dança de época. Essa realidade provoca perplexidade e suscita uma ampla produção científica e cultural, assim como um intenso e acalorado debate. Muitas são as leituras da crise global de paradigma que esta- mos atravessando. Cientistas políticos, sociólogos, economistas, filósofos, teólogos, psicólogos, informa- tas, literatos, físicos, artistas, diferentes produtores intelectuais e culturais se dedicam a analisar essa pro- blemática. Neste contexto, extremamente vivo e plural de discussão e busca, algumas questões podem ser iden- tificadas como ocupando uma posição central nos debates, sendo expressão de matrizes teóricas e polí- tico-sociais diferenciadas. Entre elas podemos citar a problemática da igualdade e dos direitos humanos, em um mundo marcado por uma globalização neoli- beral excludente, e as questões da diferença e do mul- ticulturalismo, em tempos de uma mundialização 1 com pretensões monoculturais. Uma expressão dessa problemática pode ser evi- denciada pela natureza do recentemente publicado Relatório do Desenvolvimento Humano 2004, do Pro- grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença * Vera Maria Candau Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação * Este texto é uma versão revisada da comunicação apresen- tada no painel sobre o tema “Direitos humanos numa perspectiva multicultural e pluralista”, no Congresso Interamericano de Dire- tos Humanos realizado em Brasília, em agosto de 2006, promovi- do pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Ministé- rio de Educação, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). 1 Renato Ortiz (1994) distingue globalização de mundiali- zação, concebendo a primeira como referida fundamentalmente à economia, “à produção, distribuição e consumo de bens e de ser- viços, organizados a partir de uma estratégia mundial e voltada para um mercado mundial” (p. 16) e a segunda como um “fenô- meno social total que permeia o conjunto das manifestações cul- turais” (p. 30).

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Direitos humanos, educação e interculturalidade

Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 45

No mundo atual, a consciência de que estamosvivendo mudanças profundas que ainda não somoscapazes de compreender adequadamente é cada vezmais aguda. Para muitos intelectuais e atores sociais,não estamos simplesmente vivendo uma época demudanças significativas e aceleradas, e sim uma mu-dança de época. Essa realidade provoca perplexidadee suscita uma ampla produção científica e cultural,assim como um intenso e acalorado debate. Muitassão as leituras da crise global de paradigma que esta-mos atravessando. Cientistas políticos, sociólogos,economistas, filósofos, teólogos, psicólogos, informa-tas, literatos, físicos, artistas, diferentes produtoresintelectuais e culturais se dedicam a analisar essa pro-blemática.

Neste contexto, extremamente vivo e plural dediscussão e busca, algumas questões podem ser iden-tificadas como ocupando uma posição central nosdebates, sendo expressão de matrizes teóricas e polí-tico-sociais diferenciadas. Entre elas podemos citar aproblemática da igualdade e dos direitos humanos,em um mundo marcado por uma globalização neoli-beral excludente, e as questões da diferença e do mul-ticulturalismo, em tempos de uma mundialização1 compretensões monoculturais.

Uma expressão dessa problemática pode ser evi-denciada pela natureza do recentemente publicadoRelatório do Desenvolvimento Humano 2004, do Pro-grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento

Direitos humanos, educação e interculturalidade:as tensões entre igualdade e diferença*

Vera Maria CandauPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação

* Este texto é uma versão revisada da comunicação apresen-

tada no painel sobre o tema “Direitos humanos numa perspectiva

multicultural e pluralista”, no Congresso Interamericano de Dire-

tos Humanos realizado em Brasília, em agosto de 2006, promovi-

do pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Ministé-

rio de Educação, com o apoio da Organização das Nações Unidas

para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

1 Renato Ortiz (1994) distingue globalização de mundiali-

zação, concebendo a primeira como referida fundamentalmente à

economia, “à produção, distribuição e consumo de bens e de ser-

viços, organizados a partir de uma estratégia mundial e voltada

para um mercado mundial” (p. 16) e a segunda como um “fenô-

meno social total que permeia o conjunto das manifestações cul-

turais” (p. 30).

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(PNUD), intitulado Liberdade cultural num mundodiversificado, que associa explicitamente – pela pri-meira vez nos relatórios anuais publicados – as ques-tões relativas ao desenvolvimento às culturais:

O que é novo, hoje, é a ascensão de políticas de iden-

tidade. Em contextos muito diferentes e de modos muito

diversos – desde os povos indígenas da América Latina às

minorias religiosas na Ásia do Sul e às minorias étnicas nos

Bálcãs e em África, até os imigrantes na Europa Ociden-

tal – as pessoas estão se mobilizando de novo em torno de

velhas injustiças segundo linhas étnicas, religiosas, raciais

e culturais, exigindo que sua identidade seja reconhecida,

apreciada e aceite pela sociedade mais ampla. Sofrendo de

discriminação e marginalização em relação a oportunida-

des sociais, econômicas e políticas, também exigem justiça

social. (PNUD, 2004, p. 1)

Em todo o mundo as pessoas são mais afirmativas

para exigir respeito pela sua identidade cultural. Muitas

vezes, o que exigem é justiça social e mais voz política.

Mas não é tudo. Também exigem reconhecimento e respei-

to... E importam-se em saber se eles e os filhos viverão em

uma sociedade diversificada ou numa sociedade em que se

espera que todas as pessoas se conformem com uma única

cultura dominante. (p. 22)

A relação entre questões relativas a justiça, re-distribuição, superação das desigualdades e democra-tização de oportunidades e as referidas ao reconheci-mento de diferentes grupos culturais se faz cada vezmais estreita. Nesse sentido, a problemática dos di-reitos humanos, muitas vezes entendidos como direi-tos exclusivamente individuais e fundamentalmentecivis e políticos, amplia-se e, cada vez mais, afirma-se a importância dos direitos coletivos, culturais eambientais.

