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REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA

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REVISTA DA

ABRALINASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA

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REVISTA DA ABRALIN VOLUME ELETRÔNICO NÚMERO ESPECIAL 1ª PARTE 2011

ISSN 1678-1805

REVISTA DA

ABRALINASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA

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REVISTA DA

ABRALIN

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA

EDITOR-CHEFE

Prof. Dr. Rodolfo IlariUniversidade Estadual de Campinas

Prof. Dr. Dermeval da Hora Universidade Federal da Paraíba

Profa. Dra. Thaís Cristófaro Silva Universidade Federal de Minas Gerais

EDITOR ADJUNTO

Profa. Dra. Teresa Cristina WachowiczUniversidade Federal do Paraná

Profa. Dra. Kazuê Saito Monteiro de Barros Universidade Federal de Pernambuco

Profa. Dra. Maria Carlota Amaral P. Rosa Universidade Federal do Rio de Janeiro

COMITÊ EDITORAL

CONSELHO EDITORAL

Aryon Dall'Igna Rodrigues (UnB)Bruna Franchetto (UFRJ/Museu Nacional)

Carlos Alberto Faraco (UFPR)Charlote Marie C. Galves (UNICAMP)

Daniel Vanderveken (Quebéc Trois-Rivières)Dermerval da Hora (UFPb)

Dino Preti (USP)Eduardo Guimarães (UNICAMP)

Eleonora Cavalcante Albano (IEL-UNICAMP)Elsa Gomes-Imbert (Toulouse 2)

Emilio Bonvini (CNRS-LLACAN-Paris)Eni de Lourdes P. Orlandi (IEL-UNICAMP)

Esmeralda Negrão (USP)Fábio Alves (UFMG)

Gessiane Picanço (UFPará)Gillian Sankoff (University of Pennsylvania)

Gregory Guy (York University)Ida Lúcia Machado (UFMG)

Ieda Maria Alves (USP)Ilza Maria de Oliveira Ribeiro (UFBA)

Ingedore Grunfeld Villaça Koch (UNICAMP)Ingrid Finger (UFRGS)

Ivone Panhoca (PUCCAMP)Kazué Saito Monteiro de Barros (UFPe)

Laura Álvarez (ISPLA - Univ. de Estocolmo)Leda Bisol (PUC-RS)

Leo Wetzels (Vrije Univ. Amsterdan)Leonor Scliar-Cabral (UFSC)

Letícia Maria Sicuro Corrêa (PUC-RIO)

REVISÃO E NORMALIZAÇÃO DE TEXTOS

Prof. Dr. Rodolfo IlariProfa. Dra. Teresa Cristina Wachowicz

Lorenzo Teixeira Vitral (UFMG)Luiz Carlos Cagliari (UNESP Araraquara)Luiz Carlos Travaglia (UFU)Luiz Marcuschi (UFPE)Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ)Maralice de Souza Neves (UFMG)Márcia Cançado (UFMG)Marcus A. Rezende Maia (UFRJ/Mus. Nac)Margarida Basílio (PUC_Rio)Maria Aparecida Torres Morais (USP)Maria Bernardete Abaurre (UNICAMP)Maria Carlota do Amaral Rosa (UFRJ)Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ)Maria da Graça Krieger (UNISINOS)Maria Helena Mira Mateus (Univ. de Lisboa)Maria Helena M. Neves (UNESP-Araraquara)Maria Izabel Magalhães (UnB)Maria Luiza Braga (UFRJ)Maria Manoliu (UC-Davis)Maria Marta Pereira Scherre (UnB)Maximiliano Guimarães (UFPR)Oswaldo Ducrot (EHESS - Paris)Palmira Marrafa (Univ. de Lisboa)Rosane de Andrade Berlinck (UNESP)Ruth Elisabeth V. Lopes (UNICAMP)Sérgio Moura Menuzzi (UFRGS)Tereza Cabré (Universidade de Barcelona)Teresa Cristina Wachowicz (UFPR)Thaís Cristófaro Silva (UFMG)

CAPA E PROJETO GRÁFICO

Lúcio Baggio

FORMATAÇÃO

Patricia Mabel Kelly Ramos

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REVISTA DA

ABRALINASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA

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REVISTA DA

ABRALIN

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA

R454 Revista da Abralin / Associação Brasileira de Linguística. Vol 1. n1 (jun.2002 - . - Curitiba, PR: UFPR, 2002-.

Vol.Eletrônico, n.Especial (1ª parte 2011) Semestral ISSN 1678-1805

1. Lingüística - Periódicos. 2. Gramática comparada e geral. 3. Palavra - Linguística. I. Universaidade Fedral do Paraná. II. Associação Brasileira de Linguística. III. Título.

CDD: 415

Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB9/1548

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SUMÁRIO

ARTIGOS

COLEÇÃO COLETIVAS DE GRAMÁTICAS DESCRITIVAS: REFLETINDO SOBRE A EXPERIÊNCIA

BRASILEIRA ............................................................................................................................... 13

Ataliba T. de Castilho - Universidade de São Paulo (USP)

GRAMÁTICA: REFLEXÕES SOBRE UM PERCURSO DE ELABORAÇÕES DE MANUAIS ................ 33

Maria Helena de Moura Neves - Universidade Presbiteriana Mackenzie -

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - CNPq

CONSTRUÇÃO DE GRAMÁTICAS DESCRITIVAS ......................................................................... 53

Maria Helena Mira-Mateus - Profª Catedrática Jubilidada (FLUL e ILTEC)

LAS MACROGRAMÁTICAS COLECTIVAS. LENGUA-I Y LENGUA-E: DATOS, TÉCNICAS Y

TEORIAS IMPLÍCITAS ................................................................................................................ 71

Violeta Demonte- Consejo Superior de Investigaciones Científi cas, España (CCHS- CSIC)

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O PAPEL DOS FATORES LINGUÍSTICOS, SOCIAIS E

ESTILÍSITICOS ........................................................................................................................... 91

Maria Eugênia Duarte - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) /CNPq/FAPERJ

Maria da Conceição Paiva - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) /CNPq

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICAS E O PAPEL DO FATORES SOCIAIS: O GÊNERO DO FALENTE

EM FOCO ...............................................................................................................................121

Maria Marta Pereira Scherre - Universidade Federal do Espirito Santo (UFES) -

Universidade de Brasília (UnB)/CNPq

Lilian Coutinho Yacovenco - Universidade Federal do Espitiro Santo (UFES)

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A VARIAÇÃO LINGUÍSTICAS E AS RESTRIÇÕES ESTILÍSTICAS/LINGUISTIC VARIATION AND

THE STYLISTIC CONSTRAINTS ...............................................................................................147

Dermeval da Hora - Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Léo Wetzels Vrije Universiteit – Amsterdam

DESENVOLVIMENTO LINGUÍSTICO NA AQUISIÇÃO DE PORTUGUÊS L2 (ESCRITO) POR

SURDOS: A ESTRUTURA DO SINTAGMA NOMINAL ...............................................................189

Heloisa Maria Moreira Lima Salles - Universidade de Brasília (UnB)

Lilian Coelho Pires - Universidade de Brasília (UnB)

A DESCRIÇÃO DAS LÍNGUAS ’EXÓTICAS’ E A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA ....................209

Cristina Altman - Universidade de São Paulo (USP)

TWO SORTS OF BARE NOUNS IN BRAZILIAN PORTUGUESE.................................................231

Roberta Pires de Oliveira- Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)/CNPq

Susan Rothstein - Bar-Ilan University

AU NOM DE NON, PERSPECTIVES DISCURSIVES SUR LA NEGATIVITÉ ...............................267

Dernis Bertrand - Université Paris 8 - Vincennes - Saint-Denis

O DISCURSO DA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS .....................................................................291

Diana Luz Pessoa de Barros - Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) - Universidade de

São Paulo (USP) /CNPq

MELODIC ANALYSIS OF SPEECH (MAS): APLICACION EN LA COMPARACIÓN DE LENGUAS

(CONFERÊNCIA) ............................................................................................................333

Dolors Font-Rotchés - Laboratori de Fonètica Aplicada - Universitat de Barcelona

A EXPRESSÃO VARIÁVEL DO FUTURO VERBAL NA ESCRITA: BRASIL E PORTUGAL EM

CONFRONTO .........................................................................................................................367

Josane Moreira de Oliveira - Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

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O FUTURO NAS LÍNGUAS ROMÂNICAS .................................................................................385

José Luiz da Veiga Mercer - Universidade Tuiuti do Paraná

A REPRESENTAÇÃO DO TEMPO FUTURO EM TEXTOS ESCRITOS: UMA ANÁLISE

DIACRÔNICA .........................................................................................................................395

Rita do Carmo Polli da Silva - Faculdade Internacional de Curitiba (FACINTER)

ANÁLISE AUTOMÁTICA DA MORFOLOGIA VERBAL DO PB: PLATAFORMA CHILDES ..........431

Leonor Scliar Cabral - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)/CNPq

Vera Vasilévski - (PNPD CAPES)

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ARTIGOS

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 13-31. 1ª parte 2011

CONSTRUÇÃO COLETIVA DE GRAMÁTICAS DESCRITIVAS: REFLETINDO SOBRE A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

Ataliba Teixeira de CASTILHOAssessor linguístico do Museu da Língua PortuguesaUniversidade de São Paulo (USP) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Introdução

A moderna Linguística fi xou-se no Brasil a partir dos anos 70. Até então, os brasileiros interessados nessa disciplina tinham apenas três possibilidades para estudá-la: as aulas de Joaquim Mattoso Câmara Jr. na Universidade do Brasil, hoje UFRJ, as de Theodoro Henrique Maurer Jr. na Universidade de São Paulo, ou, aqui, em Curitiba, as aulas de Raul Farâni Mansur Guérios.

De lá para cá muita coisa mudou. Apenas para lembrar: o I Seminário de Linguística de Marília, realizado em 1967, reuniu todos os linguistas brasileiros de então, escassamente uns 15 ou 20. A ABRALIN, fundada em 1969, por proposta apresentada naquele seminário, tem hoje centenas e centenas de associados. Isso, sem falar nas muitas associações regionais de Linguística.

Como todo movimento científi co que estreia, a Linguística brasileira precisava escolher um inimigo. Escolheu dois: a Filologia, entendida como edição crítica de textos, e a gramática tradicional. A primeira voltou, felizmente, trazida pelo ressurgimento da Linguística Histórica, e a segunda resiste ainda em alguns grotões.

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Passadas as primeiras horas de emoção, fi cou claro que os linguistas brasileiros precisariam defi nir seus caminhos. Vou me fi xar num deles: a documentação e a descrição do português brasileiro falado. Depois de quebrar a cabeça com as transcrições de conversas, pelo menos dois rumos derivaram desses esforços: a análise da conversação e a descrição gramatical.

Mas a malhação da gramática tradicional exigia, como contraparte, que se demonstrasse que poderíamos dispor de boas gramáticas descritivas, em que não se encontrassem aqueles erros todos com que nos indignávamos em nossos seminários.

Foi assim que começamos a escrever gramáticas, donde a relevância desta mesa-redonda, em que foram reunidos uma linguista portuguesa, uma linguista espanhola e dois brasileiros, escritores de gramáticas, competentemente presididas por Rodolfo Ilari, que também é do ramo. Juntamente com os integrantes desta seção, agradeço à Diretoria da ABRALIN por ter patrocinado este encontro.

1. Gramáticas escritas por linguistas

Tomada a decisão de escrever gramáticas, duas opções ocorreram entre os linguistas-gramáticos brasileiros.

Uns optaram pelo trabalho individual. Pela ordem cronológica, temos nesta categoria primeiramente Mário Alberto Perini, com sua Gramática descritiva do Português, de 1995, a que se seguiram a Modern Portuguese, a reference Grammar, de 2002, e a Gramática do Português Brasileiro, de 2010. Logo depois, veio Maria Helena Moura Neves, com sua monumental Gramática de Usos do Português, de 2000, com 1037 páginas, fundamentada num vasto corpus de análise.

Outros optaram por iniciativas coletivas. Maria Helena Mira Mateus deu início a esta forma de elaboração de gramáticas, em Portugal, em 1983, com sua Gramática da Língua Portuguesa, de que se tiraram 4 edições. Em 1999, ela e as demais autoras – lembremo-nos de que esta gramática

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Ataliba Teixeira de Castilho

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foi escrita exclusivamente por mulheres! – decidiram “preparar uma nova edição, amplamente revista, com maior pendor descritivo, com um estilo menos tecnicista e com uma cobertura linguística mais ampla”. A quinta edição, publicada em 2003, é de fato uma nova obra, do alto de suas 1127 páginas. A vizinha Espanha não fi cou atrás, e em 1999 saiu a enorme Gramática descriptiva de la Lengua Española, editada por Ignacio Bosque e Violeta Demonte, com 3 volumes, mais de 5000 páginas, escritas por 73 autores! Sem dúvida, a mais completa gramática de uma língua românica.

Deixando de lado a Grande grammatica di consultazione, de Lorenzo Renzi e Giampaolo Salvi, de 3 volumes, e a A Comprehensive Grammar of English Language, de Randolph Quirk e associados, retorno ao Brasil, e passo a fazer algumas considerações sobre a Gramática do Português Culto Falado no Brasil, que teve início em 1987. Em seguida, apresento algumas refl exões teóricas baseadas nos achados dessa gramática, terminando minha intervenção com um pedido à ABRALIN.

Naquele ano de 1987, quatro anos depois da iniciativa de Maria Helena Mira Mateus, e a convite da Profa. Maria Helena de Moura Neves, apresentei ao Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística, ANPOLL, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o “Projeto de Gramática do Português Falado”, (PGPF), voltado para a preparação coletiva de uma gramática do português falado.

Tendo havido boa receptividade à ideia, convoquei em 1988 o I Seminário desse projeto, no qual se debateu o plano inicial, que era o de “preparar uma gramática de referência do português culto falado no Brasil, descrevendo seus níveis fonológico, morfológico, sintático e textual”.

Reconheceu-se nesse primeiro encontro que seria impossível selecionar uma única articulação teórica que desse conta da totalidade dos temas que se espera ver debatidos numa gramática descritiva, numa gramática de referência, como a que se planejava escrever. As primeiras discussões cristalizaram esse reconhecimento, tendo-se decidido dar livre curso à convivência dos contrários no interior do projeto. Como

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forma de organização, distribuíram-se os pesquisadores por Grupos de Trabalho (GTs), sob a coordenação de um deles. Cada GT traçou o perfi l teórico que pautaria suas pesquisas e organizou sua agenda de pesquisas. Os textos que fossem sendo preparados e discutidos em seu interior seriam posteriormente submetidos à crítica da totalidade dos pesquisadores, reunidos em seminários plenos. O corpus utilizado foi uma seleção de entrevistas do Projeto NURC/Brasil, organizada segundo as características desse projeto.

Trinta e dois experimentados pesquisadores atuaram no PGPF, ligados a 12 universidades brasileiras, distribuídos pelos seguintes GTs: (1) Fonética e Fonologia, coordenado inicialmente por João Antônio de Moraes, e posteriormente por Maria Bernadete Marques Abaurre; (2) Morfologia Derivacional e Flexional, coordenado por Margarida Basílio e Ângela Cecília de Souza Rodrigues, respectivamente; (3) Sintaxe das Classes de Palavras, coordenado inicialmente por Rodolfo Ilari, que preside esta sessão, e posteriormente por Maria Helena de Moura Neves; (4) Sintaxe das Relações Gramaticais, coordenado inicialmente por Fernando Tarallo, e posteriormente por Mary Aizawa Kato; (5) Organização Textual-Interativa, coordenado por Ingedore Grunfeld Villaça Koch.

Entre 1988 e 1998 foram realizados dez seminários plenos, ao longo dos quais os textos apresentados eram reformulados e publicados em uma série própria, editada pela Unicamp, em 8 volumes: Castilho (org. 1990, 1993), Ilari (org. 1992), Castilho / Basílio (orgs. 1996), Kato (1996), Koch (org., 1996), Neves (org. 1999), Abaurre / Rodrigues (orgs. 2003). A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo fi nanciou as atividades, também apoiadas pelo Conselho Nacional de Pesquisas.

A partir de 1990, solicitou-se ao Prof. Mílton do Nascimento, então da UFMG, que conduzisse os debates dos problemas teóricos suscitados pelos trabalhos apresentados, na qualidade de assessor acadêmico do PGPF. Isso ocorreu sistematicamente no último dia de atividades, a partir do IV Seminário, resultando daí os textos de Nascimento (1993 a, b).

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Encerrada a agenda do PGPF, deu-se início em 2000 à consolidação dos ensaios e teses publicados entre 1990 e 2000, projetando-se uma série de 5 volumes, de que se publicaram 3 até esta data: vol. I - Construção do texto falado: Jubran / Koch (orgs. 2006), 557 págs; vol. II – Classes de palavras e processos de construção: Ilari / Neves (orgs. 2008), 1167 págs; vol. III – A construção da sentença, Kato / Nascimento (orgs. 2009), 340 págs. Estão em fase fi nal de preparação o vol. IV, a construção morfológica da palavra, por Ângela Cecília de Souza Rodrigues e Ieda Maria Alves, e o vol. V, a construção fonológica da palavra, por Maria Bernadete Marques Abaurre.

A articulação teórica desses volumes consta das respectivas Apresentações, escritas por seus organizadores. Isso já tinha acontecido anteriormente, na série dos 8 volumes de ensaios. Preparei uma síntese desses debates todos, que saiu como Apresentação do volume I, da série de consolidação: Jubran / Koch (orgs. 2006: pp. 7-26)

Não se preocupem, não vou reproduzir aqui todos esses argumentos. Nenhuma tecnologia manteria acordada nossa assistência, caso o tentasse. Optei então pela síntese que se segue.

Duas perspectivas inconciliáveis à altura separavam os pesquisadores: a perspectiva formal e a perspectiva funcional sobre a linguagem. Depois de algumas tentativas iniciais de catequese, todas frustradas, combinou-se que os formalistas, abrigados nos GTs de Sintaxe, de Morfologia e de Fonologia, e os funcionalistas, abrigados nos GTs de Organização textual-interativa e no de Classes de palavras, seguiriam seu caminho, encontrando-se anualmente nos seminários plenos, para compartilhar os resultados obtidos.

Ocorreu, entretanto, uma inesperada convergência. E é que a maior expectativa que as pessoas alimentam ao consultar uma gramática de referência é encontrar ali, devidamente hierarquizados, um conjunto de produtos linguísticos, o chamado enunciado, disposto em planos classifi catórios mais ou menos convincentes.

Ora, a Gramática do Português Culto Falado no Brasil deixou de lado essa estratégia, tendo buscado identifi car os processos acionados para

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a produção do enunciado. Indo nesta direção, Nascimento (1993b) propôs que o texto é o lugar onde é possível identifi car as pistas indicadoras das regularidades que caracterizam a atividade linguística do falante. A esse respeito, ele fez as seguintes afi rmações, que gozam de certo consenso entre os pesquisadores:

a) Uma concepção da linguagem como uma atividade, uma forma de ação, a verbal, que não pode ser estudada sem se considerar suas principais condições de efetivação.

b) A pressuposição de que, na contingência da efetivação da atividade linguística do falante/ouvinte [na produção e recepção de textos] temos a manifestação de sua competência comunicativa, caracterizável a partir de regularidades que evidenciam um sistema de desempenho linguístico constituído de vários subsistemas.

c) A pressuposição de que cada um desses subsistemas constituintes do sistema de desempenho linguístico [o discursivo, o semântico, o morfossintático, o fonológico...] é caracterizável em termos de ‘regularidades’ defi níveis em função de sua respectiva natureza.

d) A pressuposição de que um dos subsistemas constituintes desse sistema de desempenho linguístico é o subsistema computacional, [entendido como uma noção mais ampla que a de Língua I], defi nível em termos de regras e/ou princípios envolvidos na organização morfossintática e fonológica dos enunciados que se articulam na elaboração de qualquer texto.

e) A pressuposição de que o texto é o lugar onde é possível identifi car as pistas indicadoras das regularidades que caracterizam o referido sistema de desempenho linguístico.

Outros pontos de convergência tinham sido assinalados por Mary Kato, na introdução ao vol. V, por ela organizado: Kato (org. 1996).

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O fato é que, em suma, procurando os produtos, toparam os pesquisadores com os processos constitutivos da língua. É por isso que todos os volumes da série de consolidação têm por subtítulo a palavra “construção”: construção do texto, da sentença, das classes de palavras, construção morfológica da palavra, construção fonológica da palavra.

2. Abordagem multissistêmica da linguagem

Tendo acompanhado esse projeto em todas as suas fases, fui desenvolvendo paralelamente algumas generalizações, que em nada comprometem os pesquisadores. Dei a essas generalizações a denominação de “abordagem multissistêmica” da linguagem: Castilho (1998 a,b, 2002, 2003 a,b, 2004 a,b,c, 2007, 2009 a,b,c, 2010 a,b,c,d, 2011).

Primeiramente, chamaram minha atenção certas propriedades da língua falada, que ampliaram as convicções do grupo sobre as línguas naturais, fazendo naufragar as técnicas de análise então disponíveis.

A língua falada é extremamente dinâmica, pois documenta a uma só vez o momento do planejamento e o momento da execução linguística, dada sua dialogicidade constitutiva. Os seguintes traços comprovam a dinamicidade da língua falada: (i) sua não linearidade, documentada por sua sintaxe biaxial, (ii) a ocorrência simultânea de propriedades dos enunciados, traço que desaconselha uma descrição separada por níveis de análise, (iii) a alta frequência de elipses, anacolutos e segmentos epilinguísticos, desqualifi cando a sentença como unidade única de análise.

A observação desses e de outros traços me levaram a propor a abordagem multissistêmica da linguagem. Essa perspectiva assenta na epistemologia das ciências complexas e na retomada de um debate teórico que começou no séc. XIX.

As ciências complexas, ainda não apropriadas pela Linguística, tanto quanto saiba, podem ser defi níveis a partir dos seguintes pressupostos:

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(1) Os componentes dos sistemas complexos exibem um tipo de ordem sem periodicidade, em fl uxo contínuo, em mudança.

(2) Os sistemas não são lineares, são dinâmicos, exibem um comportamento irregular, imprevisível; a competição entre eles é mais importante que sua consistência.

(3) Os elementos dos sistemas complexos exibem relacionamentos simultâneos, não são construídos passo a passo, linearmente.

(4) As anomalias identifi cadas pela abordagem clássica exemplifi cam fenômenos vitais para o entendimento do problema, e não deveriam ser descartadas como aberrantes.

(5) Uma nova topologia do impreciso, do vago, do aproximativo, precisará ser proposta.

A aplicação desses pressupostos à análise linguística implicará em que aceitemos que

(1) Do ângulo dos processos, as línguas são defi níveis como um conjunto de atividades mentais, pré-verbais, organizáveis num multissistema operacional, ou seja, a lexicalização, a semanticização, a discursivização e a gramaticalização.

(2) Do ângulo dos produtos, as línguas são um conjunto de enunciados dispostos em sistemas, defi nidos por categorias próprias e organizadas igualmente num multissistema, ou seja, o léxico, a semântica, o discurso e a gramática.

(3) Um dispositivo sociocognitivo comanda os sistemas linguísticos. Ele pode ser descrito em termos de ativação, reativação e desativação das propriedades que constituem os sistemas linguísticos. Esse dispositivo é social porque decorre da observação das estratégias conversacionais, e é cognitivo porque assenta nas representações linguísticas das categorias cognitivas.

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O princípio de ativação, ou princípio de projeção pragmática, é o movimento de seleção de propriedades. No Léxico, a ativação é a escolha das categorias cognitivas e de seus traços semânticos que serão representados nas palavras. A ativação das propriedades semânticas tem o papel de escolher as expressões necessárias à representação da dêixis, da referenciação, da predicação, da foricidade e da conexidade. No sistema discursivo, a ativação seleciona as expressões necessárias à constituição e à hierarquização dos tópicos, à construção das unidades discursivas e sua conexão, etc. Mais conhecida na Gramática, em que tem sido denominada “transitividade”, “princípio de projeção”, a ativação é responsável pela construção dos sintagmas, pela organização da estrutura argumental das sentenças, pela ordenação dos constituintes no enunciado, pela concordância entre eles, pelos processos de adjunção, etc.

O princípio de reativação, ou princípio de correção, é o movimento mental por meio de que rearranjamos as propriedades dos sistemas, retomando a construção do enunciado. Esse princípio encontra seu fundamento no sistema de correção conversacional. A reativação produz no Léxico novas representações das categorias cognitivas. Na Semântica, a reativação provoca a paráfrase, ou recorrência de conteúdos, apresentados por expressões formalmente diferentes. No Discurso, a reativação abre caminho à repetição dos enunciados para assegurar a coesão do texto, a alteração do eixo argumentativo, etc. Na Gramática, pelo menos dois rótulos têm sido utilizados na literatura para captar os efeitos desse princípio: poligramaticalização e reanálise. A reanálise, dada como um dos princípios da gramaticalização, decorre do princípio de reativação. Reanalisam-se sintagmas e sentenças, o que acarreta mudanças da fronteira sintática, entre outros fenômenos.

O princípio de desativação, ou princípio do silêncio, é o movimento de abandono das propriedades e das palavras que estavam sendo ativadas. Este princípio mostra que o silêncio é igualmente constitutivo da linguagem. Também este princípio assenta nas práticas conversacionais,

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quando ocorre a chamada “despreferência”, que consiste em verbalizar o que não é esperado, violando-se o princípio de projeção pragmática. Isso ocorre quando respondemos a uma pergunta com outra pergunta, quando recusamos um convite, etc. Nestes casos, cria-se na conversação um “vazio pragmático”, segundo Luiz Antonio Marcuschi. O princípio de desativação promove no Léxico a morte das palavras. No sistema semântico, ele está por trás das alterações de sentido presentes nas metáforas, nas metonímias, na especialização e na generalização de sentidos, por meio dos quais “silenciamos” o sentido anterior e simultaneamente ativamos novos sentidos. No sistema discursivo, a desativação produz a alteração da hierarquia tópica, levando os locutores a manobras tais como os parênteses e as digressões, que são desativações da estruturação tópica do texto. Na Gramática, o princípio de desativação é responsável pelas rupturas sintáticas, pelos anacolutos, e pelas categorias vazias, de que se encontram exemplos na Fonologia (sílaba com núcleo vocálico omitido), na Morfologia (morfema fl exional zero) e na Sintaxe (elipse de constituintes sentenciais, ou categoria vazia).

É importante entender que esses princípios operam ao mesmo tempo, não sequencialmente. Assim, a desativação ocorre simultaneamente com a ativação, e esta com a reativação, o que compromete o princípio da unidirecionalidade. A mente humana parece funcionar como um sistema complexo, e precisaremos sem dúvida entendê-la como tal – tarefa que certamente ocupará os linguistas nos tempos por vir.

Em suma, postulo as línguas naturais como um conjunto articulado de quatro sistemas, cada um deles confi gurado por um conjunto de categorias, sufi cientemente fortes para representar os processos e os produtos de que esses sistemas são feitos. Assim, qualquer expressão linguística se compõe de quatro conjuntos de propriedades e seus processos: (i) Léxico e lexicalização, (ii) Semântica e semanticização, (iii) Discurso e discursivização, (iv) Gramática e gramaticalização. Essas propriedades atuam simultaneamente, não sequencialmente. Nenhum desses sistemas é postulado como o centro da língua, de que derivariam os outros.

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Aliás, por que os linguistas têm procurado o “sistema central da língua”, e por que têm postulado a “determinação de um sistema sobre outro”? Num rápido percurso sobre as ideias linguísticas, não deixa de ser curioso constatar que tanto formalistas quanto funcionalistas costumam eleger um sistema como o centro da língua, o qual determinará os demais sistemas. Ao longo dos estudos linguísticos, ocuparam esse trono a Fonética para os neogramáticos, a Fonologia para os estruturalistas, a Sintaxe para os gerativistas pré-minimalistas, e o Discurso e/ou a Semântica para os funcionalistas.

Acredito que esse raciocínio decorre da adoção das ciências clássicas como fundamento epistemológico. Aplicadas às línguas naturais, essa epistemologia nos levou a acreditar que os signos linguísticos ordenam-se linearmente, integrando níveis de análise, ou camadas, ou hierarquias. Esses signos são identifi cados por operações de contraste entre eles, excluindo-se sua polifuncionalidade, e o fato de que eles se dispõem num continuum categorial.

Ora, como já mencionei aqui, as descrições sobre a oralidade desmentiram fortemente a percepção da língua como uma linha, constituída por realidades que se sucedem no tempo. É verdade que o produto, o érgon, é linear, tanto na língua falada quanto na língua escrita. Mas se quisermos identifi car o processo, a enérgeia que se esconde por trás desses produtos, teremos de abandonar a ideia da língua-linha. Os fatos da língua falada não nos autorizam a aceitar que nossa mente funcione pobremente, através de impulsos sequenciais, lineares, uns depois dos outros. Não é isso o que se vê durante uma conversação. Não há dúvida que as pesquisas sobre a oralidade estão alterando em nosso país nossa percepção sobre a linguagem. Essas pesquisas poderão moldar novos hábitos científi cos. Minha proposta segue por aqui.

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3. A nova gramática do português brasileiro

Mas era necessário testar a abordagem multissistêmica mais amplamente, o que fi z em minha Nova gramática do português brasileiro, publicada em abril de 2010.

Mesmo denominada “gramática”, este livro afasta-se deliberadamente desse gênero:

(1) Não redigi uma gramática-lista, que se detém nas classifi cações, em que não se vê uma gramática, não a língua. Em lugar disso, procuro olhar o que se esconde por trás das classifi cações, identifi cando os processos criativos do português brasileiro que conduziram aos produtos listados.

(2) Esta não é uma gramática a-teórica. Nada poderemos fazer em matéria de pesquisa linguística se não dispusermos de alguma teoria, pois lidamos com um objeto escondido em nossas mentes, como Saussure já havia reconhecido. Teorias linguísticas há muitas. Mas faz falta uma teoria que postule a língua em seu dinamismo, como um conjunto articulado de processos – abundantemente reconhecidos e descritos pelos pesquisadores do PGPF. Enfrento esta questão nesta gramática. Quando falamos ou quando escrevemos, uma intensa atividade é desencadeada em nossas mentes. Isso ocorre com enorme rapidez, acionando os sistemas linguísticos já mencionados. A teoria multissistêmica aqui exposta tem um forte conteúdo funcionalista-cognitivista. Reconheço que ainda é impossível descrever todos os movimentos mentais envolvidos na atividade linguística. Mas não há dúvida de que em cada som emitido, em cada sinal gráfi co lançado ao papel, toma corpo um enorme conhecimento linguístico que foi ativado, permitindo o milagre da compreensão mútua por meio de tão poucos sons e letras, e de tão escassas palavras e construções. Para visualizar esse conhecimento, precisaremos

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valorizar os indícios da maquinaria linguística. A língua falada revela uma fartura desses indícios.

(3) As gramáticas resultam habitualmente do trabalho individual, fundamentando-se na língua literária. Também aqui esta gramática tomou outro rumo. Para começo de conversa, não acho que os escritores trabalham para nos abastecer de regras gramaticais. Eles exploram ao máximo as potencialidades da língua, segundo um projeto estético próprio. Ora, as regularidades que as gramáticas identifi cam devem fundamentar-se no uso comum da língua, quando conversamos, quando lemos jornais, como cidadãos de uma democracia. Isso não exclui a fruição das obras literárias, mas é uma completa inversão de propósitos fundamentar-nos nelas para descrever uma língua. A presente gramática se insere nesse quadro de preocupações. Filtrei aqui as pesquisas das últimas três décadas a partir de uma ótica própria, propondo seguidamente ao leitor que se envolva nas pesquisas, transformando-se no linguista-gramático dele mesmo. Seguindo esse impulso, esta gramática dá voz a muitos desses pesquisadores, tanto quanto às aulas que fui ministrando ao longo de 47 anos de magistério. Meus alunos me ajudaram muito, com sua curiosidade e com sua recusa a explicações não convincentes. Havia também uns poucos tomados de um grande tédio. Esses também me ajudaram, pois me mostravam que a aula estava um bocado chata, ou seja, eu não tinha conseguido naquele espaço de tempo desvelar as maravilhas da linguagem.

(4) O ritmo expositivo de nossas gramáticas adota o que se poderia chamar de “estilo revelação”. O gramático se transforma numa espécie de Moisés que desce dos altos montes e brada aos povos estupefatos... o que está certo e o que está errado em sua linguagem! Também aqui me distanciei disso. Imaginei para tanto a seguinte estratégia: compus dois textos articulados,

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um expositivo, e outro indagativo. Na exposição, falo eu, interpretando os achados da ciência atual. Nas indagações, falam os leitores, por meio das perguntas que imagino que eles estejam formulando. O objetivo dessa estratégia é transformar os leitores numa espécie de coautores, recusando que entre eles e a língua que praticam seja obrigatória a interposição de um intérprete, de uma espécie de despachante para problemas gramaticais. Para dar conta desse lance meio calvinista, apresentei perguntas e mais perguntas nas páginas da Nova Gramática do Português Brasileiro, ao lado de informações sobre o conhecimento disponível e o fornecimento de pistas sobre como achar novas respostas. Para evitar uma aborrecida listagem de opiniões, que poderia obscurecer o objeto, optei por interpretar os resultados obtidos à luz da já mencionada teoria multissistêmica da língua. Depois disso, apresento algumas generalizações sobre o retrato do português brasileiro assim obtido. Novas perguntas conducentes à refl exão gramatical foram formuladas no capítulo 15.

As línguas naturais são o ponto mais alto de nossa identidade como indivíduos e como participantes de uma sociedade. Que o digam os quinhentos mil visitantes anuais do Museu da Língua Portuguesa localizado em São Paulo! Tem sido proveitoso testemunhar a emoção desses visitantes por se verem ali representados, por toparem ali com sua identidade. De certa forma, todo mundo sai meio linguista daquelas instalações. Busquei repercutir essa emoção em minha gramática.

Conclusões

Para fi nalizar esta fala, apresento uma proposta à ABRALIN: que ela constitua uma comissão para a elaboração de teorias fundadas no vasto conhecimento sobre a realidade linguística brasileira, desenvolvido

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a partir dos anos 70. Sabemos que teoria e empiria são percursos de mão dupla. Mas acredito que chegou a hora de investir mais no percurso empiria à teoria, construindo generalizações fundamentadas no conhecimento atualmente disponível.

Na fase de implantação da Linguística entre nós, instalou-se o hábito de agarrar algum linguista americano ou europeu pouco conhecido, ler sua obra, traduzi-la para o português, fazer pesquisas a partir das ideias ali colhidas, orientar alunos, e apresentar-se nos congressos como uma espécie de representante tropical da fi gura.

Dá até para entender esse tipo de caçada, afi nal, precisávamos produzir conhecimento linguístico sobre o Brasil. País multilíngue, pouco sabíamos sobre as línguas indígenas e sobre o português brasileiro – para o qual ainda não tinha sido cunhada a sigla PB. O caminho era esse. Entretanto, muitos esforços e seminários depois, dispomos hoje de um conhecimento notável sobre esses campos, mesmo havendo ainda muito o que fazer.

É desagradável verifi car que a enorme produção científi ca brasileira não tem sido lida, não tem sido avaliada, não tem sido criticada. Basta ouvir a leitura de trabalhos em nossos congressos, para ver o que está rolando. Continuamos importando...

A atual geração de linguistas deveria conduzir a Linguística brasileira à sua maioridade, desenvolvendo refl exões teóricas, mantendo a interação com os centros mundiais, mas estabelecendo com eles duas mãos de direção. Afi nal, a ciência é e sempre será uma espécie de pátria desterritorializada.

Estou convencido de que se esse passo não for dado, corremos o risco de cair na irrelevância. Sem descontinuar nosso diálogo com a Linguística mundial, precisamos sem dúvida investir na elaboração de teorias. A ABRALIN será o melhor fórum na busca desses novos caminhos.

Muito obrigado!

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Referências

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 33-51. 1ª parte 2011

GRAMÁTICA: REFLEXÕES SOBRE UM PERCURSO DE ELABORAÇÃO DE MANUAIS

Maria Helena de Moura NEVESUniversidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho / CNPq.

RESUMO

Como parte que é de uma mesa denominada “Construção de gramáticas descritivas”, composta por autores de gramáticas descritivas de língua, este texto apresenta uma refl exão pessoal que busca recuperar as questões centrais que me têm desafi ado na execução desse tipo de tarefa.. Para isso, faço um percurso histórico da defi nição dos rumos que segui na construção de dois manuais de gramática da língua portuguesa, e paralelamente recolho, em outras obras que elaborei, indicações que podem explicitar as diretrizes tomadas. Por um vezo de formação e de atuação, dirijo as refl exões para a destinação central que sempre pensei para essas obras, que é a destinação escolar, algo que posso resumir em uma busca de entender o que deva constituir um trabalho com a “gramática”, na escola.

ABSTRACT

As part of a round table entitled “Construction of descriptive grammars”, with authors of descriptive grammars of the Portuguese language, this text presents a personal refl ection that seeks to recover the key issues that have challenged me in this kind of work. In order to do this, I recover the historical route of the decisions I took in the construction of two manuals of Portuguese grammar and, at the same time, I gather, in other works I have written, information that can explain the guidelines adopted. Being consistent with my background and with my praxis, I offer some thoughts towards the fundamental proposition I have always considered such works to have, which is the school destination, something I can summarize in the question of what should constitute a work with the “grammar” at school.

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PALAVRAS-CHAVE

Gramáticas descritivas. Gramática de usos. Gramática na escola

KEY-WORDS

Descriptive grammars. Usage Grammar . Grammar at school.

Introdução

Com certeza, o que esperam de nós, nesta mesa, é uma espécie de depoimento sobre o que vimos fazendo, na elaboração de gramáticas. Foi assim que, pensando no que seria a exposição, fui fazendo mentalmente um percurso de minha vivência, meus estudos e meu pensamento sobre linguagem/gramática, buscando verifi car por que fi z o que fi z, exatamente como fi z. É assim que minha fala vai nessa direção.

Parto de um percurso histórico da defi nição dos rumos que segui na construção de dois manuais de gramática da língua (Neves, 2000; 2010a; Neves, no prelo). Isso envolve uma defi nição do domínio da gramática, com opção por um determinado procedimento de “criação” e descrição de fatos, o que, no meu caso, envolve o exame dos usos reais. São usos observados especialmente em um banco de dados elaborado para tal tipo de trabalho (e para a elaboração de dicionários, como explicitarei logo a seguir) e também observados em textos correntes, de variadas modalidades, escritos e falados, que se encontraram disponíveis.

Em primeiro lugar faço a indicação histórica (documental) do projeto que levou à elaboração da Gramática de usos do português (2000). E nessa incursão está um primeiro preito que quero render.

Nos idos de 1990, na UNESP de Araraquara, meu professor de Linguística de todo o curso de Graduação em Letras, o grande mestre Francisco da Silva Borba, sabendo que eu iniciava a elaboração de um manual de gramática de usos, convidou-me para empreendermos um grande projeto de elaboração de um dicionário e uma gramática dessa

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natureza (unidos, pois, por princípios comuns). Iniciamos, então, a confecção de um córpus de língua escrita que hoje está com mais de 200 milhões de ocorrências. A Gramática fi caria por minha conta, e o Dicionário teria uma equipe de elaboração (com 5 pessoas, entre elas eu e o próprio Borba, cada autor com 20% das tarefas). Tudo foi feito. O início da coleta de usos foi de grande difi culdade, tudo muito artesanal. Lembro-me especialmente da minha alegria quando consegui da Fundação UNESP os recursos para adquirir um aparelho leitor de caracteres (hoje jurássico, peça de museu), e da FAPESP os recursos para pagar digitadores, que, na tarefa de coleta de textos, simplesmente (e jurassicamente) copiavam trechos de obras dos cinco campos que o Professor Borba instituiu como formadores do nosso banco: Literatura, Jornalismo, Oratória, Dramaturgia e Obras técnico-didáticas (inicialmente, apenas da segunda metade do século XX). Pouco tempo depois a responsabilidade de elaboração do córpus passou para o Professor Borba, exclusivamente, e com ele está até hoje – no Laboratório de Lexicografi a que ele fundou na UNESP de Araraquara –, agora recuando no tempo para abranger obras de todos os séculos de produção no Brasil.

Infelizmente, um dos propósitos de nosso projeto inicial não foi levado adiante: era que as duas obras (a Gramática de usos do português e o Dicionário de usos do português) saíssem em conjunto, até com a mesma capa (como ocorreu com o COLLINS-COBUILD). Por razões da própria elaboração e por contingências editoriais, minha Gramática foi publicada em 2000 e nosso Dicionário em 2002, e por editoras diferentes (Editora da UNESP e Ática, respectivamente).

1. A tomada de decisões

Vou lembrar, aqui, especialmente – e dentro do tema desta mesa – minha história de lida com a entidade “gramática”, buscando o que constituiu o fundamento na tomada de decisões para a elaboração de

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uma Gramática de usos do português (duas obras: 2000 e no prelo). Para tal exame, neste ponto de minha trajetória, vou apresentar um recorte de afi rmações que andei fazendo em algumas de minhas obras, enquanto lidava com os fatos de língua segundo a diretriz que conduziu a observação dos usos linguísticos, o modo de tratamento dos dados, a instituição dos fatos de análise. E inicio com o histórico.

1) Começo com minha ligação visceral com aquilo que representou, para a história do pensamento ocidental, a emergência de uma disciplina gramatical na Grécia. No livro A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem (1987; reformulação em 2005), e em muitos artigos subsequentes, procurei construir uma linha de refl exão sobre as condições de nascimento da gramática ocidental, evidenciando a natureza intrínseca da obra produzida bem como a natureza e o valor desse tipo de obra em um contexto sociopolítico. Concluo pelo inegável peso dessas determinações num exame que busque avaliar as análises linguísticas em contexto de situação e em contexto de cultura, ou seja, na realidade do uso, que é o que está em minhas duas gramáticas descritivas. Ora, a gramática grega incipiente é produto claro de uma realidade.

2) No livro Gramática na escola (1ª edição em 1990), refl eti sobre a disciplina Gramática, buscando um diagnóstico sobre o ensino da língua portuguesa nos diversos níveis, e buscando sempre apontar a necessidade de apoio em princípios teóricos consistentes, para tratamento da disciplina Gramática na escola. Tenho sempre forte essa destinação, em meu trabalho com a gramática

3) No livro A gramática funcional (1ª edição em 1997), reuni, didaticamente, as bases da teoria funcionalista da linguagem, que considero poder orientar o exame da língua em uso.

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Explicitei os principais temas envolvidos no exame do uso linguístico: competição de motivações, sistematicidade e funcionalidade, percurso metafórico, força metonímica, gramaticalização, iconicidade, etc. São temas centrais no desenvolvimento dos estudos que vêm sustentando a minha elaboração de gramáticas.

4) No livro A gramática: história, teoria e análise, ensino (2002) busquei conciliar refl exões voltadas ao tema “gramática”, em algumas direções consideradas básicas, desde a própria história da disciplina gramatical no Ocidente até a missão de “ensino” da gramática, passando pela análise de fatos gramaticais e pela explicitação de bases teóricas que sustentam as refl exões.

5) No livro Guia de uso do português: confrontando regras e usos (1ª edição em 2003) apresentei um confronto entre as normas prescritivas e o uso efetivo das formas da língua portuguesa, observado em corpus. A problemática é crucial no reconhecimento da variação linguística, e de sua aceitação, especifi camente quanto ao reconhecimento de uma identidade linguística vista como unidade na diversidade, na descrição dos usos.

6) No livro Que gramática estudar na escola? (1ª edição em 2003), assentei a necessidade de uma gramática escolar que, legitimada pela sua relação com o uso efetivo da língua, dê conta dos usos correntes atuais, não perdendo de vista o natural e efi ciente convívio de variantes, incluída, aí, a norma tradicionalmente considerada padrão.

7) No livro Texto e gramática (1ª edição em 2006), reuni refl exões sobre os “processos de constituição do enunciado”, dirigindo sempre a atenção para a gramática, que organiza as relações, constrói as signifi cações e defi ne os efeitos pragmáticos que, afi nal, fazem do texto uma peça em função.

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8) No livro Estudo de língua e vivência de linguagem (2010b), reforcei uma proposta de tratamento da gramática que não se isole da vivência da linguagem. Essa visão representa olhar refl exivamente a língua que se manifesta pela ativação da linguagem, representa ver a gramática da língua como a responsável pelo entrelaçamento discursivo-textual das relações que se estabelecem na sociocomunicação, sustentadas pela cognição.

9) Nos 3 dicionários de português em que já atuei como coautora, com coordenação do Prof. Francisco da Silva Borba (Dicionário gramatical de verbos do português contemporâneo do Brasil, 1ª edição em 1990; Dicionário de usos do português, 2002; Dicionário UNESP do português contemporâneo, 1ª edição em 2004), e no que está em elaboração (o Grande dicionário do português do Brasil), o que se procurou – e se procura – observar e descrever é a lexicogramática dos itens em função. Entende-se, aí, que o dicionário é, ao lado do manual de gramática, um espaço essencial de revelação do assentamento potencial das categorizações, tema central no projeto da organização gramatical.

10) Tenho de apontar, ainda, o dicionário grego-português, em 5 volumes (publicações em 2006, 2007, 2008, 2009, 2010), que coordenei na UNESP – Campus de Araraquara, juntamente com duas colegas, e que colaborei, juntamente com professores de grego de diversas universidades do país, repetindo nele aquela experiência de explicitação de uma lexicogramática, especialmente na visão da potencialidade das relações construcionais e no tratamento das palavras gramaticais.

11) Não quero deixar de falar de minha atuação no grande projeto de Gramática do português falado do Professor Ataliba Teixeira de Castilho, uma experiência de pesquisa coletiva

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que muito pesou nos rumos de minha visão de gramática. É o segundo preito que eu rendo a um chefe de equipe de trabalho intelectual a que pertenci ou pertenço. Nesse projeto fui, por anos – continuando o trabalho do Professor Rodolfo Ilari –, coordenadora de uma das equipes, aquela que buscou, especialmente, ligar classes e funções no exame de itens da língua e de processos implicados no seu uso, em córpus oral, o do NURC-Norma Urbana Culta (Ilari; Neves, orgs, 2008). Desse projeto, nesta mesa, fala aqui o próprio comandante. Apenas direi que o exame desse córpus particular (gravado) fez ressaltar o que representa, no contexto de uso da língua em função, a valorização dessa modalidade primeira do uso linguístico.

E agora vou propriamente às minhas duas obras que constituem, de certo modo falando, “manuais de gramática” (a segunda, no prelo).

12) Na obra Gramática de usos do português (1ª edição em 2000, 1037 páginas; 2ª edição em 2011, revisada, 1005 páginas) descrevi o funcionamento dos itens da língua portuguesa segundo seu uso efetivo no amplo córpus escrito disponível, com ocorrências de diferentes registros, como já apontei. Entendi e entendo que a avaliação dos usos é o objeto e a meta natural de uma gramática que envolva os componentes da interação.

13) Na obra Gramática de usos da língua portuguesa: lições

(no prelo, cerca de 1300 páginas), a pretensão é levar lições de gramática, de uso potencial no ensino, ao mesmo universo que é da ciência e é da história, que requer raciocínio e também requer arte, que traz lição e traz vivência. A diretriz central é, com sustentação em textos, e com foco no tratamento escolar da gramática, falar da língua portuguesa falando da linguagem em uso, bem como dos procedimentos de constituição dos enunciados.

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Fica entendido que o termo gramática usado em minhas propostas implica valorizar a explicitação dos usos na obtenção de resultados de sentido em uma situação de interação verbal, ou seja, implica empreender uma gramática de usos. Fica assentado que, buscando-se as destinações funcionais da língua em função, privilegia-se uma direção teórico-metodológica que permite avaliar a funcionalidade dos deslizamentos categoriais e das superposições funcionais no estudo gramatical.

2. A elaboração dos manuais

Como já apontei, para avaliação de como se pode verifi car a diretriz traçada na elaboração dos manuais vou retirar, de algumas das obras, afi rmações que andei fazendo, para, com isso, reafi rmar meu empenho na obtenção de uma pesquisa linguística centrada na necessidade de uma forte refl exão sobre as atividades de elaboração de obras (meta)gramaticais e (meta)lexicográfi cas da língua1.

2.1. Sobre a natureza da GRAMÁTICA

Tenho repetido uma afi rmação que fi z há mais de vinte anos, estudando a origem da nossa vertente ocidental de gramática:

A gramática é uma disciplina que, pelas próprias condições em que surgiu, aparece com fi nalidades práticas, mas que representa um edifício somente possível sobre a base de uma disciplinação teórica do pensamento sobre a linguagem. (A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem, p. 15)

1 Este item 2 volta a algumas considerações que fi z em conferência que pronunciei em 2008, em Leipzig, Alemanha, por ocasião da homenagem aos 65 anos do Professor Eberhard Gärtner, autor da Grammatik der portugiesischen Sprache (Gärtner, 1998). A conferência (publicada em Neves, 2010c) versou sobre “A tarefa do gramático”, que é exatamente o tema que coloco em questão neste trabalho. Também naquela ocasião parti de afi rmações minhas publicadas (não as mesmas, ressalvo), para conduzir as refl exões.

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De fato, a gramática não poderia ser escrita livre de uma teoria. É ela que constrói os fatos, não se podendo conceber uma descrição de gramática ateórica nem uma construção de fatos sem recurso a uma teoria que os confi gure.

Assumindo essa visão, dirijo, agora, minhas refl exões por questões que me têm desafi ado na execução desse tipo de tarefa. Faço uma avaliação dos propósitos que me vêm motivando e orientando no preparo de trabalhos de análise e sistematização de fatos – fatos que a teoria recorta – da língua portuguesa.

O que aqui ponho em foco é esse mister meio nebuloso de fazer uma “gramática”, discussão que suscita uma série de questões pelas quais passarei.

2.1.1. Sobre o conceito de gramática

Estas são perguntas que já fi z em uma de minhas obras, e a que tenho voltado várias vezes, em minhas refl exões. Olhemos na história:

O que é a gramática? Arte? Técnica? Ciência? Funcionamento ou descrição? Conhecimento ou explicitação? Todos os que falam do uso linguístico hão de se surpreender fazendo esse questionamento. (A gramática: história, teoria e análise, ensino, p. 9)

Não cabe aqui defi nir o termo gramática. As diversas acepções correspondem exatamente às diversas tarefas que um estudioso assume na sua atividade de descrição. Pelas diversas assunções teóricas e pelos diversos caminhos, sempre é possível chegar a descrições coerentes e relevantes. Se se vai ao núcleo duro das relações, isto é, à sintaxe pura (gramática da competência, extremamente rigorosa, com certeza), chega-se a proposições e generalizações de grande rigor, mas de aplicação específi ca; se se vai ao feixe de componentes que se implicam

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na enunciação enunciada (gramática da atuação, digamos), chega-se a proposições mais fl uidas, como fl uida é a atuação, mas pode-se atingir o feixe de funções que o uso opera. De qualquer modo, a gramática é o suporte da relação entre a cadeia sonora e o signifi cado, respondendo, no fundo, pelos sentidos e pelos efeitos que a rede montada na linguagem equaciona e revela.

No que respeita às incursões que tenho feito (e como exponho em Neves, 2006), falo de uma gramática como “funcionamento”: a gramática como organização das relações, como construção das signifi cações, como defi nição dos efeitos pragmáticos, enfi m, como mecanismo que faz do texto uma peça em função. Entende-se, assim, que produzir linguagem nada mais é do que ativar processos que a gramática organiza, entrecruzando-os, para compor textos, na interlocução.

2.1.2. Sobre o conceito de descrição gramatical

Este é um trecho da Apresentação que fi z à minha Gramática de usos do português (p. 13):

A Gramática de usos do português constitui uma obra de referência que mostra como está sendo usada a língua portuguesa atualmente no Brasil.

E este é um trecho da 4ª capa da obra:

O que as lições fazem, portanto, é organizar numa gramática da língua portuguesa as possibilidades de construção que estão sendo aproveitadas pelos usuários para a obtenção dos efeitos de sentido pretendidos.

Bem na linha desta mesa – sobre “gramáticas descritivas” –, creio poder afi rmar que o que se espera de um manual de gramática da língua é exatamente a descrição dessa língua, seja com que intenção, direção,

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orientação e suporte for. Se o manual se dirige ao uso linguístico – o que envolve uma integração dos componentes sintático, semântico e pragmático, com todas as implicações que isso acarreta – , há de predominar a lida com processos que se entrelaçam, na atividade discursiva, e é por essa via que se chegará a categorias – mutuamente relevantes que são, na ativação dos processos –, e fi cará confi gurado um sistema sempre equilibrado, mas nunca engessado.

Categorias e processos não se perfi lam automaticamente, e muito menos previamente, a não ser pela vocação de determinadas categorias para determinadas funções. Nem se permite supor que a correspondência seja um a um, ou que haja enquadramentos fi xos, porque, se assim fosse, a língua não funcionaria em linguagem, dada a multiplicidade de sentidos e efeitos que a linguagem por natureza obtém no seu acionamento, para que cumpra suas funções. A sua natural indeterminação, a multifuncionalidade de seus itens, a fl uidez de fronteiras, a existência natural de permeações categoriais, isso é o que permite que a língua diga aquilo que é necessário, que é bom, e que é relevante que se diga, bem como aquilo que é belo e encanta com a palavra. Não se há de entender, por aí, que o papel do gramático seja olhar e recolher fragmentos de natureza escorregadia e descrever desequilíbrios. Cabe a ele descobrir correspondências regulares que respondam pelo estabelecimento do estatuto categorial dos diversos itens em funcionamento na produção linguística.

2.1.3 Sobre o conceito de sistematização gramatical

Assim está em um livro em que confronto regras e usos, em exame de corpus:

Esta obra busca, em primeiro lugar, informar exatamente como estão sendo usadas pelos falantes as formas da língua portuguesa. O ponto-chave é que o uso pode contrariar as prescrições que a tradição vem

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repetindo, e o falante [....] terá de conhecer os dois lados da questão: a) o modo como os manuais normativos dizem que “deve ser” ou “não deve ser”; b) o modo como, realmente, “é”. (Guia de uso do português: confrontando regras e usos, p. 13).

A crítica à gramática e aos gramáticos – com respingos injustos nos nossos precursores na gramática alexandrina – vai em geral para o que se considera um imperdoável compromisso com a normatividade. Essa avaliação, em geral imperfeita, assimila o oferecimento de quadros ao oferecimento de paradigmas estanques, e, por aí, ao oferecimento de modelos. Em geral, nos manuais, os modelos estão propriamente nos exemplos (escolhidos dentre os “ótimos” exemplares para cada caso), mas a avaliação corrente da gramática como normativa decorre, realmente, daquela exposição de quadros que exibem, absolutamente engessadas, as que seriam as peças de funcionamento da língua de cada um. Oxalá alguma coisa houvesse, mesmo, nas escolas, que fosse aproveitada para o conhecimento do que é a “norma” naquela língua, naquele lugar e naquele tempo, para conhecimento do que é “normal” na linguagem daquela comunidade. Isso, ao menos, responderia a uma função de apoio social.

Mais uma vez, é necessário insistir no fato de que a fi nalidade de qualquer gramática de referência é, sim, a busca das regularidades, a especifi cação da sistematicidade da atividade linguística, o que com certeza há de corresponder a quadros, no registro da sistematização. Por mais que uma gramática se comprometa numa visão que capte as instabilidades (sempre em equilíbrio) da linguagem, não se espera dela uma banal descrição tópica de fatos avulsos, uma análise que ignore o sistema igualmente regulador de todos os enunciados da língua, quaisquer que sejam suas manifestações episódicas.

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2.1.4. Sobre a relação entre texto e gramática

Em um livro em que busquei mostrar a interdeterminação das entidades texto e gramática, assim está:

A interação verbal é uma atividade estruturada (com regras, normas e convenções), mas também é uma atividade cooperativa, e, desse modo, ativam-se, na linguagem (que é sempre uma interação), dois sistemas de regras: as que regem a constituição das expressões linguísticas (regras sintáticas, semânticas, morfológicas e pragmáticas) e as que regem o modelo de interação verbal no qual as expressões são usadas (regras pragmáticas). (Texto e Gramática, p. 13)

Por aí vai a gramática do uso, que só pode partir da noção de uma linguagem a descrever na enunciação e pela enunciação. O componente pragmático é determinante, e não no sentido puro e simples de uma perspectiva que se agregue, para valorização do discurso. Compreenda-se que o contexto de situação, inserido no contexto de cultura, projeta diretrizes para a interação linguística – como relação humana que é –, e compreenda-se, também, que a organização das porções informativas, em seu fl uxo, pertence a um componente eminentemente pragmático (em correspondência com o conceptual).

Se a gramática ativa esses dois sistemas de regra (a reger os enunciados e a própria atividade linguística), cria-se uma moldura pragmática dentro da qual nascem as peças de linguagem: governadas por um núcleo duro da gramática, que faz o amarramento morfossintático das cadeias; e arranjadas textualmente por regras semântico-pragmáticas.

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2.1.5. Sobre as bases de uma gramática de usos

E chegamos à gramática na escola.

A escola não pode criar no aluno a falsa e estéril noção de que falar e ler e escrever não têm nada que ver com gramática. (Que gramática estudar na escola? p. 128)

A inserção é clara em uma teoria que, com base na noção de que a linguagem é, por natureza, funcional, considera as estruturas linguísticas exatamente pelo que elas representam como organização dos meios linguísticos de expressão. Temos uma linguagem, que é o nosso “poder”, temos uma língua particular que é o nosso “saber”, e temos as constantes situações de uso linguístico, em que, com nosso “poder”, acionamos o nosso “saber” exatamente pelo exercício das funções. No percurso inverso, quem se puser a explicitar esse uso linguístico estará fazendo a explicitação do próprio funcionamento da linguagem, a partir de uma determinada instância. Essa é a missão do gramático: fazer ver que a metalinguagem ativada em função dá conta do conjunto de atividades de linguagem que criam sentidos e produzem efeitos.

Resta acoplar a absoluta determinação do componente conceptual envolvido na ativação da linguagem, portanto na sua “gramática”, que não cabe ao gramático explicitar, mas que não pode fi car desconsiderado. Essa consideração é um seguro ponto de apoio para que nunca se perca de vista a noção de que a “embalagem” linguística de um enunciado, sempre linear e segmentável, responde naturalmente a um “pacote” cognitivo global. É da “gramática” de cada um – acoplada a seu léxico – a tarefa de “embalar” os conteúdos em segmentos que se alinhem coesiva e coerentemente na produção de linguagem.

A gramática que vai à escola não pode descaracterizar-se por uma inocente aceitação de que simples receitas e rótulos serão mais fáceis de digerir do que fundas refl exões que revelem a verdadeira natureza da linguagem, a qual, necessariamente, é complexa.

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3. Pesquisando a destinação

Assim se inicia a Apresentação de meu último livro, em que defendo que o uso linguístico decorre da visão de língua, que, por sua vez, decorre da vivência da linguagem:

Este livro se destina a todos os que se interessam por uma proposta escolar de tratamento da gramática que não se isole da vivência da linguagem, ou seja, que ponha em estudo, realmente, a gramática da língua em função. (....) Essa visão representa olhar refl exivamente a língua (....) em contexto de situação e em contexto de cultura, em inter-relações e em interfaceamentos. (Ensino de língua e vivência de linguagem, p. 9).

Novamente vou à escola, escolhendo para comentário a destinação escolar da proposta.

Se é difícil delimitar o conceito de gramática, não menos problemático é entender o que deva constituir uma disciplina Gramática, ou um conteúdo curricular a ela ligado, dentro da grade curricular escolar.

Cabe verifi car o que representa trabalhar com gramática na escola, ou “ensinar” gramática. Em primeiro lugar, como já apontei, tradicional e historicamente, a gramática que a escola tem oferecido a seus alunos não é a da “língua competência”, também não é a da “língua discurso”, é simplesmente a sistematização gramatical fria e inerte do sistema daquela língua particular, no nosso caso o português. E aí se considera que fi ca cumprida a missão de oferecer aos alunos a gramática da língua portuguesa com o simples oferecer de parâmetros tradicionalmente instituídos: esquema de classes e subclasses, ou elenco de funções dentro da estrutura oracional, nem sempre avaliadas as complexas relações entre as classes e as funções.

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E todos os estudiosos que se têm dedicado a avaliar o ensino vigente nas escolas têm acentuado o caráter absolutamente “ritual” de que o ensino tradicional de gramática se tem revestido. Foi também o que verifi quei em pesquisa de campo que empreendi (Neves, 1990).

Concluindo, há lições fundamentais sobre o funcionamento da linguagem que a escola tem esquecido, como venho acentuando em várias oportunidades:

a) A gramática não é um corpo estranho à língua, apenas dialogando com ela: o uso linguístico (a organização da fala) constitui a ativação da gramática.

b) A gramática não é um aparato que temos guardado ao nosso lado apenas para destrinçar frases, como se aí se esgotasse a linguagem: essa não é a estrutura limite que devemos alcançar, é apenas uma das organizações que a gramática provê para o uso linguístico.

c) A gramática da língua em função não é uma peça pronta e fechada em que iremos buscar, em determinado momento, para atribuir a elementos ou a estruturas, entidades absolutamente compartimentadas às quais possamos chegar mediante um estoque de rótulos que tenhamos arranjados em prateleiras: as entidades funcionais da língua não estão discretizadas e amoldadas a priori, o acionamento dos processos é que vai defi nir funções, e, por aí, vai amoldar classes.

d) Assim, não é legítimo reduzir a gramática a um esquema taxonômico de categorias que esperam aplicação: não há planos isolados que respondam pelo funcionamento da língua, pela produção de linguagem.

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Considerações fi nais

Assim eu programei o livro em que trago uma gramática do uso da língua portuguesa numa forma que classifi quei como de “lições”:

O livro se dirige pela noção de que o estudo da gramática da língua pode e deve centrar-se em refl exões sobre a linguagem. O que se pretende é que o estudioso da gramática a entenda como a organização de princípios que leva à produção textual-discursiva, e que, portanto, leva à produção de sentido na interação linguística. (Gramática de usos da língua portuguesa: lições, a sair):

Falemos, pois de nós, assim chamados “gramáticos”. E mais uma vez recolho ponderações que tenho feito insistentemente.

Parece que a sina é que a sociedade em geral olhe os gramáticos como aqueles que, em um livro, fecharam questões. Mas fecharam tão bem que nem com a chave – ou seja, com o livro na estante, ali, à mão – o consulente resolverá suas pendências com a língua que usa. A partir dessa terrível afi rmação, encerro com perguntas, e não com respostas:

Não seria o caso de – em primeiro lugar – a escola (exatamente a escola) começar a mostrar àqueles que se estão formando para a sociedade que não é só nas aulas de matemática, física, química que o aluno tem de pensar? Que são especialmente as aulas de Língua pátria que têm de ser baseadas em atividades refl exivas, porque nelas está a porta – e a chave da porta – de tudo? Que é por elas que o falante vai chegar a saber, realmente, defi nir melhor suas pendências, escapando da angústia de passar a vida tentando resolver pendências falsas (por exemplo, as de adequação a uma etérea “norma”)? Que na explicitação da gramática está o exercício fundamental sobre o cálculo de produção de sentido na linguagem (que é o que resolve todas as pendências de todos os ramos de conhecimento)?

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Afi nal: Quando, sem linguagem, chegar a programar, por exemplo, a aventura da “visita” a outros corpos celestes? Onde, sem linguagem, chegar, por exemplo, à instituição de um programa nuclear (ou sequer ao enriquecimento do urânio)? E como, sem linguagem, chegar a planejar, por exemplo, estratégias de preservação do planeta – a bola da vez? Ou seja (talvez sofi smando): Como – afi nal – sem linguagem, preservar a própria linguagem, que é o que nos foi garantido pelo nosso próprio estatuto de seres humanos, e que, na mão inversa, constitui a garantia desse nosso estatuto?

Referências

BORBA, F. S. (org.) Dicionário gramatical de verbos do português contemporâneo do Brasil. São Paulo: Editora UNESP. Dicionário de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2002.______. Dicionário UNESP do português contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 2004

GÄRTNER, E. Grammatik der portugiesischen Sprache. Tübingen: Max Niemeyer, 1998.

MALHADAS, D.; DEZOTTI, M. C. C.; NEVES, M. H. M. (coords.). Dicionário grego-português. São Paulo: Ateliê, 2006-2010. 5 v.

NEVES, M. H. M. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 1990._____. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.______. Gramática de usos do português. São Paulo: Ed. UNESP, 2000; 2ª ed. 2010a. ______. A gramática: história; teoria e prática; ensino. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.______. Guia de uso do português: confrontando regras e usos. São Paulo: Ed. UNESP, 2003.

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______. Que gramática estudar na escola? São Paulo: Contexto, 2003.______. A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem. 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 2005.______. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.______. Ensino de língua e vivência de linguagem. São Paulo: Contexto, 2010 (2010b).______. A tarefa do gramático. In: DÖLL, C. et al. (Eds). De arte grammatica. Festschrift für Eberhard Gärtner zu seinem 65. Geburtstag. Frankfurt am Main: Valentia, 2010 (2010c).______. Gramática de usos da língua portuguesa: lições. São Paulo: Contexto, no prelo.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 53-70, 1ª parte 2011

CONSTRUÇÃO DE GRAMÁTICAS DESCRITIVAS

Maria Helena MIRA-MATEUSProfª Catedrática Jubilada FLUL e ILTEC

1. A redação de gramáticas por linguistas: a experiência portuguesa2. Gramáticas e recortes teóricos3. Tipos de dados e fontes dos exemplos.

1. História: A primeira edição. O contexto de recepção da Gramática

Quando em 1983, foi publicada em Portugal, pela primeira vez, a Gramática da Língua Portuguesa da autoria de quatro mulheres linguistas, o conceito de gramática sofreu um abalo. Não era aquele o tipo de livros que se chamavam habitualmente Gramáticas. Apesar desta estranheza, recebemos na altura algumas reações interessantes de entre as quais retenho uma carta de felicitações de Paul Teyssier, uma outra de Eduardo Prado Coelho que dizia ter encontrado na obra coisas que não sabia, e que poderia aprender “de forma organizada e econômica”. Recordo também uma longa missiva de um professor de português da Universidade do Canadá (Toronto) que nos pedia para lhe mandarmos a Gramática a fi m de ver se seria de alguma vantagem no ensino da língua portuguesa visto que, naquela cidade, o português “se falava muitíssimo mal (…) e se escreviam muitíssimas calinadas”. Este era o bom tempo em que as mensagens voavam em cartas de papel que, como estas, se podiam guardar carinhosamente durante várias décadas.

A ideia de construir a Gramática nasceu em 1980, quando foi publicado nos jornais pelo Instituto Português do Livro, ao tempo dirigido pelo António Alçada Baptista, um Aviso aos Autores em que se promovia “a elaboração e publicação de uma Gramática de Português

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para o ensino da Língua Portuguesa, a nível universitário, em Portugal e no Estrangeiro”. Nessa altura as quatro linguistas e amigas que faziam investigação no quadro da Gramática Generativa – a Inês Duarte, a Ana Maria Brito, a Isabel Hub Faria e eu própria – resolveram concorrer com um projeto que defi nia assim o que pretendiam fazer:

“a) apresentar uma descrição global e sistemática do Português que tente, pela primeira vez, uma sistematização da dimensão pragmática da língua e dos factores nela intervenientes” e

“b) propor uma análise adequada e consistente das estruturas da língua a nível sintáctico, morfológico, fonológico e lexical”.

Era nossa convicção que uma gramática com estas características não podia ser uma obra individual mas exigia uma equipa que, no caso, tinha uma história de investigação em áreas especializadas. Só podia ser, como diz a Violeta Demonte num texto belíssimo sobre a nossa gramática, uma obra “coral ou polifónica”. A detalhada explicitação e a fundamentação do plano da obra foi convincente e o júri considerou que a proposta “continha importantes inovações teoréticas e didácticas“ pelo que devia ser ofi cialmente apoiada. Assim nos lançámos na elaboração da obra. A primeira edição saiu a lume em 1983 na editora Almedina. A Gramática da Língua Portuguesa recebeu na altura o Grande Prémio Internacional de 1982 atribuído pela Sociedade de Língua Portuguesa.

2. A segunda edição

A segunda edição da Gramática foi publicada em 1989 pela editora Caminho que até hoje detém aos direitos de publicação. Esta edição foi considerada por nós como uma recriação por termos introduzido modifi cações em quase todos os capítulos e, inclusivamente, por termos incluído um estudo inteiramente novo sobre morfologia lexical e derivacional, da autoria de uma quinta linguista, a Alina Villalva.

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Na ocasião em que foi publicada esta segunda edição a imprensa pronunciou-se. Sob o título ”Língua portuguesa tem nova gramática” diz-se num jornal de 89: “Os estudantes universitários e os professores de Língua Portuguesa dispõem, desde ontem, de uma gramática que integra, pela primeira vez, o português tal qual se fala”. O tema com esta formulação foi glosado em outras publicações: “Nova gramática da língua portuguesa tal qual se fala”, “Gramática do português falado”, “O português tal como é falado”, e ainda uma pequena nota do Diário de Notícias a propósito da 2ª edição:

“Nunca uma reedição foi tão oportuna. Sugere-se o envio urgente de uns quantos exemplares ao departamento de locutores não só da RTP mas também das numerosas rádios que por aí agora existem – e para as redacções de alguns jornais também, convenhamos. Anda por aí quem bem precise de lhe deitar uma olhadela, para aprender a falar e a escrever, de forma gramaticalmente correcta, a língua portuguesa”.

Ao olhar para o Prefácio da Gramática e para o seu conteúdo torna-se difícil entender por que foi a obra publicitada na imprensa como tratando do português tal qual se fala. A explicação mais óbvia tem que ver com as expectativas de quem encontra um livro chamado “Gramática”. O frequentador de livrarias dirá ao deparar com ele: ”Aqui está uma obra que me vai dizer como devo falar e escrever corretamente”. Isto signifi ca que um livro assim denominado é imediatamente identifi cado como uma “gramática normativa”. E no entanto tivemos a preocupação de dizer nas palavras iniciais:

“A presente obra não é uma gramática normativa”. Queremos com isto dizer que não é um instrumento que assente “no conceito de que a condição para falar

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“bem” uma língua é consequência do conhecimento da sua gramática”. E mais explicitamente: “esta Gramática insere-se na linha das gramáticas que têm como objectivo principal o de descrever o modo como as línguas funcionam”.

Uma primeira explicação para as notícias da imprensa pode provir da confusão entre estes dois tipos de gramática. Mas existe uma outra justifi cação para se empregar a deliciosa expressão “O português tal qual se fala”. Se um possível utilizador teve algum tempo para folhear a obra, acreditamos que nessa “olhadela” foi encontrando muitos exemplos da língua oral (o português “tal qual se fala”) que não ocorrem habitualmente nas gramáticas do “bom” uso. Por exemplo:

• um grupo de frases com o mesmo signifi cado apresenta mobilidade dos elementos que o constituem: “A Inês vai a Lisboa amanhã?”, “É amanhã que a Inês vai a Lisboa?”, “Amanhã é que a Inês vai a Lisboa?”;

• as interrogativas tag (termo pouco conhecido na época) são frequentes na língua oral: “Vocês lembram-se, não se lembram?”, “Vocês lembram-se, não é verdade?”, “Vocês lembram-se, não é assim?”, “Vocês lembram-se, não é?”, “Vocês lembram-se, não?”;

• as chamadas expressões qualitativas, que muitas vezes criamos na oralidade, são omissas nas gramáticas habituais: “O estúpido do rapaz saltou do segundo andar.” “Um amor de miúdo ofereceu-me uma fl or.”, “Aquele cretino do guarda atirou dois tiros”.

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Milhares destes exemplos que fazem parte do nosso quotidiano falar se encontram na Gramática da Língua Portuguesa. Eles são o miolo, e também o sal e a pimenta da Gramática. Eles são factos da realidade e obedecem ao princípio epistemológico formulado no prefácio da edição de 89, segundo o qual

“a ciência constrói os seus próprios objectos de análise a partir dos dados da realidade: a realidade é ilimitada e só existe para a ciência quando conceptualizada, teorizada e racionalmente sistematizada.

Assim se compreende a necessária seleção que nesta obra se faz dos dados empíricos analisados, decorrente do nosso conhecimento e da observação da língua portuguesa, e da perspectiva teórica em que nos integramos”.

Ainda no mesmo prefácio, e vincando a ligação entre a obra e a investigação centrada no paradigma generativo,

“entendemos que o desenvolvimento teórico da linguística permite que sejam hoje considerados, na gramática de uma língua particular, objectos de análise que não eram habitualmente estudados, embora as hipóteses apresentadas para explicação desses fenómenos se encontrem ainda numa fase preliminar”.

Esta afi rmação legitima uma apresentação da obra que saiu a público na época: “Notícia de uma Gramática enquanto Obra Aberta” em que o autor, ele próprio então linguista, afi rma que se trata de uma Gramática que se distingue de todas as outras até agora existentes pelo facto de ter como objectivo fundamentador a apresentação do estado actual da investigação linguística sobre as regularidades específi cas do Português”. (João Manuel Fernandes, RILP).

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E por fi m, lembrando as referências da imprensa à segunda edição da obra, não posso esquecer uma longa conversa publicada em 83 no Expresso, que, sob o título de Uma questão de “gramática” adiantava em epígrafe:

“Pode uma gramática considerada “indispensável” ser outra coisa que um manual utilitário para consulta de estudantes apressados ou jornalistas em crise de perícia sintáctica? Pode. É a nova “Gramática da Língua Portuguesa”.

Para realizar a segunda edição da Gramática refl etimos sobre a recepção da obra e sobre a nossa própria experiência, e explicitámos mais demoradamente, no prefácio, os princípios fundamentais que nos orientaram. Julgámos de interesse fazer algumas afi rmações teóricas e metodológicas que nos nortearam e se mantêm até à última edição, das quais destaco as seguintes:

• a importância do progresso científi co que representa a teoria generativa para o esclarecimento das características defi nitórias da linguagem humana e das línguas particulares;

• a possibilidade de conjugar a descrição e a explicação do funcionamento dos sistemas dos vários níveis da língua, e a necessidade de considerar a inter-relação existente entre esses sistemas, adoptando em cada circunstância os modelos mais adequados;

• a convicção de que a análise gramatical, ao descrever as unidades básicas da língua, tem de tomar em conta “outros factores que intervêm na actividade linguística – em especial os objectivos comunicativos com que os falantes utilizam a língua”;

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• em consequência, as frases devem ser consideradas no contexto linguístico em que são produzidas tendo-se em conta “o discurso, ou seja, todo o conjunto de frases bem e/ou mal formadas ou ambíguas, as pausas e, até, o próprio silêncio”.

Sempre foi nossa intenção colocar a Gramática da Língua Portuguesa na linha das gramáticas atuais que estudam uma língua particular e, simultaneamente, introduzem o leitor nos conceitos fundamentais da linguística. O percurso científi co da linguística em que nos integramos orienta-se para o estabelecimento de princípios e parâmetros universais. Neste quadro teórico se insere a investigação que subjaz às propostas e análises em sintaxe e semântica, em morfologia e fonologia da Gramática da Língua Portuguesa. Uma gramática com estas características tem como objectivo não só fazer uma descrição do conhecimento que o falante tem da sua língua mas também propor uma explicação do funcionamento dos fenómenos analisados.

Resta dizer que a variedade da língua contemplada nesta obra é a norma padrão do português europeu, embora em muitas circunstâncias se indiquem características de outras variedades nacionais e geográfi cas e, sobretudo, variantes socioletais.

3. A Gramática publicada em 2003

Próximo do fi m do século XX as autoras consideraram indispensável fazer renascer a Gramática tendo em conta o desenvolvimento da investigação própria nos últimos quinze anos, a pesquisa realizada por muitos colegas e investigadores, o progresso da linguística e a experiência de utilização da obra. Foram também ponderadas as críticas e sugestões surgidas durante este intervalo. O aumento da cobertura linguística, o aprofundamento das análises propostas para muitos fenómenos e a necessária reformulação da estrutura inicial levaram à integração de

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outras linguistas no grupo de autoras. Assim se preparou a 5ª edição saída em 2003, em que colaboraram, nas áreas de semântica, sintaxe e prosódia a Fátima Oliveira, a Gabriela Matos, a Sónia Frota e a Marina Vigário.

O trabalho desenvolvido para esta edição assentou em três preocupações fundamentais: extensão da cobertura linguística, ênfase na descrição dos factos linguísticos e legibilidade do texto por um público mais alargado – o que implicou, neste caso, um cuidado quase pedagógico em muitas circunstâncias.

Como se diz no Prefácio desta edição, a reformulação a que se procedeu não pôs em causa os princípios fundamentais que orientaram desde o início a elaboração da Gramática; e os quadros teóricos em que assentam as análises realizadas. Eles possuem um poder explicativo satisfatório e sustentam investigações recentes sobre a língua portuguesa.

Com esta edição a Gramática renovou-se, cresceu e engordou (de 400 páginas passou a 1200), e por isso ganhou alguns apelidos (ou alcunhas). Ela é a “Bíblia” para os entusiastas da linguística, o “Tijolo” para os que carregam com ela, a “Gramática das Mulheres” para os homens que gostavam de ter sido convidados. Um pequeno inquérito junto dos jovens universitários indicou-me que a Gramática é obra de consulta obrigatória em certos cursos e com determinados docentes. Alargando o inquérito percebi que ela é estudada e consultada por investigadores e linguistas no seu trabalho de pesquisa – mas também entendi que, fora destes contextos, difi cilmente serve de apoio, por exemplo, na preparação de aulas dos professores de português do ensino secundário. Isto é, depois do curso a Gramática não é utilizada pelos que a estudaram por paixão ou obrigação, visto que (como me foi dito) não se trata de um manual de consulta mas de uma obra de leitura para compreensão dos mecanismos da língua.

