varios textos antonin artaud
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Antonin Artaud (França, 1896-1948)
A árvore
Esta árvore e o seu frémitosombria floresta de apelos,
de gritos,devora
o obscuro coração da noite.
Vinagre e leite, o céu, o mar,a massa espessa do firmamento,tudo conspira no estremecimento
que habita o denso coração da sombra.
Um coração aberto, um astro duroque em dois se divide e no céu se difunde,
o límpido céu fendidono instante do sol nascente
- fazem todos o mesmo ruídoque a noite e a árvore no centro do vento.
tradução: Herberto Helder In “Doze nós numa corda”,
Assírio & Alvim, 1997
A múmia suspensaTenta o tronco com o olho morto
e revirado para este cadáver,este despelado cadáver que se lavano hórrido silêncio do teu corpo.
O ouro que cresce, o veemente silêncio em cima do teu corpo e a árvore que carregas ainda e este morto que adiante vai.
- Olha como rolam os fusos nas fibras do coração escarlate
este grande coração onde o céu deslumbra enquanto o ouro te submerge os ossos.
É a dura paisagem do fundo que enquanto caminhas se desvela
e a eternidade sobrepassa-te porque não podes atravessar a ponte.
(Tradução de António Ramos Rosa)
Carta AbertaAbandonai as cavernas do ser. Vinde o espírito se revigora fora do espírito. Já é
hora de deixar vossas moradas.Cedei ao Omni-Pensamento. O Maravilhoso está na raiz do espírito. Nós
estamos dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem,Verdade (com V maiúscula), Razão: tudo isso oferecemos ao nada da morte.
Cuidado com vossas lógicas, senhores, cuidado com vossas lógicas; nãoimaginais, até onde pode nos levar nosso ódio à lógica.
A vida, em sua fisionomia chamada real, só se pode determinar mediante um afastamento da vida, mediante uma suspensão imposta ao espírito; porém a
realidade não está aí. Não venham pois, enfastiar em espírito a nós que apontamos para certa realidade supra-real, a nós que há muito tempo não nos consideramos do
presente e somos para nós como nossas sombras reais.Aquele que nos julga ainda não nasceu para o espírito, para este espírito a
que nos referimos e que está, para nós, fora do que vós chamais espírito.Não chamem demasiado nossa atenção para as cadeias que nos unem à
imbecilidade petrificante do espírito. Nós apanhamos uma nova besta.
Os céus respondem a nossa atitude de absurdo insensato. O hábito que tendes todos vós de dar às costas às perguntas não impedirá que os céus se abram no dia
estabelecido, e que uma nova linguagem se instale no meio de vossas imbecis transações. Queremos dizer: das transações imbecis de vossos pensamentos.Existem signos no Pensamento. Nossa atitude de absurdo e de morte é da maior
receptividade. Através das fendas de uma realidade em frente não viável, fala um mundo voluntariamente sibilino.
ARTAUD, Antonin. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Editorial VillaMartha, 1979. (Coleção Surrealistas - Vol. 1)
Carta aos Reitores das Universidades EuropeiasSenhor Reitor
Na estreita cisterna que chamais “Pensamento” os raios do espirito apodrecem como montes de palhas.
Basta de jogos de palavras, de artifícios de sintaxe, de malabarismos formais; precisamos encontrar - agora - a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma Lei, uma prisão, senão um guia para o espirito perdido em seu próprio labirinto. Alem
daquilo que a ciência jamais poderá alcançar, ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens, esse labirinto existe, núcleo para o qual convergem todas as forcas
do ser, as ultimas nervuras do Espirito. Nesse dédalo de muralhas movediças e sempre transladadas, fora de todas as forcas conhecidas de pensamento, nosso Espirito se
agita, espreitando seus mais secretos e espontâneos movimentos, esses que tem um caráter de revelação, esse ar de vindo de outras partes, de caído do céu. Porem a raça dos profetas esta extinta. A Europa se cristaliza, se mumifica lentamente dentro das
ataduras de suas fronteiras, de suas fabricas, de seus tribunais, de suas Universidades. O Espirito “gelado” range entre as laminas minerais que o oprimem. E a culpa è de
vossos sistemas embolorados, de vossa lógica de dois- e - dois - são - quatro; a culpa è vossa, Reitores, apanhados na rede de silogismos. Fabricais engenheiros, magistrados, médicos a quem escapam os verdadeiros mistérios do corpo, as leis cósmicas do ser falsos sábios, cegos para o alem, filósofos que pretendem reconstruir o Espirito. O
menor ato de criação espontânea constitui um mundo mais complexo e mais revelador que qualquer sistema metafísico.
