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1 FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO LETÍCIA CARICARI SECO MACIEL LOURENÇO VARIAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E PODER NAS PERSPECTIVAS DE MICHEL FOUCAULT E MIGUEL REALE SÃO PAULO - 2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

LETÍCIA CARICARI SECO MACIEL LOURENÇO

VARIAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE

DIREITO E PODER NAS PERSPECTIVAS DE

MICHEL FOUCAULT E MIGUEL REALE

SÃO PAULO - 2010

2

FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

VARIAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE

DIREITO E PODER NAS PERSPECTIVAS DE

MICHEL FOUCAULT E MIGUEL REALE

Leticia Caricari Seco Maciel Lourenço

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós Graduação Stricto Sensu em

Filosofia da Faculdade de São Bento

do Mosteiro de São Bento de São

Paulo, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

Área de Concentração: Ética e Política

Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni

SÃO PAULO - 2010

3

FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

VARIAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE

DIREITO E PODER NAS PERSPECTIVAS DE

MICHEL FOUCAULT E MIGUEL REALE

Banca examinadora:

_____________________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Bruni – Faculdade de São Bento

_____________________________________________________

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva – Faculdade de São Bento

_____________________________________________________

Prof. Dr. Sérgio Adorno – Universidade de São Paulo

SÃO PAULO - 2010

4

Dedico esta monografia a todos aqueles que, direta ou indiretamente,

contribuíram para a realização deste trabalho.

5

Ao Prof. Dr. José Carlos Bruni,

a minha família e amigos

que deram o apoio necessário para realização deste trabalho.

6

A originalidade de um filósofo pode estar menos na formulação de novas perguntas do

que na reformulação das antigas, em consonância com as exigências históricas do seu

tempo.

(Miguel Reale. Teoria Tridimensional do Direito, p. 64)

Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a

renúncia ao poder é uma das condições para que se possa torna-se sábio.

(Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 27)

7

LOURENÇO, Letícia Caricari Seco Maciel. Variações sobre a relação entre Direito e

poder nas perspectivas de MICHEL FOUCAULT e MIGUEL REALE, São Paulo, 2010,

112 p. (Dissertação de Mestrado) Faculdade de São Bento.

A presente dissertação tem como objetivo compreender a questão da dissonância entre o

aprendizado desenvolvido nas Faculdades de Direito (a teoria jurídica) e a realidade

fática do universo jurídico atual (a prática jurídica). Para isso, desenvolve-se um estudo

acerca da relação entre Direito e poder, atravessando o tema dos fundamentos do Direito

e da ordem jurídica, bem como das relações humanas fundadas no poder sob as

perspectivas de Michel Foucault e Miguel Reale. Conclui pela doutrina realeana como

uma idealidade (teórica, utilizada no ensino jurídico superior) e pela filosofia

foucaultiana como uma realidade do Direito (prática, explicativa das relações de poder).

This dissertation aims to understand the issue of dissonance between the learning

developed in law schools (legal theory) to factual reality of the legal world today (legal

practice). For this, develops a study about the relantionship between law and power,

passing through the theme of the foundantions of law and legal order, even as legal

relationships founded on the power under the prospects of Michel Foucault and Miguel

Reale. Concluded by the Realeana doctrine as a ideality (theoretical, used in higher

legal education) and by Foucauldian philosophy as reality of law (practice, explanatory

power relations).

Teoria e prática judiciária. Relação entre Direito e poder. Miguel Reale e Michel

Foucault. O plano ideal e o plano real do Direito.

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................9

PARTE 1 ........................................................................................................................12 1 A PERSPECTIVA DE MIGUEL REALE – O PLANO IDEAL ................................12

1.1 “De onde fala Miguel Reale” ..........................................................................12 1.1.1 Breve evolução do pensamento de Miguel Reale ..................................14

1.2 Conceitos.........................................................................................................19 1.2.1 Sujeito, conhecimento e verdade............................................................19

1.2.1.1 A teoria dos objetos (ser e dever ser)...............................................23 1.2.2 A cultura.................................................................................................26 1.2.3 O Direito (A Teoria Tridimensional) .....................................................29

1.2.3.1 Elemento norma ...............................................................................31 1.2.3.2 Elemento fato ...................................................................................33 1.2.3.3 Elemento valor .................................................................................37

1.2.4 O Poder ..................................................................................................41

PARTE 2 ........................................................................................................................48 2 A PERSPECTIVA DE MICHEL FOUCAULT – O PLANO REAL.........................48

2.1 “De onde fala Michel Foucault” .....................................................................48 2.1.1 Breve evolução do pensamento de Michel Foucault..............................51

2.2 Conceitos.........................................................................................................53 2.2.1 Sujeito, conhecimento e verdade............................................................54 2.2.2 A história................................................................................................63 2.2.3 O Direito ................................................................................................70 2.2.4 Poder (biopoder) ....................................................................................73

2.2.4.1 A noção de resistência......................................................................87

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................105

ANEXO A - Validade formal do Direito ou da norma jurídica..............................108

ANEXO B - Teoria dos objetos ..................................................................................109

ANEXO C - Nomogênese jurídica ............................................................................109

ANEXO D - Aspectos da ordem normativa..............................................................110

ANEXO E - Exemplos de crimes na atualidade .......................................................111

9

INTRODUÇÃO

A idéia de aproximar os autores Miguel Reale (1910-2006) e Michel Foucault

(1926-1984) (opostos e distintos, em princípio) veio da experiência acadêmica que, em

determinado momento, me fez refletir sobre a distância entre a teoria e a prática do

Direito. Mais precisamente, o que me trazia curiosidade era o porquê de se aprender

uma teoria jurídica que, na prática, não surtia o mesmo efeito esperado, desejado e

previsto por ela mesma.

Assim sendo, sempre me questionei do porquê, na faculdade de Direito, se

ensinar e aprender doutrinas jurídico-filosóficas (fundamentadoras do Direito) que, na

prática, não traziam o resultado jurídico desejável por essas mesmas teorias1.

Em paralelo a esse questionamento, outra tese, muitíssimo estudada e pesquisada

entre filósofos e juristas no âmbito da Filosofia Política e do Direito, também me

intrigava: qual seria a relação existente entre Direito e poder? O poder seria o

fundamento (ou um fundamento) do Direito? Um dependeria do outro? Qual, afinal,

seria a relação entre ambos: de necessidade ou de contingência?