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4. A Gramática da Língua Portuguesa na sua intimidade

O que contei até agora foi a história externa da obra. Nada disse da sua intimidade, não falei da sua estrutura, das opções feitas no desenvolvimento das diferentes partes, da forma como construímos o nosso objeto de análise a partir dos dados da realidade, selecionados e conceptualizados, enfi m, não afi rmei que é nossa convicção que trabalhámos a gramática como uma área da ciência.

Permita-se-me que faça um pequeno excurso justifi cativo dessa convicção. Começo por defi nir sucintamente o que entendo por ciência: uma forma de conhecimento com que se pretende explicar o que vulgarmente denominamos ‘o real’, elaborada essa explicação de tal modo que seja possível a sua validação.

É indubitável que o conceito actual de ciência exige a construção de uma teoria que permita (a) representar formalmente as estruturas, as relações e as funções dos elementos que constituem o objecto a analisar (neste caso, a língua portuguesa), (b) formular hipóteses explicativas do funcionamento desses elementos e (c) proceder à verifi cação da validade das hipóteses formuladas. A todas estas condições uma teoria formal responde mais satisfatoriamente do que outros modelos, dadas as suas capacidades de generalização e de verifi cação dos resultados das hipóteses formuladas. Esta é uma razão por que a apresentação das explicações formalizadas que incluímos na Gramática têm, do nosso ponto de vista, um carácter científi co. Julguei de interesse apresentar as partes constitutivas da obra e, aqui e além, exibir uns quantos exemplos para esclarecer afi rmações e, quem sabe? entusiasmar os ouvintes.

A primeira parte da Gramática é essencialmente descritiva. Ela fala da variação do português no tempo caracterizando brevemente os períodos da história da língua. Apresenta a variação no espaço e, de forma sumária, contrasta as duas variedades nacionais – português europeu e brasileiro – e caracteriza diferenças dialetais, mostrando que a variação é testemunho signifi cativo da vitalidade da língua.

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Olhada de outro ponto de vista, a variação, e a mudança que dela decorre, são consequência do uso interactivo e dos objetivos comunicativos do discurso linguístico, do conhecimento partilhado pelos falantes de uma língua e do contacto constante com outras línguas e culturas. Os atos ilocutórios, peça essencial do uso da língua no estudo do discurso, são um dos fulcros da comunicação, e a sua análise foi introduzida na segunda parte da Gramática. Eis alguns exemplos de atos ilocutórios:

Os atos assertivosLoc 1 - Achas que o Pedro vai chegar a horas? Loc 2 - Claro!

Necessariamente!Por que é que não há-de chegar?Se ainda é o mesmo que eu conheci...! O quê, o rei faz anos?

Os atos compromissivosJuro dizer a verdade.Tenciono passar aí por casa amanhã.

Os atos diretivos - com verbos modais

Não é verdade que não se deve dar ouvidos a tolos?Não achas que tens de comer a sopa toda?Não sabes que não podes espreguiçar-te à mesa?

- com verbos declarativosNão te disse para teres cuidado com o fogo?Quantas vezes te proibi de gritar à frente das visitas?

Os atos expressivosAgradeço-te a visita de ontem à tarde.Congratulo-me com a vitória de Rosa Mota.Peço desculpa por telefonar a esta hora.Deploro as tuas atitudes machistas.

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É ainda na Parte II da Gramática que se estudam as ligações internas dos elementos do texto e as formas como os falantes as manipulam. O capítulo sobre coesão textual e temporal conectividade conceptual, a que se acrescenta a estrutura temática e informacional do discurso, permite a compreensão do que transmitimos quando falamos e como o fazemos. Coesão interfrásica, o uso dos conectores, a omissão intuída são meios de que nos servimos para construir o texto e transmitir informação, são meios subtis de que não temos consciência. Os exemplos são longos e representativos da organização textual, e por isso o capítulo indica um grupo de fontes literárias e ensaísticas em que o texto é o objeto de análise (a Ode Marítima de Álvaro de Campos ou Direitos Humanos e Revolução de Soromenho Marques são algumas dessas fontes).

É na terceira parte que se estudam os aspectos semânticos da gramática do português. O tempo e o aspeto (ou modo de ação, aktionsart), a modalidade e o modo, e as múltiplas feições semânticas que adquirem estas categorias na utilização das formas verbais são alguns dos capítulos da gramática que têm recebido mais visitas.

Outros pontos desta terceira parte mostram a necessária combinação de análises sintáticas e semânticas, como a predicação e os predicadores verbais em que se inclui a estrutura argumental e os papéis temáticos (ou papéis semânticos), que têm sido um must nas modernas gramáticas (a propósito destas questões não posso deixar de referir a importância da Gramática Simbólica de Óscar Lopes, publicada em 72 e de uma extraordinária argúcia nas análises apresentadas).

No exemplo seguinte, em que se contrastam frases gramaticais com agramaticais, observa-se como a sintaxe e a semântica interagem por vezes na análise linguística. Essa interacção é necessária para explicar a agramaticalidade das frases de (b) que resulta de não terem sido respeitadas na construção sintática as propriedades de seleção semântica dos verbos:

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(a) [SN

O criminoso] assassinou [SN

três automobilistas].

(b) [SN

A trovoada] assustou [SN

as crianças].

(c) [SN

O João] pôs [SN

o livro] [SP

na estante].

(a) *[SN

A tempestade] assassinou [SN

três automobilistas].

(b) *[SN

A trovoada] assustou [SN

o telhado].

(c) *[SN

O João] pôs [SN

o livro] [SP

para a estante].

Também na referência nominal encontramos união entre sintaxe e semântica, como nas operações de pluralização, ou de quantifi cação, quando estão em causa nomes contáveis e não contáveis

(a) Bebi vinho ao jantar.

(b) Bebi pouco vinho ao jantar.

(c) Bebi um copo de vinho ao jantar.

(d) Bebi um decilitro de vinho ao jantar.

Vinho é um contínuo mas pode extrair-se dele uma porção ou quantidade. Mais difícil é estabelecer a concordância verbal em frases como as seguintes se não se entender “um bando” ou ”um grupo” como um conjunto com propriedades semânticas que o tornam singular ou se se entender apenas uma parte do sintagma que leva à pluralização.

(a) Um bando de pássaros passou (passaram) no ar

(b) Um grupo de crianças começou (começaram) a gritar.

A quarta parte, a mais extensa do livro, trata dos aspetos sintáticos da gramática do português. Relações gramaticais, esquemas relacionais, categorias sintagmáticas, lexicais e funcionais, estruturas e a sua representação em árvore, todos os tipos de orações e de construções são analisados pelo grupo das sintaticistas sem apelo nem agravo. Quer isto dizer que nada fi cou de fora neste estudo da sintaxe do português.

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Todos sabemos que é característica da gramática generativa a utilização de uma formalização exigente e esclarecedora das análises realizadas. É nestas seiscentas páginas que essa formalização faz uma certa aparição sob o modo de esquemas, árvores e diagramas vários. Mas se se comparar esta edição com a anterior, é evidente a simplifi cação que se procurou – e que se conseguiu – na representação das análises. Difi cilmente uma gramática pode tratar, de forma tão extensa e aprofundada, as inter-relações frásicas, as categorias sintáticas, as estruturas de coordenação e subordinação, as construção de graduação, negação e comparação, o uso e a diferente natureza dos clíticos, a tipologia das construções elípticas e o estudo da anáfora e das expressões anafóricas. Não podemos esquecer, aliás, que a sintaxe tem lugar de honra no quadro teórico em que trabalhamos.

Não posso deixar de incluir alguns exemplos desta parte imensa da gramática.

Todos lembramos os testes de depreensão das relações gramaticais. Como se determina o Sujeito?

(i) Substituição pelo pronome tónico(a) [O miúdo que está a jogar à bola]

SU comeu um gelado.

(b) [Ele]SU

comeu um gelado.(c) *[Ele] que está a jogar à bola comeu um gelado.

(ii) Construção de uma estrutura clivada (d) Foi [o miúdo que está a jogar à bola] que comeu um

gelado.(e) *Foi [o miúdo] que que está a jogar à bola comeu um

gelado

(iii) Construção de uma estrutura pseudo-clivada (f) Quem comeu um gelado foi [o miúdo que está a jogar à bola].(g) *Quem que está a jogar à bola comeu um gelado foi [o

miúdo].

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(iv) Formulação de uma interrogativa sobre o sujeito (h) P: Quem comeu um gelado? R: [O miúdo que está a jogar à bola]

SU.

(i) P: *Quem que está a jogar à bola comeu um gelado? R: [O miúdo].

Um outro tipo de exemplos que mostra a mobilidade dos elementos dentro da frase é o seguinte com que se torna evidente que o Sintagma Preposicional não é geralmente separável do núcleo:

(a) O pai da Maria chegou.

(b) Chegou o pai da Maria.

(c) *O pai chegou da Maria.

(d) *Da Maria chegou o pai.

Mas também este sintagma pode ser topicalizado e, então ocorre no início da frase:

(a) De seda, comprei uma camisa; de algodão, duas.

(b) De história, comprei alguns livros; de matemática, só três.

As representações que incluem o verbo com a sua fl exão são mais complicadas, como se vê no exemplo seguinte (Flex representa os traços da fl exão; Conc são os traços de concordância):

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Para terminar este conjunto de exemplos, veja-se a representação de uma coordenação de orações (um sintagma conjuncional) com a conjunção adversativa:

Ficou por apresentar uma enorme quantidade de construções, todo o estudo das elipses, a sintaxe das negativas, os pronomes clíticos, e mais não direi porque julgo que a curiosidade pode levar algum ouvinte a espreitar (ou consultar, ou estudar) esta consistente parte da Gramática da Língua Portuguesa.

F (=SFlex ou Flex")

SN Flex'

SV

SN+T (P.Perf)

+Conc (3ª sg.)

a amiga da Maria viu o filme

Flex

V

O jantar está pronto mas ninguém vai para a mesa

Sconj

Sflex Conj'

Sconj Sflex

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Mas as análises não se quedam na frase: a morfologia também tem o seu lugar e constitui a quinta parte da Gramática. Os constituintes internos da palavra – a estrutura morfológica básica – e a fl exão nominal e verbal introduzem a formação de palavras por afi xação, uma área que não tem tido sufi cientes cultores mas sem a qual não se pode levar a efeito uma análise lexical esclarecedora e produtiva. Esta parte da Gramática é a que mais se aproxima das gramáticas tradicionais, tem uma organização transparente, é de fácil consulta e muito rica em dados no que respeita à fl exão nominal e verbal. No capítulo sobre formação de palavras estão incluídos inúmeros afi xos com que construímos em português a derivação e a sufi xação avaliativa, negativa, opositiva, quantifi cadora. A composição morfológica e morfo-sintática tem uma explicação em que se reconhecem princípios já referidos nas partes da gramática atrás apresentadas.

Chegamos por fi m aos aspetos fonológicos e prosódicos da gramática do português. Os segmentos fonológicos – as mais pequenas unidades da língua – e a sua distribuição em superfície são tratados com instrumentos da linguística estrutural. O mesmo não pode dizer-se quanto à sua organização em sistema e aos processos e regras a que estão sujeitos.

A fonologia tem sido objeto de análises que permitiram um progresso na teoria e na metodologia da gramática generativa. A utilização dos conhecimentos em fonética – que provêm do período experimental nesta área – deu origem aos traços fonológicos que identifi cam os segmentos, os quais são manipulados de acordo com os princípios da teoria generativa. Nos últimos anos, na sequência da teoria autosegmental, desenvolveu-se o modelo da geometria de traços e o princípio da subespecifi cação que permitiram, na gramática do português, encontrar soluções elegantes e convincentes para as questões postas pela estrutura interna da sílaba e para a alternância vocálica na fl exão verbal do português. Entendendo a existência de um segmento fl utuante na estrutura fonológica subjacente, é possível explicar essa

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alternância como uma consequência da harmonização vocálica com a vogal temática dos verbos. A representação deste processo sobre uma forma de base como dev+e+o (devo) faz-se no exemplo seguinte:

a) X ]Tema X �

TemaX b) X X

=

Raiz da V1 Raiz da V2 Raiz da V3 ⇒ Raiz da V1 Raiz da V3

Vocálico Vocálico Vocálico Vocálico Vocálico

Altura Altura

A vogal temática é suprimida e o seu traço de altura fi ca a fl utuar (como o gato da Alice, o gato Chershire que desaparece fi cando apenas o seu sorriso). A altura vai projetar-se na vogal1 que é a vogal do radical.

É também dentro do modelo da fonologia generativa que se pode explicar a diferença entre a estrutura silábica da mesma palavra nas duas variedades, europeia e brasileira, de que são exemplo pneu/pineu, absurdo/abisurdo, captar/capitar.

As últimas análises da Gramática incidem sobre a prosódia e os seus constituintes, e estudam, como dizia Coelho de Carvalho, “a melodia da fala”. Recém chegada à linguística, a prosódia apropriou-se dos traços que a identifi cam, e que são conceptualizações de propriedades inerentes ao som como o tom, o acento e a duração. A distribuição das proeminências sonoras permite apreender aspetos semânticos, sintáticos e morfológicos do discurso pela relação que estabelecem entre si os tons, a duração e as pausas, como se pode observar na seguinte representação:

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[As alunas]I [até onde sabemos]I [obtiveram boas avaliações]I

(Hi) L*+HHi (Hi) L*+H Hi H* H+L*Li

Termino assim este longo passeio pela Gramática da Língua Portuguesa em que integrei, não poucas vezes, a expressão do meu entusiasmo pelo trabalho que realizamos, retomando as últimas palavras do prefácio das primeiras edições:

“As descrições feitas, as hipóteses propostas e as soluções encontradas não se consideram de modo algum defi nitivas. Foi nosso objectivo e é nosso desejo que elas sejam entendidas como ponto de partida para a realização de trabalhos futuros em que outros linguistas (e nós próprias), ao retomarem as hipóteses aqui apresentadas, venham a demonstrar a sua pertinência ou a sua inadequação”.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 71-90. 1ª parte 2011

LAS MACROGRAMÁTICAS COLECTIVAS. LENGUA-I Y LENGUA-E: DATOS, TÉCNICAS Y TEORÍAS IMPLÍCITAS.1

Violeta DEMONTE Consejo Superior de Investigaciones Científi cas, España (CCHS-CSIC)

Introducción

Han transcurrido alrededor de tres décadas desde la aparición en Europa de las primeras gramáticas descriptivas no-normativas concebidas no como obras de un solo gramático sino como resultado de un trabajo conjunto de muchos autores, de equipo, con directrices comunes, bajo la dirección de una o varias personas responsables y con un plan previo aceptado por todos. Denominaré “macrogramáticas” a las gramáticas así planeadas y ejecutadas, aunque la dimensión, estructura y objetivos de estas obras colectivas, como es natural, no sean siempre iguales. Tres décadas dan quizá perspectiva sufi ciente para analizar la necesidad de estos tratados, sus ejes, sus limitaciones y su virtualidad. Sin ninguna pretensión apodíctica o didáctica, en este texto quiero hacer algunas consideraciones, primero (sección 2), sobre el lugar y la naturaleza de la propia noción de gramática en el momento actual de la teoría lingüística, repasaré luego (sección 3), la saga de las macrogramáticas europeas y me referiré, en la cuarta y última sección, a la cuestión de la relación

1 La elaboración de este trabajo ha sido parcialmente fi nanciada mediante los proyectos de in-vestigación FFI2009-07114 (subprograma FILO) y EDU2008-01268 ambos del Ministerio de Ciencia e Innovación del Gobierno de España (Plan Nacional de I+D). Agradezco a Elena Cas-troviejo e Isabel Pérez-Jiménez sus permitentes observaciones y críticas a una primera versión de este texto. Estoy muy agradecida asimismo a mis colegas de la sesión inaugural del VI Congreso de ABRALIN por lo mucho que de ellos aprendí en aquella sesión de trabajo. Gracias muy es-peciales al Dr. Ataliba Teixeira de Castilho por proporcionarme tan generosamente materiales bibliográfi cos que han sido esenciales para la revisión de aquella ponencia y redacción defi nitiva de este breve texto.

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entre teoría y datos, entre datos de intuición y datos de corpus, y entre (supuesta) descripción neutral frente al papel de las hipótesis implícitas y/o a la carta… en las macrogramáticas colectivas. Mi experiencia de hace ya varios años como co-directora, con Ignacio Bosque, de la Gramática descriptiva de la lengua española [GDLE] está sin duda en el sustrato de estas páginas, pero querría situarme en una perspectiva más general y personal.

1. La noción de gramática hoy: lengua-i – lengua-e

La gramática generativa [GG] resucitó, redefi nió acaso, la noción de gramática que había perdido novedad tras siglos de gramáticas emanadas de la lógica y, en lo que a la morfosintaxis se refi ere, tras décadas de búsqueda y establecimiento de procedimientos para descubrir estructuras de constituyentes, sea defi nidas por sus funciones, sea por las propiedades construccionales, o por su lugar en la distribución de la información dentro de la oración. La meta de la lingüística estructural era el análisis de los sistemas de signos, de las relaciones forma-signifi cado en esos sistemas, y la “lengua” se defi nía aquí como un producto social de la facultad del lenguaje (Saussure). La lingüística chomskiana de mediados de los 50 defi nió la gramática en un sentido mucho más abstracto como un sistema computacional (en el sentido de “preciso, formalizado y capaz de enumerar cadenas de elementos”) previo a las estructuras sintagmáticas producidas: el de las reglas que generan “todas y solamente las oraciones gramaticales de las lenguas” (Chomsky, Aspectos) y que representan “el conocimiento que el hablante tiene de su lengua”. En la visión de la GG, ese sistema computacional constituye la Lengua-I(nteriorizada), un componente de la mente humana, que debe ser adquirido y que todos adquirimos por exposición a una o varias lenguas en el período crítico. Una GG, entonces, es una teoría de la lengua-I. Frente a ella, está la Lengua-E(xteriorizada) –la separación Lengua-I-Lengua-E es una precisa distinción de la lingüística chomskiana— que

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podemos caracterizar como una colección de proferencias, de actividades lingüísticas, de emparejamientos forma-signifi cado sea en el terreno de las palabras, las construcciones o las oraciones… lo que normalmente entendemos por fenómenos gramaticales, discursivos, de variación, etc. Desde la lingüística chomskiana se ha señalado que la lengua-I es lo que verdaderamente el lingüista puede estudiar de manera sistemática puesto que solo los enunciados teóricos están sujetos a condiciones de verdad restrictivas y bien especifi cadas. Asimismo, el estudio de la Lengua-I, entre otras cosas, debería constituir un paso hacia la comprensión de la base biológica del lenguaje, del organismo que lo hace posible. Este programa de trabajo aun incipiente es el que se ha dado en llamar “biolingüística”.2 Este estudio de la lengua-I, asimismo, aspira a defi nir las condiciones que hacen posible las lenguas-E y pretende llegar a establecer los límites y la naturaleza de la diversidad lingüística. Si se puede resumir lo que es ya un resumen: durante varias décadas la gramática generativa ha ido aislando las propiedades de la lengua-I, de la facultad del lenguaje, y la aspiración ahora es ir hacia lo que constituye la arquitectura orgánica de esa facultad.

La lengua-E, en contraste con la lengua-I, es el conjunto de actuaciones lingüísticas, de datos lingüísticos si se quiere, marcadas como es natural por factores culturales, sociales, geográfi cos, individuales e históricos. Así las cosas, frente al caso anterior parece confi gurar un objeto más difícil de abarcar si se tiene en cuenta la manera de trabajar de las ciencias (un químico no estudia el agua o el aceite sino las propiedades de los elementos líquidos, las partículas mínimas que los conforman, los procesos químicos posibles) y por ello la estrategia seguida ha sido aislar los marcos de análisis de estos elementos de la actuación lingüística (sociolingüística/ dialectología, lingüística histórica, análisis del discurso, etc.) para ir haciendo aproximaciones parciales sobre un conjunto complejo y diverso. La consecuencia de esta estrategia, justifi cada en buena medida por razones prácticas, es que existe una gran 2 V. Anna Maria Di Sciullo y Cedric Boeckx (eds.): The biolinguistic enterprise; Oxford. OUP, 2011 para una serie de actuales y muy destacados estudios sobre el programa biolinguístico.

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fragmentación en el estudio de la lengua-E y no parece obvio cómo se podría construir un marco general integrador de esos estudios; menos fácil aún parece relacionar esos resultados con los que arroje el estudio de la lengua-I, estudio que, al menos programáticamente, aspira a ser unitario. No obstante, no conviene dramatizar, esto no sucede solo en el terreno de la lingüística: hay mucho que hacer aún sobre el complejo asunto de cómo explicar y caracterizar los objetos histórico-sociales; es evidente empero que, pese a las difi cultades que he señalado, esos objetos pueden ser descritos o interpretados con mayor o menor fi nura, rigor, acierto o elegancia.

Volviendo a lo que aquí nos interesa, lo que normalmente se entiende por gramática de una lengua es necesariamente una aproximación a las propiedades de los objetos de la lengua-E: un conjunto de datos (palabras, construcciones, oraciones, discursos) defi nidos como lengua en virtud de parámetros no solo lingüísticos sino también históricos y sociopolíticos. En sentido estricto, entonces, una gramática no puede ser sino un conjunto de enunciados descriptivos, teleológicos, casuísticos… sobre la lengua-E, con mayor o menor indicación, aquí está la decisión del gramático, de cuál es su contenido, su forma o su contexto de uso. Quiero decir que la expresión gramática descriptiva es en cierto modo una tautología. Ello se debe a que hay muchas carreteras, no siempre fáciles de separar, por las cuales puede discurrir ese conjunto de enunciados descriptivos sobre la lengua-E. Esto signifi ca que la noción de gramática no es básica sino secundaria, las gramáticas pueden tener tantas formas como el gramático quiera, mientras que la teoría de la lengua-I debe satisfacer el requisito de “adecuación explicativa” (frente a “adecuación descriptiva”, Chomsky), e integra por defi nición el estudio del sistema computacional y de las interfaces con los sistemas de actuación, en tanto en cuanto las unidades elementales, las operaciones y las condiciones de interfaz constituyen los elementos mínimos que entran en el diseño de la facultad del lenguaje. Se señala en ocasiones que la GG no concede crédito sufi ciente a la noción de lengua o que considera que las lenguas

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no existen. Tras lo que acabo de decir (y daré otras precisiones a continuación) puede advertirse que las cosas no son exactamente así. Lo que sí se enfatiza –y eso sucede en cualquier teoría que se tome en serio la seria distinción entre Lengua-I / Lengua-E- es que las lenguas son objetos históricos y sociopolíticos (Lengua-E) no menos que objetos biológicos (Lengua-I) y esta complejidad no debe soslayarse a la hora de estudiar el lenguaje y las lenguas; si así no se procede corremos el riesgo de situarnos en tierras de nadie. En todo caso, antes de hablar de las macrogramáticas y sus características reales y posibles me interesa hacer un repaso somero de los desarrollos en el conocimiento de la teoría de la lengua-I y el contenido de las lenguas-E. El repaso será muy general por falta de espacio, no pretendo que con ello se entienda un intrincado panorama de teorías y técnicas cuya justifi cación y alcance queda muy lejos de los objetivos de este texto; considero necesario, sin embargo, referirme a ese panorama por lo que antes he dicho: porque en el momento actual la construcción de las gramáticas y macrogramáticas (descriptivas), objetos derivados, está muy infl uida por ese menú de posibilidades tanto teóricas (marco base de la organización de los hechos) como prácticas o técnicas (fi nes pedagógicos, investigadores, normativos, etc.)

El estudio de la lengua-I ha signifi cado un giro de la lingüística en los últimos 50 años puesto que movió la disciplina desde el estudio de constructos a una interpretación mentalista del estudio del lenguaje. La aproximación mentalista supone una visión abstracta dirigida a establecer generalizaciones y formular hipótesis sobre los principios de la gramática universal [GU] (como en primera instancia se denominó a la Lengua-I), fundamentalmente a través del estudio de varias lenguas a la vez y, por lo tanto, en una perspectiva que, de una parte, presta especial atención a los mecanismos subyacentes y, de otra, a la variación entre las lenguas3 como manifestación de la interacción entre esos

3 Conviene recordar que este uso del la noción de “variación” (variación paramétrica, en térmi-nos de rasgos de las categorías funcionales) no es equivalente a lo que se entiende por variación en la lingüística variacionista (Labov).

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mecanismos. La biolingüística en la que se enmarca el estudio de la lengua-I aspira a situar a la lingüística en el seno de las ciencias de la naturaleza; no obstante, la viabilidad de la biolingüística dependerá de que se articulen conceptos conmensurables (Popper) entre la lingüística y sus disciplinas próximas.4 Los estudios lingüísticos de la lengua-I han experimentado un crecimiento notable en las últimas décadas. Hagamos un breve repaso. La empresa iniciada a fi nales de los 50, mediados de los 60 dio buenos resultados en el estudio de las gramáticas formalizadas y de las propiedades sintácticas y léxico-sintácticas de las lenguas. El modelo siguiente, el de los Principios y los Parámetros [PP], con algo más de precisión, concibió la GU como el efecto de dos elementos en interacción: unos “principios” fi jos, comunes a todas las lenguas (defi nidos técnicamente en el “modelo de la rección y el ligamiento”) y unos “parámetros” susceptibles de ser escogidos por las lenguas en una u otra versión y que constituyen los ejes en torno a los cuales las lenguas varían. El resultado de este nuevo marco fue el perfeccionamiento de las operaciones del sistema computacional (constreñidas por la restricción que suponen los parámetros) y la incorporación de un número considerable de lenguas al programa de análisis de la lengua-I, de la GU. Así, en este período el aumento del conocimiento de las propiedades formales de lenguas diversas fue, si se me permite, espectacular, y esto se notará mucho en las macrogramáticas. Más recientemente, en el giro que representa el Programa Minimalista [PM],5 como he dicho, la gramática universal o sistema computacional subyacente se concibe como un “diseño perfecto” y confi gura un componente mínimo (con una sola operación: Fusión) que se relaciona con los niveles de actuación mediante dos “interfaces”: el sistema conceptual-intencional (la “forma lógica”) y el sistema perceptivo-articulatorio (la “forma fonética”). Para

4 Mientras el lenguaje teórico y el equipamiento formal de la lingüística y la biología sean tan radicalmente distintos como lo son hasta ahora, la relación entre ellas parece difícil de articular, salvo por el hecho innegable de que las propiedades que los lingüistas aíslan pueden arrojar pistas sobre los mecanismos cerebrales que permiten la actividad lingüística. 5 Para una introducción en español a los objetivos y estructura del PM, véase Luis Eguren y Olga Fernández Soriano: Introducción a una sintaxis minimista; Madrid, Gredos, 2004.

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ser precisos, el objetivo del programa minimista podría decirse que no es tanto caracterizar la facultad del lenguaje per se sino describir las condiciones que imponen sobre esa facultad (y viceversa) los sistemas con los cuales interactúa. Se trata de un marco amplio, de un programa, como tanto se ha insistido; la observación siguiente de Di Sciullo y Boeckx (op. cit.) tiene mucho sentido e interés:

“Biolinguistics is a fairly broad research program and allows for the exploration of many avenues of research: formalist; functionalist; nativist and insisting on the uniqueness of the language faculty; nativist about general (human) cognition, but not about language per se, etc. From Chomsky to Givón, from Lenneberg to Tomasello—all of this is biolinguistics”. (Di Sciullo y Boeckx 2011: 5)

En efecto, la GG no solo reabrió la carretera de la visión mentalista del estudio del lenguaje, sino que también generó extensiones, réplicas, alternativas totales o parciales, fuertes o débiles, que han enriquecido notablemente el campo de los estudios del lenguaje a la vez que han generado ruido y alguna confusión. Para situar metodológica y conceptualmente las teorías alternativas sobre la lengua-I algunos autores (Newmayer, recientemente Golumbia)6 establecen una distinción general entre formalismo y funcionalismo, teorías formales y teorías funcionales. La adoptaré como una manera de generalizar fácilmente, pero los propios adherentes a cada una de esas supuestas grandes líneas se mueven a veces sin grandes problemas en los terrenos de la otra línea, si bien parecería que el criterio de demarcación claro entre los dos enfoques es el de si se acepta o no la hipótesis de la autonomía de la sintaxis. Parece haber también entre las dos líneas una diferencia o debate ‘fundacional’

6 V. Fred Newmayer: Language form and language use; Cambridge: MIT Press, 1998; Fred Newmay-er: “Grammar is grammar and usage is usage”, Language 79, 682-707, 2003; y David Golumbia: “Minimalism is functionalism”, Language sciences 32, 28-42, 2010.

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pues ambos responden de distinto modo a la pregunta de ¿cómo surge el lenguaje humano en el contexto de la evolución de los primates? Ciertamente, si no me equivoco demasiado, hay por el momento pocos elementos de juicio fuertes que permitan zanjar este debate. En términos gruesos, las teorías funcionalistas –Halliday, Givón, Dik, Bybee, etc., quizá la denominada gramática cognitiva que, por otra parte, es una versión extendida (teñida de algunos conceptos de la teoría de la subjetividad, la intencionalidad, etc.) de los modelos lexicistas de la GG– se inscriben en la idea de que la razón de ser de las lenguas es la comunicación y, en esta línea, en la suposición de que su diseño es un producto de la selección natural moldeado por esas necesidades comunicativas. En una interpretación trivial de esta suposición, que a veces no está siquiera en los propios autores autodenominados funcionalistas, la forma y las propiedades de las lenguas expresarían de una manera más o menos directa esa función comunicativa del lenguaje. Las teorías formalistas –la GG, las gramáticas léxico-funcionales, las gramáticas de unifi cación, quizá la tipología lingüística– inciden en las propiedades intrínsecas del lenguaje humano (recursividad, infi nitud discreta, localidad, o marcadez -“markedness”-, gramaticalización, etc.) más que de las lenguas y no en las propiedades asociadas a las funciones de las expresiones lingüísticas; sin que eso signifi que negar las virtualidades comunicativas del lenguaje humano (estas propiedades serían comunes a muchas especies: estarían ya presentes en otros sistemas de signos del mundo animal desde hace decenas de miles de años). En los casos en que esta cuestión se explicita (en el PM, por ejemplo), se ha señalado que las lenguas humanas, un producto natural reciente (de entre 50.000 y 100.000 años atrás), una mutación que se añade a sistemas comunicativos preexistentes, comunes a una gran variedad de seres vivos, surgirían tras un recableado del cerebro. El lenguaje serviría para exteriorizar/ representar pensamiento, planes, interpretaciones, imágenes del mundo,… ventaja selectiva evidente que se articula después, mediante estos procedimientos de exteriorización, pero que propiamente no está en la génesis del lenguaje humano. En

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esta visión, la función comunicativa del lenguaje adquiere también un nuevo sentido en la medida en que se la relacione con los procesos de exteriorización. Permítaseme una cita de Berwick y Chomsky (2010):7

“… Externalization is not a simple fact. It has to relate two quite distinct systems one is the sensory-motor system that appear to have been basically intact for hundreds of thousands of years; the second is a newly emerged computational system for thought, which is perfect insofar as the strong minimalist thesis is correct. We would expect, then, that morphology and phonology, the linguistic processes that convert internal syntactic objects to the entities accessible to the sensory-motor system—might turn to be quite intricate, varied, and subject to accidental historical events. Parameterization and diversity, then, would be mostly… restricted to externalization. That is pretty much what we fi nd: a computational system effi ciently generating expressions interpretable at the semantic-pragmatic interface, with diversity resulting from complex and highly varied modes of externalization which, furthermore, are readily susceptible to historical change.” (op. cit. 37-38)

¿Quiere esto decir –la afi rmación, por ejemplo, de que la exteriorización está sujeta a cambios históricos–, como ha indicado Golumbia, que el minimalismo es un nuevo funcionalismo? No parece ser exactamente así (aunque Golumbia cualifi ca, cierto es, su aseveración) puesto que lo que resulta más fácil de mostrar es que la función comunicativa es una propiedad extendida de los sistemas de signos; lo que la emergencia del sistema computacional

7 Robert Berwick y Noam Chomsky: “The biolinguistic program. The current state of its devel-opment”. En Di Sciullo y Boeckx, op. cit., 19-41.

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añade es la función exteriorizadora. Esto en lo que se refi ere a las constricciones metodológicas; desde un punto de vista práctico, los estudios funcionalmente orientados se pueden incorporar al programa biolingüístico en tanto en cuanto las propiedades que ellos aíslen permitan entender las restricciones que la sintaxis impone sobre otras capacidades combinatorias paralelas. Por ejemplo, es sensato suponer que la sintaxis no incluye la interpretación, que seguramente es el producto de una capacidad combinatoria independiente que la sintaxis, eso sí, restringe de manera crucial. Por ello los semantistas formales han de determinar qué viene de la sintaxis (lo que se expresa en el principio de “composicionalidad”), cómo interacciona esta con la interfaz CI y cómo pueden obtenerse las inferencias posibles, o qué otras funciones semánticas pueden añadirse sobre las computacionalmente previsibles.

Volviendo a nuestro asunto central, lo que he querido señalar hasta aquí es que este panorama tan rico de visiones y aproximaciones ofrece un caudal de posibilidades para la estructuración y la elaboración de las gramáticas descriptivas y debería permitir plantearlas y llevarlas a cabo con clara conciencia de en qué nivel se están situando las descripciones, su interpretación y las observaciones sobre su uso, si las hubiere. Como veremos, ese caudal se ha usado de manera fecunda en las macrogramáticas.

Las posibilidades que emanan de los modelos teóricos se potencian y amplían cuando advertimos que disponemos también de los resultados de los estudios que abordan de manera directa la lengua-E, cuyo objetivo es en cada caso un aspecto específi co, determinado desde fuera podríamos decir, del conjunto de enunciados que constituyen esta lengua-E. Sin ánimo de exhaustividad, me refi ero con ello sobre todo a los resultados

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de la dialectología y la sociolingüística, de la pragmática comunicativa, diferente de la pragmática cognoscitiva –Sperber y Wilson—, que todos situamos en el seno de los estudios de la lengua-I, a los incipientes estudios sobre la oralidad y a la elaboración de grandes documentos de trabajo como son los corpus, cada vez más extendidos y de fácil acceso. En todos estos casos, lo que estos resultados nos proporcionan a los lingüistas teóricos es una base empírica enriquecida importante sobre todo cuando los datos son nuevos o poco conocidos y están estadísticamente bien evaluados. Estos datos tienen relevancia para los estudios teóricos pues pueden llevar a reanalizar propiedades previamente establecidas sobre otros fundamentos empíricos. Estos datos, por supuesto, son también importantes para las gramáticas descriptivas, aunque muchas de ellas no los tengan en cuenta ya que suelen estar predeterminadas por lo que podríamos llamar la visión internista de las lenguas.

Tras estas consideraciones generales que juzgaba necesarias para que puedan entenderse mejor algunas observaciones de las dos secciones que siguen me ceñiré ahora estrictamente a la cuestión de la historia, naturaleza y contenido de las macrogramáticas que conocemos.

2. Breve historia de las macro-gramáticas europeas y americanas. Características fundamentales

La saga de las “gramáticas grandes” (término este inventado, por lo que se me alcanza, por L. Renzi) es la historia de un tranvía que con los años se convierte en un tren articulado, como decimos con Ignacio Bosque en un artículo publicado en la revista Lingüística de la ALFAL.8 En España, la primera macrogramática, la GDLE, apareció en 1999, pero varias obras le habían precedido y otras la siguieron o van a seguirla. La serie que ellas constituyen tiene dos puntos de partida fundamentales. En

8 Este apartado es en los aspectos más generales (no en el análisis interno de las obras) deudor en parte de un artículo que escribí con Ignacio Bosque, co-director conmigo de la Gramática descriptiva de la lengua española, en la revista Lingüística 15/16, 2003/2004: “Teoría y descripción en la GDLE. Memoria y perspectivas”, 11-34.

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el comienzo mismo está la Gramática da Lingua Portuguesa de la Editorial Caminho, redactada por M. H. Mira Mateus, A. M, Brito, I. Duarte e I. Hub Faria, que se publica por vez primera en 1983, obra colectiva que se multiplica por tres en número de páginas (de 400 a 1200) en la edición ampliada de 2003. Es esta una obra de mucho fondo teórico, ceñida al trabajo de las autoras y,, como dije en la presentación de le reedición de esta obra en Lisboa, en 2003: “Desde la estructura general hasta en los detalles mínimos que se dan sobre los problemas, la obra contiene aliento y voluntad de hacerse entender, y hacer más rica la comprensión de la lengua portuguesa.”

Poco después, en 1985, se publicará la primera macrogramática del inglés: A Comprehensive Grammar of the English Language (Londres: Longman), escrita por R. Quirk, S. Greenbaum, G. Leech y J. Svartvik, texto que cumple ya con la idea de que un proyecto general sacrifi ca lo individual y lo que cada uno considera lo suyo. Estas dos gramáticas, distintas entre sí, contienen la señal de la modernidad: son colectivas y cambian las perspectivas de análisis y el alcance y contenidos de las gramáticas. Abren el camino por el que luego transitarán la Grande Grammatica italiana di consultazione dirigidos, respectivamente, sus tres volúmnes, por L. Renzi; L. Renzi y G. Salvi; y L. Renzi, G. Salvi y A. Cardinaletti (publicados por Il Mulino en 1986, 1991 y 1995); la Algemene Nederlanse Spraakkunst (1997, Groninga: Martinus Nijhoff); la Gramática descriptiva de la lengua española dirigida por I. Bosque y V. Demonte, y publicada en 1999 (Madrid: Espasa Calpe), con varias reediciones posteriores; la monumental, por tamaño y calidad, Gramàtica del català contemporani dirigida por J. Solà con M. R. Lloret, J. Mascaró y M. Pérez Saldanya (Barcelona: Empúries, 2002); y la más reciente aún The Cambrige Grammar of the English Language, escrita por R. Huddleston y G. Pullum y varios colaboradores (Cambridge University Press, 2002). La Gramática da lingua portuguesa, como indiqué, tuvo una reedición ampliada en 2003. En este camino se situarán en poco tiempo la gramática del portugués europeo que preparan los investigadores del Centro Lingüístico de la

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Universidad de Lisboa, dirigida por el prestigioso lingüista E. Raposo, y la gramática de la lengua francesa iniciada hace ya varios años bajo la dirección de A. Abeillé y D. Godard.

No puedo dejar de mencionar –aunque sea salirme del ámbito europeo– que desde antes, y a lo largo de todos estos años en que ven la luz estas macrogramáticas, la actividad gramatical en Brasil es de gran importancia y calado y se expresa fundamentalmente (aunque hay también muchos otros trabajos gramaticales) a través de la obra colectiva Gramática do português falado, coordinada por A. Teixeira de Castilho con un amplio elenco de los mejores gramáticos y analistas del discurso brasileños, publicada primero entre 1991 y 1996 y más recientemente en versión consolidada (Gramática do português culto falado no Brasil [GPCFB], Editora Unicamp, en tres volúmenes, desde 2006 a 2009), obra monumental y distinta de las precedentes en varios respectos no fáciles de resumir en breves líneas. Sin ánimo de exhaustividad, lo que caracteriza a esta gramática en primer lugar y de manera destacada es la defi nición de una base empírica inusual en los tratados gramaticales: la lengua hablada recogida en un amplio corpus. Una segunda característica es la decisión de optar explícitamente, indicándolo en cada caso y en función de los contenidos que fueran a abordarse, tanto por explicaciones formalistas (base conceptual y análisis próximos a la gramática generativa en los capítulos de sintaxis) como funcionalistas (la lengua es un instrumento de interacción social), e incluso la decisión de casar explicaciones generativistas con otras de la teoría laboviana de la variación (volumen III organizado por M. Kato y M. Nascimento).9

Las macrogramáticas europeas, como he sugerido, tienen propiedades comunes pero tienen también muchos aspectos específi cos que se derivan naturalmente de la propia tradición en que cada una de ellas se inscribe; también cada una de ella establece de manera propia la relación entre las gramáticas tradicionales y los estudios lingüísticos de la

9 Véase la excelente “Apresentação” elaborada por el coordinador general de esta obra colectiva, Ataliba Teixeira de Castilho, en el volumen I de la GPCFB: Construção do texto falado, Campinas: Editora Unicamp, 2006, 7-26.

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lengua-I.10 Veamos brevemente estas tres cuestiones. En cuanto a las características comunes, en primer lugar están

infl uidas por los resultados de la investigación lingüística, ponen de manifi esto avances sustantivos en el conocimiento de lo que es el lenguaje y de cómo son las lenguas particulares: son resultado de la “transferencia”, digamos, meditada de resultados teóricos y a la vez impulso para nuevas precisiones. Las gramáticas “tradicionales”, las que se inscriben en la tradición greco-latina, fueron durante siglos muy parecidas entre sí: listas de categorías y de construcciones analizadas someramente, con instrumentos a veces tomados de la lógica, a veces más internos al lenguaje, y con una base semántica siempre extensional o referencial más o menos intuitiva. En el mejor de los casos eran breviarios que guiaban sobre ciertos conceptos básicos para entender la forma y signifi cado de las oraciones. Las gramáticas de fi nales del siglo XX, y las del siglo XXI, al tener detrás las teorías sobre el conocimiento y el uso del lenguaje, son redes de caminos de largo recorrido; ahora bien en ellas se vuelve, quizá por ser inevitable cuando hacemos descripción, al análisis de las categorías y las construcciones:11 de las clases de las primeras y las “expansiones” que permiten en virtud de su signifi cado, de las relaciones forma-signifi cado, quizá con un aparato semántico algo más sofi sticado, en el caso de las segundas. Por eso, estas nuevas gramáticas aspiran a explicar cómo funciona la lengua (en ello enlazan con la tradición anterior), pero también constituyen una ventana más o menos ancha hacia el uso de la lengua e incluso hacia la organización del discurso, hacia la semántica, la pragmática y las relaciones de signifi cado.

10 Aunque sea ocioso decirlo, las gramáticas descriptivas se relacionan más con las teoría de la lengua-I porque quieren presentar “los principios y reglas que gobiernan la forman y el con-tenido de las palabras, frases, cláusulas y oraciones” (Huddleston y Pullum 2002: 3) y porque aspiran a presentar la lengua estándar.11 A propósito del peso de la noción de “construcción” en las gramáticas actuales, véase la in-teligente y fi na reseña de Ángel Alonso Cortés a la Nueva gramática de la lengua española de la RAE “Tradición y modernidad: la nueva gramática española”, Revista de Libros 171, marzo 2011.

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Estas macrogramáticas actuales, como señalábamos en el artículo antes mencionado de la revista Lingüística, precisamente por tener como marco de resonancia las columnas de la investigación, amplían sus contenidos, su vocabulario teórico, los conceptos en los que basan sus descripciones, y esta es su segunda característica más destacada. Van así más allá de las categorías gramaticales clásicas en tanto en cuanto incorporan nuevas categorías: tiempo, aspectos, determinantes, para entrar a fondo en la estructura interna de las oraciones y llegar hasta el uso, las condiciones de verdad o las implicaturas conversacionales. Para hacer esto, a veces tienen que tomar nociones de la fi losofía, como la referencia o los eventos, o las modalidades deónticas o epistémicas, pero las más de las veces lo que hacen es redefi nir las nociones clásicas. En otras ocasiones han de crear nuevos términos mediante metáforas: como la de las islas interrogativas (metáfora de la gramática generativa), o mediante símiles, como cuando hablamos de contextos opacos, de árboles por representaciones jerárquicas, de principios. Pero no solo hay muchos más conceptos, hay datos nuevos y construcciones nuevas. Hay ciertamente una gran extensión del territorio del análisis de las lenguas. Por último, en general –no es así en todos los casos– estas obras procuran asemejarse en estilo expositivo a las obras tradicionales en el sentido de presentar generalizaciones claras, evitar las polémicas, no insistir demasiado en cuestiones de teoría y recorrer más las propiedades de las categorías, construcciones y oraciones que los puntos de vista de las polémicas de los lingüistas.

¿Cómo enlazan estas gramáticas con los resultados de las investigaciones lingüísticas, mejor dicho, cómo se transfi eren estos resultados a las descripciones puesto que todas de un modo u otro lo hacen? Es imposible desde luego analizar exhaustivamente una cuestión tan compleja, daré solo algunos ejemplos. Para empezar, casi todas estas gramáticas muestran de manera explícita las relaciones con las investigaciones de la lingüística a través de la incorporación de referencias bibliográfi cas. Hay una excepción: Huddleston y Pullum 2002

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no lo hacen, aunque reconocen esas relaciones. En los demás casos las referencias están, aunque de distinta manera. La gramática del italiano contiene las referencias bibliográfi cas básicas al fi nal de cada volumen; la del español se refi ere constantemente, dentro del texto y en las notas, a las bases teóricas de las propuestas; la catalana da muchas referencias bibliográfi cas, siempre en las notas. Si bien todas tratan de la morfología y la sintaxis (la del catalán, a diferencia de todas las demás, tiene un amplio y excelente volumen sobre fonética y fonología, lo cual la singulariza), sus “índices”, en lo que a la sintaxis se refi ere, son considerablemente diferentes y ello refl eja concepciones diversas que no es este el lugar de analizar. La gramática italiana, muy infl uida por la gramática generativa en concepción y autoría, es una gramática que gira en torno a los sintagmas (las estructuras sintagmáticas); la del catalán (con autores que vienen de la gramática generativa y otros modelos gramaticales recientes, así como de la teoría formal del discurso), establece dos grandes zonas: la de la oración simple y los procesos de elipsis y predicación (con clara referencia a las funciones gramaticales), y la de las oraciones compuestas y coordinadas, más las relaciones con el discurso; la del español tiene como ejes las clases de palabras, las construcciones sintácticas, las relaciones con la modalidad y la aktionsart y las relaciones con el discurso. En la obra española, la de mayor número de autores (73), confl uyen generativistas, funcionalistas, gramáticos tradicionales, estudiosos de la gramática cognitiva y de la pragmática, investigadores de gramática histórica, etc.

Como señalaba más arriba, estas macrogramáticas poseen también aspectos específi cos que se derivan no ya de su estructura o de la fuente teórica de los análisis sino de la tradición de estudio, en cada país, de las lenguas que son objetos de descripción. Aún a riesgo de dejar fuera cuestiones importantes, podrían quizá identifi carse los siguientes aspectos. Se advierte, por ejemplo, el peso de la más reducida tradición gramatical (revitalizada en cambio por el grupo potente de los gramáticos formales) y la fuerte tradición de estudios dialectales de los lingüistas

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italianos; podría percibirse la amplia y diversa tradición gramatical, a la vez que la falta de una visión unitaria y de conjunto sobre la variación dialectal, para el caso del español. En el caso de la lengua catalana, una tradición gramatical y de estudios dialectales no muy desarrollada en el pasado (por obvias razones históricas) pero, en cambio, un crecimiento reciente de ambos campos potente y muy actualizado, con un aparente consenso mayor que en los otros casos, permite encuadrar con más novedad y menos restricciones una obra en verdad novedosa. La gramática italiana es desigual en la fuerza de los análisis y clasifi caciones sintácticas y morfológicas –si bien siempre con un alto nivel de conocimiento y exposición— pero acoge en cambio mucha información sobre estilos y registros, no olvidemos que se redacta muchos años antes que las demás, cuando no se dispone aún de tantos resultados como hace diez o quince años. La obra española puede inducir la sensación de heterogeneidad, y a veces de polémica, precisamente porque hay mucho detrás (Bello, Gili Gaya, Alcina y Blecua, Alarcos, Fernández Ramírez, las gramáticas de la RAE) y porque, deliberadamente, los redactores pertenecían a perspectivas teóricas distintas (aunque se hizo un gran esfuerzo por homogeneizar sus presentaciones). La gramática catalana es seguramente la más conseguida en cuanto a homogeneidad, calidad expositiva y buena estructura general. Son también las ventajas de ser la última. Las gramáticas del inglés refl ejan una experiencia muy sólida de combinación de la teoría con la descripción.

3. Datos, técnicas y teorías implícitas

En la primera sección de esta nota defi ní las gramáticas descriptivas estándar como conjuntos de enunciados descriptivos que organizan y explicitan los elementos de la lengua-E. Me referí también al importante desarrollo de las diversas teorías de la lengua-I y de la lengua-E que establecen un fondo conceptual imposible de soslayar por los lingüistas que se aboquen a la tarea de construir una gramática para una lengua

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específi ca. La voluntad de neutralidad con respecto a ese fondo teórico, o el ateoricismo como meta, pueden ser brindis al sol si pensamos en una verdad evidente, al menos para los fi lósofos de la ciencia: no hay datos sino teorías, las teorías son redes para aprehender el mundo visible e invisible, en este caso las producciones lingüísticas de los seres humanos. Es también frecuente reconocer que es mejor explicitar las teorías (aunque sea en una versión débil) antes que pretender una neutralidad que solo puede coadyuvar a dejar inconclusas algunas precisiones por mor de no complicar técnicamente una presentación.

Ahora bien, la distinción que establecimos entre lengua-I y lengua-E podría llevarnos a suponer que las gramáticas empíricas son imposibles, en tanto en cuanto son caracterizaciones de la lengua-E, objeto difícil de abarcar, por muchas razones, con las redes de la ciencia (teoría, contrastación experimental, análisis de predicciones), como señalé. Sin embargo, la realidad y la práctica –como se desprende creo que nítidamente de la sección anterior sobre la saga de las macrogramáticas– son mucho más complejas de lo que dejan ver la fi losofía y la metodología, y lo que no conviene perder de vista es que las gramáticas son también objetos en buena medida artesanales y, sobre todo, culturales. Las gramáticas descriptivas son necesarias y posibles por varias razones. Primero, porque la tradición proporciona una horma, unos criterios aceptados y unas prácticas disciplinarias que se seguirán aplicando mientras no se considere que este tipo de tratados es innecesario por razones independientes. Segundo, porque los nuevos análisis de las propiedades de las palabras y las construcciones de las lenguas surgidos de la lingüística teórica ofrecen muchas ideas para el enriquecimiento de las descripciones en lo que concierne a las propiedades formales y de uso de los objetos lingüísticos, por sencillo y mínimo que sea el uso que hagamos de esas formalizaciones. Tercero porque los materiales que surgen de las disciplinas más abocadas a la organización de los ricos datos de la lengua-E (los análisis estadísticos de la lingüística variacionista y de la lingüística de corpus, los mapas dialectales, las bases de datos

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léxico-sintácticas…) ofrecen muchos materiales para las gramáticas descriptivas. Cuarto, porque el desarrollo de la semántica léxica, la semántica de los eventos y la semántica de condiciones de verdad, o el de la pragmática cognitiva y comunicativa, ofrece nuevos elementos para ampliar las gramáticas de las categorías y las construcciones con referencias a contextos impuestos por las propiedades semántico-pragmático-informativas de las palabras y construcciones (por ejemplo, los nombres de masa sin determinante no funcionan como expresiones referenciales en posición de sujeto en la mayoría de las lenguas, el foco es el último constituyente que recibe acento de intensidad en las lenguas romances, etc.). Así las cosas, el buen diseño, la coherencia interna y el rigor y exhaustividad descriptivos de los tratados gramaticales dependerá de la capacidad del gramático (sea quien dirige o quien escribe) para decidir cómo usar esa información teórica y posteórica en benefi cio de la descripción y de la efi caz estructuración de estos tratados

Por último, unas pocas palabras acerca de los datos pues entiendo que estas son cuestiones muy conocidas y aceptadas por todos. En poco más de cinco o seis décadas se ha producido un giro copernicano en la concepción de cuáles son los datos que pueden y deben usar los gramáticos. Hasta hace poco, las gramáticas más prestigiosas del español (pensemos en el Esbozo de una Nueva Gramática de la Lengua española de la RAE, 1973, o en la Gramática Española de Salvador Fernández Ramírez, 1951) basaban sus generalizaciones y sus análisis sobre todo en ejemplos de la lengua escrita, en particular provenientes de textos literarios. Con la gramática generativa entran en el mundo del análisis gramatical dos supuestos metodológicos básicos: a) los ejemplos del gramático (los que provienen de su intuición, de sus juicios de gramaticalidad), son tan importantes como los que vienen de otras fuentes, y b) los ejemplos gramaticales deben contrastarse con los casos gramaticalmente imposibles (los casos de agramaticalidad) si se quiere defi nir la gramática posible de una lengua y establecer una base de comparación con otras. Si la gramática es una teoría que ha de caracterizar y explicar esa gramática

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interiorizada, no hay veda para tipos de datos, ni sociales, ni de origen geográfi co, ni de tipos de textos, ni de oral frente a escrito (siempre y cuando los ejemplos orales no tengan interferencias de restricciones propias de la “actuación lingüística”), ni si proceden de experimentos ad hoc o se encuentran en otras bases de datos… siempre y cuando se respeten los principio de homogeneidad y coherencia que han de exigirse a todo trabajo científi co-académico serio. Más aún en un momento en que la lingüística parece estar experimentando un giro hacia la validación experimental de sus hipótesis, la utilización de datos nuevos, la construcción de los análisis prestando mucha atención al rigor y la solvencia cualitativa y cuantitativa de los juicios de gramaticalidad y las generalizaciones a que den lugar dirá mucho sobre la validez de los análisis que se propongan. En este aspecto, como en todos los que hemos analizado lo largo de estas páginas, las macrogramáticas también han dado pasos adelante respecto de la tradición.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 91-120. 1ª parte 2011

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O PAPEL DOS FATORES LINGUÍSTICOS

Maria Eugenia DUARTEUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/CNPq/FAPERJ

Maria da Conceição PAIVAUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/CNPq

RESUMO

Neste artigo, discutimos o papel dos fatores estruturais na variação linguística, procurando, sobretudo, destacar a possibilidade de depreender princípios mais gerais acerca das restrições que operam sobre fenômenos fonológicos e sintáticos e a forma como diferentes processos se interrelacionam. No nível fonético-fonológico, retomamos a importância do contexto subsequente e da classe gramatical na realização variável do ditongo [ey] e no apagamento do rótico em coda. No nível sintático-semântico, focalizamos o efeito da manutenção/mudança da função do antecedente e sua maior ou menor referencialidade nos processo de implementação do objeto anafórico nulo e de preenchimento do sujeito pronominal. Com base em resultados obtidos para esses fenômenos em diferentes comunidades de fala do português brasileiro, apontamos a regularidade no comportamento desses fatores, o que permite inferir tendências mais gerais de mudança no português brasileiro.

ABSTRACT

This article discusses the role of structural factors in linguistic variation in an attempt to fi nd more general principles which restrain phonological and syntactic phenomena and to show how different processes are inter-related. At the phonetic-phonological level, we emphasize the importance of the following context and the grammatical class in the variable realization of the diphthong [ey] and in the deletion of the rotic in syllabic coda. At the syntactic-semantic level, we bring out the effect of same/different function of an antecedent and the degree of referentiality in processes of change in

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direction of null/overt pronouns, using the results for the course of the implementation of null objects and overt pronominal subjects. Results for such phenomena in several speech communities show the regular effect of the mentioned factors and allows one to infer more general tendencies in processes of change affecting Brazilian Portuguese.

PALAVRAS-CHAVE

Fatores estruturais. Fenômenos fonético-fonológicos. Fenômenos sintáticos. Variação linguística.

KEY-WORDS

Structural factors. Phonetic-phonological phenomena. Syntactic phenomena. Linguistic variation.

Introdução

Gostaríamos de iniciar este artigo com um trecho retomado de SCHILLING- ESTES (2002: 203), que nos lembra que “de todos os subcampos da Sociolinguística, o estudo da variação linguística talvez seja aquele que enfatiza mais fortemente o lado linguístico da sociolinguística1. Portanto, afi rmar que fenômenos de variação e mudança são motivados pela estrutura da língua é afi rmar o óbvio. Desde o clássico texto de WEINREICH, LABOV E HERZOG (1968), fi cou bem assentado o princípio de que os fenômenos de variação e mudança observados nas comunidades de fala são controlados por fatores internos que atuam de forma sistemática. Retomando LABOV (1994), muitas das questões colocadas pela Sociolinguística Variacionista envolvem necessariamente aspectos de âmbito fonético/fonológico, morfológico e sintático, que fornecem as bases para respostas a algumas das questões centrais acerca da mudança linguística, especialmente as que se relacionam às

1 “of all the subfi elds of sociolinguistics, the study of linguistic variation is perhaps the one with the strongest emphasis on the “linguistic side” of “sociolinguistics” (SCHILLING- ESTES, 2002, p. 203).

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restrições mais gerais ao uso e implementação de variantes linguísticas e à interrelação entre mudanças aparentemente independentes.

Ao longo de mais de meio século em que se acumularam estudos empíricos de variações nos diversos níveis da língua, em diferentes comunidades de fala, a Sociolinguística Variacionista tem buscado generalizações, ou seja, princípios que, relacionados entre si, permitam esclarecer os mecanismos subjacentes a processos de variação e mudança em geral. Em função dos objetivos e da própria natureza empírica da pesquisa sociolinguística, esse objetivo pode parecer contraditório, visto que qualquer mudança linguística está encaixada na estrutura social da comunidade de fala. Retomando os termos de LABOV (1994:3), “para entender as causas da mudança, é necessário conhecer em que ponto da estrutura social a mudança se origina, como ela se espalha para outros grupos sociais e quais os grupos que se mostram mais resistentes a ela”2. Nesse caso, é procedente a seguinte pergunta: em que medida é possível generalizar o efeito de fatores internos ou estruturais, e, consequentemente, depreeender princípios de variação e mudança, a partir do estudo de comunidades específi cas? A resposta a essa questão decorre, em grande parte, da própria dinâmica do trabalho sociolinguístico, que permite, através do acúmulo de observações de diferentes comunidades de fala, proceder a inferências e testar hipóteses.

Os estudos variacionistas levados a efeito no português brasileiro têm contribuído de forma substancial para a dinâmica brevemente esquematizada até aqui. Como já colocado em PAIVA e DUARTE (2007), o desenvolvimento das pesquisas variacionistas no Brasil, contribuiu para: (a) trazer à luz a confi guração variável dessa variedade; (b) depreender princípios teóricos mais gerais que explicam, em grande parte, a generalização de diversos fenômenos e (c) apontar a interdependência entre diversos processos de mudança. Neste artigo, queremos: (a) destacar a regularidade/sistematicidade no efeito de algumas variáveis estruturais

2 “to understand the causes of change, it is necessary to know where in the social structure the change originated, how it spread to other social groups and which groups showed most resis-tance to it” (LABOV, 1994: 3)

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associadas a fenômenos fonológicos e sintáticos; (b) discutir a forma como o efeito dessas variáveis estruturais pode explicar o encaixamento de mudanças em curso na variedade brasileira do português (PB, daqui em diante). Para tanto, retomamos alguns fenômenos de variação fonética/fonológica e sintáticos largamente estudados no PB.

Dada a multiplicidade de fenômenos já estudados em diversas regiões e diferentes amostras de fala, somos obrigadas a operar um recorte, que refl ete, em grande parte, interesses particulares das autoras. Assim, no nível fonético-fonológico, nos concentramos em fatores que se mostram signifi cativos na realização variável do ditongo decrescente [ey] e no enfraquecimento e apagamento do rótico em coda silábica. No nível sintático-semântico, trataremos de fatores que aceleram ou retardam mudanças relacionadas à expressão ou apagamento de pronomes nas funções nominativa e acusativa. Considerando resultados obtidos em diferentes estudos desses fenômenos, procuramos mostrar a forma pela qual a dinâmica do estudo sociolinguístico permite depreender tendências mais gerais no efeito de fatores estruturais. Como não é possível focalizar todos os estudos já realizados sobre esses fenômenos variáveis, tomamos por base o critério diatópico e selecionamos trabalhos que representam variedades bastante distintas, quais sejam a variedade nordestina, a variedade carioca e a variedade do sul do Brasil. Ainda que discutível, esse recorte tem a vantagem de nos permitir enfatizar um ponto que nos parece central, isto é, o acúmulo de evidências independentes de infl uências diatópicas. Com o intuito de neutralizar a intervenção de fatores como oral/urbano e assegurar a confi abilidade da comparação, nos circunscrevemos a estudos baseados em variedades urbanas, faladas em capitais brasileiras, embora os mesmos fatores se mostrem atuantes em estudos feitos no interior dos estados e até mesmo em comunidades rurais isoladas, remanescentes de quilombos.

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1. A regularidade de fatores fonéticos

Em um artigo dedicado a um levantamento de variações fonético-fonológicas no inglês britânico, FOULKES (2006:4) destaca que, do ponto de vista estritamente linguístico, a compreensão da variação e mudança fonético-fonológica exige considerar fatores contextuais e fatores gramaticais. Dentre os fatores contextuais, o autor inclui as restrições fonotáticas (contexto antecedente e contexto seguinte) e a posição do segmento na sílaba. Apenas a título de ilustração, podemos lembrar aqui o processo de palatalização de /t/ e /d/ e a harmonização vocálica. Nos dois casos, a assimilação de traços fonéticos da vogal seguinte explica naturalmente a realização de /t/ e /d/ como africada (ver BISOL, 1986, HORA 1993, ABAURRE e PAGOTO, 2002) e o levantamento da vogal pretônica (BISOL, 1981; CALLOU, 1986 e PEREIRA, 2004).

No âmbito dos fatores gramaticais, destaca-se a forma como propriedades de outros níveis da gramática interagem com a variação fonético-fonológica e controlam a direcionalidade de um processo de mudança. Tais restrições resultam naturalmente das interrelações entre os diferentes níveis da língua, mas podem decorrer igualmente de contato entre sistemas gramaticais distintos. Em função mesmo da polêmica em torno da mudança fonético-fonológica, mais frequentemente, estudos nesse nível têm procurado verifi car a infl uência de variáveis como a frequência de ocorrência dos itens atingidos, a formalidade ou extensão da palavra assim como da sua classe gramatical (OLIVEIRA, 1995, 1997).

O ponto que nos interessa destacar é a possibilidade de generalizar tendências de variação e mudança, a partir das convergências dos resultados aferidos em diferentes estudos para fatores de natureza fonotática, particularmente o contexto subsequente, e de natureza gramatical, em especial a estrutura e classe do vocábulo.

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1.1. Restrições ligadas ao contexto subsequente

Consideraremos aqui o efeito do contexto subsequente na realização dos dois fenômenos fonológicos “eleitos” para discussão nesta oportunidade:

a. a realização variável do ditongo decrescente [ey] ou monotongação de [ey]cadeira ~ cadera beijo ~ bejo marceneiro ~ marcenero deixo ~ dexo

b. o apagamento do rótico em coda silábicatrabalhar ~ trabalhá mulher ~ mulhébeber ~ bebê sargento ~ sagento

Diferentemente da realização de [ey], uma variável binária, a realização do rótico em coda, envolve a concorrência de diversas variantes, diatopicamente distribuídas (ver. CALLOU et alii, 1996). Dessa forma, nos restringimos ao apagamento do rótico, um processo largamente atestado em diferentes regiões brasileiras.

Os dois fenômenos apresentam, no entanto, diversas características comuns: ao que tudo indica, remontam a estágios muito anteriores da língua e são de natureza supradialetal no português brasileiro.

Em diferentes estudos variacionistas sobre a realização da semivogal anterior no ditongo decrescente [ey], destacam-se, como primeiro condicionamento da variante monotongada as propriedades fonéticas do segmento seguinte ao ditongo: a semivogal [y] é quase categoricamente suprimida quando seguida do tepe [r] (cadera, marcenero) e alcança índices signifi cativamente altos antes das fricativas alveopalatais (dexo, bejo) (VEADO, 1983; BISOL, 1994; PAIVA, 1996, 2003; CABREIRA, 1996; MOTA, 1998; ARAUJO, 1999; SILVA, 1997; LOPES, 2002). A título de ilustração, reproduzimos, no gráfi co 1, os valores obtidos em três estudos sobre comunidades geografi camente distanciadas, tais como:

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João Pessoa (SILVA, 2004), Rio de Janeiro (PAIVA, 1996) e Porto Alegre (BISOL, 1994).

GRÁFICO 1: Efeito do contexto subsequente na monotongação de [ey]

O efeito do tepe alveolar e das fricativas palatoaveolares sobre o incremento da média de monotongação de [ey] é inquestionavelmente regular: a semivogal anterior é apagada principalmente se precedida do tepe e de fricativas palatoalveolares. Os demais tipos de consoantes e vogais tendem a restringir ou mesmo bloquear o processo, como se pode constatar, por exemplo, em leito. Uma interpretação da tendência observada para a semivogal que precede fricativas é avançada por BISOL (1991, 1994) para quem, nesse contexto, tem-se na verdade falsos ditongos, gerados pelo espraiamento de traços da consoante subsequente. Diferem dos verdadeiros ditongos em que a semivogal não pode ser cancelada, como em peito ou meigo.

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A generalidade das restrições contextuais sobre a monotongação de [ey] é o que conduz, inclusive, alguns autores a uma análise separada desses dois contextos, como procedem CABREIRA (1996) e PAIVA (2003). Essa separação, aparentemente apenas metodológica, é reveladora de aspectos mais amplos sobre a natureza fonológica da monotongação de [ey], seu estatuto e direcionalidade no português contemporâneo.

No que se refere à direcionalidade da monotongação de [ey], PAIVA (2003) mostra, através de um estudo da mudança em tempo real de curta duração, uma retração do cancelamento de [y] frente a palatais, em oposição a índices quase categóricos de supressão no contexto do tepe. Em que medida essa inversão de direcionalidade se inscreve em uma dinâmica que envolve outros fenômenos ligados à semivogal?

Uma explicação plausível é a de que a retração na monotongação de [ey] no contexto das fricativas alveopalatais esteja relacionada a outra tendência já atestada no PB, qual seja, a de inserção da semivogal anterior em contextos como paysta, feysta, amoystra, em que, pelo menos no dialeto carioca, a ocorrência desses segmentos em coda silábica constitui evidência adicional para a hipótese de BISOL (1991, 1994), ou seja, a de que o ditongo é gerado por um espraiamento do traço vocálico desses segmentos alveopalatais. Essa explicação pode alcançar igualmente a inserção da semivogal em contexto de outras fricativas, tanto em posição tônicas, como vimos acima, em posição fi nal (pays, deys) ou em posições mediais pretônicas (nayscimento, deyscer), se admitirmos a hipótese de que, as alveolares possuem, em sua forma subjacente, o traço vocálico responsável pela geração do ditongo decrescente.

Passemos a seguir ao apagamento do rótico em coda. Como mostram diferentes trabalhos, para esse processo, destaca-se, em primeiro lugar, a posição do segmento na palavra (CALLOU, 1987; CALLOU et alii, 1996; SKEETE, 1996; OLIVEIRA, 1997; CALLOU et alii, 2001; MONARETTO, 1997, 2000, 2002; GREGIS, 2002; PIMENTEL, 2003; HORA, PEREIRA e MONARETTO, 2003; CARVALHO, 2008; BRESCANCINI e MONARETTO, 2009; HORA e WETZELS, 2010 e

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Maria Eugênica Duarte e Maria da Conceição Paiva

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SILVEIRA, 2010). Em relação à variável posição, o apagamento de /R/ é expressivamente mais recorrente em posição fi nal do que na posição medial da palavra, como mostram alguns resultados esquematizados no gráfi co 2:

GRÁFICO 2: Efeito da posição no apagamento do rótico em coda silábica

Como se pode esperar, as restrições fonotáticas que operam sobre a supressão do rótico em coda envolvem a posição desse segmento. Considerando, por exemplo, a posição medial, SKEETE (1996), HORA e MONARETTO (2003), HORA (1993), HORA e WEETZELS (2010) destacam a importância do traço [+ - continuo] na realização/não realização do rótico, que é cancelado muito mais frequentemente em contexto de segmento [+ continuo] (força~foça, garfo~gafo, marcha~macha) do que em contexto de segmento [- continuo] (parta, forca, arma), como mostram os resultados de SKEETE (1996) e HORA e WETZELS (2010), esquematizados na tabela 1:

100%

80%

60%

40%

20%

0%

37%

91%

68%

3% 9% 2%

Callou et al. (1996) Hora e Monaretto Silveira (2004)(2009)

posição final posição medial

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TABELA 1: Efeito de contexto subsequente no cancelamento de /R/ em posição medial (SKEETE, 1996; HORA e WETZELS, 2010)

Contexto fonológico seguinte Frequência PR

[- continuo] 821/8289 = 10% 0,02

[+ continuo] 1353/1570 = 86% 0,90

1.2. A regularidade de fatores gramaticais

Consideremos neste ponto a importância de fatores gramaticais, nos dois fenômenos fonológicos focalizados. No que se refere à realização do ditongo decrescente, a natureza morfológica da semivogal, ou seja, sua ocorrência no radical ou no sufi xo, ganha interesse particular, visto que a monotongação de [ey] no contexto de tepe envolve, em grande parte, o sufi xo derivacional <eiro>, o que permite levantar questões relativas ao enviesamento da análise multivariacional.

Comparando trabalhos baseados em amostras de fala de três regiões distintas, João Pessoa (SILVA, 2004; Rio de Janeiro (PAIVA, 1996) e as três capitais do sul do Brasil (CABREIRA, 1996), observa-se que a restrição gramatical sobre a supressão/realização de [y] possui um efeito menos regular, como mostram os resultados do gráfi co 3:

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Maria Eugênica Duarte e Maria da Conceição Paiva

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GRÁFICO 3: Efeito morfológico na monotongação de [ey] (em pesos relativos)

No gráfi co 3, salienta-se, por um lado, o paralelismo da tendência atestada em João Pessoa e nas três capitais do sul do Brasil, com maior supressão de [y] no radical (cadeira, beijo), em oposição ao Rio de Janeiro, onde é atestada maior recorrência do processo no sufi xo –eiro (verdureiro, marceneiro). Evidentemente, é difícil afi rmar, sem uma análise mais cuidadosa, se essa divergência refl ete a infl uência de particularidades regionais ou a forma de análise dos dados, ligeiramente diferente nos três trabalhos. Algumas evidências levam a crer, no entanto, que a tendência depreendida por CABREIRA e por SILVA seja empiricamente sustentável. CABREIRA (Op. Cit.) analisa separadamente os casos de monotongação em contexto de palatais e de tepe e atesta a relevância signifi cativa da natureza morfológica de [y] na monotongação antes do tepe alveolar (1o. grupo selecionado) e antes das fricativas palatoalveolares. Evidências adicionais são fornecidas por outros trabalhos como o de LOPES (2002), que verifi ca igualmente maior monotongação de [ey] nos radicais do que nos sufi xos.

0,80%

0,70%

0,60%

0,50%

0,40%

0,30%

0,20%

0,10%

0,00%

0,74%

0,61%

0,70%

0,33%0,38%

0,28%

Cabreira (1996) Paiva (1996) Silva (2004)

radical sufixo

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A Variação Linguística e o Papel dos Fatores Linguísticos.

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No que diz respeito ao rótico em coda, evidentemente, a restrição estrutural mostrada no gráfi co 2 não é inteiramente independente da classe gramatical da palavra, já que esse segmento se investe de valor morfológico, como desinência do infi nitivo. Como é de esperar, a classe gramatical se destaca como restrição signifi cativa na totalidade dos trabalhos que consideram separadamente as posições interna e fi nal. A regularidade/sistematicidade desse fator gramatical pode ser observada no gráfi co 4, em que esquematizamos os resultados aferidos para a década de 90 nos trabalhos de CALLOU et alii (1996), para o Rio de Janeiro, e MONARETTO (2002), para Porto Alegre.

GRÁFICO 4: Efeito da classe gramatical no apagamento do rótico em coda silábica (em pesos relativos)

A direcionalidade no efeito do fator classe gramatical é nítida: verbos incrementam signifi cativamente a média de apagamento do rótico, os demais tipos de item lexical restringem o processo. Inquestionavelmente, a tendência acima refl ete, em grande parte, o comportamento particular dos infi nitivos, contexto de maior recorrência do apagamento.

0,90%

0,20%

0,10%

0,00%

0,80%

0,70%

0,60%

0,50%

0,40%

0,30%

0,82%

0,33%0,09%

0,14%

Collou et al. (1996) Monaretto (2002)

verbos não verbos

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Que inferências são possíveis a partir das regularidades destacadas até aqui. Em princípio, o apagamento do segmento rótico poderia ser interpretado sob a ótica de um princípio funcional mais amplo, segundo o qual, a necessidade de preservação do signifi cado opera no sentido de restringir uma mudança fonológica. Os resultados esquematizados acima contradizem, no entanto, essa expectativa. Eles colocam um fato empírico incontestável e induzem a uma outra refl exão acerca dos limites impostos por exigências funcionais à sistematicidade/regularidade da variação e à implementação das mudanças. Nesse sentido, podemos dizer que, se a análise de fatores estruturais é previamente direcionada por uma forma de concepção do sistema linguístico, ela contribui para a reformulação de princípios teóricos.

2. A regularidade de fatores sintático-semânticos

No nível sintático, um dos fatores que tem se destacado em caso de apagamento ou de realização fonética de pronomes é a manutenção ou a mudança da função sintática do antecedente, cujo efeito é destacado no trabalho pioneiro de OMENA (1979) para a implementação do objeto nulo no PB: um antecedente com idêntica função (objeto direto), como ilustrado em (1), favorece amplamente o objeto nulo, tendência confi rmada por DUARTE (1989) para São Paulo, LUÍZE (1997) para Florianópolis, MARAFONI (2004) para o Rio de Janeiro, HORA e BALTOR (2007) para João Pessoa, entre muitos outros:

(1)O Sinhozinho Malta está tentando convencer o Zé das

Medalhas a matar [o Roque]i. Mas ele é muito medroso.

Quem já tentou matar [Ø]i foi [o empregado da Porcina]

k.

Ontem elej quis matar [Ø]i. A empregada é que salvou

[Ø]i. Elej estava prontinho pra dar o tiro, quando a Mina

chegou lá, passou um pito nele e convenceu [Ø]k que ele

não devia matar [Ø]i. (Duarte, 1989)

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Las Macrogrmáticas Colectivas Lengua-i y Lengua-e: Datos, Técnicas y Teorias Implícitas

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Tendência similar pode ser constatada para o sujeito pronominal: um antecedente com a mesma função ainda é o contexto que permite a identifi cação de um sujeito nulo, ou seja, possibilita o apagamento num sistema que tende ao preenchimento, como destacado em análises funcionalistas (PAREDES SILVA 1988, entre outros) ou em análises que focalizam o parâmetro do sujeito nulo ((DUARTE 1995, BARBOSA, DUARTE & KATO 2005, entre outros). Todas as análises sobre o português falado no Brasil revelam que, embora em termos percentuais todos os contextos sintáticos revelem altas taxas de sujeitos pronominais preenchidos, estruturas em que um antecedente aparece na função de sujeito na oração principal (exemplo 2a) ou na oração imediatamente adjacente (exemplo 2b) constituem um contexto de favorecimento do sujeito nulo. Tal tendência é posta em relevo nas análises de pesos relativo e reforça a importância da manutenção da função do referente (línguas de sujeito nulo prototípicas, como o espanhol, o italiano e mesmo o português europeu preferem o sujeito nulo independentemente de um antecedente com igual função):

(2) a. [Ele]

i tremeu quando [Ø]

i foi tirar foto lá do cara. (Duarte,

1995)b. Agora [as minhas fi lhas]

i são mais preguiçosas. [Ø]

i

Gostam muito de uma piscinazinha ou então malhar numa academia. (Duarte, 1995)

Um fator de natureza semântica, a animacidade do antecedente, é outra restrição cuja importância tem sido frequentemente apontada. A já referida análise de OMENA aponta 95% de objetos nulos quando o traço do antecedente é [-animado]. A regularidade dessa correlação é evidenciada em todas as pesquisas realizadas sobre esse fenômeno nas mais variadas regiões do Brasil3 3 Este é um fenômeno amplamente investigado no PB contemporâneo. Além dos já considera-dos acima, citem-se os trabalhos de Corrêa (1991), sobre a fala paulista; Pará (1997), sobre a

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Violeta Demonte

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Por outro lado, o traço [+animado] favorece o preenchimento do sujeito, como mostram igualmente os diversos trabalhos empíricos realizados por todo o país4. A importância do fator animacidade nos processos de mudança em curso mencionados pode ser apreciada de maneira mais efetiva, quando associado à especifi cidade do referente. É o que propõe a hierarquia referencial apresentada em CYRINO, DUARTE e KATO (2000), com o objetivo de buscar uma explicação mais integrada para os sujeitos visíveis e objetos invisíveis no PB:

Hierarquia referencial

[não-argumento] [proposição] [-humano] [+humano] 3 p. 2 p. 1 p.

[-espec./+espec.]

[-ref] < --------------------------------------------------------- > [+ref.](Cyrino, Duarte e Kato, 2000:59)

Essa hierarquia, construída sobre bases empíricas, resultou de duas análises diacrônicas de peças teatrais brasileiras: a de Duarte (1993) sobre a implementação do sujeito expresso e a de Cyrino (1994, 1997) sobre a emergência e implementação do objeto nulo. A partir desses resultados, Cyrino, Duarte e KATO observaram que os dois processos de mudança seguiam caminhos opostos, obedecendo a uma mesma hierarquia referencial.

fala de pescadores do norte fl uminense; Malvar (1992), sobre a fala de Brasília; Averbug (1998), Freire (2000) sobre diferentes amostras da fala carioca; Vieira (2004) sobre falares rurais afro-baianos; Neiva (2007) sobre a fala culta de Salvador. Nas análises com falantes não escolarizados, o clítico se encontra absolutamente ausente. Sobre o português europeu, ver Freire (2005) e Marafoni (2010).4 A realização do sujeito pronominal é outro fenômeno largamente investigado no Brasil. Os resultados encontrados para a fala culta carioca em Duarte (1995) não se distanciam dos apon-tados por Alencar (1998) sobre a fala de São Paulo e Porto Alegre; Cavalcante (2001) sobre a fala de Alagoas; Laperuta (2003) sobre a fala de Londrina (PR); Paredes Silva (2003) e Duarte (2003), sobre a fala popular carioca; Ferreira (2003) e Carvalho (2005), ambos sobre a fala do Centro-Oeste, a primeira focalizando a fala rural da comunidade Kalunga e a segunda, a fala da Baixada Cuiabana; Almeida (2005), com base em amostras da fala de três comunidades do interior da Bahia.