Deixa-nos, pois, Senhores< sois tão somente usurpadores. Com que direitopretendeis canalizar a inteligência e dar diplomas de Espirito?
Nada sabeis do Espirito, ignorai suas mais ocultas e essências ramificações, essas pegadas fosseis, tão próximas de nossas próprias origens, esses rastros que às
vezes logramos localizar nos jazigos mais escuros de nossocérebro.
Em nome de vossa própria lógica, vos dizemos: a vida empesta, senhores.Contemplai por um instante vossos rostos, e considerai vossos produtos.Através das peneiras de vossos diplomas, passa uma juventude cansada,
perdida. Sois a praga de um mundo, Senhores, e boa sorte para esse mundo, mas que pelo menos não se acredite à testa da humanidade.
ARTAUD, Antonin. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Editorial VillaMartha, 1979. (Coleção Surrealistas - Vol. 1)
Carta às Escolas de BudaVós que não estais na carne, que sabeis em que ponto de sua trajectória carnal,
de seu vai e vem insensato, a alma encontra o verbo absoluto, a palavra nova, a terra interior. Vós que sabeis como alguém dá voltas no pensamento e como o espirito pode salvar-se de si mesmo. Vós que sois interiores de vós mesmos, que já não tendes um
espirito ao nível da carne: aqui há mãos que não se limitam a tomar, cérebros que vêem alem de um bosque de tetos, de um florescer de fachadas, de um povo de rodas,
de uma actividade de fogo e de mármores. Ainda que avance esse povo do ferro, ainda que avancem as palavras escritas com a velocidade da luz, ainda que avancem os sexos um até o outro com a violência de um canhonaço, o que haverá mudado nas
rotas da alma, o que os espasmos do coração, na insatisfação do espirito?Por isso, lança às águas todos esse brancos que chegam com suas cabeças
pequenas e seus espíritos já manejados. È necessário agora que esses cachorros nos ouçam. Não falamos do velho mal humano. Nosso espirito sofre de outras
necessidades que as inerentes à vida. Sofremos de uma podridão, a podridão da Razão. A lógica Europa esmaga sem cessar o espirito entre os martelos de dois fins
opostos, abre o espirito e volta a fechá-lo. Porem agora, o estrangulamento chegou ao cumulo, já faz demasiado tempo que padecemos sob seu jugo.
O espirito é maior que o espirito, as metamorfoses da vida da vida são múltiplas. Como vós, rechaçamos o progresso: vinde, deitemos abaixo nossas moradas. Que continuem ainda nossos escribas escrevendo, nossos jornalistas
cacarejando, nossos críticos resmungando, nossos agiotas roubando com seus moldes de rapina, nossos políticos arengando e nossos assassinos legais incubando seus
crimes em paz. Nós sabemos - sabemos muito bem - o que è a nossa vida. Nossos escritores, nossos pensadores, nossos doutores, nossos
charlatães coincidem nisto: em frustar a vida.Que todos estes escribas cuspam sobre nós, que nos cuspam por costume ou por
mania, que nos cuspam porque são castrados de espirito, porque não podem perceber os matizes, os barros cristalinos, as terras giratórias onde o
espirito elevado dos homens se transforma sem cessar. Nós captamos opensamento melhor. Vinde. Salvai-nos destas larvas. Inventai para nós novas
moradas.
