veja especial papa

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SAO FRANCISCO DE ASSIS A homenagem ao santo pobre constitui uma carta de intenções do papado Bergoglio mantinha hábitos espar- tanos. Sua rotina de trabalho começava às 4 e meia da manhã e terminava às 9 horas da noite. Morava sozinho, em um apartamento no 2 o andar do edifício da arquidiocese, ao lado da Catedral de Buenos Aires, na Praça de Maio. Fazia sua própria comida. Andava de ônibus e de metro. Ao ser nomeado cardeal, não comprou batina nova — pediu que lhe fosse dada a de seu antecessor, An- tonio Quarracino, mono havia três anos. E propôs aos fiéis desejosos de vir à Itália, para acompanhar a entrega do chapéu cardinalício, que doassem aos pobres o dinheiro destinado à via- gem. Esteve no Brasil em 2007, para a 5 a Conferência do Episcopado Latino- Americano e do Caribe, realizada em Aparecida, durante a visita de Bento XVI. É um dos que assinam o docu- mento final do encontro, com fone mensagem evangelizadora: "Não mais esperar que o povo vá à Igreja, mas le- var a Igreja até o povo". O primeiro amálgama entre o pastor e os fiéis é, como se viu na noite de 13 de março, a oração. Fazia tempo que não se rezava um Pai-Nosso e uma Ave-Maria de for- ma tão unida e fervorosa na Praça de São Pedro. O cardeal Bergoglio desembarcou em Roma duas semanas antes do início do conclave. Não usou o carro do Vati- cano à sua disposição. Ia a pé para a Santa Sé, onde se desenrolaram as con- gregações-gerais—mas, convenhamos, é um prazer andar em Roma. Aos 76 anos, parecia velho demais para enfren- tar o jogo pesado imposto por uma Cú- ria corrupta e pervertida. Em 2005, no entanto, ele foi o principal oponente de Ratzinger, nas quatro votações do con- clave vencido pelo ex-alemão — e esse ponto não passou despercebido aos car- deais que o elegeram. Deram a vez ao homem que poderia ter sido papa oi- to anos. VEJA apurou que, na primeira das cinco votações, os votos se distribuí- ram entre vários nomes. Na segunda, três candidatos se destacaram: Bergo- glio, o italiano Angelo Scola, conside- rado o favorito, e o canadense Mare Ouellet, outra opção citada ao nome lançado pela Cúria, o do brasileiro Odi- lo Scherer. A vantagem de Bergoglio consolidou-se no terceiro escrutínio. No quinto, ele obteve um "grande con- senso". A Capela Sistina explodiu em aplausos quando se atingiu o mínimo de dois terços dos votos, 77 de 115. Um dos principais articuladores da candida- tura vitoriosa foi Óscar Maradiaga, de Honduras. "Caros irmãos, que Deus lhes perdoe", disse o papa Francisco. Que tenham feito a escolha certa. veja | 20 DE MARÇO, 2013 | 69

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Page 1: Veja Especial Papa

SAO FRANCISCO DE ASSIS A homenagem ao santo pobre constitui uma carta de intenções do papado

Bergoglio mantinha hábitos espar­tanos. Sua rotina de trabalho começava às 4 e meia da manhã e terminava às 9 horas da noite. Morava sozinho, em um apartamento no 2 o andar do edifício da arquidiocese, ao lado da Catedral de Buenos Aires, na Praça de Maio. Fazia sua própria comida. Andava de ônibus e de metro. Ao ser nomeado cardeal, não comprou batina nova — pediu que lhe fosse dada a de seu antecessor, An­tonio Quarracino, mono havia três anos. E propôs aos fiéis desejosos de vir à Itália, para acompanhar a entrega do chapéu cardinalício, que doassem aos pobres o dinheiro destinado à via­gem. Esteve no Brasil em 2007, para a 5 a Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizada em Aparecida, durante a visita de Bento X V I . É um dos que assinam o docu­mento final do encontro, com fone

mensagem evangelizadora: "Não mais esperar que o povo vá à Igreja, mas le­var a Igreja até o povo". O primeiro amálgama entre o pastor e os fiéis é, como se viu na noite de 13 de março, a oração. Fazia tempo que não se rezava um Pai-Nosso e uma Ave-Maria de for­ma tão unida e fervorosa na Praça de São Pedro.

O cardeal Bergoglio desembarcou em Roma duas semanas antes do início do conclave. Não usou o carro do Vati­cano à sua disposição. Ia a pé para a Santa Sé, onde se desenrolaram as con-gregações-gerais—mas, convenhamos, é um prazer andar em Roma. Aos 76 anos, parecia velho demais para enfren­tar o jogo pesado imposto por uma Cú­ria corrupta e pervertida. Em 2005, no entanto, ele foi o principal oponente de Ratzinger, nas quatro votações do con­clave vencido pelo ex-alemão — e esse

ponto não passou despercebido aos car­deais que o elegeram. Deram a vez ao homem que poderia ter sido papa há oi­to anos. VEJA apurou que, na primeira das cinco votações, os votos se distribuí­ram entre vários nomes. Na segunda, três candidatos se destacaram: Bergo­glio, o italiano Angelo Scola, conside­rado o favorito, e o canadense Mare Ouellet, outra opção citada ao nome lançado pela Cúria, o do brasileiro Odi-lo Scherer. A vantagem de Bergoglio consolidou-se no terceiro escrutínio. No quinto, ele obteve um "grande con­senso". A Capela Sistina explodiu em aplausos quando se atingiu o mínimo de dois terços dos votos, 77 de 115. Um dos principais articuladores da candida­tura vitoriosa foi Óscar Maradiaga, de Honduras. "Caros irmãos, que Deus lhes perdoe", disse o papa Francisco. Que tenham feito a escolha certa. •

