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SIMPÓSIO A ARQUITETURA DA CIDADE NAS AMÉRICAS. DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS ENTRE O LOCAL E O GLOBAL, 52 ICA, Sevilha, Julho de 2006 PROJETO URBANO UM NOVO TERMO PARA DEFINIR INTERVENÇÕES NA CIDADE? VASCONCELLOS, Lélia Arquiteta urbanista, professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Rua Professor Saldanha 154/101 Jardim Botânico CEP 22461-220 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Telefone:+55 21 22663961. E-mail: [email protected] RESUMO O trabalho discute os conceitos de Desenho Urbano e Projeto Urbano. Parte da premissa de que ambos apresentam grandes semelhanças entre si. No Brasil, a origem do termo Projeto Urbano é relativamente recente, e, no caso do Rio de Janeiro, coincide com a adoção do Plano Estratégico (1993) para a cidade, o qual contraía, em muitos aspectos, premissas anteriormente definidas pelo Plano Diretor Decenal (1992). O modelo para as novas intervenções urbanas na cidade parece seguir as estratégias adotadas em Barcelona para as intervenções realizadas por ocasião das Olimpíadas de 1992. Tomando como referência os ensaios de alguns autores, são assinaladas diferenças e semelhanças de um e de outro termo, bem como novas atitudes e procedimentos no tratamento das recentes intervenções urbanas. Palavras chaves: projeto urbano - desenho urbano – plano SUMMARY The work discusses the concepts of Urban Design and Projeto Urbano (Urban Project), based on the premise that there are many similarities between the two of them. In Brazil, the origin of the term Projeto Urbano is relatively recent, and, in Rio de Janeiro, coincides with the implementation of the1993 Plano Estratégico (Strategic Plan) which opposes, in many aspects, premises formerly defined by the 1992 Plano Diretor Decenal (Decennial Master Plan). The model for the new urban interventions in the city appear to follow the strategies adopted in Barcelona for the interventions at the time of the 1992 Olympics. In referring to essays of some authors, we find highlighted, differences and as well as similarities between one term and the other, as well as new attitudes and procedures in the treatment of recent urban interventions. Key words: projeto urbano (urban project) - urban design - plan INTRODUÇÃO São inúmeras as denominações para indicar uma transformação no espaço da cidade através de uma ação intencional, entre elas, a de Projeto Urbano. Esta terminologia vem sendo adotada sem nenhuma estranheza, tanto nos meios acadêmicos, como nas práticas atualmente exercidas nos diversos órgãos públicos, responsáveis pelo desenvolvimento da cidade. No entanto, quando se coloca o foco na origem do termo no Brasil, algumas questões podem ser levantadas. O presente trabalho pretende desenvolver tais questões, no sentido de melhor compreender o uso desse termo nas atuais práticas urbanísticas ocorridas nas grandes metrópoles brasileiras.

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SIMPÓSIO A ARQUITETURA DA CIDADE NAS AMÉRICAS. DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS ENTRE O LOCAL E O GLOBAL, 52 ICA, Sevilha, Julho de 2006

PROJETO URBANO – UM NOVO TERMO PARA DEFINIR INTERVENÇÕES NA CIDADE?

VASCONCELLOS, Lélia

Arquiteta urbanista, professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Rua Professor Saldanha 154/101 Jardim Botânico CEP 22461-220 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Telefone:+55 21 22663961. E-mail: [email protected]

RESUMO

O trabalho discute os conceitos de Desenho Urbano e Projeto Urbano. Parte da premissa de que ambos apresentam grandes semelhanças entre si. No Brasil, a origem do termo Projeto Urbano é relativamente recente, e, no caso do Rio de Janeiro, coincide com a adoção do Plano Estratégico (1993) para a cidade, o qual contraía, em muitos aspectos, premissas anteriormente definidas pelo Plano Diretor Decenal (1992). O modelo para as novas intervenções urbanas na cidade parece seguir as estratégias adotadas em Barcelona para as intervenções realizadas por ocasião das Olimpíadas de 1992. Tomando como referência os ensaios de alguns autores, são assinaladas diferenças e semelhanças de um e de outro termo, bem como novas atitudes e procedimentos no tratamento das recentes intervenções urbanas.

Palavras chaves: projeto urbano - desenho urbano – plano

SUMMARY

The work discusses the concepts of Urban Design and Projeto Urbano (Urban Project), based on the premise that there are many similarities between the two of them. In Brazil, the origin of the term Projeto Urbano is relatively recent, and, in Rio de Janeiro, coincides with the implementation of the1993 Plano Estratégico (Strategic Plan) which opposes, in many aspects, premises formerly defined by the 1992 Plano Diretor Decenal (Decennial Master Plan). The model for the new urban interventions in the city appear to follow the strategies adopted in Barcelona for the interventions at the time of the 1992 Olympics. In referring to essays of some authors, we find highlighted, differences and as well as similarities between one term and the other, as well as new attitudes and procedures in the treatment of recent urban interventions. Key words: projeto urbano (urban project) - urban design - plan

INTRODUÇÃO

São inúmeras as denominações para indicar uma transformação no espaço da cidade através de uma ação intencional, entre elas, a de Projeto Urbano. Esta terminologia vem sendo adotada sem nenhuma estranheza, tanto nos meios acadêmicos, como nas práticas atualmente exercidas nos diversos órgãos públicos, responsáveis pelo desenvolvimento da cidade. No entanto, quando se coloca o foco na origem do termo no Brasil, algumas questões podem ser levantadas. O presente trabalho pretende desenvolver tais questões, no sentido de melhor compreender o uso desse termo nas atuais práticas urbanísticas ocorridas nas grandes metrópoles brasileiras.