NOTAEm 1920, com idade de 24 anos, Antonin Artaud chega à Paris com a intenção
de consagrar-se ao teatro. Liga-se então, com Charles Dullin, que acaba de fundar o "Théâtre de I'Atelier", participando como actor, decorador e realizador. Faz já tempo que Artaud se interessa pelas actividades do grupo surrealista. Em 1923, no atelier de
André Masson, entra em contato comRobert Desnos, Michel Leiris e Miró, quem pouco tempo mais tarde lhe
apresentam a André Breton e ao grupo surrealista, que acaba de organizar-seao redor do Primeiro Manifesto. É a época do aparecimento da revista "A
Revolução Surrealista", órgão do movimento. Artaud adere e se torna um dosprincipais porta-vozes da ideologia. "Apesar do pouco tempo transcorrido
desde que Artaud havia se unido a nós, ninguém, como ele, soube entregar-se
tão espontaneamente ao serviço da causa surrealista... Ele possuía umaespécie de furor que não perdoava, por assim dizer, nenhuma das instituiçõeshumanas, mas que podia, ocasionalmente, terminar em gargalhada. Por elepassava todo o desafio da juventude. Não surpreende que este furor, pelo
enorme poder de contágio que possuía, influenciou profundamente a trajectóriasurrealista (André Breton, "Entretiens", Gallimard, 1952).
No começo do ano de 1925, o grupo funda uma "Central de InvestigaçõesSurrealista", cujo objectivo inicial é: "recolher todos os dados possíveis no que diz
respeito às formas que pode assumir a atividade inconsciente do espirito". Artaud, ao assumir pouco depois a direcção, se esforça por converter o objectivo inicial num,
centro de "reordenamento" da vida. "O surrealismo, mais que crenças, registra uma certa ordem de repulsões. É
antes de tudo um estado de espirito. Não determina receitas". O grupo lheconfia então à direção do n 3 da revista "A Revolução Surrealista", que até
este momento estava a cargo de Péret e Naville.Artaud toma a iniciativa de redigir a maior parte dos textos que se publicam
neste número, dando um giro inesperado ao tom da publicação. "Aqui a linguagem se desprende de tudo o que podia dar-lhe um carácter ornamental, se entrega à "onda de
sonhos" de que falou Aragón, e surge cheia eresplandecente à maneira de uma arma... (Breton, op.cit.)".
Seus textos impregnados de um ardor insurreacional, estão redigidos em forma de cartas abertas e dirigidos contra aquelas instituições ou seus
representantes frente aos quais o surrealismo começa a organizar o seuclamor de protesto. Para a presente edição agrupamos as cartas sob o título
geral de "Cartas aos Poderes".Desde o primeiro texto (Carta Aberta), que figura como editorial da revista, uma voz profética e exaltada por uma violência que inquietava à seus
próprios companheiros, lança uma ataque frontal contra o "espirito" lógico eseus "poderes" de opressão, que de século em século tem instrumentado aliquidação do homem. Nas cartas seguintes fixa os termos de sua denúncia
contra este "espirito" fabricado nas universidades, reivindicado nos hospícios e "transfigurado" em Roma. Fica o chamado à um oriente dialéctico, através das cartas
ao Dalai-Lama e as Escolas de Buda, onde entrevemos – à luz do romantismo surrealista - um eco do "Viagem ao Oriente" nerveliano. Porém não pode apressar-se em reconhecer aqui um oriente histórico, senão melhor um "oriente interior", negação
para onde se transfere tudo o que o ocidente não é. Vinte anos mais tarde, a voz de Artaud, convertida em grito, depois de sua passagem pelo hospício de Rodez,
descarregará com a violência do anátema, todas as suas baterias contra este oriente e seu "espírito", que como todo o "espírito" se aplicou em torturar à vida. Estas cartas junto com "L'Ombilic des Limbes" e "Le pése-nerfs", representam o começo de uma desgarradora experiência de um mergulho em sua interioridade que "está aberta pelo
ventre, por debaixo acumula uma intraduzível e sombria ciência, cheia de mares subterrâneos, de edifícios côncavos e de uma agitação congelada".
ARTAUD, Antonin. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Editorial VillaMartha, 1979. (Coleção Surrealistas - Vol. 1)
GritoO pequeno poeta celesteAbre ao peito as gelosias.
Entrechocam-se os céus. O olvidoDesenraíza a sinfonia.
Palafreneiro a casa loucaQue te põe a guardar lobosNão suspeita das cólerasGeradas na grande alcova
Da abóbada sobre nós absorta.
Por consequência noite e silêncioReprimi qualquer impurezaO céu a grandes passadas
Cruza os ruídos.
A estrela devora. O céu oblíquoRompe o voo para o altoA noite varre os resíduos
Do deleitoso repasto.
Na terra caminha uma lesmaMil brancas mãos a aplaudem
Uma lesma sobe ao sítioDe onde se evolou a terra.