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»apa • AS IDEIAS

O MUNDO E A FE SEGUNDO BERGOGLIO Como arcebispo de Buenos Aires, o novo pontífice refletiu com clareza — e simplicidade até exagerada — sobre questões fundamentais do cotidiano

ABORTO é é O problema moral do aborto é de natureza pré-religiosa. No momento da concepção está o código genético da pessoa. Al i já existe um ser humano. Separo o tema do aborto de qualquer concepção religiosa. É um problema científico. Não permitir o desenvolvimento de um ser que já dispõe do código genético de um sçr humano não é ético. Abortar é matar alguém que não pode se defender. f¥

ATEÍSMO ééQuando eu me encontro com pessoas ateias, compartilho com elas as questões humanas, mas não coloco logo de cara em discussão a questão de Deus, exceto se elas me incitam a isso. Quando isso ocorre, eu explico a elas por que creio. (...) Não pretendo fazer proselitismo — eu as respeito e me mostro como sou. (...) Não tenho nenhum tipo de reticências. Não diria que um ateu está condenado porque estou convencido de que não tenho o direito de julgar sua honestidade — sobretudo se ele tiver virtudes, aquelas que engrandecem as pessoas. De toda forma, conheço mais gente agnóstica do que ateia. O agnóstico duvida; o ateu está convencido. Temos de ser coerentes com a mensagem que recebemos da Bíblia: todo homem é a imagem de Deus, seja ele crente ou não. Por essa única razão, tem uma série de virtudes, qualidades, grandezas. Caso tenha baixezas, como eu também as tenho, podemos compartilhá-las para nos ajudarmos mutuamente a superá-las. 99

CIÊNCIA 66A ciência tem sua autonomia, que deve ser respeitada e encorajada. Não se deve interferir na autonomia dos cientistas. Exceto se extrapolarem seu campo de atuação e se envolverem com o transcendente. A ciência é fundamentalmente instrumento do mandato de Deus, que disse: Tenham muitos e muitos filhos, espalhem-se por toda a terra e a dominem'. Dentro de sua autonomia, a ciência transforma a incultura em cultura. Mas cuidado: quando a autonomia da ciência não põe limites a si mesma e vai além. ela pode sair das mãos de sua própria criação. É o mito de Frankenstein. 99

CRENÇA mA Igreja defende a autonomia das questões humanas. Uma autonomia saudável é uma laicidade saudável, em que se respeitam as diferentes competências. A Igreja não vai dizer aos médicos como devem realizar uma operação. O que não é bom é o laicismo militante, aquele que toma uma posição antitranscendental ou exige que o religioso não saia da sacristia. A Igreja dá os valores, e os outros que façam o resto. 93

DEUS 66 Ao homem de hoje lhe diria que faça a experiência de entrar na intimidade para conhecer a experiência, o rosto de Deus. Por isso me agrada tanto o que disse Jó depois de sua dura experiência e de diálogos que não lhe esclareceram nada: 'Antes eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te vejo com meus próprios olhos'. Ao homem, digo que não conheça a Deus de ouvidos. O Deus vivo é aquele que se vê com seus olhos, dentro de seu coração, f f

DIVÓRCIO 66A discussão em torno do divórcio é diferente daquela do matrimónio de pessoas do mesmo sexo. A Igreja sempre repudiou a lei do divórcio, mas há antecedentes antropológicos distintos neste caso. (...) É um valor muito forte no catolicismo o casamento até que a morte os separe. Hoje, contudo, na doutrina católica, lembra-se a seus fiéis divorciados e recasados que eles não estão excomungados — ainda que vivam em uma situação à margem do que exigem a indissolubilidade matrimonial e o sacramento do matrimónio — e é pedido a eles que participem da vida paroquial, f f

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IGREJA 66 Uma coisa boa que aconteceu com a Igreja foi a perda dos Estados Pontifícios, porque deixa claro que a única posse do papa é meio quilómetro quadrado. Mas, quando o papa era rei temporal e rei espiritual, aí se misturavam as intrigas de corte e tudo isso. Agora não se misturam? Sim, ainda existe isso, porque existe ambição em homens da Igreja, existe — lamentavelmente — pecado de carreirismo. Somos humanos e nos tentamos, temos de estar muito atentos para cuidar da unção que recebemos, porque ela é um presente de Deus. As disputas pelo poder, que existiram e existem na Igreja, se devem a nossa condição humana. Mas, nesse momento, a pessoa deixa de ser eleita para o serviço e se converte em uma pessoa que escolhe viver como quer e se mistura com o lixo interior.?^