A partir dessas questões, ao longo de todo meu estudo, dois filósofos sempre me

chamaram atenção: Miguel Reale (por sua tese jurídica) e Michel Foucault (por sua

doutrina filosófica)2.

Ao tomar contato com a pesquisa de Reale acerca dos fundamentos do Direito e

estudar sua Teoria Tridimensional (como uma tese inovadora, no âmbito jurídico), pude

constar sua riqueza de detalhes que explicavam de maneira bastante completa o

fundamento do Direito em sua idealidade.

Já a doutrina foucaultiana, mais precisamente a abordagem própria de Foucault

sobre o poder, fez com que eu refletisse sobre a prática da aplicação de seu sujeito

(moderno) desconstruído, constituído pelas teias de um poder real, ou, melhor dizendo,

1 Em outras palavras: entender o porquê dos juristas formados terem tantas dificuldades para colocar em prática a verdadeira teoria da justiça, por exemplo. Ou porque esse Direito (tal qual estudado nos bancos acadêmicos) não auxilia na construção de uma sociedade mais justa. Porque o Direito, na prática (já que objetiva concretizar a justiça e fomentar a paz) está sendo praticado em meio a uma sociedade violenta e injusta? Em suma: como formar um jurista crítico? 2 Provavelmente esses dois autores tenham sempre despertado meu interesse devido à minha formação filosófico-jurídica – no Direito e na Filosofia.

10

de vários poderes reais3.

Dessa forma, portanto, foi que cogitei aproximar ambos pensadores, partindo da

seguinte impressão pessoal: ao meu ver, a teoria de Miguel Reale explica de maneira

clara e minuciosa o fundamento do Direito, se apresentando como uma teoria ideal. E a

doutrina de Michel Foucault trata do aspecto prático da aplicação do Direito, fundado

em poder, de forma bastante concreta e explicativa.

Assim, a partir dessa conclusão pessoal, foi que cogitei aproximar os dois

autores, não pelas suas origens, do nascedouro de seus pensamentos (absolutamente

distintos), mas pelos seus resultados que, em tese, absolutamente em tese, poderiam

tratar, em Reale, do plano ideal do fundamento do Direito e, em Foucault, do plano real

do poder.

A intenção, com essa aproximação, não é aqui tratá-los como autores

complementares, com teorias integrantes. Ao contrário: o que se pretende é estabelecer

uma linha divisória entre suas teses e, assim, aproximá-los pelos resultados, ou seja,

convergir seus pensamentos para concluir pela quebra da diferença entre a teoria e a

prática do universo jurídico e a relação com o poder.

Cumpre ressaltar, também, que a relação entre Direito e poder, aqui neste

trabalho, será estudada a partir da concepção do “fundamento do Direito” de Miguel

Reale e do entendimento de “relação de poder” de Michel Foucault.

Dessa forma, academicamente e de maneira muito primária e sem grandes

pretensões (de forma alguma), será estudada a relação entre Direito e poder e, em

paralelo, será feita uma reflexão sobre a distância entre a teoria e a prática do Direito,

frise-se, ao nível acadêmico.

Ressalto, porém, que não tenho a ousadia de querer esgotar o tema da relação

entre Direito e poder, tampouco aprofundar o estudo acerca das teorias de Reale e

Foucault (em sua totalidade), ou, ainda, pretender encontrar respostas para a questão

sobre a discrepância entre o plano ideal e o plano real do universo jurídico.

Ao invés disso, o que pretendo aqui é trazer um estudo simplificado acerca

dessas questões que, durante algum tempo, me despertaram interesse, assim como as

teorias dos dois filósofos aqui citados.

Para isso, então, o presente estudo é dividido em duas partes: a primeira trata da

perspectiva de Miguel Reale, com a localização de seu pensamento no devir histórico do

3 Em contraposição a um poder ideal.

11

pensamento ocidental e a elaboração de um breve apanhado da evolução de seu

pensamento, sendo abordados conceitos de sua teoria (Tridimensional). Já a segunda

parte expõe a perspectiva de Michel Foucault, também a localização de seu pensamento

no devir histórico, bem como a breve evolução de seu pensamento e a abordagem de

conceitos de sua teoria do poder.

As considerações finais deste trabalho oferecem uma conclusão particular

quanto às respostas obtidas em relação a essas questões iniciais, propostas no

nascimento da pesquisa aqui apresentada.

Há que se referir que a presente dissertação tem como objeto de estudo a relação

entre Direito e poder, nas perspectivas de Miguel Reale e Michel Foucault, a partir das

intuições inicialmente apresentadas. A pesquisa desenvolvida é eminentemente

bibliográfica e se funda, sobretudo, na utilização de algumas das obras dos autores e

seus comentadores, dentre o vasto acervo existente sobre o tema.

Para finalizar, cumpre repetir: a presente dissertação de Mestrado tem como

objetivo tentar, ainda que de maneira superficial e acadêmica, responder (ou dar

subsídios para obter respostas) às indagações surgidas a partir de intuições oriundas do

estudo no âmbito jurídico e filosófico. É possível que o leitor não tenha as mesmas

considerações e questionamentos a fazer, tampouco chegue às mesmas conclusões;

porém, será de grande valia o presente texto se este despertar a curiosidade e o interesse

pelas teorias dos filósofos, sendo essa também, por outra via, a intenção da presente

explanação.

12

PARTE 1

1 A PERSPECTIVA DE MIGUEL REALE – O PLANO IDEAL

1.1 “De onde fala Miguel Reale”4

Miguel Reale, filósofo brasileiro (nascido em 1910, falecido em 2006), sempre

foi um agente atuante na sociedade brasileira, contribuindo muito com seu pensamento

e suas teorias para a cultura nacional. Além de agir diretamente na política local,

também esteve engajado na formação do pensamento filosófico do país. Em suma: uma

vida dedicada à prática da erudição. Vejamos.

Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em 1934. Nessa ocasião,

foi um dos dirigentes da Ação Integralista Brasileira.

Através de um concurso realizado em setembro de 1940, tornou-se catedrático

de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1941.

Em 1942, foi nomeado membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo,

cargo que exerceu até 1944.

No ano de 1947, foi nomeado Secretário da Justiça do Estado de São Paulo,

criando a primeira assessoria técnico-legislativa do país para racionalização dos serviços

legislativos. Em 1949 assumiu a reitoria da Universidade de São Paulo (USP),

instaurando os primeiros Institutos Oficiais de Ensino Superior no Interior do Estado.