Anjos, que nenhuma obscenidadeInspira, em paz regressavam
Quando se ergueu a voz da verdadeDo espírito que os chamava.
O sol mais baixo que o diaEvaporava o mar todo
Nasceu na terra confusaUm estranho mas nítido sonho.
O pequeno poeta perdidoDeixa o lugar além-mundo
Com uma ideia celesteContra o coração cabeludo.
***
Duas tradições em vigência.Mas o pensamento fechado
Não dispõe de qualquer espaço.Recomeçar a experiência.
In Doze Nós Numa Corda - poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Dezembro de 1997
Heliogabalo(Excerto)
Heliogabalo chegará a Roma na Primavera do ano de 218, depois de uma estranha marcha de sexo, de um desencadear fulgurante de júbilos, através de todos os Balkâs.
Ora corre à disparada no seu carro coberto de doceis, e atrás dele o Falos de dez toneladas metido numa caixa que parece abrigar um mamute; ora tardando, mostrando os seus tesouros, a sua fábrica de sumptuosidade, e organizando desfiles bizarros para multidões imbecis e temerosas. O Falos, sobre a carreta descomunal, quase ao nível
do chão, rodas largas como coxas de elefantes, puxado a trezentos touros enlouquecidos por matilhas de hienas ululantes mas acorrentadas, atravessa a Turquia
europeia, a Macedónia, a Grécia, os Balkâs, a Áustria, numa corrida de Zebra.(...)
(in «Heliogabalo ou o Anarquista Coroado»,Tradução de Mário Cesariny)
Invocação à múmiaEstas ravinas de osso e de pelepor onde começam as trevas
do absoluto, e a pintura desta bocaque fechas como uma cortina
E o ouro que te desliza em sonhoa vida que te despoja de ossos,
e as flores deste olhar falsopor onde reencontras a luz
Múmia, e estas mãos de fusos
para remexer nas tuas entranhas,estas mãos onde a sombra espantosa
toma o aspecto de um pássaro
Tudo isso de que a morte se ornacomo de um rito aleatório,
esta conversa de sombras, e o ouroonde bóiam as negras entranhas
Por aí é que eu te alcanço,
ardida senda das veias, e o ouroé como a minha dor
o testemunho certo e pior
tradução: Herberto Helder In “Doze nós numa corda”,
Assírio & Alvim, 1997
(No topo das essências)No topo das essências fixadas, correspondente às
inumeravéis modalidades da matéria, existe aquilo que, na subtileza das essências, na violência do fogo ígneo
corresponde aos princípios geradores das coisas, aquilo que o espírito que pensa pode denominar princípios, os
quais porém correspondem, em relação à totalidade fervente das coisas, a graus conscientes da Vontade na
Energia.
Não existem princípios da matéria subtil ou do enxofre ou do sal, mas, para além do sal, do mercúrio ou
do enxofre, matérias ainda mais subtis que, no último extremo da vibração orgânica, dão conta da diversidade do espírito através das coisas; e a quem pede lhe sejam apresentadas as coisas, só os números respondem dando
conta das suas existências separadas.(...)
in “Heliogabalo ou o Anarquista Coroado”,Tradução de Mário Cesariny de Vasconcelos
[O homem-árvore](Carta a Pierre Loeb)
Ivry, 23 de Abril de 1947
O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,mas de vontade e árvore de vontade que anda, voltará.
Existiu, e voltará.Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo, ingestão,
assimilação, incubação, excreção, o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam ao domínio da vontade decisora, a vontade que em cada
instante decide de si; porque assim era a árvore humana que anda, uma vontade que decide a cada instante de si, sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente
rege.Do que somos e queremos na verdade pouco resta, um pó ínfimo sobrenada, e o
resto, Pierre Loeb, o que é?Um organismo de engolir, pesado na sua carne, e que defeca,
e em cujo campo, como um irisado distante, um arco-íris de reconciliação com deus, sobrenadam, nadam os átomos perdidos, as ideias, acidentes e acasos no total de um
corpo inteiro.Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?Corpos que comeram, digeriram, dormiram, ressonaram uma vez por noite, cagaram entre 25 e 30 000 vezes, e em face de 30 ou 40 000 refeições,40 mil sonos, 40 mil roncos, 40 mil bocas acres e azedas ao despertar,tem cada qual de apresentar 50 poemas, o que realmente não é de mais,
e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática está muito longe de ser mantido, está todo ele desfeito, mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos 50 poemas, o resto não somos nós mas o nada que nos veste,se ri para começar de nós, vive de nós a seguir.