Será que estamos vivendo hoje um deslocamen-to de ênfase? Alguns autores talvez vão mais longe,chegando a afirmar que, nessa busca ou nessa crisede paradigma que estamos vivendo na sociedade atual,também a questão dos direitos humanos fica de algu-ma forma em questão e precisa ser ressignificada.

Certamente todos estamos de acordo em afirmar queos direitos humanos são uma construção da moderni-dade e que estão profundamente impregnados com osprocessos, os valores, as afirmações que a moderni-dade propôs/propõe, legou-nos e continua instigan-do-nos a realizar. Vivemos imersos no seu clima polí-tico-ideológico e cultural. E, no entanto, para muitosautores essa construção está em crise no novo con-texto cultural, social e econômico, marcado pela glo-balização, pelo impacto das novas tecnologias, pelaconstrução de novas subjetividades e mentalidades,por esse mundo complexo que muitos autores cha-mam – por mais ambíguo que este termo seja – pós-modernidade.

Um elemento que me parece fundamental naquestão é essa tensão, presente hoje no debate públi-co e nas relações internacionais, entre igualdade ediferença. De maneira um pouco simplificada, é pos-sível afirmar que toda a matriz da modernidade enfa-tizou a questão da igualdade. A igualdade de todos osseres humanos, independentemente das origens ra-ciais, da nacionalidade, das opções sexuais, enfim, aigualdade é uma chave para entender toda a luta damodernidade pelos direitos humanos.

No entanto, parece que hoje o centro de interes-se se deslocou. Quando digo que houve um desloca-mento, não estou querendo dizer que se nega a igual-dade, mas que se coloca muito mais em evidência otema da diferença.

O professor Antonio Flavio Pierucci, no seuinstigante livro Ciladas das diferenças (1999), sinte-tiza assim essa tensão:

Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Quere-

mos ser iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo

que a resposta se abrigava segura de si no primeiro termo da

disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta

se deslocou. A começar da segunda metade dos anos 70, pas-

samos a nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideoló-

gica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se, em

ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os

humanos, somos diferentes de fato [...], mas somos também

diferentes de direito. É o chamado “direito à diferença”, o

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direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente.

The right to be different!, como se diz em inglês, o direito à

diferença. Não queremos mais a igualdade, parece. Ou a que-

remos menos, motiva-nos muito mais, em nossa conduta, em

nossas expectativas de futuro e projetos de vida comparti-

lhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes

uns dos outros. (Pierucci, 1999, p. 7)

O autor parece colocar a questão em termos al-ternativos: somos iguais ou somos diferentes? Sua teseé a de que até recentemente nossas lutas tinham comoreferência fundamental a afirmação da igualdade. Odireito à diferença não tinha ainda aparecido com aforça que tem hoje. No entanto, atualmente a questãoda diferença assume importância especial e transfor-ma-se num direito, não só o direito dos diferentes aserem iguais, mas o direito de afirmar a diferença.Pessoalmente, inclino-me a defender que certamentehá uma mudança de ênfase e uma questão de articula-ção. Não se trata de afirmar um pólo e negar o outro,mas de articulá-los de tal modo que um nos remeta aooutro.

Partindo dessa questão básica, que vai orientarestas reflexões, considero fundamental que nos per-guntemos pela relevância dos direitos humanos nocontexto que estamos vivendo.

Direitos humanos hoje: um discurso relevante?

Assinalarei alguns aspectos que me parecemimportantes para a nossa reflexão. O primeiro diz res-peito à ambivalência em relação à afirmação e, aomesmo tempo, à negação dos direitos. Por um lado,tanto no plano internacional quanto no plano nacio-nal, existe um discurso reiterativo que afirma forte-mente a importância dos direitos humanos. No en-tanto, as violações multiplicam-se. No planointernacional é possível identificar inclusive um re-trocesso grande, por exemplo, em relação a direitosque pareciam profundamente assimilados pela huma-nidade, como o combate à tortura em qualquer cir-cunstância. Direitos fundamentais que pareciam ple-namente assegurados na mentalidade e nas políticas

internacionais assumidas são negados, desprezadose “esquecidos”.

Também no nosso país as violações se multipli-cam. No entanto, é necessário reconhecer, tem sidofeito um esforço sistemático orientado à defesa e pro-teção dos direitos fundamentais, tanto pelo governocomo por organizações da sociedade civil, pelo me-nos nos últimos anos.

Outro elemento importante da problemática atualdos direitos humanos diz respeito à relação entre in-divisibilidade e exigibilidade. A doutrina dos direitoshumanos que se desenvolveu principalmente a partirda Conferência de Viena (1993) colocou grande ên-fase na idéia da indivisibilidade dos direitos das dife-rentes gerações – civis, políticos, econômicos, sociaise culturais. No entanto, a exigibilidade desses direi-tos, imprescindível para que a indivisibilidade não sejameramente retórica, ainda é muito frágil, principal-mente no que diz respeito aos direitos sociais, econô-micos e culturais, o que provoca nos diferentes gru-pos sociais descrédito e indiferença para com aproclamação de direitos que, como se afirma na lin-guagem comum, “não saem do papel” ou somentevalem para algumas pessoas e classes sociais. Consi-dero essa tensão entre indivisibilidade e exigibilida-de muito importante no momento atual.

