vauchez, a. a espiritualidade na idade média ocidental

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A espiritualidade na Idade Media ocidental . (seculos VIII a, XIII) . TradU{iio:. Lucy Magalhaes Jorge Zahar Editor . Rio de Janeiro

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A espiritualidadena Idade Media ocidental .

(seculos VIII a, XIII)

. TradU{iio:.Lucy Magalhaes

Jorge Zahar Editor .Rio de Janeiro

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o Homem Medievala Procura de Deus

formas e conteudo da experiincia religiosa

Na Idade Media, ainda mais do que em outr9s perfodos, 0desejode levar uma vida espiritual intensa era indissociavel da ador;:aode uma forma de vida religiosa, geralmente definida por umaregra que tinha urn valor santificante por simesma. Isso nao excluia procura de urn contato mais imediato e mais intimo com Deus.

" Seria necessario falarmos aqui da orar;:ao. Digamos claramenteque, sem falar da prece liturgica dos monges, a 6rar;:ao e malconhecida. As canr;:oesde gesta conservaram alguns belos textosde orar;:oes,mas trata-se de elaborar;:oes literanas ou da expressaousual de uma piedade pessoal? Sem duvida, todos sabiam 0 Patere a primeira parte da Ave Maria. Os salmos parecem ter sidopreferidos pelos clerigos e pelos leigos cultos que, muito cedo, ostraduziram em lingua vulgar. Entretanto, nao sabemos com quefrcquencia e em que espirito eram recitados.

Ja que nao podemos apreender na prece a relar;:ao dohomem com Deus, devemos tentar faze-Io atraves de outras for-mas de piedade e de devor;:iio.Incapaz de pensar 0 abstrato e,muitas vezes, de concebe-Io, a cristiio do seculo XII vivia a suaexperiencia religiosa principalmente no nivel dos gestos e dosritos, que 0 colocavam em contato com 0 mundo sobrenatural.

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Assim, oseu imenso apetite pelo Divino procurava satisfazer-seem manifestac;:oes com forte carga emocional," cujo conteudoteol6gico permanecia, em geral, bastante fraco. A que ocupava 0

primeiro lugar na piedade dos fieis-erasem duvida"a peregrina-c;:ao.Tomar 0 bastao do peregrino, era chegar a urn espac;:osagrado, onde 0 poder divino escolhera manifestar-se atraves demilagres. Esses lugares privilegiados eram numerosos e se multi-plicaram no Ocidente, no seculo XII. Ao lado dos santuariosregionais, como Rocamadour ou Sainte-Foy de Conques, os fieisfrequentavam cada vez mais as peregrina~oes longfnquas, comoas de Sao Tiago de Compos tela, de Sao Miguel do Gargano ou deSao Nicolau de Bari. Roma tamberri se tornou urn destino fTe-qiiente, sem falar de Jerusalem, pois nem as cruzadas nem atomada da cidade pelos turcos em 1187 impediam asviagens paraa Terra Santa. Alem desse Ultimocaso, os lugares de peregrinac;:aoeram os que conservavam relfquias preciosas. Estas eram objetode uma intensa venerac;:ao por parte do clero e dos fieis, comomostra 0 esplendor dos relicanos em que estavam encerradas.Sinais vivos e palpaveis da presenc;:ade Deus, elas tinham comofunc;:aoprincipal fazer milagres.

Os mila~s desempenharam urn grande papel na vidaespiritual desse tempo, e nao apenas para os leigos. Com asVisoes,eles constitufam urn dos meios de cOnlunicac;:aomais importantesentre este mundo e 0 alem. A ideia de que Deus continuava a serevelar aos homens por meio de prodfgios estava presente emtodos os espfritos. Assim, os cristaos da Idade Media estavamperpetuamente a procura de milagres e dispostos a ve-Ios emqualquer fenomeno exrraordinario. Aqueles que os faziam eramconsiderados como santos. A Igreja se alegrava "em con tar urngrande numero deles em suas fileiras: em uma epoca em que asheresias abalavam as suas estruturas, os milagres nao eram a provatangfvel de que 0 espfrito de Deus estava sempre com ela?Quantoaos simpIes fieis,os rnilagres que des esperavam dos servidores deDeus eram principalmente curas: devolver a paz deespfrito aospossufdos pdo demonio, mer os coxosandarem e os cegosveremeram enta~ os principais criterios da santidade: Ate 0 estabeleci-mento de urn processo regular de canonizac;:ao,no fim do seculoXII, 0 poder taumaturgico era praticamente a unica condic;:aoexigida para que urn defundo pudesSe ter as honras do culto. Asantidade se verificava par sua eficiencia.]<ique 0 mal fisico,assim

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como 0 pecado, eram obra do Diabo, a cura miraculosa s6 podiavir de Deus, e bastava para demonstrar que aquele por cujaintercessao cIa fora obtida pertencia a corte celeste.

o desejo de urn contato direto corn 0 divino se expressavaigualinen te na devo<;:aoeucarfstica. A missa era, corn a penitencia,o unico sacramento que teve imp orcin cia na epoca medieval. Masassistia-se a ela menos para receber 0 corpo do Cristo do que parave-Io. Contra as heresias espiritualistas, principalmente 0 cataris-mo, a Igreja insistiu, no seculo XU, na presen<;:areal de Deus naeucaristia, "verdadeiro corpo e verdadeiro sangue do Cristo". Essainsistencia no aspecto concreto do sacramento encontrou urn ecoprofundo na religiosidade das massas, que assistiam amissa comoa urn especiculo, a espera da descida de Deus sobre 0 altar. Assim,os fibs, desejosos de contempIaro que es50avaoculto no sacramen-to, pressionavam os cIerigos para quelhes mostrassem a h6stia nomomenta exato em que se curppria 0 misterio divino. Essa e aorigem do rito da eleva<;:ao,quefoi regulamentado no infcio doseculo XIII, em razao dos abusos frequentes: em certos luga-res, obrigavam-se os padres a mostrar tres vezes a h6stia du-rante a missa; em outros, prolongava-se excessivamente 0 I1!-o-mento da consagra<;:ao.Acreditava-se, habitualmente, que olhara h6stia cons.agrada produzia efeitos salutares. Para a maioria, issosubstitufa acomunhao sacramental, pois esta era raramente pos-sfvel, por causa da pr6pria venera<;:ao de que as santas especieseram cercadC;ls.Tudo isso denota uma concep<;:aodo sagrado quese encontra em muitas religi6es: Deus, nesse nivel, aparece comoumaentic4ide exterior ao homem. It 0 absolutamente. O'utro,poder misterioso e an6nimo, que tern poucareIa<;:ao com 0 Deusda Bfblia, Ate os ritqs especificamente criscios, como a consagra-<;:aoda'h6stia, sofifam a influencia dessa religiosidade fortementeimpregnada de magia. .' .' .