Ora este nada nada é, não é qualquer coisa mas alguns.Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio, ou seja sem dor própria, que em si não aceitam vontade de uma dor própria e para forma de viver mais não encontram
que falsificar a humanidade.E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos, fizeram este alambique de
merda, esta barrica de destilação fecal, causa de peste e de todas as doençase deste lado de híbrida fraqueza, de tara congénita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento, só era nervos eléctricos, chamas de um fósforo perpetuamente aceso, mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram, os
animais, essas deficiências de um magnetismo inato, essa cova de oco entre dois foles de força que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa, e a vida mágica do
homem caiu, o homem caiu do seu rochedo com ímane a inspiração que era o fundo passou a ser o acaso, o acidente, a raridade,
a excelência, talvez excelência mas à frente de um tal acervo de horrores, que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso, era o estado-manobra, - operário, o trabalho sem rebarbas, sem perdas, numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?Pelas razões que levam o organismo de animal, que foi feito para e por animais
e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.Exactamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras.Mais fatal a explosão do organismo dos animais que a do trabalho único no
esforço dessa vontade única e muito impossível de encontrar.Porque realmente o homem-árvore, o homem sem função nem órgãos que lhe
justifiquem a humanidade, esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro, a capa ilusória do outro, prosseguiu na sua vontade mas oculta, sem compromissos nem
contacto com o outro.E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo mas logo depois com muita força,
estilo bomba, irá revelar a sua inanidade.Porque devia criar-se um crivo entre o primeiro dos homens-árvores e os
outros, mas aos outros foi preciso o tempo, séculos de tempo para os homens que tinham começado ganharem o seu corpo como aquele que não começou e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio, e não havia lá ninguém, e lá não havia começo.
E então?Então.
Então as deficiências nasceram entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.
Em breve esse trabalho será concluído.E a carapaça terá de ceder.
A carapaça do mundo presente.Levantada sobre as mutilações digestivas de um corpo esquartelado em dez mil
guerras e pela dor, e a doença, e a miséria, e a penúria de géneros, objectos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro das instituições sociais e burguesas,que nunca trabalharam mas grão a grão amealharam o bem roubado desde há biliões
de anos e conservado em certas cavernas de forças defendidas pela humanidade inteira, com algumas tantas excepções vão ver-se obrigados a gastar as energias nessa
coisa que é combater, vão lá poder deixar de combater, pois no fim da guerra e esta agora apocalíptica, que há-de vir, está a sua cremação eterna.
Por isto mesmo eu julgo que o conflito entre a América e a Rússia, reforçado ele seja a bombas atómicas, pouco vai ser ao lado e em face do outro conflito que vai
repentinamente estalar entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado, e por outro o homem de vontade pura e os seus muito raros aderentes e sequazes mas
com a sempiterna força por si.
Tradução de Aníbal Fernandes
O pesa nervos O difícil é encontrar de fato o seu lugar e restabelecer a comunicação consigo
mesmo. O todo está em certa floculação das coisas, no agrupamento de toda essa pedraria mental em torno de um ponto que falta justamente encontrar. E eu, eis o que penso do pensamento: A INSPIRAÇÃO CERTAMENTE
EXISTE. E há um ponto fosforescente onde toda a realidade se reencontra, porém mudada, metamorfoseada - e pelo quê? - um ponto de mágica utilização das coisas. E
eu creio nos aerólitos mentais, em cosmogonias individuais. Toda a escritura é uma porcaria. As pessoas que saem do vago para tentar
precisar seja o que for do que se passa em seu pensamento são porcos. Todo o mundo literário é porco, e especialmente o desse tempo. Todos aqueles
que têm pontos de referência no espírito, quero dizer, de um certo lado da cabeça, em bem localizados embasamentos de seus cérebros, todos aqueles que são mestres em sua língua, todos aqueles para quem as palavras tem um sentido, todos aqueles para
quem existem altitudes na alma, e correntes de pensamento, aqueles que são o espírito da época, e que nomearam essas correntes de pensamento, eu penso em suas tarefas
precisas, e nesse rangido de autómato que espalha aos quatro ventos seu espírito, - são porcos.