66 Um líder religioso pode ser muito fone, muito firme, mas isso sem exercer a agressão. Jesus disse que aquele que manda deve ser como aquele que serve. Para mim, essa ideia é válida para a pessoa religiosa de qualquer credo. O verdadeiro poder de uma liderança religiosa vem de seu serviço. Quando deixa de servir, o religioso se transforma em um mero gestor, em um agente de ONG. O líder religioso compartilha, sofre, serve a seus irmãos.**

PEDOFILIA Sé Que o celibato traga como consequência a pedofilia está descartado. Mais de 70% dos casos de pedofilia se dão no entorno familiar e na vizinhança:

avôs, tios, padrastos e vizinhos. O problema não está vinculado ao celibato. Se um padre é pedófilo, ele o é antes de ser padre. Agora, quando isso ocone, jamais se deve fazer vista grossa. Não se pode estar em uma posição de poder e destruir a vida de outra pessoa. (...) Não creio em posições que pleiteiam sustentar ceno espírito corporativo para evitar danos à imagem da instituição. Esta solução creio que

foi proposta certa vez nos Estados Unidos: mudar os padres de paróquia. Isso e' uma estupidez porque, dessa forma, o padre

leva o problema na bagagem. A reação corporativa leva a tal consequência, por isso não concordo com essas medidas.

Recentemente, na Irlanda, foram revelados casos após vinte anos, e o papa disse claramente: 'Tolerância zero com este crime'. Admiro a valentia e a retidão de Bento X V I sobre esse assunto.ff

é é A vida crista também é uma espécie de atletismo, de disputa, de corrida, em que é preciso se desvencilhar das coisas que nos separam de Deus. Além disso, quero salientar que uma questão &o demónio e outra

é demonizar as coisas ou as pessoas. O homem está sob tentação constante, mas não é por isso que temos de demonizá-lo.ff

UNIÃO HOMOSSEXUAL ééNão sejamos ingénuos: não se trata de uma simples luta política. Pretende-se a destruição do plano de Deus. É uma jogada do pai da mentira para confundir e enganar os filhos de Deus.ff

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Papa 1 A ORDEM RELIGIOSA

A TROPA DE CHOQUE DA IGREJA Fundada no século XVI por Inácio de Loyola, um ex-militar espanhol, a Companhia de Jesus tem uma dedicação histórica à propagação da fé. Foi nessa disciplina missionária que se formou o papa Francisco

í J E R Ô N I M O TEIXEIRA

Bastaram alguns cartazes espalha­dos pôr Paris, em outubro de 1534, para lançar a cidade em um frenesi de violência religiosa. No

espírito provocador da Reforma, os pan­fletos denunciavam a falsidade da missa papal, atacando uma das bases doutriná­rias do catolicismo: a transubstanciação, na Eucaristia, do pão e do vinho em carne e sangue de Jesus. Em resposta, o rei Francisco I conduziu procissões solenes. Protestantes foram perseguidos, espanca­dos, mortos. Alguns foram queimados em frente à Catedral de Notre Dame. Pode-se supor que a tensão que eclodiu nesses episódios tenebrosos já estivesse latente dois meses antes, quando sete compa­nheiros de devoção, com idade entre 19 e 43 anos, se reuniram para uma cerimónia simples em uma capela do bairro de Montmartre. Mas a reunião se deu na mais disciplinada serenidade: o grupo fez votos de obediência à Igreja Católica, e Pierre Favre, o único que já havia sido ordenado padre, oficiou uma missa. Lan-çava-se ali a semente de um empreendi­mento monumental, que se desenvolveu nos cinco continentes e atravessou cinco séculos até alcançar, na semana passada, a consagração superlativa do papado. A Companhia de Jesus, ordem à qual per­tence o papa Francisco, dedicou-se sobre­tudo ao ensino e à propagação da fé. Da

China à África, do Canadá ao Paraguai, os jesuítas — como são chamados os membros da Companhia — levaram a cruz a todos os recantos do planeta. Se o espírito orientador da ordem serve como pista para a atuação do novo papa. pode-se esperar o compromisso missionário de propagar e defender a fé católica — e, se o esforço no século X V I era fazer frente aos reformadores Lutero e Calvino, ago­ra o desafio é conter a sangria que as igre­jas neopentecostais têm promovido no rebanho católico. Também se poderá pre­ver uma inabalável ortodoxia doutrinária: fundada por um ex-soldado. a Compa­nhia de Jesus exige disciplina férrea e obediência absoluta de seus membros.

Dois dos participantes do encontro em Paris foram consagrados como san­tos da igreja (Pierre Favre foi apenas beatificado): os espanhóis Francisco Xa­vier, um dos possíveis inspiradores do nome do novo papa — ao lado do óbvio Francisco de Assis —, e Inácio de Loyo­la. Missionário por excelência, Xavier levou sua pregação a Goa, possessão portuguesa na índia, à China e ao Japão. Mais do que a do companheiro Loyola, sua biografia mistura-se a histórias de milagres e portentos: um caranguejo le­ria certa vez lhe devolvido um crucifixo que caíra no mar, e consta que o cadáver « do santo — ele morreu na China, em 1 1552 — não se decompôs ao longo dos E quinze meses entre o falecimento e a I