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Ressalve-se que as questões aqui tratadas configuram-se apenas como um ensaio de hipóteses. Assim sendo, aventura-se a tecer algumas possíveis considerações para melhor conceituar o tema em tela.

Ressalve-se ainda que a motivação do trabalho veio pelo desejo de desmistificar soluções aparentemente novas na prática do urbanismo, mas que na realidade, nada mais são do que projetos urbanísticos para áreas localizadas, ou seja, intervenções “pontuais” no espaço da cidade, e que agora recebem o nome de Projeto Urbano. Esses projetos parecem estar atrelados à necessidade de trazer uma nova imagem por parte do poder público, para que este possa confrontar um cenário competitivo nos campos político e da economia mundial. Ou seja, é preciso “não fazer feio” diante dos olhos dos interesses do mercado mundial. Essa atitude já ocorreu no passado, com as grandes reformas urbanísticas do início do século XX1. Contrariando talvez, alguns princípios do urbanismo modernista, no que diz respeito às propostas formais, os projetos urbanos recentes trazem alguns resultados, sem apresentar, contudo, soluções propriamente inovadoras.

Para melhor fundamentar as hipóteses apresentadas, o texto recorre às referências de alguns autores que trabalharam o tema, entre eles Goodey (1985)2, Tsiomis (1996) e Portas (1996)3. Goodey vai tratar do Desenho Urbano. Tsiomis e Nuno Portas, onze anos depois, trazem considerações sobre o que é Projeto Urbano. Como apoio e contraponto, recorreu-se também a algumas definições sobre os métodos de urbanismo descritos por Lacaze (1993)4, em que a planificação estratégica e os “urbanismos de participação, de gestão e de comunicação” aparecem como formas diferenciadas de atuação e controle na cidade.

Algumas notícias das práticas urbanísticas recentes no Rio de Janeiro, foram mencionadas, no sentido de melhor compreender concretamente as mudanças na forma de intervir na cidade, e em que estas implicaram na sua dinâmica. A dicotomia entre o discurso e a prática, ou entre o ideal e a ideologia presentes são questões a se levantar quando se observam de um lado os conceitos, de outro, as práticas. Acredita-se que essas referências possam ajudar a contextualizar a origem do termo – Projeto Urbano - no Brasil. Buscou-se ainda a investigação de significados de termos afins, já há muito consagrados no vocabulário urbanístico tais como plano diretor, planejamento urbano, desenho, e o próprio termo projeto.

EM BUSCA DE ALGUMAS DEFINIÇÕES

Planejamento significa a “determinação de um conjunto de procedimentos e ações, visando a realização de um projeto”. O plano seria “um projeto elaborado que 1 No início do século XX o Rio de Janeiro, então capital do país, sofreu drásticas intervenções urbanísticas na área central da cidade, entre elas a abertura da avenida Central (hoje av. Rio Branco), a construção do novo porto e outras tantas.A razão dessas reformas pautava-se na necessidade de abrir o país para o mercado internacional, o que impunha uma boa aparência á cidade. Outras reformas semelhantes ocorreram em cidades como São Paulo, Salvador, Recife etc. 2 GOODEY, Brian – Percepção, Participação e Desenho Urbano (org. Vicente Del Rio), Módulo – Universidade, volume 1, Avenir ed., Rio de Janeiro 1985 3 TSIOMIS, Yanis – Projeto Urbano, Embelezamento e Reconquista da Cidade e PORTAS, Nuno – Urbanismo e Sociedade: Construindo o Futuro, ambos autores in Cidade e Imaginação (Pinheiro Machado, D. e Vasconcellos E.M., organizadores), PROURB-FAU-UFRJ, Rio de Janeiro,1996 4 LACAZE, Jean Paul – Os Métodos do Urbanismo, Papirus (Ofício de Arte e Forma), Campinas SP, 1993

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comporta uma série de operações ou meios e que se destina a uma determinada finalidade; ou “....um conjunto de medidas, de ordem política, social, econômica etc, que visam a determinado objetivo”5.

O plano implica numa ação, num instrumento, enquanto que o planejamento implica num método, num processo, ou até num modelo. O planejamento urbano seria naturalmente aquele que se refere à cidade. Como o plano implica num instrumento, ele oferece o controle e sua execução deverá ser submetida a aspectos jurídicos, institucionais e administrativos. Daí se falar em instrumentos de legislação urbanística ou de controles urbanísticos, se a referência é a cidade.