Aqueles para quem certas palavras têm sentido, e certas maneiras de ser, aqueles que mantêm tão bem os modos afectados, aqueles para quem os sentimentos têm classes e que discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes classificações,
aqueles que crêem ainda em "termos", aqueles que remoem ideologias que ganham espaço na época, aqueles cujas mulheres falam tão bem e também e que falam das
correntes da época, aqueles que crêem ainda numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que agitam nomes, que fazem bradar as páginas dos livros - são os
piores porcos. Você é bem gratuito, moço! Não, eu penso em críticos barbudos.
Eu já lhes disse: nada de obras, nada de língua, nada de palavra, nada de espírito, nada. Nada, excepto um belo Pesa-nervos.
Uma espécie de estação incompreensível e bem no meio de tudo no espírito. E não esperem que eu lhes nomeie esse tudo, que eu lhes diga em quantas partes ele se divide, que eu lhes diga seu peso, que eu ande, que eu me ponha a discutir sobre esse tudo, e que, discutindo, eu me perca e me ponha assim, sem perceber, a PENSAR - e que ele se ilumine, que ele viva, que ele se enfeite de uma multidão de palavras, todas
bem cobertas de sentido, todas diversas, e capazes de expor muito bem todas as atitudes, todas as nuanças de um pensamento muito sensível e penetrante. Ah, esses estados que nunca são nomeados, essas situações eminentes da alma,
ah, esses intervalos de espírito, ah, esses minúsculos malogros que são o pão de cada dia de minhas horas, ah, esse povo formigante de dados - são sempre as mesmas
palavras que me servem e na verdade eu não pareço mexer muito em meu pensamento, mas eu mexo nele muito mais do que vocês na realidade, barbas de
asnos, porcos pertinentes, mestres do falso verbo, arranjadores de retratos, folhetinistas, rasteiros, ervateiros, entomologistas, praga de minha língua. Eu lhes disse que não tenho mais minha língua, mas isto não é razão para que
vocês persistam, para que vocês se obstinem na língua. Vamos, eu serei compreendido dentro de dez anos pelas pessoas que farão o que
vocês fazem hoje. Então meus géiseres serão conhecidos, meus gelos serão vistos, o modo de desnaturar meus venenos estará aprendido, meus jogos d'alma estarão
descobertos. Então meus cabelos estarão sepultos na cal, todas minhas veias mentais, então se perceberá meu bestiário e minha mística terá se tornado um chapéu. Então ver-se-á fumegar as junturas das pedras, e arborescentes buquês de olhos mentais se cristalizarão em glossários, então verse-ão cair aerólitos de pedra, então ver-se-ão cordas, então se compreenderá a geometria sem espaços, e se aprenderá o que é a
configuração do espírito, e se compreenderá como eu perdi o espírito. Então se compreenderá por que meu espírito não está aí, então ver-se-ão todas
as línguas estancar, todos os espíritos secar, todas as línguas encorrear, as figuras humanas se achatarão, se desinflarão, como que aspiradas por ventosas secantes, e essa lubrificante membrana continuará a flutuar no ar, esta membrana lubrificante e
cáustica, esta membrana de duas espessuras, de múltiplos graus, de um infinito de lagartos, esta
melancólica e vítrea membrana, mas tão sensível, tão pertinente também, tão capaz de se multiplicar, de se desdobrar, de se voltar com seu espelhamento de lagartos, de
sentidos, de estupefacientes, de irrigações penetrantes e virosas, então tudo isto será considerado certo, eu não terei mais necessidade de falar.
O suicídio é uma solução?Não, o suicídio ainda é uma hipótese. Quero ter o direito de duvidar do suicídio
assim como de todo o restante da realidade. É preciso, por enquanto e até segunda ordem, duvidar atrozmente, não propriamente da existência, que está ao alcance de qualquer um, mas da agitação interior e da profunda sensibilidade das coisas, dos actos, da realidade. Não acredito em coisa alguma à qual eu não esteja ligado pela
sensibilidade de um cordão pensante, como que meteórico e ainda assim sinto falta de mais meteoros em acção. A existência construída e sensível de qualquer homem me
aflige e decididamente abomino toda realidade. O suicídio nada mais é que a conquista fabulosa e remota dos homens bem-pensantes, mas o estado propriamente
dito do suicídio me é incompreensível. O suicídio de um neurasténico não tem qualquer valor de representação, mas sim o estado de espírito de um homem que tiver determinado seu suicídio, suas circunstâncias materiais e o momento do seu desfecho maravilhoso. Desconheço o que sejam as coisas, ignoro todo o estado humano, nada
no mundo se volta para mim, dá voltas em mim. Tolero terrivelmente mal a vida. Não existe estado que eu possa atingir. E certamente já morri faz tempo, já me suicidei.