Seria 16gico concIuir desse exame das devo<;:6espopularesque estamos,em plena supersti<;:ao.eque as praticas que acabamosde relatar nao tern nada a ver com a hist6ria da espiritualidade.Entretanto, urn certo numero de sinais revel am ao observadoratento uma evolu<;:aodapiedade que se dirigia no sentido, se naode uma espiritualiza<;:ao, pelo menos no sentido de uma acentua-<;:aodo seu carater cristio. S(:':mduvida, quando partiam emperegrina<;:ao, as fieis do seculo XII, como as da epoca carolfngia,atingiam urn Iugar onde Deus agia atraves de relfquias e sempre

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tentavam aproximar-se dos relicarios dos santos para obter a curadesejada. Mas 0 sentido da peregrinac;:ao evoluiu. No seculo XII,ia-se, de preferencia, aos santuanos dos Ap6stolos e aos lugaresonde se venera,vam relfquias de Mari~ ou de Cristo, ou objetosque entraram em contato com eles. E facil ironiiar os incriveistrofeus que os cruzados trouxeram do Oriente, como os inumerosdentes de sac Joao Batista ou os cabelos de Cristo, que as igrejasdo Ocidente obtiveram, comprados muitas vezes por prec;:oalto,de ha:beisimpostores. A incrlvel ingenui~ade dos fieis e a cegueirainteressada dos clerigos nao nos devem fazer esquecer que 0

sucesso dessas devor;:6esconstitUi,de certaforma, urn detalhe semimportancia no evangelismo. No nivel das massas, 'este se traduziapor "uma vontade evidentemente imlbil e imaginosa, de encon-trar G Cristo em sua vida mortal" e por "urn esforc;:opara reatarcom 0 concreto das condic;:oesde existencia da Sagrada Familia". I

A evoluc;:aoda peregrinac;:ao de Rocamadour e muito instrutivanesse aspecto, No infcio do scculo XII; Rocamadour ainda era urnsantuario local entre outros, onde os peregrinos da regiao deTulle se atavam com correntes que, depois de ter estaqo emcontato com as relfquias de santo Amadour (Amator), opera~ain,ao que se dizia, curas miraculosas. Na segunda metade do seculo,-apareceu uma leoda, relatada pelo cronista Robert de Thorigny,segundo a qual esse Amadour teria sido urn servidor de Maria,que a teria ajudado a criar 0 Menino Jesus. A hist6ria, eviden te-mente, e pura invenc;:ao.Mas,c significativo que os clcrigos deRocamadour tenham convidado os fieis a tomar como modeloalguem que vivera com 0 Cristo e sua 'ma~ na maior familiaridade,e que tivera a vocac;:aode devotar-se aoseu servic;:o.A mesma lendasublinha, alias, que Amadour era ppbre e louva a sua humildade,o que se harmoniza com a espirittiaJ.idade da epoca. Esse exemplonao e isolado. Como regra geral, pareceque no seculo XII aatenc;:aodos fieis se dirigiu para os grandes nomes dos primeirosseculos da Igreja, enquanto, durante a alta Iclade Media, semultiplicaram os santos sem referencia seria, aos quais se pediasimplesmente a cura, sem pensar em seguir 0 seu modelo e nemmesmo em comover-se com sua vida ..

Por outro lade, a espiritualidade penitencial comec;:ou,nessaepoca, a enriquecer alguns ritos quese ligavam mais ao paganis- .mo do que a fe crista. Difundiu-se' a convicc;:aode que 0 esforr;:ofeito pdo homem por Deus ou por seus santos obrigava, de certo

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modo, a potencia divina a se revelar. Abandonar seu ambientefamiliar par urn tempo bastante longo e enfrentar os perigos daviagem constitufam, aos olhos dos fieis, atos merit6rios que deve-riam encontrarsua recompensa em urn milagre. Pode-se conside-rar essa concep<;:iiodasrela~oes entre 0 homem e a ·divindadeainda bem terra-a-terra. Mas ela nao deixa de representar umaevoluy3.o, na rnedida em que estabelece urn layo entre a grayaesperada de Deus e 0 esforyo pessoal do cristao.

Enfim, a pr6pria ideia que se tinha da santidade nao perma-neceu imutaveI. Antes do seculo XII, a hagiografia nos mostrasantos que pareciam misteriosamente predestinados para 0 seuestado. A fidelidade com a qual eles observavam a lei divina eramenos a resultado de uma ascensao para a perfei~ao espiritual doque a maniflstayao senslvel de sua eleiyao por Deus. Nos trata-dos de Honorius Augustodunensis, porta-voz da mentalidade co-mum, 'Jase nascesanto, ninguemse tornasanto".2 Umamu(Ltn~ase operou durante as decadas seguintes no modo de escrever asvidas dos santos. Sob a influencia da nova espiritualidade, oshagi6grafos tentaram mostrar, as vezes sem habilidade, que 0

poder ~iraculoso estava subordinado a pratica de uma existenciaascetica, assim como ao exercfcio da caridade. Os milagres s6 ternvalor, afirmou por varias vezes Inocencio III, se ~orem avalizadospar uma vida santae certificados por testemunhas autenticas. Pelaprimeiravez na hist6ria do Ocidente medieval, a pr6pria Igrejasublinhava a arnbiguidade dos sinais do sagrado.3 Certamente,sera preciso espeiarmuito tempo para que se imponham, noculto dos santos, as exigencias de discernimento defmidas pdopapado. Mas a preponderancia da fe e das obras sabre 0 eIementomiraculoso na aprecia~o da santidade e um sinal, entre outros,da espiritualizayao que comeyava a se operar no seio. do cris-tianismo.