A partir dessas definições, o que se poderia investigar sobre a palavra projeto? Ele não seria o próprio plano? De certa forma sim, se considerarmos que tanto um como outro implica numa ação e também aponta controles. Mas quando tal termo é aplicado ao urbanismo, ele assume conotações que se diferenciam entre si, principalmente quando se trata de um plano diretor ou de um projeto urbano – ou ainda – do termo já esquecido, ou melhor, em desuso – desenho urbano.6

Na definição de Vittorio Gregotti (1972)7,” ...o projeto é o modo através do qual intentamos transformar em ato a satisfação de um desejo nosso...”- ou ainda: - “ “...o projeto oscila da simples decisão de fazer algo ao fixar, mediante uma série de registros, a nossa intenção em função de uma certa operação, até a completa coincidência da ação executiva com o projeto...” Gregotti nos lembra ainda que o termo desenho vem de desígnio, que significa também desejo, no sentindo de intenção, propósito. Assim, o desenho não deixa de ter o mesmo significado, ou seja, desenho pode ter uma equivalência com o significado do projeto.

Curioso é especular as diferenças existentes entre design e drawing; dibujo e diseño; dessin (ou project) e dessein, nos respectivos idiomas (inglês, espanhol e francês). Em cada caso, o primeiro vocábulo parece coincidir com a idéia de projeto, na língua portuguesa, enquanto o segundo nos remete à ação de desenho enquanto representação gráfica, formal. Dessa forma, o termo urban design, não parece significar apenas a representação do projeto em si, mas o próprio projeto, com suas implicações já anteriormente definidas, de ações e registros os quais vão se materializando e se compondo enquanto uma forma espacial, e cujas implicações nos remetem a uma série de relações de maior ou menor satisfação para o grupo de pessoas para o qual se destina.

No caso de um projeto para uma cidade ou de um setor urbano já existente, esse projeto vai significar uma interferência no espaço urbano e uma mudança de relações não só no campo físico, mas também no campo político, econômico e social.

5 Definições tiradas do Dicionário eletrônico –Antonio Houaiss, versão.2001 6 O termo Desenho Urbano foi bastante divulgado na década de 1980, pela vinda do professor Brian Goodey (Oxford Brookes University) ao Brasil e pelos Seminários sobre Desenho Urbano no Brasil, realizados em Brasília (1984, 1986 e 1988, respectivamente) Nesses seminários, várias experiências foram mostradas, além de inúmeros referenciais teóricos, os quais ainda vem sendo aplicados na estruturação e análise de projetos de intervenções em espaços da cidade. O termo, porém caiu em desuso e foi sendo gradualmente substituído por Projeto Urbano, inclusive como nome para as disciplinas ministradas nos cursos de graduação e pós -graduação em Arquitetura e Urbanismo 7 GREGOTTI, Vittorio – Território da Arquitetura, coleção Debates, Perspectiva, SP, 1972

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Voltando ao objeto de discussão desse texto: o Projeto Urbano seria então um novo nome para definir Desenho Urbano? Uma nova terminologia? Seria talvez um novo método de interferência no espaço urbano?

DESENHO URBANO E PROJETO URBANO: DIFERENTES PERCEPÇÕES PARA UM MESMO CONCEITO

Lacaze, em publicação citada, refere-se a alguns “métodos” de urbanismo que vem sendo praticados nas últimas décadas. Não se pretende aqui descrever tais métodos em detalhes, porém é mister indicá-los como referência para a conceituação de Projeto Urbano.

Segundo esse autor, a planificação estratégica surge na Europa por volta da década de 1960 e tem como pressupostos uma demanda para a urbanização rápida e cuja escolha exige uma estratégia para que seus alvos sejam atingidos, Lacaze também comenta o surgimento do “urbanismo de gestão”, cujo lema básico seria “tratar o social antes do espacial”, e também o "urbanismo de comunicação”, cuja maior preocupação seria a imagem, ou seja, como dar uma nova aparência a um setor urbano de forma a valorizá-lo e qualifiquá-lo. Poder-se ia afirmar que certas premissas presentes na planificação estratégica, bem como os chamados “urbanismo de comunicação” aparecem como inspiradores da prática do Projeto Urbano, tal qual vem sendo realizada.

Fig 1 Vista de Barcelona Olímpica Fonte: Porto do Rio.Rio de janeiro. PCRJ/ Secretaria Municipal de Urbanismo/ Centro de Arquitetura e Urbanismo, Rio de Janeiro RJ, 2001

Goodey (1985) define o Desenho Urbano como “uma habilidade complementar entre arquitetura e planejamento”. Do ponto de vista espacial, trabalha numa escala pontual, ou seja, “na terra de ninguém entre o edifício e a rua, ou o espaço entre os edifícios”. Na escala temporal, seria uma prática que considera os vários tempos de um determinado lugar. Em se tratando de trabalhar “pontualmente” cada setor da cidade, essa prática permite reconhecer usuários e moradores individualizados. Recupera-se o “sentido de lugar”, ou seja, passa-se a reconhecer a dinâmica de vida

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dos moradores e usuários de um determinado lugar e a importância de sua participação como indivíduos atuantes e identificados com este, levando em conta as transformações futuras, pois elas “afetam uma série inter-relacionada de oportunidades e dificuldades...” Evidencia a necessidade de considerar o período de mudança de uma geração à dinâmica das vidas dos moradores, usuários e visitantes. A prática do Desenho Urbano traz a necessidade de assumir o “cliente múltiplo”, ou seja, o acesso aos locais públicos requer habilidade para tratar com agentes públicos e privados que atuarão em diferentes interesses, sejam proprietários ou ocupantes do seu entorno.