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A mudança em direção ao objeto nulo, como nos mostra a análise de Cyrino (1994, 1997), se implementa da esquerda, ou seja, a partir dos itens menos referenciais, afetando os objetos cujo antecedente é uma proposição (uma oração ou uma porção maior do discurso). Tais objetos podem ser retomados por um clítico neutro (o), um pronome demonstrativo ou podem ser nulos, como mostra o exemplo (3a). Cyrino (Op Cit.) mostra ainda a interação entre o traço de animacidade e o de especifi cidade: o objeto nulo, atinge, a seguir, os antecedentes com o traço [-h/-espec] (exemplo 3b), depois aqueles com o traço [-h/+espec] (exemplo 3c) e encontra maior resistência quando o antecedente é [+h], embora os dados de fala espontânea já revelem ampla ocorrência de objeto nulo com esse traço (veja-se o exemplo em (1) acima, em que os antecedentes são todos humanos em competição com o pronome nominativo no exemplo (3d):

(3)a. - Também [satirizaras]

i, se souberas [Ø]

i

([Ø] = satirizar) (Séc. 17, Gregório de Matos)5 (se o souberas)

b. Uma agência me indicou [um sobrado]i na Praia Fermosa,

mas o dono não quis alugá [Ø]i (1891)

c. – Ela está lá dentro preparando [a jacuba]i

– Diga-lhe que traga [Ø]i, pois estou com muito calor.

(1837)d. – E tu aceitou ele de volta? (1992)

No gráfi co de Cyrino, publicado em Kato et al. (2006), pode-se observar essa trajetória de implementação ao longo de três séculos, com base na análise de peças de teatro: o preenchimento do objeto proposicional por um clítico neutro já se encontrava em variação com o objeto nulo na primeira metade do século XVIII, com 54% de ocorrências, chegando à segunda metade do século XX com 92% nas

5 Nos exemplos de peças teatrais aparece entre parênteses o ano em que a peça foi escrita.

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peças analisadas. Os objetos nulos com o traço [-animado], inicialmente com tímidos 18%, crescem a partir do século XIX e chegam a 94%, na segunda metade do séc. 20. Os objetos com antecedente [+h] resistem ao preenchimento, exibindo índices que vão de 0% a 25%.

GRÁFICO 5: Efeito da hierarquia referencial na implementação do objeto nulo

Em relação ao sujeito pronominal, a análise de Duarte (1993), retomada em Cyrino, Duarte e Kato (2000) e aqui expandida, também com base numa amostra de peças de teatro escritas por autores, que nasceram e produziram sua obra no Rio de Janeiro, permite observar a atuação da hierarquia referencial no preenchimento do sujeito. Os exemplos a seguir ilustram sujeitos nulos e expressos, de primeira e segunda pessoa (4a-d), de terceira (5a,b), de referência arbitrária (6a-e) e, fi nalmente, os sujeitos proposicionais ou de “referência estendida”(7a,b), denominação utilizada por PAREDES SILVA (1985), como tradução para “extended reference subjects”, proposto por HALLIDAY e HASAN (1979):

120%

20%

0%

100%

80%

60%

40%

0,82%

0,33%

54%

0%

XVIII/1 XVIII/2 XIX/1 XIX/2 XX/1 XX/2

[+h] [-h] [proposicional]

46%

76%

94%96%

9%

18%

94%

32%

53%

72%

92%

2% 0%

7%12%

25%

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(4)a. Quando [Ø

i] te vi pela primeira vez, [Ø]

i não sabia que

[Ø]j eras viúva e rica. (1845)

b. Se eu fi casse aqui eu ia querer ser a madrinha. (1992)c. Você não entende meu coração porque você ‘tá sempre

olhando pro céu e procurando chuva. (1992)

(5) a. [Tua fi lha]

i lamentar-se-á, [Ø]

i chorará desesperada,

não importa (...) Depois que [Ø]i estiver no convento

e acalmar-se esse primeiro fogo, [Ø]i abençoará o teu

nome e, junto ao altar, no êxtase de sua tranquilidade e verdadeira felicidade, [Ø]

i rogará a Deus por ti. (1845)

b. Agora ele não vai mais poder dizer as coisas que ele queria dizer. (1992)

(6) a. [Ø

arb]i Fez-se

i a duplicata, foi aprovada pelo poder

competente, votou o Domingos, o seu compadre votou cinco vezes. (1882)

b. No fundo, a fortuna é para quem sabe adquiri-la. [Øarb

] Pintam-na cega... Que simplicidade... (1845)

c. Ora, mamãe, é muito dinheiro Ainda mais com a situação de reviravolta no País, você nunca vai receber esse dinheiro É dinheiro demais! Eles não pagam! (1955)

d. Pois é, o choque das individualidades vai lhe levando a fazer uma concessão atrás de outra você

i vai se desfi brando

e depois de algum tempo já [Ø]i segue embalada pelo

hábito. (1975) e. A senhora não devia ter falado com ela assim, Dona Irene

A gentei fi ca muito sensível quando [Ø]

i está de barriga.

(1992)

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(7) a. Holly: [Eu serei Verônica!]

i

Dona Irene: Issoi é um sacrilégio. Faça o favor de tirar

essa roupa. (1992) (isso = o fato de Holly(um travesti) representar Verônica na

Paixão de Cristo)b. Júlia: [Você esperou-o vestida de quê? Cristina: De coelhinho da Playboy]

i

Júlia: Não sei se [Ø]i foi uma boa idéia. (1975)

(Ø = esperar o marido vestida de coelhinho da playboy)

O Gráfi co 6, a seguir, mostra como se dá a implementação do sujeito expresso ao longo da hierarquia proposta6:

GRÁFICO 6: Efeito da hierarquia referencial na implementação do sujeito pleno

6 O eixo horizontal exibe o ano em que a peça foi escrita: 1845 (Martins Pena); 1882 (França Ju-nior) ; 1918 (Gastão Tojeiro); 1937 (Armando Gonzaga); 1955 (Millôr Fernandes); 1975 (Carlos Eduardo Novaes) ; 1992 (Miguel Falabella).

90%

40%

30%

20%

10%

0%

80%

70%

60%

50%

0,82%

0,33%

1845 1882 1918 1937 1955 1975 1992

1a. pess. 2 arb. op.[ ] [pr ]a. pess. 3a. pess.

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Como se pode observar, a expansão do sujeito preenchido se faz mais rapidamente pelos itens mais referenciais, ou seja, aqueles com o traço inerentemente [+humano], localizados na extrema direita do continuum. O sujeito de segunda pessoa (tu ou você), que exibe índice inferior a 10% de expressão no primeiro período analisado, atinge 78% no último; o de primeira pessoa parte de 30% para atingir 82% na peça de 1992. A seguir, vemos a linha de terceira pessoa, aqui considerando apenas os sujeitos de referência [+humana], que mostra uma trajetória mais lenta embora ascendente: parte de 20% e chega a 47% 7.

A linha que representa os sujeitos de referência arbitrária parte de 3%, mas cresce de forma mais consistente, atingindo 55% e superando a 3ª. pessoa (ver Vargas, 2010). Essa inversão se explica pela entrada dos pronomes a gente e você, tomados da primeira e segunda pessoas, a partir da segunda metade do século 20. Acrescente-se que tais sujeitos têm igualmente o traço inerentemente [+humano]. Finalmente, os sujeitos proposicionais, tal como mostra Cyrino para os objetos nulos proposicionais, mostram, pelo menos no período analisado, uma variação estável entre o uso do demonstrativo isso e um sujeito nulo (observamos 50% no primeiro texto e 46% no último).

Embora CYRINO, DUARTE e KATO (2000) e KATO et alii (2006) não cheguem a relacionar as causas dos dois fenômenos – o avanço do objeto nulo e do sujeito pronominal expresso – foi possível chegar a importantes generalizações sobre o curso da mudança, ressaltando a relevância de traços semânticos em processos envolvendo a pronominalização. Mais recentemente tem sido possível investigar esses fatos à luz da orientação parcial para o discurso, retomando os estudos clássicos de Pontes (1987) e a noção de microparâmetros de variação Baker (2008). Essas investigações permitem explicar a competição entre sujeitos nulos não referenciais, no extremo esquerdo do contínuo, com o preenchimento dessa posição através do alçamento de constituintes

7 Os dados de sujeitos com o traço [-animado] são raríssimos nas peças analisadas; pesquisa em andamento amplia o número de peças da amostra e fornecerá evidências para o percurso do processo refi nando a atuação do traço [+/-animado], [+/-específi co].

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lexicais ou da inserção do demonstrativo (isso) ou do quase-expletivo (você) (ver DUARTE 2007; 2010; BERLINCK, DUARTE e OLIVEIRA 2007; DUARTE e KATO, 2008.)

Conclusões

Pelo que foi discutido ao longo deste artigo, pode-se concluir que o efeito de variáveis estruturais é replicável, ou seja, as tendências observadas a partir do estudo de uma comunidade de fala se reproduzem em outra, sinalizando, a ação de princípios mais gerais sobre a variação e a mudança, a questão mais a importante, a nosso ver. Além disso, fornecem evidências acerca da forma como se interrelacionam diferentes processos de mudança em curso na língua. Portanto, podemos nos perguntar: em que medida as generalizações destacadas acima contribuem para a compreensão, por um lado, dos fenômenos de variação e, por outro, da forma de funcionamento da língua? Obviamente, a resposta a essa questão envolve uma relação dinâmica entre postura teórica e análise empírica. Entretanto, seja qual for a postura teórica, o que parece evidente é que, no que diz respeito a fenômenos variáveis no PB, o segmento subsequente e a classe gramatical são tão importantes para a variação e mudança fonético-fonológica quanto a função sintática e fatores semânticos são para a variação e mudança sintática

Referências

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A Variação Linguística e o Papel dos Fatores Linguísticos.

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A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O PAPEL DOS FATORES SOCIAIS: O GÊNERO DO FALANTE EM FOCO

Maria Marta Pereira SCHERREUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES)/Universidade de Brasília (UnB)/CNPq1

Lilian Coutinho YACOVENCOUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES)

RESUMO

Neste texto, retomamos discussões labovianas sobre o paradoxo do gênero em fenômenos de variação e mudança linguística. Tomamos como base principal pesquisas sobre a alternância entre tu/você nas regiões Sul, Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Ao fi nal, propomos que o efeito do gênero é orientado pelo princípio marcação.

ABSTRACT

In this paper, we review some labovian discussions about the gender paradox on linguistic variation and change phenomena. We take as main basis some research of the variation between tu/você in the Southern, Northern, Northeast, Southeast and Midwest of Brazil. Finally, we propose that the gender effect is oriented by markedness principle.

PALAVRAS-CHAVE

Mudança com consciência social. Mudança sem consciência social. Princípio da Marcação. Paradoxo do Gênero. Pronomes de 2ª pessoa. Variação e Mudança.

1 A primeira autora deste texto é pesquisadora IB do CNPq, de quem recebe bolsa de Produtivi-dade em Pesquisa (PQ).

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KEY-WORDS

Address pronouns. Change from above. Change from below. Gender Paradox. Markedness Principle Variation and Change.

Considerações iniciais

A variação e a mudança linguística há muito são objeto de pesquisadores em vários países, mas é na década de 1960 que surge um modelo sociolinguístico forte, cuja compreensão é a de que a variação e a mudança linguísticas são inerentes ao próprio sistema, podendo ser controladas por restrições de caráter interno (estrutural) ou externo (social, contextual, discursivo etc.). Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), em conhecido texto sobre o tema, propõem que, ao lado dos aspectos internos, os fatores externos são de suma importância na compreensão dos fenômenos variáveis e postulam que alguns deles podem ser os responsáveis pela variação e pela mudança linguística. Assim, a classe social, o sexo do falante e a sua faixa etária, por exemplo, são variáveis recorrentes na análise e interpretação dos fenômenos linguísticos variáveis. Papel importante tem sido atribuído também ao efeito da variável estilística, em especial na sua inter-relação com o sexo do falante (Labov, 2008 [1972]), discutido e rediscutido em termos do gênero, em uma perspectiva social e cultural (Labov, 1990 e 2001).

Labov (1990; 2001) dá continuidade à efervescente discussão sobre o papel do gênero em fenômenos linguísticos variáveis e assume uma codifi cação necessária em função do sexo do falante, abordagem biológica, para permitir comparabilidade entre as pesquisas, e interpretação em função do gênero, abordagem sócio-cultural. Observa que o efeito do gênero apresenta diferenças instigantes, conforme o tipo de mudança (Labov, 2001: 262; 366), ao lado do comportamento conservador na variação estável: em mudanças com consciência social (changes from above), as mulheres usam mais as variantes de prestígio do que os homens. Entretanto, em mudanças sem consciência social (changes from below), são

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também as mulheres que mais usam as formas inovadoras. Considera ser difícil conciliar este duplo comportamento e reconhece o Paradoxo do Gênero assim formulado inicialmente: “as mulheres se conformam mais fortemente do que os homens às normas sociolinguísticas que são explicitamente prescritas, mas se conformam menos do que os homens quando as normas não são explicitamente prescritas” (Labov, 2001: 293).

Labov (2001: 366) pondera que, mesmo assim, “permanece o problema de saber por que razão as mesmas pessoas são às vezes mais “conservadoras” e às vezes mais “progressistas”. Afi rma também que o problema fi ca ainda mais evidente se forem usados os termos “conformista” (conforming) ou “não conformista” (nonconforming):

“em variáveis sociolinguísticas estáveis, as mulheres mostram taxas mais baixas de variantes estigmatizadas e taxas mais altas de prestígio do que os homens”, apresentando comportamento conservador e conformista, ou seja, em conformidade com as normas explicitamente estabelecidas (Labov, 2001: 266; 367)

“em mudanças from above [com consciência social e externas à variedade em uso], as mulheres adotam formas de prestígio com taxas mais altas do que os homens”, apresentando comportamento inovador, mas que está também em conformidade com as normas explicitamente estabelecidas.” (Labov, 2001: 274; 366-367)

“em mudanças from below [sem consciência social e internas à variedade em uso], as mulheres usam frequências mais altas de formas inovadoras do que os homens”, apresentando assim comportamento inovador, mas em dissonância (nonconforming) com as normas explícitas estabelecidas. (Labov, 2001: 292; 366-367).

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Assim, o autor observa que, com uma mudança no Paradoxo do Gênero, a terminologia associada ao maior uso de variantes de prestígio (comportamento conservador) ou ao incremento de variantes inovadoras (comportamento progressivo) parece melhor defi nida como um comportamento conformista ou não conformista. Dessa forma, em função da perspectiva do conformismo ou não conformismo, Labov (2001: 367) considera que “o Paradoxo do Gênero poderia ser reformulado como o Paradoxo da Conformidade, melhor estabelecido em termos do contrário da conformidade, o desvio (deviation): mulheres desviam das normas prescritas menos do que os homens, porém desviam mais do que os homens quando os desvios não são prescritos.” Mudando de forma sutil a forma de olhar, o autor afi rma que o principal problema a ser explicado passa a ser “por que mulheres com a mesma idade e da mesma classe social aderem às normas prescritivas em um caso e se desviam delas em outro” e busca respostas para este comportamento na identifi cação dos líderes da mudança linguística, mas da mudança sem consciência social (change from below), a mudança, segundo Labov (1994: 78-79; 2001: 279), interna, natural, sistemática, que desafi a o nosso trabalho científi co.

Neste artigo, vamos polemizar um pouco mais as refl exões sobre o papel do gênero nos fenômenos linguísticos, tendo em vista que identifi camos o duplo comportamento do gênero em um só fenômeno variável no português brasileiro, a saber, nos pronomes de segunda pessoa e, adicionalmente, vamos incrementar nossa argumentação com base em dois outros fenômenos, o imperativo gramatical e a concordância verbal.

1. Sobre os pronomes de segunda pessoa no português brasileiro

As formas de 2ª pessoa no português brasileiro apresentam-se de maneira bastante diversa em várias regiões do Brasil e pelo menos seis subsistemas podem ser identifi cados, tendo em vista as combinações

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entre as variantes você, cê, ocê, tu e a concordância variável com o pronome tu, cujo detalhamento pode ser encontrado em Scherre et alii (2009) e Scherre (2010), mas foge aos objetivos do presente texto. Trazemos para foco apenas as pesquisas que se ocuparam da análise do pronome TU em alternância com VOCÊ. Quando sem concordância, o pronome TU é predominantemente explícito e o pronome VOCÊ é o amálgama das formas você e cê, predominantemente, com poucas ocorrências de ocê, pelo que pudemos inferir do garimpo que realizamos. Além disso, neste momento, consideramos basicamente as pesquisas que focalizam a variável gênero do falante, com resultados estatisticamente signifi cativos. São elas: Loregian-Penkal (2004) e Ramos (1989) para a região Sul; Oliveira (2005; 2007) para a região Nordeste; Martins (2010) para a região Norte; Paredes Silva (2004) e Lopes et alii (2009) para a região Sudeste; Lucca (2005), Dias (2007) e Andrade (2010) para a região Centro-Oeste.

Do garimpo empreendido nos textos das pesquisas acima, pudemos observar o efeito do gênero de forma bastante clara na alternância entre os pronomes TU e VOCÊ, em que se destaca o duplo papel das mulheres: ora as mulheres usam mais o pronome TU do que os homens; ora as mulheres usam menos o pronome TU do que os homens. Cabe, então, aqui uma pergunta à luz das inquietações labovianas, agora exacerbadas: por que as mulheres apresentam comportamento diversifi cado, com relação a um mesmo fenômeno variável? É esta a pergunta que vamos buscar responder.

1.1. Na região Sul

Pelas pesquisas de Loregian-Penkal (2004: 14-16; 81; 136-138; 167) e de Ramos (1989: 26-35; 49-55; 64-67) para a região Sul, as mulheres tendem a usar mais o pronome TU do que os homens. Vejamos a síntese destas duas pesquisas na Tabela 1 com relação ao uso percentual de TU vs. VOCÊ e da concordância com o TU em função do gênero, por estado e cidades estudados.

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TABELA 1 - Percentual de TU alternando com VOCÊ e concordância com o pronome TU em dois estados da região Sul: Rio Grande do Sul (RS) – quatro cidades - e Santa Catarina (SC) – cinco cidades: pesquisas de Loregian-Penkal (2004) e Ramos (1989), com adaptações.

PESQUISA DE LOREGIAN-PENKAL (2004: 136-138; 167-168): REGIÃO SUL – Rio Grande do Sul e Santa Catarina

Mulheres HomensTodos

(média)

Concor-dância com tu

Rio Grande do Sul / Corpus VARSUL / (entrevistas sociolinguísticas)

Porto Alegre - 99% 80% 91% 7%

Flores da Cunha 96% 68% 86% 2%

Panambi 90% 79% 85% 3%

São Borja 99% 89% 95% 5%

Santa Catarina /Corpus VARSUL / (entrevistas sociolinguísticas)

Florianópolis 91% 59% 77% 43%

Chapecó 59% 41% 50% 0,8%

Blumenau 53% 14% 27% 38%

Lages 23% 10% 16% 14%

Santa Catarina / Corpus Brescancini / (entrevistas sociolinguísticas)

Ribeirão da Ilha (SC) 97% 96% 97% 60%

PESQUISA DE RAMOS (1989: 49; 67: REGIÃO SUL

Mulheres(acima

da média)

Homens(abaixo

da média)

Todos(média)

Concordância com tu

Florianópolis(fala motivada por gravuras)

48% 33% 41% 70%

Pelos percentuais apresentados na Tabela 1, em dois estados da região Sul, a saber, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, as mulheres

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favorecem mais o uso do TU do que os homens de forma regular, independentemente do maior ou menor percentual médio de uso de TU e do maior ou menor índice de concordância com o pronome TU. Exceto em Ribeirão da Ilha, em Santa Catarina, em que há 97% de uso do pronome TU, todas as apresentam sistematicamente aumento de TU em relação à média de uso de TU alternando com VOCÊ.

1.2. Nas regiões Nordeste e Norte

Pelas pesquisas de Oliveira (2005; 2007) para a região Nordeste, no interior do estado da Bahia, e Martins (2010) para a região Norte, no interior do estado da Amazônia, as mulheres tendem também a usar mais o pronome TU do que os homens de forma igualmente regular. Vejamos a síntese destas duas pesquisas na Tabela 2 com relação ao uso percentual de TU vs. VOCÊ e da concordância com o TU em função do gênero por região e localidades ou cidades.

TABELA 2: Percentual de TU alternando com VOCÊ e concordância com o pronome TU em um estado da região Nordeste: Bahia (BA) – seis localidades (Oliveira, 2007, 2007) e um estado da região Norte (AM): Amazônia – cidade de Tefé (Martins, 2010).

PESQUISA DE OLIVEIRA (2005, 2007: 12) – NORDESTE: Bahia

Mulheres HomensTodos

(média)

Concor-dância com

tu

Corpus do projeto Vertentes

Localidades: Sapé, Cinzento, Helvécia e Rio de Contas (entrevistas sociolinguísticas)

19% 7% 12% 0%

Localidades: Santo Antônio e Poções (entrevistas sociolinguísticas)

14% 11% 12% 0%

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continuação tabela 2

PESQUISA DE MARTINS (2010: 71) – NORTE: Amazônia.

Corpus Martins 2009

Tefé (entrevistas sociolinguísticas e gravações ocultas consentidas)

71% 59% 65% 4%

Vejamos, novamente, que os percentuais médios de TU vs. VOCÊ na região Nordeste são bem menores do que os percentuais da região Norte, mas as relações referentes ao gênero dos falantes são as mesmas, com as mulheres favorecendo mais o uso de TU. A pesquisa de Oliveira (2005) evidencia que há diferença de frequência de TU por localidade: nas comunidades Sapé (22% de tu); Cinzento (19%); Helvécia (7%) e Rio de Contas (1%); nas comunidades Santo Antônio (20% de tu) e Poções (9%), mas não apresenta as diferenças em função do gênero por comunidade. Relembramos, também, que a variável gênero nas pesquisas relatadas é estatisticamente signifi cativa.

1.3. Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste

As pesquisas de Paredes Silva (2004) e de Lopes et alii (2009), para o Rio de Janeiro, na região Sudeste, e as de Lucca (2005), Dias (2007) e Andrade (2010) para o Distrito Federal, na região Centro-Oeste, por sua vez, revelam comportamento contrário, ou seja, as mulheres tendem a usar sistematicamente menos o pronome TU do que os homens. Os percentuais de uso do TU em alternância com o pronome VOCÊ podem ser vistos na Tabela 3.

Consideramos impressionante como esta sistematicidade se dá, mesmo quando há baixo percentual de TU, da ordem de 6%, nos corpora PEUL 1980 e PEUL 2000, constituídos de entrevistas sociolinguísticas nos moldes labovianos, feitas pelo Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL) nas décadas de 80 e de 00, com um intervalo de 20

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anos. O TU só se revela nos corpora do Rio de Janeiro especialmente constituídos para capturá-lo, no sentido metafórico do termo. Trata-se do corpus Paredes 1996, com 68% médio de uso de TU e do corpus Lopes 2009, com 35%. Também nestes dois corpora são as mulheres que usam menos TU. Os detalhes destas duas pesquisas, todos muito interessantes, podem ser vistos em Paredes Silva (2004) e em Lopes et alii (2009).

TABELA 3: Percentual de TU alternando com VOCÊ e concordância com o pronome TU na cidade do Rio de Janeiro (RJ) - região Sudeste (Paredes Silva, Lopes et alii, 2009) e no Distrito Federal - região Centro-Oeste, em cinco regiões administrativas – RAs (Lucca, 2005); Dias (2007); Andrade (2010).

PESQUISAS DE PAREDES SILVA (2004: 165-166) e LOPES et alii (2009: 21-22): SUDESTE – Rio de Janeiro.

Mulheres HomensTodos

(média)

Concor-dância com tu

Rio de Janeiro

Corpus PEUL 1980 (entrevistas sociolinguísticas)Paredes Silva (2004)

1% 11% 6% 0%

Corpus PEUL 2000(entrevistas sociolinguísticas)Paredes Silva (2004)

2% 13% 7% 0%

Corpus Paredes 1996(gravações ocultas consentidas)Paredes Silva (2004)

59% 69% 68% 0%

Corpus Lopes 2009 Lopes et alii (2009) (gravações anônimas)

16% 51% 35% 0%

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continuação tabela 3

PESQUISAS DE LUCCA (2005: 80-84), DIAS (2007: 75-77) E ANDRADE (2010: 91-96): CENTRO-OESTE – Grande Brasília ou Distrito Federal.

Mulheres HomensTodos

(média)

Concor-dância com tu

Grande Brasília ou Distrito Federal

Corpus Lucca 2004-2005 Regiões Administra-tivas (RAs): Ceilândia, Taguatin-ga Plano Piloto res-trito – 13 a 19 anos (gravações ocultas consentidas)

20% 77% 72% 0%

Corpus DIAS 2006-2007Plano Piloto am-pliado / 13 a mais de 30 anos (grava-ções ocultas e não-ocultas consentidas)

11% 15% 13% 0%

Corpus ANDRADE 2008-2009Plano Piloto ampli-ado / 7 a 15 anos, com Vila Planalto (gravações não-ocultas consentidas)

30% 45% 36% 0%

As pesquisas com dados do Distrito Federal, nas regiões administrativas Ceilândia, Taguatinga, Plano Piloto restrito e ampliado, em uma variedade em formação – a variedade brasiliense – revelam também de forma sistemática que as mulheres tendem a usar menos TU do que os homens. A pesquisa de Lucca (2005) foi feita com brasilienses – os nativos da grande Brasília ou Distrito Federal – de 15 a 19 anos predominantemente do sexo masculino, o nicho do pronome TU. Além disso, as gravações foram todas ocultas, mas consentidas. Por esta razão, há alta frequência de uso do TU. Mesmo assim, as mulheres desta amostra também usam menos TU do que os homens. A pesquisa

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de Dias (2007) foi feita com uma amostra equilibrada em termos de gênero e de faixa etária, com gravações ocultas e não ocultas. Neste caso, a frequência de TU abaixa. Mas, ainda assim, observa-se menor uso de TU na fala das mulheres. E a diferença entre homens e mulheres é ainda maior quando se especifi ca a faixa etária, chegando à ausência da ocorrência de TU, na fala das mulheres na faixa de mais de 30 anos, como demonstra Dias (2007: 75-76). A pesquisa de Andrade (2010), com a quarta geração de brasilienses, revela o incremento do TU na variedade brasiliense em formação. Novamente, há também menos uso do TU pelo gênero feminino. O fato é que a presença de TU na fala brasiliense pode variar, nas amostras pesquisadas, de 13% a 73%, mas, sempre, com menor índice na fala das mulheres, das moças e das meninas.

1.4. Faixa etária e aumento de uso do pronome TU

A expectativa das pesquisas no Sul, Nordeste e Norte era a de que haveria um processo de mudança em direção a maior uso do pronome VOCÊ, mas a quase totalidade das pesquisas consultadas indica, com surpresa, que as faixas mais jovens apontam maior uso do TU, mesmo em áreas onde o gênero (41% para as mulheres vs. 37% para os homens) ainda não apresentou signifi cância estatística, como no Maranhão (Nordeste), segundo Alves (2010: 68; 92), mas com as mulheres também ligeiramente à frente dos homens, à semelhança do que ocorre na Bahia (Nordeste), no Norte e no Sul.

1.4.1. Homens à frente das mulheres na fala carioca e na fala brasiliense

O efeito do gênero, além de não ser uniforme nas cinco regiões pesquisadas, revela também que os homens, em algumas circunstâncias, podem estar à frente das mulheres em todas as faixas etárias, nos termos da pesquisa de Lopes et alii (2009), sobre a fala carioca – reversão da mudança; e a de Dias (2007: 76), sobre a expansão do tu na variedade brasiliense – aqui, um traço inesperado de focalização dialetal (cf. Scherre et alii, a sair).

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GRÁFICO 1: Cruzamento de gênero e faixa etária: o TU carioca entre vendedores e ambulantes (Lopes et alii, 2009: 22).

GRÁFICO 2: Gênero e faixa etária: o TU brasiliense – Fonte: Dias (2007: 76), com adaptações.

100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0

Homens

Mulheres

13-19 anos 20-29 anos Mais de 30anos

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1.5. Algumas sínteses sobre o pronome TU: Sul, Norte e Nordeste vs. Sudeste e Centro-Oeste

A partir das pesquisas apresentadas, podemos sintetizar os resultados da seguinte maneira: no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina (região Sul), em que o TU é de fácil registro, isto é, em que é facilmente captado nas entrevistas labovianas e em que há, também, uma forte ligação entre o uso do pronome e o traço de identidade geográfi ca, podemos afi rmar que esse pronome é interno ao sistema e que o efeito da faixa etária está associado à formalidade e intimidade (Loregian-Penkal, 2004: 141) ou à polidez (Ramos, 1989: 65). Nesses casos, registra-se que há variação estável entre as formas TU e VOCÊ.

Por outro lado, no interior da Bahia e no Maranhão (dois estados do Nordeste brasileiro), o pronome TU, de fácil registro, embora às vezes menos frequente e, também, um traço de identidade geográfi ca, é igualmente interno ao sistema linguístico, mas a faixa etária, diferentemente do que ocorre na região sul do Brasil, pode revelar mudança de TU para ainda mais TU, isto é, há um acréscimo no uso do pronome TU, conforme explicitado pelos resultados das faixas etárias dos informantes no trabalho de Oliveira (2005: 10) e de Alves (2010: 71). Esse uso foi ainda mais forte no Norte, em Tefé, Amazônia, e foi associado por Martins (2010: 62) a uma semântica baseada na solidariedade. Perguntamos, então, se não haveria, nas localidades do Nordeste e do Norte estudadas, uma mudança abaixo do nível da consciência social, dado o fato de ter sido colocada como hipótese inicial a possibilidade de diminuição do uso do pronome TU nessas localidades.

Apesar de haver um comportamento diferenciado entre os falantes das cidades do Sul, Nordeste e Norte pesquisadas, observamos que, em caso de variação estável (Sul) e mudança abaixo do nível de consciência social (Norte e Nordeste), há uma nítida tendência de as mulheres usarem o pronome TU mais frequentemente do que os homens. Entretanto, contrariamente ao proposto por Labov no Paradoxo da Conformidade, não há uma associação clara de prestígio ou de desvio das normas pré-

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estabelecidas em relação às formas TU ou VOCÊ. Esta associação se dá, às vezes, à questão da não concordância com o pronome TU, mas não claramente com a forma TU ou VOCÊ.

Inversamente ao que ocorre nas cidades do Sul, Nordeste e Norte, no Centro-Oeste (representado pela grande Brasília ou Distrito Federal) e no Sudeste (representado pela cidade do Rio de Janeiro), o pronome TU é de difícil registro, isto é, não aparece com frequência em entrevistas sociolinguísticas: as pesquisas com a fala brasiliense e com a fala carioca tiveram de usar métodos outros para “capturar” o uso do TU. Também não é visto como um traço de identidade geográfi ca, mas, sim, um traço de interação solidária, intimidade ou relação simétrica (Lucca, 2005: 87-92; Dias, 2007: 82-83; Andrade, 2010: 78-82), embora isto também possa ocorrer nas regiões em que o TU é claramente um traço identitário, fato inerente à oposição T/V, nos termos de Brown & Gilman (1960 [2003]).

Relembramos que, no Rio de Janeiro, as amostras com entrevistas sociolinguísticas revelam baixo índice de TU (em torno de 6%) e que o seu registro mais amplo só foi possível com gravações ocultas ou anônimas. Mesmo assim, podemos ainda dizer que, nesta cidade, o pronome TU também é interno ao sistema e que a faixa etária atua de modo a enfatizar uma reversão de mudança de VOCÊ para TU, conforme exposto por Paredes (2.003:166-167). Perguntamos se estamos diante de uma mudança sem consciência social: esta questão não é ainda clara.

Em Brasília, o pronome TU, conforme dito acima, também é de difícil registro, além de ser um traço de forte interação solidária. Entretanto, ao contrário do que ocorre no Rio de Janeiro, não fazia parte do sistema linguístico em 1992 (Andrade, 2004), e somente agora começa a se tornar parte do sistema linguístico local – focalização dialetal. É importante destacar que a faixa etária apresenta-se como uma variável importante, que revela uma expansão dos usos de TU nas faixas etárias mais jovens (Dias, 2007). Perguntamos se nos encontramos diante de uma mudança com consciência social: esta questão não é igualmente clara

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Destacamos que, em ambos os casos acima apresentados, a tendência das mulheres é usar menos o pronome TU do que os homens. Ressaltamos, ainda, que no Rio de Janeiro, há uma associação entre o uso desse pronome com as diferentes classes sociais (Lopes et alii, 2009: 19), porém em Brasília não há ainda dados para se fazer esta afi rmação.

Em suma: associamos o uso mais frequente de TU por parte das mulheres (caso das localidades das regiões Sul, Nordeste e Norte), quando esse pronome for um traço mais geral ou de fácil registro e marcar a identidade geográfi ca dos falantes. Por outro lado, associamos o uso menos frequente de TU por parte das mulheres (caso das regiões Sudeste e Centro-Oeste), quando esse pronome for um traço menos geral ou de difícil registro e não marcar a identidade geográfi ca dos falantes, mas, sim, essencialmente, interação solidária ou de maior proximidade entre os falantes (logo, os homens estão à frente, quando esse pronome for um traço mais específi co, marcando relações solidárias entre grupos mais coesos).

2. Fatos adicionais: o imperativo gramatical (mudança from below) e a concordância verbal no português brasileiro (mudança from above)

A partir dos três fenômenos mencionados, os pronomes de 2ª pessoa, o imperativo e a concordância verbal, pretendemos fazer algumas generalizações sobre o efeito do gênero na variação e na mudança linguística. Pudemos observar que a variação dos pronomes de 2ª pessoa no português brasileiro apresenta características diversas, a depender da comunidade analisada. Assim, em parte da região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), em parte da região Nordeste (em algumas comunidades da Bahia e no Maranhão) e em parte da região Norte (Tefé-AM), o pronome TU pode ser considerado um índice de identidade geográfi ca, diferente, ainda, do que ocorre em parte da região Sudeste (Rio de Janeiro) e parte da região Centro-Oeste (grande Brasília ou Distrito Federal), em que o TU é forte marca interacional.

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O outro fenômeno observado, a variação do imperativo (Cardoso, 2007), apresenta uma refl exão interessante: em falantes nascidos em Fortaleza e residentes na grande Brasília, local em que prevalece o imperativo associado ao indicativo (olha/diz/vem), parece haver uma mudança abaixo do nível da consciência social (change from below) em direção à forma associada ao indicativo (olha/diz/vem), uma vez que a forma que prevalece na cidade de Fortaleza é a do imperativo associado ao subjuntivo (olhe/diga/venha).

Neste caso, Cardoso (2009: 108-109; Cardoso & Scherre, a sair) observou que, ao lado da variável sócio-dentitária, com a maior identidade com Brasília favorecendo o imperativo associado ao indicativo (fala), há também a variável gênero, com as mulheres favorecendo mais do que os homens as formas imperativas associadas ao indicativo, formas estas igualmente menos marcadas em termos de frequência de ocorrência no território brasileiro e de menor percepção por parte dos falantes.

TABELA 4: Movimento de 16 fortalezenses em Brasília em direção ao imperativo associado ao indicativo (fala): o papel de gênero do falante (Cardoso, 2007: 108-109), com adaptações.

FatoresPercentual de uso do imperativo

associado ao indicativo fala/diz/vem

Peso relativo dos fatores

Mulheres 449/585 = 77% 0,59

Homens 215/387 = 56% 0,37

Total 664/972 = 68%

No caso da concordância verbal, a presença de concordância nas áreas urbanas é, em 2000, também a forma mais recorrente em termos médios, da ordem de 80% (Naro & Scherre, 2010: 82), com base em dados extraídos do Corpus PEUL 2000. A forma com concordância é também a menos marcada socialmente: fazer concordância é que o

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esperado pela sociedade. Neste caso, também as mulheres estão à frente dos homens nos processos de mudança da concordância em direção à forma menos marcada, em especial quando se comparam dados extraídos do Corpus PEUL 1980 e Corpus PEUL 2000. É o que se pode ver no Gráfi co 3, para os homens; e no gráfi co 4, para as mulheres, em que se apresenta curva de estabilidade para os homens e mudança para as mulheres (Naro & Scherre, 2010: 83-84). É fundamental observar que, neste caso, trata-se, no nosso entendimento, de uma mudança from above, ou seja, mudança que envolve consciência social.

GRÁFICO 3: Efeito da faixa etária para os homens na presença da concordância verbal: amostras de 1980 e 2000 de falantes da cidade do Rio de Janeiro (Naro & Scherre: 2010: 83).

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GRÁFICO 4: Efeito da faixa etária para as mulheres na presença da concordância verbal: amostras de 1980 e 2000 de falantes da cidade do Rio de Janeiro (Naro & Scherre, 2010: 84).

3. Em busca de generalizações subjacentes ao efeito do gênero na variação e na mudança linguística

Com base nos três fenômenos apresentados, alternância de TU/VOCÊ; alternância de imperativo associado ao indicativo (olha/diz/vem) e imperativo associado ao subjuntivo (olhe/diga/venha); e concordância verbal variável de terceira pessoa, podemos então fazer as seguintes proposições:

1) Traços linguísticos menos marcados, no sentido de serem menos dependentes das relações interacionais ou mais frequentes ou mais aceitos socialmente, tendem a ser

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favorecidos pelas mulheres: o tu como índice de identidade geográfi ca, o imperativo associado ao indicativo em contatos dialetais, a presença da concordância verbal.

Generalização: em confi gurações menos marcadas - e não necessariamente mais prestigiadas - as mulheres estão à frente na variação ou na mudança.

2) Traços linguísticos mais marcados, no sentido de serem mais dependentes das relações interacionais ou menos frequentes ou menos aceitos socialmente, tendem a ser favorecidos pelos homens: o tu como índice de interação solidária; o imperativo associado ao subjuntivo em contatos dialetais; a ausência de concordância verbal.

Generalização: em confi gurações mais marcadas - e não necessariamente menos prestigiadas – os homens estão à frente na variação ou na mudança.

Assim, a questão do prestígio é apenas um dos aspectos da noção de marcação. O princípio da marcação é que, a nosso ver, pode nos trazer luzes para um entendimento do papel gênero nos fenômenos de variação estável, de mudança sem consciência social (change from below) e mudança com consciência social (change from above).

Embora tenhamos sempre em mente as palavras de Paiva (2003: 41), em seu texto “A variável gênero/sexo”, no sentido de que, “evidentemente, qualquer explicação acerca do efeito da variável gênero/sexo requer cautela, vistas as peculiaridades na organização social de cada comunidade linguística e as transformações sofridas por diversas sociedades no que se refere à defi nição dos papéis feminino e masculino”, consideramos que a questão da marcação das formas linguísticas tem de fazer parte de nossas refl exões, na busca do entendimento mais integrado da variável gênero.

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Assim, consideramos que as pesquisas aqui apresentadas mostram que se faz necessária a proposição de uma agenda de trabalho voltada para o entendimento do papel do gênero na variação e na mudança linguísticas. A proposta acima explicitada, que remete ao Princípio da Marcação Linguística e Social (Givón, 2005), também requer muita cautela, uma vez que buscamos associar a variação estável e as mudanças com e sem consciência social a esse princípio, em relativa contraposição ao “Princípio da não conformidade” e ao “Princípio da não conformidade construtiva” de Labov (2001: 216).

Labov (2001: 516), após profundas análises sobre o papel do gênero na variação e na mudança linguística, em uma busca mais geral da localização social das líderes da mudança linguística, como uma abordagem para o entendimento das causas e motivações da mudança sem consciência social, que, segundo ele, é a mudança natural e sistemática, propõe o Princípio da não conformidade nos seguintes termos:

Mudanças linguísticas em andamento são emblemáticas da não conformidade às normas sociais estabelecidas de comportamento apropriado e são geradas no meio social que mais consistentemente desafi a aquelas normas.

Labov (2001) pondera, a seguir, que “é o comportamento não

conformista das mulheres que faz delas as líderes da mudança, não seu gênero.” Reforçando sua tese, Labov (2001: 516) afi rma, ainda, que não é qualquer conformista que conduz a comunidade [no processo] de mudança linguística; é o não conformista que é visto por seus vizinhos como um modelo de ascensão social.

Essa relação entre mudança linguística e não conformidade é ressaltada por Labov (2001: 514) por meio do Princípio da Idade do Ouro (Golden Age Principle), que refl ete, segundo ele, a crença do senso comum de que “em algum lugar no passado, a língua estava em estado de perfeição”. Para Labov (2001: 514), isso indica “que a mudança

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linguística tem de ser interpretada como não conformidade às normas estabelecidas e que as pessoas rejeitam as mudanças na estrutura linguística quando tomam consciência delas.”

Observações fi nais

De tudo o que acabamos de dizer, consideramos oportuno estabelecer tarefas e sugestões para uma agenda de trabalho para refl exões futuras sobre nossa proposta de entendimento do papel do gênero, baseada no Princípio da Marcação Linguística e Social (Givón, 2005), que busca dar conta do gênero de forma mais integrada.

Seguem abaixo alguns aspectos que consideramos pertinentes registrar:

1) A importância da codifi cação da variável sexo na busca do entendimento do papel do gênero – a questão da comparabilidade dos resultados.

2) A questão das amostras e dos gêneros discursivos: será que há mesmo reversão de mudança ou apenas mais percepção do tu?

3) A necessidade de amostras maiores para análises dos dados dos homens e das mulheres separadamente.

4) O controle do papel do indivíduo (tarefa metodologicamente fácil) e das comunidades de prática (tarefa metodologicamente difícil).

5) A importância da relação entre os interlocutores no processo de escolha dos pronomes de segunda pessoa.

6) A difícil tarefa de considerar a questão das classes sociais no Brasil e a importância dada por Labov (2001) à relação entre gênero e classe social e os diversos momentos da mudança linguística.

7) O papel dos zeros: se o zero é fruto de conexão discursiva nos termos de Paredes (1988) ou se é outra variante na referência à segunda pessoa, nos termos de Ramos (1989), para dados de

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Florianópolis-SC-Sul; e de Martins (2010), para dados de Tefé-AM-Norte.

8) A importância do detalhamento das variantes você, cê e ocê e suas inter-relações entre si e com o pronome tu em todas as pesquisas já realizadas e por se realizar (tarefa relativamente fácil, mas que implica tratamento eneário das variantes estudadas).

9) Análise minuciosa dos trabalhos que estudaram a alternância entre você/cê/ocê, na busca dos efeitos do gênero do falante (tarefa que pode e deve levada a cabo também por estudiosos mineiros, cariocas, capixabas e paulistas dedicados ao tema, em especial, Jânia Ramos, Maria do Socorro Vieira Coelho, Edenize Ponzo Peres, Clézio Roberto Gonçalves, Elba Nusa Calmon e Ivanete Belém do Nascimento, com quem temos mais contato).

10) Análise minuciosa de todos os trabalhos variacionistas sobre outros fenômenos, na busca de verifi car o papel do gênero em uma gama mais ampla de fenômenos variáveis (tarefa também de múltiplas mãos e mentes)

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WEINREICH, Uriel; LABOV, William; & HERZOG, Marvin I. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. [1968]. São Paulo: Parábola, 2006

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 147-188. 1ª parte 2011

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E AS RESTRIÇÕES ESTILÍSTICAS / LINGUISTIC VARIATION AND THE STYLISTIC CONSTRAINTS 1

Dermeval da HORA Universidade Federal da Paraíba (UFPB)/CNPq/CAPES

Leo WETZELS Vrije Universiteit – Amsterdam

RESUMO

Os estudos sociolinguísticos desenvolvidos por Labov, nos anos 60 e subsequentes do século XX, foram fundamentais para o início e a continuidade de outros estudos realizados em diferentes partes do mundo. A partir da estratifi cação social das variáveis e observando sua correlação com fatores estruturais, foi possível que se estabelecessem padrões sistemáticos em vários aspectos da língua, principalmente no que tange aos fonológicos. Como atestam os trabalhos implementados, ênfase maior foi dada às variáveis sociais e estruturais, com pouca atenção à variável estilística. Nosso objetivo neste texto é avaliar diferentes propostas (LABOV, 1966, 2001; BELL, 1984; ECKERT, 2000, 2005) que envolvam a relação estilo/variação, utilizando dados oriundos de corpora diferentes. Em um primeiro momento, utilizaremos apenas dados de falantes residentes em João Pessoa, avaliando o uso das oclusivas dentais; em um segundo momento, falantes paraibanos que residem em São Paulo (capital) há mais de cinco anos, avaliando o uso dos róticos. Por último, avaliaremos o nível de consciência do falante em relação aos fenômenos linguísticos considerados acima.

1 Trabalho realizado durante período de Estágio Sênior na Vrije Universiteit (Processo BEX 3613/09-7 – CAPES), tendo como supervisor Leo Wetzels (NWO grant number 040.11.176). É um trabalho que também resulta de uma parceria entre o Progama de Pós-Graduação em Lin-guística da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e o Programa de Linguística da Universidade de São Paulo (USP), fi nanciado pelo CNPq, Proc. 620020/2008-3.

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ABSTRACT

The sociolinguistic studies developed by Labov in the 1960s and through the 20th century were fundamental to other studies conducted worldwide. Owing to the social stratifi cation of variables and observations regarding their correlation to structural factors, it was possible to establish systematic patterns in various aspects of language, especially with regards to the phonology. As demonstrated by the work completed up to the present, emphasis was given to social and structural variables, with little attention devoted to the stylistic variable. Our goal in this paper is to evaluate different proposals (LABOV, 1966, 2001, BELL, 1984; ECKERT, 2000, 2005) that involve the relationship between style and variation using data from different corpora. The fi rst stage of this endeavor involved only data from speakers living in João Pessoa, and focused on evaluating the use of dental plosives. Subsequently, the research expanded to include Paraiban speakers living in São Paulo city for a period greater than fi ve years to evaluate the use of rhotics. Finally, we evaluated the speakers’ level of awareness of the linguistic phenomena considered above.

PALAVRAS-CHAVE

Audience design. Comunidade de prática. Estilo. Variação estilística.

KEY-WORDS

Style. Stylistic variation. Practice community. Audience design.

Introdução

‘Estilo’ pode conotar um grande número de signifi cações que podem estar atreladas a diferentes situações da vida. Aqui, interessa-nos aquela relacionada ao uso da língua, correlacionando-o a formas variáveis de determinados processos fonológicos em comunidades específi cas.

Dessa forma, o estilo é visto como uma restrição que pode favorecer ou não a escolha de uma dentre as diferentes variantes que constituem uma variável. E, mesmo assim, o emprego da restrição “estilo” vai ter conotações diferenciadas.

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Por que falamos de “estilo” enquanto restrição? Ao tratá-lo assim, estamos retomando um dos conceitos estabelecidos por Weinreich, Labov, Herzog (1968), que, ao procurarem estabelecer os fundamentos teóricos para uma teoria linguistica de base empírica, entendem ser “as restrições” um dos cinco problemas a serem solucionados na análise sociolinguística de um processo, seja ele fonológico ou gramatical.

Enquanto “restrições”, podemos pensar em um conjunto de fatores, sociais ou estruturais, a que se correlacionam um determinado processo. A esses devem ser somados os fatores estilísticos. É, pois, nessa perspectiva que trataremos o ‘estilo’.

A variação estilística envolve variação na fala de falantes individuais mais do que entre grupos de falantes, ou seja, ela está mais presente intrafalante do que entre falantes, muito embora saibamos que, para termos a primeira, necessariamente, teremos que ter a segunda.

Nosso objetivo neste texto é avaliar diferentes propostas (LABOV, 1966, 2001; BELL, 1984; ECKERT, 2000, 2005) que envolvem a relação estilo/variação, utilizando dados oriundos de corpora diferentes. Em um primeiro momento, utilizaremos apenas dados de falantes residentes em João Pessoa, avaliando a palatalização das oclusivas dentais; em um segundo momento, falantes paraibanos que residem em São Paulo (capital) há mais de cinco anos, avaliando o uso dos róticos. Por último, avaliaremos o nível de consciência do falante em relação aos fenômenos linguísticos considerados acima. Vale destacar que não é nossa intenção fazer, nesse momento, um estudo quantitativo. O que implica que as análises serão, basicamente, de cunho qualitativo.

A escolha do processo que envolve a palatalização das oclusivas dentais tem a ver com o fato de esta regra de palatalização ser inovadora na comunidade pessoense, uma vez que a norma presente em João Pessoa é a sua não aplicação. Assim, é padrão local a realização de tais consoantes não palatalizadas, como em “[t]iro”, “lei[tI]”, “les[tI]” etc. Tais realizações estão convivendo, aos poucos, com “[t]iro”, “lei[tI]”, “les[tI]”, respectivamente. Isso nos leva a questionar: (a) será que

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podemos relacionar a variação que envolve este aspecto fonológico com a mudança de estilo, nos moldes proposto por Labov (2001), aplicando seu modelo árboreo? (b) podem outros modelos, como os de Bell (1984) e Eckert (2000), justifi car o uso variável das oclusivas dentais, atrelando-o à variação estilística? (c) até que ponto o falante tem consiciência da alternância entre esses dois usos?

Em se tratando dos róticos, o que nos motivou sua escolha para avaliar falantes paraibanos residentes em São Paulo (capital) foi o fato de termos duas realizações bem diferenciadas entre João Pessoa e São Paulo. Para a primeira comunidade, o padrão é a realização aspirada em posição interna, como em “por[h]ta”, “co[h]da”, “co[h]po”, enquanto na segunda, o padrão é o tepe: “po[]ta”, “co[]da”, “co[]po”. As mesmas perguntas formuladas para as oclusivas dentais também valem para os róticos. Um aspecto a ser considerado neste caso diz respeito à avaliação do processo de acomodação dos falantes paraibanos ao dialeto paulista. Será que isso ocorre?

Três hipóteses norteiam nossa proposta: (a) A mudança de estilo do falante não está condicionada aos elementos da situação de fala (formalidade ou audiência), mas ao uso de seus próprios recursos estilísticos; (b) O falante usa sua fala para marcar sua identidade; (c) O nível de consciência em relação ao uso das variáveis selecionadas está correlacionado aos anos de escolarização do falante, ou seja, quanto maior a escolaridade, mais consciência em relação à variação ele terá.

Para desenvolvermos tais ideias, assim estruturamos o texto: na seção 1, apresentaremos uma contextualização da variação estilística; na seção 2, trataremos de três modelos voltados para a variação estilística: o de Labov (1966, 2001), o de Bell (1984) e o de Eckert (2000); na seção 3, analisaremos os dados relativos à palatalização das oclusivas dentais e também aos róticos.

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1. Contextualizando a variação estilística

Segundo Schilling-Estes (2004), tradicionalmente, os variacionistas consideram que a mudança de estilo envolve mudança no uso dos traços fonológicos e gramaticais, dispostos ao longo do continuum vernacular – padrão, entre situações diferentes de fala, delimitadas ou de acordo com a atenção prestada à fala (LABOV, 1966) ou de acordo com a audiênica do falante (BELL, 1984). Nesse sentido, os estudos de variação intrafalante encontram paralelo naqueles de variação entre falantes, em que as variáveis fonológicas e gramaticais são investigadas entre diferentes grupos de falantes. Porém, as investigações variacionistas de mudança de estilo são muito diferentes das investigações de estilos de fala conduzidas em décadas passadas em outros subcampos da sociolinguística. Por exemplo, as abordagens taxonômicas de pesquisadores como Ervin-Tripp (1964), Halliday (1978) e Hymes (1972) consideraram a variação estilística como algo que envolvia uma variedade muito maior de tipos de variação, diferente do que conceberam os primeiros variacionistas. Além disso, para aqueles estudiosos, a variação estilística era condicionada por uma variedade mais ampla de fatores, incluindo não só a formalidade da situação ou a composição da audiência, mas fatores como tópico, ambiente, canal de comunicação (falado x escrito), propósito etc.

Nos últimos anos, os estudos variacionistas sobre mudança de estilo têm divergido das abordagens iniciais e têm convergido, pelo menos de alguma forma, para abordagens utilizadas por etnógrafos, antropólogos, sociólogos etc. Já não é uma preocupação dos variacionistas investigar o padrão de variação estilística, considerando apenas um ou vários fatores sociais, mas, sim, uma variedade de fatores, que podem contribuir para a variação intrafalante.

Além disso, mais do que examinar a variação baseada em categorizações pré-estabelecidas da situação de fala como “casual”, “formal” ou “cuidada”, ou em categorias sociais como “classe media alta”/ “classe media baixa”, masculino/feminino, negro/branco, estão sendo realizadas investigações etnográfi cas, a fi m de encontrar formas

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que possibilitem categorizar a língua, a pessoa e o mundo (ECKERT, 2000; KIESLING, 1996; MENDOZA-DENTON, 1997). Vale acrescentar que as pesquisas variacionistas de estilo também estão se tornando mais amplas, focando outros traços, indo do fonológico e grammatical para o lexical e o pragmático/interacioonal (COUPLAND, 2001; SCHILLING-ESTES, 1999), também têm focado traços paralinguísticos como entonação (ARNOLD et al., 1993), elementos não linguísticos de estilo, tais como “cabelo, roupas, maquiagem, posição do corpo, e uso do espaço (ECKERT, 2000).

Essas pequisas têm chamado atenção para dois aspectos fundamentais: (1) os falantes não mudam o estilo meramente em reação a elementos da situação de fala (se formalidade ou audiência), eles são muito criativos em seu uso dos recursos estilístidos; (2) os falantes não estão apenas limitados a elementos da situação externa, eles usam sua fala para ajudar a estruturar e a reestruturar a situação externa, como também suas realações interpessoais, e, principalmente, suas identidades pessoais. Como podemos ver, são dois aspectos que fogem às propostas de Labov (1966) e Bell (1984), mas isso não invalida que a variação estilística ainda seja abordada sob tais perspectivas.

Devido à grande diversidade de tipos de variação empregados por falantes individuais, não é de se surpreender que os variacionistas tenham, por décadas, se debatido exatamente sobre o que deve estar relacionado à noção de variação estilística, como também a melhor forma de estudar este fenômeno abrangente. Contudo, devemos concordar que a variação intrafalante deve ter um importante papel no estudo da variação. Afi nal de contas, a variação intrafalante é pervasiva, talvez mesmo universal, e nós não podemos esperar alcançar um entendimento pleno do padrão de variação da língua, ou de uma língua em geral, se não entendermos seu padrão dentro da fala dos indivíduos como também entre grupos de falantes. Mais, visto que a variação intrafalante repousa na interseção do individual e do comum (popular), um melhor entendimento de seus padrões levará a valiosos insights sobre

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como as duas esferas se interrelacionam – isto é, como os individuos internalizam padrões linguísticos mais amplos na comunidade e como esses padrões são estruturados e reestruturados pelos indivíduos na interação conversacional do cotidiano.

As mudanças de estilo podem ser muito deliberadas e envolverem o uso autoconsciente de traços que o falante e a audiência são muito conscientes, ou podem ser inconscientes, envolvendo traços que as pessoas nem mesmo sabem que estão usando. Além disso, as mudanças podem ser muito rápidas, como quando um falante envolvido em uma pesquisa sociolinguística momentaneamente muda para um estilo mais vernacular durante uma breve conversação ao telefone; ou pode ser mais longa, como parte da rotina diária. Além disso, padrões de longo tempo de variação linguística podem vir a caracterizar uma pessoa ou um grupo em geral, de forma que podemos falar de estilo do indiivíduo ou de vários estilos grupais. Finalmente, a variação intrafalante pode envolver qualquer nível de organização da língua, do fonológico e morfossintático ao lexical, semântico, pragmático e discursivo. Consequentemente, podemos falar de diferentes tipos de estilo, variando de um estilo formal, associado com níveis de uso mais altos de determinados traços fonológicos e morfossintáticos (frequentemente, mas nem sempre, aqueles associados com uma variedade padrão) para um estilo conversacional, isto é, os padrões interacionais mais amplos que caracterizam os discursos inteiros.

2. Abordagens sobre a variação estilística

Nesta seção, trataremos de três diferentes abordagens referentes à variação estilística. Vale ressaltar que elas não são excludentes. Ao contrário, buscam, progressivamente, avançar na busca pela compreensão desse aspecto que nem sempre tem merecido atenção dos estudiosos, talvez até pela sua complexidade, que é o estilo.

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Inicialmente, apresentamos alguns aspectos da abordagem laboviana, pelo fato de ser a precursora. Em seguida, tratamos da abordagem de Alan Bell, e, por último, detemo-nos na proposta de Eckert, como representativa que é de uma nova perspectiva sobre a variação estilística.

2.1. Labov: estilo como atenção prestada à fala

permitem avaliar possíveis indícios de mudança na língua quando o estilo é alterado. Assim, ele esboça a entrevista sociolinguística de forma que possa obter do falante, tanto quanto possível, uma fala que vá da mais casual a mais formal.

Para Labov, a atenção prestada à fala está no centro da proposta. A fala casual é facilmente detectada em situações em que o falante não a esteja monitorando, como nas ruas, nos bares, na praia. O mesmo não acontece em uma situação de entrevista formal, que defi ne um contexto de fala, onde, em geral, apenas um estilo ocorre, o estilo denominado de fala cuidada. Então, a metodologia utilizada para amenizar o grau de formalidade que, por si só, caracteriza a entrevista é decisiva.

Considerando a fala cuidada como o estilo mais simples de ser defi nido dentro de uma entrevista, Labov utiliza algumas estratégias: estilo de leitura, lista de palavras, pares mínimos. Todas estas estratégias implicam que o falante preste mais atenção à maneira como utiliza a língua. Para obter uma fala menos monitorada e mais casual, ele estabelece situações contextuais em que o falante possa estar menos atento a sua própria fala. Para isso, vale controlar aspectos como: fala com uma terceira pessoa, fala não relacionada às questões estabelecidas, questões voltadas para hábitos da infância e o mais conhecido “perigo de morte”. Nesses dois últimos casos, como podemos ver, o fundamental é o tópico; ao manipulá-lo, ele parte da hipótese de que alguns tópicos podem desviar a atenção do falante em relação à fala.

Segundo Rickford e Eckert (2001, p. 3), o estudo de Labov (1966) estabelece uma forte ligação entre o indivíduo e a comunidade – entre o linguistico, o cognitivo e o social. Ele demonstrou que o uso das

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variáveis sociolinguísticas é estratifi cado socioeconomicamente, e que a variedade estilística de cada falante cobre um continuo do uso na matriz socioeconômica. Ao colocar o prestígio na parte mais alta da hierarquia socioeconômica e o estigma na parte mais baixa, Labov caracterizou cada continuum estilístico do falante em relação a esses dois polos. Ele viu o prestígio da variedade do falante como o resultado da fala formal, cuidada, e o estigma como o resultado da fala casual, não monitorada. Portanto, a atividade estilística do falante estava diretamente ligada a sua posição na hierarquia socioeconômica e nas estratégias utilizadas.

Ainda para os autores, enquanto a noção de prestígio desempenha um importante papel no trabalho de Labov sobre estilo, é a atenção prestada à fala que ele coloca como foco, presumivelmente porque a atenção é o mecanismo cognitivo que liga o social aos fatores linguísticos.

Labov (2001, p. 87) afi rma que a organização dos estilos contextuais ao longo do eixo da atenção prestada à fala não foi planejada como uma descrição de como a mudança de estilo é produzida e organizada no cotidiano, mas como uma forma de organizar e usar a variação intrafalante que ocorre na entrevista.

Com base nas entrevistas realizadas, Labov (2001) propõe um modelo árboreo constituído de oito critérios, com o objetivo de analisar a fala espontânea. Esses critérios se pautam em quatro contextos categorizados como “fala casual” e quatro como “fala cuidada”, em ordem decrescente de objetividade.

A análise das entrevistas permite que decisões sejam tomadas quanto ao estilo utilizado. Podem ser encaixadas no estilo casual as passagens que dizem respeito às narrativas, à participação de outras pessoas, a passagens que tratam da infância e passagens tangenciais. Para o estilo cuidado, são considerados: as respostas, questões que tratam de avaiação da língua, opiniòes generalizadas (soapbox) e os resíduos que não se encaixam em nenhum desses casos.

Inúmeras críticas são feitas à proposta de Labov. Aqui destacamos algumas delas:

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(a) difi culdade de se quantifi car a atenção prestada à fala;

(b) difi culdade operacional de separar a fala casual da fala cuidada a partir das situações contextuas;

(c) caráter unidimensional da proposta, o que implica um continuum formalidade vs. Informalidade;

(d) o falante é visto como passivo, alternando sua fala em resposta às mudanças na situação externa, mais do que creditando-lhes a capacidade de agenciar seu uso dos recursos estilísticos.

Sobre sua proposta, vale questionar: (a) será que esses estilos se aplicam fora do arcabouço da entrevista sociolinguística? (b) será que é a atenção prestada a fala o fator que opera nos estilos propostos por Labov como formais? (c) será que o falante tem consciência da mudança de estilo?

2.2. Proposta de Alan Bell: “audience design”

As décadas seguintes ao trabalho seminal de Labov, que apresenta uma proposta teórica e metodológica sobre estilo, presenciaram uma mudança de foco. Estudos voltados para a teoria da acomodação, principalmente os desenvolvidos por Howard Giles e colegas, procuraram mostrar, dentre outras coisas, a importante infl uência sobre o estilo da língua, condicionando-o à orientação do falante e à atitude em relação ao destinatário. Outros estudos avaliaram o efeito do destinatário e da “audiência” sobre a variação.

Alan Bell (1984) seguiu esses estudos, colocando a “audiência” como o centro da produção estilística.

Segundo Bell (1984, p. 158), qualquer modelo de mudança de estilo deve considerar que a variação intrafalante deriva e reproduz a variação entre falantes. A primeira é uma resposta à última. Para ele, apenas um único tipo de modelo pode satisfatoriamente considerar a mudança de estilo. Tal modelo, de acordo com o autor, é latente em muitos estudos

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de variação e explícito em outras vertentes da sociolinguística, como na etnografi a da comunicação.

A fi m de justifi car seu foco no ouvinte, Bell afi rma que os sociolinguistas estão acostumados a correlacionar a dimensão social da variação linguística a características sociais mensuráveis de uma pessoa - o falante - como ‘classe social’, ‘idade’ etc. Porém, se a dimensão estilística é derivada da dimensão social, poderíamos também correlacionar a dimensão estilística aos atributos da pessoa. E, nesse caso, eles seriam os atributos, não do falante, mas do ouvinte. Com base nisso, ele afi rma que sua proposta “audience design” é elegantemente simples.

Ela considera que o falante ao modelar a sua fala leva em conta o ouvinte, ou seja, a sua “audiência”, que é constituída não só do destinatário, a segunda pessoa, mas de outras terceiras pessoas. O destinatário, a segunda pessoa, é conhecido e ratifi cado, os demais não precisam ser, necessariamente ratifi cados. Os interlocutores que são conhecidos e ratifi cados, ele chama de “auditors”. Aqueles que o falante sabe que estão lá, mas que não são participantes ratifi cados, são os “overhearers”. Outros cuja presença é desconhecida são os “eavesdroppers”. De forma sintética, a audiência é assim composta:

• Addressee – ouvintes que são conhecidos, ratifi cados e “addressed”

• Auditor – ouvintes que não são diretamente “addressed”, mas que são conhecidos e ratifi cados

• Overhearer – ouvintes não ratifi cados, mas que o falante tem consciência

• Eavesdropper – ouvintes não ratifi cados e o falante não tem consciência

Esses quatro papéis da audiência estão implicacionalmente ordenados de acordo com o fato de eles serem ratifi cados e conhecidos, obedecendo a uma hierarquia, cada um tendo seu papel, que é atribuído pelo falante,

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e seu grau de saliência para a modelagem do estilo do falante é relativo à distância do papel. Para Bell (1984), isto tem duas consequências relacionadas para a variação sociolingística – uma qualitativa e outra quantitativa.

Do ponto de vista qualitativo, ele defende que há uma escala implicacional, segundo a qual uma variável mostrará variação segundo os papéis da audiência. Do ponto de vista quantitativo, sua hipótese é de que o efeito de cada papel sobre a variação linguística é menor do que o efeito do papel mais próximo do falante.

Bell (1984) também vai defender em sua proposta que a infl uência aparente da mudança de tópico se deve à associação dos tópicos aos tipos de “audiência”. Uma vez que nem todas as mudanças estilísticas são respostas óbvias aos participantes presentes, ele defende que o efeito de grupos de referência ausentes, denominados por ele de “referees” é fundamental, e pode, sim, ter infl uência na variabilidade da língua, pelo fato de estarem presentes na mente do falante.

Para sua análise de estilo, Bell elenca uma série de princípios, transcritos a seguir:

(1) Estilo é o que um falante individual faz com a língua em relação a outras pessoas. Com isto, fi ca claro que o estilo se focaliza na pessoa e é essencialmente algo social. Estilo é o refl exo da variação entre falantes, é interativo e ativo.

(2) O Estilo deriva seu signifi cado da associação dos traços linguísticos com grupos sociais específi cos. A avaliação do grupo é transferida para os traços linguísticos associados ao grupo. Dessa forma, o estilo deriva da variação linguística entre grupos, a partir da avaliação social. A avaliação está sempre associada com a mudança de estilo, e a mudança de estilo com a avaliação. Ele considera, portanto, que o signfi cado social da variação linguística entre grupos sociais é primário e que a

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variação linguística é o uso secundário ou o desenvolvimento dessa variação.

(3) O falante modela seu estilo principalmente por sua “audiência” e em resposta a ela. Este é o cerne da proposta “audience design”. Normalmente, o falante muda seu estilo para se acomodar ao da pessoa com quem está falando. Com isso, fi ca clara a relação entre essa proposta e a Teoria da Acomodação. A resposta é o modo primário da mudança de estilo, mas esta é uma responsividade ativa.

(4) “Audience design” se aplica a todos os códigos e níveis de um repertório linguístico, monolíngue ou multilíngue. Além disso, “audience design” não se refere apenas à mudança de estilo, ela envolve outros traços, sejam eles estruturais ou não.

(5) A variação na dimensão do estilo na fala de um só falante deriva da variação que existe entre falantes na dimensão social e a reproduz. Este princípio se refere às concepçoes convencionais da proposta variacionista. O estilo é visto como uma dimensão da variação separada da dimensão social.

(6) Os falantes têm uma refi nada habilidade para modelar seu estilo para uma variedade de destinatários, como também para outros membros da audiência. Para Bell, esta é a descoberta clássica do modelo da acomodação. O falante acomoda seu estilo de fala aos seus ouvintes, a fi m de obter aprovação.

(7) A mudança de estilo de acordo com o tópico ou com o ambiente deriva seu signifi cado e direção da mudança da associação subjacente aos tópicos ou ambientes com membros típicos da audiência.

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(8) Bem como a dimensão responsiva do estilo, há a dimensão ‘iniciativa’, onde a própria mudança de estilo inicia uma mudança na situação, mais do que resultando de uma tal mudança.

(9) As mudanças de estilo iniciativas são em essência “referee design”, pelo qual os traços linguísticos associados com um grupo de referência pode ser usado para expressar identifi cação com aquele grupo. Aqui há uma ligação ente estilo iniciativo e metafórico com a audiência. Os juízes são terceiras pessoas não usualmente presents na interação, mas que são importantes para os falantes e capazes de infl uenciar seu estilo de falar, mesmo em sua ausência. O estilo, portanto, torna-se um problema de identifi cação com a potencialidade de grupos não presentes.

(10) Pesquisa em estilo exige seus próprios modelos e metodologias. Isto tem a ver com o papel periférico que o estilo sempre tem assumido nas pesquisas variacionistas.

Finegan e Biber (1994, p. 339) creditam a Bell a explicação sobre a relação entre variação estilística e variação social, mas não a sistematicidade interna de cada categoria. Para eles, a explicação é funcional e defendem que “a variação social do dialeto depende da variação do registro, e a variação do registro é formada por restrições comunicativas inerentes a situações específi cas”.

Onde Bell focalizou a audiência, Finegan e Biber focalizaram a situação mais ampla, e buscaram estabelecer uma ligação das próprias variáveis às situações em que elas eram usadas e, fi nalmente, à hierarquia socioeconômica. Eles começaram com o argumento de que variáveis estratifi cadas socialmente tendem a

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envolver algum tipo de redução ou simplifi cação e que a complexidade da forma linguística se correlaciona com o status socioeconômico. Eles defendem que as formas lingísticas mais complexas são usadas em situações mais “letradas”, como uma função, tanto das tarefas que estão sendo consideradas nessas situações como da falta relativa de contexto compartilhado. Eles, então, atribuem a estratifi cação social do uso da língua à estratifi cação do acesso a esses tipos de situação (RICKFORD E ECKERT, 2001, p. 4).

Para Rickford e Eckert (2001, p. 4), a proposta de Alan Bell não só introduziu uma visão coerente de mudança de estilo, mas também integrou uma variedade mais ampla de descobertas sociolinguísticas anteriormente díspares, e colocou novas generalizações e previsões teóricas testáveis sobre a relação entre a variação estilística e a social.

Tais ideias contribuíram para uma nova visão de estilo, e elas têm sido objeto dos estudos de variação. Eckert (2000) e outros têm explorado o papel da variação na construção ativa dos estilos pessoais e de grupos, vendo as variáveis individuais como recursos que podem funcionar na construção de novas personalidades.

Sobre a proposta de Bell (1984), reproduzindo o que a literature afi rma, podemos dizer que: (a) é um modelo que mantém a dimensão responsiva ainda muito forte, apesar de também prever a dimensão iniciativa do falante; (b) como a proposta laboviana, é também unidimensional, com preocupação fundamental na audiência.

2.3. Penelope Eckert: comunidade de práticas

Diferentes dos modelos anteriores, a proposta de Eckert (2000, 2005) se baseia em uma abordagem construcionista social, assim como as de Coupland (1985, 2007); Mendonza-Denton (1997); Schilling-Estes (1998, 1999). Nessa concepção, a língua e a sociedade são vistas

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como co-constitutivas: os traços linguísticos e os padrões de uso dos falantes não são meras refl exões da identidade estática, como defi nida nos primeiros estudos.

Para Eckert, os estudos variacionistas, ao longo dos anos, podem ser vistos como verdadeiras ondas. Assim pensando, ela os reúne em três ondas.

Os primeiros deles, ou seja a primeira onda, usa o modelo quantitativo para examinar a relação entre variabilidade linguística e restrições sociais, a exemplo de sexo, idade, classe social, etnia.

O foco nesses estudos está em capturar o vernáculo, procurando encontrar os padrões na fala não consciente e também a fonte da mudança linguística regular.

De forma sintética, a primeira onda assim se caracteriza:

- estudo de comunidades geografi camente defi nidas;- hierarquia socioeconômica como um mapa do espaço social;- variáveis como marcadores de categorias sociais primárias,

conduzindo traços de prestígio/estigma;- estilo como atenção prestada à fala, e controlado por orientação

relativa ao prestígio/estigma.

Neste estudo, os dados coletados na Paraíba (VALPB) refl etem esse momento que Eckert denomina de primeira onda.

Outro momento que norteia os estudos sociolinguísticos diz respeito ao que foi denominado de “segunda onda” (Eckert, 2005), caracterizado pelos estudos etnográfi cos. Estes têm como foco comunidades menores e objetivam identifi car categorias sociais que são salientes na comunidade. Os estudos etnográfi cos mostraram como as formas de falar estão carregadas com o signifi cado local.

A segunda onda, para Eckert, estabeleceu uma conexão com a primeira onda e a dinâmica local, e assim se caracteriza:

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- estudos etnográfi cos de comunidades defi nidas geografi camente;

- categorias locais como links para as demográfi cas;- variáveis como categorias de indexação localmente defi nidas;- estilo como atos de afi liação.

A “terceira onda” focaliza o signifi cado social das variáveis. Ela vê o estilo, mais do que as variáveis, como associado diretamente às categorias identitárias, e explora as contribuições das variáveis para os estilos. Assim, ela parte da abordagem baseada no falar das duas primeiras ondas, e vê as variáveis como localizadas em comunidades de práticas. Uma comunidade de prática, segundo Eckert (2005, p. 16) é um agregado de pessoas que, reunidas de forma regular, se engajam em alguma iniciativa (uma família, uma classe linguística, um time esportivo, mesmo uma pequena vila). Ao longo do engajamento, a comunidade de prática desenvolve práticas. E essas práticas envolvem a construção de uma orientação compartilhada para o mundo ao seu redor – uma defi nição tácita delas mesmas em relação ao outro, e em relação a outras comunidades de prática.

Para a autora, o indivíduo não existe isolado da matriz social, mas a ela está ligado através de formas estruturadas de engajamento. O indivíduo constrói uma identidade – um sentido de lugar no mundo social – equilibrando a participação em diferentes comunidades de prática, e em formas de participação em cada uma dessas comunidades. E a chave para este processo inteiro de construção é a prática estilística.

Até agora, nos estudos de variação, o estilo tem sido tratado como ajustamentos situacionais do falante no uso de variáveis individuais. O outro lado do estilo é como os falantes combinam variáveis para criar formas distintivas de falar. Estas formas de falar são uma chave para a produção das personae, e as personae, por sua vez, são tipos sociais particulares que se localizam de forma explícita na ordem social. Ao estudar indivíduos, geralmente, os linguistas se impacientam. No entanto,

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os indivíduos constituem algo muito importante sobre os quais temos que aprender, e só na comunidade de prática é que se pode entender sua prática individual. Por sua vez, o estudo etnográfi co que busca fornecer explicações para padrões de variação maiores deve selecionar comunidades de prática que são de grande valor para esses padrões.

Uma vez que a “terceira onda” toma o signifi cado social como primário, ela examina não só as variáveis que são de interesse primário para os linguistas, mas qualquer material linguístico que sirva como um propósito social/estilístico. E, na mudança, ela desloca o foco das categorias do falante para a construção da persona.

Quando pensamos sobre a relação entre variação e grupos sociais, geralmente não são identifi cadas variáveis individuais. O signifi cado da variação está em seu papel na construção dos estilos, e estudar o papel da variação na prática estilística envolve não simplesmente localizar variáveis nos estilos, mas em entender esta localização como uma parte integral da construção do signifi cado social.

A terceira onda, então, leva o estudo da variação para uma nova direção. Mais do que defi nir a variação em termos dos falantes que usam as variáveis, ela busca os signifi cados que motivam desempenhos particulares.

A terceira onde pode ser assim caracterizada:

- estudos etnográfi cos das práticas das comunidades;- categorias locais resultantes da construção de estâncias

comuns;- indexação de variáveis a estâncias, atividades, características;- estilo como construção da persona.

A proposta de Eckert é estudar o papel da variação na prática estilística. Isto envolve não simplesmente localizar as variáveis nos estilos, mas em entender esta localização como uma parte integral da construção do signifi cado social. Isto tem várias implicações para sua

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visão de variação. Primeiro, as variáveis não se associam a um estilo com um signifi cado fi xo, específi co, mas assume o signifi cado no processo de construção do estilo. Isso leva a um segundo ponto: o estilo (como a língua) não é uma coisa, mas uma prática. Ele é a atividade em que as pessoas criam o signifi cado social, o estilo é a manifestação visível do signifi cado social.

3. Análise e discussão dos dados

No Brasil, os vários projetos de base sociolinguística nunca deram atenção às restrições estilísticas, sempre favoreceram as restrições estruturais e sociais.

Apesar de não ter como objetivo estudos de cunho puramente variacionista, o Projeto NURC foi um dos poucos que, na sua concepção e implementação, contemplou possíveis estilos. Suas gravações foram divididas em quatro tipos:

• 1º - Diálogo espontâneo (GS): 40 horas (10%);

• 2º - Diálogo entre dois informantes (D2): 160 horas (40%);

• 3º - Diálogo entre o informante e o documentador (DID): 160 horas (40%);

• 4º - Elocuções Formais (EF): 40 horas (10%).

• Fonte: http://www.ffl ch.usp.br/dlcv/nurc/

Como podemos perceber, fi ca clara a diferença entre os estilos casual e cuidado. Desconhecemos, entretanto, estudos decorrentes dessa classifi cação que tenham avaliado como o estilo pode ter infl uenciado esta ou aquela variação.

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Outros Projetos, como PEUL, VARSUL, VALPB, ALIP, não consideram, em sua coleta de dados, diferenças estilísticas, mas elas podem ser detectadas a partir das entrevistas, que contemplam aspectos formais e casuais, seguindo a proposta de Labov (1966).

No caso específi co do VALPB, podemos encontrar questões que contemplam o que Labov (2001) propõe em seu modelo arbóreo. Temos as modalidades de uso formal e também casual. Resta saber se, para o falante, ao longo da entrevista, são percebidas as variações estilísticas.