Durante 0 seculo XIII; as novas perspectivas pastorais in-fluenciaramo modo de escrever Vidas de santos. As acusa~oeslan~adas contra a Igreja pelos hereticos, que opunham a morali-dade irrepreensfveldos seus Perfeitos a corrup~ao do clero cat6-'lico, suscitaram em alguns autores 0 desejo de apresentar aos fieisfiguras exemplares mais pr6ximas no tempo cIoque os santos dosprimeiros seculos: sac Tomas Becket, arcebispo de Canterbury,assassinadoem sua catedral em 1170, sao Francisco de Assise sacDomingos, fundadores dasordens mendicantes, ou santa Isabel

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da HungJia (ou antes, da Turingia, poisfoi ali que ela morreu em1231), que se devotou ao servic;:odos pobres e cuidou pessoal-mente de!es, nos hospital que fundou em Marburg, depois de suaviuvez. Baseando-se em "exempla" tirados de suas hist6rias, ospregadores propagaram a idCia de que era na vida, e nao nosmilagres dos santos, que residia a sua verdadeira grandeza, ou,mais exatamente, que os poderes extraordinarios que elesdetinham depois da morte constitufam a recompensa e a con-trapartida da sua fiel imitac;:ao do Cristo humilde, pobre esofredor. A enfase no pape! dos santos como modelos teveimportantes repercussoes na hagiografia. Assim, religiosos do-minicanos como Bartolomeu de Trento e Jean de Mailly com-puseram, depois de 1240, Vidas de santos, que desejavam pora disposic;:aodo. clero e principalmente dos "simples padres",abreviadas de textos hagiograficos geralmente pouco acessf-veis, pois 56 as abadias e as catedrais tinham textos completospara uso liturgico.

Mas 0 principal sucesso, nesse campo, foi constitufdo pelaLenda aurea, do dominicano italiano Tiago, dito "de Voragine"(na verdade de Varazze, perto de Genova), composta par volta de

-# 1260. Essa compilac;:ao,da qual subsistem ainda hoje mais de milmanuscritos latinos e que foi traduzida no seculo XIV para todasas lfnguas vernaculas da cristandade, teria urn extraordinariosucesso ate a epoca moderna. Os textos que ela difundia ins-piraram os artistas em suas.representa.t;oes dos principais epis6-dios da vida dos sqntos, assim como dos seus milagres. A novahagiografia nao excIufa,o recurso ao maravilhoso. Mas,como bornpedagogo e conhecedor q.a mentalidade dos leigos, Tiago deVoragine privilegiou, na existencia dos seus her6is, os relatosexemplares e os aspectos biograficos inais capazes de impressio-nar os leitores. 0 sucesso foi notavel e a Lenda aurease tornou, noseculo XIV, 0 livro de cabeceira dos leigos devotos. Assim, Del-phine de Puimichel (marta em 1360), llma grande dama proven-c;:almuito ligada aos franciscanos "espirituais", obrigada pelafamilia a casar-secom Elzear de Sabran (morto em 1323), encon-trou uma justificativa para a sua recusa da uniao sexual na Vidade santo Alexise conseguiu que seujovem marido aderisse ao seusurpreendente projeto de castidade conjugal, baseando-se noexemplo dos santos esposos Cecilia e Valeriano (seculo III),transmitido pelos textos hagiograficos.

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A Igreja tentava eIevar urn povo ainda rude e mal instrufdoalem dos requisitos puramente materiais, fazendo-o pressentir aexistencia de uma realidade superior. Para isso, nao hesitou emutilizar os recursos da arte, ao mesmo tempo expressao de umavida espiritual intensa - ados clerigos - e meio para os leigosvislumbrar a grandeza e a infinita riqueza do misterio divino. Naoestudaremos aqui 0 dificil problema da formar;ao, ou melhor, daimpregnar;ao religiosa, que os fieis podiam receber por meio dasseries de afrescos, do canto litUrgico ou da estatmiria, que semultiplicaram, a partir do fim do seculo XI, nos porticos dasabadias e das catedrais.

Muito se falou· da "Bfblia de pedra", que essas obras ofere-ciam ao olhar dos humildes. Nao e incontestivel que a intenr;aopedagogica tenha sido primordial para aqueles que mandaramexecuta-las, e seu objetivo parece ter side, antes, provocar urnchoque emotivo, dpaz de se prolongar em intuir;ao espiritual.Em uma religiao em que 0 culto era 0 ato essencial, a principalfunc;:ao da casa de Deus era oferecer aos misterios divinos urnC(~nariodigno da sua grandeza. Mas a belezadas formas nao selimitava a ser adequada ao carater sagrado do oficio liturgico. Aigreja de pedra, sfmbolo da grande Igreja, povo dos redimidos,devia proporcionar aos fieis urn prenuncio da beleza do ceu.Suger, 0 grande abade de Saint-Denis (1081-1151), foi urn dosraros clerigos desse tempo a definir com precisao a perspectivareligiosa que inspirava a construr;ao e a decorar;ao dos lugares doculto. Em sua autobiografia, de desenyolve uma simbolica da luz, .muito marcada pela teologia mfstica do pseudo-Dionisio 0 Areo-pagita. Segundo essa doutrina, cad~ criatura recebe e transmiteuma ilumina<;:aodivina segundo as suas capacidades, e os seres,assim cOITIOas coisaS,sac ordenados em uma hierarquia, segundooseu grau de participa~ao na essencia divina. A alma human a,envolvida na opacidade da materia, aspira a voltar a Deus. Ela sopo de conseguir isso atravesdas coisasvisfveis; que, nos nfveissucessivos da hierarquia, refletem cada vez melhor a sua luz. PeIocriado, 0 espfrito pode assim remontar ate 0 incriado. Aplicadaao campo da arte, essa concqjr;ao das relar;oes entre 0 homem eo divino levou a multiplicar nas igrejas objetos como pedraspreciosas ou obras de ourivesaria sacra, que, por sua irradiar;ao,

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podiam ser consideradas como sfmbolos das virtudes e ajudar 0

horn em a elevar-se atc 0 esplendor do Criador. Do mesmo modo,a luz, filtrando-se atravcs dos vitrais, estimulavaa meditac;:ao econduzia 0 espfrito para Deus, de quem ela era 0 reflexo. Comodiz a inscric;:aoque Suger mandou gravar na porta de bronze deSaint-Denis: "Pela beleza sensfvel, a alma adormecida se eleva atca verdadeira Beleza e, do Iugar onde jazia, ela ressusc~ta para 0

ceu, ao ver a luz destes esplendores." .A essa estctica, que tambcm era a de Cluny, 0 monaquismo