Me suicidaram, quero dizer. Mas que achariam de um suicídio anterior, de um suicídio que nos fizesse dar a volta, porém para o outro lado da existência, não para o lado da morte? Só este teria valor para mim. Não sinto apetite da morte, sinto apetite de não ser, de jamais ter caído neste torvelinho de imbecilidades, de abdicações, de renúncias e de encontros obtusos que é o eu de Antonin Artaud, bem mais frágil que
ele. O eu deste enfermo errante que de vez em quando vem oferecer sua sombra sobre a qual ele já cuspiu faz muito tempo, este eu capenga, apoiado em muletas, que se arrasta; este eu virtual, impossível e que todavia se encontra na realidade. Ninguém
como ele sentiu a fraqueza que é a fraqueza principal, essencial da humanidade. A de ser destruída, de não existir.
Os sentimentos atrasamOs sentimentos atrasam,
as paixões atrasam,as instituições atrasam,
está tudo a mais, nesse demais sempre a pesar sobre a existência, ela própria uma ideia a mais,
filósofos, sábios, médicos, padres, pouco a pouco, de mansinho e brutalmente, têm-nos feito esta vida falsa
porque não há profundidade nas coisas, não há além, nem mais voragem do que a que formos capazes de lá pôr
já,sem ideia nem entidade,
sem imanência nem instância,nada me espera para me pedir contas,
mas eu tenho contas a pedir a alguns ignóbeisvelhos labregos da doutrina,
contas a pedir por retardarem a vida com os seus sentimentos, paixões, instituições.(...)
tradução: Ernesto SampaioIn “Os Sentimentos Atrasam”,
Hiena, 1993
Para acabar com o julgamento de DeusRito de Sol Negro
E lá embaixo, no pé da encosta amarga,cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzesbem lá embaixo
como se incrustada na terra amarga,desincrustada do imundo abraço da mãe
que baba.A terra do carvão negroé o único lugar húmidonessa fenda de rocha.
Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir no orifício da terra.
Há seis homensum para cada sol
e um sétimo homemque é o sol
cruvestido de negro e carne viva.
Mas este sétimo homemé um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-O.Mas é o cavalo
que é o sole não o homem.
No dilaceramento de um tambor e uma trombeta longaestranha,
os seis homensque estavam deitados
tombados no rés-do-chão,brotaram um a um como girassóis,
não sóisporém solos que giram,
lótus d’água,e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombriae refreada
a batida do tamboraté que de repente chega a galope, a toda velocidade
último sol,o primeiro homem,
o cavalo negro com umhomem nu,
absolutamente nue virgemem cima.
Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentese o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem pararna crista da rochaaté os seis homens
terem cercadocompletamenteas seis cruzes.
Ora, o tom maior do Rito é precisamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZQuando terminam de girar
arrancamas cruzes do chão
e o homem nua cavaloergue
uma enorme ferradurabanhada no sangue de uma punhalada.
A QUESTÃO QUE SE COLOCA...O que é grave
É sabermosque atrás da ordem deste mundo
existe uma outraQue outra?
Não o sabemos.O número e a ordem de suposições possíveis
neste campoé precisamente
o infinito!E o que é o infinito?
Não o sabemos com certeza.É uma palavra que usamos
para designarabertura
da nossa consciênciadiante da possibilidade
desmedida,inesgotável e desmedida.E o que é a consciência?
Não o sabemos com certeza.É o nada.Um nada
que usamospara designar
quando não sabemos alguma coisae de que formanão o sabemos
e entãodizemos
consciência,do lado da consciência
quando há cem mil outros lados.E então?