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OBEDIENTE COMO UM CADÁVER Loyola (em vestes douradas) em quadro de Rubens: poma de lança da Comrarreforrna

chegada a Goa. Mas Inácio de Loyola é o fundador e o grande teórico da Com­panhia de Jesus. Nascido em 1491, na juventude ele se dedicou à carreira mili­tar, abreviada em um combate contra os franceses, em 1521, em Pamplona, quando uma bala de canhão dilacerou suas pernas. Na lenta e dolorosa conva­lescença, lendo obras devocionais sobre a vida de Cristo, Loyola decidiu consa­grar sua vida à fé. Seu empreendimento caiu nas boas graças do papa Paulo I I I , que deu a aprovação canónica à nova ordem, em 1540. Loyola foi o primeiro superior-geral dos jesuítas, e nesse pos­to morreu, em Roma, em 1556. Legou à ordem os Exercícios Espirituais — uma série de orações e meditações a ser se­guidas, com rigor, ao longo de um mês — e um código de disciplina estrito: o jesuíta deveria ser obediente "como um cadáver" (perinde ac cadáver; na fórmu­la latina). Outra citação célebre do santo recomenda que. se a Igreja disser que aquilo que vemos como branco é na ver­dade preto, se aceite o que a Igreja diz, por dever de obediência.

O combate ao protestantismo nas­cente nao estava na ordem imediata de prioridades de Inácio de Loyola. Os je­suítas, porém, logo ocuparam a linha de frente da Contrarreforma. "Nao há hoje nenhum instrumento erguido por Deus contra os hereges maior do que sua or­dem sagrada", dizia Gregório X I I I , papa de 1572 a 1585. A Companhia também foi a ponta de lança do catolicismo na colonização da América. Com ímpeto aventureiro, embrenhou-se nas matas, fundou colégios e povoações e conver­teu povos indígenas reunidos nas suas Reduções. "Esta terra é nossa empresa", disse Manuel da Nóbrega, chefe da pri­meira missão jesuíta no Brasil. Nóbrega e o companheiro de ordem José de An­chieta fundaram, em 1554, o colégio do Planalto de Piratininga, embrião da ci­dade de São Paulo. Os objetivos religio­sos dos jesuítas nem sempre coincidiam com as ambições terrenas dos europeus que se aventuravam na América selva­gem. Por se oporem à escravização dos índios, jesuítas como Nóbrega, Anchieta

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INIMIGOS NO PODER O marquês de Pombal expulsou os jesuítas de Portugal (no quadro abaixo, eles são recebidos com fogos na Itália): a Independência da Companhia era vista como ameaça petas monarquias europeias

e, já no século X V I I , Antônio Vieira an­daram às tunas com os colonos portu­gueses. Os jesuítas não tinham pruridos em reconer às armas quando necessário — na Guena dos Trinta Anos, houve inacianos que apontaram canhões para tropas protestantes —, mas, no geral, acreditavam na propagação da fé antes pela persuasão do que pela espada. Tam­bém se dedicavam a entender minima­mente a cultura dos povos que preten­diam catequizar: Anchieta aprendeu tu­pi, e o jesuíta italiano Matteo Ricci, missionário na China no fim do século X V I , foi o primeiro tradutor ocidental de Confúcio. Houve quem idealizasse essa propensão intelectual dos inacianos, vendo aí uma espécie de multiculturalis-mo avant la leme. Mas o fim último sempre foi o crescimento da Igreja: Ric­ci só se dedicou ao pensamento de Con­fúcio porque viu nele compatibilidades com o cristianismo; Anchieta e outros missionários na América só aprenderam línguas nativas porque isso era necessá­rio à catequese dos índios. Poderosos, numerosos, cultos, os jesuítas eram alvo de muito rancor, dentro e fora da Igreja, e não estranha que só agora um jesuíta

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Papa m A ORDEM RELIGIOSA

HERÓI CIVILIZADOR José de Anchieia, um dos fundadores de São Paulo: o jesuíta estudou tupi para catequizar os índios

MULTICULTURAIS Jesuítas (de preto) na corte de Akbar,

índia, no século XVI: ímpeto aventureiro

tenha chegado ao papado. Foram cos­tumeiramente associados a fantasiosas conspirações para assassinar monarcas. No século XV11I, os inimigos da ordem teriam seu momento de triunfo. Gover­nante de fato no reinado do débil José I . Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, considerava a ordem uma ameaça ao poder central da coroa — e a expulsou de Portugal e de suas colónias em 1759. Seguiu-se um decreto do mesmo teor na França, em 1764. Em 1773, finalmente, o papa Clemente XIV, sob pressão das monar­quias europeias, extinguiu a ordem. Catarina, a Grande, optou por ignorar a

determinação papal, e a Companhia de Jesus seguiu forte e atuante no império russo. A reabilitação efetiva dos jesuí­tas vi i iasó em 1814.