3.1. Sobre a palatalização das oclusivas dentais

Para este trabalho, utilizamos os dados do VALPB, elegendo quatro informantes, sendo dois do sexo masculino e dois do sexo feminino, estratifi cados quanto à escolaridade. Dessa forma, temos dois com mais de onze anos de escolarização e dois com nenhum ano de escolarização. Da entrevista, selecionamos duas passagens: uma que contempla o estilo formal, falando acerca da “língua”, e outra, o casual, tratando de questões de caráter bem pessoal. Com isso, pretendemos, em um primeiro momento, ver se a palatalização das oclusivas dentais ocorre variavelmente de acordo com o estilo suposto. É de se esperar que, ao ir do estilo casual para o formal, o falante alterne as variantes dentais [t,d] para [t,dʒ]. Em um segundo momento, interessa avaliar se o falante tem consciência da variação que envolve essa variável.

Labov entende que a variação linguística pode ser detectada quando as pessoas falam ‘menos cuidadosamente’ em alguns pontos da entrevista mais do que em outros pontos. Quando elas estão mais relaxadas, elas utilizarão traços do vernacular com maior frequência.

O primeiro informante é do sexo feminino, tem mais de onze anos de escolarização e está na faixa etária de 15 a 25 anos. Ela não apresenta nenhuma oscilação quanto ao uso das oclusivas dentais.

Esperávamos que ao falar sobre o uso da língua, o que na perspectiva de Labov representa o estilo formal, ela se policiasse para usar a forma palatalizada, uma vez que essa está relacionada ao padrão nacional.

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Assim, no Excerto 1, transcrito a seguir, todos os ambientes favoráveis à palatalização, a exemplo de “diferente”, “norte”, “tipo”, “diariamente”, “corretamente”, “depende” etc., não foram considerados, e a realização dental foi categórica.

Excerto 1: Estilo FormalE*2 Você fala diferente?I* Como assim diferente?E* Diferente do pessoal do sul do país do norte do país?I* Eu Eu acho que eu falo [dif-] eu acho que eu falo a a língua que é

do do do meu da do meu estado, né? Que é o é seø paraibana, se eu falo diferente eu algumas coisaø que eu falo diferente, mas eu não sei o que é alguma algum algumas rimas que eu falo diferente algum algum tipo assim de palavra que eu sempre falo diariamente.

E* O que você acha da sua forma de falar?I* O que é que eu acho da minha forma de falaø? Eu acho que eu

falo corretamente apesaø que eu às vezeø erro erro um pouco sabe? Mas no início é erraø é humano, né? Nós não somos perfeitos em nadas.

E* Você acha que fala diferente das outras pessoas?I* Se eu falo diferente das outras pessoas? Depende se foø se foø as

pessoas que com quem eu convivo eu acho que eu falo igual as pessoas com quem eu convivo, se foø pessoas de alta sociedade. Se foø pessoas de alta sociedade então é, são pessoas bem se foø, (hes) pelo menos na no na minha na no meu estado eu falo, as pessoas a a com quem eu convivo eu falo de acordo com elas, agora de outros de outros de outros estados eu acho que eu falo diferente, porque eu já eu já fui em um estado que eu falei diferente a o sotaque é diferente, as palavras, puxa muito o “T” com com o “H”, eu falo diferente, ela fala de outro eles eles acham interessante, eu acho também interessante, tem uns que mangam, outros que não, aceita. Infelizmente, o pessoal num aceita o sotaque de outro, né? Até aqui também na Paraíba existe isso, mays eu não ligo pra essas coisaø não.

2E* refere-se ao Entrevistador e I* ao Informante.

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E* Você acha que todos os Brasileiros falam diferente?I* Fala. Cada um tem uma maneira de se falaø, né? Eu acho que você

tem que aceitaø a maneira de cada um tem que se falaø. Se o carioca fala dum dum jeito, o paulista fala de outro, o Gaúcho já fala de outro, o paraibano já fala de outro, o pessoal, o Brasil em si, né? Os Paulistas, os os cariocas achaø que o Paraibano é... são as pessoas que falam mais erradas, diferentes mays, mais erradas eu não acredito nisso, se eles viessem pra cá, eles se acostumavam com as com o sotaque daqui e iam gostaø e iam deixaø de falaø carioca, mays eu respeito todos os os sotaques, as palavras das pessoas.

Interessante observar que a informante tem consciência de que a oclusiva dental existente em outras comunidades sofre mudança, o que a diferente da sua. Para ela, a palatalização é representada quando se usa um “t” seguido de um “h”.

A informante também tem consciência de que, no Brasil, temos uma variedade de falares que marca as diferenças regionais. O sotaque para ela não é algo que deva ser considerado errado, pois ele caracteriza as diferentes comunidades.

A mesma informante não altera o uso das oclusivas dentais quando utiliza o estilo considerado casual.

Excerto 2: Estilo casualE* Numa situação dessa (hes) você já esteve alguma vez em uma

uma situação em que tivesse dito, estivesse correndo sério perigo de vida, sério perigo de vida e tenha dito “chegou a minha hora”?

I* Já ocorreu. Foi no dia que eu fui assaltada um cara botou (risos) uma faca em cima de mim e eu disse pronto chegou minha hora, quando ele botou aquela faca em cima de mim eu já vi meu caixão ali pronto, mays Graças a Deus. Eu eu deveria teø confi ado em Jesus, mays não confi ei, mays ele ele achou que eu não [devi-] não era minha hora de morreøainda e me salvou desse desse lamentável acidente.

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E* Numa situação dessa algumas pessoas dizem: “Seja o que Deus quiser”. O que você acha disso?

I* O que que eu acho do que dessa palavra, dessa frase “Seja o que Deus quiseø”. Se ela disse seja o que Deus quiseø, pelo que ela vai agiø, se ela achaø que é [cor-] que é correø então é isso que ela acha que é correø, eu acho que Deus apesaø de tudo tá ali ajudando ela né? Mays às vezes as pessoas acham seja o que Deus quiseø em vão, não acredita em Deus, então acho quando ela diz “Seja o que Deus” se foø uma pessoa que confi a em Deus. Reza reza todos os dias é... Fala com ele é... pede a nas horas mais difíceis, [rez-] fayz as suas orações, seus pedidos, eu acho que essa pessoa quando diz “Seja o que Deus quiseø” ela tá seguro que tá dizenøo e sempre Deus ajuda, agora se foø uma pessoa que joga o nome de Deus em vão então essa pessoa não vai se saiø bem de uma situação dessa, né?

Neste Excerto, que corresponde ao que Labov denominou de “Perigo de morte”, a informante fala de suas experiências pessoais em frente a uma situação de perigo. Com isso, a tensão em relação ao uso da língua é bastante minimizada devido ao envolvimento com a própria narrativa.

Palavras como “dia”, “disse”, “acidente”, “acredita”, “difíceis”, “pedidos” etc. são todas realizadas sem o uso da palatalização das oclusivas dentais [t,d].

O segundo informante é do sexo feminino, está na faixa etária entre 15 a 25 anos e nunca foi escolarizada. Apesar disso, ela tem consciência de que pessoas de diferentes regiões falam diferentemente.

Excerto 1: Estilo formalE* Você acha que fala diferente das pessoas de João Pessoa?I* Se eu acho se eu falo diferente?E* Hum, hum?I* Sabe que eu nem reparei (risos). Eu num reparo pøa isso não. Eu

acho bonito o povo que fala pøa aqueles ladoø lá de baixo, né? Que o povo chama é, o Riø de Janeiro; que tem aquele povo mesmo, gaúcho, né? Que nasceu em em Porto Alegre, né? Aqueles. Acho muito bonito

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mayø + eu num ligo, não. Num tenho nada contra [minha] meu jeito de falar, não.

E* Hum, hum. E você acha que todos os brasileiros falam do mesmo jeito?

I* Ah, fala nada! É como eu tô lhe dizenøo, né? O povo do Riø de Janeiro fala carioca, o povo lá de Poøto Alegre, o povo que diø que é gaúcho, né? E eles falaø assim meio atrapalhado. O povo de interioø, Ave-Maria! É a maioø vergonha, todo mundo sabe. É aqueles negócioø assim bem puxado, né? O povo de Recife, o povo diø que é meio choroso. Não, mas quem fala mais feio é baiano, ô povinho que fala feio, viu? Aquele é triste! E fala um negócio assim meio, parece que tá assim meio, tudo cheio [de] dessas coisaø que o povo fuma agora, né? Maconha, esses negócioø. O povo fi ca assim, meio assim, doidão. Eu acho engraçado. Até os cantoø mesmo, né? E olhe que eu escuto muito ráydo, aí, as músicaø quando toca, aí as voz dele é tudo diferente da do povo. Acho é engraçado.

E* Você conhece alguém que fala diferente de você?I* A minha patroa, que ela num é daqui, não minha patroa. Ela é de

Minas. Ela fala muito “UAI”, tudo dela é “UAI”, tem hora que enche, sabe? Mas a gente num pode dizeø nada, né? E tem umas muléø lá da rua também fala diferente, só porque foi pøo Rio de Janeiro, passou dois mês, aí chegou falanøo carioca. Chegou assopranøo, quem já se viu isso? Se pelo menos tivesse passado cinco anoø, oito anoø, mayø não. Vai, passou dois mês lá na favela e veio assopranøo pøo lado da gente ,é um povo besta!

A informante tem consciência de que há traços que diferenciam os falares, tais traços vão de marcadores discursivos, como o “uai” dos mineiros, a traços prosódicos, como quando se refere ao falar das pessoas de Recife e da Bahia. Quando se refere ao falar do Rio de Janeiro, menciona algo bastante interessante. Embora não utilize a terminologia adequada, ela tem consciência de que a palatalização das fricativas é uma marca dessa comunidade. Esse processo é identifi cado como “assoprano”.

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Em relação ao uso das oclusivas dentais, mesmo em ambientes que favoreceriam a aplicação da reagra de palatalização, como “diferente”, “dizeno”, “di”, “triste”, “gente”, “tivesse” etc., a variação não se dá. A preferência é sempre pela forma dental.

O mesmo vai ocorrer quando passa para o estilo casual, como no Excerto 2.

Excerto 1: Estilo casualE* Você já esteve em uma situação difícil que precisou da ajuda de

alguém?I* Já.E* Como foi?I* Foi lá na casa da minha patroa. O: bujão de gás, né? Eu fui trocaø

aí eu sei lá o que foi que eu mexi lá errado que. É, logo quando eu + comecei a trabalhaø. Aí o bujão lá, né? Faltou o gáys, tava a panela no fogo, a panela de pressão, né? Tava nesse dia eu tava fazenøo uma fava. Ela ia chamaø uns amigoø dela pøa lá, né, tudinho pøa comeø, quando veø faltou o gáys, aí eu fui veø se eu trocava, né? Tirei o bujão acabado e peguei o cheio, mayø eu num sei num sei se foi a rosca [do] + da manguêra do bujão, né? Eu num sei como é que chama aquilo, sei lá o que foi que deu na na rosca! Eu sei que começou a saiø aquele catingão por dentøo de casa e começou a fazeø aquele barúi, né? aquele “xiii”! Eu sai danada gritanøo, chamei a muléø assim da casa vizinha, aí a muléø correu, aí “Abra a janela! Abra a janela!” pøo gáys saiø, né? Vai que qualqueø coisa ali dava o maior incêndio. Aí eu peguei corri pro meio da rua, fi quei gritando, chamandøo os homeø, né? Pøa veø se parava alguém pra ajudarø a gente; e a muléø lá dentøo sozinha! Eu, com um medo danado, deixei a muléø lá. Quando veø, num sei se você já passou ali num tem o quartel? Aí fi ca os guardaø, né? Passanøo.

Palavras como “dia”, “tudinho”, “tirei”, “catingão”, “gente” não sofrem aplicação da regra de palatalização.

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Comparando a fala dos informantes do sexo femininos, observamos que, no que concerne ao uso das oclusivas dentais e as diferenças de estilo, não há o que assinalarmos, uma vez que, na passagem do estilo formal para o casual, não há implementação da regra considerada padrão nacional, mesmo que dela tenha consciência a falante com mais de onze anos de escolarização.

A partir dos excertos selecionados aleatoriamente, retomamos uma de nossas questões: sera que os falantes têm consciência de que estariam diante de estilos diferenciados, o primeiro como formal e o segundo como casual? Nossa resposta à pergunta é não. A avaliação da mudança de estilo, nesse caso, é percebida apenas pelo pesquisador.

Vejamos, a seguir, como se comportam os informantes do sexo masculino.

O primeiro deles tem mais de onze anos de escolarização e está na faixa etária correspondente a mais de 50 anos.

Excertos selecionados têm as mesmas características daqueles selecionados para os informantes do sexo feminino.

No que concerne à aplicação da regra de palatalização, o informante não a aplica em nenhum momento, mesmo quando o ambiente é favorável, como em casos do tipo “exigente”, “de”, “diz”, “dizer”, “tipo”, “ambiente” etc. O fato de estar usando um estilo considerado formal não interfere no uso.

Excerto 1: Estilo FormalE* O que você acha da sua forma de falar?I* A minha forma de falar é tão simples, moça. Eu não gosto de

complicar as coisas não. Eu gosto de falar as coisas que vêm de dentro. Agora, pra escrever eu sou mais exigente comigo mesmo, eu sou mais mais caprichoso. Mas pra falar eu eu eu falo assim simples, às vezes eu falo até até como se chama, gíria. Eu falo gíria, vicio de linguagem eu uso. Porque quando eu tô, ás vezes num determinado setor que eu vejo, que a pessoa diz uma palavra, que é a palavra, que eu [conhe] que eu vejo mais é que diz assim: “Ai, essa coisa tá tão rim!”. Rim, eu acho que rim

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(gaguejo) é esse órgão que a gente tem né? Mas ninguém sabe aprender dizer ruim. Mas se eu quiser dizer na hora, eu digo é [rui] eu aí eu paro. Aí eu tenho que dizer rim também. Quer dizer é esse tipo de coisas. Que eu conheço muitas palavras e que eu não uso, a não ser que eu esteja dentro dum dum setor seleto, que peça, que exija, aí eu falo do jeito que o ambiente me permitir. Mas se não for isso eu não falo comumente. Acho que você vai ver na entrevista como eu falo, né?

Se deixarmos de considerar a proposta laboviana para a variação estilística, observamos nesse excerto que a fala do informante se encaixa tanto na proposta de Bell (1984) quanto na proposta de Eckert (2000). Ele tem consciência de que pode alterar sua forma de falar de acordo com o ambiente. Ou seja, de acordo com a audiência, o que também pode ser entendida como uma possível comunidade de prática.

Essa fl exibilidade consciente, ao contrário do que vimos anteriormente com as falantes do sexo feminino, denota que o falante tem domínio sobre a variação estilística.

Ao mudarmos do estilo formal para o casual, não houve alteração quanto ao uso das oclusivas dentais, uma vez que a regra de palatalização não foi aplicada.

Excerto 2: Estilo casualE* Você já perdeu alguém muito querido?I* Já.E* Como foi?I* Dentro de dentro de um mês eu perdi duas pessoas queridas.

Primeiramente, perdi meu pai em Setembro, vinte e um de setembro de oitenta e quatro. Meu pai foi fazer uma operação, ela já com oitenta e três anos e faleceu. Quando foi em outubro, vinte e um, a minha esposa já tava hospitalizada no Prontocor. Perdi também esposa. E com seis meses eu perdi um irmão, que era fotógrafo lá do IPEP; trabalhava no IPEP, naquele setor de raio X. Mas meu irmão morreu de graça, porque ele não se protegia. Ele batia na radiografi a, mas não se protegia com aquele com aquele colete de de chumbo. Foi as três pessoas que que [ain]

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hoje ainda tenho memórias deles. Ainda e a gente ainda chora, às vezes [ain] nas horas vagas nós chora por eles. Dez anos, né?\

Palavras como “perdi”, “primeiramente”, “vinte”, “batia” etc. têm sempre as oclusivas dentais realizadas como tais, sem aplicação da regra de palatalização. Isto nos leva a crer que, para o informante, a mudança de estilo não é percebida ou que o fenômeno linguístico controlado lhe é indiferente, podendo, assim, estar abaixo do nível de consciência.

O segundo informante não é escolarizado e está na faixa etária de 15 a 25 anos.

Pelo excerto selecionado, classifi cado como estilo formal, constatamos que, em palavras como “diferente” e “educadamente”, não foi aplicada a regra de palatalização.

Fica evidente pelo excerto, que o falante não tem consciência de qualquer aspecto segmental que identifi que os falares brasileiros, como aconteceu com os falantes anteriores. A sua concepção de falar bem está atrelado à forma educada de falar. Sua avaliação, pois, está ligada a questões mais estéticas do que de qualquer outra ordem.

Excerto 1: estilo formalE* Você acha que fala diferente das ô0tras pessoas daque de João

Pessoa?I* Que eu falo diferente? Eu me0mo não. Num acho não.E* E do resto dos brasileiros, você fala diferente?I* Não. É mai0 me0ó0 fi ca0 falan0o do que fi ca0 sen0o mudo, fi ca0

calado.E* O que você mudaria no seu jeito de falar?I* Eu? Eu num + num mudaria nada. Minha voyz é bonita, eu acho minha

voy0 bonita + só.E* Todos os brasileiros falam do mesmo jeito?I* Fala0. Fala0, eu acho que fala0. Fala, brasile0ro é brasile0ro.E* Você conhece alguém que fala diferente de você?I* Não, ãh. ãh.

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E* O que é falar bem para você?I* Fala0 bem? Fala0 bem é a pessoa fala0 direito cum as pessoa0, fala0

bonito. Fala0 educadamente.O mesmo comportamento podemos constatar no Excerto 2 em

palavras como “tinha”, “sete”, “gente” etc.

Excerto 2: estilo casualE* Como foi a sua infância?I* Infância? Eu comecei logo quan0o eu,parece que eu tinha uns +

sete ano0. Eu comecei logo lavan0 carro, é: vô0 dize0 logo p0á você aqui, que isso vai fi ca0 só prá gente me0mo + rô0bei um pô0quinho, ali no Centro Administrativo, ali sabe? E agora tô nisso. Comecei a trabalhá0.

E* Que brincadeiras você mais gostava na infância?I* Futebol.E* E que estória você mais gostava de ô0vir? Contar estória de: que

pessoal mais velho contava?I* Ah! Era de umas vaca0, umas vaca0 que tinha0 lá, umas vaca0 +

umas vaca0 que tinha uns bezerro0. Fay0 tanto tempo, may0 era uma coisa de uma vaca aí que tinha uns bezerro0 aí de repente + o bode queria também mama0 na vaca aí aconteceu um bocado de coisa aí, may0 fay0 tanto tempo.

E* Conte alguma aventura da sua infância.I* Ah! Foi quan0o eu rô0bei a prime0ra veyz. Le:vei uma carre0ra +

Foru0 me de0xa0 quase em casa, a polícia ainda deu umas pancada0 em mim, sabe, porque eu me0mo, eu me0mo cheguei cheguei, aí a senhora + vô0 dize0 mai0 como foi. Eu cheguei, a senhora tava passan0o, eu fui e peguei a bolsa dela, saí corren0o. Aí o policial + sairu0 corren0o atray0 de mim, meteu o cacetete na minha boca que quebro0 meu dente. Aí: foi a pió0 aventura. Pió0 aventura que eu [tamb] passei foi essa.

Considerando o processo de palatalização das oclusivas dentais entre os informantes selecionados, constatamos que ele não é aplicado por nenhum deles, o que signifi ca que o uso da variante detal é categórico.

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Assim, a mudança de estilo, no moldes labovianos, não condiciona a aplicação da regra.

Dos quatro falantes avaliados, apenas um, o informante do sexo feminino e com mais anos de escolarização, demonstra ter consciência de que a palatalização das oclusivas dentais é um traço diferenciador de falares. Os demais não demonstram ter consciência dois possíveis usos presentes na comunidade.

Retomando as hipóteses formuladas na Introdução, um dos falantes, aquele do sexo masculino e com mais anos de escolarização ratifi ca, em parte, a hipótese de que a mudança de estilo do falante não está condicionada aos elementos da situação de fala, mas ao uso de seus próprios recursos estilísticos. Ele tem consciência de que a formalidade e a audiência podem moldar a sua maneira de falar, e, além disso, usa seus recursos variáveis dependendo do ambiente em que esteja. Dessa forma, ele também ratifi ca a segunda hipótese, quando usa sua fala para marcar sua identidade.

Quanto a essa segunda hipóstese, além deste último informante, também os informantes do sexo feminino a ratifi cam. As duas falantes marcam suas identidades usando suas maneiras de falar características de uma determinada comunidade.

Em relação à terceira hipótese, aquela que diz respeito à consciência correlacionada aos anos de escolarização, em parte ela é ratifi cada, uma vez que dos quatro informantes, três demonstram ter essa consicência.

O que concluímos em relação à análise do processo de palatalização das oclusivas dentais é que, embora estejamos diante de uma regra que se aplica em boa parte do território brasileiro, ela pode ainda estar abaixo do nível de consciência dos informantes na comunidade paraibana. Também abaixo do nível de consciência pode estar a variação estilística, se a considerarmos apenas na perspectiva laboviana.

Não podemos deixar de frisar que os aspectos contextuais e situacionais podem ter uma forte infl uência na seleção do uso, como bem demonstra o segundo informante, que utiliza a língua para construir a sua identidade.

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3.2 Sobre o uso do rótico

Para análise do rótico, utilizamos dados de quatro paraibanos residentes em São Paulo há mais de cinco anos. Desses, dois são do sexo masculino e dois do sexo feminino. A idade varia entre 36 e 52 anos. Dos quatro, dois têm Curso Fundamental Incompleto (um do sexo feminino) e outro do sexo masculino). Dos outros dois, o do sexo masculino tem o segundo grau completo e o do sexo feminino tem Curso Superior completo. A ideia é opor os que têm mais anos de escolarização aos que têm menos anos.

Como em relação ao uso das oclusivas dentais, selecionamos excertos caracterizados de acordo com a abordagem laboviana sobre estilo, classifi cando-os como casual e formal. Os referentes ao estilo casual tratam de situações cotidianas, e os referentes ao estilo formal dizem respeito ao uso da língua.

A esses dados aplicamos os mesmo pressupostos utilizados em relação às oclusivas dentais, buscando responder às perguntas formuladas na Introdução e testar as hipóteses que ali se encontram.

O primeiro informante é do sexo masculino, tem 36 anos e concluiu os segundo grau. Vive em São Paulo há 23 anos.

Uma avaliação geral dos excertos selecionados nos permitem concluir que ele não altera o uso do rótico, substituindo a forma aspirada, marca do falar paraibano, pelo tepe, marca do falar paulistano. Independentemente de o estilo ser casual ou formal, seu uso é categórico. Isto nos leva a concluir que, pelo menos em relação ao rótico, não se deu ainda um processo de acomodação.

Excerto 1: estilo casualDoc3 – O que te fez vir pra cá?Inf – Olha, eu, eu tinha um sonho bobo de criança, assim, era criado

pelo meus avós, e... no sítio aonde não tinha luz, a luz era lampião, fogo

3 Nas entrevistas dos paraibanos residentes em São Paulo, “Doc” corresponde a documentador e “Inf ” corresponde a informante.

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de conzinhar era fogo a lenha, essas coisas assim né, e o meu maior sonho era possuir uma televisão, o qual eu lembro até uma uma coisa que... tinha uns vizinho... uns vizinho mais ou menos uns quinze vinte quilômetro dali, de distância, que a gente ia lá pra gente assistir, só que o dono não gostava muito que era muita criança (es)tava indo querendo assistir, então ele colocava a gente pra fora e a gente fi cava disputando a fresta da da porta, nem sei eu tinha o que, uns sete ano por aí, então era aquela brigaiada da molecada, imagina só aqueles moleque tudo brigando pelo um buraquinho, pa cada um assistir um pouquinho, e isso o cara abria a porta, corria atrás da gente, era uma loucura, então eu fui crescendo e a minha imaginação era de um dia possuir uma televisão pra mim sozinho. Então, quando o os meus pais morando aqui éh... éh... fez um convite pra mim passar umas férias aqui, eu vim no intuito de... trabalhar, de comprar essa televisão e de ir embora de volta né, que meus meus avós (es)tava lá, eu era acostumado a morar com eles, então eu vim e realmente eu comprei a televisão, mas nesse meio-termo foi aonde faleceu o meus avós e então eu não tive mais... éh gosto de voltar a morar lá.

Palavras como “porta”, que aparece duas vezes, e “termo” são realizadas com o rótico aspirado. O mesmo acontece com a realização de palavras como “forma”, “vergonha”, “conversando”, “participar” que estão presentes no Excerto 2 relativo ao estilo formal.

Excerto 2: estilo formalDoc – Quando você conversa com alguém (vo)cê presta atenção no

jeito que a pessoa fala?Inf – Sim, sim. Eu aprendi muito aqui na na Letras, porque assim,

você, como eu te falei, tem uma variação linguística que você trabalha na, sa/ trabalhei em obras, trabalhei de auxiliar no no Mappin, então, tudo tem uma forma de de expressão, e quando eu trabalhei na Letra, na, aqui na USP, a variação ela ela é totalmente mais consistente, mais correta, então nesse ponto aí, eu, toda vez eu fui atencioso, mas aqui... eu sou mais.

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Doc – E conversar com professores também, né.Inf – Exatamente, mas aí aquela coisa, éh você... que tem aquela, a a

minha variação em casa é uma e aqui é outra, mas você chega uma hora que você tem que falar... a tua, do do teu jeito, desde que seja correto, né. Que é claro, tem, conhece palavras que signifi ca várias palavras, então é o seguinte, eu falo do meu jeito desde que seja correto, claro dou uma pensadinha e falo o o correto, e não tenho vergonha, o eu antigamente eu tinha, sentar assim (es)ta(r) conversando com você, com algum professor, e o que me ajudou foi participar dessas comissão, dessas coisa, ter chefe de de, da todas as áreas (tosse). Então, éh, outro sotaque, então você vai, (vo)cê vai prestando atenção e isso eu tenho melhorado muito a forma de de, sabe, de lingüisticamente (es)ta(r) conversando entre professores, às vezes, assim em casa eu (es)to(u) conversando, olha “mas que é isso que (vo)cê (es)tá falando?” (...), assim, aí eu volto (tosse), mas é muito bom isso.

Se observarmos o excerto 2, o falante assume que, em ambientes diferenciados, utiliza a língua também de forma diferente. Isso respalda tanto a proposta de Bell (1984) quanto a de Exckert (2000). Seu ambiente de trabalho e sua casa constituem duas comunidades de práticas diferentes, e, por sua vez, seus destinatários também o são.

A sua alternância não está, podemos inferir, vinculada a aspectos segmentais, mas, principalmente, a aspectos lexicais, considerando que seus familiares não devem ter o domínio do mesmo léxico que ele emprega quando está no ambiente de trabalho.

Algo também interessante a acrescentar é o fato de o informante ter consciência de que aqueles que o rodeiam no ambiente de trabalho têm sotaque diferente do seu, e ele o avalia poistivamente, o que pode conduzir a uma possível mudança futuramente.

O segundo informante, também do sexo masculino, tem 30 anos, possui o Curso Fundamental Incompleto e reside em São Paulo há quinze anos.

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Diferente do informante anterior, ele alterna o uso do rótico, tanto no estilo casual, em palavras como “verdade”, “porque”, “irmão”, “divergência”, como no estilo formal, a exemplo de palavras como “porque”, “fi rma”, “argentino”, nordestina”. Para esse mereceria uma avaliação quantitativa, o que não fi zemos.

Excerto 1: estilo casualInf: É, na verdade a minha vida na Paraíba ela foi um pouco meio

complexa né, porque a minha mãe teve um... eu fora do casamento dela e foi o último fi lho dela, então isso criou tipo uma... como se dize(0) assim uma rejeição pelos outros irmão por não ser do mesmo pai e da mesma mãe

Doc: AhãInf: E nesse meio tempo a gente... o meu pai também não quis

saber de mim, minha mãe também não desamparou, aí eu fi quei com a minha mãe até os quinze e desde os nove saí pra trabalhar pra também ajudar minha mãe que o outro pai também deixou pelo fato dela ter... acontecido essa divergência né...

Doc: Hum humInf: Enfi m, daí a gente... eu comecei a trabalhar desde os nove e

aos quinze vim pra São Paulo pra casa da minha cunhada, vim passear, conhecer... aí fi quei por aqui

Uma avaliação mais cuidadosa desse informante leva-nos a concluir que ele tem sofrido forte infl uência dos diferentes ambientes em que vive, principalmente referente ao trabalho. O seu relacionamento com pessoas de origens diversas pode ser um fator que o está conduzindo mais rápido a um processo de mudança, como pode ser observado no Excerto 2.

Excerto 2: estilo formalE: Entendi, e aqui no Brasil, qual é o sotaque que você mais gosta,

quando você ouve alguém falando assim do sul, do norte, do nordeste...

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I: Eu acho assim... aqui em São Paulo eu acho muito difícil você ter um sotaque específi co. Porque você trabalha com gente de todos os país, de todos os lugares... tem, tem... na fi rma tem japonês, coreano, argentino... que a gente não gosta, que devia ta lá na Argentina e não aqui no Brasil, mas tem em todo lugar, então não tem assim uma cultura específi ca, uma cultura específi ca que eu prezo muito é a minha cultura de ... das minhas comida nordestina que são tradição, que eu não deixo de comer não tem como

E: Mas quando você ouve alguém falando você assim, você gosta mais do sotaque da Paraíba do que de são Paulo?

I: Eu acho que assim... eu não.... o que eu gosto mais do sotaque é do paulista, porque eu acho que o paulista fala malh/ melhor, fi ca até mais fácil de você até falar com uma pessoa que fale melhor, que você entende mais.

Interessante salientarmos que ele preza a cultura nordestina, mas avalia negativamente a maneira como seus conterrâneos falam. Sotaque e língua para ele se confundem. O fato de ele gostar do sotaque paulista contribui para o processo de acomodação. Considerando que o uso do rótico pelo paulistano é bem diferente daquele empregado por paraibanos, isso pode ser mais um fator para justifi car o processo de variação desse informante.

Mais uma vez, a comunidade de prática a que o falante pertence pode ser um fator decisivo no processo de variação, muito mais do que o nível de formalidade ou informalidade da língua empregada.

O terceiro informante é do sexo femino, tem 45 anos, possui Curso Superior Completo e reside em São Paulo há mais de cinco anos.

Independentemente de o estilo ser casual ou formal, ela não usa, em momento algum, o rótico paulistano. Categoricamente, seu uso é sempre o rótico aspirado, como falado na Paraíba. Palavras como “acordo”, “porque”, “mercado”, “acordou”, com contextos favoráveis ao emprego do tepe, e encontradas no Excerto 1, classifi cado como estilo casual, são realizadas com o rótico aspirado.

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O mesmo acontece com palavras como “percebo”, “percebe”, “porta”, presentes no Excerto 2, classifi cado como estilo formal.

Excerto 1: estilo casualInf. Eu vim pra São Paulo por pelo pelo coração né? É que eu casei

e... tinha essa indefi nição de de ou eu vinha morar aqui ou P. ia morar lá e fi cou a gente a gente entrou em acordo que fi caria melhor que eu viesse porque era mais fácil de eu arrumar emprego aqui do que ele arranjar lá porque a área dele lá é muito restrita qualquer área a minha também era mas eu já tinha um emprego lá mas o meu emprego assim em qualquer lugar eu podia arranjar o dele é muito especifi co e lá não tem muito mercado então a gente acordou que ao invés de ele ir pra lá eu vinha morar aqui em São Paulo

Essa informante tem plena consciência de que o “rótico” é a caracteristica mais marcante da fala de São Paulo, como podemos ver no Excerto 2, mas ela se mantém fi el àquele empregado na sua comunidade de origem.

Excerto 2: estilo formalDoc: Como é o da Paraíba? Você saberia descrever pra mim como é

o sotaque da Paraíba?Inf: Acho que é arrastado é assim é bem cantado né? É diferente

do baiano né? Não sei se você já viu. O baiano ele fala como é que o baiano fala é diferente o da gente o meu é bem arrastado quando eu ouço eu falando eu não percebo muito mas quando eu ouço um paraibano falando na televisão a gente percebe né? Olha só a gente fala assim mesmo arrastadinho assim meio cantado

Doc: E do pessoal de São Paulo o que você acha do que eles falam?Inf: Acho bonito acho bonito. Eu acho bonito e é como eu te falei

eu não acho que o paulista tenha muito sotaqueDoc: Que que vocês acha que é a característica mais marcante da

pessoa aqui de São Paulo na fala?

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Inf: Na fala? É é o r que tem o som de /re/ né? É por exemplo poRta né que eu digo poRta ai aqui diz porta né?

Avaliando o Excerto 2, podemos constatar que a informante tem consciência da diferenciação prosódica que caracteriza os diferentes falares. Seu uso linguístico é consciente, e o fato de não discriminar falares, avaliando-os sempre positivamente pode estar contribuindo para que ela não assimile a marca local. Diferente, por exemplo, do que acontece com o segundo informante.

O quarto e último informante é do sexo feminino, tem 52 anos, possui Curso Fundamental Incompleto e reside em São Paulo há 16 anos.

Essa informante, como o segundo, alterna o uso do rótico, entre o tepe e o aspirado, independentemente de o estilo ser casual ou formal.

Palavras como “parque”, “parquinho”, “jardim”, “carpe”, “guardinha” etc., presentes no Excerto 1, ilustram o processo de variação. Assim, como “porque”, “norte”, “certa”, “certo”, “porta”, presentes no Excerto 2, característico do estilo formal. Essa informante também merecia ter seus dados tratados quantitativamente.

Excerto 1: estilo casualInf:Fica aqui no Parque do Pedroso, não tem o Parquinho do

Pedroso, ele trabalha do lado.Doc: E o que que ele faz como jardineiro?Inf:Ele faz jardim, carpe, p(r)anta...Doc.:E faz tempo que ele trabalha aíInf.: Faz vinte e sete anosDoc:Vinte e sete anos? Como jardineiro?Doc: E as suas fi lhas, trabalham?Inf: Ah, essa agora casou não tá trabalhando e essa outra também ela

fez a guardinha, trabalhou dois anos, agora ela, ela saiu, né, completou os dois ano, não tinha vaga pra ela fi car trabalhando, aí ela fi cou aguardando, agora tá esperando eles chamarem de novo pra trabalhar.

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Aí ela fez entrevista a semana passada tá esperando pra ver se vai chamar pra traba(i)ar...

A informante avalia negativamente o falar do “norte”, que corresponde ao falar “nordestino”, mas tem difi culdade de dizer o que o torna diferente do falar paulistano. Quando o faz, refere-se ao léxico, ilustrando com a forma “butar”, muito comum entre paraibanos.

Excerto 2: estilo formal Doc.: Você presta atenção no quê? No jeito que elas pronunciam as

letras?Ent.: É, no jeito que elas... eu presto atenção assim no jeito que elas

fala, né, pra gente não falar errado, né, porque o povo assim do norte fala muito errado, né, muita coisa errada, né

Doc.: O que que é errado?Ent.: Palavra errada, não fala a, não pronuncia a palavra certa, né...

eles sempre pronuncia a palavra erradaDoc.: Vamos pensar numa palavra que pode... que o pessoal fala

errado...Ent.: É tem, que é mais fácil assim que a gente lembra é esse negócio

assim que aqui a gente fala “ah, vou por, vou botar essa coisa aqui”, né, lá não, lá eles fala é...ai, como que é...é “butá”, é “butá”, você acha que “buta” tá certo “butá”? É, não sei, eu...

Ent.: É, é mais o que eu lembro assim, néDoc.: Por exemplo “por”...Entr.: É, “por” pra eles lá é galinha, né, não tem .... lá não existe, né.Doc.: Não se usa lá?Ent.: Não, não usaDoc.: É “butá”Ent.: É, tem que “butá”Doc.: E...deixa eu ver...como que você chama isso daqui? Como que

você fala isso daqui?Ent.: Ah... é armário.

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Doc.: É, todo ele é o armário, e essa parte?Ent.: Ah...Doc.: Só essa parte aqui...Ent.: Ah...Doc.: Isso que eu fecho...Ent.: Ah... é a portaDoc.: Então...aquele é o armário, esse aqui é a...Ent.: A porta ... lá a gente chama porta, né, não sei como é porta, néDoc.: É, é porta, né. E aqui em São Paulo,como falam?Ent.: Não é porta também?Doc.: É, é o mesmo nome, néEnt.: Abridor, néDoc.: Não, é o mesmo nome, mas você acha que pronuncia igual?Ent.: Ah...eu acho que é igual, né?Doc.: É igual? Fala de novo?Ent.: É porta, né

Podemos constatar a partir do Excerto 2, que a informante não demonstra ter consciência da variação dialetal entre as comunidades paraibana e paulistana, quando questionada sobre o uso do rótico na palavra “porta”. Isso pode ser um indício de que a sua variação no uso está abaixo do nível da consciência.

Em relação ao uso dos róticos pelos paraibanos residentes em São Paulo há mais de cinco anos, constatamos que aqueles com mais anos de escolarização são os que não o empregam variavelmente, ao contrário daqueles com menos anos de escolarização.

São também os que têm mais anos de escolarização que demonstram ter consciência de que o rótico tepe é uma marca do falar paulistano.

Outro aspecto que constatamos é que a variação estilística entre os falantes menos escolarizados não infl uencia a alternância de uso, ela ocorre independentemente de o estilo ser casual ou formal.

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A postura dos informantes sobre o uso da língua, principalmente os do sexo masculino, é um forte indício de que o contexto social é um dos principais favorecedores na escolha da variação estilística.

Considerações fi nais

Os dados avaliados nos levam a concluir que o fato de o estilo ser formal ou casual não condiciona a escolha de uma ou outra variável, isto tanto em relação às oclusivas dentais entre paraibanos residentes em João Pessoa, como em relação aos róticos entre paraibanos residentes em São Paulo (capital).

Dos dados observados, fi ca clara a diferença de postura avaliativa entre falantes com mais e com menos anos de escolarização. Aspectos segmentais que envolvem, por exemplo, os róticos e as oclusivas dentais são percebidos mais facilmente pelos falantes com mais anos de escolarização. de escolarizados. Os menos escolarizados, por sua vez, percebem com mais facilidade aspectos prosódicos que marcam as diferenças dialetais.

A alternância de uso, como alguns informantes demonstraram, está muito mais correlacionada ao ambiente, à situação, ao contexto social. Isto ratifi ca a proposta de Eckert e, em parte, a proposta de Alan Bell.

O que podemos concluir do que avaliamos é que a compreensão da variação estilística passa pela necessidade de buscar outras explicações alternativas, associadas, por sua vez, ao que norteia a teoria da acomodação e os estudos atitudinais. Isso associado a uma postura metodológica específi ca.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 189-208. 1ª parte 2011

DESENVOLVIMENTO LINGUÍSTICO NA AQUISIÇÃO DE PORTUGUÊS L2 (ESCRITO) POR SURDOS: A ESTRUTURA DO SINTAGMA NOMINAL

Heloisa Maria Moreira Lima-SALLES Universidade de Brasília (UnB)

Lilian Coelho PIRES Universidade de Brasília (UnB)

RESUMO

O estudo examina a interlíngua de sinalizantes da Língua de Sinais Brasileira aprendizes de português como segunda língua, considerando, em particular manifestação de defi nidos (no singular e no plural) e de nominais nus (no singular e no plural). A alta frequência de nominal nu no singular é analisada como transferência de L1, já que a LSB não possui artigos (defi nidos). Partindo-se da hipótese de que a categoria de número é interpretável no DP defi nido, propõe-se que o desenvolvimento linguístico ocorre mediante o mapeamento de propriedades morfo(fono)lógicas do artigo defi nido (plural) na projeção do núcleo funcional Número.

ABSTRACT

The study examines the so-called interlanguage of learners of Portuguese as a second language (L2) who have the Brazilian Sign Language (LSB) as their native language (L1), considering the occurrence of defi nite (singular and plural) and bare nouns (singular e plural). The high frequence of singular bare nouns is analysed as a transfer of L1 properties, given that LSB does not have defi nite articles. We assume the hypothesis that only interpretable (formal) features are accessible in (second) language acquisition, the mapping of the morphophonological properties of the DP being obtained through the Number category, which is as interpretable.

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PALAVRAS-CHAVE

Aquisição de Segunda Língua (AL2). Defi nitude. Língua de Sinais Brasileira.. Nominal Nu. Número.

KEY-WORDS

Bare Noun. Brazilian Sign Language. Defi niteness. Number. Second Language Acquisition (AL2).

Introdução

Neste trabalho, examinamos a estrutura do sintagma nominal/determinante (DP) na interlíngua de sinalizantes da Língua de Sinais Brasileira (L1), na aquisição de português (escrito) como segunda língua (L2). Os dados foram obtidos por meio de atividade didático-pedagógica com 30 alunos do Ensino Médio, sinalizantes da LSB, em três escolas da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. A atividade consistiu em uma produção escrita em português, em que se abordava tema extraído do componente curricular Biologia. Todos participantes surdos são fl uentes na LSB. O conhecimento de português (L2) (escrito), por sua vez, é obtido no contexto da educação formal, no processo de escolarização. O problema lógico da aquisição de L2 formula-se com base na hipótese de que o conhecimento linguístico dos falantes não-nativos, defi nido como as gramáticas subjacentes da interlíngua, exibe propriedades das línguas naturais (cf. WHITE, 1989, 2003), o que permite supor que seja determinado pela Gramática Universal (cf. CHOMSKY, 1986).

Em particular, é examinada a interlíngua do surdo (aprendiz de português L2) em relação à estruturação do DP, em que se identifi cam o nominal nu no singular e no plural), e o nominal defi nido, no singular e no plural, conforme ilustrado em (1) a (4):

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(1) [(...) peixe morreu tudo acabou peixe não tem nada peixe] (SE27p)

(2) [Lá no Lagoa Paranoá tem muitos peixes morrendo, porque tem cheio de esgotos (...)] (SEp17)

(3) [O peixe prescisa de água saldavel para sobrevive e no momento não tinho foi por isso que aconteceu o mal cheiro, a poluiçâo e a mortalidade do peixes.] (SCp16)

(4) [As algas gostam muito das esgotos, se as algos alimentar os esgotos e poderá aumentar a taxa de crescimento e aumentar a substância tóxica, e os peixes podem morrer (...)] (SE11p)

Constata-se, nos dados, alta frequência do nominal nu (singular e plural), a qual é analisada como efeito da transferência da L1, já que a LSB não possui artigos. Na sequência decrescente da taxa de frequência, consta o nominal defi nido plural e por último o defi nido singular.

Os dados do grupo controle foram colhidos em evento semelhante, envolvendo ouvintes, falantes nativos de português, matriculados no 1º. Ano do Ensino Médio, em contexto de ensino-aprendizagem do componente curricular Biologia, identifi cando-se igualmente uso variável da estrutura do DP, a saber o nominal nu, no singular e no plural, e o nominal defi nido, no singular e plural, conforme ilustrado nos exemplos (5) a (8):

(5) [petroleo caro, aumenta a produção de fumaça por pessoas pobres] (EO7p)

(6) [(...) os preços do petróleo infl uencia porque eles querem conpar e pagan caro e eles usam para abastecer carros] (CO22p)

(7) [Quando o preço do petróleo diminui as fábricas tendem a usar mais o petróleo (...)] (EO3p)

(8) [O aumento do preço nos postos de gasolina faz com que a população utilize os ônibus e menos os carros. (CO17p)

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Na análise dos dados de AL2, adota-se a hipótese de Tsimpli (2003), segundo a qual os padrões de opcionalidade da interlíngua na aquisição da L2 podem ser explicados em termos da oposição entre traços formais interpretáveis e não-interpretáveis – uma versão fraca da hipótese que postula não ser possível refi xação de valores paramétricos, estando o aprendiz deterministicamente limitado a operar com os parâmetros da L1 (acesso parcial), em associação com mecanismos de aprendizagem (cf. TSIMPLI; ROUSSOU, 1991; SMITH; TSIMPLI, 1995). Nessa abordagem, o mapeamento de traços formais abstratos na estrutura morfo(fono)lógica na AL2 é restrito a um subconjunto de traços, a saber aqueles em que se identifi ca aporte de interpretatibilidade. Inversamente, traços formais não-interpretáveis resistem à refi xação paramétrica.

Nesse sentido, em relação a traços gramaticalizados na língua alvo e não na L1 (ou marcados para valores paramétricos diferentes na L1 e na L2), a previsão é a de que serão encontrados padrões diferenciais de desenvolvimento na aquisição de traços formais não-interpretáveis, quando comparados com traços interpretáveis. Os dados da interlíngua dos sinalizantes examinados no presente estudo vêm confi rmar essa hipótese: assumindo-se que o traço formal de número é interpretável no DP, propõe-se que o desenvolvimento linguístico ocorre mediante o mapeamento de propriedades morfo(fono)lógicas do artigo defi nido (plural) na projeção do núcleo funcional Número1.

A discussão será estruturada como a seguir: na seção 1, apresenta-se o quadro teórico, particularmente no que se refere às condições de estruturação do DP; na seção 2, examinam-se as propriedades do DP em libras e em português, consideradas, respectivamente, a L1 e L2 do

1 Nesse enfoque, o estudo retoma estudo de Salles e Chan-Vianna (2010), no que se refere à metodologia de coleta de dados e recorte temático, por um lado, e ao enquadramento teórico, por outro, sendo os resultados comparáveis (parcialmente). Além de ampliar a base de dados, a presente análise confi rma a hipótese adotada no estudo anterior. Ressalta-se, porém, que o presente estudo amplia a discussão, detalhando aspectos como o tipo semântico do nominal, no que se refere à cardinalidade, considerando a oposição contável vs. não-contável, tendo em vista o papel atribuído à categoria formal de Número na análise dos dados.

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aprendiz; na seção 3, são discutidos os dados da interlíngua, e na seção 4, são apresentadas as considerações fi nais.

1. Quadro teórico

Conforme mencionado, a análise fundamenta-se na hipótese de que a interpretabilidade dos traços formais que constituem o léxico funcional afeta a aquisição das propriedades morfossintáticas da língua-alvo, de que resulta a transferência das escolhas paramétricas da L1 para a gramática da L2. Em particular, assume-se, seguindo Tsimpli (1999, 2003), Tsimpli e Stavrakaki (1999), Lopes e Quadros (2005), que a interpretabilidade dos traços formais das categorias sintáticas envolvidas produz uma assimetria na AL2: traços não-interpretáveis na L1 resistem à refi xação de seus valores, enquanto traços interpretáveis gramaticalizados na L2, mas não na L1, e traços interpretáveis que apresentam gramaticalização diferente na L1 e na L2 são adquiridos, mediante etapas de desenvolvimento, a serem determinadas no âmbito da pesquisa.

Assume-se que o nominal nu envolve licenciamento gramatical, o que implica a presença de categorias funcionais na projeção estendida do NP, conforme proposto em vários estudos (cf. SCHMITT; MUNN, 1999, 2003). Nesse sentido, a presença de categorias funcionais na projeção do nominal nu pressupõe, por hipótese, as condições necessárias para o licenciamento das diferentes confi gurações do DP. Tal abordagem desenvolve-se no âmbito da chamada ‘hipótese DP’, em que se postula a projeção da categoria D (determinante), cujas propriedades estão associadas à defi nitude e à codifi cação da referência do nominal realizado pelo NP na posição de complemento (cf. ABNEY 1987; LONGOBARDI 1994, entre outros). Assume-se ainda a projeção sintática de traços phi (de pessoa, gênero e número), em categorias funcionais – Agr e Num –, conforme indicado em (9):

(9) [DP

D [AgrP

Agr [NumP

Num [NP

N ]]]]

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Nessa confi guração, é projetada a estrutura do ‘defi nido genérico’, sendo o artigo defi nido uma categoria expletiva realizada no núcleo D (cf. LONGOBARDI, 1994). Seguindo Alexiadou et al. (2007), assume-se ainda que a categoria Número é capaz de contribuir para a determinação da referencialidade do nome, ao indicar que um conjunto de entidades tem uma cardinalidade. Em particular, na interpretação de kind, o nome comum é uma propriedade, e como tal não defi ne a cardinalidade do nominal. Inversamente, quando a atomizado, o nominal deixa de denotar kind. Nesse sentido, a categoria Número manifesta aporte de interpretabilidade.

Propõe-se que a ocorrência do artigo defi nido na interlíngua do surdo aprendiz de português (L2) é um estágio do desenvolvimento linguístico, que pressupõe a manifestação da categoria funcional Número na estrutura do DP. Tal abordagem encontra sustentação na hipótese de que AL2 desenvolve-se com base em categorias que manifestam aporte de interpretabilidade, o que se verifi ca em relação ao Número, conforme mencionado anteriormente. Evidência para essa proposta é obtida na análise dos dados discutidos no presente estudo, conforme será demonstrado.

2. Valores paramétricos da L1 (LSB) e da L2 (português) na projeção de sintagmas Determinantes

Nesta seção, fazemos uma comparação entre o português e a LSB, no que diz respeito à sintaxe do DP. A discussão tem por objetivo investigar as implicações do contraste paramétrico entre essas línguas para os padrões de realização do artigo defi nido na interlíngua de sinalizantes da LSB na aquisição de português (escrito) como segunda língua (L2).

2.1. O sistema DP no português brasileiro

No português do Brasil (PB), o sistema DP compreende artigos defi nidos e indefi nidos – além de demonstrativos e numerais.

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Conforme observado anteriormente, artigos defi nidos ocorrem em DPs interpretados como referenciais e não-referenciais (estes últimos designados defi nidos genéricos). Para o presente estudo, é relevante a ocorrência do DP com artigo (defi nido), que contrasta com o nominal nu (no singular e no plural). Por hipótese, a ausência do artigo não implica a ausência do sistema DP, assumindo-se que um expletivo nulo pode ocorrer na posição D, com propriedades semelhantes às do artigo (defi nido) na confi guração do defi nido genérico (cf. (10)).2

(10) [DP

(a)/(as) .... [NP

criança(s)]] é/são inquieta/(s)]]

Nominais introduzidas por artigos indefi nidos são sintagmas que se caracterizam ora por estabelecer referência, apresentando especifi cação (inerente) para referencialidade, ora por ocorrer em sentenças interpretadas como genéricas, o que pressupõe operação de quantifi cação genérica, em que o sintagma indefi nido introduz a variável sobre a qual se efetua a generalização, sendo essa variável interpretada no escopo de um quantifi cador genérico (a respeito do PB, veja-se MÜLLER, 2002). A esses aspectos acrescenta-se que o determinante em português concorda em gênero e número com o nome a que se vincula.

onsiderando-se as propriedades citadas, e assumindo-se que são gramaticalizadas estruturalmente, pode-se então afi rmar que o DP em português compreende projeções que codifi cam referencialidade/ defi nitude e propriedades de concordância, admitindo-se, ainda, a presença de formas expletivas.

2 Em Munn & Schmitt (1999), o nominal nu singular no PB em função argumental denota espécie (kind); em Müller (2002), nominais nus sem número em posição argumental não são expressão de referência a espécie – pelo fato de serem excluídos de contextos com predicados de espécie, como em *Onça está ameaçada de extinção (p. 343); a leitura genérica da sentença com nomi-nais nus no singular em posição argumental é obtida pela ação de um quantifi cador genérico que prende as variáveis sobre as quais se efetua a generalização (conforme proposto em KRIFKA ET AL. (1995); HEIM (1982), citados por MÜLLER (2002)). Interessa ao presente estudo es-sencialmente o estatuto genérico da interpretação, diante das implicações para o uso variável dos padrões de estruturação do DP.

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2.2. O sistema DP em LSB

Conforme referido na literatura, uma característica tipológica/ paramétrica da LSB é a ausência da categoria artigo (defi nido e indefi nido) (cf. FERREIRA-BRITO (1995); QUADROS E KARNOPP (2004)). Uma decorrência dessa propriedade é que sintagmas nominais sem determinante (aberto) codifi cam tanto a interpretação referencial como a genérica. Considerando-se que a informação relativa à referência não é inerente ao nome, assume-se que D está relacionado à codifi cação da referência, mesmo em contextos em que o argumento é realizado sem determinante expresso (fonologicamente). Nesse aspecto, LSB distingue-se de línguas que têm D realizado morfofonologicamente, em que, conforme proposto em Longobardi (1994), D nulo é licenciado sob condições restritas.

Acrescente-se que a leitura genérica, em oposição à referencial, pode ser obtida por processos de quantifi cação e pelo uso de dêicticos e determinantes (demonstrativos e pronomes pessoais/ possessivos), bem como pelo estabelecimento de relações anafóricas, conforme ressaltam Quadros e Karnopp (2004) (cf. também FERREIRA BRITO, 1995). Em particular, a referência aos participantes no discurso é feita por meio da apontação ostensiva no espaço de sinalização (dêixis) e do uso de formas ditas ‘fl exionadas’ (como os chamados verbos de concordância, com a incorporação de marcas de pessoa na realização do sinal). Conforme Quadros e Karnopp (2004), os pontos no espaço relacionam-se ao referente, e introduzem o NP. Em relação ao sistema de pronomes pessoais, além de codifi car a categoria pessoa (pela apontação ostensiva), distingue ainda número e caso (pela oposição com as formas do possessivo (cf. FERREIRA BRITO, 1995; QUADROS; KARNOPP, 2004). Relações anafóricas são estabelecidas por meio de processos gramaticalizados de orientação do olhar, do corpo, da cabeça na direção de referentes previamente introduzidos no espaço de sinalização, entre outros.

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A categoria D é ainda lexicalizada em confi gurações com os chamados índices pré- e pós-nominais. Tais posições distinguem operações de referenciação/ determinação, por um lado, e processos dêiticos, por outro, com implicações para o estatuto da categoria relevante, respectivamente determinante e locativo adverbial. Seguindo a análise de Neidle et al. (2000:31) para a ASL, segundo a qual locais no espaço defi nidos por índices pré-e pós-nominais são traços phi (abertos), de pessoa e número, em categorias D do tipo pronome e determinante, assume-se que, em LSB, a projeção dos traços phi é inseparável da projeção de determinantes (defi nidos e indefi nidos) no núcleo D (cf. Chan-Vianna 2008). A confi guração relevante está indicada em (11).

(11)

Na seção a seguir, passamos a discutir os dados coletados no que diz respeito à realização do sistema DP na interlíngua do surdo aprendiz de português (escrito). Para tanto, assume-se a hipótese de Tsimpli (2003), segundo a qual aprendizes cuja L1 não possui artigo (defi nido) em seu sistema vão encontrar difi culdade em adquirir as propriedades morfofonológicas dessa categoria. Nesse sentido, na ausência de artigos em LSB, a previsão é a de que haverá resistência na aquisição da categoria artigo no português (L2) por surdos, independentemente da interpretação genérica ou referencial do sintagma introduzido pelo artigo (defi nido).

DP

NP

COBRA

D /Agr[+/-def] [phi]

(IX)

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3. Os dados e a análise

3.1. Experimento e participantes

Os dados foram coletados em três escolas vinculadas à Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEE/DF), que atendem alunos do 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio e possuem salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE) para surdos e outros estudantes com necessidades especiais. Os surdos estudam em classes inclusivas e são acompanhados, no horário regular de aulas, por intérpretes de língua de sinais (LSB)-português, em todas as disciplinas. A coleta dos dados ocorreu em evento didático-pedagógico, realizado em duas etapas distintas, com cada um dos dois grupos, que totalizaram 118 participantes: 30 sinalizantes da LSB (grupo experimental) e 60 falantes do português (grupo controle).3

A atividade didático-pedagógica abordava tema extraído do componente curricular Biologia, do Ensino Médio, adotando-se metodologia baseada na utilização de ‘modelos’ e ‘simulações’. Defi nem-se modelos como representações das propriedades do mundo, em que se manifestam relações de causa e efeito, os quais dão suporte ao raciocínio, contribuindo para aumentar a compreensão de fenômenos (cf. Bossel (1986), apud Bredeweg et al. (2006b)). Seguindo essa ferramenta didático-pedagógica, os professores e colaboradores apresentaram aos alunos (surdos e ouvintes) modelos que demonstravam relações causais relativas às seguintes assertivas: (i) “Os preços do petróleo têm grande infl uência na poluição atmosférica e trazem consequências para a saúde humana”; (ii) “As ações humanas provocam o aquecimento global e isso afeta a vida dos ursos do Pólo Norte”; (iii) “A poluição provoca o ‘bloom de

3 Agradecemos a colaboração dos educadores e a participação dos estudantes das escolas Centro Educacional 06 de Taguatinga (CED06), Centro de Ensino Médio Elefante Branco de Brasília (CEMEB) e Centro de Ensino Médio 02 de Ceilândia (CEM02). Agradecemos ainda aos parcei-ros do projeto DynaLearn, a saber Paulo Salles e Mônica Rezende, vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da UnB, pelos dados coletados e cedidos.

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algas’ e consequentemente afeta os peixes do Lago Paranoá”. Após abordagem desses conteúdos e aplicação do modelo, foram aplicados os testes escritos para cada grupo.

Os dados para o presente estudo são fruto de uma produção textual solicitada entre os testes realizados, cujos enunciados descrevem implicações de causa e efeito relacionados a fenômenos descritos nos modelos causais. Contabilizados os dados, obtivemos o total de 174 produções textuais e um total de 594 ocorrências de sintagmas nominais próprios para a análise do DP, sendo 288 dessas ocorrências produzidas pelos sinalizantes da LSB e 306 pelos falantes da língua portuguesa. Foram desconsiderados da análise os sintagmas nominais complexos (ex.: bloom de algas, mortalidade dos peixes), pois o segundo termo ocorre como restritor do primeiro.

Passemos agora à análise dos resultados, com o objetivo de verifi car a realização do DP na interlíngua dos sinalizantes da LSB (L1) em aquisição do português escrito (L2).

3.2. O DP na interlíngua dos sinalizantes

São consideradas as seguintes possibilidades de estruturação do DP: (i) nominal nu singular (peixe; veneno); (ii) nominal nu plural (peixes; venenos); (iii) nominal defi nido singular (o peixe; o veneno); (iv) nominal defi nido plural (os peixes; os venenos). A análise dos dados parte da hipótese de que há diferença na escolha do tipo de DP na produção escrita de sinalizantes da LSB (português L2) e falantes nativos do português (L1), tendo em vista as diferenças paramétricas entre as duas línguas. Assim, supõe-se que sinalizantes da LSB, ao produzirem sintagmas nominais no português escrito, tenderão ao uso do nominal nu, dadas as circunstâncias de interferência de sua primeira língua (LSB), considerando-se a existência de quatro tipos de DPs na língua portuguesa e a inexistência da categoria artigo na LSB (cf. seção 3). Por outro lado, o uso do DP introduzido pelo artigo na produção escrita deve corresponder a um estágio do desenvolvimento linguístico na aquisição da língua alvo.

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Conforme mencionado anteriormente, a investigação do desenvolvimento linguístico é orientada pela hipótese de Tsimpli (2003), segundo a qual, na AL2, o mapeamento de traços formais abstratos na estrutura morfo(fono)lógica é determinado por um subconjunto de traços, a saber aqueles em que se identifi ca aporte de interpretatibilidade. Em relação ao DP, propõe-se que a aquisição das propriedades morfofonológicas do artigo (defi nido) é determinada pelo mapeamento da fl exão de número na categoria funcional Número (Num), considerando-se a existência de aporte de interpretabilidade nesse projeção. A previsão é a de que haverá preferência pelo DP marcado pela fl exão de plural, nos dados da interlíngua.

É o que se observa na frequência relativa dos diferentes tipos de DPs (nominal nu singular e plural e defi nido singular e plural). Constata-se, na interlíngua, a preferência pelo nominal nu, singular (44,1%), o que pode ser atribuído à transferência dos valores paramétricos da L1 (LSB) na aquisição de português (L2) (escrito), correspondendo à etapa inicial da aquisição. Confi rma-se também a segunda previsão, pois, somados, os nominais nus no plural (19,1%) e os defi nidos no plural (32%) ultrapassam os nominais defi nidos no singular ((18,8%). Tais resultados mostram-se signifi cativos, na comparação com os dados dos falantes do português, uma vez que se constata um padrão diferente, em que predomina o defi nido singular (55%), seguido do defi nido plural (32%), enquanto os nominais nus no plural e no singular ocorrem com frequências bem reduzidas (6,2% e 6,8%, respectivamente).4

4 Tais resultados estão confi rmados em estudo prévio (Salles e Chan-Vianna 2010).

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TABELA 1: Realização do DP em produções escritas em português (L2) por sinalizantes da LSB (L1)

Tipos DPsProdução dos

Sinalizantes da LSB

Produção dos Falantes do Português

Total de Dados

Nu Singular 127 (44,1%) 21 (6,8%) 148

Nu Plural 55 (19,1%) 19 (6,2%) 74

Defi nido Singular 54 (18,8%) 168 (55%) 222

Defi nido Plural 52 (18,0%) 98 (32%) 150

Total 288 306 594

Cabe ressaltar que a ocorrência de nominal nu, singular, analisada como transferência dos valores paramétricos da L1, no estágio inicial da AL2, supõe que a confi guração do DP apresenta as categorias funcionais da LSB, distinguindo-se, portanto, da situação em que o nominal nu corresponde a uma projeção da gramática alvo (no caso o português), o que implica a manifestação de categorias funcionais na projeção estendida do NP conforme previsto na língua alvo. Em particular, assume-se com Schmitt e Munn (1999) que a estrutura de nominais nus em português compreende a projeção separada dos núcleos de concordância (Agr) e Número (Num).5 Acrescente-se que a opção pelo nominal nu, singular é também reduzida nos dados dos falantes do português (6,8%),

5 Adotando a hipótese DP, Schmitt e Munn (1999, 2003) assumem que NPs devem ter alguma estrutura funcional para serem sintaticamente licenciados. Em relação ao PB, postulam a real-ização separada de Agr e Num (Split Agr/Num Hypothesis), diferentemente de línguas como o inglês, em que tais núcleos sofrem fusão. Assim, em contexto predicativo, com interpretação existencial, a previsão é a de que, em línguas românicas, o nominal nu singular possa predicar de um nome no plural, sendo Agr projetado, mas não Num (interpretável); diferentemente, no inglês, em que Num é selecionado com Agr, o plural no nome, sendo interpretável, requer que o predicado seja fl exionado no plural, admitindo-se o singular somente com o artigo indefi nido, conforme (i) e (ii), respectivamente: (i) Encontrei cachorros de rabo curto (ii) I found dogs, with long tails/ *(a) long tail (adaptados de Schmitt; Munn (2003:X)

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contrastando com a maior frequência do defi nido, singular (55%). Cabe então indagar por que o uso do determinante fonologicamente expresso (no caso, o artigo defi nido) é favorecido nos dados do grupo controle – uma questão que deixamos em aberto, para pesquisa futura.

Assumindo-se que nominais que denotam kind/ espécie são inespecifi cados para número, conforme proposto em Chierchia (1998), buscou-se então identifi car em que medida a ocorrência da fl exão de plural é evidência para a projeção de Num, com aporte de interpretabilidade. Em particular, partiu-se da observação de que existe restrição para a manifestação da fl exão de número com nominais não-contáveis (ou massivos), em oposição a nominais contáveis.6

Diante disso, realizou-se a subdivisão dos dados em nomes contáveis e não-contáveis (massivos). O objetivo era o de verifi car se tal distinção teria implicação para a manifestação dos tipos variáveis de DP, com implicações para a ocorrência do DP marcado pelo traço morfofonológico de número: a previsão é a de que nominais contáveis ocorrem como maior frequência como DPs (defi nidos) no plural. Em (1)/(3) e (5)/(6), extraídos dos dados do grupo de sinalizantes de LSB (aprendizes de português L2) e do grupo dos falantes nativos de português, respectivamente, e repetidos como (11)/(12) e (13)/(14), ilustramos a ocorrência de sintagmas nominais contáveis (peixe; carros) e sintagmas nominais não-contáveis (o mal cheiro; a poluição; petróleo).

(11) [(...) peixe morreu tudo acabou peixe não tem nada peixe] (SE27p)

6 A oposição contável e não-contável descreve dois tipos de entidades no mundo, as que denotam entidades discretas e entidades contínuas, respectivamente. De acordo com Camacho et al. (2008: 58), “a suscetibilidade à pluralização é um dos comporta-mentos gramaticais que identifi cam substantivos contáveis (....) os não contáveis são, por defi nição, também não-singulares, já que, quando usados no singular, não consti-tuem a contraparte de um substantivo no plural.”

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(12) [O peixe prescisa de água saldavel para sobrevive e no momento não tinho foi por isso que aconteceu o mal cheiro, a poluiçâo e a mortalidade do peixes.] (SCp16)

(13) [petroleo caro, aumenta a produção de fumaça por pessoas pobres] (EO7p)

(14) [(...) os preços do petróleo infl uencia porque eles querem conpar e pagan caro e eles usam para abastecer carros] (CO22p)

A tabela 2 demonstra a realização do DP de acordo com a subdivisão dos dados em nominais contáveis e não-contáveis.

TABELA 2: Realização do DP em produções escritas em português (L2) por sinalizantes da LSB (L1)

Tipos de DPs

Produção dos Sinalizantes da LSB

Produção dos Falantes do Português

Total

Total Cont. Não-C. Total Cont. Não-C. S/F

Nu S127

(44,1%)50

(17,3%)77

(26,7%)21

(6,8%)4

(1,3%)17

(5,5%)148

Nu P55

(19,1%)46

(15,9%)9

(3,1%)19

(6,2%)15

(4,9%)4

(1,3%)74

Def S54

(18,8%)24

(8,3%)30

(10,4%)168

(55%)33

(10,8%135

(44,2%)222

Def Pl52

(18%)40

(13,8%)12

(4,1%)98

(32%)66

(21,5%)32

(10,4%)150

Total 288 160 128 306 118 188 594

Constata-se que a frequência mais alta corresponde a nominais nus não-contáveis no singular, encontrada na produção do grupo dos sinalizantes da LSB (26,7%). Comparada com a produção do grupo de falantes do português, verifi ca-se que o mesmo tipo de nominal (não-contável) tem frequência muito baixa como nominal nu no singular (5,5%), sendo a frequência maior associada à confi guração de nominal

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não-contável defi nido, singular (44,2%). Há de se observar que o nominal nu não-contável, singular possui uma denotação neutra para singular e plural (cf. MÜLLER (2002)), o que está de acordo com Chierchia (1998), para quem nomes massivos possuem denotação neutra para singular e plural.

Em relação aos demais resultados a previsão é confi rmada nos dados da interlíngua: nominais contáveis ocorrem com maior frequência como DPs no plural (seja o defi nido plural (13, 8%), seja o nominal nu plural (15,9%)) do que como DPs defi nidos no singular (8,3%). Nos dados do grupo controle, a despeito da alta incidência de nominais defi nidos, em oposição a nominais nus, observada anteriormente, a distribuição segue o padrão observado nos dados da interlíngua, visto que nominais contáveis tendem a ocorrer com mais frequência como DPs (defi nidos) no plural (21, 5%), do que como DPs (defi nidos) no singular (10,8%).

A presença de um padrão coincidente entre os dois grupos no que se refere à manifestação da fl exão de plural, associada a nominais contáveis, é considerada neste ponto evidência adicional para o estatuto interpretável da categoria de número associada ao traço de cardinalidade, no contraste entre nomes contáveis e não-contáveis, com as implicações para o desenvolvimento linguístico, conforme previsto pela métrica da AL2.7

Partindo-se da observação de que o traço de número é mapeado na matriz morfo(fono)lógica do artigo juntamente com o traço de gênero, este último um traço não-interpretável, propõe-se que o mapeamento das propriedades morfo(fono)lógicas do artigo na categoria Num é associado à operação de concordância (Agree). Nessa confi guração manifesta-se o fenômeno de opcionalidade, no que se refere à manifestação da fl exão de gênero, a qual, por hipótese, deve manter-se residual, tendo

7 De acordo com Chierchia, (1998), o aparato cognitivo humano vê o mundo como contendo tanto entidades singulares quanto entidades plurais. Assim, a extensão de nomes contáveis singu-lares é representada por um conjunto de singularidades, e que a extensão de tais nomes no plural é representada por um conjunto de pluralidades

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em vista que não existe aporte de interpretabilidade em sua ocorrência na projeção do determinante/artigo.

Considerações fi nais

O estudo examinou a interlíngua de sinalizantes da LSB aprendizes de português (escrito) como segunda língua, considerando, em particular, a manifestação de defi nidos (no singular e no plural) e de nominais nus (no singular e no plural). Constatou-se alta frequência de nominal nu no singular e no plural, nos dados da interlíngua, o que foi analisado como uma situação de transferência dos valores paramétricos L1, já que a LSB não possui artigos. Propôs-se que a ocorrência do nominal defi nido (no plural e no singular) indica a existência de desenvolvimento linguístico. Assumindo-se que o mapeamento de traços formais nas matrizes morfo(fono)lógicas restringe-se aos traços interpretáveis, argumentou-se que a ocorrência de tal confi guração está crucialmente associada à presença do núcleo funcional Num na estrutura do DP. Nesse sentido, o artigo defi nido no plural pode ser considerado uma categoria morfológica default na AL2, pela qual o traço formal (interpretável) de número é mapeado na categoria Num, com implicações para a manifestação da operação Agree na projeção do DP. Essa análise sustenta-se pela taxa de frequência alta de nominais contáveis (defi nidos) no plural – nos dados da interlíngua e do grupo constituído por falantes nativos, considerado de controle na relação com o grupo experimental.

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A DESCRIÇÃO DAS LÍGUAS ‘EXÓTICAS’ E A TAREFA DE ESCREVER A HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA

Cristina ALTMANUniversidade de São Paulo (USP)

Introdução

Do ponto de vista da história do conhecimento sobre a natureza da linguagem, ninguém negaria que o contato do homem europeu com a diversidade linguística ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX trouxe uma contribuição considerável ao alargamento — quantitativo e qualitativo — do conhecimento empírico sobre as línguas (cf. Swiggers 1997, Law 2003). Ao longo de quatro séculos, franciscanos, dominicanos, agostinianos e, principalmente, jesuítas participaram da empresa colonial americana com o objetivo de exercer a dupla função do trabalho missionário: catequese e ensino da leitura e escrita. Não por acaso, já que a condição, ofi cial ao menos, para que tanto Portugal quanto Espanha pudessem expandir seus domínios territoriais era ampliar a fé católica, o que signifi cava granjear fi éis em cada canto do mundo e, por suposto, em cada língua. A missão de conversão religiosa passava, pois, pela tarefa prévia de fazer a mensagem religiosa ser compreendida pela população ‘infi el’, fosse através da tradução da bíblia e do auxílio de intérpretes — estratégia preferida pelos protestantes — fosse através da aprendizagem e utilização da língua nativa — estratégia preferida do missionário católico.

Em consequência, e diferentemente do Budismo e do Islamismo, que também enfrentaram em outros séculos o desafi o de propagarem sua fé (v. Ostler 2003), as missões cristãs, principalmente as católicas, se tornaram bastante sofi sticadas na tarefa de elaborar instrumentos pedagógicos para o estudo das línguas dos territórios a serem colonizados,

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A Descrição das Línguas ’Exóticas’ e a Historiografia Linguística

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sobretudo gramáticas, vocabulários, dicionários, catecismos. Em muitos casos, essa documentação é o único testemunho que temos da existência de centenas de línguas, muitas delas hoje extintas, tanto da América, quanto da África, da Ásia e das ilhas do Pacífi co.

Podemos vislumbrar o volume do trabalho desses missionários através dos números apresentados por Wonderly & Nida (1963: 117) sobre a produção hispano-americana. Só para o século XVI afi rmam ter registrado 212 trabalhos de missionários. Desses, 30 sobre línguas sul-americanas; 27 sobre línguas da América Central e 155 sobre o México, sendo que o Náhuatl clássico, língua dos astecas do México central, foi a mais representada, com 92 trabalhos. No século XVII, registraram mais de 250 trabalhos sobre as mesmas línguas; no XVIII, 210. Se incluirmos nessa conta as gramáticas missionárias escritas no período colonial sobre as línguas asiáticas (por ex.: japonês, chinês, vietnamita; línguas fi lipinas: tagala, bisaya, pampango, iloko, pangasinán, ibanag; indianas: tamil), além das africanas e australianas, esse número cresce sensacionalmente (cf. Ridruejo 2000; Zwartjies & Hovdhaugen 2003. Zwartjes & Altman 2005, Zwartjes, James e Ridruejo 2007). Trata-se de uma produção respeitável.

Entretanto, quando se buscam informações em nossa historiografi a ofi cial sobre a eventual contribuição para a linguística geral dos três ou quatro séculos de copiosa coleta de dados de ‘línguas exóticas’, levada a cabo pelos missionários sul-americanos, nos surpreendemos pela parcimônia das referências. Raras são, nos manuais tradicionais de história da linguística, isto é, naqueles elaborados por linguistas não especialistas em americanística1 referências mais detalhadas sobre as contribuições, por exemplo, do Saggio di Storia Americana (Roma, 1780-1784, 4 vols.), de Filippo Salvadore Gilij (1721-1789), ou sobre o monumental Catálogo (1a. ed Cesena, 1785), de Lorenzo Hervás y Panduro (1735–1809) que,

1 Há, sem dúvida, uma respeitável literatura bibliográfi ca sobre a produção americanista — por ex. Backer & Backer 1869-1876, Mendiburu 1874-1890, Muñoz y Manzano 1892, Pastells 1912-1915, Leite 1938, Tovar 1961, Meliá et al. 1987 — que não supre , entretanto, o interesse em se preservar um corpus de textos e não oferece (e nem é seu objetivo oferecer) uma discussão sobre sua confi guração teórica.

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ao compilar exaustivamente a produção gramatical jesuítica, constituiu um precioso banco de dados de línguas do mundo todo.

Neste sentido, um dos desafi os do historiógrafo interessado nas tradições linguísticas latino-americanas é tentar reconstruir e, se possível, explicar, como e por que, no processo de seleção das idéias e práticas linguísticas que efetua, certas tradições de estudo, como, por exemplo, o da chamada linguística missionária, teriam sido subestimadas (para não dizer excluídas, em uma interpretação mais forte) da historiografi a linguística canônica, pelo menos até a segunda metade do século XX.

Na presente intervenção, a partir de um conjunto de refl exões que tenho acumulado ao longo de todos esses anos dedicados ao estudo da linguística feita no Brasil (especialmente Altman 1993, 1996a e b, 1997a e b, 1998a e b, 2001, 2003, 2007 e 2009) chamo a atenção para certos aspectos pertinentes, a meu ver, à tarefa de escrever sua historiografi a. Meus parâmetros de observação serão, principalmente, aqueles relativos às inevitáveis pressões das visões do momento sobre o linguista interessado em historiografar o passado da sua disciplina.

Algumas notícias sobre a produção linguística ‘colonial-missionária’ sul- americana.

No que diz respeito especifi camente à América Portuguesa, ainda que seus interesses e os da América Espanhola fossem em grande parte coincidentes ¾ ao menos ofi cialmente formaram uma só coroa sob o domínio espanhol entre 1580 e 1640 ¾ a produção linguística de ambas as colônias foi bastante desigual. As gramáticas da América Espanhola foram bem mais numerosas, certamente devido a uma política de ensino de línguas indígenas bem mais agressiva (cf. os três Concílios Limenses em 1551, 1567 e 1582–1583) do que a da América Portuguesa, cujos interesses estavam, neste momento, mais a Oriente. Observe-se, ainda, que a cidade do México possuía imprensa própria desde 1539 (Sedola 1994: 86) e Lima (=Ciudad de los Reyes) já contava com uma Universidade desde 1551, com uma cátedra de língua indígena desde 1580 e, desde 1582, também com imprensa própria (Cerrón-Palomino 1997: 198).

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O Brasil, ao contrário, só teria sua própria casa impressora no início do século XIX, e uma cátedra para o estudo do Tupi antigo só no século XX. Não é de se estranhar, pois, que, das eventuais centenas de línguas originalmente existentes em território português nos séculos XVI e XVII (Rodrigues 1993, 1994), só tenhamos tido a descrição gramatical de duas delas, como é sabido: do Tupi (=Tupinambá), elaboradas pelos jesuítas José de Anchieta (1534–1597), e Luís Figueira (1575–1643) e do Kiriri, elaborada pelo também jesuíta Luis Vincencio Mamiani (1652–1730) (cf. Anchieta 1990[1595]; Figueira 1621 e Mamiani 1877 [1699]), todas escritas em português e publicadas, pela primeira vez, em Portugal.2

Guardadas as devidas proporções, entretanto, é razoável imaginar que, para ambas as Américas, tanto a Espanhola quanto a Portuguesa, as línguas locais das várias ‘nações’ americanas também fossem alvo de curiosidade por parte dos europeus e, em consequência, objeto de coleções, ao lado de plantas, animais, costumes e instituições ‘exóticas’ (cf. a extensa literatura dos viajantes em Gimenes 1999). O domínio de todas essas línguas era indispensável ao sucesso da empresa colonial, o que favoreceu a implantação de uma série de medidas que visassem ao conhecimento (e, por extensão, ao controle) da heterogeneidade linguística das Colônias. Na medida em que os missionários foram sentindo a necessidade de também documentar a dialetação das línguas

2 Há referências a um trabalho conjunto dos P. José de Anchieta e P. Manuel Viegas (1533–1608) sobre a língua dos índios maromomi (= maromemim, marumimi, guarumimim, guarulho) de que não restou cópia (Rodrigues 1998: 61). Quanto aos vocabulários, seria preciso acrescentar a este elenco: Anônimo. 1938[1621]. Vocabulário na língua brasílica. Manuscrito Português-Tupi do séc. XVII coord. e pref. por Plínio Ayrosa. São Paulo: Departamento de Cultura. (2a ed., Boletins 137 e 164 da Faculdade de Filosofi a Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1952 e 1953.); Anônimo. 1771 (ms. inédito). Dicionario da lingua geral do Brasil que se falla em todas as villas, lugares e aldeas deste vastissimo Estado. [Escrito na cidade do Pará, anno 1771]. Coimbra: Universidade de Coimbra, ms. 81; Anônimo. 1751 (ms. inédito). Dicionário português-brasiliano e brasiliano-português. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, ms. I-1, 1, 14; Anônimo. 1795 (1ª. edição). Dicionário por-tuguês-brasiliano e brasiliano-português. Lisboa: Offi cina Patriarcal; Ayrosa, Plínio. 1934. Dicionário português-brasiliano e brasiliano-português. [Reimpressão da 1ª. parte da edição de 1795 (Lisboa: Offi -cina Patriarcal, ano MDCCXCV. Com licença, sem designação do autor), seguida da 2ª. parte, até então inédita, ordenada e prefaciada por Plinio M. da Silva Ayrosa]. Revista do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Ofi cial do Estado, tomo XVIII.