Um terceiro elemento da problemática, ao qualjá nos referimos e que consideramos que ocupa lugarcentral, é a tensão entre universal e particular. Desdea Declaração Universal, os direitos humanos são apre-sentados, como o próprio nome diz, como universais.No entanto, a questão do universal e do particular, oudo universal e do relativo, suscitou uma discussãoparticularmente forte na Conferência de Viena. E, hojeem dia, vários grupos em diferentes países questio-nam a universalidade dos direitos tal como foi cons-truída, considerando-a uma expressão do Ocidente eda tradição européia. Partindo dessa perspectiva, épossível reconhecer as diferenças culturais, os diver-sos modos de situar-se diante da vida, dos valores, asvárias lógicas de produção de conhecimento etc.? Épossível construir uma articulação entre o universal eo particular, o universal e o relativo?

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Diante dessa problemática, acredito, como o so-ciólogo Boaventura Sousa Santos, professor da Uni-versidade de Coimbra, que é necessária uma ressig-nificação dos direitos humanos na contemporaneida-de. Sua tese é de que,

[...] enquanto forem concebidos como direitos humanos

universais em abstrato, os Direitos Humanos tenderão a

operar como um localismo globalizado, e portanto como

uma forma de globalização hegemônica. Para poderem ope-

rar como forma de cosmopolitismo insurgente, como glo-

balização contra-hegemônica, os Direitos Humanos têm de

ser reconceitualizados como interculturais. (Santos, 2006,

p. 441-442)2

Para Santos, a construção dos direitos humanosfoi feita dentro da perspectiva do “localismo globali-zado”. E essa era a matriz hegemônica própria damodernidade, claramente presente no expansionismoeuropeu, portador da “civilização” e das “luzes”. Éessa a óptica que tem predominado até hoje, com di-ferentes versões.

No entanto, o que ele chama de cosmopolitismoinsurgente e subalterno é um dos processos que ca-racterizam a globalização que nasce de baixo paracima. Essa globalização surge dos grupos locais, dasorganizações da sociedade civil, dos temas que nas-cem verdadeiramente das inquietudes dos diferentesatores sociais.

Nessa perspectiva, segundo o autor (Santos, 2006,p. 445-447), para que os direitos humanos possamverdadeiramente ser ressignificados hoje, numa pers-pectiva que não nega as suas raízes, não nega a suahistória, mas quer trazê-los para a problemática dehoje, eles terão que passar por um processo dereconceitualização. Essa passagem supõe algumaspremissas que ele enumera da seguinte maneira:

1. A superação do debate entre o universalismo eo relativismo cultural. O que se quer dizer comisso? Afirmar que todas as culturas ou gruposculturais têm valores e idéias, elementos fun-damentais que aspiram a comunicar a outros euniversalizar, mas o universalismo é incorre-to, enquanto uma única cultura predomine equeira se impor a todos. No outro pólo está orelativismo cultural, que afirma que todas asculturas são relativas, nenhuma é absoluta,nenhuma é completa, mas é necessário propordiálogos interculturais sobre preocupaçõesconvergentes, ainda que expressas a partir dediversos universos culturais. Somente assimseremos capazes de construir algo juntos, umprojeto comum. É necessário negar tanto ouniversalismo quanto o relativismo absolutos.

2. Todas as culturas possuem concepções da dig-nidade humana. Nem todos os grupos cultu-rais conhecem ou usam a expressão direitoshumanos, mas isso não quer dizer que não te-nham uma idéia de dignidade humana, de vidadigna, de querer uma vida melhor para os seushabitantes ou para seus integrantes. Temos deter sensibilidade para descobrir em cada uni-verso sociocultural essa idéia de dignidade hu-mana que traduzimos como direitos humanos.

3. Todas as culturas são incompletas e problemá-ticas nas suas concepções de dignidade huma-na. Afirmar que nenhuma cultura é completa,que nenhuma dá conta de toda a riqueza dohumano, leva-nos a, muito mais do que traba-lhar com a idéia de uma cultura verdadeira eúnica, que tem de ser universalizada, desen-

2 O autor distingue quatro formas de globalização: localismo

globalizado – processo pelo qual determinada realidade local é

globalizada com sucesso; globalismo globalizado – impacto nas

condições locais das práticas transnacionais; cosmopolitismo in-

surgente e subalterno – resistência organizada transnacionalmente

contra os localismos globalizados e os globalismos localizados;

e o patrimônio comum da humanidade – emergência das lutas

transnacionais por valores ou recursos que são tão globais como

o próprio planeta. Ele caracteriza as duas primeiras como globa-

lização hegemônica, de cima para baixo; as duas últimas, como

globalização contra-hegemônica ou a partir de baixo (Santos,

2006, p. 417-421).

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volver a sensibilidade para com a idéia daincompletude de todas as culturas e, portanto,da necessidade da interação entre elas. Nenhu-ma cultura dá conta do humano. “Aumentar aconsciência de incompletude cultural é umadas tarefas prévias à construção de uma con-cepção emancipadora e multicultural dos di-reitos humanos” (Santos, 2006, p. 446).

4. Nenhuma cultura é monolítica. Todas as cul-turas comportam versões diferentes da digni-dade humana, algumas mais amplas do queoutras, algumas mais abertas a outras cultu-ras do que outras. Os grupos culturais não sãohomogêneos e padronizados. Algumas ver-sões dessa cultura podem ser rígidas, estrei-tas e fechadas. É necessário identificar e po-tencializar aquelas versões mais abertas,amplas e que apresentam um círculo de reci-procidade mais amplo, que favoreçam o diá-logo com outras culturas.

5. Todas as culturas tendem a distribuir as pessoase os grupos sociais entre dois princípios com-petitivos de pertença hierárquica: princípio daigualdade e princípio da diferença. Esta últimapremissa situa-nos no âmago da questão daressignificação dos direitos humanos hoje.

