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Quinta, 12 de fevereiro de 2015 NOTÍCIAS » Notícias Varoufakis vs. Piketty: um embate para prestar atenção O que leva o novo ministro da Fazenda grego a fazer críticas duríssimas ao professor francês, autor de O Capital no Século XXI?, pergunta Antonio Luiz M. C. Costa, em comentário publicado por CartaCapital, 11-02-2015. Eis o comentário. É raro economistas de esquerda serem ouvidos pela mídia, quanto mais levados a sério, mas dois deles conseguiram essa façanha nos últimos meses: o francês Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI e o grego Yanis Varoufakis, novo ministro da Fazenda de seu país. Ambos estão conquistando fã-clubes que não se resumem a colegas de profissão e despertam o interesse de políticos e militantes de esquerda em todo o mundo. Seria de se esperar que suas ideias fossem semelhantes ou complementares. Mas não os convide para a mesma mesa: o ministro grego é um crítico duríssimo do professor francês. Em artigo publicado na Real-World Economics Review, chega a chamá-lo de “ O último inimigo do igualitarismo”. Que as esquerdas não precisam de muitos motivos para se dividir é um clichê fácil, mas as razões da divergência são importantes e interessantes. Não há dúvidas sobre a importância da pesquisa inédita de Piketty sobre mais de duzentos anos de história da concentração de renda e riqueza e da importância das heranças no capitalismo. Nem sobre a “curva em U” que estas variáveis desenharam ao longo do século XX, de maneira a chegar a um mínimo depois da II Guerra Mundial e retornar hoje a um nível quase igual ao do século XIX – ou pior ainda, no caso dos Estados Unidos. O problema está em como o francês analisa teoricamente seus achados, propõe modelos e chega a conclusões sobre recomendações políticas. A primeira dificuldade é que Piketty, embora reivindique com o título e a introdução de sua obra certa pretensão de atualizar e corrigir Karl Marx, sua conceituação está na prática muito mais próxima de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, pois não distingue riqueza de capital e exclui apenas os bens móveis de consumo (tais como automóveis e eletrodomésticos). Moradias, obras de arte e barras de ouro não fazem diferença para o processo de produção, mas ele os trata da mesma maneira que tratores e robôs. Isso torna duvidosa qualquer tentativa de estudar e prever o crescimento e o desempenho da economia a partir dessa massa de “pseudocapital” da qual cerca da metade nada tem a ver com produção. Dificuldade análoga é tratar como “salários” os ganhos astronômicos de altos executivos, parte nada desprezível da renda nacional em países como os EUA, mesmo se são explicitamente vinculados ao lucro e constituídos de bonificações e opções de compra de ações. Valores de mercado são governados por expectativas e pela taxa de remuneração do capital, mas Piketty considera essa taxa e o montante do “capital” como variáveis independentes, o que é inconsistente e conduz a um círculo vicioso. Ainda mais problemático do ponto de vista político é tratar a participação do trabalho e do capital na renda como resultado mecânico das suas leis da acumulação e do efeito de impactos externos, principalmente as guerras mundiais do século XX. Compartilhar Imprimir Enviar por e-mail Diminuir / Aumentar a letra

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  • Quinta, 12 de fevereiro de 2015

    NOTCIAS Notcias

    Varoufakis vs. Piketty: um embate para prestar ateno

    O que leva o novo ministro da Fazenda grego a fazer crticas durssimas ao professor francs, autorde O Capital no Sculo XXI?, pergunta Antonio Luiz M. C. Costa, em comentrio publicado porCartaCapital, 11-02-2015.

    Eis o comentrio.

    raro economistas de esquerda serem ouvidos pela mdia, quanto mais levados a srio, mas doisdeles conseguiram essa faanha nos ltimos meses: o francs Thomas Piketty, autor de O Capital noSculo XXI e o grego Yanis Varoufakis, novo ministro da Fazenda de seu pas. Ambos estoconquistando f-clubes que no se resumem a colegas de profisso e despertam o interesse depolticos e militantes de esquerda em todo o mundo. Seria de se esperar que suas ideias fossemsemelhantes ou complementares. Mas no os convide para a mesma mesa: o ministro grego umcrtico durssimo do professor francs. Em artigo publicado na Real-World Economics Review,chega a cham-lo de O ltimo inimigo do igualitarismo.

    Que as esquerdas no precisam de muitos motivos para se dividir um clich fcil, mas as razes dadivergncia so importantes e interessantes. No h dvidas sobre a importncia da pesquisa inditade Piketty sobre mais de duzentos anos de histria da concentrao de renda e riqueza e daimportncia das heranas no capitalismo. Nem sobre a curva em U que estas variveisdesenharam ao longo do sculo XX, de maneira a chegar a um mnimo depois da II GuerraMundial e retornar hoje a um nvel quase igual ao do sculo XIX ou pior ainda, no caso dosEstados Unidos. O problema est em como o francs analisa teoricamente seus achados, propemodelos e chega a concluses sobre recomendaes polticas.