renovado se opos, em nome de uma espiritualidade rigorista. Sesac Bernardo admitia que as igrejas destinadas aos fiCisfossemricamente decoradas, opunha-se a que ocorresse 0 'mesmo nas .abaciais, e de modo geral, nos templos dos religiosos. Assim, osestatutos de Cister, como os dos cartuxos, proibiam, nas igrejasconventuais, crucifixos de ouro ou panejamentos de seda, escul-turas e vitrais. "Deixemos as imagens pintadas para as pessoassimples", escreve 0 conego regular Hugues de Fouilloy. Para sacBernardo, todo esse luxo era nao s6 inutil, mas tambcm perigoso.A preocupac;:ao com a riqueza da decorac;:ao impedia os clerigosde dar esmolas aos pobres. Mas, principalmente, cultivando asartes de forma desregrada, 0 homem arriscava-se a amar 0 prazerpar si mesmo e a multiplicar as excitac;:oessuperfluas, tendo emvista 0 puro goio. A riqueza e a profnsao de ornamentos naolevavarn, em ultima analise, a procura da volupia, eo espfrito naose dispersava nas sensac;:oesexternas, deixando-se distrair porimpressoes sedutoras? Aos olhos do abade de Clairvaux, tudo issoestava em contradic;:ao com as exigencias da vida espiritual. Aalma, efetivamente, precisa de concentrac;:ao interior para poderconhecer-se e unificar-se na humildade; a introspecc;:ao se opoe acuriosidade va, que poe em perigo a espfrito religioso. Mas queningucm se engane! Sao Bernardo e os adeptos do rigorism aascetico nao foram inimigos da arte, e em uma nave cisterciense,a pureza das linhas e a simplicidade das formas preenchem .arnplamente a ausencia de ornamentac;:ao. Mas, ao in-acionalismoe a opulencia exuberante da arte romanica opoe-se uma esteticada pobreza, que deseja limitar-se ao necessario e conservar apenasfonnas funcionais simples. A arte cisterciense e austera, discipli-nada e fundada na procura da pureza. Nao e menos impregnadade espiritualidade do que a de Cluny. Mas, ao passo que, neste, aprofusao jubilosa e a riqueza dasformas pretendiam maravilhar

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a espfrito e anunciar-Ihe a festa eterna, a nova arte via nessasrealidades materiais urn obsciculo a contemplac;:ao.Para as parti-darios do ascetismo e da pobreza volunciria, era apenas peloeaminho do despojamento que a homem podia chegar ate aamor espiritual, que transformava as necessidades vitaisem tram-polim para Deus.

Nao existe pois uma unica, mas duas espiritualidades da artena epoca medieval: uma aceita e ate procura a mediac;:ao dosensfvel; a outra recusa a analogia entre a beleza do mundo e 0

esplendor do alem. Para os adeptos da segunda, a ascensao paraDeus passa pela humildade e pela renuneia ao usa carnal dossentidos·. A func;:aoda arte se limita entao a favoreeer 0 reeo--lhimento do homem em si mesmo, que 0 faz nascer para a vidainterior.

No seculo XIII, foi um caminho intermediario entre essasduas concepc;:6es antagonfsticas que acabou por triunfar nasgrandes catedrais g6ticas do noroeste da Europa. De Chartres aSalisbury e a Estrasburgo, toda uma serie de grandes edificiossacros foram entao eonstrufdos ou reeonstrufdos no corac;:aodascidades episeopais, com 0 objetivo de manifestar a realeza doCristo, a qual a sua mae era muitas vezes assoeiad<l#comoindicaa presenc;:a,cada vez mais frequente a medida que se avanc;:anotempo, do tema da coroac;:aoda Virgem no timpano do portalprincipal. Eseulturas, vitrais coloridos, mosaicos de pavimentocontribufam para fazer dessas vastas casasde Deus ediffcios lumi-nosos e eintilantes, na linha daquilo que Suger fizera em Saint-Denis. Mas, ao mesmo tempo, 0 impulso e a verticalidade dospilares, a sobriedade dos capiteis ornados corn uma simplesdecorac;:aofloral ou geometrica, a sucessao perfeitamente regularclas ogivas, tudo isso visava proporcionar a quem entrasse urnsentimento de unidade e de despojamento. E.Panofsky mostroucomo os princfpios de esclarecimento e de reductio ad unum, queestao na base das sumas teol6gicasdo seculo XIII, presidiramtambem a concepc;:aoe a ·construc;:aodas igrejas g6ticas con tem-poraneas, especialmente as catedrais. Em ambososcasos, trata-sede urn poderoso esforc;:opara tornar senslve1a ordem que reinano pensamento e no universo. Sua expressao mais visfvel, nocampo da arquitetura, reside nas noc;:oesde transparencia e deinteligibilidade: assim, as divisoes intemas do santuario SaDclara-mente diseemfveis do exterior e nao e por acaso que, nos princi-

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pais edificios religiosos dessa epoca, 0 corte transversal da navepode ser percebido na fachada. No interior, os construtores decatedrais puseram em pratica 0 mesmo princfpio de organizar;aosegundo urn sistema de partes homogeneas, ligadas entre si porrelar;oes analogas, como os elementos de urna quaestio ou de urnsermao universitcirio. Entretanto, cada urn desses edificios conser-va a sua originalidade, pois, embora tenda a uma certa uniformi-dade, a arte g6tica nao e a expressao de urn racionalismo funcio-nalista; 0 fim primordial dos elementos arquiteturais e certa-mente garantir a estabilidade dos edificios, mas estes visam es-pecialmente manifestar pela evidencia de uma 16gica visual aunicidade do princfpio que preside a procura da verdade e dobelo. .

A.medida que a piedade se individualizava e que a religiao se faziamais pessoal, a vida do espirito deixava de ser 0 privilegio dosmonges. Em uma sociedade que comer;avaa se liberar das coar;oesexteriores e a por urn freio na violencia cega, urn numero cres-cente de clerigos e de leigos adquiriram esse minimo de tempo ede distanciamento em relac;:aoao instinto, que toma possivel 0recolhimento e a reflexao: "No interior do homem ocidentalabre-se uma outra linha de frente pioneira, a consciencia."4 Comcerteza, nao foi por aca<;oque essa tomada de consciencia - emtodo 0 sentido do termo - coincide com urn certo arrefecimentodas perspectivas escato16gicas. Enquanto as massas perseveravamincansavelmente na expectativa do milenio e transferiam suasesperanc;:as,frustradas pelo resultado mediocre das cruzadas, parasucessivosmessias, os melhores espfritos redescobriam a verdadedamcixima evangeIica: "0 reino de Deus esta dentro devos .."Vmamudanc;:ase operou no nivel das mentalidades religiosas: 0Julga-men to Final figurava sempre entre aspreocupac;:oesessenciais dosfieis, mas perdeu 0 seu carater de angustiante iminencia. Logo,ele seria considerado apenas como "a sanc;:aolongfnqua do julga-mento da consciencia nodialogo interior com 0 Cristo".5

E'ssaevolur;ao aumentou ainda mais a importancia do sacra-mento da penitencia na vida crista e modificou as suas formas. Noprocesso penitencial, 0 momento essencial se desloca da expiar;aopara a confissao. Ate 0 seculo XI, considerava-se que a pena devida