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gerais, ao longo do século XVII e início do século XVIII, bem como a diversidade das línguas regionais e locais, várias outras gramáticas de outras línguas sul-americanas surgiram nos mesmos moldes. O Catálogo de Hervás, na sua versão espanhola de 1800, menciona 218 designações diferentes, relativas a línguas e a dialetos que hoje situaríamos no território sul-americano. (Parada 2002). Em quatro séculos, a empresa missionária colonial acumulara informação sobre a diversidade linguística americana o sufi ciente para notar o quanto poderia haver de ‘afi nidade’ e de ‘divergência’ entre as línguas: na pronúncia, no vocabulário e, nos termos de Hervás, também no seu ‘artifício gramatical’.

Com efeito, a produção gramatical do período dito renascentista se caracterizou, de maneira geral, pela procura de princípios ou regras, i.e., pela busca de regularidades nas variedades a serem descritas; pela transferência do modelo gramatical latino — já parcialmente adaptado, por sua vez, da gramática grega — à descrição dos vernáculos, e readaptados, ainda uma vez, à descrição das chamadas línguas exóticas; pela mesma estruturação atribuída à fonologia e à morfologia, que se completa pela descrição de uma rotina de uso da língua (usage) (v. Swiggers 1997, Auroux 1992a e b):

As gramáticas das línguas ‘exóticas’, sejam americanas ou asiáticas, não constituíram exceção a esse cânone. Às regras de pronúncia das línguas, seguiam-se, com poucas variações, regras de declinação dos nomes, adjetivos e pronomes; regras de formação e conjugação de verbos e uma lista das ‘outras partes da oração’, via de regra constituída de preposições, advérbios, interjeições e conjunções. O estudo da palavra no contexto dessas gramáticas assumiu a feição de uma morfossintaxe e a sintaxe propriamente dita consistiu, frequentemente, em uma prática cujas ‘regras’ se reduziam a hábitos de repetição, de ‘maneiras de dizer’ que era preciso memorizar.

Esse mesmo procedimento aplicado à descrição das variedades nacionais européias, das línguas africanas, asiáticas e americanas viabilizava, por hipótese, pela primeira vez, o cotejo de dados equivalentes

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de línguas, mesmo que geográfi ca ou historicamente dispersas. Adequada ou não, a prática missionária de registrar as línguas nativas americanas em forma de vocabulários e gramáticas, nos mesmos moldes, possibilitou a Hervás, trezentos anos depois das primeiras descrições dessas línguas, compará-las, classifi cá-las, e colocá-las em perspectiva histórica. Para este autor, e para o tipo de estudo comparativo que efetuou, seria preciso verifi car, além da história dos povos que falaram essas línguas, também seu vocabulário fundamental e as regras de estrutura gramatical (Parada 2002 e Parada e Altman 2000). Tarefa perfeitamente viável, já que a concentração de jesuítas expulsos de todos os territórios espanhóis e portugueses em Roma a partir de 1759, onde já se encontrava Hervás, signifi cou também a concentração privilegiada, em um único lugar, de trezentos anos de know how de descrição gramatical.

1. O registro dessa produção em nossa historiografi a linguística

Na sua Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras (Mattoso Câmara 1977), que reúne o conjunto de dez palestras que proferiu em 1960 no Museu Nacional, Mattoso Câmara descartou essa herança descritiva do nosso horizonte de retrospecção, na medida em que qualifi cou — não sem certa dose de razão — essa linguística missionária de utilitária, centrada na comunicação com os nativos para fi m de propaganda religiosa, diferente daquela que seria feita por um linguista moderno, objetiva e desinteressada em seus propósitos (p. 101). Na sua avaliação, o contexto colonial era favorável ao surgimento de uma língua franca, variedade simplifi cada da língua originalmente falada no Brasil, que fora o objeto das primeiras descrições dos jesuítas, cujo intento último era o ‘disciplinamento’ da língua da terra que ascenderia, dessa maneira, à desejável estrutura da língua latina. O resultado foi, na interpretação de Mattoso, uma língua quase artifi cial: o Tupi Jesuítico, ou Missionário,

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distanciado do Tupi natural que lhe serviu de base. Nos seus termos: “o missionário linguista foi catequético tanto quanto o missionário religioso. Da mesma sorte que se queria melhorar os costumes, o espírito, a moral, a religião do índio, também se pretendia melhorar-lhe a língua”, moldando-a ao latim (Mattoso Câmara 1977: 102). O campo de estudo das línguas indígenas dividia-se, assim, para Mattoso, entre uma linguística Tupi, “ou estudo objetivo da língua em todas as suas manifestações e especialmente as orais,” ainda por ser feito, e uma fi lologia Tupi, “interessada na literatura de intenção religiosa criada em Tupi pelos missionários.” (id. ib. 106)

Por um lado, é inegável que as gramáticas coloniais, aí inclusas as gramáticas missionárias, se organizaram como reza certa tradição latina. Não poderia ser diferente, aliás, dado o momento histórico em que foram produzidas. Embora os missionários-linguistas da tradição gramatical em língua portuguesa não tenham explicitado o modelo que lhes serviu de referência — ao contrário dos seus colegas espanhóis que sempre renderam tributo explícito à Elio Antonio de Nebrija (1441/44–1522) — o que especialistas geralmente admitem (cf. Rosa 1995, Zwartjes 2002, Tashiro 2003) é que a principal referência dos missionários-linguistas da tradição portuguesa3 tenha sido o De Institutione grammatica, 1ª. ed de 1572, de Manuel Álvares, S. J. (1526–1582), escrita sob encomenda para a Ordem, embora não se possam descartar outras possibilidades, como a gramática de Johannes Despauterius (c.1460–1520), que logo substituiria a de Álvares na preferência dos jesuítas (Zwartjes 2002: 29). Seja como for, o modelo de gramática que regeu a tradição descritiva do Tupinambá — e que designaremos aqui, de forma genérica, como ‘modelo latino de referência’— é aquele que se erige em oito partes da oração: nome, pronome, verbo, particípio, preposição, advérbio, interjeição, conjunção, basicamente o mesmo proposto por Donatus (metade séc. IV), Priscianus

3 A despeito do fato de Anchieta ser, a rigor, espanhol, uma vez que nasceu, em 1534, em Tener-ife. Mas estudou em Coimbra entre 1548 e 1551 (Rodrigues 1997: 373) e, uma vez no Brasil, aos 19 anos, reportou-se sempre ao ramo português da Cia. de Jesus, até sua morte em Lisboa, em 1597.

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(fi nal séc. V, início séc. VI), Nebrija (1981[1481]) e Despauterius (1528), embora não obrigatoriamente nesta mesma ordem de apresentação, nem com exatamente o mesmo número de ‘acidentes’ (Robins 1986; Colombat 1988).4

Acrescente-se, ainda, que reconhecer o modelo latino como forma a partir da qual todas essas gramáticas se constituíram não deve implicar, entretanto, que havia um modelo ‘latino’ único. É interessante notar neste sentido que, diferentemente de Portugal e Espanha, a linha de refl exão sobre a linguagem em boa parte da Europa, neste momento, ia na direção de uma gramática fi losófi ca, escolástica, baseada na lógica — cf. inter alia os gramáticos-fi lósofos de Port Royal e, por exemplo, Francisco Sánchez de las Brozas (1523–1601), El Brocense, de leitura proibida, aliás, na Ibéria do fi nal do século XVI (Zimmermann 1997: 14). Neste quadro de trabalho, como se sabe, a questão da diversidade linguística se colocou de outra maneira. Aqui emergiram programas de investigação que propunham a construção de sistemas universais de comunicação, ou de sistemas de organicidade perfeita (v. Eco 1995), ou a construção de teorias dos elementos comuns, universais a todas as línguas, para além do seu uso individual e histórico. Não houve interesse, nesta tradição ‘universalista’, na comparação linguística ‘empírica’, a não ser já ao fi nal do século XX, quando a diversidade estrutural, intra-sistêmica, também foi considerada uma propriedade universal a todas as línguas.

4 Do ponto de vista do número e hierarquia das partes de que se compõe a gramática, Anchieta (1990 [1595]) é, relativamente, o mais ‘livre’ em relação ao modelo de referência. Desenvolvida em dezesseis capítulos, sua gramática se inicia com um apanhado geral das letras, ortografi a, pro-nunciação e acento (1-9), seguido da exposição das propriedades da morfologia dos nomes (9-10v), dos pronomes (10v-17) e dos verbos, de longe a parte mais extensa da gramática (17v-40; 46-58v), intercalada com uma enumeração das preposições (40-46). Não há capítulos especial-mente dedicados aos advérbios (embora a eles se faça menção em alguns pontos da gramática), às interjeições e às conjunções. Já a gramática de Figueira (1621), que teria, entre outros, o mérito de ter ajustado a gramática de Anchieta ao cânone latino adotado pela Cia. de Jesus (Rosa 1995: 280) é a que segue, de fato, bem de perto, o modelo prisciano das 8 partes do discurso.

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Nada em comum entre essa orientação fi losófi co-universalista e os processos envolvidos na codifi cação de uma língua geral, ao menos tal como se deram em contexto sul-americano (v. Rosa 1995, Altman 1997a e b). A descrição de línguas tipologicamente tão diferentes sob um ‘mesmo’ molde abriria margem, a um tempo, para a relativização da universalidade deste molde (Altman 2002) e para uma apreciação, também relativa, das diferenças linguístico-culturais (v. Zimmermann 2005). Não para a criação de uma língua artifi cial como um ‘Tupi-jesuítico’ (Mattoso Câmara 1977: 102-103; mas v. também Edelweiss 1969: 40), ou para uma ‘gramática geral’ das línguas gerais.

Mas não foi esse o ideário reproduzido no Brasil por Mattoso Câmara, em meados do século XX, a quem cabe novamente a autoria do único manual brasileiro de história da linguística, sufi cientemente abrangente, publicado até a década de oitenta.5 Mesmo assim, trata-se de um conjunto de palestras destinadas a um curso de ‘história da linguística’, originalmente escritas em inglês, para um público não brasileiro que, somente alguns anos depois, seriam vertidas para o Português e publicadas em forma de livro, postumamente, em 1975.6.

Mesmo constituindo, como afi rma o autor na sua ‘Advertência prévia,’ apenas “... um resumo à vol d’oiseau das grandes idéias linguísticas até nossos dias...” o livro cresce em signifi cado ao ser qualifi cado pelo próprio Mattoso como um complemento aos seus Princípios de linguística Geral (1a.

5 Outros manuais de História da Linguística entraram no país até os anos oitenta, em versão brasileira portuguesa, espanhola ou argentina e tiveram alguma recepção nos cursos de gradu-ação da década de setenta: principalmente, Thomsen 1945 (versão espanhola; até onde pude verifi car, nunca traduzido para o português); Machado 1942 (orig. português); Leroy 1963; Gue-vara & Llorente 1967 (orig. espanhol); Vilanova & Lujan 1950 (orig. espanhol); Coseriu 1980; Malmberg 1964 [1959]; Mounin 1970[1967], 1972; Robins 1967; Lepschy 1971. 6 Nas palavras do autor: “Este despretensioso livrinho teve sua origem num curso sobre ‘História da Linguística’, que dei no verão de 1962 na Universidade de Washington, em Seattle, Wash., como professor visitante para o Instituto Linguístico organizado por aquela Universidade em cooperação com a Sociedade Linguística da América. Elaborei, para isso, minuciosas súmulas em inglês, que, a pedido dos alunos, foram datilografadas e mimeografadas e despertaram certo interesse dentro e fora da Universidade.” (Mattoso Câmara s/d, ‘Advertência prévia’ ao seu His-tória Sumária da Linguística, manuscrito inédito). Agradeço a Angela Maria Ribeiro França que me cedeu cópia de parte do manuscrito inédito de Mattoso Câmara.

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ed. 1941, reimpressa em 1942), princípios esses que nortearam em grande parte as primeiras gerações de scholars envolvidos na institucionalização da disciplina linguística no Brasil. Neste sentido, a releitura da sua ‘História Sumária da linguística’ (título que originalmente lhe deu) é de fundamental importância para a elucidação da percepção que teve Mattoso, tanto das tradições linguísticas que o antecederam na cronologia da disciplina, quanto do que denominou ‘correntes contemporâneas’.

E, na sua percepção, “A linguística é uma ciência muito nova [que] começou a existir na Europa em princípios do século XIX sob o aspecto de um estudo histórico,..”(Mattoso Câmara, 1975:13), não apenas distinta da Filologia, que defi niu como o estudo dos textos antigos que visa à compreensão dos traços linguísticos obsoletos a fi m de captar a mensagem artística que encerram (cf. id.:11), mas também distinta da investigação dos aspectos biológicos relacionados à faculdade de linguagem, abordagem que denominou biológica, e da tradição fi losófi ca grega, que denominou de estudo lógico da linguagem.

A Filologia, ao lado da tradição normativa (Do and Don’t study) e do estudo motivado pelas situações de contato linguístico (Foreign Language study) constituíam, para Mattoso, o campo dos estudos pré-linguísticos, “... isto é, algo que ainda não é linguística.” (id.:13). O estudo lógico (fi losófi co) e o estudo biológico, por sua vez, por não fazerem parte do que considerou o domínio da linguagem propriamente dito, constituíam um domínio a ele limítrofe, na sua denominação, paralinguístico. Na retrospecção do pensamento linguístico a que se propôs Mattoso, antes do século XIX, só era possível encontrar na tradição ocidental, estudos do tipo que denominou pré-linguísticos e paralinguísticos, e, na tradição oriental, mesmo entre os que considerou os “... países mais adiantados de então, ou seja, a China e a Índia antigas.” (id.ib.), não houve qualquer tipo de linguística (sic).

A visão parcial e fortemente restrita de Mattoso da história do pensamento linguístico que, para ele, a rigor, não começou senão na Europa do século XIX, não é tão importante quanto o fato de ter sido esta a visão divulgada dentre aqueles que considero a primeira

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geração de pesquisadores brasileiros que então buscavam afi rmar sua autonomia enquanto linguistas. Como a pré- linguística e a paralinguística não se interromperam, segundo Mattoso, com o advento da linguística (cf. Mattoso Câmara, 1975:14), excluir essas tradições do então novo campo de estudos que apenas se inaugurava no Brasil era uma consequência inevitável. Ser linguista brasileiro signifi cava naquele momento, fi liar-se a uma tradição ocidental, iniciada na Europa do século XIX, e excluir-se da tradição normativa, da investigação da linguagem enquanto fenômeno biológico, da tradição do pensamento fi losófi co grego e, principalmente, da tradição fi lológica, então dominante. Como consequência, qualquer refl exão sobre a história do pensamento linguístico no contexto brasileiro encontrava (e encontrou), pois, no limiar do século XIX europeu, senão depois, o limite do seu horizonte de retrospecção.

A título de considerações fi nais

O contexto estruturalista no qual estava inserido Mattoso Câmara nos anos sessenta, que enfatizava a especifi cidade estrutural das línguas naturais, em consequência, irredutíveis umas às outras, o levou a interpretar a tradição descritiva missionária como uma tentativa ‘bem sucedida’ de criação de uma língua artifi cial, em que as especifi cidades estruturais e dialetais das línguas indígenas foram propositadamente desprezadas. Nada mais distante, a meu ver, do que nos revelam essas gramáticas, quando revistas no seu contexto específi co de produção, isto é, a linguística colonial renascentista. (Para uma crítica recente v. Rodrigues 1996, Leite 2003 e 2005 e Altman 2007).

Não se pode afi rmar, entretanto, que descrever centenas de línguas sob o mesmo modelo latino de referência, o que tornou possível a Hervás cotejá-las e compará-las trezentos anos depois, tenha sido a intenção inicial dos missionários, e que todos os passos que deram foram, inequivocamente, nesta direção. Ao contrário, o conhecimento linguístico parece ser um processo complexo, pluridirecional, cujas continuidades (e descontinuidades) só podem ser restabelecidas pelo

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historiógrafo da linguística, a posteriori, e muitas vezes, tentativamente, como no presente texto, a partir da perspectiva privilegiada do presente histórico.

Seja como for, feitas por missionários e para missionários, o impacto dessa produção linguística na esfera civil e do estado foi, de um lado — é preciso reconhecer — pequeno para alterar conceitos (arraigados) da inferioridade linguística do índio, a que corresponderia sua inferioridade social e política. De outro, foi insufi ciente para se fazer visível a uma linguística européia voltada, principalmente a partir do século XVIII, para a elaboração de uma gramática universal, desinteressada, como consequência, das questões sobre diversidade linguística. Se essas gramáticas contribuíram para a formação de uma cultura linguística nova, como acredito, de base experimental, não mais estritamente ‘ocidental’ e ‘clássica’, nossa historiografi a canônica não registrou.

Some-se a isso a retórica de ruptura da linguística (alemã e dinamarquesa) do século XIX que dividiu o conhecimento linguístico entre um período pré-científi co, aquele que a antecedeu, e um período verdadeiramente científi co, aquele que inaugurou com o método histórico-comparativo. Independentemente, pois, do seu valor descritivo, a produção linguística missionária permaneceu circunscrita ao mundo do ‘exótico’, da fé religiosa, da não-ciência, excluída dos projetos europeus que almejavam conferir ao estudo histórico e comparativo das línguas indoeuropéias o estatuto de uma ciência natural, e excluída, por extensão, da historiografi a ofi cial que legitimou a Neue Philologie alemã como a ‘verdadeira’ ciência da linguagem.

Se é verdade que o linguista individual pode prescindir da dimensão histórica da sua disciplina para exercer seu ofício, também é verdade que é o passado que informa continuamente o presente. Os conceitos e os procedimentos de pesquisa que o linguista utiliza são produtos históricos. Se uma das tarefas da historiografi a linguística é (re)estabelecer os pressupostos, nem sempre explicitados, com que os linguistas do

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passado sustentaram suas práticas, bem como as consequências das suas proposições para o desenvolvimento do conhecimento que produzimos sobre a linguagem e as línguas, a investigação das condições passadas de produção e recepção do conhecimento linguístico, aí inclusas aquelas da chamada linguística missionária, é um passo importante para nosso entendimento das ciências contemporâneas da linguagem e das suas metodologias como um todo.

Referências

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TWO SORTS OF BARE NOUNS IN BRAZILIAN PORTUGUESE

Roberta Pires de OLIVEIRA Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) /CNPq

Susan ROTHSTEIN Bar-Ilan University

It is a consensus in the literature that the so called Bare Singular (BS, from now on) in Brazilian Portuguese (BrP) is not semantically singular (Munn & Schmitt 1999, a.o.), but a number neutral count noun. In this paper, we explore the hypothesis that it is not a count noun. We reach such a conclusion by comparing the bare singular with both the bare mass noun and the bare plural count noun. We show that the behavior of the bare singular in BrP does not parallel that of the bare plural, but strongly parallels that of the bare mass noun. Based on such facts we propose that there are just two sorts of bare nouns in BrP: Bare Mass and Bare Plural. The Bare Mass denotes either the kind or a mass predicate, whereas the Bare Plural always denotes a plural predicate. These different semantics explain their different behavior. As conclusion, we show some unexpected results from our approach.

The outline of the paper is as follows. We begin by showing that the prima facie arguments against treating bare singulars as mass nouns are not valid. Our claims are based on the fact that the literature has compared bare singular nouns with non-atomic mass nouns, and has shown that they behave differently with respect to the relevant tests. However, comparing bare singulars with naturally atomic mass nouns such as mobília ‘furniture’ gives different results. We then show, in section

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2, that the bare singular displays the same distributional restrictions as the bare mass noun both in episodic and generic contexts, a fact that, as far as we know, has gone unnoticed in the literature. This strengthens the case for treating them alike. In section 3 we give a semantics for mass nouns and count nouns in the framework of Rothstein 2010a, b which allows for a unifi ed analysis of bare singulars and mass terms, that differs from that attributed to the bare plural. In section 4, we explain the data from earlier sections in the light of the analysis, and propose a semantics for bare plurals which explains their behavior in BrP. Finally, we also show that our account predicts that so called ‘bare singulars’ can occur with mass determiners, and we give arguments to show that this prediction is correct. Moreover its behavior in comparative contexts also supports our hypothesis that it is a mass.

1. Reciprocals, refl exives and and distributivity

In general the literature on the bare singular in BrP (Munn & Schmitt 2005, Schmitt & Munn 1999, Müller 2002 and Paraguassu & Müller 2008, Dobrovie-Sorin & Pires de Oliveira 2008), despite their different theoretical perspectives, takes for granted that the bare singular cannot be treated as mass, because the two forms do not show the same behavior with respect to individuating predicates: reciprocals, refl exives, and distributive predication. The accepted view in the literature is that the bare singular in BrP is a number neutral count term, so it does not behave like a mass noun. This is taken to support the rejection of Chierchia’s 1998 proposal that mass nouns denote atomic Boolean algebras, and the basis for the commitment to Link’s 1983 hypothesis that the mass domain is ontologically distinct from the count domain because it is atom-less.

These authors argue that the bare singular does not behave like bare mass nouns in contexts which ask for some sort of individuation or distributivity, as with reciprocals and refl exives. This result is expected

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under the view the predicate must distribute over a set of atoms, and since mass nouns are not generated by sets of atoms, they are not compatible with these operations. On the other hand, it is argued that the bare singular, because it is associated with a count predicate (though number neutral) is generated by a set of atoms. This is illustrated by the examples in (1) and (2), from Munn & Schmitt 2005. Sentence (1) is fi ne, because criança ‘child’ is count. On the other hand, sentence (2) is ungrammatical. This is because the distributive predicate pesa duas gramas ‘weighs two grams’ cannot distribute over the bare mass noun ouro ‘gold’, since this substance has no atoms in its denotation. (Munn & Schmitt 2005, Schmitt & Munn 1999, also in Paraguassu & Müller 2008):

(1) Criança (nessa idade) pesa 20 kg. Child (at-this age) weighs 20 kilos. “Children weigh 20 kilos at this age.”

(2) * Ouro pesa duas gramas Gold weighs 2 grams.

Further supporting their claim, these authors argue that the same contrast shows up when we combine the bare singular and bare mass nouns with predicates like ‘one after the other’ that also distribute over individual atoms as exemplifi ed below (all the examples are from Schmitt & Munn 1999):

(3) Elefante cai um atrás do outro. Elephant falls one behind of-the other. “Elephants fall down one after the other”

(4) * Ouro cai um atrás do outro. Gold falls one behind of-the other. Intended meaning: “Pieces of gold fall down one after the

other”.

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The contrast exemplifi ed in (3) and (4) is repeated when the reciprocal is in argument position. In (5) and (6), the reciprocal is fi ne with the countable bare singular, but not with bare mass nouns. Similarly, the cliticized reciprocal is acceptable with a bare singular subject argument. Schmitt & Munn 1999 argue that this is because the reciprocal must distribute over atomic individuals, and take it as evidence that the bare singular has atomic individuals in its denotation, whereas the mass noun does not.

(5) Criança briga uma com a outra. Child fi ghts one with the other. “Children fi ght with one another.”

(6) * Ouro realça um ao outro. Gold enhances one to the other. Intended meaning: “Pieces of gold enhance each other.”

(7) Criança se lava sozinha. Child self alone “Children wash themselves alone.”1

The examples discussed in the literature are all prototypical mass and count nouns, that is mass nouns which denote substances and count nouns which denote inherently individuable entities, that is objects where what counts as one N is part of the meaning of N. Thus gold does not come in natural units, but children do, since if you know the meaning of child, you should in the normal case know what counts as one child.

1 We did not fi nd a plausible minimal contrast with (7) with a bare mass subject (and neither, apparently did Schmitt & Munn). We hypothesize that this is because typical mass nouns are non-animate, while se verbs typically ascribe some kind of animacy to their subjects. Thus the concatenation of a mass noun with a se refl exive is not felicitous independent of issues of atomicity.

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However, as Rothstein 2010a argues, this prototypicality provides neither necessary nor suffi cient conditions for characterising either mass or count terms semantically. There are mass nouns which denote sets of inherently individuable entities, such as furniture and silverware (as argued by Gillon 1992 and Chierchia 1998) and there are count nouns which denote sets of entities where the choice of atoms is contextually determined, such as fence or line. For example, suppose Figure 1 represents the situation in which 4 farmers have land adjoining a common fi eld, and they each build a fence between their land and the fi eld on the relevant side. We call the four farmers A, B, C, and D:

FIGURE 1:

A

B The fi eld C

D

When we count the number of fences in Figure 1, we come to different numbers, depending on what we choose to count as “one fence”. Suppose we choose as “one fence”, the outcome of a minimal building-a-fence event. Since each farmer built a fence, there will be four fences, one on each side of the fi eld. If, however, we assume that a continuous stretch of fencing counts as one fence, then there is only one fence which encloses the fi eld. And if A and B jointly fi nanced their fence-building from one source while C and D jointly fi nanced their fence-building from a different source, then there are plausibly two fences. This variety of answers to the question “How many fences are there” is possible because fence is not a naturally atomic predicate, and the choice of what counts as one is contextually determined. 2

2 Rothstein 2010a shows that there may be different possible answers to the question “how many children are there in the room?”, but that this is because of borderline vagueness, or under-determinedness as to who is a child (whether or not a sixteen year-old counts as a child depends on context-dependent age-restrictions), and not because of under-determinedness as to what counts as ‘one.’

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Rothstein 2010a argues that it is essential to distinguish natural atomicity from semantic atomicity (a claim we return to in section 5). Natural atomicity is a characteristic of predicates such as furniture and child which denote sets of inherently individuable entities and thus, naturally atomicity can in principle be a property of both mass and count predicates. Semantic atomicity, on the other hand, is a property of count nouns, which denote sets of atoms indexed for the context in which they count as atomic. Thus the contextual parameter is encoded grammatically. The set of atoms denoted by a naturally atomic count noun such as child (in English) may not vary from context to context in the same way that the denotation of fence varies, but since both are grammatically count nouns, the contextual parameter must be grammatically encoded in both cases. (We explain this in detail in section 3.) This theory allows for both non-prototypical mass and count nouns, i.e. naturally atomic mass nouns like furniture and silverware, and non-naturally atomic count nouns like fence and line. Rothstein 2010a shows that different grammatical operations may be sensitive to either natural atomicity or semantic atomicity or both.

On closer examination, we see that the effect of combining non-prototypical nouns, (naturally atomic mass nouns and non-naturally atomic count nouns) with reciprocals, refl exives and individuating predicates leads us to the conclusion that these predicates are sensitive not to the mass and count distinction, but to the distinction between naturally atomic and non-naturally atomic predicates. Ouro ‘gold’ is not naturally atomic, but mobília ‘furniture’ is naturally atomic, although a mass noun. Criança ‘child’ is naturally atomic, but cerca ‘fence’ or reta ‘line’ are not naturally atomic, although they are count in the sense that the stem may combine directly with plural morphology and numerals. The following examples show that bare mass nouns which are naturally atomic behave like bare count nouns with respect to distributivity, refl exivity and reciprocity, and while non-naturally atomic bare singulars pattern with non-naturally atomic mass nouns:3

3 See de Braga et al 2010 for empirical evidences concerning the evaluation of native speakers of

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(8)a. Mobília (nesta loja) pesa 20 kilos. Furniture (in+this store) weights 20 kilos. “Furniture (in this store) weighs 20 kilos.”b. Bijuteria (nesta loja) custa 3 reais. Jewellery (in+this store) costs 3 reais. “Jewelry (in this store) costs 3 reais.”

Contrary to Schmitt & Munn 1999 and Paraguassu & Müller’s 2008 expectations, which we shall call the canonical view, sentence (8) is not ungrammatical, although mobília ‘furniture’ is mass. It is not ungrammatical because furniture has natural atoms; over which the predicate pesa 20 kilos distributes. The same reasoning explains its acceptability with reciprocals as indicated in (9):

(9) Mobília (dessa marca) encaixa uma na outra. Furniture (of+this brand) fi ts one in+the other “Pieces of furniture (of this brand) fi t into each other.”

On the other hand, linha ‘thread’ and reta ‘line’ are countable, but not naturally atomic, since what counts as one fence or one (piece of) line varies from context to context. As (10)-(11) show, they do not easily combine with distributive predicates and reciprocals, contrary to the predictions of the canonical view, although they are count nouns as (12) and (13) show:

(10) ?? Cerca (nesse terreno) tem 2 metros. Fence (in+this property) has 2 meters. “Fences in this property has 2 meters”

BrP with respect to these sentences. The authors shows that speakers do not behave as predicted by Schmitt & Munn 1999, since they accept bare mass nouns with distributive predicates given that the noun has natural atoms, and do not accept bare singular nouns with distributive predi-cates if the noun has no natural atoms.

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(11) ?? Reta cruza uma com a outra. Line cross one with the other. Intended meaning: “Stretches of line cross with each other.”

(12) Tinha muitas cercas quebradas. Has-imperfective many fences broken. “There were many broken fences.”

(13) Ele desenhou quarto retas numa página. “He drew four lines on a page.”

These data show that there is good reason to reject the arguments of the canonical view that bare singulars are prima facie not mass nouns and allows us to reopen the question of whether bare singular are really mass nouns. In the following section we investigate this further and show that there are many parallels between them.

2. Distributional Parallelisms between bare mass nouns and bare singulars

In this section we examine various contexts in which the bare singular, the bare mass noun and the bare plural can be used, and we see that bare singulars behave more like bare mass nouns than like bare plurals both in terms of distribution and interpretation. First, we show that the bare plural is always ambiguous between a generic and an existential reading, whereas the bare singular and the bare mass noun are never ambiguous; both can only be interpreted generically. Then we show that both the bare singular and the bare mass noun show restrictions in where they can be used, in particular in combination with perfective aspect, whereas the bare plural show no such constraints.

Although it is controversial whether the bare singular can be in subject position of kind predicates (Schmitt & Munn 1999, a.o. argue

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that it can, whereas Müller 2002 claims that it cannot), Pires de Oliveira et. al 2010 found empirical evidence in corpora analysis that at least for some dialects of BrP the bare singular combines with kind predicate. Thus, the fi rst observation is that both the bare singular and the bare plural noun phrases can be the subject of generic sentences, in particular they may be in subject position of kind predicates like estar em extinção ‘to be in the verge of extinction’. However, they do not mean the same. (14) is ambiguous between the kind reading, where it asserts that all sub-kinds of whales, thus the genus, are on the verge of extinction, and the taxonomic reading, discussed in Krifka et al. 1995, in which the bare plural denotes a set of sub-kinds of whales and the sentence asserts that some sub-kinds of whales are in the verge of extinction (not the genus); a reading that is not available for the bare singular. The sentence in (15) does not have the interpretation of sub-kinds, it has only the kind/genus reading.

(14) Baleias estão em extinção. (taxonomic / kind readings) Whales are in extinction.

“Whales (in general) are on the verge of extinction” OR “Some kinds of whales are on the verge of extinction”

(15) Baleia está em extinção. (only kind reading) Whale is in extinction. “Whales/the whale is on the verge of extinction.”

It is diffi cult to fi nd unambiguously genus-level predicates which apply to mass nouns. Exteberria 2010 treats to be abundant as a genus predicate for mass. Suppose this is so. Sentence (16) shows exactly the same behavior as a kind predicate applied to a bare singular: in (16) we see that it can be applied only to the substance as a whole, and cannot be used to make an assertion about sub-kinds of the substance – like low quality oil, for instance:

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(16) Petróleo é abundante nessa região. (only kind reading) Oil is abundant in+this area. “Oil is abundant in this area.”

In subject position of a kind predicate, the bare mass noun, like the bare singular, only shows a kind reading.

The same contrast in interpretation appears when the bare noun phrases are in subject position of invent-passive sentences, as exemplifi ed in (17):

(17) a. Computadores foram inventados por Babbage. (taxonomic / kind readings) “Computers (in general) were invented by Babbage.” “Some kinds of computers were invented by Babbage.”b. Computador foi inventado por Babbage. (only kind

reading) “Computers (in general) were invented by Babbage”. c. Bronze foi inventado pelos sumérios. (only kind reading) “Bronze (the kind of substance) was invented by the

Sumerians”.

However, a different type of contrast appears when we observe the object position of invent predicates. (18a), with a bare plural direct object, is acceptable and the bare plural is interpreted as denoting sub-kinds, types of computers.4 However, sentences (18b), with the bare singular, and (18c), with a bare mass noun, are just ungrammatical:

(18) a. Babbage inventou computadores. (only taxonomic reading) Babbage invented computers

4 Krifka et al. 1995 argues that this is the only reading available for the comparable sentence in English.

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b. * Babbage inventou computador. Babbage invented computer * Os sumérios inventaram bronze. The Sumerian invented bronze

Thus the bare singular and the bare mass nouns pattern alike in that they cannot be the object of invent predicates.

In object position of dispositional predicates a parallel distinction occurs: the bare plural can have either an kind or an existential reading, while the bare singular and the mass noun have only a kind reading.

(19) a. João gosta de cachorros. (kind / existential readings) João likes of dogs. “João likes dogs in general” OR “João likes some individual dogs”.b. João gosta de cachorro (only kind) João like of dog. “João likes dogs”.c. João gosta de leite (only kind) João likes of milk “João likes milk.”

Following the same pattern, the famous English sentences about the fi remen, brought about by Diesing 1992, also show the same contrast: the bare plural is ambiguous between an existential and a kind reading, whereas both the bare singular and the bare mass noun phrases only display a genus interpretation:

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(20) a. Bombeiros são prestativos. (kind / existential readings) Firemen are helpful. “Firemen in general are helpful” OR “Some plumbers are helpful”b. Bombeiro é prestativo. (only kind reading) Firemen is helpful. “Firemen in general are helpful.”c. Petróleo é útil. (only kind reading) “Oil is useful.”

Schmitt & Munn 1999 observe that the bare plural when in object position of a sentence in which the subject is plural may give rise to “specifi c readings”, as exemplifi ed below:

(21) Os alunos estão procurando artigos de linguística para

apresentar (ambiguous) The students are looking-for articles of linguistics to present “The students are looking for linguistics articles to present.” (Schmitt & Munn: 8, example (15a))

Sentence (21) is three ways ambiguous: (a) there are articles which all the students are looking for; (b) each student may have specifi c articles that she or he is looking for; and, (c) the students are all looking for unspecifi ed linguistics articles. As the authors also observe, the bare singular only has the non-specifi c reading:

(22) Os alunos estão procurando artigo de linguística para

apresentar.

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The students are looking-for article of linguistics to present “The students are looking for linguistics articles to present.” (Schmitt & Munn: 8, example (15b)

Although not noticed in the literature, the bare mass noun shows no ambiguity: leite ‘milk’ below only has non-specifi c reading:

(23) Os alunos estão procurando leite para beber. The students are looking+for milk to drink. “The students are looking for milk to drink.”

In fact, it seems that both the bare singular and the bare mass cannot but have the non-specifi c reading, whereas the bare plural is ambiguous.

The last piece of evidence that the bare plural is ambiguous between kind and existential readings come from the contexts exemplifi ed below. We should note beforehand that both the bare singular and the bare mass nouns only occur as subject of perfective predicates if the noun phrase is focalized. However, the contrast seems to be independent of the focus issue, because the bare plural subject alunos ‘students’ in (24), even if focused, is ambiguous between a quasi-universal and an existential reading; i.e. it may be understood as asserting either that students in general were on strike last year or that some students were on strike. Sentences (26) and (27), with the bare singular and the mass noun subjects respectively, only have a kind reading, i.e. the class of students was on strike, and the genus milk:

(24) No ano passado, alunosF entraram em greve.

(existential / “universal” readings) In+the year last, students entered in strike. “Last year, students (as a group)were on strike.” “Last year, some students were on strike.”

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(25) No ano passado, alunoF entrou em greve.

(only kind reading) In+the year last, student entered in strike. Only: “Last year, students were on strike.”

(26) No ano passado, leiteF desapareceu do mercado.

(only kind reading) In+the year last, milk disappeared of+the market. Only: “Last year, milk (in general) disappeared from the

market.”

We now move to the constraints. As we have already said, another parallel between bare singular and mass nouns shows up in subject of positions of episodic sentences that are not about the kind. As Schmitt & Munn 1999 pointed out, (see also Doron 2003 for Modern Hebrew), the bare singular can freely occur in the subject position of generic sentences, but it cannot be the subject of episodic sentences, unless it gets a list interpretation or is focalized, as shown by (27a). This constraint does not apply to the bare plural; sentence (27b) is naturally grammatical:

(27) a. ?? Mulher usou saia ontem. Woman usedPerfective skirt yesterday. “Women wore skirts yesterday.”b. Mulheres usaram saia ontem. Women usedPerfective skirt yesterday. “Women wore skirts yesterday.”

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There are two issues left unnoticed in the literature: (i) the constraint disappears as soon as a kind reading is available, as showed below in (28), where the modifi cation of the adverb denotes a time span that allows for a kind reading. The same modifi cation with the BP gives rise to a ambiguous reading: the bare plural may be interpreted either generically or existentially, i.e. as an assertion about some women who used to wear skirts:

(28) a. Mulher usou saia na década de 30. (only kind) Woman used

Perfective skirt in+the decade of 30.

“Women wore skirts in the 30’s.”b. Mulheres usaram saia na década de 30. (kind / existential interpretations) Women used

Perfective skirt in+the decade of 30.

“Women wore skirts in the 30’s.” “Women in general wore skirts in the 30’s” or “Some

women wore skirts in the 30’s.”

(ii) the bare mass noun shows the same restriction as the bare singular: it cannot be in the subject position of episodic sentences, unless it is focalized or receives a list interpretation, (29a), though it is plainly fi ne in the subject position of generic sentences, as shown by (29b) and (29c) respectively:

(29) a. ?? Cerveja custou caro. Bier cost

Perfective expensive

“Bier was expensive”.b. Cerveja custa caro. (kind reading) Bier costs expensive. “Bier is expensive.”

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c. Cerveja custava caro na década de 30. (only kind reading) Bier cost

Imperfective expensive in+the decade of 30.

“Bier used to be expensive in the 30’s.”

Thus, it seems that neither the bare singular nor the bare plural may combine with episodic events, unless they are about the genus, as shown below; once again the bare plural is ambiguous between sub-kinds and kind readings, as shown in (30c):

(30) a. Cavalo entrou no Brasil com os portugueses. (only kind) Horse entered

Perfective in+the Brazil with the+plural

portugueses “Horses arrived in Brazil with the Portuguese.”b. Arroz entrou no Brasil com a imigração japonesa. (only kind) Rice entered

Perfective in+the Brazil with the immigration

Japanese. “Rice arrived in Brazil with the Japanese immigration.”c. Cavalos entraram no Brasil com os portugueses.

(taxonomic / kind) Horsesentered

Perfective in+the Brazil with the+plural

portugueses “Horses arrived in Brazil with the Portuguese.”

Let us summarize what the above data shows us: (i) the BP is always ambiguous between kind and existential readings; (ii) the bare singular and the bare mass always denote the kind; (iii) only the BP may be the subject of episodic sentences that are not about the kind; (iv) only the BP is ambiguous between specifi c and non-specifi c readings, the bare singular and the bare mass are always non-specifi c.

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3. Rothstein’s approach to mass and count nouns

The claim that bare singulars in many languages are best treated as mass nouns denoting kind terms was made in Rothstein 2010b. In this section we present a summary of the theory of the mass/count distinction elaborated there, which is itself based on Rothstein 2010a. In section 4 we will use this theory to explain the data presented in the previous two sections.

Rothstein 2010a, b assumes, following Chierchia 1998, that nominals are interpreted with respect to a complete atomic Boolean algebra M. Intuitively, M is the mass domain. U

M, the sum operation on M, is the

complete Boolean join operation i.e. for every X ⊆ M: UMX ∈ M. (⊆

M is

the part of relation on M). The set of atoms A of M is not fully specifi ed, but may remain vague5. All nominals are associated with an abstract root noun, which denotes N

root a subset of M. More precisely, N

root is the

Boolean algebra generated under UM from a set of atoms A

N ⊆M (so

root noun denotation Nroot

has the same 0 as M, its atoms are AN, and

its 1 is UM(A

N)). Root nouns are thus lexically plural in Chierchia’s sense.

However, root nouns, never appear as lexical items.6 Mass noun and count noun denotations are derived from root noun meanings.Mass nouns denote ∩N

root, i.e. the kind associated with N

root. Following

Chierchia 1998, kinds are defi ned via the maximal entity in the denotation of N

root. They are functions from worlds/situations onto the maximal

entity instantiating Nroot

in that world/situation. Thus for any Nroot

and world/situation w the following holds:

(31) ∩Nroot

= λw. U¬M(N

root ,w)

5 Rothstein (2010a) points out nothing hangs on this choice and that the theory can be adapted to fi t different accounts of mass semantics.6 Note that in this respect Rothstein (2010b) differs from Rothstein (2010a). In the latter paper, mass noun denotations are identical to root noun denotations i.e. they are predicates. Rothstein (2010b) argues that mass nouns denote kinds. In this paper, we follow Rothstein (2010b)

.

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Two Sorts of Bare Nouns in Brazilian Portuguese

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Since we can restrict ourselves to extensional contexts in this paper, we can assume that the denotation of a kind term is (∩N

root )(w

0) (with

w0 ¬

the world of evaluation). Kind terms are thus expressions denoting individual entities of type k.

(32) Mass nouns:a. the denotation of a mass noun is N

mass = MASS(N¬

root) = (∩N

root)(w

0)

b. ∪ is the function from kind(-extensions) to sets of individuals such that for every kind(-extension)

d(w0): ∪(d(w

0)) = λx. x ⊆

M d(w

0)

Fact: for every root noun Nroot

: ∪(∩Nroot

(w0))

= N

root

So mass nouns denote the kind associated with the root noun, while the predicative use of a mass noun can be recovered by the ∪ function. The ∪ function, when applied to the kind term, will give back the original meaning of the root noun, i.e. the set of instantiations of the kind term in w.

Count nouns differ from mass nouns because they allow direct grammatical counting. Rothstein (2010a) argues that counting entities is dependent on a contextually determined choice as to what counts as one entity. As we saw in section 2, this is shown by nouns such as fence, wall and bouquet, which are count nouns and therefore must denote sets of countable atoms, but which nonetheless denote different sets of atoms depending on context.

The choice of what counts as one entity is encoded the notion of (counting) context k:

(33) A context k is a set of objects from M, k ⊆ M, K is the set of all contexts.

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The set of count atoms determined by context k is the set A

k = {<d, k>: d ∈ k}

Singular count nouns are derived from root nouns by a count operation COUNT

k ¬ ¬ ¬which applies to the root noun meaning N

root

and picks out the set of ordered pairs {<d, k>: d ∈ N ∩ k}, i.e. the set of entities in N

root which count as

one in context k.

(34) For any X ⊆M: COUNTk(X) = {<d, k>: d ∈ X ∩ k}

The interpretation of a count noun Ncount

in context k is: COUNT

k(N

root).

Nk is the count noun denotation derived by COUNT

k(N

root). Plural

count nouns are derived by applying the standard plural operation to the fi rst projection of N

k. “The n-th projection of N

k” is defi ned using the

π function as in (41). PL applied to N

k is defi ned in (42):

(35) π1(N

k¬) = {d: <d

,k> ∈ N

k}

π2(N

k¬) = k

(36) In default context k: PL(N

count) = *N

k = {<d,k>: d ∈*π

1(N

k¬)}

Examples: STONEmass

= MASS(STONEroot

) = ∩STONEroot

= stone

STONEcount

= COUNTk (STONE

root)

= {<d, k>: d ∈ STONEroot

∩ k}

So STONEmass

and STONEcount

are different kinds of entities in wo

and are of different types. STONEmass

denotes the kind in wo, type d i.e.

the maximal quantity of stone in wo.

STONEcount

denotes a set {<d, k>: d ∈ STONE

root ∩ k} of type < dxk, t> i.e. the set of indexed entities

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which count as one in context k. We see that crucially root, mass and count terms are of different types. Root terms denote subsets of M and are of type <d,t>. Mass terms denote kinds and are of type d. Predicates derived from mass terms via ∪ are of type <d,t>, and have denotations equivalent to root nouns. Count terms, which denote sets of pairs in M x K, are of type <dxk, t>.

One of the advantages of this theory, as argued by Rothstein (2010a, b), is that it allows us to distinguish between natural atomicity and semantic atomicity. Semantically atomic predicates are the denotations of singular count predicates. i.e. sets of pairs <d,k>. These are sets of indexed entities bearing the identical index indicating the context in which they count as one. Naturally atomic predicates are predicates which denote sets of inherently individuable entities. These sets may be either singular or plural (where the plurality maybe either lexical or grammatical). A set denoted by a naturally atomic predicate is a naturally atomic set. A singular naturally atomic predicate denotes a set of inherently individuable singularites, while a plural naturally atomic predicate denotes a set generated under sum from a naturally atomic set of singularities. Naturally atomic mass nouns and naturally atomic count nouns are defi ned as follows: A mass noun denoting the kind ∩N

root is naturally atomic if the N

root it is derived

from is naturally atomic. A count noun denoting Nk (or *N

k) is naturally

atomic if π1(N

k) or π

1(*N

k) is naturally atomic.

In a mass/count language such as English canonical mass nouns such as water and mud are not naturally atomic, but some mass nouns such as furniture, cutlery, jewellery, company are naturally atomic. Conversely, many count nouns are naturally atomic, but some count nouns are not naturally atomic. Examples of these were noted in Mittwoch 1988, Krifka 1992, Rothstein 1999, 2004, 2010a, and include fence, wall, lawn, sequence, line, plane, twig. As Rothstein 2010a argues, both natural and semantic atomicity are grammatically relevant for quantity judgment, for certain distributive predicate and for some instances of anaphora. To give just one example here, Rothstein 2010a shows that big distributes over natural atoms of furniture when predicated of mass nouns.

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(37) a. The furniture in our house is big.b. In a department store: “The big furniture is on the third

fl oor.”c. To movers who are emptying the house: “Take the big

furniture down fi rst, please”d. “Don’t buy big furniture; the stairs are too narrow to

carry it up”.e. “Baggage in excess of 70 pounds (32 kilograms) or 115

linear inches (292cm) (total length + width + height) will not be accepted as checked baggage.” (www.continental.com: excess baggage).

Rothstein (2010b) argues that in the default case in English either

the rule deriving mass nouns applies to Nroot

or the rule deriving count nouns applies to N

root, but not both. This is formulated in (39):

(38) Default principle of exclusive choice for lexical noun derivation (for

English): Either COUNT

k or MASS applies to a root noun, but not

both.

In a limited set of cases, namely with foodstuffs such as apple and substances such as stone both rules may apply, and in these cases the language has both mass and count forms of the same root lexeme. Rothstein (2010b) suggests that languages vary as to whether the default principle set out in (38) applies. She suggests that if a language generally allows bare singulars alongside count predicates, this is because the principle in (38) does not apply. Bare singulars are thus mass nouns, which are derived alongside the count form of the lexeme. Brazilian

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Portuguese is a good example of such language. On this account, bare singulars in Brazilian Portuguese denote kind terms (just as other mass nouns do). Thus the mass form of menino is hypothesized to have the denotation ∩BOY, while the count nominal denotes the set of ordered pairs {<x, k>: x ∈ BOY ∩ k}.

In the following section, we show how this semantic analysis explains the properties of bare singulars in Brazilian Portuguese that we discussed in sections 1 and 2.

4. First steps into understanding the Brazilian data

It is not our aim to present an exhaustive explanation for the behavior of Brazilian Bare Noun Phrases; in particular, we shall not deal extensively with the object position. But rather to explore a new explanation which relies on the hypothesis there are just two sorts of bare nouns in BrP: Bare Mass nouns and bare plurals. We will see in the next section that this hypothesis leads to surprising correct predictions. In this section, we show how an explanation for the facts raised in sections 1 and 2 may be explained taking Rothstein’s as starting point.

Let us begin by explaining the data discussed on section 1, where we showed that the predictions of the ‘canonical view’, according to which distributive predicates – reciprocals, refl exives and distributive predicates like pesar 20 kg ‘to weight 20 kg’ - were to combine only with bare singulars, because only they have atoms, were not confi rmed if we consider non-prototypical count and mass nouns. Distributive predicates do not combine naturally with count nouns that have no natural atoms such as cerca ‘fence’, and bare mass nouns that have atoms - mobília ‘furniture’ for instance - are acceptable when they are combined with individuating predicates, contrary to the predictions of the canonical view. These fi ndings give support to Rothstein’s hypothesis that natural atomicity should be kept apart from semantic (grammatical) atomicity, and that it plays a role in grammar. As it was already said, naturally

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atomic predicates denote sets of inherently individuable entities, whereas semantic atomicity is the characterizing property of a count expression, i.e. an expression of type <dxk, t>.

Now, since what was called bare singulars were build from count nouns, which are prototically naturally atomic, they naturally fi t as arguments of these distributive predicates. But since canonical mass nouns such as mobília ‘furniture’ are equally felicitous as arguments of these predicates, this cannot be evidence that the bare singulars are not mass. And, as we saw in (10) and (11), non-naturally atomic bare singular correlates of count nouns do not take distributive predicates. This further supports the claim that co-occurrence with distributive predicates distinguishes between naturally atomic and non-naturally atomic nouns and not between mass and non-mass expressions. Note, by the way, that there is cross linguistic variation as to whether these distributive predicates are sensitive to natural or semantic atomicity. In Brazilian Portuguese reciprocals are sensitive to natural atomicity as well as semantic atomicity, and (9), repeated here, is acceptable. In English, reciprocals allow only semantically atomic expressions as their antecedents. The correlate of (9), given in (39a) is ungrammatical, while (39b) is perfectly acceptable.

(9) Mobília (dessa marca) encaixa uma na outra. Furniture (of+this brand) fi ts one in+the other “Pieces of furniture (of this brand) fi t into each other.”

(39) a. *Furniture is stacked on top of each other.b. Pieces of furniture/chairs were stacked on top of each

other.These data show that there is no foundation for the generalization

that bare singulars are atomic while bare mass nouns are not, and this means that while distributivity is sensitive to (natural) atomicity, it does

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not distinguish between bare mass and bare singular expressions, and thus there is no prima facie reason for treating them as separate classes of expressions.

We turn now to the data presented in section 2 that may be summarized as: (i) the BP is always ambiguous between kind and existential readings – including taxonomic readings are some sort of existential; (ii) the BP is ambiguous between specifi c and non-specifi c readings; (iii) the bare mass and the singular always denote the kind; and fi nally (iv) they are never specifi c. Before presenting our hypothesis we should make clear that many issues will be raised here that will not be discussed, since our aim is just to sketch a possible solution.

In order to explain our facts we have to assume a assymmetry between the external argument position and the internal argument position. This is a hypothesis widely assumed by several authors: for instance, Kratzer’s neodavidsonian approach to the agency or Carlson’s (2003) claim that weak determiners cannot be in the external argument position. Our hypothesis is that the bare mass noun phrases, when in external position, i.e. a position that is adjoined, always denote the kind via the application of the down operator. Thus, the only individual a bare mass noun can denote as a kind. As formally stated in (31), the down operator applies to the root noun, and results in the maximal sum in each world. Baleia

root

‘whale’ denotes the set of whales that is not atomically specifi ed, i.e. it does not have semantic atoms, though it does have natural atoms. The down operator applies ∩Baleia

root and denotes for every world the

maximal entity instantiating the whale property in that world. The same derivation applies to a root noun as Petróleo

root ‘oil’: it denotes the set

of non-atomic individuals; the down operator applies to it resulting in the intensional individual, the kind Oil. Thus, the bare singular and the bare mass noun phrases denote intensional individuals, type <s, d>, a function from worlds to the maximal sum in each world, when they are agents. They are in Carlson’s 1977a, b terms proper names; they rigidly designate the kind.

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If this is so, we immediately explain that they may combine with kind predicates such as estar extinto ‘to be extinct’, as in example (15), and ser abundant ‘to be abundant’, in example (16). The same reasoning applies to the examples (17b) and (17c) where the bare mass nouns are names of kinds, because they are in subject position of invent passive sentences. The examples in (20) – the fi remen cases - show that the bare mass nouns cannot have existential readings. When in the position of agency, bare mass nouns can only denote the kind. Thus, we explain why in contexts as exemplifi ed by the sentences in (20) only the kind reading is available. If the predicate is not about the kind, the bare mass is blocked, because there is a crash between the predicate which is about the specimens, and the subject which denotes the kind. This is the explanation for the behavior of the bare mass nouns when in episodic sentences that are not about the kind, as exemplifi ed in sentences (27a) and (29a). The bare nouns in these examples are in external argument position, so they can only denote kind entities, but the predicates ask for stage level individuals, i.e. specimens, and the acceptability of the sentence is blocked. As soon as the predicate is raised to the kind level, the sentence is fi ne. Focus seems then to be a way of raising the predicate to the kind level, an issue we will leave aside.

In internal argument position the bare mass noun denotes a mass predicate, i.e. a predicate that denotes a lattice without semantic atoms. We propose that this is the reason why the bare mass noun cannot be in object position of invent predicates: when in object position they are mass predicates, and as such they cannot denote a particular entity; though they may denote a set of instantiations of the kind. We are thus proposing that the Bare Mass either denotes the individual kind or it denotes a mass predicate, by which we mean a predicate that has no semantic atoms. The main issue with this approach is the examples in (19) with dispositional predicates, which could be understood as counter-examples to our explanation. However, if Kratzer’s suggestion that dispositional predicates allow the scrambling of their object in

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the logical form is correct, then the bare mass nouns are not in object position, but rather in an external position, where they must denote an individual, and the only individual they can denote is the kind. Thus, the only option is that the bare mass denotes the kind. And this is precisely the interpretation that we have for (19b) and (19c).

Thus, our proposal is that when in internal argument positions, the bare mass nouns are property denoting expressions, as such they undergo some type of incorporation; thus, they cannot denote a particular individual. In (22) and (23) the students are in an activity of ‘linguistic-papers-searching, and of ‘milk-searching’. They undergo incorporation because they denote a predicate where no operation of semantically individuation has taken place.

Let us explain the distinct behavior of the bare plural. The generalization is that the bare plural is always ambiguous between kind and existential readings, understanding taxonomic readings as some sort of existential reading. We propose that the bare plural always denotes a plural predicate. The derivational process that gives raise to the bare plural in Brazilian Portuguese relies on a contextual operation of constituting a semantic individual, that is, an individual that counts as a unit. The count operation applies to the root noun if there is a contextually given unit, as stated from (33) to (35). We saw on section 3 that the singular predicate is engendered by pairing a contextual unit and an individual. Thus, its type is <dxk, t>, where k is the contextually given unit. Semantic atoms are then indexed individuals. A pluralized predicate, like meninos ‘boys’, denotes the set of indexed plural individual. Now an operation of type shifting must apply so that the bare plural may be in argument position. Since the plural predicate is constituted of indexed individuals, all the operators may apply. Applying the down operator will give us the kind interpretation. Existential closure explains their existential interpretations. The BP may have stage level interpretations when in subject positions because it denotes a set of semantic individuals that may occupy the external position. Thus, there are two alternative: either

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the down operator applies resulting in the maximal sum of individuals, the kind, or the up operator applies to the indexed individuals, and the result is the existential reading. This is indeed a good result, because it explains the data presented in section 2. As we have seen throughout the examples, the bare plural in Brazilian Portuguese may denote the kind or it may have existential interpretations. Moreover it explains why the bare plural shows no restriction with respect to being in the subject position of episodic predicates. In such contexts, it will denote indexed individuals, an alternative that is blocked for the bare singular and the bare mass because they do not have semantic atoms in their denotations.

5. Some Surprising Predictions

In this section we will further explore our proposal, showing that it correctly predicts some facts that were not even noticed in the literature. We shall explore two data: (i) the combination of the bare singular with mass quantifi er, a surprising fact given that the literature has always claimed that the bare singular is bare; (ii), the bare singular in comparative sentences.

The literature on bare singular has always stressed that it is bare, that it always show up without any quantifi er. This is the reason why it is said to be bare. Nonetheless, if our hypothesis is sound, and the bare singular is mass, then we expect that it may be under the scope of mass quantifi ers. In Brazilian Portuguese, mass nouns combine with muito/muita ‘much’, whereas plural count nouns only combine with muitos/muitas ‘many’:

(40) a. Tinha muito óleo na maionese. Had

imperfective much oil in+the mayonnaise

“There was too much oil in the mayonnaise.”

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b. Tinha muitos/*muito alunos na sala. Had

imperfective many/much students in+the room.

“There were too many students in the room.”

Muito always agrees with its complement in gender and number. When it takes a bare plural form it agrees in gender and is marked plural. With the bare singular it agrees with the complement in gender and there is no surface mark of plurality. However, the predicate cannot be singular, because muito cannot apply to a semantic atom. Thus, the only possibility is that the predicate is a root noun.

In order to ask for quantities, BrP uses the wh-expressions quanto or quantos: quanto ‘how much’ is used with mass predicates, whereas quantos ‘how many’ appears with plural count nouns:

(41) a. Quanto óleo vai na massa? How oil goes in+the dough “How much oil goes in the dough?”b. Quantos livros ele comprou? Hows books he bought “How many books did he buy?”

But we also have quanto with the bare singular, which again cannot be the singular predicate, thus it must be the root noun.

Consider now the following context: João is travelling and has a huge amount of books on his hands. His mother can make the following remarks:

(42) a. Quanto livro você acha que pode levar!? Much book you think that can to carry Intended meaning: “What quantity of book can you

carry?”

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b. É muito livro pra você levar. Is much book for you to carry? Intended meaning: “The volume of books is too much

for you to carry.”

In (42a) the mother is commenting on the volume of book that he is carrying, not on the cardinality of books. The sentence may be true even if he has few books, provided that the books are thick or heavy. Her comment in (42b) is also about the volume, the weight of the books is too much for him to carry. Here again, (42b) may be true in a situation where he has only few books but they are all very heavy.

In contrast with (42a), the sentence in (41b) cannot but be about the number of books that he bought; it cannot be about the volume. The same restriction appears with muitos ‘many’. The sentence below is only about the units of books; it is then false in a situation in which he has bought few books, even if they are thick ones:

(43) João comprou muitos livros. João bought

perfective many books.

“João has bought many books.”

On the other hand, sentence (44) may be used to ask the volume or the weight of the books, as when we buy books by kilo:

(44) ?? Quanto livro você comprou? How book you bought

perfective.

Intended meaning: What quantity of books did you buy?”

Thus, contrary to the traditional view, the bare singular does not always have to be bare, but it can occur with mass quantifi ers, a prediction of our theory.

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Another unnoticed fact in the literature about the bare singular which also supports our approach is that the bare singular may appear with a partitive preposition, which cannot occur with the bare plural, but may with the bare mass:

(45) a. Quanto de livro eu posso carregar?7

How of book I can carry Intended meaning: “What quantity of book can I carry?”b. Quanto de leite eu ponho no bolo? How of milk I put in+the cake “How much milk should I put in the cake?”c. * Quanto de livros eu posso carregar? How of books I can carry

Finally, we shall comment on the behavior of the bare singular in comparison sentences. Bale & Barner 2009 argue that the best test to distinguish mass from count nouns is their behavior in comparison sentences: comparing count nouns amounts to comparing the cardinality, whereas mass nouns may access different scales. Comparing mobília ‘furniture’, for instance, may be comparing the volume or the number of pieces , because furniture has natural atoms; whereas comparing meninos ‘boys’ can only be a comparison of cardinalities. The comparative judgments shift according to the syntactic status of the noun as mass or count. Given our hypothesis we expect that the bare singular behaves like mass: it may be interpreted as comparing units or as comparing according to some other dimension.

7 These uses are attested in corpora: O quanto de livro se escreveu e vendeu, ou, quantas pregações se realizaram nos meios de comunicação ou fora deles.<http://www.guiame.com.br/v4/11832-1526-Coluna-Pr-Heliel-Carvalho-Arrepen-dei-vos.html>

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(46)a. Esse jardim tem mais pedra do que aquele. This garden has more stone of+the that other. “This garden has more stone than the other one.” b. João tem mais corda que Pedro. João has more rope than Pedro. “João has more rope than Pedro.”

(46a) may be interpreted as stating that the volume of stones in one garden is greater than in the other or that there are more units of stones in one garden than in the other. The ambiguity disappears with the bare plural which can only be interpreted as comparing number of units – example (47a). (46b) may be true in two different situations: if João has more units of ropes than Pedro has or if the length of the rope that João has is wider that the length of Pedro’s rope. Here again there is no ambiguity with the bare plural: (46b) compares the number of units that they have:

(47)a. Esse jardim tem mais pedras do que aquele. This garden has more stones of+the that other. “This garden has more stones than the other one.” b. João tem mais cordas que Pedro. João has more rope that Pedro. “João has more rope than Pedro.”

As our theory predicts, the bare singular behaves like mass: it may access different scales. Another argument to show the same conclusion is that people may disagree about the interpretation of a comparative sentence when it has a bare singular. Suppose two fi shermen go to a store to buy living earthworms for fi shing, and they are comparing cans with living worms:

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(48) a. Essa lata tem mais minhoca do que aquela. This can has more earthworm of+the that that. “This can has more quantity of earthworm than tha one.”b. Não. Essa tem 10 e aquela tem 12 minhocas. No, this has 10 and that has 12 earthworms. “No, this can has 10, and the other one has 12

earthworms.”c. Mas essa pesa mais. But this weights more “But this one is heavier.”

If Bale & Barnes are correct, the bare singular behaves like mass,

as expected by our approach.

Conclusion

The aim of this paper was to explain the distributional parallelisms between the bare singular and the bare mass noun in contrast with the bare plural, which were so far unnoticed in the literature. We rejected the canonical view according to which the bare singular is not mass because they do not behave alike in distributive contexts. We have shown that the canonical generalization according to which the bare singular is acceptable in such contexts whereas the bare mass is not does not hold when non prototypical mass and count nouns are taken into consideration. Mass nouns which denote sets of natural individuals behave like count nouns: they are acceptable with distributive predicates. On the other side, atom-less count nouns behave as mass: they are rejected in such contexts. The contrast between prototypical bare singulars and bare mass nouns in distributive contexts is explained by the speakers’ sensitivity to natural atomicity.

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In section 2, we presented several distributional parallelisms between the bare singular and the bare mass noun and showed that the bare plural does not have the same behavior. The empirical generalization is that the bare singular and the bare mass noun always denote the kind, whereas the bare plural is ambiguous between a kind or an existential interpretation. Based on Rotsthein 2010a, b our proposal is that the bare singular and the bare mass always denote the kind: the root noun is lowered to an intensional individual via the down operator. Since the root nouns do not denote indexed individuals, they cannot be in the external argument position. The bare singular and the bare mass only denote kind. This explains why the bare singular and the bare mass noun cannot occur in episodic contexts, unless the predicate is about the kind. The derivation of the bare plural explains the fact that it may have existential interpretations: it is derived from the singular predicate, which denotes indexed atomic individuals. Since it denotes indexed individuals, it may be in the external argument position. We have briefl y argued that the bare singular and the bare mass in object position are predicates, which are interpreted as denotating instantiations of the kind.

Finally, in the last section we showed that our theory predicts correctly two facts: (i) contrary to what is taken for granted in the literature, the bare singular is not always bare, it may be bound by mass quantifi ers, and (ii) in comparative sentences, the bare singular behaves as mass, since it does not necessarily access the cardinal scale.

Our analysis has raised at least as many questions as we have answered, and central among them is the question of the relation between perfective aspect, episodic event predicates and the interpretation of bare nouns. We leave these questions for further research.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 267-289. 1ª parte 2011

AU NOM DE NON, PERSPECTIVES DISCURSIVES SUR LA NEGATIVITÉ

Denis BERTRANDUniversité Paris 8-Vincennes-Saint-Denis

Introduction

« Au nom de non ». En français « nom de nom! », avec un « m » à la fi nale du deuxième nom, est un juron, comme « nom de Dieu! », mais en plus faible… L’interjection « Nom de nom! » s’emploie, entre autres, pour signifi er la diffi culté d’une tâche. Parler du négatif en effet n’est pas une tâche simple, d’où ce jeu de mots pour introduire une ou deux années de réfl exions actuelles et à venir sur cette problématique. Mais aussi, c’est au nom de « non » et plus largement d’un travail collectif sur le négatif que sont présentées ici quelques réfl exions sémiotiques. Le point de départ de cet exposé est en effet le sujet du Séminaire Intersémiotique de Paris pour l’année 2010-2011: La négation, le négatif, la négativité.

Ce thème pose, comme d’autres, la question de la position de la sémiotique dans le champ des sciences du langage et plus largement des sciences humaines. Une discipline « jeune » doit toujours justifi er son territoire! Cette question, chaque année, se pose lors du choix d’un sujet pour ce séminaire jugé, à tort ou à raison – en raison de sa fi liation greimassienne –, comme moteur pour les recherches sémiotiques. La sémiotique se situe à la croisée de la linguistique, de l’anthropologie et de la philosophie – plus précisément de la phénoménologie. Quel est donc son lieu propre? On a vu récemment le problème se poser lorsque le séminaire s’était donné pour thème « éthique et sémiotique ». Que pouvait apporter la sémiotique à la question éthique sans se confondre avec le même domaine dans le champ philosophique? Et que pouvait

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apporter, en retour, la question éthique aux avancées théoriques de la sémiotique? Le résultat n’a pas été absolument convaincant. L’originalité des réponses sémiotiques, et donc de sa position disciplinaire, était plus forte quand nous avons abordé les thématiques du temps ou de l’espace. L’enjeu d’un tel problème se trouve peut-être plus redoutable encore avec le thème abordé cette année. C’est pourquoi nous avons tenu au triptyque: « la négation, le négatif, la négativité ». La négation fait référence à la langue, le négatif s’élargit à toute forme de langage, la négativité s’étend comme une isotopie sous-jacente à l’univers des discours.

Lorsque nous avons, avec Jean-François Bordron, cherché à poser les premiers linéaments de cette question, nous avons fait un inventaire des horizons théoriques qui présentaient une image du négatif, et qui en proposaient un traitement selon les objets et les démarches qui leur étaient spécifi ques. Il y a de quoi donner le vertige! Nous avons ainsi inventorié une quinzaine de perspectives différentes. Je les rappelle en allant du plus fondamental ou du plus existentiel vers le plus superfi ciel ou le plus occurrentiel: le sens ontologique du négatif d’abord (qui s’exprime dans le rien, dans le non-être), le sens théologique ensuite (celui de la théologie négative selon laquelle Dieu ne se peut défi nir que négativement), le sens logique (avec son principe de non-contradiction qui fait que quelque chose ne peut être affi rmé et nié en même temps d’un même objet), le sens mathématique (qui s’exprime dans la logique formelle du calcul), le sens dialectique (triomphant avec Hegel, où le négatif médiatise le passage d’un argument à un autre), le sens phénoménologique (dans la perception, avec la suspension du savoir et du croire, l’épokhè, la mise entre parenthèses comme négation), le sens psychanalytique (le travail du négatif, la dénégation, le lapsus), le sens axiologique (prégnant dans le champ éthique, comme l’atteste le « négationnisme » par exemple, mais aussi dans le champ esthétique, avec la laideur ou la fi gure du « poète maudit »…), le sens linguistique (où les termes de la négation défi nissent

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un type de proposition, un « ne pas » différent du sens logique), le sens narratif (la négation narrativisée dans le manque et dans le confl it, ou encore envisagée d’un point de vue pragmatique et adversatif), le sens passionnel (celui du rejet, de la répulsion, du dégoût ou de l’aversion…), le sens cognitif (qui s’exprime dans l’ignorance, le « nul n’est censé ignorer la loi », …), le sens méréologique (le trou, la lacune, le vide, l’absence), le sens sociologique (dans le refus, la résistance, la révolte), le sens physique lui-même (en électricité, en photographie: les négatifs). « Vertige d’une liste », que l’on sait ni close, ni exhaustive… Et le négatif, c’est encore la moitié du langage, peut-être la première moitié. Il se dissémine partout, bien au delà des seules formes de la négation… elles-mêmes si modulables. Bref, immense domaine, immense chantier, dont la complexité est sans nul doute la donnée première. Et pourtant, comment nier l’évidence du négatif en sémiotique? Le négatif est évident parce qu’il est au fondement même du concept de structure ; et il est si évident dans la conception du sens articulé et dans son développement au sein de la théorie qu’on ne l’apercevait plus comme titre de problème. Le négatif comme titre de problème: c’est bien là la justifi cation première de cette thématique qui fait du « non » une question. Ou une suite de questions, d’une part pour faire passer la sémiotique au fi ltre du négatif: qu’en est-il de la négation dans le parcours génératif ? Comment la tensivité la module-t-elle? Quelle part y ont les instances de discours? Et d’autre part, inversement, pour faire passer la négativité au fi ltre de la sémiotique: quelle est la part du catégorique et du graduel dans la négation? Comment les différents champs du discours s’approprient-ils la négativité?

Il me semble possible, pour esquisser quelques réponses à ces questions, d’envisager en quatre points successifs le parcours sémiotique du négatif:

1. L’assomption radicale et opérationnelle du négatif au fondement du structuralisme sémiotique.

2. La plurivalence du négatif, qui nous met à la croisée des langages.

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3. La question des relations entre la négativité et le mal, qui pose le problème de la narrativité.

4. La question de la négation dans l’énonciation, enfi n, au niveau des instances de discours.

1. Tout commence par l’assomption radicale et opérationnelle de la « négativité » au fondement de la théorie sémiotique du langage

Greimas s’est exprimé à ce sujet lors de la séance de clôture de la décade consacrée à son œuvre, qu’avaient organisée à Cerisy-la-Salle Jean-Claude Coquet et Michel Arrivé en août 1983. Ses propos ont été publiés dans Sémiotique en jeu, sous le titre «Algirdas Julien Greimas mis à la question ». Il disait ceci:

« Quel serait l’acte de jugement premier qui serait un geste fondateur de l’apparition du sens? (…) La perception, c’est être placé devant un monde bariolé. Quand l’enfant ouvre les yeux devant le monde pendant les deux premières semaines de sa vie, il perçoit un mélange de couleurs et de formes indéterminées: c’est sous cette forme que le monde se présente devant lui. C’est là qu’apparaît ce que j’appelle le sens négatif, c’est-à-dire les ombres de ressemblances et de différences, les plaques ou les taches qui affi rment une sorte de différence (…). »1 Le sens négatif est donc envisagé ici au foyer même de la signifi cation perceptive. Mais c’est ensuite la logique du négatif qui est développée à propos de la structure élémentaire, au sein du carré sémiotique – fondant l’existence sémantique « comme une pure idéalité » selon l’expression de l’auteur.

« Pour moi, dit Greimas, le geste fondateur c’est la négation de ces termes différentiels, négateurs eux-mêmes. (…) L’acte du jugement, c’est la

1 Jean-Claude Coquet et Michel Arrivé, Sémiotique en jeu. A partir et autour de l’œuvre d’A. J. Greimas, Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins, 1984, p. 313-314.

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négation du négatif qui fait apparaître la positivité. Dans cette perspective, le concept de relation peut être compris comme un phénomène positif et non pas négatif. » C’est ainsi que Greimas pose alors la contradiction comme relation fondatrice dans le carré sémiotique. La contradiction ne doit pas être comprise comme une structure privative de type présence/absence, car, dit-il, « c’est la sommation du terme S1 qui fait apparaître le terme contradictoire non S1. (…) C’est l’absence faisant surgir la présence: non S1 est déjà le premier terme positif. » Le foyer du négatif, ce qu’est la contradiction, comprend donc le principe de la positivité. De plus, en surgissant, le terme contradictoire fait disparaître S1 et impose du même coup la discontinuité. On comprend alors que la relation de contradiction détermine un double phénomène fondateur du sens, celui de la positivité et celui du discontinu. Mais du même coup, Greimas introduit la complexité du négatif et son ambiguïté essentielle, au sein même de la relation élémentaire qui l’incarne. C’est cette complexité qui constitue, me semble-t-il, une des données essentielles de l’interrogation sur la négation, le négatif et la négativité.

Parce que si le sémioticien reprend, en apparence, le principe fondamental, le célèbre « principe négatif qui est au fond de la langue » et qui défi nit la différence, comme l’affi rme Saussure, il le prolonge, le développe et suggère une nouvelle articulation dans son opération même: le positif est inhérent au négatif. On s’éloigne ainsi de la radicalité du négatif chez Saussure. François Rastier a réuni, dans un article intitulé « Signe et négativité. Une révolution saussurienne » publié en espagnol en 2007, un fl orilège de citations qui montrent avec quelle détermination Saussure affi rme ce primat de la négativité. La langue, écrit-il, « s’avance et se meut à l’aide de la formidable marche de ses catégories négatives, véritablement dégagées de tout fait concret » (Ecrits de Linguistique Générale, I, § 26, p. 76). Ou encore: « La langue consiste (…) en la corrélation de deux séries de faits: 1˚ ne consistant chacun que dans des oppositions négatives ou dans des différences, et en des termes différents

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offrant une négativité en eux-mêmes, 2˚ n’existant chacun, dans leur négativité même, qu’autant qu’à chaque instant une DIFFÉRENCE du premier ordre vient s’incorporer dans une différence du second et réciproquement » (Ecrits de Linguistique Générale, I, § 24, p. 73). Ou encore: « Tout (…) est NÉGATIF dans la langue — (tout) repose sur une opposition compliquée, mais uniquement sur une opposition, sans intervention d’aucune espèce de donnée positive. » (22b. [XVIII])

Cette radicalité du négatif est au cœur de la linguistique structurale. Le postulat du négatif est la condition première du principe d’immanence: il détermine l’observable et délimite le champ de l’analyse. Or, modulé ou sur-articulé comme le montre l’analyse de la positivité de la relation de contradiction chez Greimas, le négatif révèle, presque paradoxalement pourrait-on dire, sa plurivalence. Alors même que la négation apparaît comme l’opérateur tranchant de toute catégorisation, la plus nette des découpes au sein du langage, on constate qu’elle émerge plutôt d’une véritable nébuleuse sémantique. C’est le foisonnement négatif qui se manifeste déjà entre le négatif « contradictoire », qui repose sur l’exclusion logique de deux énoncés rivaux, et le négatif « contraire » qui implique une interaction et une transformation permettant, selon les contextes discursifs où il apparaît, le renouvellement sans fi n des phénomènes et de leurs liaisons. (cf. F. Jullien, Du mal / du négatif, p. 128). Quittons donc la question du négatif comme fondement du langage pour en venir, deuxième point, à la plurivalence du négatif qui nous met à la croisée des langages.

2. La plurivalence du négatif: à la croisée des langages

Cette plurivalence est à la base du court traité de Kant Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur négative (1763). Herman Parret est venu récemment présenter au séminaire un exposé remarquable sur

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ce texte2. Kant opère une série de distinctions. Tout d’abord, il distingue le négatif de l’opposition logique et celui de l’opposition réelle. Le premier concerne le principe logique de contradiction (l’impossible affi rmation et négation simultanées sur un même objet, qui n’est d’ailleurs pas la même chose que la relation de contradiction du carré sémiotique). Mais il ne s’arrête pas sur cette opposition logique, dont l’intérêt est surtout de faire ressortir, par différence, la seconde opposition, l’opposition dite « réelle », la seule qui intéresse les « grandeurs négatives ». Celle-ci concerne l’opposition entre deux prédicats « qui ne sont pas incompatibles l’un avec l’autre, mais qui indiquent des tendances inverses, également affi rmatives », écrit Hermann Parret. La navigation avec vent contraire est négative par rapport à la navigation avec vent portant, la chute est négative par rapport à l’élévation, le coucher est négatif à l’égard du lever, etc. Or, Kant distingue, à l’intérieur de cette opposition réelle, deux formes: l’opposition par privation, dans le cas où le négatif surgit d’une force qui lui est égale et opposée (comme dans la navigation), et l’opposition par manque dans le cas où le négatif ne relève que de l’absence d’un principe positif adverse qui lui serait opposable (comme le repos d’une pierre, par opposition au repos contre la fatigue). Levons l’ambiguïté sur le mot « manque »: l’état de manque de la narrativité en sémiotique, celui qui déclenche le processus narratif en vue de sa liquidation, relève bien de l’opposition privative. Le manque dont parle Kant, celui de l’opposition dite « défective » caractérisée par l’absence d’une force opposable, relève plutôt, comme le souligne Parret d’un « fantasme logico-mathématique » (p. 3). Car seul le négatif des oppositions privatives marque la solidarité de deux tendances affi rmatives qui s’affrontent: l’attraction et la répulsion, le désir et l’aversion, le plaisir et le déplaisir. Dans tous ces couples s’imbriquent deux principes positifs polaires, comme dans l’amour et la haine, l’éloge et le blâme ou la beauté

2 H. Parret, “Les grandeurs négatives: de Kant à Saussure”, exposé présenté le 26 janvier 2011. Le texte est disponible sur le site Internet des Nouveaux Actes Sémiotiques.