    A primeira dificuldade que Piketty, embora reivindique com o ttulo e a introduo de sua obracerta pretenso de atualizar e corrigir Karl Marx, sua conceituao est na prtica muito maisprxima de A Riqueza das Naes, de Adam Smith, pois no distingue riqueza de capital e excluiapenas os bens mveis de consumo (tais como automveis e eletrodomsticos). Moradias, obras dearte e barras de ouro no fazem diferena para o processo de produo, mas ele os trata da mesmamaneira que tratores e robs. Isso torna duvidosa qualquer tentativa de estudar e prever ocrescimento e o desempenho da economia a partir dessa massa de pseudocapital da qual cerca dametade nada tem a ver com produo. Dificuldade anloga tratar como salrios os ganhosastronmicos de altos executivos, parte nada desprezvel da renda nacional em pases como os EUA,mesmo se so explicitamente vinculados ao lucro e constitudos de bonificaes e opes de comprade aes.

    Valores de mercado so governados por expectativas e pela taxa de remunerao do capital, masPiketty considera essa taxa e o montante do capital como variveis independentes, o que inconsistente e conduz a um crculo vicioso. Ainda mais problemtico do ponto de vista poltico tratar a participao do trabalho e do capital na renda como resultado mecnico das suas leis daacumulao e do efeito de impactos externos, principalmente as guerras mundiais do sculo XX.

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  • O modelo de Piketty supe que toda poupana se transforma em riqueza (logo capital, em suadefinio) e no h formao de riqueza se no for por meio da poupana. Isso tem pouco a ver como mundo real, como mostra a formao da bolha imobiliria, durante a qual o valor de ativoscresceu aos trilhes com poupanas lquidas nulas ou negativas, ou a situao atual na Europa, ondealtas taxas de poupana se combinam com falncias e destruio ou desvalorizao dos ativos.Implicitamente, Piketty adere mo invisvel de Adam Smith e desacreditada lei de Say,segundo a qual a oferta cria a demanda sem que haja desperdcio, desemprego ou superproduo e apoupana se torna investimento sem ser absorvida por entesouramento improdutivo.

    No essencial, seus dados sobre o processo de concentrao de renda nos pases ricos so slidos eirrefutveis, mas as leis propostas para explic-lo so frgeis. Isso torna igualmente questionvelsua concluso por teorema matemtico, de que a tendncia ao aumento da desigualdade naturalao capitalismo, embora nessa concluso ele esteja mais prximo de Marx do que de Smith.

    Varoufakis argumenta que se renunciarmos s simplificaes arbitrrias de Piketty e aplicarmosmodelos realistas da economia, a participao do capital na renda e sua distribuio sofundamentalmente indeterminadas. Para o grego, no h nada de natural ou determinstico naconcentrao de renda e riqueza no capitalismo. A melhora temporria da distribuio de renda epropriedade durante o sculo XX no foi nem uma anomalia, nem um resultado inevitvel dasguerras, mas o resultado de uma interveno poltica consciente para evitar a depresso econmica esalvar o capitalismo. E a volta do processo de concentrao nos anos 1970 tambm no foi oresultado de leis mecnicas, mas de outra poltica consciente dos EUA para atrair capitais e mantersua hegemonia quando sua competitividade ante Europa e Japo se reduziu e deixou de acumularsupervits no comrcio internacional.

    Essa discordncia terica implica em grandes divergncias prticas sobre o que fazer. Como Pikettyconsidera a tendncia concentrao de renda inerente ao processo de acumulao do capitalismo,prope apenas solues redistributivas, principalmente aumento das alquotas progressivas deimposto de renda para at 80% e um imposto mundial sobre o capital/riqueza.

    Varoufakis argumenta que um imposto sobre a riqueza, mesmo que seja factvel, seriacontraproducente e agravaria as dificuldades da economia. Considere-se uma famlia dedesempregados que conserva sua residncia, ou uma indstria sufocada por falta de demanda ecrdito: uns e outros, mesmo sem dispor de renda, seriam obrigados a pagar um imposto elevado, oque apenas serviria para lev-los mais rapidamente falncia total. Para o grego, um combate eficaz desigualdade deve atuar na formao de salrios e demanda (por polticas keynesianas, porexemplo).

    Ambos tambm divergem drasticamente quanto s propostas para a Zona do Euro. Piketty quer umEstado federal unificado para a Europa, cujas autoridades centrais tenham poderes suficientes paracontrolar e regulamentar o capitalismo financeiro. Varoufakis, em artigo escrito em parceria com oestadunidense James Galbraith, rejeita essa proposta que a seu ver apenas reforaria e congelaria asatuais polticas e aprisionaria os pases membros em uma jaula de ferro de desigualdade,dominao e austeridade perptuas que impediria a evoluo de uma verdadeira democraciaeuropeia. Defende, em vez disso, um misto de ttulos do BCE, resoluo caso-a-caso dos problemasbancrios, um programa de investimentos e um fundo de solidariedade que conservariam assoberanias nacionais e a flexibilidade das polticas econmicas e poderiam ser aplicados de imediatoe sem necessidade de alterar os tratados existentes. Em resumo, as opinies so parecidas quanto aodiagnstico, mas quase opostas quanto ao tratamento.