No mesmo ano de 1949, fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia, do qual foi

presidente durante muito tempo5.

Em 1951, chefiou a Delegação Brasileira junto à OIT (Organização

Internacional do Trabalho), em Genebra. Já em 1954, fundou a Sociedade

Interamericana de Filosofia, da qual foi presidente duas vezes.

Entre os anos de 1957 e 1978, participou ativamente dos Congressos

Interamericano e Internacional de Filosofia como presidente, vice-presidente e relator

4 É importante que fique esclarecido, inicialmente, que não existe a pretensão, no presente subtítulo, de se esgotar a pesquisa acerca do tema das heranças que influenciaram o pensamento de Miguel Reale. O que se pretende, apenas e tão somente, é introduzir e localizar (historicamente) o pensamento do autor no devir filosófico para embasar a continuidade do estudo da relação entre o Direito e o poder. 5 Essa entidade congrega todos os pensadores brasileiros e edita a Revista Brasileira de Filosofia.

13

prévio, muitas vezes chefiando a delegação brasileira.

Paralelamente a ouras atividades, manteve sempre seu escritório de advocacia

(ainda hoje ativo).

Sempre desenvolveu uma intensa atividade no Partido Social Progressista que

lhe rendeu, em 1962, a função de vice-presidente do partido.

Em 1964, foi secretário da justiça de São Paulo e em 1969, nomeado pelo

presidente Arthur da Costa e Silva para a Comissão de Alto Nível, incumbida de rever a

Constituição Federal de 1967.

Mais uma vez, de 1969 a 1973 foi nomeado reitor da Universidade de São Paulo,

implantando, nessa época, a reforma universitária com a substituição das cátedras pelos

departamentos e deu definitiva organização aos campi da capital e do interior do estado.

Em 1974, foi nomeado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici para o

Conselho Federal de Cultura, cargo que exerceu durante 15 anos.

Por conta de sua vasta obra literária, foi indicado para ocupar a cadeira de

número 14 da Academia Brasileira de Letras em 16 de janeiro de 1975.

Atuou diretamente na elaboração legislativa do país, colocando em prática sua

Teoria Tridimensional do Direito, sendo supervisor da comissão elaboradora do Código

Civil Brasileiro de 2002.

Organizador e presidente do II, III e IV Congresso Brasileiro de Filosofia

Jurídica e Social, realizados nos anos de 1986, 1988 e 1990. Também foi organizador e

presidente do V Congresso Brasileiro de Filosofia, realizado no ano de 1995.

É muito extensa a lista de títulos honoríficos bem como de medalhas e

condecorações que recebeu, tanto em nível nacional quanto internacional. Também é

vasto seu acervo bibliográfico.

Miguel Reale falece em 14 de abril de 2006, aos 95 anos, vítima de um enfarte

enquanto dormia em sua residência em São Paulo.

Partindo da biografia de Reale acima transcrita, importante é ressaltar em qual

devir histórico o filósofo se inscreveu para desenvolver sua teoria. Vejamos.

Politicamente definia-se como um liberal social. Daí ser reconhecido como

simpatizante de um liberalismo clássico. Por isso mesmo, desenvolveu sua Teoria

Tridimensional como uma idealidade, amparada nos estudos acerca dos fundamentos do

Direito desde a antiguidade até a contemporaneidade.

Sua pesquisa sempre foi circunscrita em categorias espaço-temporais,

justificadoras de evoluções e retrocessos acerca das concepções sobre o Direito e a

14

ética. A perspectiva política sempre o interessou e perpassou, de certa forma, o

desenvolvimento de suas pesquisas.

Assim, Reale faz parte de uma continuidade histórica de teorias do Direito. Ele

pertence a um grupo de doutrinadores que aprofundaram diversas teses acerca dos

fundamentos do Direito para, a partir daí, desenvolver inovadoras visões acerca do

tema. Essas inovações se prestaram (e se prestam, ainda hoje) a embasar todo estudo

jurídico-filósofico sobre a formação, a justificativa e o desenvolvimento do Direito e

suas circunstâncias.

Não se pode esquecer que a perspectiva realeana é a perspectiva do jurista

clássico. E, por isso, a teoria (Tridimensional) trazida ao Brasil e aperfeiçoada por ele, é

fruto dessa herança.

A Teoria Tridimensional do Direito (conhecida hoje como uma das mais

“modernas” teorias para fundamentar o Direito, senão a mais completa e abrangente) é

filha desse devir histórico.

Assim, diz-se que Reale é o filósofo do instituído, do que é dado6. Ele enxerga o

Direito com o olhar do jurista convencional. Por isso, provavelmente, não aborda em

profundidade, por exemplo, a questão do poder e suas conseqüências na relação com o

Direito.

Não existe, ao menos no desenvolvimento de sua Teoria Tridimensional, uma

ocupação com a realidade social mesma, com a influência do poder nesta, com a

aplicação da teoria à prática. Daí, a expectativa do presente estudo.

Por tudo isso, é que se pode dizer que a visão de Miguel Reale acerca da relação

do Direito com o poder é a visão jurídico-filosófica da relação. Por conta disso, é que é

dada maior importância à perspectiva jurídica da relação (à teorização e idealização da

mesma).

1.1.1 Breve evolução do pensamento de Miguel Reale

Miguel Reale iniciou seu estudo desenvolvendo, entre outras, uma profunda

6 Enquanto que Foucault seria o filósofo do instituinte, do que é novo (ver subtítulo 2.1 do presente estudo).

15

pesquisa sobre os fundamentos do Direito, em 1940, tendo como resultado desse

trabalho a obra de mesmo nome, Fundamentos do Direito7. A partir desse estudo, pôde

ele perceber que a fundamentação do Direito, de certa maneira, se confundia com a

própria origem do Direito.

No último capítulo dessa mesma obra, após tratar da evolução do pensamento de

diversos autores acerca da validade ética do Direito, Reale abordou os elementos fato,

valor e norma, como início de uma vertente nova de estudo, que se desenvolvia em

larga escala na Europa no pós-guerra (meados do século XX).

Foi tratando dessa evolução de pensamento e mais precisamente realizando

pesquisas acerca desses elementos, que o autor brasileiro, timidamente, esboçou suas

primeiras linhas acerca da “Teoria Tridimensional” (adaptando-a). Sem saber, tal teoria

daria a ele grande notoriedade no Brasil e no mundo.