Ao que parece, o surgimento do Desenho Urbano ou Urban Design, foi uma primeira proposta de reação aos grandes planos destituídos de qualquer preocupação com os espaços da cidade, limitando-se muitas vezes a um conjunto de diretrizes de desenvolvimento, um zoneamento genérico e uma estruturação dos eixos viários. Os planos diretores apresentavam-se em grandes escalas, às vezes tratando de regiões inteiras, compostas de vários municípios. Embora trouxessem recomendações e uma legislação específica sobre o uso e ocupação do solo, a escala do lugar não era tratada em detalhe, não havendo nenhuma referência que indicasse um projeto específico para tratar esta ou aquela parte da cidade. Por outro lado, práticas, como a consulta à população, eram quase sempre inexistentes.

A tentativa de se estabelecer intervenções “pontuais”, pode ser delicada, mas louvável, pois a partir dela foram resgatados os conceitos de lugar, identidade e também da preservação de conjuntos urbanos, antes restrita aos monumentos históricos. A participação da população alvo passou também a ser uma prática, ainda que muitas questões possam ser levantadas quanto ao seu real envolvimento e poder de decisão.

Tsiomis (1996) questiona se o Projeto Urbano seria uma nova estratégia para a reconquista da cidade ou seria apenas uma nova denominação para o “projeto de embelezamento”. Parte do pressuposto de que a cidade é uma instituição.”.. uma rede simbólica sancionada, onde se combinam relações variáveis de componentes imaginários ou simbólicos com componentes concretos”. Assim, qualquer interferência em um ambiente, ou seja, qualquer projeto realizado, significaria uma interferência nos componentes simbólicos e nos componentes concretos e funcionais.

O autor estabelece um jogo de opostos do que pode ser considerado como Projeto Urbano e o que ele não é: afirma que o Projeto Urbano é uma nova forma de programação, um projeto de espaço público, de embelezamento da cidade, de melhoramento das infra-estruturas; ainda pode ser um projeto sobre vazios não qualificados existentes entre os edifícios, ou mesmo um projeto arquitetônico em outra escala.

Projeto Urbano, segundo ele, “... não é obviamente um zoneamento de usos ou um plano de ordenamento, não se realiza apenas por meio de procedimentos administrativos, mas por meios bem mais complexos. Para ele, Projeto Urbano consiste em: - “...uma qualificação espacial cuja transação se faz a partir de instrumentos próprios ao arquiteto, urbanista e paisagista”. Pode ser um procedimento com base em diferentes parâmetros para alcançar diferentes objetivos regulamentares, estéticos, sociais, econômicos e de gestão. Ele envolve ainda

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questões como a da programação urbana, de métodos de planejamento, de complementaridade ou não entre o plano de ocupação do solo, o plano diretor e o próprio projeto urbano.

Espaço e tempo são preocupações do Projeto Urbano, porém, visando uma estratégia de ações bastante complexas face à premissa das transformações no tecido urbano e social. Relembrando Aldo van Eyck, Tsiomis afirma a necessidade de substituir o conceito de espaço por lugar e o de tempo por ocasião.

Ao indicar algumas características do Projeto Urbano: classifica-o como um urbanismo de correção, ou seja, “corrige o antigo e produz o novo”, articulando as duas morfologias: a social e a espacial. Enfatiza a característica de um urbanismo localizado, ou seja, praticado em um determinado setor; e da necessidade de contextualização: para cada lugar, um determinado tratamento, sempre recusando modelos formais. O Projeto Urbano, segundo ele, pode ainda ser caracterizado como um urbanismo temático, que admite a mistura de usos, a fragmentação, as múltiplas centralidades.

Considerando a forma de realizá-lo, ele pode ser classificado como um “urbanismo de participação” que envolve confrontação, negociação e parceria. O tempo tornar-se uma estratégia e as ações são hierarquizadas no tempo. Por fim, o Projeto Urbano deve ser um “urbanismo de articulação” entre os agentes econômicos e financeiros, entre os agentes públicos e privados.

Observam-se, das tantas definições colocadas pelo autor, grandes semelhanças com as propostas por Goodey , apenas diferenciando a terminologia: na ocasião da visita de Goodey, essa prática era traduzida por Desenho Urbano (Urban Design) enquanto Tsiomis a define como Projeto Urbano. Ambas são localizadas, não seguem modelos pré-estabelecidos, adotam estratégias, consideram a negociação entre os diversos agentes públicos e privados, admitem parcerias etc.

Do ponto de vista dos métodos de urbanismo, segundo a classificação de Lacaze, verifica-se a presença “da planificação estratégica”, do “urbanismo participativo”, de “comunicação” e mesmo de “gestão”.

Uma outra ótica, esclarecedora, mas em muitos pontos convergente com a dos autores acima expostos (Goodey e Tsiomis), contribui enormemente para o debate – É a ótica do arquiteto português, Nuno Portas (1996)8.