Todas essas premissas estão voltadas para essagrande questão da articulação entre igualdade e dife-rença, isto é, da passagem da afirmação da igualdadeou da diferença para a da igualdade na diferença. Nãose trata de, para afirmar a igualdade, negar diferença,nem de uma visão diferencialista absoluta, querelativize a igualdade. A questão está em como traba-lhar a igualdade na diferença, e aí é importante men-cionar o que Santos (2006) chama de o novo impera-tivo transcultural, que no seu entender deve presidiruma articulação pós-moderna e multicultural das po-líticas de igualdade e diferença: “temos o direito a seriguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temoso direito de ser diferentes sempre que a igualdade nosdescaracteriza” (idem, p. 462).

É nessa dialética entre igualdade e diferença,

entre superar toda a desigualdade e, ao mesmo tem-po, reconhecer as diferenças culturais, que os desa-fios dessa articulação se colocam. Essa perspectivasupõe discutir as diferentes concepções do multicul-turalismo presentes nas sociedades contemporâneas.

As diferentes abordagensdo multiculturalismo

A problemática do multiculturalismo suscitagrande polêmica no momento atual. Defensores e crí-ticos confrontam suas posições apaixonadamente.

Uma das características fundamentais das ques-tões multiculturais é exatamente o fato de estarematravessadas pelo acadêmico e o social, a produçãode conhecimentos, a militância e as políticas públi-cas. Convém ter sempre presente que o multicultura-lismo não nasceu nas universidades e no âmbito aca-dêmico em geral. São as lutas dos grupos sociaisdiscriminados e excluídos de uma cidadania plena,os movimentos sociais, especialmente os relaciona-dos às questões étnicas e, entre eles, de modo parti-cularmente significativo, os relacionados às identi-dades negras, que constituem o locus de produção domulticulturalismo. Sua penetração na academia deu-se num segundo momento e, até hoje, atrevo-me aafirmar, sua integração no mundo universitário é frá-gil e objeto de muitas discussões, talvez exatamentepor seu caráter profundamente marcado pela intrín-seca relação com a dinâmica dos movimentos sociais.

Outra dificuldade para penetrar na problemáticado multiculturalismo se refere à polissemia do termo.A necessidade de adjetivá-lo evidencia essa realidade.Expressões como multiculturalismo conservador, libe-ral, celebratório, crítico, emancipador, revolucioná-rio podem ser encontradas na produção sobre o tema emultiplicam-se continuamente. Certamente são inúme-ras e diversificadas as concepções e vertentes multicul-turais. Muitos autores, tanto de perspectiva liberal quan-to de inspiração marxista,3 que levantam fortes

3 Duas excelentes sínteses dessas críticas podem ser encon-

tradas em: Santos e Nunes (2003) e em Torres (2001b).

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questionamentos teóricos e em relação ao seu papelna sociedade, não levam devidamente esse fato emconsideração ou, quando o fazem, referem-se a as-pectos mais superficiais, sem distinguir com maiorprofundidade as diferentes posições, ou fazem gran-des generalizações.

Nesse sentido, considero imprescindível paraavançar na reflexão que estou fazendo explicitar aconcepção que privilegio ao tratar as questões susci-tadas hoje pelo multiculturalismo.

Considero que um primeiro passo nessa direçãoé distinguir duas abordagens fundamentais: uma des-critiva e outra prescritiva. A primeira afirma ser omulticulturalismo uma característica das sociedadesatuais. Vivemos em sociedades multiculturais. Pode-mos afirmar que as configurações multiculturais de-pendem de cada contexto histórico, político e sociocul-tural. O multiculturalismo na sociedade brasileira édiferente daquele das sociedades européias ou da so-ciedade estadunidense. Nesse sentido, enfatizam-se adescrição e a compreensão da construção da forma-ção multicultural de cada contexto específico. A pers-pectiva prescritiva entende o multiculturalismo nãosimplesmente como um dado da realidade mas comouma maneira de atuar, de intervir, de transformar adinâmica social. Trata-se de um projeto, de um modode trabalhar as relações culturais numa determinadasociedade e de conceber políticas públicas nessa di-reção. Uma sociedade multicultural constrói-se a partirde determinados parâmetros.

Dessa forma, é necessário distinguir as diferentesconcepções que podem inspirar essa construção. Mui-tos têm sido os autores que têm oferecido indicaçõesnessa linha e enumerado uma grande quantidade detipos de abordagens multiculturais. No contexto do pre-sente trabalho, vou-me referir unicamente a três pers-pectivas que considero fundamentais e que estão nabase das diversas propostas: o multiculturalismoassimilacionista, o multiculturalismo diferencialista oumonoculturalismo plural e o multiculturalismointerativo, também denominado interculturalidade.

A abordagem assimilacionista parte da afirma-ção de que vivemos numa sociedade multicultural,

no sentido descritivo. Nessa sociedade multiculturaltodos não têm as mesmas oportunidades; não existeigualdade de oportunidades. Há grupos, como os in-dígenas, negros, homossexuais, pessoas oriundas dedeterminadas regiões geográficas do próprio país oude outros países e de classes populares e/ou com bai-xos níveis de escolarização, que não têm o mesmoacesso a determinados serviços, bens, direitos funda-mentais que têm outros grupos sociais, em geral, declasse média ou alta, brancos e com altos níveis deescolarização. Uma política assimilacionista – pers-pectiva prescritiva – favorece que todos se integremna sociedade e sejam incorporados à cultura hegemô-nica. No entanto, não se mexe na matriz da socieda-de, procura-se assimilar os grupos marginalizados ediscriminados aos valores, mentalidades, conhecimen-tos socialmente valorizados pela cultura hegemôni-ca. No caso da educação, promove-se uma política deuniversalização da escolarização, todos são chama-dos a participar do sistema escolar, mas sem que secoloque em questão o caráter monocultural presentena sua dinâmica, tanto no que se refere aos conteúdosdo currículo quanto às relações entre os diferentesatores, às estratégias utilizadas nas salas de aula, aosvalores privilegiados etc. Simplesmente os que nãotinham acesso a esses bens e a essas instituições sãoincluídos nelas tal como elas são. Essa posição de-fende o projeto de construir uma cultura comum e,em nome dele, deslegitima dialetos, saberes, línguas,crenças, valores “diferentes”, pertencentes aos gru-pos subordinados, considerados inferiores explícitaou implicitamente. Segundo McLaren, “um pré-re-quisito para juntar-se à turma é desnudar-se,desracializar-se, e despir-se de sua própria cultura”(1997, p. 115).