Quando em 1940, em minha tese universitária intitulada Fundamentos do Direito, dei ao capítulo final o título de "Fato, Valor e Norma", após ter examinado diversas teorias que dão ênfase apenas a um desses elementos (p. ex., o "normativismo" do primeiro Kelsen; [...]), ainda não empregava o termo tridimensionalismo. Parecia-me mais adequado afirmar que o Direito é uma "realidade bidimensional, de substratum sociológico e de sentido axiológico-normativo". Isto não obstante, em livro publicado na mesma época, Teoria do Direito e do Estado, já afirmava claramente que o direito é "uma integração normativa de fatos segundo valores". (REALE, 2001, p. 90, 91)

Foi após a publicação dessa obra que Miguel Reale iniciou um estudo mais

aprofundado sobre a tridimensionalidade, tentando abandonar a concepção

bidimensional do Direito (de fato e norma). "Poder-se-ia dizer que o tridimensionalismo

já existia, mas sem plenitude de sua acepção verbal". (REALE, 2001, p. 91)

Ele não aceitava o fato de que a maior parte dos pensadores acreditava na

bilateralidade do Direito (fato-norma): na validade fática ou na validade técnico-

jurídica, isoladamente. Nem na concepção factual, axiológica ou normativa, tratadas

isoladamente.

A Teoria Tridimensional do Direito foi uma intuição da juventude. Intrigou-me o fato de grandes filósofos do direito italiano coincidirem na divisão da Filosofia do Direito, para fins pedagógicos, em três partes: uma destinada à teoria dos fenômenos jurídicos; outra cuidando dos interesses e valores que atuam na experiência jurídica e, finalmente, uma terceira relativa à teoria da norma jurídica. [...] Pois bem, minha pergunta foi esta: no fundo dessa divisão pedagógica, não se esconde um problema essencial quanto à estrutura da experiência jurídica? Não é necessário ir além de uma discriminação

7 Obra publicada pela editora Revista dos Tribunais em sua segunda edição datada de 1972.

16

metodológica para se alcançar a realidade jurídica em si? Foi essa pergunta, nascida nos bancos acadêmicos de minha Faculdade, que ficou provocando meu subconsciente durante muito tempo. [...] Foi só em 1940 que, na realidade, pensei que o Direito não pode ser concebido à maneira de Kelsen, como uma simples norma. Então, tive a ousadia de me contrapor ao maior jurista do nosso século, que é sem dúvida Hans Kelsen. (REALE, 2001, p. 117)

Para Reale, havia uma relação entre essas validades e a fundamentação ética, ou

seja, para o Direito realmente ser válido formalmente, havia a necessidade de se

interrelacionar três elementos: o fato, o valor e a norma.

Como se vê, a teoria tridimensional do Direito surgiu da intuição inicial de que a divisão tripartida da Filosofia jurídica, acolhida por vários autores [...] ocultava um problema de fundo. Não bastava, porém, constatar a estrutura factual, axiológica e normativa da experiência jurídica, mas indagar tanto de sua razão de ser como de suas conseqüências em todos os quadrantes da Ciência do Direito. De "teoria tridimensional do Direito" só se pode falar, repito, quando se indaga da natureza de cada um dos fatores que se correlacionam na vida do Direito, dos característicos dessa correlação, a meu ver de ordem dialética. [...] Mas tudo isso estava ainda esboçado nos idos de 1940, exigindo perseverante pesquisa, ao longo de dezenas de anos de estudos. (REALE, 2001, p. 92)

Através da mudança de análise da teoria dos objetos foi que Miguel Reale

concebeu a sua Teoria Tridimensional concreta. "Da maior importância, no

desenvolvimento de minhas idéias, foi a meditação sobre a posição do 'valor' no quadro

da 'teoria dos objetos'" (REALE, 2001, p. 92).

Quando ele passa a reconhecer o valor como um objeto real, concreto, também

modifica seu entendimento acerca da relação entre fato, valor e norma8. É como se, a

partir desse momento, o valor fosse “chamado” a fazer parte da relação tridimensional.

Aparece aí a sua necessidade: este se torna elemento imprescindível à teoria.

“Reconhecida [...] a autonomia do valor [...] surge a necessidade de uma correlação

dialética entre os três fatores. A partir dessa tomada de posição, tornou-se plena a

compreensão do caráter dinâmico e concreto da tridimensionalidade, ficando superada a

perspectiva estática a que eu ficara preso”. (REALE, 2001, p. 59)

A partir dessa nova compreensão do valor, como objeto real, Reale passa a

enxergá-lo também como um objeto histórico, cultural. Faz-se, então, necessário que o

estudo da cultura receba um novo olhar9. Esta é, agora, um elo entre duas ordens: da

natureza e da sociedade, entre o fato e o valor. A ontologia estudando o fato e a

8 Tema constante do subtítulo 1.2.3. deste presente estudo. 9 A cultura será objeto de estudo do subtítulo 1.2.2. do presente estudo.

17

gnoseologia estudando o valor, já não podiam mais ser estudos estanques. Surge a

necessidade de uma união. E é nesse momento que “aparece” a ontognoseologia10.

Essa nova compreensão do valor permitiu-me nova compreensão da cultura [...] como um reino intercalado, para unir dois mundos (o da natureza e o do valor) ontológica e gnoseologicamente declarados incomunicáveis... Foi, propriamente, com a concepção da experiência jurídica em termos de dialética de implicação-polaridade ou complementaridade que as expressões correlatas “ontognoseologia” e “tridimensionalidade” se firmaram em meu espírito. (REALE, 2001, p. 60)

A partir daí, Miguel Reale inicia seu estudo sobre a Teoria Tridimensional que

envolve três elementos básicos: fato, valor e norma em uma dialética de

complementaridade. "A noção da estrutura tridimensional continuou atuando na minha

consciência, no meu espírito até que, em 1953, outra intuição apareceu na minha

experiência de pesquisador incansável. Essa idéia foi a dialeticidade dos três elementos.

[...] Posso confidenciar aos senhores que foi em 1953 que a Teoria Tridimensional

tornou-se madura com a dialeticidade dos três fatores". (REALE, 2001, p. 119, 121)

E é, então, nos idos de 1968 que ele publica a obra intitulada Teoria

Tridimensional do Direito11: "essa é, portanto, a minha maior vaidade. A vaidade de ter

sido fiel a uma intuição da juventude e ir levando adiante essa cogitação" (REALE,

2001, p. 122). Pode-se dizer que a teoria se resume no seguinte: um fato social valorado

dá origem a uma norma jurídica. Esse conjunto de fato social valorado mais norma é

conhecido como fato jurídico12.