^QIoje?)sob o comando do superior-geraTSríolfo Nicolas, um espanhol, a Companhia de Jesus é a maior ordem da Igreja Católica, com cerca de 19000 membros em mais de 130 países. No mundo todo. administra 180 colégios e 200 universidades e faculdades (seis no Brasil). Em face das forças agressiva­mente temporais dos séculos XTX e XX. a Companhia teria reações variadas. Em consequência de sua adesão à Action Française, malogrado movimento de ex­

trema direita do entreguerras, o francês Louis Billot, um jesuíta, foi o único car­deal do século X X a ser forçado pela Igreja à renúncia. Na 11 Guerra, porém, houve jesuítas que protegeram judeus e foram mortos em campos de concentra­ção. O credo marxista da Teologia da Libertação teve sua penetração na ordem, que, no entanto, também abriga conser­vadores como Jorge Mário Bergoglio, agora papa Francisco. Sob essa aparente variedade, porém, estão as diretrizes que o ex-soldado Inácio de Loyola deitou no século X V I : disciplina, educação, ímpe­to missionário — prováveis linhas de força do novo papado. •

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Papa 1 A IGREJA NA POLÍTICA

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E AGORA, CRISTINA? Nestor considerava-o seu único verdadeiro opositor. Cristina herdou o crítico severo. Bergoglio se tomou papa, sabe muito bem quem são os Kirchner e não vai esquecer

0 NATHALIA WATKINS E

A N D R É ELER, DE BUENOS AIRES

verdadeiro representante da oposição." Foi assim que o ex-presidente argentino Nestor Kirchner definiu o arcebispo

de Buenos Aires, Jorge Mário Bergoglio — o agora papa Francisco. Em suas ho­milias dominicais na Catedral Metro­politana, Bergoglio mandava mensa­gens ásperas para os governantes na Casa Rosada. Distante das colunas que sustentam o frontispício da catedral.

porém, ele se revelava ainda mais incó­modo. Em um país onde a política é disputada nas trincheiras, reunia-se fre­quentemente com os principais líderes da oposição e setores marginalizados pelo governo. "O novo papa é o religio­so mais politizado que poderíamos ter", diz Julio Burdman, cientista político da Universidade de Belgrano, em Buenos Aires. "Ele é metade teólogo, metade político." As rusgas com o governo atingiram o ápice entre 2009 e 2010, quando a presidente Cristina Kirchner e o marido, Nestor, impulsionaram no

INIMIGOS CORDIAIS Criftimi cm o -.'íri.. í'"-:(\t>') R_ r\ , i r •:m-OúS. A ^ou-dd.

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Congresso uma lei do Partido Socialis­ta para regulamentar o casamento entre homossexuais. De alguns expoentes da oposição, ouvia-se que a iniciativa não passava de uma investida pessoal de Nestor para atingir seu rival de batina. O confronto entre o cardeal e o kirch-nerismo renasce agora com a nomea­ção de Bergoglio, apenas protocolar-mente comemorada por Cristina e já muito explicitamente politizada pela presidente.

Como arcebispo da capital, Bergo­glio liderou uma campanha nacional

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contra a lei pelo matrimónio homosse­xual, convocando os fiéis a protestar às portas do Congresso. Em uma cidade conhecida pelo liberalismo de seus costumes e por ser um dos principais destinos turísticos da comunidade gay. o cardeal ousou defender princípios que a Igreja considera imutáveis. "Aqui também está a inveja do Demónio, pe­la qual entrou o pecado no mundo, que arteiramente pretende destruir a ima­gem de Deus: homem e mulher que recebem a ordem de crescer, se multi­plicar e dominar a terra", escreveu, em

uma carta. Cristina rebateu dizendo que "o discurso dos líderes da Igreja parece do tempo das Cruzadas".

A relação com o casal presidencial já havia se transformado numa guerra surda em 2004. Um ano depois da posse de Nestor Kirchner, Bergoglio alertou, em uma homilia, para os riscos dos "anúncios estridentes" e do "exibicio­nismo", definindo, ainda bem cedo, o que viria a ser a essência do governo ar­gentino. Em 2005, Nestor, pouco afeito à religião, cancelou sua presença na missa que ocorre na catedral todo dia

25 de maio para celebrar a independên­cia do país. "Nosso Deus é de todos, mas cuidado que o diabo também chega a todos, aos que usam calças e aos que usam batina", disse o presidente, em uma mais do que explícita referência ao adversário. Três anos depois, quando os agricultores paralisaram as estradas contra uma lei que aumentava os im­postos sobre as exportações, Bergoglio sentou-se com os trabalhadores para, em seguida, pedir a Cristina que tivesse "um gesto de grandeza" que resolvesse o conflito. Não foi atendido.

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EMOÇÃO NA PARÓQUIA Fiéis na Catedral de Buenos Aires, na qual Bergoglio rezava missas, celebram a escolha do papa argentino