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et la laideur. Le négatif ne naît que de leur implication réciproque: la beauté est une laideur négative comme la laideur est une beauté négative. Ainsi, la force privative est aussi positive. Et le processus de négativité ne s’effectue qu’en vertu d’une « expérience intérieure », du « sentiment de soi-même ». C’est ce qui provoque l’asymétrie du négatif par rapport au positif: le négatif est plus marqué, il est comme accentué par rapport au positif. Dans l’argumentation, dans le débat politique ou militant, le « non » a besoin d’être expliqué, comme l’a observé Juan Alonso3. L’assentiment du « oui » peut se passer d’explication – qui ne dit mot consent –, mais l’expression du « non » exige une rhétorique réfutative – et du courage!

On voit ainsi se former la plurivalence du négatif, donnée liminaire de son appréhension. Elle se manifeste à tous les étages de la négativité, depuis les formes les plus variées de l’expérience jusqu’aux expressions en langue qui en attestent la présence ou même jusqu’aux formes visuelles. Indiquons quelques variations à ce sujet.

Le psychanalyste André Green, dans son livre Le travail du négatif,4 cherche à délimiter cette catégorie en analysant ses différents aspects: sémantique, linguistique, psychique. Et il en circonscrit la polysémie en isolant quatre acceptions, issues de la praxis, qu’on peut résumer de la manière suivante:

1. Le négatif « polémique » qui attribue au négatif une dimension première de refus. C’est « l’opposition active à un positif » qui le caractérise alors, et qui se traduit par les confi gurations de la résistance, du confl it, de la destruction, dans une relation territoriale duelle de « lutte pour une prééminence virtuelle ». C’est le négatif « vécu ».

3 Juan Alonso, “Dire non. De la résistance”, exposé au Séminaire Intersémiotique de Paris, le 8 décembre 2010.4 André Green, Le travail du négatif, Paris, Minuit, “Critique”, 1993, p. 29-31.

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2. Le négatif de « symétrie », hors de tout contexte de confl ictualité, qui met en regard deux grandeurs opposables et équivalentes, dont le rapport d’inversion ou de permutation est soumis à une simple convention. Le négatif présuppose alors un point de vue externe, celui d’une position « neutre » à partir de laquelle les positions, positive ou négative, peuvent être qualifi ées. C’est le négatif « observé ».

3. Le négatif d’« absence », rapporté à la perception et aux phénomènes de virtualisation liés à ce qui est sélectionné dans la perception, et qui occulte du même coup ce qui ne l’est pas. Ce type de négatif renvoie aux modes d’existence et au mouvement qui assure le passage d’un des modes à l’autre. On peut rapprocher ce négatif d’une sémiotique de la présence et des modes de co-présence. On comprend que cette acception intéresse bien entendu au premier plan la psychanalyse: les représentations inconscientes à faire advenir relèvent du négatif d’absence. C’est le négatif des « modes d’existence ».

4. Le négatif enfi n du « rien », dont la catégorie ne se construit pas par opposition à une adversité contraire, ou à une inversion symétrique observée ou à une présence potentielle dissimulée, mais par rapport à un « n’être pas », par relation avec l’aporie d’un « néant », une sorte de « négatif absolu » en somme. Négatif absolu? Rappelons-nous ce qu’observe Schopenhauer, à propos du « néant », dans Le monde comme volonté et comme représentation. Il écrit: « le concept du néant est essentiellement relatif ; il se rapporte toujours à un objet déterminé dont il prononce la négation. »5 Et plus loin: « Tout néant n’est qualifi é de néant que par rapport à une autre chose ; tout néant suppose ce rapport, et par suite un objet positif. La contradiction logique elle-même n’est qu’un néant relatif. » Ce qui confi rme l’étrange plurivalence du négatif, même dans sa forme supposée la plus absolue.

5 Schopenhauer, Le monde comme volonté et comme représentation, Paris, PUF, 1978 (trad.), p. 512-513.

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Cette mosaïque des « négatifs » en forme de typologie rend néanmoins sensible la polysémie du négatif, et sa gradualité. Et si on se situe à un autre point de vue, non plus macroscopique comme le fait le psychanalyste, mais microscopique comme le fait le grammairien, on retrouve, sous d’autres formes, le même phénomène de plurivalence fl ottante de la négation.

Qu’est-ce que le « non », d’un point de vue grammatical? L’identité labile de ce terme est bien connue. Le « non » est généralement identifi é, faute de mieux, comme un adverbe – mais certains grammairiens préfèrent parler plus prudemment, et de manière tautologique, de « marqueur de la négation ». En tout cas, le « non » peut être modalisé, ou intensifi é ou affaibli, à l’aide de locutions adverbiales (« pas du tout », « certainement pas », « pas tout-à-fait », « pas vraiment »…). Il peut avoir également le statut d’un « nom » (« pour un oui, pour un non », « tous ces non me fatiguent! »), et il peut jouer le rôle d’un préfi xe négatif (« la non-violence », la « non-personne », le « non-lieu », le « non-sujet »). Plus largement, l’énoncé négatif sollicite des termes qui appartiennent à différentes catégories grammaticales, comme si la négativité s’emparait de tout l’arsenal des formes disponibles pour se dire: des pronoms (« personne », « rien »), des déterminants (« aucun »), des adverbes (« ne… pas »), etc. Plus encore, une préfi xation négative peut être sollicitée pour signifi er une valeur positive, comme « ex- » dans « ex-istence », ou « in- » dans « infans » (« enfant »), sans parler des moyens lexicaux et des formes diverses de la relation d’antonymie nominale ou adjectivale. Et la résistance du « non » à la négativité pure se constate encore à travers le ressort positif de la fi gurativité qui est à l’origine, en français, des « pas », des « point », des « mie » (« je n’y vois mie », qui vient de miette), des « goutte » (« on n’y voit goutte », qui vient de goutte d’eau), autant de termes qui entrent dans la composition des expressions négatives et qui renvoient à une expérience sensible positive. Cette expérience n’est donc

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pas celle de la non-valeur, mais celle de la minimisation d’une valeur positive: ce sont ces petits rien – les petits pas, les petits points, les petites miettes, les petites gouttes – qui, en français, ont donné consistance à la négation en s’ajoutant à son élément moteur « ne ». Ils attestent que dans le négatif, il y a quelque chose, et quelque chose de concrètement positif !6 Enfi n, plus largement encore, le négatif s’exprime par tous les moyens lexicaux, phraséologiques ou textuels qui peuvent installer une isotopie de la négativité. Dans Djinn (1981), roman policier pédagogique pour l’enseignement du français, Alain Robbe-Grillet a introduit, dans un chapitre consacré à l’apprentissage de la négation et par delà sa seule morpho-syntaxe, des scènes plus profondément frappées du sceau de la négativité: il n’y est question que d’ombre, de déclin, de faiblesse, de tristesse, de méchanceté…

Un dernier exemple, tiré du langage visuel, peut encore montrer cette variabilité fl uctuante du négatif. Je veux parler du négatif en photographie, ou là encore on ne peut le saisir qu’en couplant les deux termes et en parlant de « positif-négatif ». Si on en croit du moins ce qu’observe le philosophe sémiologue anthropologue belge Henri Van Lier dans sa Philosophie de la photographie7. Dans le paragraphe intitulé: « L’empreinte positive-négative: le battement », Il écrit: « En fi n de compte, une épreuve positive (au sens photographique bien entendu) est un négatif de négatif. Tout tirage conserve de cette double conversion une hésitation de l’obscur et du clair, de l’opaque et du transparent, du convexe et du concave, qui lui confère une sorte de battement. Battement qui ajoute une nouvelle forme d’abstraction, le positif invitant à se lire comme négatif, et inversement. C’est ce qui (…) explique la fascination particulière des contre-jours, qui sont des négatifs de négatifs de négatifs. » Fin de citation. Ce que Van Lier appelle « battement » peut aussi être compris comme procès récursif. Et c’est une première conclusion à

6 Cf. Martin Riegel, Jean-Christophe Pellat et René Rioul, Grammaire méthodique du français, Paris, PUF, 1994, pp. 410-425.7 Henri Van Lier, Philosophie de la photographie, Bruxelles, Les impressions nouvelles, 1983, p. 20

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laquelle on peut parvenir au terme d’une interrogation sur la plurivalence du négatif: la négativité a quelque chose à voir avec la récursivité. Comme si ce phénomène syntaxique, dont le discours acceptable se protège si effi cacement en limitant à trois étages les possibilités récursives (« le fi ls de l’oncle du frère de mon beau-père… »), était défi nitoire de la négation elle-même et expliquait que toute négation, dans sa négociation continue avec le positif, s’ouvre sur un abîme.

Mais avançons d’un pas dans cette expansion de la négativité pour aborder, en se rapprochant du discours en acte, les « perspectives discursives sur le négatif » annoncées dans le titre de cet exposé. J’en retiendrai deux, particulières, mais dont l’éclairage a, me semble-t-il, une portée d’ensemble sur la problématique de la négativité: la relation oppositive entre le négatif et le mal, tout d’abord, dans la perspective de la narrativité ; la relation entre la négation et les instances de discours, ensuite et pour conclure, dans la perspective de l’énonciation.

3. Entre la négativité et le mal: le problème de la narrativité

Pour aborder cette question centrale pour la sémiotique – narrativité oblige –, je prendrai appui sur l’ouvrage de François Jullien, Du mal / du négatif8. Dans ce livre, l’auteur pose d’emblée la catégorisation du négatif sur un horizon axiologique en opposant le « négatif » et le « mal ».

La thèse de François Jullien consiste à interroger la proximité, la parenté, l’attraction qui semble inéluctable entre ces deux notions, au point qu’on les confond souvent: le négatif et le mal. Il va s’employer à les disjoindre en parcourant l’histoire conceptuelle de ces deux grands « motifs » de la pensée dans les philosophies occidentale et orientale, et en mettant en évidence les conséquences considérables de leur différence. Le titre original de son livre L’ombre au tableau indique bien l’équivoque: « l’ombre au tableau », c’est, en tant que métaphore ordinaire en français,

8 François Jullien, Du mal / du négatif, Paris, Seuil, 2004.

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la tache d’un mal à exclure, à proscrire, à éradiquer ; mais, littéralement et visuellement, cette ombre au tableau, « ombre au revers du lumineux », est aussi, écrit-il, « le négatif coopérant à l’économie d’un tout et servant à le promouvoir »9.

Pour lever cette équivoque entre le négatif et le mal, François Jullien propose un ensemble de distinctions que j’interprète librement, et que je reformule en les intégrant au méta-langage sémiotique – non par coquetterie, mais pour bien montrer le lien que cette équivoque entretient avec la narrativité. Il y reconnaît ainsi:

• Une distinction modale, tout d’abord, articulée selon les deux versions de la nécessité, le « devoir être » et le « ne pas pouvoir ne pas être »: le mal renvoie à un « devoir être » supposé, qui est nié (dans la souffrance, dans l’imperfection ou dans le péché) au nom de valeurs positives, déontologiques, à atteindre: le bonheur, la perfection ou la vertu ; le mal a ainsi partie liée avec l’intentionnalité qui s’exprime dans la norme et la morale. Le négatif, lui, renvoie à l’autre version modale du déontique, le « ne pas pouvoir ne pas être »: il est lié à la simple fonctionnalité du monde tel qu’il va, il relève de l’effectuation des choses en dehors de toute intentionnalité.

• Une distinction actantielle, ensuite: le mal implique le point de vue d’un sujet, agent ou patient, ou plus exactement d’un Destinateur de la sanction, exerçant une fonction punitive et répressive certes, mais plus encore une fonction « initiatrice » lorsqu’il est intériorisé (l’épreuve du mal est au service du dépassement) ; le mal s’inscrit donc dans une logique de l’action et de la passion. Le négatif, lui, renvoie à la logique d’un procès, comme l’élémentaire procès de la parole, avec la simple effectuation des opérations d’affi rmation et de négation, ou encore des opérations mathématiques où la

9 Ibid., p. 10.

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qualité du positif et du négatif n’est qu’affaire de convention formelle, en dehors de toute actantialité hiérarchisée.

• Une distinction quantitative, en troisième lieu: le mal isole une singularité. Il met en question la fi gure individuelle d’une personne, d’un acte, d’une histoire toujours particulière. Alors que le négatif a affaire à une globalité, il exprime un rapport à l’intérieur d’un ensemble au sein duquel il apparaît, il sélectionne des parties dans un tout.

• Une distinction relationnelle ensuite: le mal instaure la dualité de termes extérieurs l’un à l’autre. Des termes qui se rejettent sur la base d’un jugement d’exclusion: le bien vs le mal, le bien ou le mal, le Bien abolissant le Mal par exemple. Le négatif suppose une différence interne à un système où deux termes polaires, positif et négatif, sont opposés parce qu’ils vont de pair: l’un ne peut aller sans l’autre. Les termes se caractérisent alors, comme dans le concept structural de relation où le – est solidaire du +, par une com-préhension en vue d’une intégration.

• Une distinction axiologique enfi n: le mal est non seulement inscrit dans un système défi ni de valeurs, mais il constitue une visée négative au sein de ce système. Il est idéologique. D’où son caractère dramatique sur le fond de cet idéal visé et renversable: il est l’objet d’une plainte, il est l’enjeu d’un combat, il se déploie dans les parcours passionnels de l’acharnement. Mais il est aussi confronté à l’énigme d’une origine supposée (d’où vient le mal?). Nous dirions qu’il est d’emblée narratif. Le négatif quant à lui repose sur des valeurs d’ordre logique: il se soumet à des règles qui assurent à la fois la séparation et la coordination. Nous dirions qu’il est d’emblée descriptif. Comme l’écrit François Jullien: « J’exclus en tant que mal, j’inclus en tant que négatif. »

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Sur la base de ces distinctions formelles, on en arrive à un paradigme d’oppositions: l’affrontement et le salut sont du côté du mal, la résorption du confl it et la sagesse sont du côté du négatif. Mais, et c’est là ce qui nous intéresse, la logique négative du mal tourné vers sa libération, le Salut, implique, comme on l’a dit, un récit, comme celui de la chute et de la rédemption. Son objet est le muthos. Alors que la sagesse issue du négatif est sans récit: elle se contente de découvrir un rôle au négatif dans l’économie des choses dont elle cherche, à travers lui, à reconnaître la co-hérence. Son objet est le logos. François Jullien, qui aime bien les formules frappées, écrit encore: « Si je raconte, je mets du drame ; si je décris, je mets de l’ordre. »10

Je ne développerai pas, naturellement, les positions des écoles philosophiques qui incarnent respectivement l’un et l’autre pôle, avec leurs arguments: le Manichéen qui radicalise le Mal, moteur d’Histoire, et le Stoïcien qui l’appréhende en simple négatif, d’où il cherche à faire émerger la positivité qui s’y cache. « Si le Stoïcien traite le mal en négatif, écrit Jullien, c’est qu’il le considère comme accompagnant nécessairement le positif, donc s’intégrant avec lui dans un fonctionnement commun. »11 Je n’évoquerai pas non plus la transculturalité qui fait se rejoindre la pensée stoïcienne et la pensée confucéenne, ni la théodicée qui, en justifi ant le monde tel qu’il est, justifi e aussi Dieu qui l’a fait ainsi. Je conclurai seulement en indiquant qu’à travers ces vastes distinctions, on peut rapprocher le mal d’une logique syntagmatique, et le négatif d’une logique paradigmatique: « Le Manichéen raconte une histoire, le Stoïcien donne à regarder l’univers. » écrit encore François Jullien.

Or, cette réfl exion présente, à mes yeux, un intérêt majeur pour la sémiotique. Elle permet en effet d’interroger le statut du négatif dans la conception générative de la signifi cation. Le négatif, en effet, se manifeste à ses différents étages, donnant leur élan aux structures signifi antes. Mais il est facile de constater qu’il reçoit, selon la strate

10 Ibid., p. 35.11 Ibid, p. 32.

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où on l’appréhende, une signifi cation singulière. Comment passe-t-on d’un négatif à l’autre? Quel supplément de sens lui est attribué dans ce passage aux différents niveaux d’articulation? Je pense évidemment en premier lieu à la conversion des structures fondamentales aux structures sémio-narratives: deux formes du négatif semblent s’y manifester. Si la négativité est bien au principe des structures élémentaires comme à celui de la narrativité, la liaison entre leurs statuts respectifs reste passablement opaque: le négatif « logique » de la relation fondatrice de contradiction – de même que celle, différente, de contrariété –, dans le carré sémiotique par exemple, est-il de même nature que la « négation » qui s’exprime dans les structures polémico-contractuelles des schématisations narratives?

Le négatif comme opération fondatrice postule une co-présence défi nie par un impératif de réciprocité, une coopération des formes, une mutualité des grandeurs que la tensivité va dilater. Son passage au négatif comme opération d’élimination dans le confl it s’exprime à travers les concepts de disjonction et de conjonction. A ce niveau va s’introduire la transformation. Parallèlement à la dynamisation du sens et en raison de son orientation fi nalisée (téléologique), un paramètre axiologique intervient alors, qui transforme la défi nition même de la négation. Quel est donc le lien de nécessité entre le négatif logique et le négatif axiologique? Le premier, selon François Jullien est « un négatif qui coopère », le second est « un négatif qui nuit ». La narrativité comme socle de la signifi cation discursive viendrait ainsi d’une bifurcation de la négation logique. On peut concevoir qu’une autre bifurcation aurait pu conduire, en cohérence avec le statut logique du négatif dans les structures élémentaires, à une autre défi nition de la strate supérieure d’articulation du sens, celle qui aurait pu, par exemple, accorder un primat au descriptif sur le narratif. Une telle bifurcation aurait pu alors donner lieu à une sémiotique fondamentale de la contemplation contre celle de la transformation, celle-ci devenant alors un avatar particulier de la négation. Je me demande si les propositions d’Eric Landowski12,

12 Eric Landowski, Passions sans nom, Paris, PUF, “Formes sémiotiques”, 2006.

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demandant de substituer le concept d’« union » au couple discrétisant et dramatisant de « conjonction/disjonction » ne constitue pas une contribution dans ce sens. Mais la contemplation, fondée sur l’état des choses et des sujets qui montent à la rencontre des autres sujets, et sur l’alliance consentie du positif avec le négatif, n’est-elle pas de nature à générer l’ennui?

On aperçoit en tout cas un des enjeux du négatif. La distorsion entre les deux versions de la négation, entre les structures fondamentales et les structures narratives de surface, conduit à une remise en question, ou au moins à une interrogation, sur une des assomptions centrales de la sémiotique: la narrativité comme donnée permanente du sens articulé, comme condition immanente, sous-jacente à la saisie discursive du sens.

Un petit texte de Charles Cros, que j’ai étudié il y a longtemps pour faire apparaître les conditions minimales de la narrativité13, vient à point nommé pour illustrer cette problématique: ce texte a pour titre « Autrefois ». Il traite du négatif, sur un registre à la fois humoristique et tragique, à travers le leitmotiv du « pas de ». En voici le début.

« Autrefois »Il y a longtemps – mais longtemps, ce n’est pas assez pour vous donner l’idée…

Pourtant, comment dire mieux? Il y a longtemps, longtemps, longtemps ; mais longtemps, longtemps.

Alors, un jour… non, il n’y avait pas de jour, ni de nuit, alors une fois, mais il n’y avait… Si, une fois, comment voulez-vous parler? Alors il se mit dans la tête (non, il n’y avait pas de tête), dans l’idée… Oui, c’est bien cela, dans l’idée de faire quelque chose.

Il voulait boire. Mais boire quoi? Il n’y avait pas de vermouth, pas de madère, pas de vin blanc, pas de vin rouge, pas de bière Dréher, pas de cidre, pas d’eau! C’est que vous ne pensez pas qu’il a fallu inventer tout ça, que ce n’était pas encore fait, que le progrès a marché. Oh! le progrès!

Ne pouvant pas boire, il voulait manger. Mais manger quoi? (…)

13 Cf. Denis Bertrand, Précis de sémiotique littéraire, Paris, Nathan, 2000.

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Etc., etc. la déclinaison du négatif se poursuit jusqu’au dernier « vouloir », après le « Alors mourir! Oui, il se dit (résigné): Je veux mourir. Mourir comment? Pas de (…), pas de (…), pas de (…) »…

Alors il ne voulut rien! (Plaintif) Quelle plus malheureuse situation!... (Se ravisant) Mais non, ne pleurez pas! Il n’y avait pas de situation, pas de malheur. Bonheur, malheur, tout ça c’est moderne!

La fi n de l’histoire? Mais il n’y avait pas de fi n. On n’avait pas inventé de fi n. Finir, c’est une invention, un progrès. Oh! Le progrès! Le progrès! (Il sort, stupide.)

Plaidoyer pour la narrativité? Ce texte en effet manifeste la résistance du narratif à ce qui tend à le nier. D’abord parce que ce qui est nié est asserté, et donc promu négativement à une existence positive. Mais ensuite parce que l’analyse des inventaires lexicaux montre qu’ils obéissent à un ordre du sens sous la forme de micro-programmes d’action, induits par la lexicalisation, d’une part, et dans les suites lexicales elles-mêmes, d’autre part. Par exemple, la première liste, celle des boissons, est structurée par des objets-valeur qui s’ordonnent selon un degré de décomplexifi cation, ou de simplifi cation progressive des opérations de leur élaboration (du vermouth et du madère au vin, du vin à la bière et au cidre, du cidre à l’eau enfi n). On assiste à une tentative de dénarrativisation. Une positivité orientée résulte ainsi de la suite des négations, comme si, au sein même de la négativité, cette positivité devait – « comment voulez-vous parler? » –, ou plutôt « ne pouvait pas ne pas » se faire jour. Comme si cette positivité parvenait, en dépit d’un absolu négatif, à se manifester comme une règle plus profonde que la négativité elle-même. En somme, le négatif n’arrive pas à se nier, il n’arrive pas à l’effacement total, il ne parvient pas au bout de la négation!

Le négatif se présente alors comme la condition de la processualité, ce qui est une justifi cation du narratif. Il est ce à partir de quoi s’ordonne du pensable, et il sert de borne au devenir. Plus profondément, François Jullien observe que si le positif n’existe qu’en relation avec le négatif, c’est qu’il doit être appréhendé, non pas comme la manifestation d’une

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dualité extérieure, mais comme « différence de soi-même », au sein de soi-même (p. 120). Il écrit: « Finalement, c’est le phénomène lui-même qui est négativité, différence de soi-même avec soi-même » (id.). C’est ce phénomène que nous pouvons élever au niveau de l’instance de discours, ou plutôt, en d’autres termes, nous pouvons inclure dans ce phénomène les instances discursives. Et voici mon dernier point: négation et instances de discours.

4. La négation dans l’énonciation: les instances de discours

Un mot sur la trame de la négativité, à travers le cas du français: la négation s’y distribue en deux formants: ne… pas (« il ne veut pas »). Et la cheville ouvrière du négatif est bien dans le « ne » plus que dans le « pas »: c’est lui qui autorise les modulations du négatif, sur le mode de la restriction: « ne… que… » (« il ne veut que… »), sur le mode du révolu: « ne… plus » (« il ne veut plus… »), ou sur le mode de la temporalité: « ne… jamais » (« il ne veut jamais… »). Envisageons donc la gouvernance du « ne » (qui serait, paraît-il, en voie de disparition)…

J’ai lu les analyses de Lacan sur le négatif. Je pense notamment au célèbre passage sur les « traces de pas » de Vendredi qui permettent à Lacan de défi nir le signifi ant. Comment arrive-t-il au renversement des « traces de pas » en « pas de trace »? Voici comment on peut, en simplifi ant bien sûr, le comprendre: Robinson découvre des traces de pas dans le sable, signe d’une présence humaine sur l’île déserte. Ce ne sont pas ces traces qui, en elles-mêmes, constituent le signifi ant. Robinson, en effet, efface les traces, effaçant du même coup la signifi cation de la trace: il y a un autre homme sur l’île. Mais il marque l’endroit de leur effacement, d’un trait, d’une croix. C’est cette marque de l’effacement éliminant le réel de la trace, c’est cette localisation qui va constituer le signifi ant. La négation est ainsi porteuse du signifi ant: elle est dans le « pas de trace », qui est la marque du sujet.

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Or, ce serait cette marque indirecte du sujet qui se manifeste dans le « ne ». Lacan, pour analyser ce « ne » fait référence à la distinction établie par le grammairien et psychanalyste Edouard Pichon (Damourette et Pichon) entre ce qu’il appelle la négation « forclusive » et la négation « discordante ». La négation forclusive, celle du rejet absolu, rejoint celle que les grammairiens appellent traditionnellement la négation totale (« elle ne vient pas »). Mais la négation « discordante », celle qui serait trace du sujet, réside dans le « ne », lorsque celui-ci se manifeste isolément. C’est le fameux « je crains qu’elle ne vienne », qui signifi e « je crains qu’elle vienne » et non « qu’elle ne vienne pas ». Pourquoi ce « ne »? Les grammaires parlent alors de « ne explétif », explication qui n’en est pas une. Le mot « explétif » signifi e « remplissage », et on pense alors que le « ne » ne fait que remplir un vide, il fait du remplissage ; il est, comme dit le dictionnaire, ce « qui est usité sans nécessité pour le sens ou la syntaxe d’une phrase » (Petit Robert). En réalité, il remplit bien quelque chose, il donne une consistance à quelque chose, il remplit un rôle. Puisqu’il ne fait pas porter sa négation sur le prédicat (« venir »), c’est qu’il la fait remonter vers le sujet. Il articule le rapport entre le sujet de l’énonciation et son énoncé. Il dénonce une attitude de réserve, ou de crainte, ou de refus: il donne corps à l’instance sujet, ou à une instance du sujet. Ce « ne » de conjuration, qui ne porte donc pas sur le prédicat mais sur l’état du sujet, invite à rapporter la négation à la problématique des instances énonçantes. Je fais ici référence aux travaux de Jean-Claude Coquet, sur la sémiotique des instances. Et mon interrogation porte alors sur la part possible de la sémiotique des instances énonçantes dans l’approche du négatif. Mon hypothèse est que le négatif implique, dans ses potentialités de modulation mêmes – et c’est ce qui se révèle au plus près de la langue dans le « ne » discordant –, la présence des instances de régulation et de prise en charge du discours.

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J’ai cherché, de mon côté, à préciser cette problématique des instances qui me paraît essentielle en sémiotique. Et je l’ai fait dans le prolongement des travaux de Jean-Claude Coquet, mais fi nalement de manière assez différente. Ce qui m’intéresse, c’est la pluralisation fondamentale des instances dans l’énonciation – et si je dis « instances dans l’énonciation », c’est qu’elles ne sauraient être réduites au seul « je », trace de la personne. Au contraire, comme le dit Merleau-Ponty, c’est tout le langage qui bourgeonne de subjectivité: « Nous vivons dans le langage. Nous ne sommes pas seulement Je, nous hantons toutes les personnes grammaticales, nous sommes comme à leur entrecroisement, à leur carrefour, à leur touffe. »14 « Je est un autre » disait Rimbaud, « Je est n’importe quel autre, je est foule » insistait Henri Michaux.

Cette « touffe » de subjectivité peut être approchée, et même décrite, à l’aide du concept d’instance. Elle permet même d’envisager une approche tensive de l’énonciation. Observons l’étymologie: « In-stans », ce qui se tient là et qui est en attente. Le terme signifi e, originellement, la « demande pressante ». Il est traversé par la question des modes d’existence qui se spécifi ent en aspectualisations. Ainsi, l’instance, virtuelle et en attente d’actualisation, se défi nit à travers les traits aspectuels de « proximité » spatiale et « d’imminence » temporelle. « Instance », au sens de « sollicitation pressante » se spécialise dans une acception juridique avec la valeur de « mise en attente ». Le mot défi nit en psychanalyse les « composantes de la personnalité »: le ça, le moi, le sur-moi où se lisent aisément les non-sujet, sujet, et tiers-actant de Jean-Claude Coquet. Si l’instance peut être adoptée pour désigner un constituant de l’énonciation, cela présuppose sa pluralisation. C’est là le statut des « instances énonçantes », qui rejoignent le fonds sémantique premier du terme: ce qui se tient là, à la fois virtualisé et pressant ; ce qui réclame ses droits à advenir. Il y a à la fois de l’absence – du négatif – et de l’insistance – du positif – dans le concept d’instance.14 Maurice Merleau-Ponty, « Notes de cours sur Claude Simon », Genesis, 6, 1994, cité par Jean-Claude Coquet, Phusis et logos, Saint-Denis, Presses Universitaires de Vincennes, 2009, p. 135.

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Le sujet et le non-sujet, par exemple, ne cohabitent-ils pas dans l’exercice du discours, entre assomption personnelle et récitation stéréotypée? Leurs relations sont-elles seulement d’opposition catégorielle – voire d’exclusion – comme semble le suggérer le trait de négation? Je ne le crois pas. Il me semble au contraire possible d’envisager la pluralisation des instances dans une perspective tensive. Leurs modes de co-présence et de cohabitation, sur le clavier des modes d’existence sémiotiques, déterminent un jeu négatif-positif de sélection-relégation, tel qu’il se manifeste dans les réalités discursives du confl it intérieur, dans la délibération, dans l’hésitation, dans le choix, et fi nalement dans ce que les politiques appellent la « décision diffi cile ». Je pense par exemple à Titus dans Bérénice de Racine: déchirement d’instances avant d’aboutir à la répudiation de la belle Bérénice.

La négation ne se présente donc plus comme une coupure radicale, comme la découpe d’une catégorisation, comme le tranchant d’un acte. Elle fait appel à une gradualité, elle exprime de la co-appartenance en mouvement, en tant qu’elle est rapportée au discours, à l’énonciation en acte, et par là aux modulations de son sujet partagé entre ses diverses instances. Toute instance, en se manifestant et en s’appropriant la conduite du discours, nie donc celle ou celles qui pourraient se manifester au même instant à la même place et qui restent latentes – resurgissant inopinément, par exemple, dans le lapsus. Les modes d’existence de la signifi cation en acte deviennent ainsi le foyer de la négativité. Le sujet se défi nit par la somme de ses négations: celles des instances qu’il a momentanément refoulées.

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Pour conclure…

En concluant ces tentatives d’ouvertures du négatif, j’en rappellerai le parcours: une remontée aux fondations de la structure, une extension qualitative au sein des langages, une ambivalence du positif et du négatif, une cohabitation problématique avec le narratif et, fi nalement, une implantation au sein des instances de discours. Le négatif traverse de part en part la saisie sémiotique des signifi cations. François Rastier, dans « Signe et négativité. Une révolution saussurienne » déjà évoqué, revendique également cette remontée vers les instances à travers la problématique qu’il promeut. Il écrit: « La problématique rhétorique / herméneutique considère que les structures ne sont plus des formations ontologiques stables, mais des lieux et moments de parcours énonciatifs et interprétatifs. » C’est-à-dire, selon moi, que le négatif qui présidait à l’avènement des structures commande, in fi ne, à travers la diversité de ses formes, les modes d’actualisation du sens dans l’activité énonciative.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 291-332. 1ª parte 2011

O DISCURSO DA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS

Diana Luz PESSOA DE BARROSUniversidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)/Universidade de São Paulo (USP)/CNPq

Introdução

Neste texto, que foi apresentado como conferência no Congresso da ABRALIN, tratamos de gramáticas do português, examinadas como discursos, na perspectiva da semiótica discursiva de linha francesa. Trata-se de projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido nos últimos anos, com bolsa do CNPq.

Pretendemos apresentar aqui, em primeiro lugar, alguns dos resultados obtidos com esse tipo de análise, salientando a importância dos estudos discursivos para a construção da história dos estudos linguísticos e das idéias linguísticas, em geral, e no Brasil em particular, e em segundo lugar, abordar, nessa perspectiva, mais especifi camente as gramáticas brasileiras do século XX.

1. O discurso da gramática

Nessa pesquisa sobre o discurso da gramática, estudam-se gramáticas do português (portuguesas e brasileiras), do século XVI à atualidade, na perspectiva da semiótica discursiva de linha francesa, tal como já foi mencionado. Examinam-se os procedimentos de construção do discurso da gramática e as relações desse discurso com outros discursos sócio-históricos, para mostrar como, em momentos diversos, os diferentes discursos gramaticais constroem laços entre língua e nação, criando impérios coloniais e identidades nacionais, ou relações entre língua e

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sociedade, estabelecendo, por meio do ensino gramatical da língua, a ordem social. Mudam os discursos da gramática, alteram-se os modos de ver e de explicar o funcionamento da língua, mas as gramáticas asseguram sempre seu papel na produção das relações políticas, históricas e sociais. Construir impérios, criar identidades nacionais, garantir a ordem social, ensinar a língua, há sempre um papel político e social para a gramática, que, dessa forma, tem seu discurso justifi cado e renovado.

Os fundamentos teóricos gerais do projeto são as proposições de Sylvain Auroux (1988) sobre o papel da gramatização das línguas na constituição das “línguas nacionais”. O projeto caracteriza-se, além disso, pelo fato teórico-metodológico de conceber as gramáticas em exame como discursos e de pretender, portanto, construir a história das idéias linguísticas no Brasil a partir de discursos. O projeto tem dois objetivos mais gerais:

– estabelecer a organização discursiva das gramáticas e os diferentes conceitos e imagens de norma e de língua construídos;

– verifi car se os discursos da norma são diferentes nas gramáticas portuguesas e brasileiras e indicar, assim, alguns dos caminhos percorridos, do século XVI até hoje, para a constituição da “língua nacional” no Brasil.

O discurso da gramática emprega um conjunto de procedimentos para levar o destinatário a acreditar na verdade e na necessidade de certos usos linguísticos. Examinamos três desses procedimentos: a modalização dos usos; o emprego das categorias de pessoa e de tempo do discurso; os diálogos com outros discursos sociais, que estabelecem as relações sócio-históricas das gramáticas.

A partir, sobretudo, do exame da modalização, foram propostos três tipos de norma e de língua: a norma única ou “natural”, determinada pela modalização do ser ou modalização de existência dos usos e que produz o efeito de sentido de uso natural ou normal da língua e a imagem de uma língua homogênea, sem variação (esse discurso da norma e essa concepção de língua ocorrem, por exemplo, nas gramáticas de Fernão

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de Oliveira e de João de Barros, no século XVI, nas de Reis Lobato e de Contador de Argote, no XVIII, e nas gramáticas brasileiras do século XIX, entre outras); a norma prescritiva, caracterizada pela modalização pelo dever, mas também pelo querer e pelo poder, e que determina que um uso deve ser e que outros não devem ser, porque são desqualifi cados, não têm prestígio, são errados, e que cria, então, a imagem de uma língua heterogênea, mas em que os usos são hierarquizados (o segundo tipo de modalização é o das gramáticas de Jerônimo Soares Barbosa, no fi m do século XVIII, ou de Celso Cunha, no século XX, entre outras); uma espécie de ausência de norma, quando todos os usos são modalizados pela existência, todos existem, e de que decorre a imagem de uma língua heterogênea, mas em que os usos não são hierarquizados, salvo pela frequência dos usos (é o caso da gramática de usos de Maria Helena de Moura Neves, no século XX, no Brasil, entre outras).

O quadro 1 abaixo apresenta um resumo do que acabamos de dizer sobre os três tipos de norma, segundo as modalizações discursivas:

QUADRO 1:

norma única, “natural”

norma prescritivanorma usual, de

frequência de uso

modalização pela existência, pelo ser (de um único uso)

modalização pelo querer, dever e poder-ser e fazer

modalização pelo ser (de diferentes usos)

língua homogênea, sem variação

língua heterogênea, com variantes hierarquizadas (obrigatórias, possíveis, proibidas)

língua heterogênea, com variantes não hierarquizadas, a não ser pela frequência dos usos

É preciso, ainda, observar que são, sobretudo, os elementos metalinguísticos das gramáticas que explicitam as modalizações e os usos das pessoas e do tempo do discurso, que, por sua vez, constroem o

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discurso da norma. Foram examinados assim os prefácios, as introduções, as dedicatórias, os comentários, as observações, as notas de rodapé, os primeiros e últimos capítulos. Os exemplos e as relações intertextuais mostradas, fi nalmente, permitiram que se estabelecessem as relações sócio-históricas dos discursos das gramáticas.

2. As gramáticas brasileiras do século XX

Escolhemos duas das gramáticas brasileiras do século XX, que consideramos bem diferentes uma da outra: a Gramática da Língua Portuguesa, de Celso Cunha, publicada no Rio de Janeiro, em 1972, e a Gramática de Usos do Português, de Maria Helena de Moura Neves, publicada em São Paulo, em 2000.

O discurso da norma única ou natural e a imagem de uma língua homogênea sem variação são, em geral, como foi visto, os das gramáticas de Fernão de Oliveira e de João de Barros, no século XV, e das gramáticas brasileiras do XIX.

Já as gramáticas brasileiras do século XX constroem, sobretudo, o discurso da norma prescritiva e a imagem de uma língua heterogênea, mas em que os usos são hierarquizados. Esse discurso da norma prescritiva deve-se, a nosso ver, principalmente ao caráter didático e pedagógico dessas gramáticas. As gramáticas do século XVI e as gramáticas brasileiras do século XIX constroem o discurso da norma única, “natural”, e da língua homogênea, que dialoga em conformidade com o discurso nacionalista e colonialista português do século XVI e com o discurso nacionalista brasileiro do XIX. As gramáticas portuguesas do século XVI respondem às necessidades do império de ensinar a língua aos bárbaros, aos estrangeiros (é uma espécie de caráter pedagógico “externo”), as gramáticas brasileiras do século XIX têm papel importante na construção do Estado-nação brasileiro, sobretudo devido à função signifi cativa da língua na formação das nações. O discurso da norma nessas gramáticas

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é, assim, o discurso da norma única, natural e da língua homogênea, que convém aos discursos de formação dos impérios e das nações, aos discursos de identidade da língua e do estado, quer isso ocorra com as gramáticas do renascimento europeu, quer com as gramáticas brasileiras do XIX.

Ao contrário, o que predomina nas gramáticas brasileiras do século XX, é o discurso da norma prescritiva e da língua heterogênea cujos usos são hierarquizados, apropriado e necessário às funções pedagógicas que as gramáticas assumem nesse período.

A sociedade de classes, fortemente hierarquizada, exige uma concepção de língua em que os usos são, também eles, hierarquizados. Trata-se de ensinar a “língua”, concebida como seu uso mais prestigioso e qualifi cado, às camadas sociais que têm usos menos prestigiosos ou mesmo considerados como usos desqualifi cados e incorretos. Busca-se, com isso, conservar a “boa norma” e “salvar” a língua, “ameaçada” pelos “maus usos”. Essas gramáticas são chamadas de gramáticas “tradicionais” ou de gramáticas “normativas” no Brasil. Elas não constroem mais os laços entre a língua e o império ou entre a língua e a nação, e sim entre a língua e a sociedade hierarquizada, em que o ensino tem seu lugar. Elas seguem a tradição das gramáticas do português desde João de Barros, no século XVI (a tradição greco-latina).

Deve-se, entretanto, assinalar outra característica das gramáticas brasileiras do século XX, que toma direção contrária: devido aos diálogos que se estabelecem fortemente entre a gramática e o discurso da linguística, em particular os da sociolinguística, as gramáticas brasileiras do século XX propõem um número maior de graus intermediários entre os usos proibidos e os usos prescritos, isto é, o número de usos possíveis aumenta consideravelmente. Essas variantes linguísticas, então aceitas ou permitidas, indicam que houve um alargamento dos limites do uso, sempre permanecendo nos domínios da norma culta ou da “boa norma”. Graças à infl uência da linguística, essas gramáticas anunciam as gramáticas de uso que só aparecerão no fi m do século.

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Se o século XIX é o século da constituição do Estado brasileiro (a independência de Portugal, em 1822, e a formação da República em 1889) e se as gramáticas brasileiras do XIX se colocam, então, no cruzamento dos discursos de construção da língua nacional e do Estado-nação brasileiro e, consequentemente, de afastamento de Portugal, a antiga metrópole, e dão sua contribuição e apoio à construção do Estado-nação brasileiro, as coisas se passam de outra forma no século XX e, principalmente, na segunda metade do XX.

No século XX, nossas diferenças linguísticas em relação a Portugal, tão reforçadas nas gramáticas anteriores, estão já claramente estabelecidas graças à fundação da Academia Brasileira de Letras (1897), aos acordos ortográfi cos da língua portuguesa (1931, 1938, 1943, 1971, 1990), à criação das Faculdades de Letras e à introdução obrigatória, a partir dos anos 60, da disciplina de Linguística nos cursos de Letras, à elaboração e à implantação da Nomenclatura Gramatical Brasileira – NGB, em janeiro de 1959. A NGB cria certa homogeneidade terminológica nas gramáticas que antes dela eram mais numerosas e empregavam terminologias e perspectivas teóricas diversas.

As gramáticas que estamos aqui examinando são posteriores a esses acontecimentos que mudaram o papel das gramáticas. Os diálogos estabelecidos com a Linguística são, então, acentuados no período e produzem, entre outras consequências, a que já observamos: um número maior de usos considerados possíveis e aceitáveis.

As gramáticas brasileiras do século XX têm, assim, certa ambiguidade ou dualidade, já que são prescritivas e, ao mesmo tempo, aceitam um leque maior de usos. Esses usos são aceitos ou aceitáveis, mas não prescritos.

Dessa forma, as gramáticas brasileiras do século XX se inserem, de modo tímido, no quadro de valores do que Chauí (1993) chamou de discurso racista da diferença, que se construiu a partir dos discursos anti-racistas do século XX. As diferenças devem ser mantidas como diferenças, mas separadas, segregadas, sem misturas.

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Desses desenvolvimentos dos estudos linguísticos e dos cursos de Letras decorrem, além disso, gramáticas mais descritivas, mais explicativas e gramáticas de uso, de que trataremos na última parte deste texto.

3. Gramática da Língua Portuguesa, de Celso Cunha (1972)

A Gramática da Língua Portuguesa de Celso Cunha foi escolhida para este estudo porque foi muito empregada na escola em sua época, e ainda hoje é utilizada. Foi publicada pela Fundação Nacional de Material Escolar do Ministério da Educação e da Cultura do Brasil, o que lhe deu um caráter de gramática quase “ofi cial”.

Conforme foi já observado, são os elementos metalinguísticos das gramáticas que explicitam as modalizações e o emprego das pessoas e do tempo do discurso. Na gramática de Celso Cunha foram examinadas sobretudo as “observações”, que cobrem uma grande parte do texto, e que oferecem citações de gramáticos, fi lólogos ou linguistas (p.278), informações históricas (p.281), indicações bibliográfi cas, explicações e aprofundamentos das noções teóricas, das discussões teóricas e da metalinguagem empregada, e, fi nalmente, variações do uso.

Comecemos por observar como a Gramática apresenta seus fi ns pedagógicos e como constrói o discurso da norma prescritiva; fi ns e discurso que indicamos como sendo os das gramáticas do século XX. A gramática de Celso Cunha não apresenta seus objetivos de modo claro. A partir de seu exame, pode-se, porém, extrair os fi ns pedagógicos. Há, por exemplo, um comentário sobre o caráter elementar da gramática (p. 547) e outros sobre como facilitar a aprendizagem (“Para facilidade de aprendizado, convém, no entanto, saber...” p. 199) e sobre artifícios didáticos (“Como artifício didático para aprender-se o mecanismo das conjugações...” p. 374), descrição e classifi cação dos fatos de língua (p. 141, 148, 256, 257).

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Se a fi nalidade da gramática é a de ensinar o “bom e belo uso” da língua, é preciso verifi car quais são as estratégias persuasivas que o autor emprega.

Segundo a defi nição de norma explícita de Aléong (s/d), que se confunde com a da norma culta, as três características dessa norma podem ser encontradas na gramática em exame:

1 – ela tem o referendo dos usuários de autoridade e de prestígio (sobretudo escritores e gramáticos) (p. 409, por exemplo);

2 – ela constrói um “discurso da norma”, fundamentado, sobretudo, nos valores éticos e estéticos (“Nesse caso é de boa norma repetirmos o pronome” p. 302, ou também p. 244, 397, etc.);

3 – há um aparelho de divulgação da norma (no caso, principalmente, escolas e administração pública).

Deve-se observar que para construir o discurso da norma prescritiva, os gramáticos empregam o referendo dos usuários de autoridade e prestígio, e para engendrar o discurso da norma única e natural, eles não utilizam exemplos de escritores ou de outros usuários, mas, ao contrário, se servem de seus próprios exemplos, de exemplos que criam. Em outras palavras, para impor um uso, para dizer que ele deve ser, entre outros, para garantir a hierarquia dos usos (da norma prescritiva), as gramáticas precisam da confi rmação da autoridade e do usuário de prestígio, mas para dizer que os usos propostos são os únicos que existem, que eles são naturais (na norma natural, única), basta exemplifi cá-los com palavras ou frases do próprio gramático. Na gramática de Celso Cunha, os usos têm o referendo dos escritores, havendo mesmo uma classifi cação dos escritores em “grandes”, “modernos”, etc.

Como foi já observado, a modalização essencial da norma culta é a do dever-ser ou fazer (com os verbos “dever” ou “não poder”, o adjetivo “obrigatório”, o advérbio “obrigatoriamente” ou as expressões “de regra”, “de norma”, entre outras) (p. 243, 603, 274, 289, 189, 296, 335, 263, 230, 266, 169, 207, 275, 168, 445, 226, 228, 290):

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... e o escritor ou o locutor deverá usar daí por diante o artigo defi nido (p. 243);

Por outro lado, não devemos empregar o pronome ele (ela) para... (p. 289);

O subjuntivo é de regra nas orações adjetivas que exprimem... (p. 445).

As outras três modalidades são o querer, o poder e o saber.A norma culta é modalizada também pelo querer-ser ou fazer, isto

é, o discurso instala um sujeito que quer bem falar e escrever a língua ou ser dela um bom usuário (p. 176, 460, 261, 263, 244, 461 – “querer” e “preferir” são, em geral, empregados):

Quando se quer dar mais ênfase à frase, costuma-se... (p. 167);

Advirta-se, ainda, que em Portugal a forma preferida é mobilar, conjugada regularmente... (p. 405).

O saber, por sua vez, qualifi ca a existência e a competência dos usuários cultos (p. 295, 377, 618), modalizando, sobretudo, o Prefácio da gramática de Celso Cunha:

Sabemos que as formas oblíquas tônicas dos pronomes pessoais vêm acompanhadas de preposição... (p. 295);

... que deve ser conhecida para evitar-se a frequente confusão que se estabelece nos poucos verbos em que as formas são distintas. (p. 377).

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O poder, fi nalmente, cria o regime da facultatividade, da exceção, de tudo que é admitido, permitido, possível (p. 80, 167, 225, 305, 444, 228, 230, 305, 241, 247, 248, 298, etc.). Já mencionamos que o cruzamento do discurso da gramática com os discursos da linguística, e, em particular, com os da sociolinguística, levou a mudanças dos graus intermediários entre os usos prescritos e proibidos, aumentando consideravelmente o número de usos possíveis, isto é, que podem ser nessa gramática:

Nestes casos pode-se dispensar o artigo... (p. 225);

Hoje a concordância é facultativa... (p. 444);

Em princípio, as fórmulas comparativas podem admitir a exclusão do artigo indefi nido. (p. 247).

As variantes modalizadas pelo poder indicam os limites possíveis do uso, para que se permaneça no domínio da norma culta. Elas asseguram o conceito de falante culto como aquele que é capaz de empregar a língua em diferentes situações e em todas as variações permitidas. São sobretudo:

a) variantes diacrônicas (português vs. latim, português moderno vs. português antigo e/ou médio; língua atual vs. língua de outrora);

b) variantes de registro: linguagem culta, linguagem corrente, coloquial ou familiar, linguagem popular, linguagem vulgar, linguagem literária e erudita;

c) variantes regionais, sobretudo dos usos do português do Brasil e de Portugal;

d) variantes de modalidade: língua escrita e falada.

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Em relação às variantes diacrônicas, pode-se observar que Celso Cunha não mais se ocupa das relações com o latim ou o faz apenas no Capítulo 1, histórico. Distingue, porém, o português moderno e o anti¬go ou médio (p. 354, 496, 304, 158, 317, 353, 361, 491, 521, 336) e dá primazia à língua moderna, qualifi cando de artifi ¬ciais, raros ou arcaicos os empregos que alguns escritores fazem de fatos linguísticos em que há desacordo diacrônico (p. 496, 531, 306):

Na língua culta de hoje, constrói-se, preferentemente com...(p.491);

Na língua moderna, tem ele [pronome possessivo] assumido valores variados...(p.317);

Esta construção, que não era rara no português médio, só aparece modernamente em autores de expressão artifi cial (p.354);

É raro nos escritores modernos, mas muito frequente nos do português antigo e médio o uso do verbo haver, como verbo principal (p.496)

A gramática examina então as diferenças entre a lín¬gua de hoje e a de outrora, considerando-as como variantes em geral aceitáveis. A variante atual é preferível, pois o uso ou a generalização de um certo uso (p. 266, 246, 296) e o referendo dos escritores ditos modernos autorizam a escolha (“Em alguns escritores modernos vai encontrando guarida o emprego do fututro para indicar uma ação posterior a outra no passado.” (p. 439). O referendo dos escritores é necessário no discurso da gramáti¬ca de Celso Cunha, pois, como vimos, apenas o uso não basta para a aceitação de um fato linguístico em uma gramática prescritiva (p. 296).

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Quanto aos registros, na Gramática da Língua Portuguesa, distinguem-se, pela aspectualização quantitativa ou de intensidade de seus usuários, três tipos:

- há usos na justa medida, os da boa norma, aí incluídos seus registros distensos, isto é, a linguagem corrente familiar e a coloquial (p. 338, 233, 467, 249, 437, 143, 295, 298, 301, 328, 355); os usos formais ou informais da boa norma são prescritos ou bem aceitos na gramática:

Na linguagem coloquial, emprega-se a gente por nós e, também, por eu. (p. 295);

Na linguagem corrente do Brasil evitam-se as formas de sujeito composto que levam o verbo à 2ª pessoa do plural... (p. 467);

Na linguagem coloquial do Brasil é corrente o emprego do verbo ter como impessoal, à semelhança de haver. (p. 143).

- há usos excessivos, os eruditos e os literários (p. 437, 365); na linguagem erudita e na literária, a correção da norma é levada às últimas consequências, e por isso seus usos podem ser criticados como artifi ciais ou elogiados como o “ponto mais alto” da norma, ou seja, não apenas a correção, mas a perfeição:

Na linguagem literária emprega-se, vez por outra, o mais-que-perfeito simples em lugar de... (p. 437);

Os demais [multiplicativos] pertencem à linguagem erudita. (p. 365).

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- há usos insufi cientes, como os da linguagem popular e da vulgar.

O caráter insufi ciente da “linguagem corrente popular” coloca esses usos em duas outras posições: como empregos no limite da aceitação ou como usos fora da norma, ou seja, proibidos; os usos limítrofes são os duvidosos, pois há usuários de prestígio que os aceitam e empregam, devido à “realidade do uso corrente e popular”, e outros que os recusam, seguindo a “tradição gramatical”; há gramáticas e dicionários que os admitem e outros que os proíbem, por serem “viciosos, condenáveis e se insinuarem” na boa norma (p. 298, 603, 483, 487, 491, 494, 302, 266), quase como uma falta moral; as linguagens vulgares, que a gramática condena, são aquelas que alguns usuários cultos empregam, mas que não recebem o referendo institucional, e se apresentam, portanto, como erros, incorreções, confusões ou usos proibidos. Ocorrem apenas seis casos na gramática examinada (p. 66, 110, 296, 377, 483, 497) e neles estão em jogo valores éticos do certo e do errado (“utilidade social”, “desleixo”, “repercussões nefastas na vida prática”, “boa norma da civilidade”) e estéticos da elegância e deselegância da linguagem, e há, em decorrência, ameaças de punição. Às vezes, porém, o autor toma partido do lado contrário e critica os gramáticos que “lutam contra a realidade dos usos” (p. 402, 344). Seguem alguns exemplos do tratamento dado às linguagens popular e vulgar na Gramática:

A tradição gramatical aconselha o emprego das formas oblíquas tônicas depois da preposição entre (...). Na linguagem coloquial predomina, porém, a construção com as formas retas, sintaxe que se vai insinuando na linguagem literária (p. 298);

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Tal construção, considerada viciosa pelos gramáticos, mas muito frequente no colóquio diário, já se vem insinuando na linguagem literária, principalmente quando o complemento de esquecer é um infi nitivo (p. 487);

Na língua corrente é também esta a conjugação dos verbos entupir e desentupir. Alguns gramáticos, porém, em luta contra a realidade, pretendem que neles (...) só se devem legitimar as antigas formas com u... (p. 402);

Construções do tipo (...) embora se documentem em alguns dos melhores escritores da língua, especialmente do século passado, não devem ser hoje imitadas (p. 497);

Além de sua função linguística, a pontuação tem uma utilidade social. Um texto mal pontuado é de acesso difícil e, em geral, deixa no leitor uma penosa impressão de ignorância ou de desleixo daquele que escreveu. E dar de si uma tal impressão pode ter repercussões nefastas na vida prática (p. 618).

As variantes regionais são, por sua vez, aceitas como usos possíveis, permitidos, no âmbito da “boa norma”. Há, porém, poucos casos de variação entre as regiões do Brasil ou entre as regiões de Portugal. Bem mais frequentes são as encontradas entre o português do Brasil e de Portugal.

As variações regionais no Brasil aparecem sobretudo no capítulo sobre fonologia (p. 174, 292). No entanto, mesmo nesse capítulo, o mais comum é falar-se do “português normal do Brasil” ou simplesmente do “português do Brasil”, mesmo que o uso em questão não se aplique a todo o País (p. 55).

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Quanto às diferenças entre o português do Brasil e de Portugal, embora mais frequentes na gramática de Celso Cunha, poucas ainda são apresentadas:

Pela simples entoação distinguimos, por exemplo, a fala de um português da de um brasileiro e, entre brasileiros, a de um carioca da de um nortista, de um gaúcho, de um mineiro, etc (p. 174);

...com o pronome outro, possibilitando as aglutinações estrouto, essoutro, aqueloutro, desusados no português coloquial do Brasil (p. 328);

A colocação dos pronomes átonos no Brasil difere apreciavelmente da atual colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica” (p. 312);

A construção de estar (ou andar) +gerúndio, preferida no Brasil, é a mais antiga no idioma. Na língua moderna de Portugal predomina a construção, de sentido idêntico, formada de estar (ou andar) + preposição a + infi nitivo (p. 382);

Em lugar de menor usa-se também mais pequeno, que é a forma preferida em Portugal (p. 263).

Há, na maior parte das vezes, identifi cação entre o português de Portugal (para o qual não há quase menção de variação) e o português culto “formal” do Brasil. As diferenças são apresentadas como próprias do português informal, popular ou vulgar do Brasil. Há muito poucos usos comuns ao português de Portugal e ao português popular do Brasil (quando o uso popular se opõe ao culto):

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Tomemos como exemplo o verbo incendiar (...). Os demais verbos em –iar são regulares na língua culta do Brasil (...). Há verbos, como agenciar, comerciar, que no português de Portugal e na língua popular no Brasil se conjugam pelo modelo de incendiar (p. 405).

Finalmente, em relação às modalidades escrita e falada na gramática de Celso Cunha, parece-nos necessário dizer algumas palavras prévias, especifi camente sobre a existência de um discurso da norma da língua falada.

Em estudos anteriores (Barros, 1997) pudemos concluir sobre a questão da norma na língua falada que: existe um discurso da norma para a fala, ou seja, os falantes têm consciência de que tanto a fala quanto a escrita são regulamentadas por “regras do bem falar e escrever”, como ocorre com os falantes do material do NURC, que procuram construir seu papel social de falante culto, e que essas regras não são as mesmas para a fala e a escrita; que o discurso da norma na fala, além de prescrever certos empregos, permite um leque maior de usos, o que leva à caracterização do falante culto pela maleabilidade de adaptação a diferentes momentos e situações e pelo uso adequado da língua nas variadas interações verbais. Restava verifi car se a norma da fala era também codifi cada institucionalmente por gramáticas, dicionários e academias. Os resultados de pesquisa sobre as gramáticas (Barros, 2008 e 2009) mostraram que, nas gramáticas portuguesas do século XVI, do XVII e do XVIII, não são consideradas as diferenças entre a modalidade escrita e a falada, e que essa distinção começa a aparecer nas gramáticas do século XIX e se torna realmente relevante no XX.

Nas gramáticas do século XIX, o traço de coloquialismo começa a fazer parte da caracterização da linguagem popular. “Coloquial” defi ne-se nos dicionários Aurélio e Houaiss como “relativo a, ou próprio de colóquio”, que, por sua vez, é “conversação ou palestra entre duas pessoas”. As defi nições continuam: “diz-se do estilo em que se usam

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vocabulário e sintaxe bem próximos da linguagem cotidiana” (Aurélio); diz-se de variante da língua falada usada em situações informais ou de pouca formalidade; diz-se de variante linguística ou registro cuja fonética, morfologia, vocabulário e sintaxe são próprios da linguagem informal de pessoas cultas” (Houaiss). Em outras palavras, no século XIX, a oralidade já é mencionada explicitamente, ainda que seja apenas a fala cotidiana e informal dos usuários cultos.

Já nas gramáticas do século XX, distinguem-se usos e normas para as modalidades falada e escrita. Chama a atenção, na gramática de Said Ali, no início do século, a presença da distinção entre as modalidades falada e escrita, que não havia aparecido nas gramáticas anteriores.

A gramática de Celso Cunha ocupa-se das línguas falada e escrita, de início, quando examina a entonação ou as regras de escritura (pontuação, etc.). Nesses casos, porém, trata-se, simplesmente, de questões de convenção ortográfi ca em que a escrita marca, indica ou representa um elemento prosódico (p. 163).

Há, além disso, nessa gramática, um discurso da norma da língua falada, claramente construído sobre dois pontos principais:

– as regras que organizam os usos são diferentes na fala e na escrita e disso resulta que o leque de possibilidades da língua falada é maior que o da língua escrita, mais normatizada, tendo a língua falada já aceitado certas mudanças linguísticas ainda não incorporadas pela escrita;

– nesse leque maior de possibilidades da língua falada, há: a - usos modalizados como possíveis e colocados nos

limites da norma, que são permitidos na fala e que se vão incorporando e sendo também aceitos na escrita (são os usos correntes, informais, coloquiais):

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Na linguagem coloquial do Brasil é corrente o emprego do verbo ter como impessoal, à semelhança de haver. Escritores modernos - e alguns dos maiores - não têm duvidado em alçar a construção à língua literária (p. 143);

Esse pronome de interesse, também conhecido por dativo ético ou de proveito é de uso frequente na linguagem coloquial, mas por vezes aparece na pena de escritores e, não raro, produzindo belos efeitos (p.301);

A construção com objeto direto de “pessoa” (...) é a predominante na linguagem coloquial brasileira, razão por que nossos escritores atuais não têm duvidado em acolhê-la (p. 492);

Na linguagem coloquial, emprega-se a gente por nós e, também, por eu: ‘Disse: - a gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfi anças...” (G. Rosa, PE, 13) (p. 295).

b - usos também aceitos na fala, pois são empregados por alguns falantes cultos, mas recusados por certos gramáticos e escritores, e, por conseguinte, proibidos na escrita:

Substantivado, algum se usa, popularmente, na acepção de “dinheiro”: Ter algum. Estar com algum (p. 337);

c - usos que só ocorrem em situações de fala e são considerados “fora da norma”, tanto para a fala, quanto para a escrita (são os usos vulgares e “incorretos”):

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Na fala vulgar e familiar do Brasil é muito frequente o uso do pronome ele (s), ela (s) como objeto direto em frases do tipo: Vi ele; Cumprimentei ela. Embora esta construção tenha raízes antigas no idioma (...), deve ser hoje evitada (p. 290);

d - usos “excessivos”, mais raros, que são aceitos na língua escrita e rejeitados na fala (certos usos eruditos ou literários):

Vossa Excelência só se emprega... E assim mesmo quase que exclusivamente na língua escrita e protocolar (p. 293);

Quando a preposição antecede o artigo defi nido que faz parte do título de obras (...), não há prática uniforme. Na língua escrita, porém, deve-se evitar a contração...( p. 217);

Podem [ditongos crescentes], no entanto, ser emitidos com separação dos dois elementos, formando assim um hiato: gló-ri-a, cá-ri-e, vá-ri-o, etc. Ressalte-se, porém, que na escrita, em hipótese alguma, os elementos desses encontros vocálicos se separam no fi m da linha...( p. 59).

O quadro 2 que segue mostra que as fronteiras da norma estão mais afastadas na gramática de Celso Cunha, quando se trata da língua falada, e que os graus intermediários entre os usos prescritos e os proibidos são bem mais numerosos se as modalidades falada e escrita são consideradas:

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QUADRO 2:

Língua escrita e língua falada

usos naturais ou prescritos (que são e que devem ser)

a) Língua escrita e língua falada

variantes aceitas (que podem ser): variantes diacrônicas, correntes e regionais

b) Língua faladavariantes aceitas na fala informal (coloquial) e que começam a ser incorporadas na língua escrita

Língua faladacasos duvidosos (que podem ser e que podem não ser), aceitos na fala e recusados na escrita: linguagem popularsos proibidos (mas empregados na fala de usuários “cultos”usos que não estão incluídos na gramática (que não são, que não existem)

Em síntese, podemos dizer que a Gramática da Língua Portuguesa de Celso Cunha é um bom exemplo das gramáticas brasileiras do século XX:

– segue a tradição das gramáticas portuguesas, segundo o modelo de João de Barros no século XVI, e as direções dadas e consolidadas pela NGB que, também ela, toma a mesma direção da gramática tradicional;

– é uma gramática de sua época que estabelece diálogos proveitosos com a Linguística e, mesmo buscando construir um discurso da norma prescritiva, tenta descrever e explicar os fatos de língua; constrói o discurso da norma da língua falada, distinguindo as regras dos usos falados e escritos; apresenta um número maior de usos possíveis entre os prescritos e os proibidos;

– é uma gramática com fi ns pedagógicos.

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Por todas essas razões, podemos dizer que a gramática de Celso Cunha faz escola ou mesmo que ela faz a escola no Brasil.

4. Gramática de usos do português de Maria Helena de Moura Neves (2000)

Apresentaremos sucintamente as características da Gramática de usos do português, de Maria Helena de Moura Neves, e, em seguida, falaremos um pouco das gramáticas de usos e dos papéis que têm no Brasil no século XX.

Examinamos sobretudo a apresentação da gramática, a introdução de cada parte, as observações (Obs.) e os comentários (#).

A apresentação e as introduções apresentam a Gramática de usos do português como uma gramática cujo objetivo é mostrar “como está sendo usada a língua portuguesa atualmente no Brasil” (p. 43), isto é, a gramática pretende “prover uma descrição do uso efetivo dos itens da língua” (p. 14) ou da ‘língua viva”, em funcionamento. Trata-se, então, de uma gramática diferente das precedentes, mesmo das do século XX, mas que resulta também dos diálogos já mencionados entre o discurso da gramática e o da linguística. A gramática de Neves é, nesse sentido, também ela uma continuidade, mas marcada por rupturas, entre quais deve ser colocada a defi nição de norma.

Três outras novas características da gramática são assinaladas na apresentação e nas introduções de cada parte:

– a gramática considera que a unidade maior do funcionamento da língua é o texto (p. 15) e, dessa forma, que as categorias linguísticas devem ser examinadas a partir de seu comportamento no texto;

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– a gramática explicita sua perspectiva teórica, a da linguística funcional, e, nessa direção, considera que os elementos linguísticos são multifuncionais, ou seja, que eles realizam funções diversas e que essas funções dependem dos diferentes níveis e limites das unidades.

– a gramática examina usos atestados na base de dados do Centro de Estudos Lexicográfi cos da UNESP-Araraquara.

Os comentários (#) acrescentam informações a propósito do fato gramatical descrito, como por exemplo:

# com verbo IR no passado, a indicação é de futuridade dentro do passado (p. 65);

# observe-se que essas construções só ocorrem com adjetivos participais (p. 282);

As observações, por sua vez, ocupam-se da organização da gramática:

Obs: Essas construções são examinadas na Parte II, O pronome pessoal (p. 65)

Obs: Esta questão é retomada nas partes II e III sobre artigos, (de% nido e inde% nido). Aqui se faz uma exposição genérica (p. 69);

Obs: Essa questão é desenvolvida em O adjetivo (1.3) (p. 73).

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A gramática se dirige, de modo explícito, a dois grupos de destinatários: de um lado, aos falantes “comuns” da língua e aos estudantes (“para maior utilidade ao consulente comum” (p. 14); “para facilidade de acompanhamento pelo público comum e estudantes” (p. 14)), de outro, aos estudiosos da língua, que podem “assentar suas explorações no conhecimento das investigações já efetuadas”(p. 14).

A modalização pelo poder, que nas gramáticas prescritivas cria os usos possíveis ou não, na fronteira da norma, em uma gramática de usos constrói a variação de cada uso que é, que existe (não apenas a que é prescrita ou proibida). Ela opõe assim os usos comuns ou únicos (“...com os nomes de processo, só a preposição de introduz argumento A1” (p. 97)) aos usos que variam em certos casos (“Em alguns casos, esses argumentos podem vir introduzidos pela preposição entre” (p. 49); “É possível tanto o A1 (subjetivo) como o A2 (objetivo) terem a forma de + substantivo” (p. 97)), empregando para tanto expressões de modalização do poder, tais como “só” ou “sempre”, no primeiro caso, e “podem e “é possível”, no segundo. Para assinalar a variação de uso, isto é, as variantes diferentes de um mesmo fato linguístico, a gramática emprega também a expressão “há outros tipos” e sobretudo o verbo “ocorrer” e o substantivo “ocorrência”(p. 40, 43, 106).

Uma das características de uma gramática de usos é a de mostrar, então, que há variações de usos, mas, além disso, que essas variantes têm papéis diversos nos textos, produzindo neles sentidos diferentes. Elas não são nem melhores nem piores do que outras, elas são simplesmente diferentes (p. 249, 250, 253, 320).

É preciso ainda dizer, sobre a norma, que as gramáticas de usos só podem construir uma norma pela frequência dos usos. Trata-se da norma mais usual, comum, frequente. A gramática de Neves não estabelece essa norma usual pela frequência dos usos. O que mais se aproxima disso são os usos determinados por expressões como “é mais usual”, “é mais comum”, “é comum” (p. 30, 31, 94, 97), “é mais facilmente encontrado” (p. 31), “é mais provável” (p. 57), “frequentemente”, “comumente”,

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“com muito maior frequência” (p. 164, 96, 94) ou, ao contrário, pela expressão “é muito raro” (p. 96). Seguem alguns exemplos:

Há três possibilidades de pluralização: nos dois elementos ou em cada um deles. Entretanto, o mais comum é que a palavra não varie (p. 229);

Posposto – Essa é a posição mais frequente na linguagem comum, a menos marcada (...). Antesposto – Essa é a posição mais marcada, e, por isso mesmo, ela é bastante ocorrente nas obras literárias, já que dá grande efeito de sentido, especialmente o efeito de maior subjetividade (p. 201);

A frequência mencionada não resulta de um trabalho estatístico, mas, tudo indica, da experiência da autora.

Em relação à classifi cação dos usos como variantes diacrônicas, regionais ou de registros sociais, é preciso dizer que essa classifi cação é feita sobretudo nas gramáticas prescritivas, que têm necessidade de hierarquizar os usos. As gramáticas de usos descrevem e explicam os usos, sem precisar classifi cá-los ou hierarquizá-los. Elas podem, entretanto, fazê-lo, dizendo que se trata de um uso mais frequente em uma dada região ou época. É possível que essas informações retomem, de modo indireto, a hierarquização dos usos, já que ao dizer que uma variante é mais usual no Nordeste do país ou na zona rural, pode-se, por razões que não são linguísticas, desqualifi car esse uso. A gramática de Neves muito raramente indica essas relações. Ela faz referência apenas a alguns usos regionais e a certas variações de registro, de formalidade e de gênero textual, encontradas no corpus:

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# Por outro lado, mesmo que o sintagma que contém NENHUM venha antes do verbo da oração, a marca negativa pode ocorrer, em linguagem coloquial ou regional: (...) (p.544);

Pode-se escolher uma construção com verbo-suporte num texto científi co ou técnico por essa construção pertencer ao jargão da área (p. 57);

Esses usos, que se referem a quantifi cadores, pertencem a um registro mais distenso e são considerados erros pela gramática normativa (p. 233);

Essa “negação dupla” ocorre especialmente em linguagem mais popular e regional (p. 299);

Nessas ocorrências percebe-se que os sintagmas objetos dos verbos-suporte caracterizam situações informais (p. 58);

# Num registro bem popular, há casos de verbo no indicativo (p. 297);

# Num registro mais informal ocorre oração completiva de substantivo sem preposição: Não há dúvida QUE irei embora daqui. (CCA) (p.361);

Num registro mais informal ocorre oração completiva de adjetivo sem preposição: Alves cumpriu instruções da direção do seu partido, desejosa Ø QUE ele conversasse a sós com o ex-governador de São Paulo. (CRU) (p.362);

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a) Nomes de pessoas conhecidas ou famosas (especialmente no registro coloquial): A Neusa Sueli sabe como eu sou. (NC) (...)

# Esse uso do artigo é, entretanto, ligado a costume regional, familiar ou pessoal. Desse modo, também é comum que o artigo defi nido não seja usado: Achei Ø Elvira meio esquisita. (VN) (p.404);

# Especialmente não se usa artigo se o registro é elevado, e se se trata de nome de pessoa famosa, mas não popular: Ø Antero de Quental foi budista, asseverando Ø Penha que Ø Junqueiro também o teria sido, (...) Ø Darwin e Ø Tolstói (...) também o foram, inconscientemente. (FI) (p.405);

O pronome oblíquo átono não-refl exivo de terceira pessoa LHE e os pronomes oblíquos átonos de primeira e de segunda pessoa do singular (ME e TE) podem contrair-se com o pronome oblíquo átono não-refl exivo de terceira pessoa O, numa forma que represente ambas as funções sintáticas (MO, TO, LHO), embora esse emprego se restrinja ao uso literário ou a um registro mais formal (p.466);

# Menos comuns e restritas à linguagem coloquial são as orações consecutivas que têm como antecedente um sintagma nominal com o elemento cada, fazendo intensifi cação, em posição adnominal ... (p.923);

# Por outro lado, mesmo que o sintagma que contém NENHUM venha antes do verbo da oração, a

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marca negativa pode ocorrer, em linguagem coloquial ou regional: NENHUMAS ruindades deste mundo não têm poder de segurar a gente pra sempre. (SA) (p.544).

Quanto à distinção entre a modalidade falada e a escrita, conforme foi dito é ela uma das características das gramáticas do século XX. A gramática de Neves trata, portanto, da questão, mas no âmbito de uma gramática de usos e segundo os estudos sobre língua falada e escrita desenvolvidos, nas últimas décadas, sobretudo pelos estudiosos do discurso e do texto (Marcuschi, 1997; Barros, 2000). Em outras palavras, descreve os usos atestados no corpus, sejam eles encontrados na fala ou na escrita, aponta, sempre que possível, o fato de o uso ocorrer, com mais frequência, em uma das modalidades, trabalhando com uma distinção gradual entre fala e escrita. As citações que seguem mostram essa forma de tratar as modalidades falada e escrita, em uma gramática de usos:

Pode-se optar pelo verbo-suporte para se obter maior adequação de registro, isto é, a construção com verbo-suporte pode ser adequada, por exemplo, à fala coloquial (p. 57);

Especialmente na linguagem falada, mas também na língua escrita, em registro mais distenso, ocorre pronome pessoal tônico como objeto direto, sem preposição, construção que é condenada pela gramática tradicional normativa (...) (p.614);

(...) ocorre frequentemente (embora mais especialmente na língua falada), que se usem formas de segunda pessoa em enunciados em que se emprega o tratamento VOCÊ, de tal modo que se misturam formas de referência pessoal de segunda e de terceira pessoa: (...) (p.458);

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# A gramática normativa só admite que essas formas ocorram como complemento se preposicionadas. Entretanto, especialmente na linguagem falada, mas também na escrita, ocorrem enunciados como: Não sei respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há quinze anos. Nunca vi ELE assim. (ANB) (...)

Na conversação essas formas são sempre usadas quando sua posição na o enunciado tem de ser tônica. (p.457);

# Esse uso ocorre especialmente na conversação espontânea, e são abundantes os exemplos nos diálogos de peças teatrais: Pode ditar o que VOCÊ quiser, eu escrevo. Sei fazer contas, também. Eu já TE falei que meu nome é Érica? (OMT) (p.458);

# A grande difusão, no Brasil, do emprego de você, em vez de tu, para referência ao interlocutor, faz que, muitas vezes (embora mais especialmente na língua falada), se misturem formas de referência pessoal de 2a e 3a pessoa (p.472).

Observe-se, sobretudo, o emprego de “especialmente, “mais”, “menos”, que indicam bem como a Gramática considera de modo gradual a distinção entre fala e escrita, entre os usos nas duas modalidades.

Finalmente, deve-se dizer que há na Gramática alguns poucos usos que são desqualifi cados, de acordo com a perspectiva teórica escolhida:

# Não tem justifi cativa o emprego de CUJO iniciando constituinte de valor locativo, como ocorre nesta passagem da literatura jornalística: A região vem passando por uma transformação urbanística com a desocupação dos galpões

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e antigas casas, em cujos locais há grandes possibilidades de surgirem empreendimentos (FSP). A indicação locativa dentro do constituinte relativo teria de ser expressa por ONDE ou EM QUE/NO QUAL (p. 369);

# Ocorrem casos de introdução indevida de preposição antes de pronome relativo que funciona como objeto direto, que não encontra nenhuma explicação na estrutura argumental do verbo”. Para fi car no bairro onde mora desde criança, excetuando-se os períodos em que passou fora do país, Cléo gastou R$ 120 mil que levantou com a indenização na compra de sua nova casa (FSP).

Nesses casos, para apresentar usos impossíveis, segundo a perspectiva teórica escolhida, mas também para mostrar, a partir de um mesmo exemplo, as variações possíveis e atestadas por outras ocorrências, podem aparecer exemplos da própria autora:

Chico faz uma saudação à mulher, que vem entrando, com dois pacotinhos de dinheiro e sai (AC). Comparando-se, por exemplo, o último enunciado com um correspondente de verbo pleno: Chico saúda a mulher, que vem entrando, com dois pacotinhos de dinheiro e sai (p. 59);

Observe-se, por exemplo, que, nas orações com verbos implicativos negativos, não podem ocorrer indefi nidos negativos”. *Há interesse em EVITAR nenhum incidente público. *Você DEIXOU DE ser nenhum grande escritor verdadeiramente.

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Em síntese, a gramática de Neves descreve a explica os diferentes usos. Esses usos, como foi já observado, não são hierarquizados pela frequência, não havendo assim uma norma “usual”. Além disso, a gramática em geral quase não estabelece relações entre os usos e os lugares, o tempo e as camadas sociais em que são empregados. Em lugar dessas informações, ela indica os sentidos produzidos pela diversidade de usos nos discursos, os papéis discursivos desses empregos na interação. Trata-se, assim, de um tipo de gramática de usos, possível e mais próximo dos estudos teórico-linguísticos do século XX.

Se as gramáticas que constroem o discurso da norma natural, única, empregam exemplos do próprio gramático para apontar as regras da língua, se as gramáticas prescritivas necessitam do referendo de escritores e de outros usuários de autoridade e prestígio, as gramáticas de usos empregam exemplos de usos atestados, encontrados, empregados por diferentes tipos de locutores. São usos atestados, mas não apenas por usuários de “autoridade e prestígio”. Os exemplos da gramática de Neves são extraídos da base de dados de 200 milhões de ocorrências do Centro de Estudos Lexicográfi cos da UNESP – Araraquara/São Paulo (excetuados os raros casos acima mencionados), que foi organizado segundo critérios de variação de gêneros textuais, de registros sociais, de regiões, etc. É um corpus de língua escrita, mas que conta também com usos muito próximos da fala (textos de teatro, textos jornalísticos, entre outros), sobretudo se se adota, como foi já apontado, a perspectiva teórica de uma diferença gradual entre fala e escrita (Marcuschi, 1997; Barros, 2000). A autora, como foi dito acima, não trata explicitamente das diferenças entre fala e escrita, mas aponta os usos atestados no corpus, sejam eles mais usuais na fala ou na escrita (com base no textos escritos próximos da língua falada):

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Esse corpus abriga textos escritos de literatura romanesca, técnica, oratória, jornalística e dramática, o que garante diversidade de gêneros e permite a abrangência de diferentes situações de enunciação, incluindo a interação, sendo notável a representatividade da língua falada, encontrada na simulação que dela fazem as peças teatrais (p. 14).

# Esse uso ocorre especialmente na conversação espontânea, e são abundantes os exemplos nos diálogos de peças teatrais ...(p.458).

Para terminar esta apresentação resumida das características da gramática de usos de Neves e das gramáticas de usos em geral, no século XX, no Brasil, parece-nos necessário falar dos diálogos muito frequentes estabelecidos entre a gramática de Neves e outras gramáticas do século XX. Neves as chama, no início de sua obra, de “gramática tradicional”, em seguida, de “gramática tradicional normativa”, e, no fi nal, de “gramática normativa”.

Desde a apresentação da gramática de Neves, esses diálogos são explicitamente mencionados: “para maior utilidade do consulente comum a norma de uso é invocada comparativamente, de modo a informar sobre as restrições que tradicionalmente se fazem a determinados usos atestados e vivos” (p. 14).