Todos os elementos da teoria se integram em uma dialética de

complementaridade e essa dialética se apresenta de maneira dinâmica e não estática.

Essa "descoberta" só se deu posteriormente: "ora, foi na segunda metade da década de

cinqüenta que abandonei uma visão estática por uma visão dinâmica da experiência

jurídica, segundo uma dialética de complementaridade, conforme ficou constando da 1ª

edição de minha Filosofia do Direito, que é de 1953. Daí por diante, passou a ser

generalizado o emprego da expressão 'teoria tridimensional do direito'" (REALE, 2001,

p. 150).

É certo também que o citado filósofo faz um feliz paralelo entre os três 10 Para saber mais sobre a ontognoseologia: Reale desenvolve profunda explicação sobre o tema em sua obra Filosofia do direito, capítulos III, IV, XX e XXI. 11 Obra republicada inúmeras vezes, sendo também traduzida para outras línguas e publicada no exterior. 12 Isto não quer dizer que todos os fatos sociais valorados dêem origem à uma norma jurídica. Apenas os fatos que o grupo social entende que devam receber o status de norma jurídica, é que serão valorados dessa forma.

18

elementos acima referidos e a validade do Direito da seguinte maneira: à vigência da

norma corresponde à validade técnico-jurídica, à eficácia, a validade fática e ao

fundamento, a validade ética. Ou seja, há uma íntima relação entre esses aspectos da

validade do Direito (vigência, eficácia e fundamento) e o fato, o valor e a norma

(elementos da Teoria Tridimensional).

Assim sendo, afirma que a análise profunda dos diversos sentidos da palavra

Direito demonstra que há uma correspondência a três elementos básicos “discerníveis

em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como

ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em

sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de

Justiça)” (2007, p. 64, 65).

Dessa maneira, afirma ele que conseguiu resolver algumas das pendências

jurídicas (como a fundamentação do Direito, ou a inserção do valor entendido como

objeto cultural e não ideal, a concretização do Direito, entre outras questões) através da

sua teoria tridimensional.

Nas últimas décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente [...]; um valor, que confere determinada significação a esse fato [...]; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo. (REALE, 2007, p. 65)

Com a Teoria Tridimensional, Reale tentou superar as explicações unilaterais da

vida jurídica, tais como as unicamente fundadas em fato ou em norma, mostrando-se,

assim, na contramão do Positivismo Jurídico. No trecho que segue, ressalta as falhas

dessa corrente; opinião com a qual concordo.

Todas as dificuldades, que as explicações positivistas do Direito tentaram em vão superar, provêm, em grande parte, de uma confusão entre dois estudos da realidade social, da realidade social enquanto é e da realidade social enquanto deve ser, e da indevida redução do fato à norma ou da norma ao fato, com a confusão de juízos de valor com juízos de existência. (REALE, 1972, p. 135)

As diferenças entre a realidade social enquanto é (mundo da natureza; fato; juízo

de existência) e a realidade social enquanto deve ser (mundo social; valor; juízo de

19

valor) serão objeto de estudo do subtítulo 1.2.1.1.

1.2 Conceitos

Para uma melhor compreensão acerca da Teoria Tridimensional do Direito de

Miguel Reale, importante é conhecer, ao menos que de maneira superficial, alguns

conceitos ligados a sua doutrina. São eles: sujeito, conhecimento, verdade, a teoria dos

objetos (ser e dever ser), cultura, poder e Direito.

1.2.1 Sujeito, conhecimento e verdade

Um dos principais problemas apresentados pela Filosofia em todos os tempos é a

questão da verdade. Para realizar uma abordagem, ainda que superficial sobre a

verdade, é necessário perquirir conceitos como “sujeito” e “conhecimento”, na doutrina

do filósofo em questão, para se chegar até a sua concepção de verdade.

Reale é um filósofo contemporâneo que parte do princípio que é possível

conhecer. Por isso, existem as ciências e elas não são questionadas do ponto de vista de

sua existência e legitimidade, tampouco de sua valia.

É óbvio que, se existem as ciências, é porque é possível conhecer. Se existem a Matemática, a Física, a Biologia etc., é porque o homem tem uma conformação tal que lhe é dado conhecer a realidade com certa margem de segurança e objetividade, demonstrando o poder — inerente ao espírito — de libertar-se do particular e do contingente, graças às sínteses que realiza. Ora, o valor do conhecimento pode e deve ser apreciado em dois planos distintos: o transcendental e o empírico-positivo. Este condicionado por aquele. As condições primordiais do conhecimento são objeto da parte da Teoria do Conhecimento que denominamos Ontognoseologia. (REALE, 1994, p. 26)13

13 Miguel Reale desenvolve o tema da ontognoseologia, com mais profundidade em sua obra Filosofia do direito, capítulos III, IV, XX e XXI, como já afirmado acima (nota 10). Porém, para que o conceito não fique vazio (dentro do contexto deste estudo), transcreve-se as palavras do próprio filósofo: “Ontognoseologia é a teoria transcendental do conhecimento, cujo problema essencial é o da correlação primordial entre pensamento e realidade, entre o sujeito cognoscente e algo a conhcer. Podemos, pois, conceituar a Ontognoseologia como sendo a doutrina do ser enquanto conhecido e das condições primeiras do pensamento em relação ao ser” (REALE, 1994, p. 29).

20

Mas, ainda com relação ao conhecimento e sua possibilidade, Reale indaga: “que

é que se conhece? Como se conhece? Até que ponto o conhecimento do real é válido e

certo? Quais as atitudes de nosso espírito diante daquilo que é conhecido? Eis aí uma

série de perguntas que se põem quanto ao problema do conhecimento. Não perguntamos

se vale particularmente a ciência, pois é evidente a sua valia, mas sim como vale em

sentido universal, em razão da realidade que explica” (1994, p. 30).

A contemporaneidade, para Reale, estaria preocupada com a superação da

abordagem unilateral do conhecimento: a análise do sujeito que conhece, ou a análise do

objeto a ser conhecido. “Consoante nosso entendimento, a Filosofia contemporânea

apresenta tendência muito acentuada no sentido de superar explicações mais ou menos

unilaterais, que ora apontam para o sujeito, ora para o objeto” (REALE, 1994, p. 125).