O episódio marcou a radicalização do kirchnerismo e deu início à perse­guição ao grupo de comunicações Cla-rín, crítico do governo. Em uma nação onde a oposição política foi reduzida a pó, o arcebispo foi uma das poucas vo­zes que insistiram em incomodar os ou­vidos dos Kirchner. Após a morte de Nestor, em 2010. Cristina, católica pra­ticante, retomou os contatos com a Igre­

ja. A iniciativa, mais o fato de ela ser, como o novo papa, contrária ao aborto, prenunciava uma trégua com o cardeal. Mas a votação sobre o casamento gay de novo os separou, e um velho assunto entrou em pauta para reforçar a discór­dia: a relação do governo com a comu­nidade judaica na Argentina, a maior da América Latina. Favorável ao diálogo entre as crenças, Bergoglio aproximou-se dos rabinos depois do atentado con­tra a Associação Mutual Israelita Ar­gentina (Amia), em 1994, que deixou 85 mortos e mais de 300 feridos no cen­tro de Buenos Aires. Cristina Kirchner

seguiu na direção oposta. Há dois me­ses, supostamente com o propósito de encontrar os responsáveis pelo atenta­do, ela formalizou com o Irã um acordo cujas condições favorecem muito mais o escamoteamento do que o esclareci­mento dos fatos e a punição dos culpa­dos. Até agora, as investigações apon­tam para a autoria do grupo radical liba­nês xiita Hezbollah, financiado pelos iranianos. "Estes últimos dias têm sido difíceis para Cristina", diz o cientista político argentino Orlando D'Adamo, do Centro de Opinião Pública da Uni­versidade de Belgrano. "Há duas sema-

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ELE LAVOU AS MÃOS?

nas. ela perdeu seu maior aliado, Hugo Chavez. Agora viu seu opositor tomar-se papa."

Em Roma, a intromissão do novo papa em temas mundanos deve arrefe­cer — como arrefeceu o poder temporal desde a Reforma Protestante, que redu­ziu os limites do papado na Europa, e o surgimento de movimentos como o Re­nascimento e o Iluminismo, que favore­ceram a razão e enfraqueceram os pila­res do poder divino. Mesmo assim, são diversos os exemplos de representantes da Igreja que se imiscuíram no jogo do poder nas últimas décadas.

A acusação de que o cardeal Bergo­glio entregou à ditadura militar

argentina dois padres acusados de subversão tem poucos elementos que a sustentam, muitos que a enfraque­cem e pelo menos um que ajuda a fazer com que a sua discussão seja obscurecida pela paixão. Em 1976, os jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics foram presos e levados para a Escola Superior de Mecânica da Armada, que de superior mesmo tinha apenas o em­prego de técnicas de tortura. Yorio e Jalics ficaram seis meses presos, foram tortu­rados mas escaparam da morte, destino de 150 outros religiosos assassinados pelo regime entre 1976 e 1983.

Jalics, que hoje vive na Alemanha, relata em um livro que, pouco antes de sua prisão, pediu a "um homem" que fizesse saber aos militares que ele e Yorio não eram terroristas. Esse homem, cujo nome ele não revela, teria descum-prido a promessa e feito "uma falsa denúncia" sobre eles aos militares. A conclusão de que esse homem seria Bergoglio é de Horácio Verbistky, um jornalista que trabalhava ao mesmo tempo para os esquerdistas e para os militares. Horácio diz ter tido acesso a uma carta que Yorio man­dara a um amigo antes de morrer em que ele acusa Bergoglio.

Alice Oliveira, mi­litante de direitos hu­manos e ex-juíza, é uma das testemunhas isentas que absolvem Bergoglio da acusa­ção. Na biografia que escreveu sobre o car­deal, O Jesuíta, o jor-

PEDIDO AO GENERAL Bergoglio diz ter intercedido junto a Videla (na foto,

numa missa em 1975) pelos jesuítas presos

nalista Sergio Rubin conta que durante o regime militar Bergoglio protegeu alu­nos e deu os próprios documentos de identidade a um estudante parecido com ele para que escapasse pela Trí­plice Fronteira. Bergoglio nunca foi acu­sado de colaborar com o regime em nenhum dos inquéritos oficiais. 0 pró­prio cardeal, em um relato nunca con­testado, contou ter persuadido o padre que rezava missas para o ditador Jorge Videla a dizer que estava doente, para substituí-lo na função e interceder pessoalmente pela libertação dos je­suítas - o que de fato ocorreu. As cir­cunstâncias em que esses fatos se passaram ficou conhecida como "a guerra suja" - e em uma guerra a pri­meira vítima é a verdade. Não é sur­presa que essas acusações tenham sido ressuscitadas pouco antes de Bergoglio ser escolhido papa e tenham ganhado corpo depois de sua eleição. Ele é critico da presidente Cristina Kirch­ner, o que para seus fanáticos segui­dores constitui um pecado mortal.

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Papa B A IGREJA NA POLÍTICA

Pio XTJ, que comandou a Igreja du­rante a I I Guerra, foi o exemplo mais controverso. Por um lado. conseguiu manter-se neutro o suficiente para poupar Roma de um ataque destruidor. Usando de sua habilidade diplomática, evitou que hospitais, escolas e templos católicos fos­sem destruídos por tropas nazistas e fas­cistas ao redor da Europa. Contudo, não se furtou a costurar acordos com os regi­mes da Alemanha e Itália em torno de disputas entre Igreja e estado. O fato de ter resolvido questões administrativas importantes para a instituição nesses paí­ses não o livrou de ser lembrado como o papa que, em nome da defesa dos interes­ses da Igreja, cruzou os braços diante da morte de milhões de judeus. Saiu-se um pouco melhor no confronto verbal com Josef Stalin. Por meio do primeiro-minis-tro inglês Winston Churchill, com quem se encontrou após a Conferência de lalta, a qual redefiniu os contornos da Europa

e do mundo pós-guerra. Pio X I I soube que o líder soviético havia se referido a ele com ironia. Ao tomar conhecimento de que o papa pedira o fim da opressão aos católicos, Stalin perguntou: "O papa? Quantas divisões (exércitos) ele tem'?" Resposta de Pio X I I : "Ele encontrará nossas divisões no céu".