Os diálogos ocorrem sobretudo nos comentários e têm duas funções, além da função informativa explicitada na apresentação: a de confi rmar, pela gramática “tradicional”, o uso descrito; a de se opor a essa gramática. Seguem alguns exemplos:

# Quanto à regência particular do verbo esquecer (-se), cabe observar que, de acordo com as lições da gramática tradicional, esse verbo... (p. 41);

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É com base nessa característica que a gramática tradicional assenta a sua defi nição de substantivo como “a palavra que designa ou nomeia os seres. De fato, considerados... (p. 68);

Quando se referem a número plural, esses nomes devem pluralizar-se, segundo as normas da gramática tradicional. Entretanto é frequente que o plural venha indicado apenas pelos elementos que acompanham esses nomes (os adjuntos adnominais) (p. 107);

# Embora a recomendação da gramática tradicional normativa, nesses casos, seja que o substantivo empregado para referência plural receba a marca de plural, é comum que a pluralização seja feita apenas pelo determinado (p. 110);

# Quando se referem a número plural, nem sempre esses substantivos se pluralizam, sendo o plural indicado apenas pelos elementos que os acompanham (determinantes, por exemplo), o que contrária as recomendações da gramática tradicional normativa (p. 113).

Os dois primeiros exemplos mostram relações de concordância da gramática de usos com a gramática “tradicionnal”, enquanto os três últimos, graças sobretudo ao emprego de “entretanto”, de “embora”, de “o que contraria”, assinalam o desacordo com a gramática “tradicional” normativa. A oposição instala-se entre a norma prescritiva (a prescrição, a “recomendação”) e o uso. Os exemplos que seguem mostram a extensão e a predominância da polêmica nesses diálogos:

Encontram-se, entretanto, casos restritos de advérbio fl exionado em gênero e número. Esses usos, que se referem a quanti% cadores, pertencem a um registro mais distenso e são considerados erros pela gramática normativa: (p. 233);

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Recomenda a gramática tradicional normativa que se use no singular o substantivo determinado pela expressão um e outro. Entretanto, o plural é bastante usado (p. 117);

# Entretanto, contrariamente ao que recomenda a gramática normativa tradicional, a construção também ocorre sem artigo (p. 404);

# A recomendação da gramática normativa é que os sobrenomes assim usados se pluralizem, mas isso nem sempre acontece, usando-se, muitas vezes, no plural, apenas o artigo de% nido (p. 406).

Algumas vezes, a autora não se manifesta claramente a favor ou contra a gramática “tradicional” normativa, mas o faz de forma subentendida, pois, nesses casos, a gramática opõe as recomendações normativas aos usos atestados, vivos, ainda que eles apareçam como registros coloquiais e informais:

Se o sujeito da oração completiva in% nitiva é um pronome pessoal, ele toma a forma oblíqua, segundo as normas da gramática tradicional, mas é bastante ocorrente, na linguagem coloquial, a forma reta: (p. 353);

O comparativo de superioridade de bem ou mal pode ser sintético (...) ou analítico (...), embora a gramática normativa recomende o emprego do comparativo analítico (p. 281);

Essa construção não é bem-aceita pela gramática normativa (p. 359). (o caso de “gostar que”);

Por outro lado, com o verbo fazer, que rege objeto direto, pode ocorrer que o complementador seja precedido da preposição COM, o que não é recomendado pela gramática normativa. (p. 359).

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A gramática de Neves dialoga, da mesma forma, com os dicionários e com o Formulário ortográfi co:

# O substantivo jângal é apontado como masculino nos dicionários, mas só ocorre no feminino (p. 154);

# Embora o Formulário ortográfi co prescreva o uso de hífen nesses casos, verifi ca-se que a grafi a varia: (p. 175, 179).

Finalmente, é preciso dizer que, se os exemplos apresentados mostram, principalmente, a discordância em relação à aceitação dos usos, há também diferenças polêmicas entre os dois tipos de gramática quanto a questões teóricas:

# A gramática tradicional coloca esses advérbios como conjunções coordenativas (adversativas e conclusivas, respectivamente), admitindo, assim, orações coordenadas sindéticas conclusivas. Na verdade, são elementos em processo de gramaticalização. (p. 241);

# A gramática tradicional não se mostra sensível à diferença entre as subcategorias contável e não-contável dos substantivos [com o verbo pedir]. Entretanto, são várias as propriedades que distinguem essas duas subcategorias (p. 82).

Reforçamos sobretudo quatro características da gramática de Neves:– o tipo de gramática de usos: não é uma gramática da norma

usual, da frequência de uso, mas uma gramática sobretudo linguística, de descrição e explicação dos usos;

– uma gramática funcionalista, que apresenta claramente sua fundamentação teórica;

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– uma gramática que examina a “língua viva”, em funcionamento nos discursos e na interação entre os sujeitos;

– uma gramática que mostra que os diferentes usos não são certos ou errados, mas que eles existem e produzem efeitos de sentido diferentes no discurso.

Considerações fi nais

As duas gramáticas examinadas compõem o quadro dos estudos gramaticais no Brasil, no século XX: de um lado, uma gramática “tradicional” ou segundo a tradição das gramáticas greco-latinas e das gramáticas portuguesas desde o século XVI (desde João de Barros), prescritiva e, antes de tudo, pedagógica, mas que dialoga com os estudos linguísticos do século XX; do outro, uma gramática sobretudo descritiva e explicativa, que escolhe e explicita uma teoria linguística determinada para examinar os usos.

As gramáticas de Celso Cunha e de Neves constroem imagens diferentes do enunciador e do enunciatário, ou, em outras palavras, cada uma delas apresenta um éthos do enunciador e um páthos do enunciatário. Na gramática de Celso Cunha, as estratégias discursivas empregadas mostram o éthos do enunciador erudito, sábio, competente, com a autoridade de alguém que conhece a língua e suas regras, mas também benevolente, que quer e deve ensinar a língua aos que não sabem escrever bem, ou mesmo falar bem, e também aos usuários cultos que cometem “erros”. É o éthos de um “gramático”, segundo a imagem construída de um gramático no Brasil, no século XX. O páthos do enunciatário é o daquele que quer aprender a bem empregar a língua, que acredita na gramática e que sabe que é preciso falar e escrever bem se se quer ocupar um bom lugar na sociedade.

A escolha dos tempos e a das pessoas do discurso na gramática de Celso Cunha são procedimentos relevantes da construção do éthos e do páthos: há o emprego da 3ª pessoa e, sobretudo, a presença acentuada da

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1ª pessoa do plural, com suas várias possibilidades de uso – 1ª pessoa do plural como nós exclusivo (eles + eu: nós, os gramáticos); 1ª pessoa do plural no lugar da 1ª pessoa do singular (plural de autor); 1ª pessoa do plural em lugar da 3ª pessoa. São essas, geralmente, as escolhas do discurso científi co, são esses seus procedimentos característicos: o emprego da 3ª pessoa produz efeitos de sentido de objetividade, próprios da ciência (“Materialmente, a frase constitui uma cadeia sonora com seus acentos principais e secundários” (p. 67-68)); o emprego da 1ª pessoa do plural em lugar da 1ª pessoa do singular, denominado plural de autor, produz o efeito de sentido de se falar em nome da ciência (“Apresentar as consoantes fricativas como subdivisão das constritivas não nos parece a melhor solução (...)” (p. 55), “(...) além do emprego a que nos referimos (...)” (p. 434)); o emprego do nós exclusivo (eles + eu: nós, os gramáticos) mostra a participação da gramática na tradição gramatical de que já falamos. Os efeitos de sentido de objetividade da ciência, de se falar em seu nome e de participação na tradição gramatical resultam desses procedimentos. Por outro lado, o emprego acentuado da 1ª pessoa, ainda que enfraquecido pelo plural e, em particular, por seu emprego em lugar da 3ª pessoa, produzem efeitos de sentido de subjetividade e de aproximação, sempre muito atenuada, entre o destinador e o destinatário da gramática (“... se, no entanto, observarmos com atenção a pronúncia ...”(p. 56); “Dizemos, por exemplo, que as palavras gostosamente e indubitavelmente são paroxítonas, porque sentimos que em ambas o acento básico recai na penúltima sílaba” (p. 67)). Esse jogo de vozes que se afastam e se aproximam é uma das características do discurso pedagógico, que mistura os efeitos de cientifi cidade e os de cumplicidade didática de uma interação sempre assimétrica entre professor e aluno. O autor se apaga um pouco nesse ir-e-vir, mas a 1ª pessoa, ainda que do plural, garante-lhe certa “propriedade” e “individualidade” de ponto de vista.

O tempo é, em geral, o presente atemporal, gnômico, do discurso científi co.

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A gramática de Maria Helena de Moura Neves constrói, também ela, o éthos de autoridade e competência, mas se trata, principalmente, da autoridade do linguista que, em nome da ciência da linguagem, deve descrever e explicar a língua.

Na gramática de Neves, o emprego das pessoas e do tempo do discurso é próprio do discurso objetivo da ciência: 3ª pessoa e presente atemporal, gnômico. Quando a autora precisa da 1ª pessoa, para falar, por exemplo, das contribuições que recebeu de outros linguistas, ela emprega a estratégia de substituir a 1ª pessoa pela 3ª, dizendo “a autora”, ou a da indeterminação do sujeito:

A autora obteve colaboração...(p. 19);

Obviamente, as imprecisões e impropriedades remanescentes são de inteira responsabilidade da autora (p. 20);

A partir dos pressupostos sobre os quais se assenta a investigação pretendida, pode-se ilustrar com algumas classes de palavras a discussão que se efetivou (p. 16);

A partícula negativa NÃO, como já se explicou antes... (p. 289);

Os advérbios NUNCA e JAMAIS, como também já se explicou em 2.1... (p 289).

Esses procedimentos escondem os efeitos de aproximação e as marcas sensoriais e passionais da enunciação, próprias da 1ª pessoa, sob a aparência do afastamento e da objetividade inteligível e racional da indeterminação das pessoas do discurso e do emprego de um papel temático, o da “autora”, no lugar do “eu” ou do “nós”.

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O destinatário está também sempre na 3ª pessoa, o que reforça o efeito de sentido de afastamento entre enunciador e enunciatário. A cumplicidade entre a autora da gramática e seu leitor constrói-se então por meio de outros procedimentos, sobretudo os de “facilitação” da gramática e de sua leitura. As numerosas comparações, os muitos exemplos e as relações com a gramática “tradicional” são algumas dessas estratégias de cumplicidade e facilitação.

As duas gramáticas examinadas contribuem assim para a formação da parte gramatical do rosto brasileiro do século XX. Rosto que os estudos dos diferentes discursos, entre os quais o gramatical, deixam ver e sentir. Se as gramáticas do século XX não têm mais o papel primordial de construir laços entre língua e nação, criando impérios coloniais e identidades nacionais, elas criam relações entre língua e sociedade e estabelecem, sobretudo as tradicionais, a ordem social.

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MELODIC ANALYSIS OF SPEECH (MAS): APLICACIONES EN LA COMPARACIÓN DE LENGUAS

Dolors FONT-ROTCHÉSLaboratori de Fonètica Aplicada. Universitat de Barcelona.

RESUMEN

En este artículo, presentamos un análisis comparativo de la entonación de las preguntas absolutas del español, del catalán y del portugués de Brasil a partir de las investigaciones que se han llevado a cabo en los últimos años por el grupo Entonación y Habla de la Universitat de Barcelona. Se trata de una comparación formal entre los diversos patrones que utiliza cada lengua para producir este tipo de preguntas. Para realizar esta investigación, nos hemos basado en el método Melodic Analysis of Speech (MAS), descrito por Cantero (2002), revisado y ampliado por Font-Rotchés (2007) y, posteriormente, establecido por Cantero y Font-Rotchés (2009), después de haber sido aplicado en distintas investigaciones sobre descripción de la entonación de distintas lenguas e interlenguas.

ABSTRACT

In this paper, we present a comparative analysis of the intonation of absolute questions in Spanish, Catalan and Brazilian Portuguese based on research carried out during the last few years by the group Intonation and Speech from the University of Barcelona. This is a formal comparison between the different patterns that each language uses to produce this type of question. For this research we have used the Melodic Analysis of Speech method (MAS) described by Cantero (2002), revised and extended by Font-Rotchés (2007) and subsequently established by Cantero and Font-Rotchés (2009), after having been applied to different research projects regarding the description of intonation in different languages and interlanguages.

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PALABRAS-CLAVE

Catalán. Entonación. Español. Preguntas absolutas. Método Análisis Melódico del Habla. Portugués de Brasil.

KEY-WORDS

Absolute questions. Analysis of Speech method. Brazilian Portuguese. Catalan. Intonation, Spanish. Melodic

Introducción

El estudio de la entonación de las lenguas es de gran interés porque tiene aplicaciones en el campo del análisis, síntesis y reconocimiento de la voz, en los sistemas de diálogo, en fonética forense, en fonética clínica (reeducación de la voz, trastornos del habla) y también en la descripción lingüística y en la enseñanza de lenguas. Es en este último campo en el que el grupo Entonación y Habla de la Universitat de Barcelona se ha especializado.

Para realizar el análisis de la entonación de las lenguas, utilizamos el método Melodic Analysis of Speech (MAS), también llamado Análisis Melódico del Habla, propuesto por Cantero (2002), revisado y ampliado en Font Rotchés (2007) y establecido en Cantero y Font-Rotchés (2009) y Font-Rotchés y Cantero (2009). Se trata de un método muy adecuado para este tipo de investigaciones, cuyos resultados son útiles para desarrollar aplicaciones didácticas en la enseñanza de primeras y segundas lenguas. Frente a otros métodos de análisis de la entonación, ofrece un criterio de segmentación de las melodías del habla exclusivamente fónico y presenta un sistema de procesamiento de los datos acústicos que nos permite obtener los valores relativos que constituyen las melodías, para compararlas, clasifi carlas, reproducirlas con toda fi delidad, experimentar con ellas mediante la síntesis de voz, someterlas al análisis perceptivo y hacer generalizaciones lingüísticas.

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Así pues, podemos contar con múltiples informantes y un gran número de contornos, que nos han servido para establecer con precisión los patrones entonativos de una lengua: español (Cantero y Font-Rotchés, 2007), catalán (Font-Rotchés, 2007), así como el estudio de la interlengua: español hablado por taiwaneses (Liu, 2005), por brasileños (Fonseca y Cantero, 2011), por italianos (Devís, en prensa), por suecos (Martorell, en prensa) o catalán hablado por húngaros (Pálvölgyi, 2010), por citar algunos de los estudios que se están llevando a cabo.

En este artículo, presentamos las características esenciales del método acompañadas de un ejemplo de las aplicaciones que se pueden desarrollar: la descripción de los patrones interrogativos de tres lenguas, español, catalán, y portugués de Brasil, y la comparación formal entre ellos. Por consiguiente, hemos podido establecer las semejanzas y diferencias que tienen los patrones interrogativos de estas tres lenguas románicas, gracias a las características del método: se obtienen patrones melódicos con unos márgenes de dispersión expresados en valores exactos, en porcentajes, con lo cual tenemos la información necesaria para desarrollar aplicaciones didácticas en el ámbito de la enseñanza-aprendizaje de primeras y segundas lenguas y de lenguas extranjeras.

1. El método Melodic Analysis of Speech (MAS)1.

En nuestros trabajos de entonación, hemos desarrollado un modelo teórico que nos permite identifi car con toda precisión las unidades fónicas del habla, independientemente de cualquier otro nivel de análisis. Ello nos permite describir la entonación de un corpus de habla no preparado ni inducido, totalmente ajeno a la intervención de los investigadores, con informantes anónimos y con habla espontánea genuina.

Este planteamiento es diferente al que mantienen los estudios de la entonación que se elaboran a partir de un corpus de “habla de laboratorio” (frases preparadas y leídas o, como mucho, inducidas por

1 Este apartado sigue de cerca el protocolo expuesto en Cantero y Font-Rotchés, 2009.

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el investigador) y conlleva un tipo de análisis que no puede describir la realidad lingüística tal cual es, sino únicamente una realidad lingüística creada en el laboratorio, que, obviamente no es muy “real”.

El modelo teórico, expuesto en Cantero (2002), se basa en el concepto de jerarquía fónica, según el cual el habla está formada por unidades fónicas trabadas, bien jerarquizadas: la sílaba, el grupo rítmico (o palabra fónica) y el grupo fónico. La unidad de análisis de la entonación es el grupo fónico (con una melodía determinada); la unidad de análisis del ritmo es el grupo rítmico (cuya melodía también es relevante dentro del contorno); y la unidad de análisis de la melodía es el segmento tonal (es decir, el valor tonal, relativo, del núcleo silábico: la vocal). Cada vocal, entonces, constituye un segmento tonal, excepto las vocales tónicas, que pueden constituir una infl exión tonal, es decir, dos (o más) segmentos tonales: como ocurre en el acento de frase, que es el núcleo del grupo fónico y, por tanto, también el núcleo de la melodía. La presencia de una infl exión tonal será el criterio formal que utilizaremos para delimitar el grupo fónico.

Ante un corpus de habla espontánea, y en un primer momento, conviene seleccionar los enunciados que coinciden con un turno de palabra del diálogo (normalmente breves y fáciles de identifi car) hasta que el investigador no haya adquirido la sufi ciente confi anza en la identifi cación de los grupos fónicos y en la delimitación de las melodías del habla.

Una vez identifi cadas las unidades melódicas (los grupos fónicos), hay que tratarlas como enunciados autónomos. Cada una contendrá, en unas ocasiones, sintagmas más o menos defi nidos y, en otras, oraciones más o menos completas gramaticalmente (ya que trabajamos con lengua oral espontánea): pero en ningún caso dependemos de estas unidades gramaticales para el análisis, porque las unidades que analizamos son unidades fónicas (contengan o no unidades gramaticales, enteras o no). Nosotros creemos que son más bien las unidades gramaticales las que ubican y se adaptan a su contenedor melódico, que es el auténtico estructurador del discurso oral: lo que llamamos entonación prelingüística.

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1.1. Fase acústica: determinación de los valores fre-cuenciales relevantes y estandarización

Utilizando Praat (Boersma & Weenink, 1992-2010), la aplicación de análisis acústico y síntesis con gran aceptación dentro de la comunidad investigadora, determinamos la media de los valores de F

0 de la vocal de

cada enunciado (en Hz), o el valor central cuando es lo sufi cientemente estable. Cuando se trata de una vocal tónica que contiene una infl exión tonal, hemos de determinar el valor de los dos segmentos tonales que constituyen la infl exión (o de los tres segmentos, si la infl exión es circunfl eja). Estos valores se calculan de los valores extremos de la infl exión. Otras veces, la infl exión tonal fi nal comienza en una vocal tónica y acaba en la vocal átona, como ocurre en las infl exiones fi nales que coinciden con una palabra llana o esdrújula. En el caso de que la infl exión fi nal acabe en una vocal seguida de una consonante nasal o lateral, esta consonante sonante podría constituir, por sí misma, el último segmento tonal de la infl exión.

Los valores absolutos obtenidos en esta primera fase del análisis (v. fi la ‘herzios’ en tabla 1) no constituyen aún, sin embargo, la melodía del contorno, son datos en bruto que han de procesarse adecuadamente. El segundo paso en el análisis melódico es, pues, la estandarización de los datos frecuenciales, es decir establecer la distancia tonal en porcentajes entre un segmento tonal y el siguiente: el ascenso tendrá un porcentaje positivo y el descenso, negativo (v. fi la ‘porcentaje’ en tabla 1).

TABLA 1: Valores absolutos y estándares de ¿Te cabe todo ahí?.

Enunciado Te ca be to(do) a hí hí*

Herzios 277 277 340 320 296 311 532Porcentaje 100% 0,0% 22,7% -5,9% -7,5% 5,1% 71,1%Curva estándar

100 100 123 116 107 112 192

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Para hacer la representación gráfi ca de una melodía, convertimos los porcentajes obtenidos a valores estándares (v. fi la ‘Curva estándar’ en tabla 1): comenzando, por ejemplo, por el valor 100 (un valor arbitrario), le aplicamos el porcentaje de ascenso que ha sufrido el segundo segmento, 0%, y obtenemos el segundo valor, 100; a este, se le aplica el porcentaje de ascenso del tercero, +22,7%, y obtenemos el tercer valor, 123; y así, sucesivamente, hasta el último segmento.

Con la aplicación de esta primera fase del método, o fase acústica, se obtiene la estandarización de los contornos, que ahora ya son comparables y clasifi cables, independientemente de la edad, el sexo o cualquier otra característica del informante, ya que se han extraído todas las variaciones micromelódicas y se han normalizado los valores (a partir de un valor arbitrario 100). Tampoco hay que preocuparse por el número de informantes del corpus, ya que con la aplicación del método todos los contornos obtenidos son directamente comparables.

1.2. Fase perceptiva: validación del análisis e interpre-tación de los datos

Después de la fase acústica, podemos comprobar la validez de nuestros resultados mediante una serie de pruebas perceptivas en las que sometemos a juicio de los oyentes una copia exacta (por síntesis de voz) de la frase analizada.

Utilizamos el programa Praat para obtener esta copia sintetizada (con el método PSOLA), de la cual borramos todos los datos originales y los sustituimos por nuestros datos estandarizados. Así comprobamos que, efectivamente, el análisis melódico ha sido correcto y refl eja la melodía original, sin variaciones micromelódicas y con los valores normalizados, es decir, se trata de una melodía idéntica a la original, pero con una tesitura de voz diferente.

El siguiente paso es, evidentemente, interpretar adecuadamente la melodía obtenida: extraer los datos melódicos relevantes que permiten una interpretación del contorno, por ejemplo una interpretación fonológica.

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En nuestro modelo teórico, distinguimos entre los rasgos melódicos de los contornos (que constituyen el nivel fonético de la entonación) y los rasgos fonológicos (que permiten establecer los tonemas o unidades fonológicas de la entonación).

Los rasgos fonológicos que contemplamos son: /± Interrogativo/± Enfático/ y /± Suspendido/, cuya combinación nos ha permitido caracterizar los tonemas de cada lengua (Cantero, 2002). Estos rasgos fonológicos han sido sufi cientes para clasifi car todos los contornos de los diversos corpus que se han elaborado para distintas investigaciones dentro del marco de Laboratorio de Fonética Aplicada.

Los rasgos melódicos, por su parte, son las características de los elementos funcionales del contorno: el anacrusis, el primer pico, el cuerpo (o declinación), el núcleo y la infl exión fi nal. Entendemos por anacrusis las sílabas átonas previas a la primera vocal tónica del contorno, llamada primer pico, por cuerpo las sílabas que van desde el primer pico a la última vocal tónica del contorno o núcleo, y por infl exión fi nal las sílabas que van del núcleo hasta el fi nal del contorno. Es la dirección de esta infl exión fi nal, ascendente, descendente, plana, ascendente-descendente, etc., la que nos permite establecer los patrones melódicos típicos.

Según nuestro método, el patrón melódico no es una mera representación de una línea con ascensos y descensos, sino que es una abstracción de la realidad hablada, representativa de múltiples melodías con los rasgos melódicos comprendidos entre sus márgenes de dispersión (defi nidos con claridad y cuantifi cados objetivamente). En estos márgenes se dan las variaciones de que nos servimos los hablantes para transmitir intenciones, emociones y otros contenidos expresivos o bien para evidenciar diferencias socioculturales o dialectales.

2. Patrones interrogativos del español

En español, hemos encontrado cuatro patrones /+interrogativos/ resultado del análisis acústico y de las pruebas de percepción que se

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han llevado a cabo en investigaciones basadas en un corpus de español (Cantero y Font-Rotchés, 2007; Font-Rotchés y Mateo, 2011).

Los patrones se describieron en dos etapas a partir de un total de 55 preguntas absolutas producidas por 47 informantes, hombres y mujeres, con edades comprendidas entre los 16 y los 83 años en el momento de la emisión de los enunciados. Son todos ellos hablantes nativos de las diversas variedades dialectales del español peninsular y de Canarias y de composición totalmente aleatoria por lo que respecta tanto a la ubicación dialectal concreta como al origen social y nivel cultural.

2.1. El patrón Infl exión fi nal ascendente (+70%)

El patrón Infl exión fi nal ascendente (+70%) se caracteriza por ser /+interrogativo –enfático –suspenso/ y se distingue de los otros porque presenta una infl exión fi nal con un ascenso igual o superior al 70%, tal como se puede apreciar en el gráfi co.

GRÁFICO 1: Patrón del español IF ascendente (+70%).

Este patrón presenta un ascenso hasta la primera sílaba tónica o primer pico de un máximo de un 40%, un cuerpo en declinación hasta el núcleo o última sílaba tónica y un ascenso fi nal igual o superior al 70%. Tenemos un total de 12 interrogativas absolutas que responden a los rasgos melódicos de este patrón, de las cuales aportamos unos ejemplos:

IF ascenso

(+70%)Anacrusis

Cuerpo

Primer Pico Núcleo

PATRÓN DEL ESPAÑOL IF ASCENDENTE (+70%)

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a. ¿Y bambas tal vez no? b. ¿Ustedes estarían por la hospitalización?c. ¿Me lo puedes repetir?d. ¿Te cabe todo ahí?e. Entonces, ¿me puedo quitar la corbata también?

Este patrón se utiliza en preguntas de carácter neutro, para obtener información, aunque también encontramos otros usos, como preguntas-ruego o un caso preguntas-ruego o un uso casi retórico.

GRÁFICO 2: Contorno melódico de ¿Te cabe todo ahí? del patrón IF ascendente (+70%) del español.

El contorno del gráfi co 2, ¿Te cabe todo ahí?, presenta un anacrusis con un ascenso total del 23%, que culmina en una sílaba átona posterior a la tónica, -be, que es donde se encuentra el primer pico. Se trata de un pequeño desplazamiento sin gran relevancia. El cuerpo es descendente y la infl exión fi nal presenta un 71,1% de ascenso en la sílaba tónica fi nal, hí.

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2.2. El patrón Infl exión fi nal ascendente (40%~60%)

El patrón Infl exión fi nal ascendente (40%~60%), que se caracteriza por ser /+interrogativo -enfático –suspenso/ se diferencia del anterior no solo por una infl exión fi nal con un ascenso inferior, sino también por presentar de manera sistemática un desplazamiento del primer pico a una vocal átona posterior a la primera vocal tónica. Así, pues, como se puede ver en el gráfi co 3, el patrón presenta un ascenso hasta una sílaba átona posterior al primer pico de un máximo de un 40%, un cuerpo en declinación hasta el núcleo o última sílaba tónica y un ascenso fi nal entre un 40% y un 60%.

GRÁFICO 3: Patrón del español IF ascendente (40%~60%).

Tenemos un total de 19 interrogativas absolutas que responden a los rasgos melódicos de este patrón, de las cuales aportamos unos ejemplos:

a. ¿Y van a llegar a un acuerdo?b. ¿Tienes permiso de conducir?c. ¿Es una indirecta para que me vaya?d. ¿Hubo miedo?e. Y por aquí tenéis una cañada real, ¿verdad?

También en este caso este tipo de contornos fueron utilizados por los hablantes en preguntas en las que básicamente los interlocutores querían obtener una información de carácter neutro, como el ejemplo del gráfi co 4, ¿Hubo miedo?, que presentamos a continuación.

AnacrusisCuerpo

Primer Pico

desplazado

IF ascenso

(40%~60%)

Núcleo

PATRÓN DEL ESPAÑOL IF ASCENDENTE (40%~60%)

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GRÁFICO 4: Contorno melódico de ¿Hubo miedo? del patrón IF ascendente (40%~60%) del español.

El contorno del gráfi co 4 es típico de este patrón. Presenta un anacrusis con un ascenso total del 16,1%, que culmina en el primer pico, una sílaba átona posterior a la tónica, -bo, seguido de un cuerpo descendente y una infl exión fi nal que empieza en el núcleo, mie- y asciende un 57,8% hasta la sílaba –do.

2.3. El patrón Infl exión fi nal ascendente-descendente

El patrón melódico IF ascendente-descendente (v. gráfi co 5) se caracteriza por un anacrusis con un ascenso suave de hasta un 25%, que llega a un primer pico desplazado a una vocal átona posterior, un cuerpo plano hasta llegar a la última sílaba tónica o núcleo, y una infl exión fi nal circunfl eja, ascendente-descendente. El ascenso de la infl exión se percibe a partir del 25% y tenemos ejemplos que llegan hasta un 55%. El descenso se prolonga hasta llegar a un punto más bajo de donde había empezado la infl exión. Puede presentar variantes que no contengan anacrusis o que el cuerpo sea descendente.

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GRÁFICO 5: Patrón del español IF ascendente-descendente.

Este tipo de contornos que responden a este patrón, tenemos 7 en total, se utilizan menos que los anteriores ya que requieren de contextos más específi cos.

a. ¿Te gusta el tomate? b. ¿Eso se está haciendo? c. ¿Es bonito? d. ¿Corto yo también?

Vemos en el gráfi co 6 un caso típico de este patrón con la pregunta ¿Te gusta el tomate? Empieza el contorno con un ascenso suave hasta una sílaba átona posterior a la primera tónica, te gusta el to-, con un ascenso total de un 15%, sigue en descenso hasta la última sílaba tónica, -ma-, punto donde empieza la infl exión fi nal circunfl eja, con un ascenso de un 42,6% y un descenso de un 34,3%.

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GRÁFICO 6: Contorno melódico de ¿Te gusta el tomate? del patrón IF ascendente-descendente del español.

2.4. El patrón Cuerpo Ascendente

Este patrón, a diferencia de los otros, lo denominamos Cuerpo ascendente, porque aunque presenta una infl exión fi nal ascendente, la característica que lo distingue del resto de patrones es el cuerpo ascendente que tiene lugar desde el primer segmento tonal del enunciado hasta el último segmento del contorno. Además no presenta anacrusis ni primer pico. Veámoslo en el gráfi co 7. Se trata de un patrón nuevo que se reveló en unas pruebas perceptivas (Font-Rotchés y Mateo, 2011) y que parece ser muy productivo.

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GRÁFICO 7: Patrón del español Cuerpo ascendente

Tenemos un total de 17 enunciados con distintos ascensos que han sido reconocidos como /+interrogativos/. El ascenso total de las melodías puede ser de entre un 20% a un 140%, y el ascenso de las infl exiones fi nales, de un 10% hasta un 66%. Cuanto más ascenso global y más ascenso en la infl exión fi nal tienen las melodías de estos contornos, los informantes de las pruebas de percepción más los reconocen como /+interrogativos/, incluso, en algunos casos, se llega al 100%. Presentamos a continuación algunos de los enunciados-pregunta que siguen este patrón.

a. ¿Me puedo levantar y cantar ya?

b. Pero, ¿sabes bailar?c. ¿Y usted me fía?

d. ¿Te parece bien?

e. ¿Compraste algo?

En el gráfi co 8, se representa el contorno melódico de la pregunta Pero ¿sabes bailar? que sigue las características melódicas del patrón. La línea melódica se inicia en el primer segmento tonal y va ascendiendo de forma constante hasta la última sílaba tónica, -lar, donde tiene lugar un ascenso fi nal de un 12,9%. El ascenso total del contorno es de un 104%.

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GRÁFICO 8: Contorno melódico de Pero ¿sabes bailar? del patrón Cuerpo ascendente del español.

3. Patrones interrogativos del catalán

En catalán hemos encontrado tres patrones /+interrogativos/, los cuales se han descrito a partir del análisis de un corpus y de los resultados de unas pruebas de percepción (Font-Rotchés, 2007, 2008).

Las preguntas fueron extraídas de un corpus que contiene 580 enunciados (Font-Rotchés, 2006) procedentes de 47 horas de grabaciones de TV entre 1996 y 2000 en programas en los que había diálogo (debates, reportajes, tertulias, concursos, magazines). Tenemos un total de 37 interrogativas absolutas producidas por 30 informantes, hombres y mujeres, que tienen entre 20 y 70 años con profesiones diversas.

3.1. El patrón IF ascendente (+80%)

El patrón 3 es el patrón interrogativo por excelencia /+interrogativo –enfático –suspenso/ y se distingue de los otros porque presenta una infl exión fi nal con un ascenso igual o superior al 80%, tal como se puede apreciar en el gráfi co 9.

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GRÁFICO 9: Patrón del catalán IF ascendente (+80%).

Este patrón se caracteriza por presentar un ascenso hasta la primera sílaba tónica o primer pico de un máximo de un 40%, un cuerpo en declinación hasta el núcleo o última sílaba tónica y un ascenso fi nal igual o superior al 80%. Tenemos un total de 26 interrogativas absolutas que responden a los rasgos melódicos de este patrón, de las cuales aportamos unos ejemplos:

a. I la pronúncia, ha anat bé? ‘¿Y la pronunciación fue bien?’b. Vols dir? ‘¿Estás seguro?’c. Portes bambes? ‘¿Llevas bambas?’d. Fa molts anys? ‘¿Hace muchos años?’e. Estàs a dieta, tu? ’¿Estás a dieta, tú?’

GRÁFICO 10: Contorno melódico de ‘Portes bambes? ‘¿Llevas bambas?’ del patrón IF ascendente (+80%) del catalán.

IF ascenso

(+80%)Anacrusis

Cuerpo

Primer Pico Núcleo

PATRÓN DEL CATALÁN IF ASCENDENTE (+80%)

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En el gráfi co 10 podemos ver el contorno de uno de los enunciados-pregunta, que cumple con las características del patrón. El contorno empieza en la primera sílaba tónica o primer pico, Por-, continua en el cuerpo hasta la última sílaba tónica, bam-, y acaba con un ascenso de un 89,1% en –bes.

3.2. El patrón Infl exión fi nal con núcleo elevado (+50%)

El patrón IF con núcleo elevado (+50%) es /+interrogativo +enfátic –suspenso/ porque los informantes interpretaron que las melodías se caracterizaban con estos rasgos. Como se puede ver en el gráfi co 11, se distingue de otro patrón por su infl exión fi nal: el núcleo se encuentra en la cúspide de un ascenso igual o superior a un 50%. Presenta una anacrusis (opcional) ascendente hasta un máximo de un 30% hasta el primer pico, un cuerpo en declinación levemente descendente hasta la sílaba anterior a la última tónica, donde empieza un ascenso igual o superior a un 50%, que culmina en el núcleo. Le sigue un descenso hasta situarse por debajo de la sílaba pretónica.

GRÁFICO 11: Patrón del catalán IF con núcleo elevado (+50%).

Este tipo de patrón no aparece con tanta frecuencia como el anterior (tenemos 8 enunciados-pregunta) porque requiere de un contexto en qué se emita una pregunta enfática. Estas preguntas suelen expresar duda, incredulidad, o, simplemente, son confi rmatorias. Veamos unos ejemplos:

Anacrusis

Cuerpo

1r pico

IF núcleo

elevado

(+50%)

Núcleo

PATRÓN DEL CATALÁN IF CON NÚCLEO ELEVADO (+50%)

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a. El pintor? ‘¿El pintor?’b. D’Andalusia? ‘¿De Andalucía?’c. Que és lícit? ‘¿Es lícito?’d. Vostè creu que és car això? ‘¿Usted cree que es caro eso?’

El siguiente contorno (gráfi co 12) es típico del patrón con una variación poco signifi cativa en el primer pico ya que está desplazado hacia una sílaba tónica posterior, creu. La línea melódica sigue con un descenso en el cuerpo hasta la sílaba, car. En este caso, por el hecho de ser la última palabra del contorno aguda, el punto más alto recae en la sílaba átona anterior. Así, pues, desde este punto, car, se inicia un ascenso del 56% hasta ai- y le sigue un descenso de un 58% hasta –xò.

GRÁFICO 12: Contorno melódico de Vostè creu que és car això? ‘Usted cree que es caro esto?’ del patrón IF con núcleo elevado (+50%) del catalán.

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3.3. El patrón Infl exión fi nal descendente-ascendente (+120%)

El patrón IF descendente-ascendente (+120%) es un patrón /+interrogativo +enfático –suspenso/con una infl exión fi nal circunfl eja con tres valores y dos direcciones, una descendente, que puede ser más o menos pronunciada, y otra ascendente, que tiene que ser igual o superior a un 120% para que el contorno sea interpretado como pregunta (véase en el gráfi co 13). Si el ascenso es inferior, el contorno se percibe como enfático. Además de esta característica en la infl exión fi nal, el patrón se caracteriza por presentar un primer pico desplazado hacia una sílaba posterior a la primera tónica con un ascenso de hasta un 50% y un cuerpo en declinación suave y constante hasta la última sílaba tónica. Una variante de este contorno es la que presenta un ascenso en la sílaba pretónica, antes de iniciar el descenso de la primera parte de la infl exión fi nal.

GRÁFICO 13: Patrón del catalán IF descendente-ascendente (+120%).

Los contornos que responden a este patrón se utilizan poco (tenemos 3 enunciados –pregunta) ya que requieren de contextos más específi cos y por ello necesitamos de un corpus muy amplio para encontrar muestras. Presentamos a continuación dos ejemplos que tienen en común que son preguntas confi rmatorias.

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a. Un petó? ‘¿Un beso?’b. I no li sap greu treure-se’l? ‘¿Y no le sabe mal dejarlo?’

El contorno del gráfi co 14 se caracteriza por una anacrusis con un ascenso de un 27% hasta la sílaba, sap, que es posterior a la primera tónica y continúa con un descenso seguido de un ascenso muy marcado, de un 100% en –u; a partir de aquí, un descenso hasta el núcleo treu- donde empieza la infl exión fi nal constituida por un descenso, de un 26%, en –re, y de un ascenso de un 157,8% en –se’l, último valor del contorno.

GRÁFICO 14: Contorno melódico de I no li sap greu treure-se’l? ‘¿Y no le sabe mal dejarlo?’ del patrón IF descendente-ascendente (+120%) del catalán.

4. Patrones interrogativos del portugués de Brasil

En portugués de Brasil hemos encontrado tres patrones /+interrogativos/ que se obtuvieron del análisis acústico y del resultado de las pruebas perceptivas de unos enunciados de un corpus de portugués de Brasil (Cantero y Font-Rotchés, en prensa).

Basamos la investigación en 40 preguntas extraídas de un corpus de 8 horas de duración. Se trataba de entrevistas y conversaciones en las que participaban 15 informantes, 12 hombres y 3 mujeres, con edades

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comprendidas entre 25 y 65 años, hablantes nativos del estado de Goiás (Brasil) y que trabajaban en el ámbito rural (agrónomos, ingenieros rurales, agricultores y sus esposas e hijas).

4.1. El patrón Infl exión fi nal ascendente (30%~52%)

El patrón melódico IF ascendente (30~52%) representado en el gráfi co 15 que se caracteriza por ser /+interrogativo –enfático –suspenso/ presenta una anacrusis opcional, que comprende las primeras sílabas átonas del enunciado hasta la primera sílaba tónica o primer pico. En esta parte del contorno puede tener lugar un ascenso de hasta un 30% o un 40%. A veces, el enunciado empieza en el primer pico y no presenta esta parte y otras el ascenso puede ser de un 50% o superior, con lo cual estamos ante un énfasis en el primer pico.

El cuerpo, que va del primer pico al núcleo, tiene tendencia a presentar un descenso casi imperceptible o a ser plano, aunque es frecuente encontrar en el cuerpo palabras que presentan un ascenso tonal. Después del núcleo, empieza la infl exión fi nal, que se caracteriza por un ascenso leve de entre un 30% y un 52%.

GRÁFICO 15: Patrón del portugués IF ascendente (30%~52%).

Tenemos un total de 17 interrogativas absolutas que responden a los rasgos melódicos de este patrón, de las cuales aportamos los siguientes ejemplos:

1r pico

IF ascenso

30%~52%

AnacrusisCuerpo

Núcleo

PATRÓN DEL PORTUGUÉS IF ASCENDENTE (30%~52%)

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a. Está lembrado? ‘¿Te acuerdas?’b. Dos anteriores? ‘¿De los anteriores?’c. Mas esses que você dá eles valem cinquenta? ‘Pero esos que tu

das, ¿valen cincuenta?’ d. Você quer levar o negócio das vacas? ‘¿Quieres llevar el negocio de

las vacas?’e. Duzentos e cinquenta esse bezerro? ‘¿Doscientos cincuenta ese

becerro?’

GRÁFICO 16: Contorno melódico de Você quer levar o negocio das vacas? ‘¿Quieres llevar el negocio de las vacas?’ del patrón IF ascendente (30~52%).

En el gráfi co 16, la pregunta Você quer levar o negocio das vacas? ‘¿Usted quiere llevar el negocio de las vacas?’ es un ejemplo que sigue las características de este tipo de preguntas. Presenta un anacrusis con un ascenso total de un 20% hasta el primer pico, le-, que en este caso se ha desplazado a una vocal átona posterior a la primera tónica, un cuerpo levemente descendente con un ascenso de un 8,1% en -go-, y un ascenso fi nal a partir de la última sílaba tónica, va-, de un 48,4%.

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4.2. El patrón Infl exión fi nal ascendente-descendente

El patrón melódico IF ascendente-descendente (v. gráfi co 17) normalmente se caracteriza por un cuerpo plano y no tiene ni anacrusis ni primer pico. En algunos casos, puede presentar una anacrusis opcional con un ascenso leve, que comprende las primeras sílabas átonas del enunciado hasta la primera sílaba tónica o primer pico. A partir del núcleo, empieza la infl exión fi nal, que en este caso tiene tres valores y es circunfl eja, ascendente-descendente: el ascenso que tiene lugar puede ser de un 15% a un 75% y el descenso suele llegar hasta un punto cercano de donde había empezado la infl exión fi nal.

GRÁFICO 17: Patrón del portugués IF ascendente-descendente.

Hemos defi nido este patrón a partir de 11 enunciados-pregunta, algunos de los cuales ejemplifi camos a continuación:

a. Você tem alguma dúvida com relação as suas, seus dados? ‘¿Usted tiene alguna duda con relación a sus, sus datos?’

b. vinte mesmo? ‘¿Veinte mismo?’c. Está vendo os morrinhos? ‘¿Está viendo las colinas?’d. Você tem o anterior? ‘¿Tienes el anterior?’e. Do pé de acerola? ‘¿Del árbol de acerola?

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En el gráfi co18 se encuentra un ejemplo típico con un cuerpo plano, sin anacrusis ni primer pico, y una infl exión fi nal ascendente-descendente, que se inicia en -ro-, asciende un 48,4% en un alargamiento de la misma sílaba y desciende hasta –la, un 29%.

GRÁFICO 18: Contorno melódico de Do pé de acerola? ‘¿Del árbol de acerola?’ del patrón IF ascendente-descendente del portugués.

4.3. El patrón Infl exión fi nal con núcleo elevado (10%~50%)

El patrón melódico IF con núcleo elevado (10%~50%) se caracteriza por una anacrusis opcional, que comprende las primeras sílabas átonas del enunciado hasta la primera sílaba tónica o primer pico (v. en el gráfi co 19). En esta parte del contorno puede tener lugar un ascenso de hasta un 30% o 40%. El cuerpo presenta un descenso suave hasta la sílaba anterior al núcleo, donde empieza un ascenso,

que puede ser de un 10% hasta un 50% aproximadamente, ya que no hemos encontrado hasta el momento ejemplos con un ascenso superior. La línea melódica continúa con un descenso que acaba en el punto más bajo del contorno.

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GRÁFICO 19: Patrón del portugués IF con núcleo elevado (10%~50%).

Tenemos un total de 12 enunciados pregunta que nos han permitido defi nir el patrón. Presentamos a continuación unos ejemplos.

a. Desse você trouxe da última vez? ‘¿Esto has traído la última vez?’b. Você está vendo isso? ‘¿Estás viendo esto?’c. Já pensou se aquilo lá estourar? ‘¿Ya pensaste si aquello explota?’d. Tem visão aqui? ‘¿Se puede ver desde aquí?’e. Mas ele não trabalha nada com o gado? ‘Pero él ¿no trabaja con el

ganado?’

En el gráfi co 20, la melodía empieza en el primer pico o primera sílaba tónica, Tem, continúa en descenso hasta la sílaba pretónica, visao; a partir de este punto empieza el ascenso de un 16,5% hasta la última sílaba tónica, quí, y acaba en un descenso del 20%. Se trata de un caso típico.

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GRÁFICO 20: Contorno melódico de Tem visão aqui? ‘¿Se puede ver desde aquí?’ del patrón IF con núcleo elevado (10%~50%) del portugués.

5. Análisis comparativo de la entonación de las interrogativas absolutas del español, del catalán, y del portugués

Después de haber presentado la descripción de los patrones melódicos de las interrogativas absolutas en tres lenguas románicas, español, catalán y portugués, vamos a comentar a continuación las semejanzas y diferencias formales que mantienen entre ellos.

5.1. El patrón IF ascendente

Las tres lenguas presentan un patrón con una infl exión fi nal ascendente, pero con distintos porcentajes de ascenso, tal como se puede constatar en el gráfi co 21. Estos datos vienen determinados por los resultados obtenidos en las pruebas de percepción. Así, en catalán, los nativos para reconocer un enunciado como pregunta sitúan la infl exión fi nal en un ascenso de un 80% como mínimo (en el gráfi co

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línea negra). En español, hay dos patrones con fi nal ascendente, uno con una infl exión fi nal superior a un 70% (en el gráfi co línea gris oscuro) y otro que se sitúa entre un 40% y un 60%, pero que debe tener un primer pico desplazado. Finalmente, en portugués, el patrón ascendente lo hemos descrito con un ascenso de un 30% a un 52% (en el gráfi co líneas gris claro). Como ya hemos comentado, esta parte del contorno es la más signifi cativa y es la que permite a los hablantes reconocer el tipo de melodía que perciben.

GRÁFICO 21: Esquema del patrón IF ascendente de las tres lenguas.

Referente al cuerpo de estos contornos, en portugués de Brasil presenta una tendencia a ser casi plano (línea gris), mientras que en catalán o en español el cuerpo es descendente (línea negra). El primer pico se encuentra en la primera sílaba tónica en todos, excepto en el patrón ascendente del español con terminación ascendente 40-60%, que está en una átona posterior.

Estas diferencias formales en la infl exión fi nal, tan importantes para captar el signifi cado de lo que se dice, tienen unas consecuencias directas en la enseñanza y aprendizaje de una segunda lengua o de una lengua extranjera. A los brasileños (preguntas con ascenso entre un 30%-52%) les va a costar mucho producir preguntas en español (a partir de un

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70%) y, aún más, en catalán (+80%) que sean interpretadas como tales (un 100% de ascenso equivale a una octava de la escala musical). En realidad, el patrón interrogativo del portugués de Brasil está dentro de los márgenes del patrón suspenso del español (ascenso del 15% al 70%) y del catalán (ascenso del 10% al 80%). Se trata de un caso de ‘falso amigo’. Por consiguiente, si el ascenso que los brasileños hacen para producir una pregunta no es sufi ciente, se puede entender que se trata de un enunciado no acabado y, en el caso de ascensos leves inferiores a un 10%~15%, se puede interpretar como un enunciado declarativo. Estos ascensos insufi cientes de la infl exión fi nal de las preguntas producidas por los brasileños al hablar en español, los cuales pueden causar difi cultades en el comunicación, los han constatado en sus investigaciones Fonseca et alii (2011).

Contrariamente, un español o un catalán hablando en portugués van a producir unas preguntas con unos ascensos tan marcados que pueden ser interpretados como enfáticos y, probablemente, /- interrogativos/.

5.2. El patrón IF ascendente-descendente

El patrón IF ascendente-descendente /+interrogativo/ solo lo hemos encontrado en español y en portugués. Son muy parecidos, no solo por la infl exión fi nal sino también porque ambos presentan un cuerpo plano. Sin embargo, en español existe una variante de este patrón que puede presentar una anacrusis y primer pico y un cuerpo descendente.

El ascenso que tiene lugar en la infl exión fi nal puede ser, con los datos que tenemos hasta hoy, desde un 25% hasta un 55% en español (en el gráfi co 22 líneas negras), y desde un 15% a un 75% en portugués (en el gráfi co 22 líneas grises). Estas cifras máximas de ascenso proceden de los contornos que tenemos, lo cual signifi ca que podrían existir porcentajes de ascenso más elevados. El descenso supera el punto donde empezó la infl exión fi nal.

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En el caso del catalán, este patrón existe y es enfático, aporta un signifi cado de cortesía. Se trata nuevamente de un caso de ‘falso amigo’ Por lo tanto, para un nativo catalán no conocedor de estas lenguas le sería difícil interpretar este tipo de pregunta en español y en portugués, ya que entendería un enunciado /+enfático/ con dosis de cortesía y, evidentemente, también le sería difícil producirlo para un contexto de pregunta.

GRÁFICO 22: Esquema del patrón IF ascendente-descendente en español y en portugués.

5.3. El patrón IF con núcleo elevado

El patrón con núcleo elevado /+interrogativo/ no debe confundirse con el que hemos tratado anteriormente, IF ascendente-descendente, aunque aparentemente puede parecer que sean iguales. La diferencia está en el punto donde se encuentra la última sílaba acentuada. En el anterior, la infl exión fi nal se caracteriza por ser circunfl eja y presentar desde la sílaba acentuada hasta el fi nal dos direcciones, ascenso y descenso, y tres valores, en cambio en este caso son dos valores y una sola dirección, un descenso (v. gráfi co 23).

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De este patrón se encuentran variantes en catalán y en portugués. Existen, pero, diferencias en el punto alto donde se sitúa el núcleo: en catalán, para que el enunciado sea interpretado como pregunta el núcleo debe situarse en un ascenso del 50% como mínimo. Si el núcleo se encuentra en un punto inferior, entre un 10% y un 50%, se trata de un enunciado enfático. Este último patrón /+enfático/ del catalán es el que coincide con el patrón /+interrogativo/ del portugués. Estamos ante un caso de ‘falso amigo’ que puede afectar la intercomprensión entre hablantes de las dos lenguas. Así pues, un portugués que quiera hacer una pregunta en catalán deberá llegar a este 50% como mínimo para no provocar malentendidos y, al contrario, un catalán deberá no situar el núcleo en un punto tan alto.

Finalmente, un español no sabemos hasta qué punto reconocería este tipo de preguntas, ya que existe un patrón parecido, pero es enfático. En todo caso, debería aprender a producir preguntas del portugués o del catalán con este patrón y con el ascenso adecuado para cada lengua y adquirir, así, una buena competencia.

GRÁFICO 23: Esquema del patrón IF con núcleo elevado en catalán y portugués.

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5.4. Otros patrones

Existen dos patrones, el patrón IF descendente-ascendente (120%) del catalán y el patrón de Cuerpo ascendente del español, los cuales parece que no tienen correlatos en las otras dos lenguas comparadas. En el caso del patrón español, cuerpo ascendente, es un tipo de melodía muy utilizada en preguntas absolutas, por lo que se debe tener en cuenta en los procesos de enseñanza-aprendizaje de esta lengua y se debe aprender en los primeros momentos para ir desarrollando la competencia comunicativa. En cambio, el patrón IF descendente-ascendente (120%) del catalán no es muy frecuente, ya que necesita de contextos en que se produzca una pregunta con un énfasis muy marcado.

Conclusiones

El método Melodic Analysis of Speech (MAS) se ha utilizado para el análisis de la entonación de distintas lenguas y de la interlengua, investigaciones que han demostrado su valía y adecuación para este tipo de trabajos. El hecho que se base en el habla real de hablantes nativos y de corpus amplios junto con un análisis acústico y perceptivo exhaustivo que nos ofrece datos exactos en porcentajes de movimiento tonal es lo que favorece su aplicación no solo en la descripción lingüística sino también en el desarrollo de aplicaciones didácticas en el ámbito de la enseñanza de lenguas.

Hemos aportado la descripción de los patrones melódicos de las interrogativas absolutas de tres lenguas románicas, español, catalán y portugués, procedentes de resultados de estudios llevados a cabo en el sí del grupo Entonación y Habla. Y hemos caracterizado cada patrón con unos márgenes de dispersión amplios en cada una de sus partes: anacrusis, primer pico, cuerpo, núcleo e infl exión fi nal, con datos exactos expresados en porcentajes.

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Los datos exactos obtenidos nos han permitido llevar a cabo una comparación formal exhaustiva y constatar qué patrones /+interrogativos/ son idénticos o muy parecidos (IF ascendente-descendente del español y del portugués), cuales son semejantes (el patrón IF ascendente (+70%) del español con el patrón IF ascendente (+80%) del catalán), cuales constituyen falsos amigos (el patrón con núcleo elevado (10%~50%) del portugués coincide con un patrón enfático del catalán; en cambio, el patrón interrogativo del catalán exige un ascenso del núcleo del 50%, que no tiene correlato en portugués), y cuales solo existen en una de las tres lenguas (patrón Cuerpo ascendente del español, patrón IF descendente-ascendente (+120%) del catalán). Finalmente, hemos constatado que aunque la dirección de la infl exión fi nal puede ser en algunos patrones compartida por las tres lenguas, no es una característica melódica sufi ciente para compararlos, ya que hemos visto como el rasgo melódico más signifi cativo es el porcentaje de movimiento tonal: una melodía es interpretada de manera distinta según el porcentaje de ascenso. En este sentido, si solo tuviéramos en cuenta la dirección de la infl exión fi nal, podríamos pensar que hay un patrón ascendente coincidente en las tres lenguas, pero, si tenemos en consideración el porcentaje de ascenso tonal de la infl exión fi nal, constatamos que no hay ningún patrón coincidente.

Estos resultados creemos que son esenciales para los profesores que enseñan una de estas lenguas románicas para un hablante que es nativo de otra. Así, por ejemplo, es útil para enseñar español o catalán a un portugués o enseñar portugués a un nativo de español o de catalán.

Somos conscientes que esta es una primera parte del estudio, de tipo formal, y que el trabajo tiene que continuar con la descripción del uso pragmático de estos enunciados, para así tener una visión completa de los distintos patrones interrogativos de cada lengua y de su signifi cado pragmático.

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A Expressão Variável do Futuro Verbal na Escrita: Brasil e Portugal em Confronto

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 367-383. 1ª parte 2011

A EXPRESSÃO VARIÁVEL DO FUTURO VERBAL NA ESCRITA: BRASIL E PORTUGAL EM CONFRONTO

Josane Moreira de OLIVEIRAUniversidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

RESUMO

Em português, a expressão do futuro verbal é variável e apresenta as variantes: a) futuro simples (viajarei amanhã); b) futuro perifrástico com ir + infi nitivo (vou/irei viajar amanhã); c) presente do indicativo (viajo amanhã). Vários estudos têm atestado esse fenômeno ao longo da história da língua portuguesa e apontam para a implementação da forma perifrástica como possível substituta da forma de futuro simples. Este artigo, seguindo a linha da sociolinguística laboviana, compara dados do português brasileiro e do português lusitano coletados em jornais do século XXI, para verifi car se o fator geográfi co interfere nesse fenômeno.

ABSTRACT

In Portuguese, the future tense is variable and presents these variants: a) simple future (viajarei amanhã); b) periphrastic future with ir + infi nitive (vou/irei viajar amanhã); c) present (viajo amanhã). There are many studies of this phenomenon along the history of the Portuguese that show the implementation of the periphrastic form like a possible substitute of the simple future form. This paper, following the labvian sociolinguistics, compares tokens of Brazilian portuguese and Portugal portuguese from newspapers of the 21th century, to verify if the geographic factor is important in this phenomenon.

PALAVRAS-CHAVE

Futuro Verbal; Sociolinguística; Variação e Mudança.

KEY-WORDS

Future Tense; Sociolinguistics; Variation and Change.

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Introdução

Em língua portuguesa, a expressão do futuro verbal é variável e pode ser realizada das seguintes formas: a) futuro simples (viajarei amanhã); b) futuro perifrástico com ir + infi nitivo (vou viajar amanhã ou irei viajar amanhã); c) futuro perifrástico com haver + infi nitivo (hei de viajar amanhã ou haverei de viajar amanhã); d) presente (viajo amanhã).

Vários estudos têm atestado esse fenômeno variável ao longo da história da língua portuguesa e apontam para a implementação da forma perifrástica com ir + infi nitivo como possível substituta da forma de futuro simples (LIMA, 2001; MALVAR, 2003; OLIVEIRA, 2006).

A forma perifrástica com ir + infi nitivo, embora documentada já no século XIV, parece ganhar espaço no século XIX e só no século XX passa a ser mais utilizada, pelo menos na língua falada, ocupando o espaço antes preenchido pela perífrase com haver de + infi nitivo, principal concorrente do futuro simples até o século XIX (OLIVEIRA, 2006).

Este artigo, comparando dados do português brasileiro e do português lusitano coletados em jornais do século XXI de Portugal e do Brasil, mostra uma análise contrastiva dessas duas variedades para verifi car se o fator geográfi co interfere nesse fenômeno.

Para tanto, seguindo a linha da sociolinguística laboviana, são consideradas as ocorrências de expressão do futuro verbal em dois jornais de Lisboa (O Público e Correio da Manhã) e em dois jornais de Salvador – Bahia (A Tarde e Tribuna da Bahia), periódicos direcionados, em ambas as cidades, respectivamente, a um público mais elitizado e a um público mais popular.

Nesta pesquisa, são controlados fatores linguísticos e extralinguísticos e considera-se a hipótese da gramaticalização, nos moldes propostos por Hopper & Traugott (2003), da forma perifrástica com ir + infi nitivo.

Objetiva-se, assim, verifi car em que estágio se encontra o processo de mudança futuro simples > futuro perifrástico na escrita considerada padrão e que fatores atuam em cada uma das variedades consideradas (Brasil e Portugal).

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1. Quadro teórico

A sociolinguística variacionista pressupõe que a variação é inerente a toda e qualquer língua e não é aleatória ou fortuita. Ao contrário, é condicionada por fatores linguísticos e sociais. Ou seja, tanto a variação como a mudança linguísticas têm ligações estreitas com fenômenos extralinguísticos que as condicionam.

O funcionalismo linguístico analisa a língua enquanto fenômeno comunicativo e discursivo. Sendo a noção de tempo uma categoria linguística e suas relações com o tempo cronológico uma função da comunicação e do discurso, uma abordagem funcionalista pode embasar teoricamente a análise da expressão de futuro no português, que pode ser realizada através de formas simples (futuro simples ou desinencial e presente) ou de formas analíticas/perifrásticas (haver de + infi nitivo e ir + infi nitivo).

O tempo futuro expressa a expectativa de alguma ação (processo ou evento) a ser verifi cada mais tarde, após o ato de fala. Ele tem um valor temporal que não permite expressar uma modalidade factual, pois só aceita asserções segundo a avaliação feita pelo falante da (im)possibilidade de ocorrência de um estado de coisas. Assim, há um valor modal aliado ao fator temporal no futuro que compromete a determinação do valor de verdade da proposição enunciada. Segundo Câmara Jr. (1957:223), a categoria de futuro não ocorre “pela necessidade da expressão temporal; concretizam-no certas necessidades modais, de sorte que o futuro começa como modo muito mais do que como tempo”.

O ciclo de alternância entre formas simples e formas perifrásticas de futuro é uma constante na história das línguas românicas. Já na passagem do latim ao português, o futuro desinencial adveio de formas modais analíticas (cantare habeo > cantar hei > cantarei). Para Câmara Jr., a nova forma de futuro criada ainda no latim desempenha três funções na língua: a) marca o modo; b) marca tempo com matiz modal; e c) marca tempo. O autor fala em gramaticalização do futuro modal em futuro temporal.

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Neste trabalho, admite-se a hipótese de que o processo que aconteceu no latim (forma analítica > forma sintética) está sendo invertido no português atual (forma sintética > forma analítica) a partir da gramaticalização do verbo ir, que passa, já em estágios anteriores da língua, de forma plena a marca morfossintática de futuro.

A perífrase é a forma verbal inovadora, que convive com a forma simples (conservadora). Trata-se, pois, de um fenômeno variável no português em que a variante perifrástica, concorrente da forma sintética para codifi car a função que situa a ação ou o processo à direita do ponto da fala, é muito pouco discriminada. E a entrada do verbo ir como auxiliar para expressar o futuro vem encontrando resposta positiva entre os falantes.

Os verbos de movimento, em geral, são polissêmicos e superpõem, dentre outras, as noções de espaço e de tempo. O verbo ir é um dos verbos mais polissêmicos e, pois, um dos mais ‘gramaticalizáveis’. Na construção perifrástica com o infi nitivo, ele tende a se transformar em auxiliar (HEINE, 1993; BYBEE et alii, 1994; HEINE & KUTEVA, 2002), quer dizer, num instrumento gramatical para a expressão do tempo futuro. Essa tendência, bem conhecida no inglês, no francês e no espanhol, pode ser constatada também em português, em que, na fala, o processo de substituição da forma de futuro simples pela forma perifrástica ir + infi nitivo está quase concluído (OLIVEIRA, 2006).

2. Amostra e metodologia

Por meio da análise controlada de dados coletados em jornais contemporâneos brasileiros e lusitanos, com base na sociolinguística laboviana, verifi ca-se a implementação da perífrase com ir + infi nitivo, identifi cando-se os contextos linguísticos do seu espraiamento. Foram examinados: a) um exemplar do jornal Correio da Manhã (Lisboa), de 09/05/07; b) um exemplar do jornal O Público (Lisboa), de 11/05/07; c) um exemplar do jornal A Tarde (Salvador-BA), de 03/08/07; e d) um exemplar do jornal Tribuna da Bahia (Salvador-BA), de 23/08/07.

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Nesta pesquisa, observa-se o papel de alguns grupos de fatores (medido em termos de percentuais e de pesos relativos – a partir da ferramenta GoldVarb): a) a extensão fonológica do verbo (verbos de uma, duas, três ou mais sílabas); b) a conjugação verbal (primeira, segunda ou terceira); c) o paradigma verbal (verbo regular ou irregular); d) a pessoa verbal (primeira, segunda ou terceira, singular ou plural); e) o tipo de sujeito (lexical, pronominal, desinencial, indeterminado, oracional); f) a animacidade do sujeito (animado ou inanimado); g) o papel temático do sujeito (agente, experienciador ou paciente); h) o tipo de verbo (principal, auxiliar, modal ou aspectual); i) a transitividade verbal (verbo intransitivo, transitivo direto, transitivo indireto, bitransitivo ou copulativo); j) a infl uência dos clíticos (presença ou ausência de clíticos); k) a natureza semântica do verbo (processo, ação, estado, evento ou cognição); l) a indicação de futuridade fora do verbo (advérbio, oração adverbial, contexto discursivo ou ausência); m) a projeção de futuridade (futuro próximo, distante ou indefi nido); n) o paralelismo sintático-discursivo (ocorrência única, primeira ocorrência de uma série, ocorrência após forma idêntica ou ocorrência após forma diferente); o) o tipo de periódico (mais popular ou mais elitizado); e p) o gênero textual (manchete, notícia, anúncio, editorial, horóscopo, aviso, matéria, coluna, carta de leitor etc.).

Foram coletados, inicialmente, 867 dados para o Brasil e 930 dados para Portugal. Em nenhum dos jornais do Brasil foram encontradas perífrases com haver de + infi nitivo. Em Portugal, houve apenas 6 ocorrências de haver de (no presente) + infi nitivo, que foram excluídas da amostra pela sua baixa incidência. Quanto à perífrase com ir (no futuro) + infi nitivo, houve apenas 9 ocorrências no Brasil e 15 em Portugal. Como também teve uma baixa frequência, essa variante foi computada juntamente com as formas de ir (no presente) + infi nitivo. Assim, os resultados encontrados estão apresentados na Tabela 1:

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TABELA 1: Distribuição das variantes na língua escrita por país

Variantes País

Futuro simplesBrasil Portugal

445 - 51% 496 - 54%

Ir + infi nitivo 186 - 22% 271 - 29%

Presente 236 - 27% 157 - 17%

Total 867 924

Para este artigo, em particular, foram excluídas as formas de presente com valor de futuro por duas razões: a) com base em resultados de trabalhos anteriores (OLIVEIRA, 2006), essa variante possui contextos bem específi cos e está à margem da concorrência futuro simples X futuro perifrástico; e b) objetiva-se verifi car, aqui, a implementação da forma perifrástica em substituição à forma de futuro simples na língua escrita, já que na língua falada esse processo já se encontra em fase de compleição (OLIVEIRA, 2006).

Assim, considerando apenas os dados das variantes em concorrência, a distribuição é a seguinte:

TABELA 2: Redistribuição das variantes na língua escrita por país

Variantes País

Futuro simplesBrasil Portugal

445 - 71% 496 - 65%

Ir + infi nitivo 186 - 29% 271 - 35%

Total 631 767

Inicialmente, embora predomine o futuro simples na escrita jornalística, pode-se verifi car que a concorrência entre as duas variantes é documentada em ambas as variedades regionais, havendo um maior acirramento em Portugal, como ilustra o gráfi co a seguir:

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GRÁFICO 1: Variantes por país (percentuais)

3. Papel dos grupos de fatores

Considerando as rodadas do GoldVarb para os dados do Brasil e de Portugal, separadamente, vejam-se os grupos selecionados para cada país, tendo como regra de aplicação a variante futuro perifrástico com ir+ infi nitivo, em oposição ao futuro simples.

Para o Brasil, foram selecionados, nesta ordem, os grupos: ‘Natureza semântica do verbo’, ‘Papel temático do sujeito’, ‘Paradigma verbal’, ‘Pessoa verbal’, ‘Gênero textual’, ‘Indicação de futuridade fora do verbo’, ‘Paralelismo sintático-discursivo’ e ‘Conjugação verbal’. O input geral foi 0,295 e o log likelihood foi -249,057. O nível de signifi cância da rodada selecionada foi 0,046.

Para Portugal, foram selecionados, nesta ordem, os grupos: ‘Natureza semântica do verbo’, ‘Tipo de verbo’, ‘Papel temático do sujeito’, ‘Projeção de futuridade’, ‘Pessoa verbal’, ‘Tipo de periódico’ e ‘Paradigma verbal’. O input geral foi 0,353 e o log likelihood foi -381,809. O nível de signifi cância da rodada selecionada foi 0,029.

Ambos os países selecionaram, em comum, os grupos ‘Natureza semântica do verbo’, ‘Papel temático do sujeito’, ‘Paradigma verbal’ e ‘Pessoa verbal’, embora em ordens diferentes. Assim, apenas esses quatro grupos de fatores serão analisados a seguir.

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3.1. Natureza semântica do verbo

Como o verbo ir, na sua origem (forma fonte), indica processo, pois é um verbo de movimento no espaço, esperava-se que atingisse, na gramaticalização da forma perifrástica ir + infi nitivo para expressar o futuro (movimento no tempo), inicialmente, verbos que também expressam um processo, para em seguida atingir os verbos que denotam um evento, verbos cognitivos e, por fi m, verbos estativos.

Seguem exemplos desses tipos de verbos:

Processo:(1) Agressão teria ocorrido na unidade de segurança máxima

no 1º dia da revolta. Secretaria da Justiça disse que VAI APURAR. (AT, man, c1, p9)

Evento:(2) Existem demasiadas pessoas a achar que a economia é

um jogo de soma nula, e que o sucesso da China VAI SURGIR à custa do resto do mundo. (OP, mat, c3, p15)

Cognição: (3) Conclui que com a redução dos mesmos o povo VAI

SABER a qual partido o parlamentar pertence, a qualidade do seu trabalho e identifi cará o partido que não tem projeto viável... (TB, mat, p15)

Estado:(4) E se as buscas dos cães pisteiros da GNR, visivelmente

cansados, VÃO SER mais raras, o mesmo deverá suceder com o grupo de voluntários. (OP, mat, c1, p4)

Os resultados encontrados aproximam-se da hipótese aventada, mas há divergências entre os dois países considerados. Observe-se a Tabela 3, a seguir:

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TABELA 3: Uso da perífrase e natureza semântica do verbo

Fator Brasil Portugal

ProcessoOc./% PR Oc./% PR

133/241 - 55% .65 165/263 - 62% .57

Cognição 5/7 - 71% .84 1/4 - 25% .31

Evento 23/65 - 35% .61 35/92 - 38% .53

Estado 25/318 - 7% .36 70/408 - 17% .45

Oc. = ocorrênciasPR = Peso relativo

A hipótese de que os verbos de processo favorecem o uso da perífrase se confi rmou nos dados de Portugal. Já no Brasil, o maior peso relativo ocorreu para os verbos cognitivos, fi cando os verbos que indicam processo em segundo lugar, o que indica que o contexto de implementação da forma perifrástica já se espraiou por um contexto além do que condiciona a variante inovadora em Portugal. Mas a quantidade de dados com verbos que expressam cognição ainda é muito pequena para que generalizações possam ser feitas.

3.2. Papel temático do sujeito

Essa variável foi considerada neste estudo por se pressupor que o sujeito [+ agente] favoreceria o uso da perífrase, já que haveria um maior comprometimento do mesmo em relação ao futuro e um maior grau de certeza da realização da ação num tempo posterior ao momento da fala, pois ele é quem realizaria essa ação. Já o sujeito paciente selecionaria o futuro simples, fi cando o sujeito experienciador em posição intermediária, o que se confi rmou nos dados. Os resultados estão apresentados mais adiante, na Tabela 4. Seguem exemplos dos três tipos de sujeito segundo o papel temático:

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Agente:(5) Durante o julgamento, os ministros do STF VÃO

DECIDIR se aceitam ou não a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República contra os acusados de envolvimento no mensalão. (TB, not, p3)

Experienciador:(6) O TIC VAI OUVIR, através de carta precatória, as

testemunhas de defesa indicadas pelo argüido, o advogado Vespasiano Macedo e o gestor daquela fi rma, Hernani Portovedo. (CM, mat, p22)

Paciente:(7) O diploma que VAI SER sujeito a consulta das

instituições, prevê que o ministro possa converter uma instituição em fundação. (CM, mat, p14)

TABELA 4: Uso da perífrase e papel temático do sujeito

Fator Brasil Portugal

AgenteOc./% PR Oc./% PR

129/223 - 57% .67 167/255 - 65% .68

Experienciador 52/260 - 20% .54 73/351 - 20% .40

Paciente 2/124 - 1% .17 25/130 - 19% .42

Oc. = ocorrênciasPR = Peso relativo

Os resultados confi rmam a hipótese inicial, pois o sujeito agente tem .67 no Brasil e .68 em Portugal, favorecendo a perífrase com percentuais de 57% e 65%, respectivamente, nos dois países. O sujeito paciente tem um peso relativo bastante baixo no Brasil (.17). Já o sujeito

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experienciador tem peso baixo em Portugal (.40) e favorece a perífrase no Brasil (.54). Pode-se ver que em terras brasileiras a forma inovadora atinge mais contextos que em terras lusitanas.

O traço de agentividade desempenha um papel fundamental na trajetória do verbo ir de pleno a auxiliar. No processo de gramaticalização do futuro perifrástico, a sua ocorrência com sujeitos [+ agente] pode indicar uma persistência de traços da forma fonte (BYBEE et alii, 1994). O verbo ir, em seu sentido pleno, seleciona um sujeito [+ agente].

3.3. Paradigma verbal

Este grupo de fatores distribui os dados em dois grupos: os que contêm um verbo que segue o paradigma geral (verbos regulares, tais como amar, beber e partir) e os que apresentam um verbo de padrão especial (verbos irregulares, tais como dar, ver e vir), considerando, pois, o critério morfológico.

Supondo que há uma mudança em curso no sentido de o futuro perifrástico substituir o futuro simples, aventou-se a hipótese de que esse processo avançaria primeiro nas formas regulares e depois nas irregulares, que, por serem mais marcadas, seriam estocadas individualmente na mente do falante. Essa hipótese se confi rma nos dados, pois os pesos relativos para a perífrase foram de .59 e .57 no Brasil e em Portugal, respectivamente, em verbos regulares, conforme mostra a Tabela 5.

TABELA 5: Uso da perífrase e paradigma verbal

Fator Brasil Portugal

Verbo regular

Oc./% PR Oc./% PR

147/280 - 52% .59 180/362 - 49% .57

Verbo irregular 39/351 - 11% .43 91/405 - 22% .44

Oc. = ocorrênciasPR = Peso relativo

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Tanto nos dados do Brasil como nos dados de Portugal, a perífrase teve seu maior índice percentual nas formas verbais regulares (52% e 49%, respectivamente).

Embora o uso do futuro simples em verbos irregulares requeira um conhecimento mais controlado de desinências específi cas, o fato de eles admitirem mais futuro simples do que os verbos regulares pode estar relacionado tanto à extensão vocabular, já que a maioria dos verbos irregulares em português possui uma ou duas sílabas, como propõe Câmara Jr. (1985), como à frequência/estocagem, como propõe Bybee (2003). Embora irregulares, são verbos de altíssima frequência na língua, por exemplo, ser, ter, ver, que preservam, por isso, o futuro simples, não acompanhando a tendência à mudança.

Saliente-se que, dentre os verbos irregulares, há o próprio verbo ir, em seu sentido pleno, que, além de muito frequente na língua, ainda é resistente à perífrase (vou ir), tão comum em outras línguas (inglês, francês, espanhol...), em muitos dialetos brasileiros e lusitanos.

Os verbos irregulares confi guram um contexto de resistência da forma simples, sobretudo quando são também monossilábicos e de alta frequência na língua. A forma de futuro perifrástico entra na escrita, pois, pelo contexto mais favorável (verbos de padrão geral). E a ação inibidora de um fator (verbos de padrão especial) se torna muito mais evidente na modalidade escrita formal da língua, que implica um maior planejamento linguístico.

3.4. Pessoa verbal

A hipótese associada ao grupo de fatores ‘Pessoa verbal’ prevê que o futuro perifrástico, indicando uma maior assertividade em relação ao tempo futuro, seria mais utilizado com a primeira pessoa, já que expressa um maior comprometimento do sujeito com a ação verbal a ser realizada. O tipo de texto utilizado como corpus (escrita jornalística) não favorece o uso de ‘eu’ (P1) nem de ‘nós’ (P4), que só aparecem em citações, daí a

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pouca quantidade de dados. Não houve nenhum caso de 2ª pessoa, nem do singular (P2) nem do plural (P5) na amostra dos jornais, nem mesmo em Portugal.

Ainda que com poucos dados, a hipótese aventada se confi rma, pois os pesos relativos para a perífrase foram de .84 e .87 no Brasil e em Portugal, respectivamente, com a 1ª pessoa do singular, e de .82 e .59, também respectivamente no Brasil e em Portugal, para a 1ª pessoa do plural, conforme mostra a Tabela 6, após exemplos de P1 e P4:

P1: (8) O leitor me desculpe, mas não VOU FAZER o histórico

porque precisaria de pesquisar mais a fundo. [TB, mat, p.2]

P4: (9) Já estamos a par da reintegração desde segunda-feira,

VAMOS VER quais as propostas do governo do Estado e da Suzano na reunião de amanhã... [AT, mat, p.12]

TABELA 6: Uso da perífrase e pessoa verbal

Fator Brasil Portugal

1ª pessoaOc./% PR Oc./% PR

6/9 - 66% .84 18/21 - 85% .87

3ª pessoa 132/408 - 32% .50 186/560 - 33% .46

4ª pessoa 21/33 - 63% .82 13/27 - 48% .59

6ª pessoa 27/181 -14% .40 54/159 -33% .58

Oc. = ocorrênciasPR = Peso relativo

Em relação à 3ª pessoa, a que predomina em textos de jornais, percebe-se que, em Lisboa, a 3ª pessoa do plural (P6) já favorece o uso da forma perifrástica.

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Conclusões

A variação na expressão do futuro verbal em português é um fenômeno variável ao longo da história da língua. Atualmente, a concorrência entre a forma de futuro simples e a forma perifrástica com ir + infi nitivo parece bastante acirrada. Observa-se uma inversão parcial entre as duas variantes, pois a primeira predomina na modalidade escrita e a segunda predomina na modalidade oral da língua, inclusive no seu nível “culto” (OLIVEIRA, 2006).

A forma perifrástica com ir + infi nitivo passa por um processo de gramaticalização em que o verbo de movimento ir torna-se verbo auxiliar de futuro verbal, avançando na escala cognitiva de espaço para tempo (BYBEE & PAGLIUCA, 1987; HOPPER & TRAUGOTT, 1993/2003).

Esse processo é atestado tanto no Brasil como em Portugal e o exame de dados da escrita jornalística do século XXI de ambos os países aponta que ambas as variedades seguem direções coincidentes em relação à mudança futuro simples > futuro perifrástico.

Variáveis importantes que atuam nesse processo, entre outras, são a ‘Natureza semântica do verbo’, o ‘Papel temático do sujeito’, o ‘Paradigma verbal’ e a ‘Pessoa verbal’.

Quanto à ‘Natureza semântica do verbo’, a perífrase parece implementar-se inicialmente por contextos de verbos que denotam processo/ação, atingindo em seguida os verbos que denotam evento, fi cando por último contextos com verbos cognitivos e estativos.

Quanto ao ‘Papel temático do sujeito’, o sujeito [+ agente] é o que mais seleciona a forma perifrástica, seguido do sujeito experienciador, fi cando o sujeito paciente mais favorecedor ao uso do futuro simples.

Quanto ao ‘Paradigma verbal’, a perífrase é mais usada com verbos regulares, que seguem o padrão geral, fi cando o futuro simples mais restrito aos verbos irregulares, ou seja, os que têm um padrão morfológico especial. Esses verbos, segundo Bybee (2003), por terem uma frequência alta de uso na língua, resistem a mudanças e, sendo estocados na memória do falante como únicos (especiais), mantêm o futuro simples, pois não seguem padrões gerais.

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Quanto á ‘Pessoa verbal’, em ambos os países, embora com poucas ocorrências, é a primeira pessoa (muito mais a do singular que a do plural) que condiciona o uso da forma inovadora. A terceira pessoa ainda seleciona mais a forma sintética do futuro.

Como se pode perceber, ao analisar um fenômeno variável sob a perspectiva da mudança linguística, muitos fatores devem ser considerados e têm cada qual um papel signifi cativo. Merecem, portanto, ser aprofundados em estudos posteriores.

Por ora, pode-se dizer que Brasil e Portugal falam a mesma língua. Há semelhanças e há diferenças, como todos sabem. Todavia, em relação ao futuro, o Atlântico não nos separa. Pelo contrário, nele NAVEGAREMOS (ou VAMOS NAVEGAR?) pra lá e pra cá para melhor compreendermos a nossa língua.