Uma dúplice análise, ou melhor, uma análise única sobre dois aspectos deve ser

feita: o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. A abordagem dessa duplicidade

do conhecimento é chamada, por Reale, de ontognoseologia. A ontognoseologia seria a

integração destas duas análises: a ontologia (strito sensu)14 que faz a análise do objeto a

ser conhecido, ou do conhecimento em si e a gnoseologia, que faz a análise do sujeito15.

A Ontognoseologia desdobra-se, por abstração, em duas ordens ou momentos distintos de pesquisas: ora indaga das condições do conhecimento pertinentes ao sujeito que conhece (Gnoseologia); ora indaga das condições de cognoscibilidade de algo, ou, por outras palavras, das condições segundo as quais algo torna-se objeto do conhecimento, ou, em última análise, do ser enquanto conhecido ou cognoscível (Ontologia, tomada esta palavra em sentido estrito). Poderíamos, em síntese, dizer que a Ontognoseologia desenvolve e integra em si duas ordens de pesquisas: uma sobre as condições do conhecimento do ponto de vista do sujeito (a parte subjecti) e a outra sobre essas condições do ponto de vista do objeto (a parte objecti). Mais tarde ver-se-á que a Ontognoseologia, após essa apreciação de caráter estático, culmina em uma correlação dinâmica entre sujeito e objeto, como fatores que se exigem reciprocamente segundo um processo dialético de complementaridade. (REALE, 1994, p. 30)

E, assim, a Filosofia se distingue das ciências por se dedicar à ontologia e à

gnoseologia. A Filosofia investiga uma verdade; já as ciências, investigam várias

verdades. “Não é demais acrescentar que, a nosso ver, a investigação filosófica

14 Cumpre informar qual o sentido da palavra “ontologia” que é aqui utilizado por Reale: “outro esclarecimento ainda se torna necessário: é quanto ao sentido estrito que aqui estamos emprestando à palavra Ontologia, enquanto que em sentido lato tradicional, como veremos, se refere à teoria do ser, parte geral da Metafísica. Em sua acepção estrita, por conseguinte, a Ontologia se contém no âmbito da Teoria Geral do Conhecimento” (REALE, 1994, p. 32). 15 “Ora, se a Gnoseologia diz respeito à capacidade ou às condições do sujeito, já a Ontologia refere-se às estruturas ou formas dos objetos em geral” (REALE, 1994, p. 175).

21

pressupõe pelo menos uma verdade — admitida à vista das verdades das ciências”

(1994, p. 13).

O sujeito, então, somente pode conhecer porque possui essa capacidade e porque

o objeto, por outro lado, se faz passível de ser conhecido.

O conhecimento depende, pois, de duas condições complementares: — um sujeito que se projeta no sentido de algo, visando a captá-lo e torná-lo seu; algo que já deve possuir necessariamente certa determinação, certa estrutura "objetiva" virtual, sem a qual seria logicamente impossível a captação. [...] O sujeito não recebe de algo, passivamente, uma impressão que nele se revele como "objeto", nem algo se transfere ao plano do sujeito, reduzindo-se às suas estruturas subjetivas. Sob o estímulo de algo, e na medida e em função de condições subjetivas e histórico-sociais — pois o realismo ontognoseológico não olvida a inevitável condicionalidade social e histórica de todo conhecimento —, o sujeito, de certa maneira, "põe" o objeto, que pode não corresponder integralmente a algo, mas a algo com certeza sempre corresponde. (REALE, 1994, p. 126, 127)

O sujeito realeano é um indivíduo que conhece o objeto e o valora. Ele é um ser

axiológico por natureza. E sendo o sistema jurídico fruto da razão humana, não há como

dissociar o valor da fundamentação do Direito.

A idéia de valor e de dever ser nos conduz diretamente ao homem, assim como a simples idéia de homem implica a idéia de valor. Não seria possível compreender a idéia de homem só mediante a categoria de ser. O ser e o dever ser no homem se unem. [...] O homem só se concebe enquanto é e deve ser. Da análise da natureza racional do homem e da consideração de que o homem é por necessidade um animal político, resulta a idéia de que cada homem representa um valor e que a pessoa humana constitui o valor-fonte de todos os valores. É um fato e verificação imediata que nós não somos capazes de viver sem atribuir valor às coisas e aos atos e sem neles reconhecer valores positivos ou negativos. [...] A idéia de pessoa humana, a idéia de que cada homem tem uma individualidade racional que como tal deve ser respeitada, eis o valor por excelência, aquele que podemos chamar valor-fonte. (REALE, 1972, p. 304, 305) [grifo nosso]

O valor de onde provém toda essa fundamentação do Direito está no próprio

homem. Para Reale, a pessoa humana é o valor-fonte de todos os valores. "Pensar [...] o

homem como ente essencialmente histórico, é afirmá-lo como fonte de todos os

valores". (REALE, 2001, p. 80) [grifo nosso]

Essa expressão valor-fonte se justifica pelo fato de que o ser do homem é o seu

dever ser, e dizer isso "é reconhecer a raiz ontológica do problema do valor" (REALE,

2001, p. 138). O homem é, dentre todos os entes, o único que é e deve ser e, além disso,

é o seu dever ser de uma forma originária (por isso, fonte).

22

Observo, desde logo, que a colocação de fato, valor e norma, menos como elementos do que como momentos de um processo, vinha confirmar que, sendo o Direito uma dimensão da vida humana, compartilhava, ou melhor, expressava a dialeticidade do homem, compreendido como "o único ente que originariamente é e deve ser", ou, por outras palavras, como "ente, cujo ser é o seu dever ser". (REALE, 2001, p. 97)

E Reale possui uma visão muito própria da idéia de pessoa humana, como ser de

possibilidades e de escolhas, sendo inerente ao seu ser a valoração (justamente por estar

inserido no mundo da liberdade, da ordem humana). "A idéia de pessoa, não [é]

entendida como substância dogmaticamente pressuposta à pesquisa filosófica, mas

como imanente possibilidade de escolha constitutiva de valores" (REALE, 2001, p. 82).

A própria Filosofia contemporânea comunga com a visão realeana de homem.