Portas, como Tsiomis, também inicia a sua exposição com um questionamento.”O Projeto Urbano seria uma roupa nova, ou uma idéia vestida de novo?” Ele questiona se o Projeto Urbano teria sido um instrumento criado para uma estratégia de desenvolvimento. Revendo historicamente os avanços das práticas do urbanismo, o autor se pergunta por que o planejamento “modernista” teria sido tão aceito a partir da década de 1940. Segundo ele, o período “pós-guerra” veio trazer o chamado Estado Providência. Este passava a deter áreas urbanas imensas, ou seja “solo urbanizável”. Sendo o Estado proprietário dessas áreas, era possível gerar grandes investimentos em habitação, infra-estrutura e muitos outros equipamentos. 8 Nuno Portas é professor de Urbanismo na Faculdade de Arquitetura do Porto (Portugal). Autor de vários livros e professor junto à Universidade de Paris, foi também consultor da Prefeitura do Rio de Janeiro entre 1995 e 1998, a partir de um convênio estabelecido entre a UFRJ e PMRJ

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É interessante sua observação quanto à falta de necessidade, ou melhor, a pouca noção do tempo nos antigos planos diretores, assim como a indicação de recursos e meios, pois o Estado era o grande provedor. O plano estabelecia o que era preciso fazer e o poder público era o seu executor. No “pós Estado -Providência”, porém, o plano passou a dizer simplesmente o que era possível ou não fazer. O Estado deixava de ser o único autor do plano, dependendo agora de negociação com vários agentes, em sua maioria de natureza privada. Assim sendo, os planos “... passaram a ser preventivos ao invés de planos corretivos”.

Nuno Portas chama a atenção como a maior parte dos planos municipais chegam apenas à definição de redes estruturantes, enquanto o direito urbanístico passa a discutir as questões de propriedade, como a sua função social, a tributação do solo, o solo criado e tantos outros instrumentos9. Passam também a configurar no elenco das preocupações com a regulamentação urbanística: a contrapartida das parcerias público/privadas. O autor afirma que “o Projeto antecedendo o Plano – pode ser hoje uma realidade”.

Correlaciona alguns conceitos como plano, programa, projeto e estratégia. Segundo ele, o plano admite incertezas, mas o projeto é inimigo da incerteza. Diz ainda que o que define a passagem de um plano para um projeto é o programa. O programa do plano – seria a estratégia – a escolha do modo de conseguir atingir as metas, os objetivos. Lembra, porém, que a estratégia procura criar menos incerteza, mas não a elimina. O Projeto Urbano exige, portanto um programa preciso que não admita incertezas”.

O Projeto Urbano pode ser visto assim como uma “tarefa de programação”, ou seja, ele é definido a partir de uma estratégia e deve acompanhar o ato de projetar até o final. Nesse sentido, o autor afirma que Projeto Urbano nada mais é do que uma intervenção urbanística - “...que visa reduzir a incerteza residual do planejamento – e por isso merece o nome de projeto”.

Nuno Portas traz também a questão da oportunidade, lembrando o caso de Barcelona, cujo projeto, realizado a partir do evento das Olimpíadas de 1992, serviu de “âncora” para o desenvolvimento da cidade (ou pelo menos de setores desta).

O autor, assim como Tsiomis, apresenta uma relação de opostos, tentando definir Projeto Urbano como o que ele não é – para depois definir o que ele é.

Assim, o Projeto Urbano não trata de - “...um “zoom” generalizado sobre os planos diretores municipais, nem um “truque” para se dar forma ao zoneamento”. Enfatiza a necessidade de se identificar os proprietários- “quem está disposto a investir e em que e quando e para quem está voltada a intervenção”.

O autor ainda questiona o termo Desenho Urbano, afirmando que “... não é a mesma coisa que Projeto Urbano...”, Segundo suas palavras “...Desenho Urbano é uma expressão que não requer um processo nem um produto, mas sim uma habilidade, uma capacidade, um tipo de atividade criativa e técnica, que pode ter aplicação generalizada, enquanto o projeto é um produto, fruto do desenho mas não só”... 9 O texto comentado foi editado em 1996, quando ainda não havia sido publicado o Estatuto da Cidade: neste, outras figuras importantes foram sendo acrescidas tais como o direito de preempção, o estudo de impacto de vizinhança etc.

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Afirma que o Projeto Urbano. “.. é uma atividade programada para se obter efeitos qualitativos e funcionais que vão além de sua área e que implica numa multiplicidade de atores, dos quais alguns são conhecidos desde a fase de “ arranque” do processo e outros... só entram em cena para efeitos de realização”. O programa segundo ele é portanto uma hipótese. O projeto vai fazer a verificação dessa hipótese, e dele surgirão novas hipóteses”.

Diferente do plano diretor tradicional, a ação de projeto, vai exigir obrigatoriamente a presença do capital financeiro, sendo este determinante para a definição de uma estratégia para a construção de um espaço público compatível à complexidade do problema. Essa estratégia deverá contemplar desde serviços básicos como saneamento e transportes até equipamentos sociais, esportivos e de lazer, tratamento paisagístico, etc.

Nuno Portas conclui que não é possível hoje conceber um plano diretor em nível de projeto, assim como não é possível conciliar os instrumentos normativos do plano diretor com a agilidade que se requer do que está sendo chamado de plano estratégico.10

SITUANDO NOSSA REALIDADE

Como se pode ver, há muitas semelhanças nas definições dos autores analisados, principalmente nas diferenças estabelecidas entre a idéia tradicional do plano diretor e do Projeto Urbano. A questão do tempo, do urbanismo localizado e muitas vezes temático; a questão da oportunidade, da entrada de capitais privados ou de parcerias público-privadas; e ainda (embora não muito discutida nos referidos artigos), a idéia de uma nova imagem, de uma “marca” de realização, parecem ser preocupações presentes.