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pelo pecado devia ser integralmente cumprida para que este fosseredimido. A partir do seculo XlI, admite-se, emgeral, que acon£lssao constitui 0 gesto essenCial e que a absolvic;:ao.esti garan-tida desde a coil£lssao. A Igreja reconhece, efetivamente, que eurn ato tao humilhante e penoso que possui, por si mesmo, urnvalor expiat6rio. Assim, nao e surpreendente que 0 sacramentoda penitencia tenha siclodesignado, a partir de enta~, sob 0 nomede confissao. Avolta do espfrito para si mesmo, a consciencia queele toma do seu erro e da ofensa feita a Deus tern·mais imporrandado que as obras - cadavez mais leves - que os penitentescontinuariam a cumprir a titulo de satisfac;:ao. De modo maisgeral, 0 seculo XII foi marcado, no plano espiritual, par umaatitude que foi designada sob 0 nome de "socratismo cristao".Temperamentos ta~ diferentes quanto Abelardo, saDBernardo eHugues de Saint-Victor compartilharam a convicc;ao de que, paraconhecer 0 ceu e a ten-a, e preciso primeiro conhecer a si mesmo.Com mais razao ainda,a alma s6 chegara a Deus ao fim de urnlongo caminho atraves dos meandros da psicologia humana e dosgraus do intelecto: "Como queres contemplar-me na minha c1a-ridade, tu que nao conheces nem a ti mesmo?", diz Deus a almaem urn texto bernardino. Longe de constituir urn desvio, a intros-pecc;ao aparece como uma necessidacle para quem quer queaspire a elevar-se acima da vida instintiva ..

Segundo a tradic;:aomonastica,o lugar privilegiado do en~contro da consciencia individual com Deus era a Sagrada Escritu-ra. Na Idade Media, a Bfblia niio era urn livro como os outros, maso livro. por excelencia, onde se encontrava a chave de todos osmisterios. Nela, aprendia-se a ler e procurava-se descobrir nela asleis que regem a vida do homem e do universo. Deus e apresen-tado com uma realidade quase IlSica: era sobre a Bfblia que seprestavam os juramentos solenes, e era ela que se abria ao acasopara ler 0 destino ou saber qual seria a sua vocac;ao.Assim fez saoFrancisco, no momenta de sua conversao. Esse livro nao era feitopara ser lido. Alias, poucas pessoas, mesmo entre os m~:mges,tinham 0 texto integral e 0 seu conteudo estava longe de serinvariavcl. De urn exemplar para outro, existiam diferenc;:as im-portantes, e a noc;:aode escrituras canonicas nao tinha sentido emuma epoca em que se incorporavam facilmente a Bfblia textosap6crifos como 0 evangelho de saDPedro e tratados apocalfpticos.o conhecimento que os c1erigos e os £leis tinham da Bfblia era

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quase sempre indireto. Os textos mais freqtientemente citadoseram os que figuravam na liturgia: salmos, evangdhos sinoticos,epfstolas de sac Paulo e Apocalipse. Por isso, certos livros erambem conhecidos, outros quase ignoradoS:: No seio dessa vastaheran<;:a,cada urn adotava 0 que melhor convinha as suas capaci-dades e as suas necessidades. A literatura referente as cruzadas daurn lugar importante ao Velho Testamento, onde se eneontra 0

relato das guerras do povo de Deus e a descri<;:aoda Terra Pro-metida, assim como ao Apocalipse, que alimenta as esperan<;:asescatol6gicas das massas. Amaioria dos fieis, em tempos normais,se interessava mais pdo salterio e pdo Livro de J0, que contemnumerosos preceitos morais e miximas coneretas. Os clerigos dasescolas urbanas gostavam de especular sobre 0 Genesis, que en-focava a a<;aodo Deus eriador, e os contemplativos, a partir de SaG

Bemardo e de Guillaume de Saint-Thierry, se dedicaram a co-mentar 0 Cantico dos canticos, interpretado como uma cronicados esponsais tumultuosos entre Deus e a alma humana.

A Bfblia era pois para 0 homem medieval uma realidade viva,da qual de estava mais ou menos profundamente impregnado,mas que, em todos os casos, alimentava a sua vida espiritual,fomecendo-lhe simultaneamente materiaflara reflexao e indi-ca<;o~spara a a<;:ao.Reminiscencias e cita<;oesse acumulavam emta~ grande numero nos textos dos clerigos que muitas vezes ediffcil distinguir 0 que provem do seu espfrito e 0 que perteneeab texto sagrado. Este era ao mesmo tempo interiorizado eatualizado, a ponto de integrar-se na experiencia. pessoal. ~Escrituras nao eram consideradas como urn simples relato ciahistoria da salva<;:ao.Alem do sentido hist6ricoevidente, umaexegese sutil, que por vezes tern tendencia a deslizar para 0

alegorismo, descobre em cada episodio, se nao em cada palavra,urn significado moral e espiritual apropriado. Essa maneira deabordar os textos bfblicos acarretava 0 risco de dissolver osfatosem urn simbolismo muito rico, mas nem sempre coerente. Emumlivro cujo autor era 0 proprio Deus, nao era tentador procurarrespostas para todas as perguntas?

Durante asprimeiras decadas do seculo XII, elaborou-sc, nasescolas-urbanas, urn metodo que permitia ehegar a compreensaodo misterio divino, evitando 0 que 6scomentarios bfblicos tinhamde vago e de subjetivo. Com Abelardo, a teologia - ja que e delaque se trata - se constituiu como disciplina autonoma, que

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recorre ao raciocfnio logico e a dialetica. 0 objeto do conheci-mento continua sendo Deus, mas procura-se atingi-Iopor razoesnaturais, nao pela efusao do cora<;:ao.A Sagrada Escritura nao eexcluida do campo da reflexao: ela e situada, entretanto, nomesmo plano que os autores pagiios, em particular Platiio eAristoteles, que come<;:avama ser redescobertos. De fato, emcertos meios intelectuais, principal mente parisienses, prevaleciaa ideia de que se podia explicar as principais verdades do cris-tianismo, inclusive 0 misterio da Trindade, utilizando os conceitose os metodos da filosofia paga. Sao Bernardo acusou Abelardo eseus discfpulos de rebaixar as verdades reveladas ao nivel dasverdades humanas. Nao e nosso proposito relatar a longa e penosacontroversia entre 0 abade de Clairvaux eo "cavaleiro da dialeti-ca", excessivamente confiante nas capacidades da razao, segundoo primeiro. 0 fato importante para nos e que, com Abelardo, ateologia se destaca da sacra pagina, isto e, do comentario espiritualda palavra de Deus. A partir de entao, haveria, de urn lado, umateologia escolastica, especula<;:aoracional sobre 0 dado revelado,do outro lado, uma teologia mfstica, que permanecia centrada namedita<;:ao das Escrituras e reCllsava-sea privilegiar a reflexaointelectual como meio de acesso ao conhecim!nto de Deus .