Uma segunda concepção pode ser denominadamulticulturalismo diferencialista ou, segundo AmartyaSen (2006), monocultura plural. Essa abordagem parteda afirmação de que, quando se enfatiza a assimila-ção, se termina por negar a diferença ou por silenciá-la. Propõe então colocar a ênfase no reconhecimentoda diferença e, para garantir a expressão das diferen-tes identidades culturais presentes num determinado

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contexto, garantir espaços em que estas se possamexpressar. Afirma-se que somente assim os diferen-tes grupos socioculturais poderão manter suas matri-zes culturais de base. Algumas das posições nessa li-nha terminam por ter uma visão estática e essencialistada formação das identidades culturais. É então enfa-tizado o acesso a direitos sociais e econômicos e, aomesmo tempo, é privilegiada a formação de comuni-dades culturais homogêneas com suas próprias orga-nizações – bairros, escolas, igrejas, clubes, associa-ções etc. Na prática, em muitas sociedades atuaisterminou-se por favorecer a criação de verdadeirosapartheids socioculturais.

Essas duas posições são as mais desenvolvidasnas sociedades em que vivemos. Algumas vezes con-vivem de maneira tensa e conflitiva. São elas que, emgeral, são focalizadas nas polêmicas sobre a proble-mática multicultural. No entanto, situo-me na tercei-ra perspectiva, que propõe um multiculturalismo aber-to e interativo, que acentua a interculturalidade, porconsiderá-la a mais adequada para a construção desociedades, democráticas e inclusivas, que articulempolíticas de igualdade com políticas de identidade.

A perspectiva intercultural

Algumas características especificam essa pers-pectiva. Uma primeira, que considero básica, é a pro-moção deliberada da inter-relação entre diferentesgrupos culturais presentes em uma determinada so-ciedade. Nesse sentido, essa posição situa-se em con-fronto com todas as visões diferencialistas que favo-recem processos radicais de afirmação de identidadesculturais específicas, assim como com as perspecti-vas assimilacionistas que não valorizam a explicita-ção da riqueza das diferenças culturais.

Em contrapartida, rompe com uma visão essen-cialista das culturas e das identidades culturais. Con-cebe as culturas em contínuo processo de elaboração,de construção e reconstrução. Certamente cada cul-tura tem suas raízes, mas essas raízes são históricas edinâmicas. Não fixam as pessoas em determinadopadrão cultural.

Uma terceira característica está constituída pelaafirmação de que nas sociedades em que vivemos osprocessos de hibridização cultural são intensos emobilizadores da construção de identidades abertas,em construção permanente, o que supõe que as cultu-ras não são puras. Sempre que a humanidade preten-deu promover a pureza cultural e étnica, as conse-qüências foram trágicas: genocídio, holocausto,eliminação e negação do outro. A hibridização cultu-ral é um elemento importante para levar em conside-ração na dinâmica dos diferentes grupos sociocultu-rais.

A consciência dos mecanismos de poder quepermeiam as relações culturais constitui outra carac-terística dessa perspectiva. As relações culturais nãosão relações idílicas, não são relações românticas;estão construídas na história e, portanto, estão atra-vessadas por questões de poder, por relações forte-mente hierarquizadas, marcadas pelo preconceito epela discriminação de determinados grupos.

Uma última característica que gostaria de assi-nalar diz respeito ao fato de não desvincular as ques-tões da diferença e da desigualdade presentes hoje demodo particularmente conflitivo, tanto no plano mun-dial quanto em cada sociedade. A perspectiva intercul-tural afirma essa relação, que é complexa e admitediferentes configurações em cada realidade, sem re-duzir um pólo ao outro.

A abordagem intercultural que assumo aproxi-ma-se do multiculturalismo crítico de McLaren(1997). O multiculturalismo crítico e de resistênciaparte da afirmação de que o multiculturalismo tem deser situado a partir de uma agenda política de trans-formação, sem a qual corre o risco de se reduzir aoutra forma de acomodação à ordem social vigente.Entende as representações de raça, gênero e classecomo produto das lutas sociais sobre signos e signifi-cações. Privilegia a transformação das relações so-ciais, culturais e institucionais em que os significa-dos são gerados. Recusa-se a ver a cultura comonão-conflitiva e argumenta que a diferença deve serafirmada “dentro de uma política de crítica e com-promisso com a justiça social” (p. 123).

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A perspectiva intercultural que defendo quer pro-mover uma educação para o reconhecimento do “ou-tro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociaise culturais. Uma educação para a negociação cultu-ral, que enfrenta os conflitos provocados pelaassimetria de poder entre os diferentes grupos so-cioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favo-recer a construção de um projeto comum, pelo qualas diferenças sejam dialeticamente integradas. A pers-pectiva intercultural está orientada à construção deuma sociedade democrática, plural, humana, que ar-ticule políticas de igualdade com políticas de identi-dade.

Para Catherine Walsh (2001, p. 10-11), a inter-culturalidade é

[...] um processo dinâmico e permanente de relação,

comunicação e aprendizagem entre culturas em condições

de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade.

Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, co-

nhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes,

buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua

diferença.

Um espaço de negociação e de tradução onde as desi-

gualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e

os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocul-

tos e sim reconhecidos e confrontados.

Uma tarefa social e política que interpela o conjunto

da sociedade, que parte de práticas e ações sociais concre-

tas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e

solidariedade.

Uma meta a alcançar.

Para essa autora, apesar de vários países latino-americanos terem introduzido a perspectiva intercul-tural nas reformas educativas, “não há um entendimentocomum sobre as implicações pedagógicas da intercul-turalidade, nem até que ponto nelas se articulam as di-mensões cognitiva, procedimental e atitudinal; ou opróprio, o dos outros e o social” (p. 12).

Essa autora, coordenadora do programa de dou-torado em Estudos Culturais Latino-Americanos daUniversidad Andina Simon Bolivar (sede Equador),

vem desenvolvendo trabalhos interessantes e inova-dores sobre a questão intercultural hoje na AméricaLatina, especialmente a partir da experiência dos paí-ses andinos. Afirma que:

O conceito de interculturalidade é central à (re)cons-

trução de um pensamento crítico – outro – um pensamento

crítico de/desde outro modo, precisamente por três razões

principais: primeiro porque está vivido e pensado desde a

experiência vivida da colonialidade [...]; segundo, porque

reflete um pensamento não baseado nos legados eurocên-

tricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua

origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica domi-

nante do conhecimento que tem tido seu centro no norte

global. (Walsh, 2005, p. 25)

Considero importante neste momento retomar odiálogo com Boaventura Sousa Santos. Para esse au-tor, as premissas anteriormente enumeradas constituema base de um diálogo intercultural, imprescindível paraa ressignificação dos direitos humanos a partir das ques-tões colocadas pelo multiculturalismo. Esse diálogo vaiexigir o desenvolvimento do que ele denomina umahermenêutica diatópica, assim concebida:

A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que

os topoi4 de uma dada cultura, por mais fortes que sejam,

são tão incompletos quanto a própria cultura a que perten-

cem [...]. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, po-

rém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas,

pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de

incompletude mútua através de um diálogo que se desenro-

la, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra.

Nisto reside seu caráter diatópico. (Santos, 2006, p. 448)

A luta pelos direitos humanos hoje supõe o exer-cício do diálogo intercultural que, por sua vez, exige

4 Para Santos (2006, p. 447) “os topoi são os lugares comuns

retóricos mas abrangentes de determinada cultura. Funcionam como

premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua

evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos”.

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Direitos humanos, educação e interculturalidade

Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 53

o exercício da hermenêutica diatópica. Esta constituiuma tarefa complexa e desafiante, que está dandoapenas seus primeiros passos. São poucos os autorese as iniciativas que se colocam nessa perspectiva. Aanálise da problemática dos direitos humanos e aspráticas sociais orientadas a trabalhá-las ainda estãoaprisionadas na matriz da modernidade. Além disso,as concepções dominantes sobre o diálogo intercul-tural situam-se, em geral, numa perspectiva liberal efocalizam com freqüência as interações entre diferen-tes grupos socioculturais de modo superficial, semenfrentar a temática das relações de poder que as per-passam.

Interculturalidade e educação em direitoshumanos: principais desafios

Em diferentes trabalhos e pesquisas realizadosnos últimos anos (Candau, 1997a, 1997b, 2000a,2000b, 2002, 2003, 2004a, 2004b, 2005, 2006; Candau& Moreira, 2003), tenho procurado identificar e enu-merar alguns dos desafios que temos de enfrentar sequisermos promover uma educação intercultural emperspectiva crítica e emancipatória, que respeite epromova os direitos humanos e articule questões re-lativas à igualdade e à diferença. Eles apresentam umcaráter inicial e exploratório e querem situar-se emdiálogo com a proposta do professor BoaventuraSousa Santos.

Foram agrupados em torno de determinados nú-cleos que considero fundamentais.

O primeiro está relacionado à necessidade dedesconstrução. Para a promoção de uma educaçãointercultural é necessário penetrar no universo de pre-conceitos e discriminações que impregna – muitasvezes com caráter difuso, fluido e sutil – todas as re-lações sociais que configuram os contextos em quevivemos. A “naturalização” é um componente que fazem grande parte invisível e especialmente complexaessa problemática. Promover processos de desnatu-ralização e explicitação da rede de estereótipos e pré-conceitos que povoam nossos imaginários individuaise sociais em relação aos diferentes grupos sociocul-

turais é um elemento fundamental sem o qual é im-possível caminhar. Outro aspecto imprescindível équestionar o caráter monocultural e o etnocentrismoque, explícita ou implicitamente, estão presentes naescola e nas políticas educativas e impregnam os cur-rículos escolares; é perguntar-nos pelos critérios uti-lizados para selecionar e justificar os conteúdos es-colares, é desestabilizar a pretensa “universalidade”dos conhecimentos, valores e práticas que configu-ram as ações educativas.

Um segundo núcleo de preocupações relaciona-se à articulação entre igualdade e diferença no níveldas políticas educativas, assim como das práticas pe-dagógicas. Essa preocupação supõe o reconhecimen-to e a valorização das diferenças culturais, dos diver-sos saberes e práticas e a afirmação de sua relaçãocom o direito à educação de todos/as. Reconstruir oque consideramos “‘comum” a todos e todas, garan-tindo que nele os diferentes sujeitos socioculturais sereconheçam, assegurando, assim, que a igualdade seexplicite nas diferenças que são assumidas como re-ferência comum, rompendo, dessa forma, com o ca-ráter monocultural da cultura escolar.