A reboque, vem a velha prática do Desenho Urbano (Urban Design). De fato, ele sempre existiu, bem antes da idéia do próprio planejamento urbano. Quando foram traçadas as primeiras quadras das cidades egípcias ou da antiga Babilônia; quando Hipodamus de Mileto organizou seu traçado ortogonal, determinando aí a gênesis de milhares de cidades, já estava sendo praticado o Desenho Urbano, com a criação de ruas, praças quadras, articulação entre cheios e vazios. etc

Mas se tomarmos o Desenho Urbano como um ressurgimento de idéias, as quais passaram a assumir um papel crítico quanto às abstrações categóricas dos planos diretores das décadas de 1950, 60, ou como uma reação ao chamado urbanismo modernista, que não admitia recriar e ao mesmo tempo preservar o existente, será que essa prática não seria mais que uma técnica ou uma habilidade? No fundo, tais práticas (Desenho e Projeto Urbano) pretendem atingir os mesmos objetivos.

Retomando, porém, o duplo significado da palavra desenho, pode-se afirmar que realmente o termo provoca um mal entendido, pois ele pode ser confundido com o significado semelhante ao traçado – das ruas, das quadras etc, sem que aí se possam identificar outros atores e agentes da cidade. Só que o Projeto também 10 Esses dois últimos artigos foram apresentados em 1994 e editados dois anos depois no livro Cidade e Imaginação, fruto da realização de um Seminário do mesmo nome. Nesse mesmo período estava sendo homologado pela Prefeitura do Rio de Janeiro o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro(1995)

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impõe uma forma espacial, e, portanto um desenho. Para eliminar tal confusão quanto ao termo Desenho, optou-se pelo o emprego do termo Projeto Urbano.

É estranho, porém como determinadas intenções, cuja finalidade está em corrigir uma terminologia inadequada, acabam por reduzi-las a um novo modelo de urbanização contendo dentro dele uma carga ideológica.

O nome Projeto Urbano foi adotado no Brasil a partir dos anos 1990. A introdução do novo Plano Estratégico para o Rio de Janeiro(1993), parece ter vindo a reboque, com inspiração no modelo de Barcelona, surgido a partir da urbanização destinada a abrigar os Jogos Olímpicos de 1992.

Fig 2 – Porto de Barcelona Fonte: www. Virtourist.com

Arquitetos como Oriel Bohigas, Solà Morales, Bordja, autores dos projetos para a sede Olímpica, exerceram grande influência junto aos arquitetos envolvidos no Plano Estratégico do Rio de Janeiro - e Barcelona passou a ser visto como um paradigma. A empresa responsável pelo plano desta cidade11 chegou a ser contratada para criar no Rio de Janeiro um novo estilo de planejamento baseado na gestão de projetos urbanos (Madeira, 1999)12. Começou a se falar em Projeto ao invés de Desenho Urbano. Questões como estratégias e “âncoras” para desenvolvimento de trechos de cidade; passaram a ser evidenciadas. Surgem nessa época programas como o Rio

11 Empresa Catalã Tecnologies Urbanas Barcelona S.A (TUBSA), foi contratada pela prefeitura do Rio de Janeiro (Compans, 1996) 12 A gestão da política urbana passou a ser orientada por projetos urbanos como uma estratégia de revitalização da cidade do Rio de Janeiro, cujos programas seriam determinados pelo Plano Estratégico do Rio de Janeiro. Este, por sua vez contradiz as diretrizes do Plano Decenal, muito embora o seu discurso inicial referisse-se a uma complementação coerente com as suas diretrizes. Esses programas passaram a representar o principal instrumento de política urbana da primeira gestão do governo César Maia.

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Orla, Rio Cidade e até o Favela Bairro, ainda que cada um desses guarde a sua própria especificidade13.

Fig 3 Rio Cidade Ipanema – marco criado no final do bairro: observar a interferência nos prédios vizinhos Fonte: Madeira, LC Domingues, dissertação de mestrado, Ippur, UFRJ, Rio de Jjaneiro 1997

Fig 4 – Exemplo de urbanização em favela. Rocinha, RJ Fonte: Secretaria Municipal do Rio de Janeiro (Obras SMO):www.obras.rio.rj.gov.Br

13 O projeto Rio Cidade ocorreu na 1ª gestão do prefeito César Maia (1993-1996), e prosseguiu na gestão de seu sucessor, Luiz Paulo Conde (1997-2000). Consistiu basicamente na re-urbanização dos principais eixos viários de alguns bairros do Rio de Janeiro, incluindo tratamento da pavimentação de ruas, praças e calçadas, mobiliário urbano, paisagismo. Incluiu ainda a substituição ou ampliação das redes de infra-estrutura . O projeto Rio-Orla também ocorreu na 1ª gestão do prefeito César Maia e consistiu no tratamento das avenidas junto às orlas marítimas. Por fim, o Projeto Favela Bairro consistiu na tentativa de urbanização de algumas favelas, com tratamento das ruas e locais de lazer, provisão de equipamentos urbanos e saneamento básico.

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Fig 5 – Rio Cidade Rocha Miranda Fonte : Secretaria Municipal de Obras RJ –www.obras.rio.rj.gov.br

Ainda que se questione os benefícios desta “ancoragem”, parece que a idéia vingou em vários pontos do planeta: pode-se mencionar o plano das Docklands, onde se verificou o gigantesco empreendimento de Carnary Wharf, o qual não parece ter sido o esperado inicialmente14 pode-se falar ainda de vários outros projetos de revitalização como Porto Madero, Baltimore etc.