Parece que a consciênciaestá ligada
em nósao desejo sexual
e à fome.Mas poderiaigualmente
não estar ligadaa eles.Dizem,
é possível dizer,há quem diga
que a consciênciaé um apetite,
o apetite de viver:e imediatamente
junto com o apetite de vivero apetite da comida
imediatamente nos vem à mente;como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;e que tem fome.
Pois isso tambémexiste:
os que tem fomesem apetite;
e então?Então
o espaço do possívelfoi-me apresentado
um diacomo um grande peidoque eu tivesse soltado;
mas nem o espaçonem a possibilidade
eu sabia exatamente o que fossem,nem sentia necessidade de pensar nisso,
eram palavrasinventadas para definir coisas
que existiamou não existiam
diante dapremente urgência
de uma necessidade:suprimir a ideia,a ideia e seu mito
e no seu lugar instaurara manifestação tonante
dessa necessidade explosiva:dilatar o corpo da minha noite interior,
do nada interiordo meu euque é noite,
nada,irreflexão,
mas que é explosiva afirmaçãode que há
alguma coisapara dar lugar:
meu corpo.Mas como,
reduzir meu corpoa um gás fétido?
Dizer que tenho um corpoporque tenho um gás fétido
que se forma em mim?Não sei
massei que
o espaço,o tempo,
a dimensão,o devir,o futuro,o destino,
o ser,o não-ser,
o eu,o não-eu
nada são para mim;mas há uma coisa
que é algo,uma só coisaque é algoe que sinto
por ela quererSAIR:
a presençada minha dor
do corpo,a presença
ameaçadorainfatigável
do meu corpo;e ainda que me pressionem com perguntas
e por mais que eu me esquive a elashá um ponto
em que me vejo forçadoa dizer não,
NÃOà negação;
e chego a esse pontoquando me pressionam,
e me apertame me manipulamaté sair de mim
o alimento,meu alimento
e seu leite,e então o que fica?Fico eu sufocado;
e não sei que acção é essamas ao me pressionarem com perguntas
até a ausênciae a anulaçãoda pergunta
eles me pressionamaté sufocarem em mim
a ideia de um corpoe de ser um corpo,
e foi então que senti o obscenoe que
soltei um peidode saturaçãoe de excessoe de revolta
pela minha sufocação.É que me pressionavam
ao meu corpoe contra meu corpo
e foi entãoque eu fiz tudo explodirporque no meu corpo
não se toca nunca
Poema inacabado sobre RodezPassei 9 anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.Essa medicina chama-se electrochoque, consiste em meter
o paciente num banho de electricidade, fulminá-loe pô-lo bem esfolado a nu
e expor-lhe o corpo tão externo como interno à passagemde uma corrente
que vem do lugar onde se não está nem deveria estar para láestar.
O electrochoque é uma corrente que eles arranjam sei lácomo,
que deixa o corpo,o corpo sonâmbulo interno,
estacionáriopara ficar sob a alçada da lei
arbitrária do ser,em estado de morte
por paragem do coração.
Post- ScriptumQuem sou?
De onde venho?Eu sou o Antonin Artaud
e basta dizê-locomo sei dizê-lo,imediatamente
vereis o meu corpo actualvoar em estilhaços
e em dois mil aspectos notóriosrefazer
um novo corpoonde nunca mais
podereisesquecer-me.
Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,minha mãe,e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!Estou sempre morto.
Mas um vivo morto,
Um morto vivo.Sou um mortoSempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.Quero transportá-la para minha vida.
Eu represento totalmente a minha vida.
Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meuespírito.
Não concebo uma obra de artedissociada da vida.
Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseilleno dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,e pouco me importa a Virgem Maria.
1ª estrofe: tradução de Aníbal Fernades publicada em Eu, Antonin Artaud, Hiena, 1988
"Quem sou eu?De onde venho?
Sou Antonin Artaude basta que eu o diga
Como só eu o sei dizere imediatamente
hão de ver meu corpoactual,
voar em pedaçose se juntar
sob dez mil aspectosdiversos.
Um novo corpono qual nunca maispoderão esquecer.
Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,meu pai,
minha mãe,e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!Estou sempre morto.
Mas um vivo morto,Um morto vivo.Sou um morto
Sempre vivo.A tragédia em cena já não me basta.Quero transportá-la para minha vida.
Eu represento totalmente a minha vida.
Onde as pessoas procuram criar obrasde arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.
Eu, o senhor Antonin Artaud,nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.