.No seculo XIII, a teologia parecia prevalecer sobre a es-piritualidade e relega-Ia ao segundo plano. Mas nao nos esque<;:a-mos de que, para SaDTomas de Aquino, ela nao era uma simplesciencia, mas 0 saber supremo e a forma superior da sabedor1R.Mas, ao passo que para santo Agostinho e seus continuadoresmedievais, a revela<;:aodivina desvalorizara as ciencias humanas,que so tinham utilidade no domfnio temporal, 0 teologo domini-cano reconhecia a sua densidade propria e a sua eminente digni- .,dade. A teologia, aos seus olhos, nao ficava diminufda com isso,pois "0 verdadeiro nao pode contradizer 0 verdadeiro", e princi-palmcnte ela tern como objeto 0 proprio Deus, com 0 qualnenhuma outra realidade pode se comparar. Masa grande figurado "Doutor comum" e a preponderiincia do tomis~o no planodoutrinaI, a partir do infeio do seculo XN, nao devem dissimulara importante pcrsistencia da corrente agostiniana no proprio seioda teologia. Continuador e herdeiro dos gran des vitorinos doseculo XII, 0 franciscano SaDBoaventura manifestou uma grandedesconfian<;:aem rela<;:aoas capacidades da inteligencia, e em seuscscritos enfatizou, antes, a primazia do amor. Para ele, 0 pensa-

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men to cientffico nao tinha nada de definitivo e 0 conhecimentopela razao nao podia; por si so, explicar Deus e 0 mundo. Assim,preconizou urn procedimento especulativo impregnado de pie~dade e misticismo, culminando em urn extase da inteligencia e davontade, cujas etapas -eledescreveu no seu Itinerarium mentis adDeus ("Itinerario do espfrito para Deus"). Nele, descreve a ascen-sac da criatura ate Deus, que revelou 0 seu misterio em JesusCristo. a "Doutor serafico", como de foi ehamado, insistiu naidentidade da imagem (0 homem) e do exemplar (0 Cristo). Deuse 0 homem sac feitos urn para 0 outro, e ordenados urn para 0

outro.Assim, toda criatura e "capaz de Deus", isto e, animada porurn impulso fundamental para 0 exemplar, do qual ela recebe 0

seu ser-imagem. Pela medita~ao dos sofrimentos e da vida doCristo, essa orienta~ao dinamica da alma para Deus se desenvol-vera em uma reeriar;:aodo homem, que podera, ela propria,resultar ja aqui na terra, em uma participa~o vivida na naturezadivina, no "rap to" mfstico. A questiio que se situa no corar;:aodateologia de sao Boaventura e a da divinizar;:aodo hornem. A esserespeito, longe de ser arcaica, ela se harmoniza com a aspira~ao,entao presente em muitos c1engos e leigos, a uma experienciadireta e transformadora do divino. -

Entre a via teol6gica e a via mIstica, existe uma outra divergenciaprofunda: 0 objeti:>da segunda nao e arrancar os segredos deDeus, mas permitir a alma experimentar a sua presenc;:ae unir-sea Ele. a texto bfblico; que continua a ser, para osespirituais, areferencia obrigatoria de toda experiencia religiosa, fomeee urnponto de partida para uma medita~ao que, por etapas, conduz acontempla~o. Muitosautores do seculo XII, de Aelred de Rie-vaulx a santa Hildegarda, descreveram essapassagem da reflexaopara a ilumina~ao, segundo a sua experiencia pessoal. A Palavradivina, segundo eles, age primeiramente no espfrito como umachama, cortando os lar;:osque 0 unem a carne e ao pecado. Vmavez purifieada a memoria, a alma pode apoiar-se nas palavras enas imagens do texto para tentar elevar-se ate 0 seu eriador. Aofim de uma serie de etapas aseensionais, como que por umaescada, ela venee a distancia infinita que a separa de Deus. Asconfissoes de indignidade dao lugar progressivamente as manifes-

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tac;oes de ternura. Enfim, no silencio, a Palavra toma posse daalma e se faz carne: 0 homem da nascimento a Deus. Como dizsan Bernardo: "Locutio Verbi, injiJ.sio doni." Eo mesmo Verbo quefala aos homens .e se da a cada urn deles. Desses instantes deeleva~ao, 0 espfrito sai exaltado e maravilhado. Gra~as a SagradaEscritura, 0 homem pode libertar-se dos seus pr6prios limites,pois nele 0 visfveIe 0 invisfvelse unem.

Com sac Bernardo e Guillaume de Saint-Thierry - amboscistercienses - essas experiencias mfsticas difusas no seio domonaquismo foram levadas ate as liltimas conseqiiencias e apre-sen tadas pela primeira vez' de modo sistematico. 0 ponto departida,dos dois monges foi 0 Cantico dos canticos, livro particular-mente lfrico do Velho Testamento, que foiinterpretado como urndicilogo entre Deus, identificado com 0 amante, e a alma, apre.:sentada como a amada do Todo-Poderoso. A partir daf, sacBernardo desenvolve, em uma visao grandiosa, toda uma diale-rica das rela:~oes entre 0 Criador e suas criatura.s. 0 homern,segundo ele, e a imagem do mundo parseu corpo, e e a imagemde Deus por sua alma. Por causa do pecadoonginal, 0 eIementodivino no homem foi oculto pelo mal. Mas Deus restaurou essasemelhanc;a pela Encarna~ao: Maria, nova Eva, e nao s6 0 ins-trumento da nova criac;ao, mas tambem urn modelo para oscristaos de todos os tempos. A alma,-esposa a procura de Deusdeve tentar assemelhar-se a Virgem e', como ela, tornar-se mae,para dar nascimento ao espfritodivino. Assim serido, 0 homemse eleva acima Ciasuacqndi~ao carnal e pecadora, para reencon-trar a patria celeste, a qual ele aspira do fundo do cor:ac;ao.0abade de Clairvauxdistingue quatro graus nessa ascensao: 0aWl-orcarnal, que corisiste em amar a si mesmo~0 amor ao pr6ximo e ahumanidade do Cristo, que ja e superior, embora ainda de nfvelmedfocre. Seo cristao perseverar, chegara a amar a Deus em suadoc;ura e a obter consola~oes espirituais. MaS Deus s6 descerasobre a alma quando esta for totalmente despojada do seti invo-lucro carnal. Chegando a essaetapa, a alma-esposa, como a Igreja,da qual ela e a imagem, vivesegundo 0 amor. Nela se atualizam,de modo sobrenatural, todas as virtualidades constitutivas danatureza humana. Longe de ser urn fenomeno aberrante, 0

extase mfstico constitui a sua realiza~ao perfeita, na medida emque permite conhecer a Deus no mais profunda do misteriotrinitirio. Sao Bernardo e excessivamente realista para ignorar 0

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que tais estados podem ter de excepcional, e ele proprio sublinhanitidamente que a experiencia mfstica e inferior ao que sera avisao face a face de Deus, na beatitude celeste. Mas, a imagem daTransfigura~o, em que os Apostolos participaram da irradiac;:ao

. do Cristo, 0 extase proporcionado a alma pelo beijo do Esposo aidentifica, em certa medida, com 0 objeto amado, ao qual ela estiunida espiritualmente. Pelauniao mistica, 0 homem nao se tomaDeus, mas eleva-se acima de si mesmo e restaura em si a imagemdivina. .