Fig 6 – Canary Wharf – Docas de Londres Fonte: STOCKXPERT – Canary Wharf London por VIXIS.jpg

Hoje é pauta de discussão a revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, já tendo sido realizados alguns “projetos urbanos” como a Cidade do Samba e a Vila Olímpica. E durante um bom par de anos, presenciou-se a estéril discussão sobre a realização ou não do Museu Guggenheim15, na área portuária do Rio de Janeiro, até que uma liminar impediu a sua execução. Vários de outros projetos esperam “na

14 Ver sobre isso VASCONCELLOS, Lélia – A Nova arquitetura das Docas de Londres: para que e para quem, Sinopses nº 25,FAU-USP junho/2006, São Paulo, SP e Plano de Renovação das Docas de Londres: Imagem e realidade, IN Cidade e Imaginação, PROURB- UFRJ, 1996, Rio de Janeiro, RJ 15 Na atual gestão do governo César Maia, a Fundação Guggenheim foi contratada para realizar um projeto de um museu cuja localização seria no píer da Praça Mauá, junto à área portuária. Após muitas negociações, o projeto chegou a ser apresentado mas a sua realização foi suspensa por conta de uma liminar que apontou a inviabilidade do contrato. Face a isso o prefeito desistiu do empreendimento e voltou os investimentos para a construção dos equipamentos destinados aos jogos Pan-Americanos, a serem realizados em 2007

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prateleira”, para a sua realização. Questão de oportunidade? Estratégias abandonadas em prol de outras?

Recentemente foi inaugurada a Cidade do Samba, na zona portuária do Rio de Janeiro. Esse imenso conjunto arquitetônico correspondeu ao anseio da Liga Independente de Escolas de Samba (Liesa) e já estava prevista para ser implementada no Plano de Revitalização e Recuperação da zona portuária. Para os turistas e para a Liga de Escolas de Samba, a obra atingiu pleno êxito, mas o que se questiona é a forma como foi feita, de um dia para outro, sem que a população residente fosse consultada. Mantém seu acesso fechado, só abrindo em eventos, os quais a população residente não tem como participar, pois não possui poder aquisitivo para comprar ingresso e usufruir algumas facilidades lá instaladas, como o comércio de bares e lanchonetes. A cidade vai sendo assim preenchida em espaços vazios, deixados pela obsolescência de algumas atividades, como no caso, a antiga instalação de um pátio de manobras da rede ferroviária para atender às demandas portuárias.Mas nem sempre essas novas instalações parecem corresponder às demandas da população16.

Fig 7 – Cidade do Samba RJ – figura em 3 dimensões Fonte: FONSECA, Rafael – dissertação de mestrado, PGAU UFF 2006

16 Sobre isso pode-se citar a dissertação de mestrado recém defendida por Rafael Dias Fonseca (orientação de Lélia Vasconcellos) – “Fábrica dos sonhos”, para o samba ou para a Cidade? Análise de uma nova intervenção urbana na Área Portuária do Rio de Janeiro, programa de Pós graduação em Arquitetura e urbanismo, EAU – UFF, julho 2006

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Fig 8 - Cidade do Samba, RJ – inserção na área portuária Fonte: FONSECA, Rafael, dissertação de mestrado PGAU UFF 2006

A atuação dos projetos urbanos também pode incluir os projetos em áreas históricas da cidade, onde se encontram sítios cuja permanência agora passam a ser de suma importância. Esses projetos estão situados na sua maioria em áreas centrais, cuja política está sendo agora pautada no resgate da habitação, da criação de pólos culturais ou de entretenimento. Os projetos urbanos ainda podem se referir à ocupação de vazios urbanos deixados por perda de uma atividade econômica como é o caso típico das áreas portuárias, cuja mudança de tecnologia gerou vazios imensos e conseqüente degradação da sua qualidade enquanto espaço urbano. Em ambos os casos, associados às várias mudanças de atitude perante a idéia de preservação do ambiente construído, surgem os vários “res” – projetos de revitalização, rehabilitação, renovação etc, cujas definições também poderiam ser motivo de uma enorme discussão a qual não caberia no presente trabalho.17,

Projeto Urbano adquiriu um significado amplo. As novas intervenções urbanas passaram a ser pautadas não mais numa análise e numa planificação da cidade, como se pretendia antes, no planejamento tradicional18, mas sim numa questão de oportunidade. Realmente o tempo passou a ser mais importante do que o lugar, do que o significado deste: a forma prática de se obter soluções rápidas para o desenvolvimento de certos trechos da cidade – mas sempre balizados pelos interesses do mercado, setores que realmente necessitam de ser “embelezados”, para trazer uma boa imagem. Além disso, não mais estamos vivendo a era do Estado-Providência. A iniciativa privada, os grandes capitais financeiros, e imobiliário, são componentes fundamentais hoje em dia para a estratégia de qualquer projeto.