Como referido pelo próprio Reale: "tendo-se presente que a Filosofia contemporânea,

através de múltiplos e contrastantes caminhos, viera salientar 'a natureza axiológica' do

ser humano e, mais ainda, a sua característica de 'ser de situação'" (2001, p. 98). Por

isso, a teoria de Reale é tão atual e atende tão bem aos anseios do homem na

contemporaneidade.

Volve-se, então, ao fulcro da cultura, à pessoa como valor-fonte, mas sem as peias de uma compreensão estática do homem e da razão, em um amor concreto pelo passado e pelo futuro. Nem Kant, nem Hegel, digamos assim, nos satisfazem, mas é mister partir deles para superá-los, a fim de tentar responder ao nosso problema, ao mais angustiante de todos os problemas, que é o do homem e o da comunidade. [...] A tarefa que se nos antolha não é por certo a de volver à estática concepção substancialista da pessoa, mas antes a de superar, em nova compreensão, o valor da pessoa e o valor da história, conciliando a radical liberdade constitutiva de valores, que é o homem enquanto pessoa (tal como Kant nos revelou), com o drama histórico das pessoas coexistentes (que Hegel quis abranger em poderosa unidade integrante). Pessoa e convivência histórico-social são termos que se exigem reciprocamente, visto como - e este ponto é essencial - pôr-se como pessoa é pôr-se como história, como alteridade, como comunidade, e a redução de uma à outra romperia a unidade concreta, o mesmo resultado se prevalecesse uma sobre a outra. (REALE, 2001, p. 136, 137)

Em suma: “todo conhecimento envolve uma relação entre o sujeito que conhece

e algo que ao ser conhecido, é posto como objeto. O sujeito, por conseguinte, dirige-se

para fora, visando trazer para si "aspectos" de algo, segundo várias vias ou formas”

(1994, p. 130). Ao conhecer, o sujeito realiza, também, um ato de valoração do objeto.

Diante dessa breve explanação sobre o sujeito, faz-se uma análise, em Reale,

sobre o objeto na relação dinâmica do conhecimento. “O nosso estudo vai consistir

exatamente em saber quais as espécies de objeto que podem ser tratadas pelas ciências.

23

Esta indagação poderia também ser expressa da seguinte maneira: — Que espécies de

realidades se conhecem? Que espécies de objetos os sujeitos dos juízos mencionam?”

(1994, p. 177).

Reale faz, então, toda uma larga investigação daquilo que denomina “Teoria dos

Objetos”, da distinção do ser e do dever ser.

Concluída a exposição da matéria relativa à Gnoseologia. já podemos passar ao estudo da Ontognoseologia "a parte objecti", ou seja, à Ontologia. Este termo, em sua acepção clássica, como já o dissemos, mas não é demais repetir, refere-se à parte geral da Metafísica, à teoria do ser enquanto ser. Não é nesse sentido lato que vamos empregar o vocábulo, mas sim para indicar a teoria do ser enquanto objeto do conhecimento, do ser enquanto termo de correlação no ato cognitivo, de modo que a Ontologia de que vamos cuidar pode ser considerada formal, consoante foi anteriormente esclarecido. A parte nuclear da Ontologia, estrito senso, é a Teoria dos Objetos, à qual se acrescentam outras indagações, como, por exemplo, as referentes aos nexos ou relações entre as diversas regiões de objetos. Neste estudo, limitar-nos-emos à Teoria dos Objetos propriamente dita, cuja finalidade é determinar qual a natureza ou estrutura daquilo que é suscetível de ser posto como objeto do conhecimento. (REALE, 1994, p. 175)

1.2.1.1 A teoria dos objetos (ser e dever ser)

Reale iniciou seu estudo sobre a teoria dos objetos, acrescentando aos objetos

naturais (físicos e psíquicos) e ideais (matemáticos e lógicos) os valores. Assim,

somando-se os três tipos de objetos citados, poder-se-ia justificar a existência de outros

objetos, os culturais. Para Reale, então, os objetos culturais são entendidos como

aqueles que são enquanto devem ser, ou seja, são uma síntese dos objetos naturais e

ideais, acrescidos dos valores16.

Mas, Reale foi modificando sua maneira de entender os valores aos poucos.

Inicialmente, ele entendia os valores (acompanhado por grandes pensadores, por

exemplo, Platão17) como objetos ideais. Dessa maneira, os valores ficavam sem espaço

na bidimensionalidade, a qual se justificava em virtude do fato ser suporte à norma. O

valor, assim, funcionava como mero elemento de qualificação da norma.

Foi analisando a chamada “teoria dos objetos”, à luz das categorias de ser e dever ser, e visando a uma síntese superadora, que observei a impossibilidade

16 Ver anexo B deste estudo. 17 Filósofo grego (428/427-348/347).

24

de continua-se a aceitar a tese [...] sobre os valores como “objetos ideais”. Na realidade, enquanto se reduz o valor a um objeto ideal, permanece-se numa posição bidimensional, com uma bifurcação em virtude da qual o fato é considerado mero suporte de uma norma jurídica, empregando-se o valor tão-somente como elementos de qualificação da norma e seu complemento. (REALE, 2001, p. 59)

Passando a conceber os valores como objetos culturais, é que Reale viu a

possibilidade de se concretizar a tridimensionalidade: "esta veio se tornando explícita e

nítida à medida que foi se revelando mais claramente minha compreensão do valor

como um objeto autônomo, irredutível aos objetos ideais, como os lógicos e os

matemáticos, ou seja, como entidades do mundo do 'dever-ser' e não do 'ser'" (REALE,

2001, p. 91).

A concepção de Reale, então, é a de que valor é dever ser e fato (juízo de

realidade) é ser. Dito em outras palavras: o dever ser (valor) pertence à ordem do

homem (social), já o ser, fato em si, pertencente à ordem da natureza.

O termo ser, com efeito, é empregado em um sentido particular, para indicar as relações que se estabelecem segundo a lei de causalidade, isto é, diz respeito ao estudo dos fenômenos que se desenrolam sem referencia a fins que impliquem uma orientação à conduta. [...] O mundo do ser é, pois, o mundo governado por um sistema de relações constantes que constituem as leis e implicam a aceitação do postulado determinista como condição de sua cognoscibilidade. O dever ser, ao contrário, exprime sempre um imperativo (e não apenas um juízo hipotético indicativo, como pretende a Escola de Viena), uma norma que pode ou não ser seguida, mas que, seguida, realiza um valor, e, desobedecida, nega um valor. O mundo do dever ser é o da lei em sentido ético, ou seja, da norma estabelecida em razão de um fim e dirigida à liberdade do homem. É o domínio da finalidade e da liberdade, pois norma e determinismo absoluto são princípios irreconciliáveis. (REALE, 1972, p. 300, 301)

Isto porque, para Reale, repita-se, valor é um objeto real e não ideal. É um objeto

autônomo, irredutível aos objetos ideais. Sendo o valor “pertencente” à esfera do dever

ser, não pode ser pensado fora do plano da história. É, pois, “experiência espiritual, na

qual são discerníveis certas invariantes axiológicas” (REALE, 2001, p. 62).