Quanto ao terceiro núcleo, ele vincula-se ao res-gate dos processos de construção das identidades cul-turais, tanto no nível pessoal como coletivo. Um ele-mento fundamental nessa perspectiva são as históriasde vida e da construção de diferentes comunidadessocioculturais. É muito importante esse resgate dashistórias de vida, tanto pessoais quanto coletivas, eque elas possam ser contadas, narradas, reconheci-das, valorizadas como parte de processo educacional.Além disso, deve ser dada especial atenção aos as-pectos relativos à hibridização cultural e à constitui-ção de novas identidades culturais. É importante quese opere com um conceito dinâmico e histórico decultura, capaz de integrar as raízes históricas e as no-vas configurações, evitando uma visão das culturascomo universos fechados e em busca do “puro”, do“autêntico” e do “genuíno”, como uma essência prees-tabelecida e um dado que não está em contínuo movi-mento. Esse aspecto relaciona-se também ao reconhe-cimento e à promoção do diálogo entre os diferentes

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Vera Maria Candau

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saberes, conhecimentos e práticas dos diferentes gru-pos culturais.

Um último núcleo tem como eixo fundamentalpromover experiências de interação sistemática comos “outros”: para sermos capazes de relativizar nossaprópria maneira de situar-nos diante do mundo e atri-buir-lhe sentido, é necessário que experimentemosuma intensa interação com diferentes modos de vivere expressar-se. Não se trata de momentos pontuais,mas da capacidade de desenvolver projetos que su-ponham uma dinâmica sistemática de diálogo e cons-trução conjunta entre diferentes pessoas e/ou gruposde diversas procedências sociais, étnicas, religiosas,culturais etc. Exige romper toda tendência à guetifi-cação presente também nas instituições educativas esupõe um grande desafio para a educação. Exige tam-bém reconstruir a dinâmica educacional. A educaçãointercultural não pode ser reduzida a algumas situa-ções e/ou atividades realizadas em momentos especí-ficos nem focalizar sua atenção exclusivamente emdeterminados grupos sociais. Trata-se de um enfoqueglobal que deve afetar todos os atores e todas as di-mensões do processo educativo, assim como os dife-rentes âmbitos em que ele se desenvolve. No que dizrespeito à escola, afeta a seleção curricular, a organi-zação escolar, as linguagens, as práticas didáticas, asatividades extraclasse, o papel do/a professor/a, a re-lação com a comunidade etc.

Outro elemento de especial importância refere-se a favorecer processos de “empoderamento”, prin-cipalmente orientados aos atores sociais que histori-camente tiveram menos poder na sociedade, ou seja,tiveram menores possibilidades de influir nas deci-sões e nos processos coletivos. O “empoderamento”começa por liberar a possibilidade, o poder, a potên-cia que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeitode sua vida e ator social. O “empoderamento” temtambém uma dimensão coletiva, trabalha com gru-pos sociais minoritários, discriminados, marginaliza-dos etc., favorecendo sua organização e sua partici-pação ativa na sociedade civil. As ações afirmativassão estratégias orientadas ao “empoderamento”. Tan-to as concebidas no sentido restrito quanto as que se

situam num enfoque amplo, desenvolvem estratégiasde fortalecimento do poder de grupos marginalizadospara que estes possam lutar pela igualdade de condi-ções de vida em sociedades marcadas por mecanis-mos estruturais de desigualdade e discriminação. Têmno horizonte promover transformações sociais. Nes-se sentido, são necessárias para que se corrijam asmarcas da discriminação construída ao longo da his-tória. Visam melhores condições de vida para os gru-pos marginalizados, a superação do racismo, da dis-criminação de gênero, da discriminação étnica ecultural, assim como das desigualdades sociais. Ou-tro aspecto fundamental é a formação para uma cida-dania aberta e interativa, capaz de reconhecer asassimetrias de poder entre os diferentes grupos cultu-rais e de trabalhar os conflitos e promover relaçõessolidárias.

O desenvolvimento de uma educação intercultu-ral na perspectiva apresentada neste texto é uma ques-tão complexa, atravessada por tensões e desafios.Exige problematizar diferentes elementos do modocomo hoje, em geral, concebemos nossas práticaseducativas e sociais. As relações entre direitos huma-nos, diferenças culturais e educação colocam-nos nohorizonte da afirmação da dignidade humana nummundo que parece não ter mais essa convicção comoreferência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmaruma perspectiva alternativa e contra-hegemônica deconstrução social, política e educacional.

A perspectiva intercultural quer promover umaeducação para o reconhecimento do outro, o diálogoentre os diferentes grupos socioculturais. Uma edu-cação para a negociação cultural, o que supõe exerci-tar o que Santos denomina hermenêutica diatópica.A perspectiva intercultural está orientada à constru-ção de uma sociedade democrática, plural, humana,que articule políticas de igualdade com políticas deidentidade.

Termino com umas palavras de Boaventura SousaSantos (2006), referidas à complexidade e às dificul-dades para uma ressignificação dos direitos humanos,para uma concepção intercultural das políticas eman-cipatórias de direitos humanos:

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Direitos humanos, educação e interculturalidade

Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 55

Este projeto pode parecer bastante utópico. É, certa-

mente, tão utópico quanto o respeito universal pela digni-

dade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma

exigência ética séria. Como disse Sartre, antes de concreti-

zada, uma idéia apresenta uma estranha semelhança com a

utopia. Nos tempos que correm, o importante é não reduzir

a realidade apenas ao que existe. (p. 470)

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VERA MARIA FERRÃO CANDAU realizou estudos de

pós-graduação em pedagogia e filosofia na Universidade Católi-

ca de Louvain (Bélgica) e o doutorado e o pós-doutorado na

Universidad Complutense de Madrid (Espanha). É atualmente

professora titular do Departamento de Educação da Pontifícia Uni-

versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), membro do Co-

mitê Nacional de Educação em Direitos Humanos e consultora

de diferentes órgãos de fomento à pesquisa e à pós-graduação.