Não resta dúvida, porém quanto aos resultados positivos de muitas intervenções. A prática do projeto urbano enquanto uma aplicação rápida e concreta, trouxe, em muitos exemplos, o regate da identidade local e do tratamento mais cuidadoso dos espaços públicos. Questões como tratamento paisagístico mais apurado, instalação de rampas de acesso e mobiliário próprio para deficientes, a restauração de prédios ou conjuntos históricos para novos usos, trouxeram mais qualidade de vida às cidades brasileiras, promovendo um respeito maior à cidadania.

17 Ver sobre isso o capítulo “Re. Atrás de, depois de” in Intervenções em Centros urbanos (org: Heliana Comin Vargas e Ana Luisa Howard de Carvalho, Manole editora, São Paulo, 2006 18 Plano Decenal do Rio de Janeiro, editado em 1992, cuja implementação foi, de certa forma, interceptada pela criação do Plano Estratégico do Rio de Janeiro

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Fig 9 – Rio Cidade – acessibilidade universal mobiliário urbano Fonte: MADEIRA, LC Domingues, dissertação de mestrado

O que se questiona, porém, é se as práticas do Projeto Urbano, cujos métodos parecem passar pelo urbanismo de gestão, comunicação e participação, (segundo as definições de Lacaze), precisam eliminar as diretrizes de planejamento. Rasgar as normas ditadas pelo plano diretor, contrariando a própria legislação em prol de “oportunidades”, não estaria sendo fruto de gestões no mínimo equivocadas por parte do poder público? Dentro dos métodos apresentados por Lacaze, será que o urbanismo de participação foi trocado pelo urbanismo de comunicação, ou seja, da imagem?

Ainda algumas questões podem ser colocadas. Seria o Projeto Urbano, parte de um plano estratégico? Ou melhor dizendo, um instrumento? Ou ele pode surgir inesperadamente, antes mesmo de um plano, ou até passando por cima deste? O Projeto Urbano não seria em síntese uma intervenção urbana, ainda que com novas características do momento político e econômico em que vivemos?

Finalmente, é mister trazer algumas ressalvas quanto às questões colocadas. Não se está aqui fazendo uma defesa de um planejamento sem projeto. E se críticas podem ser feitas, não são dirigidas ao nome que se deu e sim à ideologia que parece estar por trás.

A aceitação de que o poder público deve olhar a cidade, não mais como uma “vista aérea” (como pareciam ser as representações cartográficas dos planos diretores de outrora) e sim reconhecer a sua forma urbana, suas especificidades sem se restringir apenas às características funcionais;. a introdução de conceitos como morfologia urbana, meio ambiente, paisagem urbana e memória urbana, são elementos hoje incorporados na prática do Projeto Urbano e resultam em um grande saldo positivo.

A política de demolição, sem nenhum respeito aos moradores e ao ambiente construído passou a ser mais cautelosa, e o olhar pontual para trechos da cidade, permitiram uma visão mais concreta de sua realidade, induzindo a intervenções mais

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cuidadosas, respeitando as estruturas existentes, preservando tecidos urbanos antes desprezados

Mas tudo isso não invalida a tese de que, para qualquer projeto, qualquer nova interferência no cenário urbano, as diretrizes devem ser apontadas não só pelas necessidades impositivas do capital financeiro ou imobiliário, (cuja preocupação parece ser apenas a de uma boa imagem), se esta for em detrimento da sua população. Projetos monumentais, os quais competem muitas vezes com estruturas existentes, descabidos com os usos e vocações do lugar e justificados pelo poder público como uma questão de oportunidade ou estratégia de desenvolvimento, podem resultar em produtos tão perniciosos à vida urbana quanto às políticas de “arrasa quarteirão”, comuns nas décadas passadas.

Planejamento e projeto não podem ser vistos como oposições. Um plano propõe direcionamentos, indica o que pode ser adequado ou não. Regula o solo, estabelece prioridades. O plano necessita do projeto urbano, e o projeto necessita do plano, para que se estabeleçam controles de ocupação e usos adequados, além das demais necessidades como circulação viária, redes de infra-estrutura equipamentos urbanos etc. O projeto, a nosso ver, não substitui o plano. Acredita-se que os dois são complementares e não opostos. Se o Projeto Urbano se faz necessário, como prática, ele não deve conter uma carga ideológica, do contrário ele sempre atenderá a uma ideologia do poder pelo poder.

É possível que, no caso das cidades brasileiras, alguns novos instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade, venham a corrigir distorções quanto às possíveis ocupações inadequadas, mas de nada valerão se não forem aplicados, deixando que a cidade cresça, se renove ou se “revitalize” muito mais em função das oportunidades de mercado, contrariando assim um dos princípios mais caros da Constituição Federal – o da função social da propriedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COMPANS, Rose. A Emergência de um Novo Modelo de Urbanismo no Rio de

Janeiro: o “Urbanismo de Resultados” In Encontro Nacional da ANPUR, 1997 DOMINGUES, Luís Carlos Soares Madeira. Projeto Urbano e Planejamento. O Caso

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Como citar este artigo: VASCONCELLOS, Lélia. PROJETO URBANO – UM NOVO TERMO PARA DEFINIR INTERVENÇÕES NA CIDADE? In:

DO AMARAL E SILVA, Gilcéia e ASSEN DE OLIVEIRA, Lisete (org.) Simpósio A Arquitetura da Cidade nas Américas. Diálogos contemporâneos entre o local e o global. Florianópolis: PGAU-Cidade/ UFSC, 2006. CD-ROM, ISBN: 978-85-99773-02-4

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