Os regimes totalitários que Stalin im­plantou à força no Leste Europeu ruiriam nas mãos de outro papa, o polonês João Paulo U. Logo após sua nomeação, ele afirmou sua intenção de visitar a Polónia, até então isolada atrás da Cortina de Fer­ro. Na ocasião, o presidente soviético Leonid Brejnev orientou o Partido Co­munista daquele país a não receber o pa­pa — sem sucesso. No que se tornou a viagem mais importante do pontificado de João Paulo I I , mais de 10 milhões de pessoas, quase um terço da população, saíram às ruas para recebê-lo. O compa­recimento das multidões deixou claro

PODER O futuro papa Pio XII (em 1920, em Berlim), sobre quem

Stalin perguntou: "Quantas divisões ele tem?"

que, por baixo da cortina, a Polónia era o mais católico dos países sob o domínio dos governos comunistas ateus. A viagem abalou o regime e fortaleceu seus oposi­tores, como o sindicato Solidariedade. Nascida clandestina, a entidade foi reco­nhecida meses depois, em negociações com o governo. Em um gesto simbólico, o líder do movimento, o operário Lech Walesa, sacou do bolso uma caneta com o retrato do papa na hora de assinar o do­cumento do sindicato. A relação enne o papa e Walesa, mais tarde eleito presi­dente da República, foi fundamental não só para a abertura da Polónia, mas para todo o Leste Europeu. As pregações de João Paulo I I contra o totalitarismo apro­ximaram o pontífice dos Estados Unidos

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Papa • A IGREJA NA POLÍTICA

GUERRA FRIA João Paulo II com o presidente Ronald Reagan, em 1987: contra o comunismo

e o integraram ao tabuleiro da Guerra Fria. Mais tarde, ajudaram no desmonte dos países sob a esfera soviética e na ins­tauração de vários governos democráti­cos em toda a região.

É cedo para saber quais bandeiras o papa Francisco vai tomar para si, mas o mais provável é que os assuntos internos da Argentina sejam reduzidos à sua de­vida dimensão. O país vive a euforia de ser o berço do primeiro papa latíno-ame-ricano. Na quinta-feira, um jornal porte-nho anunciou a escolha de Bergoglio com a manchete "La mano de Dios", uma referência ao gol irregular feito na Copa do México, em 1986, por Marado-na (que agora terá de conviver com mais alguém lhe fazendo sombra, além de Lionel Messi).

No dia anterior, o anúncio do papa argentino havia levado milhares de por-tenhos a se aglomerar em frente à Cate­dral de Buenos Aires. A algazarra que se formou lá podia ser ouvida até da Casa Rosada. Mesmo assim, só duas horas depois que as notícias do Vaticano já t i ­nham corrido o mundo a presidente Cristina Kirchner divulgou uma carta parabenizando seu conterrâneo.

Do cumprimento frio—que não men­cionava nem o nome do cardeal nem o fato de ele ser argentino —, a presidente seguiu sem escalas para a provocação. Disse desejar que, "em sua missão pasto­ral, ele (o novo papa) carregue uma men­sagem para que as grandes potências mun­diais dialoguem. Que as grandes potências do mundo, que têm armas e poder finan­ceiro, possam ser finalmente convencidas de que devem dar atenção aos países emer­gentes e que elas se comprometam com um diálogo de civilizações, em que as coi­sas são resolvidas pela via diplomática e não pela força". Mais do que uma referên­cia disfarçada à derrota argentina na dis­puta com a Inglaterra pelas Ilhas Malvi­nas, os "cumprimentos" da presidente soaram como uma tentativa de colocar o adversário no ringue, e bem perto das cor­das. Para desgosto de Cristina, porém, o papa Francisco não deve ceder ao seu cha­mado. Sua pátria agora é o mundo. A Ar­gentina terá de esperar. m

COM REPORTAGEM DE T Â M A R A FISCH

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A visão evolutiva do aprendizado

A té Freud, que só pensava... naquilo, reco­nheceu a descoberta mental como uma im­portante fonte de prazer para o homem em "A civilização e seus descontentes". De fa­

to, há poucas atividades mais estimulantes do que aprender coisas novas, conseguir perceber a luz onde antes só havia trevas.

O aprendizado ocorre no cérebro. Durante muitos séculos, o cérebro foi tratado como uma

* cãixa-preta, à qual não podíamos ter acesso di-í reto, e cujas maquinações só poderiam ser de-

preendidas por meio da observação cuidadosa e perspicaz do comportamento de pessoas. A maioria dos profissionais de educação ainda subscreve a esse paradigma. Sua visão sobre o funcionamento cerebral é, portanto, formada pe­las hipóteses não científicas de pensadores da virada do século XIX para o X X , especialmente Jean Piaget (1896-1980), Lev Vygotsky (1896-1934) e Henri Wallon (1879-1962).