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Vera Maria Candau

Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008

Principais publicações: Magistério: construção cotidiana (Rio

de Janeiro: Vozes, 1997); Reinventar a escola (Rio de Janeiro:

Vozes, 2000); Educar em direitos humanos, construir cidadania

(Rio de Janeiro: DP&A, 2000); Escola e violência (Rio de Janei-

ro: DP&A, 2001); Sociedade, educação e cultura(s) (Rio de Ja-

neiro: Vozes, 2002); Discriminación, sociedad y escuela en

America Latina (Bolivia: Runa, 2002); Cultura(s) e educação (Rio

de Janeiro: DP&A, 2005); Educação intercultural e cotidiano

escolar (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006). Coordena, desde 1996,

o Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s)

(GECEC), no qual está desenvolvendo, desde 2006, com auxílio

do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-

lógico (CNPq), a pesquisa “Multiculturalismo, direitos humanos

e educação: a tensão entre igualdade e diferença”. E-mail:

[email protected]

Recebido em setembro de 2007

Aprovado em novembro de 2007

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Resumos/Abstracts/Resumens

Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008 185

la represión del deseo sexual entrepadre e hijo y la proyección de ladiferencia sexual para los “Otros”.Las razones para la reconstrucción deesa escena sobre la raza en Occidenteson curriculares. Ella tiene comoobjetivo, que los profesores puedanentender las formas continuas ymutantes del racismo blanco.Palabras claves: currículo; raza;sexualidad; gay studies

Vera Maria Candau

Direitos humanos, educação einterculturalidade: as tensões entreigualdade e diferençaO artigo apresenta algumas questõesrelativas à importância da(s) cultura(s)no momento atual. Discute a relevânciado discurso dos direitos humanos nessecontexto, tendo como principal interlo-cutor o sociólogo Boaventura SousaSantos. Analisa diferentes abordagensdo multiculturalismo. Assume a pers-pectiva intercultural, justificando suarelevância. Assinala alguns desafiosque considera de especial importânciapara trabalhar as relações entre educa-ção intercultural e direitos humanos.Palavras-chave: direitos humanos;multiculturalismo; educação intercultu-ral; igualdade; diferença

Human rights, education andinterculturality: tensions betweenequality and differenceThis article presents some questionsrelated to the importance of culture inthe present moment. It discusses therelevance of the human rights discoursewithin this context, taking as its maininterlocutor the sociologist BoaventuraSousa Santos. It analyses differentapproaches to multiculturalism. Itjustifies the relevance of theintercultural perspective adopted andpoints to challenges considered to be ofparticular importance for developingthe relationships between interculturaleducation and human rights.

Key words: human rights;multiculturalism; interculturaleducation; equality; difference

Derechos humanos, educación einterculturalidad: las tensiones entreigualdad y diferenciaEste artículo presenta algunascuestiones relativas a la problemáticade la(s) cultura(s) en el momentoactual. Discute la relevancia deldiscurso de los derechos humanos eneste contexto, teniendo comointerlocutor al sociólogo BoaventuraSousa Santos. Analiza distintosenfoques del multiculturalismo. Asumela perspectiva intercultural y justificaesta opción. Señala algunos desafíosque considera importantes para que setrabajen en las relaciones entreeducación intercultural y derechoshumanos.Palabras claves: derechos humanos;multiculturalismo; educaciónintercultural; igualdad; diferencia

Bernardete A. Gatti

Análise das políticas públicas paraformação continuada no Brasil, naúltima décadaEsse artigo discute a forma como pro-cessos de educação continuada, presen-ciais ou a distância, têm sido imple-mentados no contexto das políticaseducacionais da União, de estados emunicípios, na última década. Mostra amultiplicidade de iniciativas desenvol-vidas em diferentes modalidades meto-dológicas, visando variados tipos deformação, com foco em professores dediversos níveis de ensino e suas espe-cialidades. Coloca a questão no contex-to internacional pela exposição de vá-rios documentos de organismosinternacionais. Discute o papel da le-gislação brasileira, o impulso que pro-piciou às iniciativas de educação conti-nuada no Brasil, os problemas queemergiram e as novas legislaçõesemergentes.

Palavras-chave: educação continuada;política educacional; legislação educa-cional; formação de professores; edu-cação a distância

Analysis of public policies for in-service teacher training in Brazil, onthe last decadeThis article discusses the way in whichprocesses of continuing in-service ordistance education have beenimplemented in the context ofeducational policies developed by theUnion, states and municipalities in thelast decade in Brazil. It presents themultiplicity of initiatives developedemploying different methodologies andoffering diverse kinds of training, witha focus on teachers in different levelsand teaching specialties. It situates thequestion in the international context bymeans of an analysis of documentsproduced by different internationalorganisations. It discusses the role ofBrazilian legislation, the impulsewhich favoured initiatives ofcontinuing education in Brazil, theproblems which emerged and theemerging new legislation.Key words: continuing education;educational policy; educationallegislation; training of teachers;distance education

Análisis de las políticas públicaspara la formación continua enBrasil, en la última décadaEste artículo discute la forma comoprocesos de educación continua,presenciales o a distancia, han sidoimplementados en el contexto de laspolíticas educacionales de la Unión, delos estados y municipios, en la últimadécada. Muestra la multiplicidad deiniciativas desarrolladas en diferentesmodalidades metodológicas,intentando variados tipos deformación, con foco en profesores dediversos niveles de enseñanza y susespecialidades. Coloca la cuestión enel contexto internacional a través de la

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