Para Guillaume de Saint-Thierry (morto em 1148) ,autordo Speculum fidei e principalmente do De contemplando Deo, ostemas espirirnais sao mais ou menos os mesmos que para 0 seuamigo sac Bernardo, mas a ~nfase esti mais sobre 0 misteriotrinit<irio. A alma humana, aos seus olhos, e a imagem criada daTrindade criadora. Imagem sem duvida inferior e degradada, masmodeIada sobre eIa. Com efeito, segundo ele, a queda originalnao destruiu essa semelhanc;:a fundamental, apenas a perturbou.Apoiando-se na grac;:ae no esfon;:o pessoal, 0 homem avido deperfeic;:ao podera restabelecer essa similitude entregando a suaalma ao ritmo da Trindade. Para isso, devera elevar-se do estado .animal ao estado racional, e deste ao estado espiritual, que 0 fazparticipar,ja aqui na terra, da gloria da Ressurreic;:ao."Para aque-les que se. estabelecem nesse nivel, as tres faculdades da alma seencontram na sua verdadeira func;:ao- a memoria leva ao Pai, aratio conduz ao Cristo, a vontade ao Espirito Santo - e resultamem urn conhecimento intimo de Deus-Trindade.

A mistica que nasce no Ocidente no seculo XII nao se reduzapenas a corrente cisterciense, por mais importante que esta seja.Outras vias tambem foram experimentadas na procura da uniaocom Deus. Alguns autores se esforc;:aram por associar a reflexaointelectual a procura amorosa da presenc;:a divina. Foi 0 caso, emparticular, da Escola de Sao Vitor, casa de conegos regulares,fundada em Paris em 1113 por Guillaume de Champeaux, e quefoi ilustrada por wna serie de gran des te610gos e espirituais, comoHugo (morto em 1141) e Ricardo (morto em 1173) de sac Vitor.Este Ultimo e 0 mais interessante para 0 nosso proposito, poisdesenvolveu uma doutrina, que foi qualificada de "misticismoespeculativo". Para Ricardo, autor de urn tratado, De Trinitate, aSanta Trindade e 0 objeto supremo da contemplac;:ao. Para teracesso ao conhecimento desse misterio, a especulac;:ao, isto e, a

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investigac;:aoracional, e a primeira etapa. E preciso descobrir asrazoes necessarias que permitem a inteligencia apreender osfundamentos da vida niniraria. Mas s6 a contemplac;:ao fundadanas Sagradas Escrituras e alimentada pelo amorpermite, segundoele, ter acesso a vida intima das pessoaSdivinas. Deus faznascerna alma human a urn desejo lancinante e insaciavel, que leva acriatura a fundir-se nele em urn excessus mentis, que, para Ricardo,e uma iluminac;:aomais do que urn extase propriamente dito. Seo objetivo perseguido e, como para sac Bernardo, a uniao intimacom Deus, esta aparece antes de tudo, para os vitorinos, comouma visao do sentido profunda das coisas e dos seres. Seu proce-dimento abole, ou antes ignora, as barreiras que a espiritualidadeposterior estabeleceu entre vida ascetica, vida intelectual e vidarnfstica. Para eles, a a..<;censaopara Deus passa pela analise dasrealidades psicol6gicas. pela e..'\.-plorac;:aodas faculdades da alma epelos graus da contemp1ac;:ao.Essa concepc;:ao,simultaneamente

.sintetica e dinamica da vida espiritual, nao deveria ter influenciano seu tempo. Mas eIa abriu 0 caminho no qual iria se aventurarsac Boaventura, no secu10 xm. -,

Outras experiencias rnfsricas, particularmente' nos meiosfemininos, riveram como ponto de partida a cJ,evoc;:aoa humani-dade do Cristo e uma vontade de participac;:aoativa na Paixao doSalvador. Essa corrente tern relac;:aocom a Escola cisterciense esac Bernardo, como Guillaume de Saint-Thierry, derarri urn lugarimportante ao misterio do Homem-Deus na sua experiencia e nassuas obras. Ambos sublinharam que a devoc;:aoa hurnanid<ftie doCristo era apenas urn dos primeiros graus do arnor. Para eles, s6se podia passar dasombra para a luz, da terra para 0 ceu,contemplando Deus em sua divindade, e a alma a procura deperfeic;:aodevia elevar-se da rneditac;:aodo Cristo segundo a camepara a conternplac;:aodo Cristo segundo 0 espfrito. No rnovimentoreligioso que se desenvolveu na diocese de Liege e no Brabantea partir do fim do seculo XII, essesaspectos desernpenharam urnpapd essencial e a adorar;:ao do Cristo sofredor estava no centro

. da rnfstica que desabrochou enta~ nos claustros e nos conventosde beguinos. Marie d'Oignies (rnorta em 1213) e Lutgarde deTongres (rnorta em 1246) procuraram unir-se ao Filho de Deusem sua pobreza e sua Paixao. A partir de entao, e pdo rnenosdurante urn seculo, °clernento afetivo se tornou preponderantena mfstica ocidental. 0 sentimento patetico do drama da Reden-

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c;:ao,a meditac;:aosobre 0 sacrificio sangrento do Cristo, 0 dom dashigrimas que purificam 0 olhar interior e expressam a compun~aodo cora~ao constituem os seus elementos fundamentais. Deve-sever nessa mfstica feminina apenas urn reflexo vulgarizado dasconcep~oes de sao Bernardo sobre as rela~oes da alma com 0 seuCriador? !SSO seria minimizar a originalidade daespiritualidadedos Pafses Baixos e esquecer que urn meio-seculo rico em mu-ta~oes separa 0 abade de Clairvauxda beguina reclusa de Oignies.Para 0 primeiro, a carne era apenas uma sombra e urn obstaculoque devia ser superado, para chegar ao Verbo eterno; para asegunda, 0 corpo do Cristo, instrumento de salvac;:aoe penhor deeternidade no seu prolongamento eucaristico, estava no centrodo misterio cristao.