Desde essa época porém, a compreensão que temos do cérebro fez grandes avanços, e a neuro-ciência está conseguindo ligar habilidades e comportamentos humanos a áreas e processos

/m cerebrais específicos, abandonando o modelo

W "caixa-preta" por outro em que o cérebro é per-

J | cebido como um órgão material, que tem uma I fisiologia, no qual agem células, neurotransmis-

A maneira responsável de buscar conhecimento é por meio da ciência. Por mais brilhante que seja um observador da fase pré-científica, ignorar todo o avanço da ciência nas últimas décadas seria não apenas anacrónico como irresponsável

sores etc. Uma das descobertas que essa ciência já conseguiu fazer é que, ao aprendermos, mudamos a própria arquitetura física do órgão. Como bem descreve, no fascinante In Search of Memory, Eric Kandel — um dos líderes da pesquisa nesse campo, vencedor do Nobel de Medicina por suas contribuições —. a formação de uma memória de longo prazo altera nossa rede neuronal em pelo menos duas maneiras: não só aumenta a força do sinal da sinapse na área relevante como cria no­

vas sinapses (as estruturas neuronais que permi­tem a passagem de um sinal químico ou elétrico entre neurónios vizinhos). É tão impossível en­tender como seres humanos aprendem sem com­preender o funcionamento do cérebro quanto querer chegar de um lugar a outro sem saber o que são ruas, estradas, rios e pontes. E a maneira responsável de buscar esse conhecimento é por

meio da ciência. Por mais brilhante que seja um obser­vador da fase pré-científica, ignorar todo o avanço da ci­ência nas últimas décadas se­ria não apenas anacrónico como irresponsável.

Um dos insights mais importantes desse período de pesquisa é que o cérebro é, assim como um olho ou braço, fruto de um processo evolutivo, moldado ao longo de centenas de milhares de anos para aumentar nossas possibilidades de reprodução e sobrevi­vência. Como bem mostra Steven Pinker em livros como How the Mind Works e The Blank Slate, a ideia de que nosso cérebro é uma tabu­la rasa cujos conteúdos são preenchidos exclu­sivamente por processos culturais é equivoca-

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da. Entre os muitos achados dessa visão evolu­tiva está a descoberta de que o cérebro evita o pensar. Pensar é uma atividade dispendiosa, tanto em termos de tempo como de energia, e sempre que possível o cérebro substitui o pen­samento por um procedimento automático gra­vado na memória. (Já imaginou como seria im­possível, por exemplo, dirigir um carro, se a cada esquina precisássemos pensar em como fazer uma curva, como indicar aos outros mo­toristas que estamos dobrando, calcular o ân­gulo certo da virada do volante, pensar onde está a alavanca do pisca-alerta etc?)

Como mostra o psicólogo cognitivo Daniel Willingham em Why Don 7 Siudenrs Like School?, o cérebro pensa em duas situações: quando é es­tritamente necessário (não há procedimento na memória que nos ajude) e quando nós acredita­mos que seremos recompensados por resolver determinado problema. A recompensa? Peque­nas doses de dopamina, um poderoso neurotrans-missor associado aos circuitos de prazer do cére­bro, liberado quando se resolve uma questão (e também durante o consumo de cocaína). Para que a dopamina seja liberada, o fundamental é calibrar a dificuldade do problema. Se ele é fácil

HA 2500 ANOS Escola de Atenas, pintura do renascentista italiano Rafael: a Academia de Platão ainda não tem substituto no ensino

demais e o aprendiz já sabe a resposta antes de pensar, não há pensamento nem, portanto, dopamina. Se ele é difícil demais e a pessoa já pressente que não conse­guirá encontrar a solução, o cérebro "desliga-se": não havendo a possibilidade de dopamina, não vale a pena gastar o maquinário neural.

Mas o que é, em termos neurológicos, pensar? Pen­sar é combinar informações de maneira diferente. Essas informações podem vir do ambiente externo e/ou da memória de longo prazo. A memória de longo prazo é aquela que armazena infor­mações e processos que es­tão fora da nossa consciên­cia imediata. A tabuada, por

exemplo: ela não estava na sua mente antes de eu mencioná-la e desaparecerá de novo em alguns minutos, mas, sempre que você precisar fazer uma multiplicação, ela virá, facilmente, à mente. O local do cérebro em que esse novo processa­mento de informações se dá é a memória opera­cional (ou "de trabalho", do inglês working me-mory). A memória operacional tem capacidade limitada — e, quanto mais perto ela estiver de seu limite, mais difícil vai ficando o pensar. Sua ca­pacidade é determinada geneticamente. Pensar bem, portanto, envolve quatro variáveis: infor­mações externas, do ambiente; fatos na memória de longo prazo; procedimentos na memória de longo prazo; e o tamanho do espaço disponível na memória operacional.

A primeira implicação dessa descoberta é que o domínio de fatos não apenas ajuda no ato de pensar: ele é indispensável. Como mostra Willingham, décadas de pesquisa em ciência cognitiva revelam que, se você não domina as in­formações básicas de determinado assunto, não conseguirá ter um raciocínio analítico/crítico a seu respeito. Até a leitura se torna mais fácil se o cérebro já conhece o assunto em questão: a pes­quisa mostra que uma pessoa com ótima habili-

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