Referências

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A Expressão Variável do Futuro Verbal na Escrita: Brasil e Portugal em Confronto

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 385-394. 1ª parte 2011

O FUTURO NAS LÍNGUAS ROMÂNICAS

José Luiz da Veiga MERCERUniversidade Tuiuti do Paraná (UTP)

Introdução

A expressão verbal do futuro nas línguas românicas se dá por formas que, em larga medida, remontam aos moldes latinos. O latim clássico tinha duas formas indicativas de futuro, uma imperfeita e outra perfeita, que se traduzem em português pelo futuro do presente e pelo futuro composto, respectivamente. Eram construções sintéticas, apoiadas em sufi xos, que já no latim vulgar seriam substituídas paulatinamente por formas analíticas, constituídas por um verbo principal e um auxiliar.

O futuro imperfeito tinha contra si alguns fatos, a começar pela falta de unidade nas desinências. Enquanto a primeira e a segunda conjugações faziam o futuro com -bi (amabo, amabis; delebo, delebis), a terceira e a quarta utilizavam o sufi xo -e (legam, leges; capiam, capies). Ademais, esta segunda desinência produzia coincidência de forma da primeira pessoa com o presente do subjuntivo (legam). A evolução fonética ampliaria os casos de confusão: amabit com amavit, dices, dicet com dicis, dicit. A coincidência de formas alcançava também o futuro perfeito, que era igual ao perfeito do subjuntivo, salvo na primeira pessoa.

O futuro imperfeito enfrentava ainda a concorrência do presente do indicativo e de perífrases verbais, fato que se explica pelo próprio conteúdo semântico do futuro, que pode comportar a idéia de intenção, plano ou compromisso manifestos no presente. O uso do presente pelo futuro se registra em textos de cunho popular e se amplia nos escritos cristãos. As perífrases eram de dois tipos: o primeiro consistia em associar sum como auxiliar ao principal no particípio futuro (amaturus sum) ou no gerundivo (baptizandi sunt); o segundo era dado pelo principal

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no infi nitivo, acompanhado por habeo, volo/voleo, debeo ou venio. Esta segunda modalidade tinha na origem claro cunho modal: por exemplo, scribere habeo em Cícero se traduz por “tenho que escrever”. Mas já em Santo Agostinho se encontra ocorrência da perífrase em que habeo está esvaziado do sentido de obrigação: “tempestas illa tollere habet totam paleam de area”.

No processo de formação do futuro românico, uma das perífrases se se impôs às demais. Prevaleceu habeo, salvo no romeno e, parcialmente, no dalmático, que optaram por volo, do sardo, em que concorrem habeo e debeo, e da maioria das variedades reto-românicas. No curso da gramaticalização da locução com habeo, o auxiliar perde sua autonomia, soldando-se ao verbo principal. O registro mais antigo da forma aglutinada é datado de 613: “– et ille respondebat: non dabo.– Iustinianus dicebat: daras.”

Vidos entende que a ampla disseminação do novo futuro sintético pelo mundo românico não se deveu apenas à origem latina comum das línguas em que se implantou, mas também à infl uência cultural que sobre elas exerceram o francês e o provençal durante a Idade Média.

O futuro perfeito se perdeu muito cedo, tendo sobrevivido apenas nas margens da România: em português e espanhol, na função de “futuro do subjuntivo”, e no dalmático, em que substituiu o futuro imperfeito, o que não era raro no baixo latim.

O latim não dispunha de forma própria para o “condicional” (futuro do pretérito). Essa função era preenchida pelo mais-que-perfeito do subjuntivo, que em latim vulgar passou a ter a concorrência de uma construção perifrástica paralela à do futuro, constituída do infi nitivo do verbo principal mais habebam. Essa locução também entrou em processo de gramaticalização, produzindo o condicional dos romanços da Ibéria e das Gálias.

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José Luiz da Veiga Mercer

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1. Panorama românico

Os romanços da Península Ibérica desenvolveram duas perífrases com habeo mais infi nitivo, segundo as duas ordens já utilizadas na fase pré-românica: infi nitivo + habeo (cantarei) e habeo + de + infi nitivo (hei de cantar). A primeira impôs-se como variante canônica, tendo para isso contado provavelmente com a preferência dos meios mais cultivados. A segunda, que jamais foi rival de peso, de maneira geral declina desde o Renascimento em português e espanhol, para praticamente extinguir-se, como expressão de futuridade, no século XIX.

A transformação da construção infi nitivo + habeo no futuro sintético não se operou de maneira uniforme em todos os contextos e em todas as variedades. Prova disso é a tmese (mesóclise), que permaneceu em português mas não em castelhano, em que desaparece no século XVII. Mesmo no português medieval, a tmese conviveu com variantes sintéticas consumadas, de que são exemplos formas como “darei-te”.

A partir dos séculos XV e XVI, veio juntar-se nova perífrase de infi nitivo, tendo como auxiliar ir. Em galego, português e leonês, na forma de ir + infi nitivo (vou cantar), em espanhol de ir + a + infi nitivo (voy a cantar). A nova variante - provavelmente uma derivação semântica da construção em que o verbo ir de fato exprime deslocamento no espaço - indica fato que se dá como de ocorrência certa e imediata, porque está na dependência apenas da intenção do falante, eu ou nós. Logo a forma se difunde pelas demais pessoas, ao mesmo tempo em que se reduz o conteúdo modal de certeza, começando a sua gramaticalização. A implementação dessa perífrase avança mais rapidamente na América do que na Europa, em situações antes coloquiais do que formais.

A nova perífrase de futuro não se desenvolveu em catalão, e por um bom motivo. É que aí a construção anar + infi nitivo surge no fi m da Idade Média com valor de pretérito, vindo a constituir o chamado passat perifràstic. Por infl uência do castelhano, usa-se uma que outra vez uma perífrase de futuro com a preposição a de permeio: anar a cantar. Quando se considera a terceira pessoa – va a cantar –, logo se percebe o risco de

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confusão com o passat perifrástic – va cantar, o que acaba rechaçando o castelhanismo em favor do futuro sintético.

Praticamente extinto em espanhol, o futuro do subjuntivo comporta-se em português como simples variante do presente do subjuntivo, sem apontar exatamente para um futuro, mas para um irrealis.

No francês contemporâneo, o futuro pode ser expresso pelo futuro sintético (je chanterai), pela perífrase aller + infi nitivo (je vais chanter) e, como nas demais línguas neolatinas, pelo presente (je chante). O futuro sintético estava estabelecido em francês já no século IX (Serments de Strasbourg) e se supõe que, na altura dos séculos XIII e XIV, já circulassem em alguns meios duas perífrases para o futuro: com o verbo avoir (j’ai à écrire une lettre) e com o verbo aller (je vais écrire une lettre); das duas, apenas a segunda permaneceu como variante efetiva de futuro, tendo se disseminado na fala coloquial no século XV ou XVI. Os primeiros registros escritos datam dos séculos XVI e XVII.

Como acontece em português e espanhol, a perífrase avança sobre o domínio do futuro sintético, que perde terreno e vai se restringindo às situações de formalidade. O que é marcante no caso do francês é o estágio avançado em que está o processo de gramaticalização dessa perífrase, que, segundo Vetters e Lière, já satisfaz cinco critérios de gramaticalização propostos pela literatura: unidade auxiliar-auxiliado; dessemantização; transparência do auxiliado; conjugação restrita do auxiliar; mudança semântica. Esses pesquisadores concordam com Co Vet, que deu a perífrase por integrada no sistema verbal do francês.

Perífrase análoga desenvolveu-se no occitano: vau cantar. Quanto ao futuro, as línguas neolatinas da Península Itálica formam

dois blocos, separados por uma linha que passa por Viterbo, Perúgia e Ancona. Ao norte, ocorrem formas sintéticas que provêm da perífrase infi nitivo mais habeo; ao sul é praticamente inexistente, sendo substituído em largas áreas pelo presente, como no calabrês (lu fazzu crai “eu o faço amanhã”). Sobrevivem na porção meridional construções analíticas do tipo cantare habeo ou habeo ad cantare; a primeira é condicionada a situações

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em que o presente geraria ambiguidade, ao passo que a segunda ainda guarda o sentido de necessidade.

Em italiano, o futuro sintético não sofre concorrência direta. As perífrases que mais se aproximam da esfera da futuridade são stare + per + infi nitivo (sto per scrivere la lettera), que exprime fato a dar-se de imediato, e andare + a + infi nitivo, que, segundo Luisa Amenta e Erling Strudsholm, compõem três construções distintas: a) andare lexical (verbo pleno: vado a dormire); b) andare em perífrase “resolutiva” (andare a capire “chegar a compreender”); c) “sintagma polirremático”, isto é, verbo complexo (andare a fi nire “acabar”). Esses autores, no entanto, registram no italiano regional ocorrências em que a perífrase com andare admite sujeito inanimado ou ausência de deslocamento, estando assim dessemantizado (l’amico va a morire).

Em corso o futuro sintético tem a concorrência de uma perífrase formada por avè + da + infi nitivo (aghju da fà, “vou fazer”).

Como já mencionado, o sardo tem dois futuros, ambos analíticos: um com aere (haver) + a + infi ntivo, e outro com devere + infi nitivo: apo a kantare, depo kantare. O primeiro é a forma canônica, ao passo que o segundo é empregado para indicar dúvida ou incerteza. A estrutura com aere corresponde ao molde habeo ad cantare, que, como já visto, foi igualmente produtivo no sul da Itália e na França, e conserva o sentido deôntico em leonês: han a facer “hão de fazer”.

Para exprimir o futuro, o romeno não dispõe de forma sintética, mas sim de quatro formas analíticas, todas igualmente frequentes: duas com auxiliar seguido de infi nitivo e duas com o subjuntivo. O primeiro tipo é dado pelo auxiliar a vrea (querer) seguido do infi nitivo sem a partícula introdutiva a: por exemplo, voi veni (virei). Nesta construção, própria à norma culta, o auxiliar sofre redução de forma em todas as pessoas, com a exceção da sexta. Embora menos corrente, a posposição do auxiliar é possível: veni-voi. Em qualquer caso, o clítico precede o auxiliar: le vom vizita; vizita-le-vom (nós os visitaremos).

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O segundo tipo com auxiliar é uma variante do anterior, em que a redução fônica do auxiliar se acentua com a perda da consoante inicial em todas as pessoas: oi veni (virei).

A construção com o subjuntivo tem como primeira modalidade a forma o + să + subjuntivo, em que o é uma partícula verbal invariável, să é o marcador do subjuntivo e fi nalmente o verbo no subjuntivo, que carrega a desinência de pessoa. Exemplo: o să vin (virei).

A segunda modalidade consiste na sequência formada pelo presente do auxiliar a avea (haver) + să + subjuntivo. Neste caso, a pessoa é marcada duplamente, pelo auxiliar e pelo verbo principal. Nas construções com subjuntivo, o clítico precede imediatamente o subjuntivo: o să le vizităm (nós os visitaremos).

Assim como em latim, não há condicional em romeno. Os contextos próprios ao condicional são preenchidos pelas formas do futuro.

2. Instabilidade do futuro

É antiga a constatação de que as formas verbais que exprimem o presente e o pretérito são mais estáveis que as que denotam futuro. Essa diferença provavelmente se prenda ao fato de que o semantismo do presente e do pretérito repousa sobre uma factualidade, mas não o do futuro, que remete ao provável ou ao que se toma como certo, mas jamais a fato. Por conseguinte, seu signifi cado tende a espraiar-se, da certeza ao simples desejo, intenção ou compromisso.

No contexto românico, a instabilidade do futuro tem suscitado tentativas de explicação, como a de alguns estudiosos que, centrando-se no plano da forma, formulam a hipótese de uma alternância cíclica entre construções sintéticas e construções analíticas. De fato, já o futuro latino em –bo, da primeira e da segunda conjugação, teria sido o estágio último do processo de gramaticalização de uma perífrase, em que o verbo auxiliar se reduziu ao morfema –bi. É evidente que uma argumentação com base apenas na forma não pode prosperar. A

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substituição de uma forma analítica por forma sintética por efeito de acomodações morfofonológicas pode ser explicada passavelmente com base em considerações meramente formais. No entanto, o mesmo não se dá quando se passa da sintética à analítica. Uma construção sintética, por si, não induz a criação de construções analíticas alternativas. Fosse assim, um paradigma sintético como o pretérito imperfeito deveria estaria na origem de variantes analíticas, o que não se verifi ca nas línguas românicas.

A explicação deve buscar-se na esfera semântica. Aqui se vislumbram ao menos duas alternativas: ou bem são as formas futuras originais que se modalizam e abrem espaço para uma construção alternativa, ou bem é uma construção que perde seu conteúdo originalmente modal e passa a fazer concorrência à construção vigente.

Para Bybee, Pagliuca e Perkins, os tempos verbais futuros seguem todos a mesma evolução. De início exprimem obrigação, vontade ou movimento em direção a um ponto; na sequência todos se tornam intencionais e depois preditivos, antes de evoluírem para a expressão do futuro propriamente dito. Neste ponto, passam a comportar igualmente dois empregos modais: o imperativo (não matarás) e o conjetural (quem será?).

Suzanne Fleischman propõe que a evolução das formas futuras é regulada pelo equilíbrio entre a temporalidade, a modalidade e, de forma secundária, a aspectualidade. Se uma forma verbal futura se tornar mais modal que temporal, será necessário providenciar nova forma própria a exprimir a temporalidade. Como não se exclui que a nova forma por sua vez também venha a ganhar empregos modais, estaríamos diante da hipótese de outra alternância cíclica, entre temporalidade e modalidade.

Gerard Barcelò entende que essa tese tem dois argumentos a seu favor: primeiro, fornece um princípio explicativo coerente; segundo, há casos concretos que poderiam sustentá-la, como é o caso de espanhol, em que o futuro simples é bastante modalizado. No entanto, acaba afastando a proposta de ciclo em vista de contra-exemplos, como a passagem do

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futuro sintético latino ao futuro perifrástico românico ou a divergência das línguas neolatinas quanto à expressão e os valores do futuro. Sugere que se coloque em primeiro plano o que Fleischamann tomou como secundário: a aspectualidade, na forma de pertinência ao presente. Ou seja, são as formas retrospectivas com relação ao presente que podem tornar-se novos tempos pretéritos; são as formas prospectivas que acabam convertendo-se em novos tempos futuros.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 395-429. 1ª parte 2011

A REPRESENTAÇÃO DO TEMPO FUTURO EM TEXTOS ESCRITOS: UMA ANÁLISE DIACRÔNICA

Rita do Carmo Polli da SILVAFaculdade Internacional de Curitiba (FACINTER)

RESUMO

Neste estudo apresento um estudo da variação do tempo futuro em texto escritos em português, do ponto de vista diacrônico. Foram feitas duas análises: uma em tempo real, abrangendo um período de dois séculos, e a outra em tempo real de curta duração, que abrange um período menor, 50 anos de texto escrito. Foram analisadas quatro variantes da representação do tempo futuro: futuro sintético (apresentarei amanhã); o presente do indicativo (apresento amanhã); a perífrase ir + infi nitivo (vou apresentar amanhã) e a perífrase haver + de + infi nitivo (hei de apresentar amanhã). Tomando como base teórica a sociolinguística quantitativa laboviana e princípios do paradigma da gramaticalização.

ABSTRACT

The object of study of this thesis is the change in the future tense in text written in English, of diachronic perspective. Were made two analyses: a real-time, covering a period of two centuries, and other real-time short-lived, that covers a period less than 50 years of written text. Were analyzed four variants of the representation of the future tense: future synthetic (apresentarei amanhã); the present tense (apresento amanhã); the periphrasis with ‘to go’ in the present (vou apresentar amanhã) and the periphrasis with haver ‘to have’ in the future (hei de apresentar amanhã). On the basis of the quantitative Sociolinguistics laboviana theoretical and principles of Grammaticalization paradigm.

PALAVRAS-CHAVE

Representação do tempo futuro, Futuro perifrástico, Futuro sintético. Representação do tempo futuro em romances brasileiros. Representação do tempo futuro nas revistas em quadrinhos, Variação linguística.

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KEY-WORDS

Linguistic variation. Representation of the future tense, Future (synthetic), Future (periphrastics), Representation of the future tense in comics. Representation of the future tense in Brazilian novels.

Introdução

O trabalho aqui apresentado traz alguns resultados de minha tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Paraná, em agosto de 2010 e tem como base os postulados da Sociolinguística Variacionista. Buscarei a descrição de algumas representações de contextos de futuridade bem como sua produtividade em dois corpus, ambos de língua escrita: a revista em quadrinhos Pato Donald, editada no Brasil a partir de 1950, e romances brasileiros escritos a partir do século XVIII.

O escopo central desta pesquisa é descrever diacronicamente o fenômeno de variação que envolve a representação do tempo vindouro, ou seja, descrever como e com que frequência haver + de + infi nitivo, futuro sintético, presente do indicativo e ir + infi nitivo representam o tempo futuro em um recorte de língua escrita. A hipótese que norteia este objetivo central é que a representação do tempo futuro, de um modo geral, está sendo feita, em textos mais recentes, pela perífrase verbal ir + infi nitivo, independente de a referência temporal estar localizada em um tempo próximo ou distante, ou seja, há uma mudança em curso.

1. Teoria da mudança linguística

Weinrech, Labov e Herzog (2006)1 apontam alguns princípios de grande importância para a teoria da mudança linguística. Segundo eles

1 Em 2006, Marcos Bagno traduziu e publicou este texto em português, com revisão técnica de Carlos Alberto Faraco e posfácio de Maria C. A. de Paiva e Maria E. L. Duarte, intitulado Funda-mentos empíricos para uma teoria da mudança linguística.

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uma teoria que se preste a esclarecer os fenômenos das mudanças ocorridas nas línguas deve, a princípio, oferecer respostas para a questão dos fatores condicionantes, da transição, do encaixamento, da avaliação e da implementação.

Os fatores condicionantes, linguísticos e extralinguísticos, informam quais as condições favoráveis, aquelas que propiciam as mudanças. São apontados através de pesquisas, a partir de hipóteses levantadas pelos pesquisadores interessados no estudo de cada fenômeno.

O problema da transição, ou de transferência, pode ser observado entre grupos de faixas etárias diferentes. Segundo Weinrech, Labov e Herzog (2006: 122) entre quaisquer dois estágios observados de uma mudança em progresso, normalmente se tentaria descobrir o estágio interveniente que defi ne a trilha pela qual a estrutura A evolui para a estrutura B. Um exemplo deste caso é o fato de as pesquisas variacionistas desenvolvidas até agora indicarem que as crianças não falam o dialeto dos seus pais e sim o dos grupos de indivíduos um pouco mais velhos. O que pôde ser observado neste trabalho, nos dois corpus, quando as tendências de uso de ir + infi nitivo, na representação do tempo futuro, se dá com maiores pesos relativos nas crianças.

A questão do encaixamento orienta no sentido de que as mudanças devem se entrelaçar com outras que ocorrem, tanto na estrutura linguística, quanto na sociedade. Um dos objetos deste estudo, ir + infi nitivo, apresenta etapas deste encaixamento, o que será exposto adiante. Existe também a questão do encaixamento na estrutura social, dependente de como os fatores sociais pesarão sobre o sistema de modo geral, o que fará com que a variação seja ou não estigmatizada parcial ou totalmente.

No caso de ir + infi nitivo há certa resistência social, pois o encaixamento na estrutura linguística pode levar a um problema de avaliação, que depende do conhecimento de língua e, segundo Weinrech, Labov e Herzog, o nível de consciência social é uma prioridade importante da mudança linguística. A avaliação leiga pode estigmatizar uma variante.

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O que pôde ser observado nas representações do tempo futuro, mais especifi camente no uso do ir + infi nitivo, quando o verbo auxiliar é o mesmo que o principal. Muitos professores de português corrigem seus alunos, geralmente as crianças e os da faixa etária da pré-adolescência, quando os ouvem dizer “Eu vou ir ...” A alegação é que seria “errado” utilizar duas vezes o mesmo verbo. Só que estes mesmos professores não percebem que em outras situações eles, e muitas outras pessoas, utilizam duas vezes o mesmo verbo, inclusive o verbo ir, como, por exemplo, quando constroem estruturas com tenho tido ou vou indo. A questão da avaliação trata dos efeitos da mudança sobre o uso da língua e alguns resultados desse processo podem encontrar certa resistência por um determinado período de tempo.

A última questão que uma teoria da mudança linguística deve responder é o problema da implementação, responsável por investigar o que, da sociedade, interferiu na mudança. Razões para a mudança ocorrem em certas línguas e em certas épocas e, a partir do momento que a mudança está encaixada na estrutura linguística, ela vai, inevitavelmente, passar pelo processo da avaliação que, muitas vezes, detecta variações negativas, ou seja, estigmatizadas. Estes estigmas acabam por “atrapalhar” o processo de mudança, adiando a implementação e o farão até que esta variante estigmatizada perca toda signifi cação social negativa que possuía. Somente assim a mudança se implementa na língua.

No caso específi co de ir + infi nitivo o estigma, como já explicitado, se encontra quando o verbo ir é o verbo auxiliar e também o principal (vou ir). Algumas variações se estendem por longos períodos, por gerações, até que se implementem de fato. Porém, muitas sequer chegam a este ponto, já que toda mudança linguística origina-se de uma variação, mas nem toda variação chega à mudança. A variação existente só passa a mudança quando uma variante suplanta totalmente a outra (ou outras) em todos, absolutamente todos os usos.

A partir das pesquisas Sociolinguísticas já feitas pode-se observar, entre outras, que uma possível mudança linguística:

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1. começa quando um fenômeno passa a se apresentar com pelo menos uma variante e essa variante apresentar características de diferenciação ordenada, ou seja, apresenta uma determinada ordenação, não é livre;

2. ocorre na gramática da comunidade de fala;3. é transmitida de modo geral na comunidade;4. tem sua explicação intimamente ligada a fatores linguísticos e

sociais, ou extralinguísticos.

2. Gramaticalização

Hopper & Traugott (1993) defi nem o processo de gramaticalização como as alterações ocorridas sobre um item lexical (itens autônomos – uma palavra da língua, por exemplo, um substantivo, um adjetivo, um verbo...) transformando-o em um item gramatical (itens presos – elementos que ligam palavras: conjunções, preposições, artigos, alguns pronomes, afi xos) no decorrer do processo, ou seja, quando uma palavra muda de categoria, na língua, este mudar recebe o nome de gramaticalização, e é ocorrência comum a todas as línguas.

Esse processo pode chegar a ponto de transformar uma palavra da língua em afi xo, como é o caso, por exemplo, do futuro sintético em português. Sua trajetória, desde o latim, nos mostra a passagem de item lexical para gramatical, depois de item lexical para clítico e de clítico para afi xo. No latim a expressão de futuro era representada por uma expressão analítica, ou seja, possuía mais de uma forma, amare habeo, que passou para amare hei, o que nos possibilita ver o estágio de uma gramaticalização que chega a afi xo, pois, de amare hei, temos, hoje, amarei. O processo de gramaticalização fez com que a palavra (habeo) perdesse sua identidade a tal ponto que o verbo auxiliar virou afi xo (-ei), perdendo a classifi cação de palavra.

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Essa mudança, segundo Hopper (1991) e Hopper e Traugott (1993/2003), acontece seguindo cinco estágios que eles dividem em:

2.1. Estratifi cação

Nessa fase a forma nova, ou as formas novas, convivem com a forma antiga, com função similar, o que signifi ca dizer que, no domínio funcional, neste caso a representação do tempo futuro, novas camadas surgem continuamente. Na análise aqui proposta as formas distintas de representação do tempo futuro ocorrem desde a primeira obra analisada. No corpus 1, constituído das revistas em quadrinhos Pato Donald temos o caso específi co de haver + de + infi nitivo que apresenta somente quatro ocorrências em um universo de 4.086 dados. Isso que mostra que essa forma de representação do tempo futuro está caindo em desuso em favorecimento de outras na mesma função. Quanto ao corpus 2 , os romances brasileiros, destaco que ir + infi nitivo aparece pela primeira vez no romance de 1844: A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, ou seja, não incide nos textos de As Aventuras de Diófones – imitando o Sapientíssimo Fenelon na sua Viagem de Telêmaco, de Dorothea Engrassia e O Filho do Pescador, de Teixeira e Sousa, de 1752 e 1843, respectivamente.

2.2. Divergência

A forma que se gramaticaliza não deixa de existir também na signifi cação original. Isso acontece com a representação do tempo futuro ir + infi nitivo, por exemplo, pois ir está se gramaticalizando de verbo pleno para auxiliar em contextos de futuridade sem deixar de se apresentar como pleno posição em que ainda prevalece a noção de deslocamento espacial enquanto também se apresenta como auxiliar.

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2.3. Especialização

No domínio funcional as formas coexistem com diferenças tênues entre si. A partir do processo de gramaticalização as variantes vão se especializando, cada uma de uma forma, e assumem pequenas diferenças, distinguindo-se das demais. Dessa forma, à medida que uma forma vai se especializando passa a tornar-se obrigatória naquela função.

2.4. Persistência

A forma gramaticalizada mantém vestígios da forma original, de modo que esses acabam por estabelecer, muitas vezes, contextos de resistência no sentido de que o processo de gramaticalização se fi nalize. A forma em que o verbo ir é auxiliar dele mesmo é um exemplo desse contexto de resistência, pois, nos corpus da análise, não houve nenhuma ocorrência dessa construção.

2.5. Descategorização

A forma que sofre a gramaticalização acaba por perder as características da classe a que pertencia e adquire as novas, como é o caso do verbo ir, que, na representação do tempo futuro, perde as características de verbo pleno e assume as de auxiliar.

Ligado ao processo de gramaticalização está o princípio da unidirecionalidade. Esse princípio pressupõe que o processo se dá, sempre, do item menos gramatical para o mais gramatical, ou seja, esse princípio prevê que a mudança envolve sempre uma passagem de um estado anterior (A) para um posterior (B).

Reanálise e analogia são os dois mecanismos do processo de gramaticalização que possibilitam entender a unidirecionalidade. A primeira altera as relações entre os constituintes sem que isso seja percebível, enquanto a segunda proporciona a existência de novas formas através de similaridades com outras já existentes. Para Hopper e

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Traugott (1993, 2003) e Bybee et al. (1994) esses dois mecanismos atuam igualmente no processo de gramaticalização dos verbos de movimento. Partindo desses princípios, pode-se assumir que a perífrase ir + infi nitivo, uma das formas de representação do tempo futuro, está passando pelo processo de reanálise, pois o verbo ir, para representar futuridade passa da condição de pleno para a de auxiliar.

3. Aspecto e modalidade

Como as categorias de aspecto e modalidade são importantes quando se trata de estudo da representação do tempo futuro, destaco Fleischman (1982) e Coroa (1985), que discutem questões de aspecto, modo e modalidade. Segundo as autoras, modo é uma categoria morfológica do verbo e tem paradigmas verbais: indicativo (que indica certeza), subjuntivo (indicativo de possibilidades, dúvidas) e imperativo (para indicar ordens), no entanto, a noção de modalidade linguística vai além, podendo ser abordada de vários pontos de vista (sintático, semântico e pragmático). A modalidade aponta para a atitude do falante em relação ao conteúdo de seu enunciado, revelando a sua disposição mental.

Coroa (1985) apresenta o futuro como um pensamento que vai do possível para a certeza. O falante avalia o evento, durante a enunciação, pautando-se na necessidade, probabilidade, possibilidade ou impossibilidade da ocorrência da ação. Mesmo que haja uma certeza (subjetiva) da ocorrência do evento, sua realização se dá somente depois de cumprido o tempo de referência. Como este “vir a ser” escapa à certeza, fi cando ligado ao possível, a autora associa tempo futuro com a modalidade.

Outros pesquisadores também veem uma relação estreita entre modalidade e tempo futuro. Na concepção de Câmara Jr. (1985: 55), a representação do tempo futuro está mais associada ao desejo, à dúvida, à imposição da vontade, o que a levaria a funcionar na categoria de modo, não de tempo. Da mesma forma Mateus et al. (1989) dedicam uma seção

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inteira para provar que os enunciados de futuro apresentam valores modais.

Por sua vez, Koch (1986) observa que a modalização do discurso pode ser realizada por meio de diversos tipos de lexicalização: auxiliares modais (poder, dever, querer), advérbios de modalidade (provavelmente, talvez, possivelmente), predicados cristalizados formados por adjetivos em posição predicativa (é certo, é possível...), orações ou proposições modalizadoras (eu acredito que, eu sei que, tenho a impressão que...) e ainda certos modos e tempos verbais, entre eles o futuro (presente e pretérito).

A partir disso tem-se que modalidade é uma propriedade linguística que indica a intenção ou as atitudes do locutor em relação ao que está dizendo. Desta maneira, a modalidade passa também a ter inclinação para propiciar contextos de futuridade, daí Koch inserir o futuro sintético como um modalizador do discurso, já que ele é apenas uma intenção, um vir a ser, uma incerteza e tudo que possa ser colocado ‘no futuro’ não passa disso: uma intenção. Essa intenção pode ter muitas ou pequenas chances de ser concretizada, mas é uma intenção.

Algumas ocorrências desta pesquisa possibilitam perceber que contextos de futuridade mais agentes modalizadores funcionam como uma probabilidade dentro da outra, como em:

(1) E provavelmente eu terei um aumento, não? (Pato Donald, n° 592, 1960, pág. 30, Donald para Tio Patinhas.)

Nesse dado tem-se o advérbio de modalidade apontado por Koch, provavelmente, mais o tempo futuro do presente, apontado pela mesma autora como modalizador e ainda o advérbio não, que aí não está negando, mas agindo como um confi rmador da probabilidade que é a questão de ele ter o aumento.

Mesmo quando o falante introduz certa carga de certeza, dentro de um contexto de futuridade, é sempre possibilidade, um desejo, uma modalidade:

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(2) Eu sei que as encontrarei em alguma parte! (Pato Donald, n° 2013, 1990, pág. 07, Donald para sobrinhos.)

Apesar de a proposição modalizadora indicar uma atitude de certeza sobre um fato, ela não passa de uma possibilidade, um desejo, pois está inserida em um contexto de futuro.

Modo e modalidade são, portanto, diferentes, apesar de muitos confundirem as duas nomenclaturas, utilizando uma pela outra. Enquanto modo faz parte de um paradigma comum e está associado ao sistema fl exional do verbo, a modalidade, entre outras funções, liga-se ao próprio modo verbal. Segundo Lyons (1977) modo é uma categoria gramatical, encontrada em algumas línguas e não pode ser incorporada à modalidade. Já para Palmer (1986) modalidade é semântico e modo, gramatical, enquanto para Bybee et al.(1994) modalidade é um domínio conceptual e modo, uma expressão fl exional.

As gramáticas tradicionais apresentam dois modos para o tempo verbal futuro: indicativo (indicador de certeza) e subjuntivo (indicador de possibilidade). Mas, sendo o futuro por si só uma possibilidade, como ele pode ter modo indicativo? Partindo desse princípio muitos autores não consideram o futuro um tempo verbal e sim um modo. Entre eles, como citado acima, Mattoso Câmara (1985), Fleischman (1982) que associa a categoria temporal do futuro ao irrealis, ou seja, a algo relacionado às possibilidades de realização, o mesmo que defende Givón (1984 e 1993), da mesma maneira Mateus et al.(1983) e Comrie (1985) relacionam futuro a modo, não a tempo. Bybee et al.(1994) e Poplack & Turpin (1999) também fazem parte desse grupo quando evidenciam que o futuro está associado a modo por expressar, não atitudes, mas intenções dos falantes.

Essa intenção pode ser observada em dados dos corpus aqui analisados. Parte-se do pressuposto de ser o futuro sintético a representação do tempo futuro a denotar maior comprometimento com o fato vindouro, inserindo, muitas vezes, nuances de promessa de conclusão, já

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que o modo indicativo é aquele que indica certeza. Os exemplos abaixo, retirados dos dois corpora, os únicos com essas condições, apresentam a expressão tenho certeza + futuro sintético no indicativo, que é o que expressa certeza, segundo a gramática tradicional.

(3) Tenho certeza de que esse fazendeiro será gentil e me ajudará quando souber que estou em difi culdades! (Pato Donald, n° 622, 1960, pág. 15, Donald para Huguinho, Zezinho e Luizinho.)

(4) Se eu pegar no pé dele tenho certeza de que se tornará um novo pato! (Pato Donald, n° 2205, 2000, pág. 16, Margarida para Huguinho, Zezinho e Luizinho.)

(5) Que pena, tenho certeza que nada poderá ser mais divertido essa noite. (Carta par alguém bem perto, Fernanda Yung, 1990, pág. 97, amigo para amiga.)

(6) E vocês mudarão de idéia, tenho certeza. (O sertão vai virar mar, Moacir Scliar, 1960, pág. 81, uma senhora para pessoas estranhas.)

O fato futuro de cada uma das situações acima foi diferente do grau de certeza do emissor do discurso no momento da fala. No exemplo (03) o fazendeiro nem os deixou falar. Em (04) o personagem não mudou de comportamento, no (05) a personagem não saiu de casa e no (06) eles não mudaram de ideia. Apesar de a gramática tradicional trazer o futuro como tempo e apresentar o futuro sintético no indicativo como a representação de que o fato será realizado, isso não é verdade, o que reforça a tese de que o futuro é mais modo do que tempo verbal, pois não consegue representar um tempo e sim uma intenção, como se pode observar a partir das ocorrências acima.

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Segundo Coroa (2205) o aspecto se confunde com vários outros conceitos e, muitas vezes, é utilizado para todo morfema verbal que não se enquadre em uma descrição temporal (op. cit. p. 61). A autora menciona ainda haver confusão entre noções de aspecto e tempo, por outro lado Travaglia (1994: 157) parte do princípio de que o tempo futuro não indica aspecto por marcar uma situação virtual, o que enfraquece as noções aspectuais ou as anula e ainda por este tempo ter um valor modal, restringindo a expressão do aspecto. Na pesquisa em questão os números de verbos aspectuais e modais na representação do tempo futuro foram insignifi cantes. Em outras palavras, exceto a perífrase ir + infi nitivo, as demais tiveram pouca representatividade e, por hora, foram retiradas da análise, mesmo tendo como grupo de fatores o uso dos advérbios e locuções adverbiais, o que, segundo o autor, são recursos de expressão que oferecem noção aspectual.

4. A constituição dos corpus

Os resultados deste trabalho foram obtidos a partir de dois corpus. O primeiro, constituído por revistas em quadrinhos Pato Donald, em número de 127, editadas de 1950 a 2004, conforme Quadro 1, abaixo:

QUADRO 1: Número de revistas Pato Donald, por ano de publicação.

Ano de publicação Periodicidade N.º de exemplares

Década de 50 Mensal 211963 Semanal 231973 Quinzenal 211983 Quinzenal 201993 Quinzenal 222003/04 Quinzenal 20

Total consultado -------------- 127

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O segundo, corpus 2, construído a partir de 46 romances brasileiros, de 1752 a

2000, apresentados no Quadro 2:

QUADRO 2: Relação das 46 obras da literatura nacional que constituem o corpus 2.

AutorNascimento /Década

representadaTítulo das Obras

Ano da 1ª

publicação

1. Dorothea Engrassia

Tavareda Dalmira 1711 / 1730

As aventuras de

Diófones – imitando a

Sapientíssimo Fenelon na

sua Viagem de Telêmaco

1752

2. Teixeira e Sousa 1812 / 1830 O Filho do Pescador 1843

3. Joaquim Manuel de

Macedo1820 / 1840

A Moreninha

A Baronesa do Amor

1844

1879

4. José de Alencar 1829 / 1850O Guarani

6. Senhora

1857

1875

5. Machado de Assis 1839 / 1860Ressurreição

Memorial de Aires

1872

1908

6. Inglês de Sousa 1851 / 1870O Cacaulista

O Missionário

1876

1891

7. Aluísio de Azevedo 1857 / 1880Uma Lágrima de Mulher

O Livro de uma Sogra

1880

1895

8. Adolfo Ferreira

Caminha1867 / 1890

A Normalista

Tentação

1893

1896

9. Lima Barreto 1881 / 1900

Recordações do Escrivão Isaias

Caminha

Clara dos Anjos

1909

1948

10. Oswald de Andrade 1890 / 1910

Memórias Sentimentais de

João Miramar

A Revolução Melancólica

1924

1943

11. Orígenes Lessa 1897 / 1920O Feijão e o Sonho

O Edifício Fantasma

1938

1984

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Continuação do quadro 2

12. Érico Veríssimo 1905 / 1930Clarissa

Incidente em Antares

1933

1971

13. Raquel de Queiroz 1910 / 1930O Quinze

Memorial de Maria Moura

1930

1992

14. Fernando Sabino 1923 / 1940O Encontro Marcado

Os Movimentos Simulados

1956

2004

15. Ligia Fagundes

Telles1923 / 1940

Ciranda de Pedra

As Horas Nuas

1955

1989

16. Carlos Heitor Cony 1926 / 1950O Ventre

A Tarde da sua Ausência

1953

2003

17. Hilda Hilst 1930 / 1950Fluxo-fl oema

Estar sendo Ter sido

1970

1997

18. Moacir Scliar 1937 / 1960O Exército de um homem só

O sertão vai virar mar

1973

2002

19. Ana Maria Machado 1941 / 1960Alice e Ulisses

Palavra de honra

1983

2005

20. Domingos Pellegrini 1949 / 1970Terra Vermelha

Meninos no Poder

1998

2005

21. Ana Miranda 1952 / 1970Boca do Inferno

Dias e Dias

1989

2002

22. Marcos Bagno 1961 / 1980A vingança do cobra

O espelho dos nomes

1997

2002

23. Márcia Kupstas 1957 / 1980

Crescer é perigoso

Gurka, retrato de um

jovem assassino

1986

2002

24. Michel Laub 1973 / 1990 Música anterior 2001

25. Fernanda Young 1970 / 1990Carta para alguém bem

perto1998

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Iniciou-se a lista com As Aventuras de Diófones – imitando a Sapientíssimo Fenelon na sua Viagem a Telêmaco, publicado em 1752 e O Filho do Pescador, de Teixeira e Sousa, publicado em 1843. A partir daí pegou-se um autor e duas de suas obras, por década. Esses foram relacionados partindo do pressuposto de Labov (1964), que afi rma o indivíduo forma seu idioleto até os 25 anos, ou seja, é com esta idade que ele já se assenhorou completamente de sua língua materna. Desta forma, um indivíduo nascido em 1900, por exemplo, será linguisticamente adulto em torno de 1925, portanto, na década de 1920. A partir daí buscaram-se escritores não pelo reconhecimento que obtiveram no cenário nacional e / ou mundial, mas pelo ano de nascimento, o que difi cultou sobremaneira a busca, pois ora não dava certo o gênero, ora a data de nascimento. Alguns escritores consagrados de nossa literatura não se encontram na relação por conta disto. Cecília Meireles ou Carlos Drummond de Andrade são exemplos. Muitos autores e obras foram pesquisados e deixados de lado por não apresentarem nenhum dado de futuro. Consequentemente, os que compõem esta lista não correspondem ao gosto pessoal da pesquisadora; eles representam um grupo heterogêneo a partir do qual se fará uma pesquisa variacionista diacrônica.

Exceto a primeira obra da lista, que foi escrita por uma mulher, a literatura brasileira vai levar quase um século, a partir de A Moreninha, para ter seu primeiro romance escrito por uma pessoa do sexo feminino. Foi Raquel de Queiroz, em 1930, com a publicação de O Quinze, que inaugurou a profi ssão de escritora no Brasil. Sendo assim, o corpus 2 apresenta romancistas (sexo masculino) representantes de cada década, até 1930; a partir daí, o corpus passa a apresentar dois autores por período, um de cada sexo, objetivando fazer um estudo à parte para ver se há diferenças em suas produções a partir da variável extralinguística sexo.

Excetuando os dois primeiros, que não escreveram outros romances além dos que aqui se apresentam e os dois últimos listados no corpus 2, cuja totalidade de obras é bastante recente, os demais serão analisados em um estudo de variação no indivíduo, ou seja, será feito também

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um estudo destes autores para verifi car se houve mudança individual no que se refere à representação do tempo futuro, analisando uma de suas primeiras obras, quando não a primeira, e uma das últimas, ou a derradeira, o que totaliza as 46 do quadro 2, acima.

5. O objeto da análise

A variável dependente desta tese divide-se em:01. futuro sintético;

(7) Morrerá um dia, entupido nela. (O Ventre, Carlos Heitor Cony, 1953, pág. 92, feminino adulto para masculino adulto.)

02. presente do indicativo;

(8) Trago por estes dias, tenho me esquecido. (Clara dos Anjos, Lima Barreto,1948, pág. 29, masculino adulto para feminino adulto.)

03. ir + in% nitivo:

(9) Já sei o que vamos fazer! (O Edifício Fantasma, 1984, Orígenes Lessa, pág. 67, marido para esposa.)

04. haver (presente) + de + in% nitivo

(10) Decerto; como hei de combatê-lo? (O Guarani, José de Alencar, 1857, pág. 58, adultos masculinos entre si.

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6. Os resultados das análises das histórias em quadrinhos

Nesta análise em tempo real de curta duração foram considerados 3.754 e o que se percebeu é que haver + de + infi nitivo não é mais produtiva como variante de representação do tempo futuro, pois apresentou apenas quatro ocorrências em todo o corpus. Possivelmente no mesmo caminho esteja o presente do indicativo, forma que apresentou baixo número de ocorrências, 92, motivo que o levou a ser retirado da análise. As rodadas que o incluíram possibilitaram vê-lo como uma variante da representação do tempo futuro que depende totalmente do contexto para expressar futuridade, tanto em futuro próximo como em distante, já que a marca de projeção é dada pelo contexto, responsável por essa informação, liberando o verbo de expressá-la.

Nesse sentido os dados confi rmam Oliveira (2006) quando afi rma que o presente do indicativo é um tempo verbal com marca morfológica zero: sozinho ele não tem a propriedade de expressar o tempo verbal futuro, mas o faz levado pelo contexto, ou seja, ele é o responsável pela representação da ação verbal, o tempo dela, propriamente dito, fi ca entendido, ou subentendido pelo contexto.

No cômputo geral foi possível observar que esse tempo verbal tende a representar um futuro próximo, podendo, como já dito, representar qualquer projeção, como se pode verifi car nos exemplos hipotéticos abaixo:

(11) Amanhã leio esse livro, depois que terminar esse trabalho que faço agora.

(12) No ano que vem leio esse livro, depois que me formar na faculdade.

(13) Depois que me aposentar leio esse livro, só assim posso aproveitar a leitura.

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Dentro dos contextos que possibilitam ao presente do indicativo representar o futuro, os advérbios de tempo apresentam elevada tendência de ocorrência: .840. Esse tempo também apresenta alto peso relativo com sujeitos pronominais de primeira pessoa, quer do singular ou do plural: .609 e .451, respectivamente. No corpus 1 ele ocorreu majoritariamente com verbo monossilábico que, no caso, foi o verbo ir, com as mulheres e com as crianças.

As frases interrogativas favorecem largamente o presente do indicativo, o que corrobora Malvar (2003) que encontrou a mesma situação relacionada e esse tempo verbal. Devido ao número reduzido de dados esse tempo verbal foi retirado da análise probabilística.

Traçando uma espécie de lócus de ocorrência do presente do indicativo o que foi possível observar possibilita apresentá-lo da seguinte maneira:

Futuro próximo; advérbio de tempo; sujeito pronominal de primeira pessoa; verbos monossílabos; frases interrogativas; mulheres; crianças.

Também foi necessário não considerar, por hora, o total de perífrases da análise, pois a disparidade de números de ocorrências entre elas foi muito grande, o que acaba por mascarar os resultados. Houve 2.338 dados de perífrases, destas, 2.112 de ir + infi nitivo. Sendo assim, decidiu-se por continuar com a análise apenas com duas das quatro variantes iniciais: o futuro sintético e ir + infi nitivo.

6.1. O futuro sintético nas revistas Pato Donald

Nos textos mais antigos a representação do tempo futuro é feita preferencialmente pelo futuro sintético. À medida que o tempo vai passando esta forma dá espaço a ir + infi nitivo, como constatou também Oliveira (2006). Nas revistas Pato Donald o futuro sintético apresentou peso relativo .78 em 1950 e fechou o período com .18, uma queda de

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.60 pouco mais de meio século, o que demonstra que o grupo de fatores que analisou o ano de publicação é bastante relevante, como pode ser observado no gráfi co 01, abaixo:

GRÁFICO 01: Área das variantes da representação do tempo futuro a partir do grupo de fatores ano de publicação, em pesos relativos.

Segundo Câmara Júnior (1985) os verbos monossílabos tendem a representar o futuro na forma sintética, sendo assim, nesta pesquisa, hipotetizou-se que os verbos de extensões fonológicas menos pesadas tenderiam a ocorrer com o futuro sintético, o que foi confi rmado pelos dados. Em outras palavras podemos dizer que i tende a ocorrer com os verbos mais pesados fonologicamente. O exemplo abaixo evidencia bem essa situação. Nele temos um verbo monossílabo representando o tempo futuro pelo futuro sintético e um verbo trissílabo na mesma função a partir de ir + infi nitivo:

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(14) E vou controlar esse poder sozinho! Terei o monopólio!

O tipo de frase com maior tendência a fazer a representação do tempo futuro com o futuro sintético são as negativas, o que poderia parecer estranho ao tom de promessa que ele parece inserir aos contextos, como em:

(15) E essa não me escapará, ou não me chamarei nunca mais o lobo feroz! (Pato Donald, n° 1, 1950, pág. 26, Adulto para fi lho, criança.)

Essa situação corrobora Malvar (2003) e Sankoff & Wagner (2005 – apud Oliveira, 2006: 71).

Quanto aos sujeitos pronominais que acompanham os contextos de futuridade imaginou-se que essa forma verbal tenderia a ocorrer com sujeitos pronominais de primeiras pessoas, especialmente com pronome nós elíptico, o que foi confi rmado pelos dados. Das 373 ocorrências dessa combinação, 350 estão com o pronome não preenchido. Esse fato corrobora a tese do paralelismo das formas: formas canônicas tendem a ocorrer com formas canônicas; inovadoras, com inovadoras.

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O futuro sintético tende a ocorrer no ambiente de trabalho de superior para subordinado e no ambiente familiar, do mais velho (pessoa adulta de maior idade) para o mais novo e nas interações dialógicas envolvendo estranhos, o que legitima Alkmim (2001).

Um contexto que se revelou de resistência a essa forma verbal foi o das frases interrogativas. O que não é compatível com seu tom profético, pois não se faz promessa em questionamentos.

Segundo o corpus 1 o ambiente mais propício para que o futuro sintético represente o contexto de futuridade pode ser representado a partir da seguinte linha:

Textos mais antigos; tom de promessa; futuro distante; advérbios de dúvida e negação; verbos monossílabos; frases negativas; sujeito pronominal de primeira pessoa do plural canônica, elíptico; de mais velho para mais novo; de superior para subalterno.

6.2. Ir + infi nitivo nas revistas Pato Donald

A variante ir + infi nitivo mostrou- se em ascendência no corpus, conforme foi possível observar no gráfi co acima, e com tendências altas de ocorrer com os pronomes pessoais inovadores você e vocês, com frases interrogativas, que é, justamente, o contexto inibidor da forma futuro sintético. Essa tendência de ir + infi nitivo ocorrer mais com as segundas pessoas verbais consideradas inovadoras revela um paralelismo de formas inovadoras, como se elas se atraíssem mutuamente.

Segundo a gramática tradicional a perífrase ir + infi nitivo, quando indicadora de tempo futuro, é empregada apenas para referir-se a um futuro próximo, o que foi confi rmado no corpus 1, mas a tendência existente ainda é bastante pequena. Essa forma verbal, nessa análise, se apresenta como a variante que está assumindo a função de representação do tempo futuro. Traçando uma linha de ambiente propício ao uso de ir + infi nitivo teríamos:

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futuro próximo; verbos tri e polissílabos; frases interrogativas; advérbios de intensidade e negação; sujeito pronominal de segunda pessoa do plural inovadora, preenchido; entre iguais, ambiente doméstico ou profi ssional.

As décadas menos produtivas para essa forma verbal são exatamente as mais antigas: 1950, 1960 e 1970. O que demonstra que ir + infi nitivo foi se fortalecendo a partir da década de 1980, o que também pode ser visualizado no gráfi co 01, acima.

7. Resultados da análise dos romances brasileiros

A partir dos romances brasileiros, se observa que os advérbios de modo, lugar, dúvida e afi rmação não se mostraram relevantes, bem como os pronome vós, a gente e vocês, que não ocorreram em todas as obras, com apenas 24, 22 e 28 ocorrências, respectivamente, em todo o corpus.

No cômputo geral, em porcentagem, o futuro sintético e as perífrases estão em igualdade de produtividade neste corpus, enquanto o presente do indicativo e haver + de + infi nitivo perfazem apenas 10 e 6%, respectivamente, do total dos dados, conforme tabela abaixo:

TABELA 1: Formas de futuro do corpus 2 – romances brasileiros

Formas de futuro Ocorrências %

Futuro sintético 1045 42

Presente do indicativo 255 10

Perífrases 1068 42Haver + de 162 6Totais 2.530 100

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A variante haver + de + infi nitivo apresentou 66% de suas ocorrências no século XIX e 34% no século XX, representando uma grande queda no uso dessa forma de representação do tempo futuro, que fi cou restrita a contextos onde se pretende inserir, ao conteúdo da fala, um tom próximo ao de uma profecia, mais comprometedor do que simplesmente uma promessa. O presente do indicativo, por sua vez, apresenta 23% de suas 255 ocorrências no século XIX e 77% no XX, o que demonstra o oposto. Mas, mesmo assim, neste corpus, ainda em número reduzido, o que impossibilitou sua análise com as demais formas. Devido a esse reduzido número de ocorrências essas duas variantes acabaram por gerar desvios nos resultados, além de serem as responsáveis diretas por muitos dos nocautes apresentados nas rodadas iniciais, o que fez com que ambas também fossem retiradas da análise probabilística.

Além da retirada dessas duas formas acima a variante perífrases, a exemplo do corpus anterior, sofreu um refi namento resultando na variante ir + infi nitivo, que apresentou 950 ocorrências em um universo de 1045 dados. O corpus 2, constituído dos romances brasileiros, portanto, também se faz representar por uma combinação binária: futuro sintético e ir + infi nitivo. Ambas, inclusive, apresentaram o mesmo percentual de ocorrências no corpus, mas pesos relativos distintos.

7.1.O futuro sintético nos romances analisados

O futuro sintético também aqui mantém a conotação de maior compromisso com relação ao contexto de futuridade. Quando se quer encerrar qualquer possibilidade de dúvida, dentro das possibilidades do fato futuro, a tendência é de representá-lo a partir do futuro sintético. Seu peso relativo na obra representativa da década de 1840, A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, é de .74 e .16 na de 1990, Carta para Alguém bem perto, de Fernanda Yung, o que representa uma queda bastante signifi cativa de uso.

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O comportamento do futuro sintético nos grupos de fatores da análise permite verifi car que ele tende a incidir quando o tempo futuro se localiza em projeção distante e acontece mais onde a intenção é a de atribuir um tom de promessa ao fato futuro, como é possível observar abaixo:

(16) Há tempo para tudo, disse Félix, e o senhor ainda está moço. Iremos juntos daqui a um ano. (Ressurreição, Machado de Assis, 1860, pág. 25, mais velho para mais novo.)

(17) Se ainda não fez, um dia fará ou vai fazer ou fazerá. (O Espelho dos Nomes, Marcos Bagno, 1980)

Esse tempo verbal ocorre ainda, preferencialmente, com o pronome de segunda

pessoa do singular: tu. Ou seja, a forma canônica de representar o futuro ocorre

mais com o pronome canônico, pois a segunda pessoa tu é a forma que a gramática

tradicional apresenta na segunda pessoa do singular:

(18) E tu, Augusto, quererás porventura requestar minha irmã?... (A Moreninha, 1840, Joaquim Manuel de Macedo, pág. 4, conversa entre amigos.)

(19) Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confi o cuidados de amor. (Memorial de Aires, 1860, Machado de Assis, pág. 19, adulto masculino para igual.)

Os dados apontam ainda que homens adultos fazem mais uso dessa forma verbal do que as crianças:

(20) É sexta-feira, na segunda você chegará à escola e será a mesma coisa de novo: Jaime é que terá novidades para contar. Ele é que fará o relato da festa. (Música Anterior, 1990, Michel Laub, pág. 51, adulto para mais novo.)

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Outro terreno fértil para a representação do tempo futuro pela forma sintética é o advérbio o de afi rmação, seguido pelo de tempo, bem como a presença de verbos monossilábicos, que são verbos menos pesados fonologicamente e, por isso, não se sobrecarregam com a fl exão do futuro sintético:

(21) Eu o darei com o maior prazer. (Senhora, José de Alencar, 1850)

A utilização do futuro sintético, que acontece prioritariamente com verbos menos pesados fonologicamente, ocorre com verbos polissilábicos para acrescentar ao contexto um tom profético, de promessa velada, como na sequência abaixo, onde a personagem repete a estrutura mudando a forma de representação do tempo futuro. Na primeira vez faz uso da perífrase e, para atribuir à fala um tom mais promissor, lança mão do futuro sintético:

(22) Alguma coisa estranha vai acontecer. (Fluxo – Floema, Hilda Hilst, 1950, pág.99, conversa entre adultos.)

(23) Alguma coisa acontecerá aos humanos. (Fluxo – Floema, Hilda Hilst, pág. 107, 1950, conversa entre adultos.)

A intenção do personagem nessa segunda ocorrência é de proferir uma frase mais forte do que a proferida anteriormente. Para que a intenção fosse externada e entendida a mesma frase foi proferida fazendo uso do futuro sintético onde antes havia sido usada ir + infi nitivo.

Nas interações consideradas menos informais, mesmo em ambiente doméstico, como em interações dialógicas envolvendo pessoas mais velhas ou estranhas, o futuro sintético tende a ser mais utilizado. O corpus 2 também demonstrou que essa é a variante mais utilizada, nesse ambiente, em situações de monólogos.

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Muito utilizado nos romances da fase inicial da análise, ele apresenta queda vertiginosa até o fi nal, deixando espaço livre para ir + infi nitivo. Separadamente os pesos relativos do futuro sintético e de ir + infi nitivo nas primeiras e nas últimas obras de cada autor que compõe a análise nos proporcionam gráfi cos como os dois abaixo:

GRÁFICO 02: Pesos relativos das obras masculinas do corpus 2, por décadas.

GRÁFICO 03: Pesos relativos das obras femininas do corpus 2, por décadas.

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Traçando uma linha de utilização, a partir das ocorrências desses corpus obtém-se, para o futuro sintético:

textos mais antigos; relacionado a promessas; projeção distante; pronomes pessoais canônicos: tu e nós; advérbio de afi rmação; verbos monossilábicos; adultos; em interações envolvendo pessoas mais velhas, com estranhos e em monólogos.

7.2. Ir + infi nitivo nos romances analisados

A forma verbal de maior produtividade em pesos relativos no corpus 2, ir + infi nitivo, é atraída pelos advérbios interrogativos. Bem como apresenta tendências de uso com quase todas as extensões fonológicas do verbo principal, excetuando apenas os monossilábicos. Salientando que o monossílabo de maior produtividade da amostra é justamente o verbo ir. Esse, portanto, se apresenta como o contexto que mais inibe ir + infi nitivo, pois a construção onde o mesmo verbo ocupa a posição de auxiliar e de principal, resultando em vou ir, ainda é muito estigmatizada socialmente. Banida por muitos profi ssionais da área da língua portuguesa com a explicação de que não é correto fazer o uso do mesmo verbo duas vezes, um ao lado da outro, como se não utilizassem, entre outras, as perífrases tenho tido ou ainda a mesma construção perifrástica com o verbo ir sendo auxiliar dele mesmo como em vou indo, mais antigo na língua e, consequentemente, possivelmente menos agressivo auditivamente.

Essa forma verbal é utilizada pelos indivíduos mais jovens para interagir com mais velhos, no ambiente doméstico. No cômputo geral, nesse corpus, essa forma verbal está presente desde o primeiro período de análise, apresentando crescimento em todo o corpus, em especial no século XX. Apesar de apresentar leve queda na produtividade no fi nal da amostra, não perde a alta tendência de passar a marcar esse tempo verbal com prioridade, principalmente a partir da seguinte linha:

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textos mais recentes; projeção próxima; advérbios interrogativos; pronomes pessoais eu, você e vocês; interações entre iguais no ambiente doméstico; crianças.

7.3. Conclusões das análises nas variações dos indivíduos, a partir de 1930

O corpus 2 possibilitou fazer uma comparação entre autores e autoras de romances brasileiros, do Modernismo para cá. Para este estudo foram utilizadas as quatro variantes iniciais e a tabulação dos pesos relativos dos autores foi feita a partir do grupo de fatores sexo. Colocados os resultados em gráfi co o que se vê são dois traçados muito semelhantes, um quase sobreposto ao outro, diferenciando-se no uso do futuro sintético, nos autores. Este traçado praticamente paralelo mostra que a variante sexo do autor do texto, tal como a variante sexo do informante, não apresenta grande relevância, haja vista que as evoluções de uso das variáveis se dão praticamente da mesma forma nos dois grupos. Fato que revela não serem, esses grupos de fatores, determinantes para a mudança:O estudo de variação a partir do sexo revelou que as mulheres tendem levemente a fazer mais uso de contextos de futuridade do que os homens. Para três das quatro formas verbais (haver + de + infi nitivo, presente do indicativo e ir + infi nitivo) os pesos relativos foram mais altos com elas do que com eles. Ao traçar uma linha de tendência sobre os pesos relativos observam-se duas linhas levemente afastadas, que se aproximam a partir do uso do futuro sintético em direção ao presente do indicativo e voltam a se distanciar na direção de ir + infi nitivo. Forma que se revela inovadora, a que mais tendência apresenta de continuar marcando a representação de tempo futuro nesse corpus. As linhas de tendência, inclusive, possibilitam visualizar que o futuro sintético, em ambos os casos, tem suas tendências diminuídas enquanto o presente do indicativo as apresenta em ascensão, em direção a variante com maiores tendências de representação do tempo futuro: ir + infi nitivo. As linhas permitem ver que a mudança de aplicação da regra de representação do tempo futuro que era majoritariamente

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representada pelo futuro sintético passa pelo presente do indicativo e hoje se apresenta majoritariamente por ir + infi nitivo.

GRÁFICO 04: Evolução das formas verbais, em pesos relativos, nos escritores e escritoras da amostra (média dos pesos relativos).

Considerações fi nais

Era objetivo desta análise verifi car a frequência do emprego dos verbos modalizadores e aspectuais nas construções perifrásticas com contextos de futuridade; porém, o que o estudo mostrou, a partir dos corpus aqui defi nidos e explorados, foi uma baixa frequência de dados. Na Revista Pato Donald, só 202 ocorrências, em um universo de 4.082 e, nos romances brasileiros, apenas 95 em 2.530 ocorrências, o que perfaz, em ambos os corpus 5% do total, número pouco representativo e pouco oportunizador de análises sobre o comportamento dessas perífrases, neste estudo.

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Nesta análise, foi possível visualizar uma grande concorrência entre as formas de representar o futuro, mas o que se tem, realmente, é um quadro quase defi nido de produtividade na marcação desse tempo verbal pela perífrase ir + infi nitivo.

A partir dos objetivos traçados para esta análise concluiu-se que as quatro formas verbais aqui analisadas apresentam comportamentos bastante distintos entre si: cada uma agindo em uma determinada situação, em um determinado contexto. Mas, na comparação entre os 6.616 dados encontrados, pode-se perceber uma similaridade nos resultados, apesar da heterogeneidade da origem das ocorrências, já que os dois corpus têm origens, criações e públicos bastante distintos, bem como aceitabilidades diferenciadas da parte do leitor.

Os dois corpus apresentaram poucos dados da variante haver + de + infi nitivo e também do presente do indicativo; o que, em ambas as situações, obrigou que se continuasse a análise com apenas duas das quatro variantes da variável dependente com que se iniciou esse estudo. O que se percebe, então, é que, não obstante o corpus, há marcas de um processo de mudança em curso, em corpus constituídos de língua escrita, ou seja, a variação que, nesse caso, caminha para uma mudança, não depende do corpus, ela é da língua.

Pontes (1973), quando fi naliza a análise da estrutura do verbo do português coloquial, decide nominar de forma marginal ao futuro do presente (aqui tratado sempre como futuro sintético), o que ela justifi ca porque, em seu corpus de análise, essa forma teve aparição rara. A partir daí a autora afi rma que o futuro sintético é uma das formas da língua literária que ocorrem esporadicamente na língua coloquial. O que esta tese mostra é que o futuro sintético é, realmente, apenas isso: uma das formas de representação do tempo futuro na língua literária, mas não aquela com maior tendência de uso.

Percebe-se, então, que o futuro sintético vem sendo destronado da posição de representar o tempo ainda não acontecido — de representar o inexistente, o desejado, o possível — posição essa que está sendo tomada pelas formas presente do indicativo e ir + infi nitivo, o que varia dependendo do corpus de análise.

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Quanto às perífrases os corpus mostraram que ir + infi nitivo está em processo fi nal de gramaticalização, se levarmos em conta somente os textos escritos, uma vez que a construção vou i(r), ocorre de maneira profusa na fala, notadamente na fala de crianças e adolescentes, e já é frequente na de adultos, conforme se constata no dia a dia (no oral, a gramaticalização já se consolidou completamente, regularizando o paradigma).

Se a forma ainda encontra resistência nos textos escritos, mesmo nos considerados ‘infantis’, o caso das histórias em quadrinhos aqui analisadas, é porque essa linguagem, que se quer representante da língua oral, não o é realmente, obedecendo aos cânones da gramática tradicional, que ainda não concebe a realização do futuro por perífrases.

Pode-se, portanto, afi rmar que aqui há uma mudança em curso, pois a partir dos pressupostos da teoria da Mudança Linguística, vistos acima, temos a representação do tempo futuro sendo representada por quatro variantes, que apresenta características de uma diferenciação ordenada, está ocorrendo e sendo transmitida de modo geral na ‘comunidade de fala’ e sua explicação está intimamente ligada a fatores linguísticos e extralinguísticos.

Nos dois corpus o futuro sintético se mostrou como uma variante condicionada, principalmente, pelo mesmo elemento: textos antigos, ou seja, quanto mais antigo o texto maior a chance de a representação do tempo futuro se fazer pelo futuro sintético. O oposto é verdadeiro para ir + infi nitivo: quanto mais recente o texto, maior a chance de o tempo futuro ser representado só por essa variante.

O futuro sintético também está relacionado às situações de promessas e a uma projeção do fato mais distanciado temporalmente. Vale destacar ainda que os verbos monossilábicos são os que favorecem grandemente a representação do tempo futuro a partir dessa variante, bem como a primeira pessoa do plural canônica: nós. Algo que também se pode notar é que nas interações que registram o futuro sintético há, via de regra, um adulto envolvido, o que evidencia ser a idade um fator relevante.

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Por sua vez ir + infi nitivo , como já apontado, tende a ocorrer em textos mais recentes, onde a situação de futuridade se dê em projeção mais próxima, com verbos, di-, tri- e polissilábicos. Os pronomes que favorecem sua ocorrência são você e vocês, nas interações entre iguais, em ambos os corpus.

Ao observar as ocorrências de representação do tempo futuro nos autores, principalmente os do sexo masculino e do século XIX, vemos que as gramáticas tradicionais não mentem quando citam exemplos retirados dessas obras para elucidar situações de uso do futuro sintético para representar o tempo vindouro. O fato que elas omitem é o de que esses autores usam igualmente ir + infi nitivo para representar esse mesmo tempo. Os gramáticos simplesmente ignoram (em todos os sentidos) a existência dessa variante, mesmo constando nos seus textos e nas obras de autores usualmente utilizados nos exemplos das teorias por eles apresentadas.

O corpus 2 mostra que ainda antes do Modernismo, Lima Barreto já utilizava mais ir + infi nitivo do que o futuro sintético. Depois, em Oswald de Andrade, essa variante foi ganhando espaço. O que a análise dos resultados dos autores mostra é que a trajetória da representação do tempo futuro não se dá diretamente do futuro sintético para ir + infi nitivo. Ela passa pelo presente do indicativo, que esteve e está funcionando como uma ponte no processo de mudança entre as variantes de representação do tempo futuro. Se antes a forma majoritária era o futuro sintético e hoje é ir + infi nitivo ela já foi mediada pelo presente do indicativo.

Por outro lado, o estudo da mudança no indivíduo proporcionou observar que a tendência diacrônica natural dessas quatro formas é a mesma nos dois corpus: haver + de + infi nitivo como um resquício de uso, concorrendo com o futuro sintético e quase se extinguindo por conta da ascensão desse que, por sua vez, vai dividindo o campo com o presente do indicativo que, por sua vez, abre caminho para a perífrase ir + infi nitivo, que o supera em muitos contextos. Tal trajetória é visível tanto nas obras dos autores como nas autoras e, nessas, tendendo mais ao uso da perífrase

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do que da forma canônica, o que as coloca na posição de inovadoras, deixando o perfi l mais conservador, nesse caso, para os homens.

Fechando esta pesquisa, mas não as possibilidades de estudos da variável dependente aqui analisada, é imprescindível observar que, independente da obra, a mudança na representação do tempo futuro está encaixada na estrutura linguística, mas que apresenta, ainda, um contexto de resistência, validado pelo processo que Weinreich, Labov e Herzog (2006) chamam de avaliação, ou seja, a sociedade detecta variações que são avaliadas como negativas e essas passam a ser estigmatizadas. No caso da variável em questão, em se tratando de língua escrita, o estigma está na forma vou ir, sem nenhuma ocorrência entre os 6.616 dados analisados nos dois corpus desse estudo. É interessante salientar que não houve nenhum caso de vou ir mesmo nas histórias em quadrinhos, que parte da sociedade ainda tende a classifi car como leitura não recomendável.

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© Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 431-444. 1ª parte 2011

ANÁLISE AUTOMÁTICA DA MORFOLOGIA VERBAL DO PB: PLATAFORMA CHILDES

Leonor SCLIAR-CABRAL Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)/CNPq

Vera VASILÉVSKI (PNPD CAPES)

RESUMO

Os procedimentos de montagem das regras que compõem o aparato para a análise automática da morfologia verbal do PB, dentro da plataforma CLAN, serão apresentados e debatidos. Comparando-se a formalização das classes sintáticas e respectivas regras do espanhol e do italiano com as do PB, chegou-se à conclusão de que elas deveriam ser reformuladas, particularmente no que diz respeito à análise automática dos morfemas verbais. Tendo em vista o nível de previsibilidade dos morfemas do sistema de verbos do PB, apresenta-se a formalização das regras morfológicas que compõem esse sistema para os verbos regulares das três conjugações e a formalização em algoritmo, bem como o trabalho que a antecedeu na programação informatizada que identifi ca automaticamente as formas verbais do português, classifi cando-as segundo modo/tempo, pessoa/número, em compatibilidade com o sistema CLAN, da plataforma CHILDES (MacWHINNEY, 2000, 2008). Discutem-se as difi culdades encontradas na conversão e as decisões que foram tomadas para superá-las e mostra-se a criação automática de uma linha fonológica. Este trabalho é realizado com apoio do CNPq e da CAPES, entidade do governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.

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1. Histórico

O Grupo Integrado Produtividade Linguística Emergente do CNPq há anos vem alimentando o maior banco mundial de dados de linguagem verbal, a plataforma CHILDES, conforme pode ser visualizado e ouvido no site: http:/childes.psy.cmu.edu/data/Romance/Portuguese/ fl orianopolis.zip, uma vez que todos os enunciados, tanto dos adultos quanto os da criança são seguidos de bullets que, quando clicados permitem sua audição. Há três corpora, correspondentes à fase 1 (20m e 21d), à fase 2 (22m e 20d) e à fase 3 (26m e 08d) do sujeito Pá, cujos enunciados também foram transcritos foneticamente (broad transcription). O principal achado da pesquisa foi considerar o acento de intensidade como morfema verbal (suprafi xo), com a função de assinalar na 1ª fase diferenças aspectuais (posteriormente, redundante e cumulativamente também assinalará tempo/modo). Propusemos, então a implementação1 da fórmula de Mattoso Camara Jr. (2004:134) que passa a: T(R+VT) + SF (SMTA+SNP +SPF).

O mundo contemporâneo dos computadores e da linguística computacional tornou possível a catalogação e análise de uma quantidade antes nunca conhecida de dados da comunicação verbal, em tempo muito menor. Isto possibilita comparações e generalizações a partir de uma massa de dados muitíssimo mais robusta. A base de dados da plataforma CHILDES, com a qual o presente projeto opera, contém 44 milhões de palavras faladas em 28 línguas diferentes. Trata-se do maior corpus de fala atualmente existente. Em segundo lugar, vem o British National Corpus, com 5 milhões de palavras.

Todos os dados do sistema CHILDES estão codifi cados de forma consistente num formato de transcrição denominado CHAT, inclusive os dados da 3ª fase do sujeito Pá, dos quais será depreendida a gramática automática. Atualmente já foram construídas gramáticas MOR de 10 línguas: cantonês, holandês, inglês, francês, alemão, hebraico, japonês, italiano e espanhol, das quais servirão de modelo para a depreensão da gramática do PB as gramáticas do italiano e do espanhol e as de

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linguistas brasileiros (Bechara (1999); Borba et al. (2002); Castilho (1989, 2002a e b); Cunha & Lindley-Cintra (1987); Ilari (2002); Ilari & Basso ___(2006); Kato (2002); Koch (2002); Mattos e Silva (2001); Moura Neves (2000, 1999); Naro; Scherre (1993); Preti (1993); Roncarati & Abraçado (2003)).1

O projeto ora apresentado tem como principal meta colocar à disposição dos pesquisadores uma ferramenta que lhes possibilite a análise morfológica automática dos enunciados que constituem os corpora coletados do PB.

O Grupo Integrado do CNPq, Produtividade Linguística Emergente, já realizou a análise morfológica manual dos enunciados da criança, nas fases 1 e 2, exemplifi cados a seguir:

Fase 1 (20m e 21d):

47 *CHI: <não é> [>]! 48 %pho: ´nǩ̃w ´49 %mor: neg|não=not v:cop1|s-TV2&IPFVM1=is!

A linha 47 é a linha principal (main line), contendo um enunciado com dois itens da criança (CHI); a linha 48 %pho é a transcrição fonética e a linha 49 %mor é a análise morfológica manual, em que cop1 é a cópula 1, cujo radical do verbo ser é s-, com a vogal temática da 2ª conjugação, no imperfectivo (as pessoas do discurso ainda não estão gramaticalmente assinaladas).

Fase 2 (22m e 20d):

52 *CHI: cadê ota [= outra] cadeira? 53 %pho: ka´de ´ota ka´de54 %mor: wh:proloc|cadê=where det|ota=another

n|cadeira=chair?

1 Para um detalhamento, consulte-se Scliar-Cabral (2007).

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Uma formalização semelhante, porém, expressando a gramática do PB, será o output na linha %mor, quando for disponibilizada a gramática automática para análise de corpora formatados de acordo com o formato CHAT.

2. Codifi cação dos paradigmas das classes sintáticas

Para a preparação da gramática automática, cujas regras e respectivos algoritmos dos tempos simples dos verbos regulares serão explicados nesse artigo, já foram codifi cados os paradigmas das classes sintáticas, a seguir exemplifi cados:

Advérbios interrogativosonde {[scat adv:int]} =where=

Artigosa {[scat art]} “o&FEM&SG” =the=

Pronomes adjetivos demonstrativosaquela {[scat det:dem] “aquele&FEM&SG” =that=

Pronomes adjetivos indefi nidosalgum {[scat det:indef]} “algum&MASC&SG”=some=

Pronomes adjetivos interrogativosque {[scat det:int]} =what=

Pronomes adjetivos possessivosmeu {[scat det:poss]} “meu-1S&MASC&SG” =my=

Pronomes substantivos demonstrativosa {[scat pro:dem] “o&FEM&SG” =in English it is included in

wh form=

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Pronomes substantivos indefi nidosalgo {[scat pro:indef]} =something=

Pronomes substantivos interrogativoso_que {[scat pro:int]} =what=

Pronomes pessoais% subject caseeu {[scat pro:pers]} “eu&1S&SUBJ” =I=% forms that are the same as subject and object (in the last case, always preceded by preposition)você {[scat pro:pers]}”você&2S&SG&OBJ” =you= % cliticsme {[scat pro:pers]} “eu&1S&OBJ” =me=

Pronomes substantivos possessivosminha {[scat pro:pos]} “meu-1S&FEM&SG” =mine=

Pronome relativoquem {[scat pro:rel]} =who=

Preposiçõesa {[scat prep]} =to=

Preposições + determinativosà {[scat prep]} «a~det:art|o&FEM&SG» =to the=

Preposições + pronomes substantivos demonstrativosà {[scat prep]} «a~pro:dem|o&FEM&SG» =to the one=

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Conjunções coordenativascontudo {[scat conj:coor ]} =nevertheless=

Conjunções subordinativasantes_que {[scat conj:sub ]} =before=

Substantivos comunsadultos {[scat n][gen masc]} “adulto-PL” =adults=

Substantivos própriosAna {[scat n][gen fem]}

Uma solução para equacionar o difícil problema da delimitação das locuções, cujos termos vêm ligados por _, é aplicar o teste da impossibilidade de separá-los pela interpolação de outra palavra. O critério não foi aplicado para os tempos compostos e locuções verbais, uma vez que seus respectivos auxiliares são arrolados em paradigma específi co. Veja-se, a seguir, um exemplo de codifi cação de locução adverbial listada no corpus PAU003:

Locuções adverbiaisao_mesmo_tempo {[scatadv:loc]} =at_the_same_time=

A seguir serão apresentadas as ferramentas produzidas por Vera Vasilévski, utilizadas pelos pesquisadores do Grupo Integrado Produtividade Linguística Emergente, como auxiliares na depreensão da gramática automática do PB.

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3. Trajetória

Em 2008, como resultado da tese de doutorado Criação do Sistema de Conversão Grafema-fonema Nhenhém, foi criado o programa de conversão grafêmico-fonológica automática Nhenhém e, em 2009, a primeira atualização. Em 2010 ocorreu a conversão do Nhenhém para outra linguagem de programação, a criação do Nhenhém silabador, a versão atualizada do Nhenhém silabador (entrada da morfologia, na separação silábica de palavras compostas por justaposição) e a Interface entre o Nhenhém e os arquivos Clan.

A interface entre o programa Clan foi feita com um programa específi co criado para auxiliar o trabalho dos bolsistas do projeto. Chama-se LAÇA-PALAVRAS e abriga os demais programas e funções, além de ler os arquivos do Clan.

A interface ocorre em dois níveis: manipulação de conteúdo (lê os dados e os dispõe em estatística, sem alterar o arquivo original) ou interferência nos arquivos (modifi ca/edita-os) e, cria, simultaneamente a linha %pho, conforme o quadro abaixo:

QUADRO 1: Conversão grafo-fonológica simultânea da linha 94.

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4. Regras de alomorfi a das VTs, dos SMT e SNP dos verbos regulares

Como primeiro passo, foram formalizadas as regras de alomorfi a das vogais temáticas (VT) das três conjugações dos verbos regulares, cujas ocorrências são marcadas na linha principal com @v, como, por exemplo, na linha 48 *CHI: acende@v a luz. Tais regras servem de base para o algoritmo para sua inserção no programa.

QUADRO 2: Exemplo de formalização das regras para a vogal temática |-a-| da 1ª conjugação.

A seguir, passou-se à formalização das regras de alomorfi a do sufi xo modo-temporal (SMT), conforme exemplo no quadro 3.

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QUADRO 3: Formalização da regra para o sufi xo modo (-temporal) (SM(T)) do gerúndio

O presente do indicativo, como tempo primitivo, apresenta Æ para SMT.

QUADRO 4: Formalização da regra para o sufi xo modo-temporal (SMT) do Pretérito imperfeito do Indicativo.

O pretérito perfeito do indicativo, como tempo primitivo, apresenta Æ para SMT, com exceção da 3ª pessoa do plural, -ra-, que é uma forma marcada.

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QUADRO 5: Formalização da regra para o sufi xo modo-temporal (SMT) do Futuro do presente do Indicativo.

Finalmente, foram formalizadas as regras de alomorfi a para o sufi xo número-pessoal (SNP), das quais damos dois exemplos:

QUADRO 6: Formalização da regra para o sufi xo número-pessoal (SNP) de 1ª pessoa do plural (só apresenta alomorfe em juntura fechada com os pronomes pessoais clíticos).

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QUADRO 7: Formalização da regra para o sufi xo número-pessoal (SNP) de 3ª pessoa do plural.

QUADRO 8: Exemplo de análise morfológica automática da ocorrência “falam” para inserção na linha %MOR)

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Resultados

Conforme se pode depreender, encontra-se bastante adiantado o projeto de criação do programa que analisará automaticamente a morfologia do PB. Nesse ínterim, codifi caram-se os paradigmas de quase todas as classes sintáticas, elaboraram-se as regras alomórfi cas das vogais temáticas e dos sufi xos modo-temporais e número-pessoais do sistema escrito dos verbos regulares do PB, bem como foram construídas poderosas ferramentas de investigação como o programa Nhenhém (em várias versões), o silabador e o Laça-palavras, além dos algoritmos de conversão para linguagem de máquina, mas ainda teremos de resolver confl itos decorrentes das ambiguidades por meio de regras específi cas.

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Créditos:

Tradução das glosas para o inglês: Cloves Cardozo (bolsista IC/PIBIC)

Programação: Márcio Araújo (Engenharia Eletrônica) e Vera Vasilévski