Durante a segunda metade do seculo XIII e no inicio doseculo XN, a pr6pria concep~ao de vida mistica sofreu umaprofunda modi.fica~ao,principalmente marcada nos conventosde dominicanos e dominicanas dos paises germanicos e entrecertas beguinas da Renania e dos' Paises Baixos. De fato, naperspectiva que prevalecera ate entao na maioria dos auto resespirituais, a progressao da alma para Deus era assirriiladaa uma

#ascensao por etapas, que atraves da ascese, da medita~ao e dauniao, permitia chegar, em certas circunstancias excepcionais, acontemplac;:ao.Na corrente mfsticados dorninicanos e dos begui-nos, 0 procedimento seguido e inverso: nao setratamais de subirate Deus, mas de abandonar-se nele. A criatura que aspira a seunir ao seu Criador s6 chegara a isso por urn esfor~o da vontadeou -por uma pcitica intensa das virtudes, mas despojando 0 seuser pr6prio, criado, separado, para recobrar 0 seu ser verdadei-ro, incriado, nao separado, em Deus. Se a criatura compreendeuisso, eIa pode, segundo uma f6rmula de Marguerite Porete quefoi vivamente reprovada pelos te6logos parisienses, ~'despedir-sedas virtu des", ~que nao significa de modo nenhum abandonar-seao anornismo ou a Iibertinagem, mas perder-se para melhorencontra.r-see "tornar-se pela gra~ 0 que Deus e por natlireza",segundo a f6rmula de Guillaume de Saint-Thierry. Nessa pers-pectiva, 0 objetivo ultimo e menos a uniao com Deus, no que essaexpressao pode sugerir de excepcional e de temporario, do quea procura da deifica<;:aopor assimila~aoao pr6prio ser de Deus.

Esse procedimento, apesar das criticas que foram feitas aosque 0 preconizavam por seus detratores (por exemplo quando

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do processo de Mestre Eckhart, que se realizou em Avignon em1327), nao exc1uinem uma progressao nem mesmo urn metodopara chegar ao que Hadewijch d'Anvers chamara "arte do justoamor", mas eIa se recusa a baliza-Iaantecipadamente: I'Vai,masaceita nao tomar urn caminho", diz urn texto mfstico alemao doinfcio do seculOXIV. A vida espiritual nao e uma aquisic;:ao,masuma demolic;:ao.Ela consiste em deixar-se cair como uma pedrano proprio ser de Deus. Eckhart precisa que, para ser capaz de"tocar ou apreender Deus" peIo conhecimento natural, a almadeve previamente chegar a "nobreza". Esta constitui 0 ponto dechegada deum processo de despojamento e de "abandono", queconsiste em uma desapropriac;:ao desi, indo ate a renuncia avontade de obter a saIva<;:ao.E apenas por essepre<;:o que 0

homem podera chegara beatitude, que consiste, em ultimaanalise, em descer ate esse "Fundo" da alma ("Grund "), onde seencontra a fonte daqual 0 Filho recebeu 0 seu ser e onde Deusgera sem cessar 0 seu filho adotivo, 0 "homem nobre", isto e 0 serhumano divinizado. Nesse nfvel, as duas correntes maiores damfstica ocidental, a mfstica nupcial e a infstica da Essencia, sefundam em urn unieo amor, que permite ao homem ser Deus emDeus. Ninguem descreveu melhor essaexperiencia unitiva do queMtrguerite Porete, quando exclama: "Se eu digo: 'eu te amo', eume distingo de Ti; nao dlgas: leu te amo', pois issoja e distinguire logo separa 0 que esta unido." Alguns anos depois, MestreEckhart desenvolvei-ia,em uma linguagem mais conceitual, limaidCia exatamentesemelhante: "Deus deve absolutamente tornar-se eu e euabsolutamepte tomar-me Deus", que the valeria ser

.acusado,injustamente, de pantefsta.Todas as reIigioes.conheceram e conhecem graus de parti-

cipa<;:aodiversos nos misterios que eIas ensinam. 0 cristianismomedieval hao e uma exce<;:aoa regra: do cuIto das reIfquias amfstica nupcial,abre-se urn amplo leque de vias de acesso aodivino. Pode paree'er estranho comparar formas ta~ distantes daexperiencia religiosa. Mas a enfase posta peIos teologos no papeIdo Verbo encamado na Reden<;:aoe 0 desenvolvimento das'devo<;:6espopulares a pessoa do Cristo e de sua mae traduzem,em nfveis certamente diferentes, a mesma intui<;:ao.Nao estademonstrado, de' forma alguma, que as orientac;:6esda piedadesejam sempre dependentes da orientac;:aoda alta espiritualidadevivida nos claustros. No seculo XlI, ambas evolufram aparente-

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mente de modo.concomitante, e mesmo, por certos trac;:os,areligiao das massas esteve talvez a frente da religiao das elites: adevoc;:aoa Santa Lanc;:a,miraculosamente descoberta diante deAntioquia pelos cruzados, precede de varias decadas a venerac;:aomanifestada pelas mfsticas do Brabante pela chaga do lado deCristo. Alem desses problemas de influencias, sempre delicados edificeis de resolver, 0 historiador constata que no seeulo XIII duascertezas fundamentais irnpregnam a consciencia religiosa noOcidente: s6 se chega a Deus por seu Filho crucificado, e, paraconquistar a salvac;:ao,e preciso assemelhar-se ao Cristo. Mas hivirias maneiras de ide!Jtificar-se com urn ser amado: pode-seprocurar as suas pegadas e cultivar a sua lembranc;:a, imitar 0 seuexemplo ou procurar ser apenas urn com ele. Por mais diferentes.que possam parecer essasatitude's, e, entre tanto, 0 mesmo senti-menta que as inspira.

1. E. Delaruelle, "La spiritualite du pelerinage de Rocamadour au MoyenAge", in Bulletin de la Societe des Etudes ... du Lot, 1966, p.71.

2.Y. Lefevre, L'Elucidarium et les lucidaires, Paris, 1954, p.338.3.A. Vauchez, La Saintete en Occident aux demiers siecles du Moyen Age d'apres

lesproces de canonisation etles Mcuments hagiographiques, 2~ed., Roma, 1988.4.]. Le Goff, art. dt., p. 52.5.M. -D.Chenu, "Lafin des temps dans laspiritualite medicVale", in Lumiere

et Vie, II, 1953, pJ01-16.