Como já dito, seu entendimento acerca dos objetos foi sendo modificado aos

poucos já que, em suas primeiras obras, trata do valor como um objeto ideal e não

concreto. Objeto ideal ensejador de um afastamento na explicação da teoria do Direito

que, neste caso, só poderia ser concebido bidimensionalmente (com fato e norma).

Somente considerando-o isoladamente, como um objeto concreto e, por isso,

participante da teoria tridimensional, é que sua visão foi modificada.

25

A apresentação inicial do direito como “uma realidade bidimensional” [...] prende-se à circunstância de que não havia ainda chegado a uma conclusão, destinada a marcar ponto decisivo na evolução do meu pensamento, quanto à necessidade de se considerar o valor um tertium genus de objeto, ao contrário daqueles que o apresentavam e ainda o apresentam como uma espécie de objetos ideais, ao lado, por conseguinte, do elemento normativo. (REALE, 2001, p. 59)

Reale, portanto, não concorda com a teoria dos objetos ideais. Entende o valor

como um objeto dotado de objetividade, ou seja, de objetividade histórica, tal como este

se desenvolve no mundo da cultura (na ordem humana ou social)18. "É claro que essa

compreensão seria impossível se o valor tivesse continuado a ser para mim um objeto

ideal, nos moldes platônicos [...]. Ponto essencial de meu pensamento é o entendimento

do valor como aliquid dotado de objetividade, mas de objetividade histórica, tal como

esta se desenvolve no mundo da cultura" (REALE, 2001, p. 153).

Através desse raciocínio, Reale analisa o ser e o dever ser não em uma dualidade

bipolar, como alguns filósofos modernos do Direito já haviam feito, mas como

expressões que se complementam.

Enquanto os filósofos do Direito mantiverem um dualismo irredutível entre ser e dever ser, apresentando-os tão-só como duas categorias lógicas a priori, foi impossível fundar uma teoria realista do Direito sobre as bases de um humanismo cultural. O que é necessário é não confundir o ponto-de-vista lógico com o ontológico. Abstração feira das doutrinas que, como a de Kelsen, reduzem o dever ser à normatividade puramente lógica, nós podemos dizer que a Filosofia do Direito contemporânea liga o dever ser à idéia de fim ou de valor, e o ser à idéia de sucessão de ordem causal. (REALE, 1972, p. 300)

Entretanto, para o pensador, ser e dever ser não são institutos incomunicáveis.

Ao contrário, entende que ser (fato) e dever ser (valor) são conjugáveis (elementos

conciliáveis): “a irredutibilidade entre ser e dever ser, que é o estribilho do neokantismo

especialmente no plano do pensamento jurídico, não tem razão de ser, visto como – já

o dissemos – o primeiro liga-se ao problema da realidade (relativo aos juízos de

realidade) e o segundo liga-se à noção de fim (relativa aos juízos de valor)” (REALE,

1972, p. 301) [grifo nosso].

Se o fato jurídico é o fato social valorado que deu origem a uma norma jurídica,

não há possibilidade de se dissociar os elementos fato social (ser) e valor (dever ser). Os

elementos da tridimensionalidade são participantes de uma dialética de

complementaridade. Em suma, a triangulação da Teoria Tridimensional se dá em uma

18 Objeto de estudo do subtítulo1.2.2 do presente estudo monográfico.

26

integração dialética de fato e valor, conciliados na síntese criadora da norma.

O Direito, como fenômeno, em verdade, só pode ser compreendido como síntese de ser e de dever ser. É uma realidade bidimensional de substratum sociológico e de forma técnico-jurídica. Não é, pois, puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe da uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente segundo uma ordem de valores. A regra de Direito, por conseguinte, não é criação arbitrária do espírito, nem fruto de um capricho de déspota, porquanto, para ser tal, deve necessariamente pressupor um valor a realizar, a análise das condições culturais, a apreciação racional das soluções que os diferentes casos comportam, para que o valor ético do preceito emanado de uma autoridade competente possua real eficácia no seio do grupo. (REALE, 1972, p. 302, 303) [grifo nosso]

Por fim, cabe lembrar que não há que se falar na conversão do fato em valor. O

fato social é simplesmente valorado pela própria sociedade à qual pertence (em um

tempo e um determinado lugar), mas, essa valoração não significa uma redução do fato

ao valor.

"O fato, em suma, é 'valorado', (recebe uma qualificação axiológica), mas

jamais se converte em valor. Ao mesmo tempo, por conseguinte, em que se vincula o

fato ao valor, reconhece-se a recíproca irredutibilidade. O erro do empirismo jurídico

consiste, em verdade, em reduzir o valor ao fato, porque no fundo estabelece uma

sinonímia entre valor e valoração, ou ato de valorar" (REALE, 2001, p. 95) [grifo

nosso].

1.2.2 A cultura

Miguel Reale parte do entendimento que existem duas ordens distintas: a ordem

natural (da natureza) e a ordem humana (do homem).

A ordem da natureza (dita por ele realidade natural – 2007, p. 24) é

compreendida como a ordem da necessidade, ou seja, do que acontece necessariamente.

É necessário o nascimento, a morte, o decurso do tempo etc. A natureza, em suma,

possui uma ordem necessária.

Já a ordem humana (chamada de realidade humana, cultural ou histórica –

2007, p. 24) é a ordem da sociedade, da liberdade. O homem é livre para dispor de sua

ordem na sociedade. Nesta ordem estão incluídas as leis e as normas. A ordem

27

normativa é elaborada pelo próprio homem utilizando-se de sua esfera de

discricionariedade e de liberdade. Também está incluída nesta ordem toda a produção

cultural e histórica, fruto, também, da mesma liberdade humana.

Reale atribui essa divisão de ordens a Kant19 que, segundo ele, ao separar o

“campo da ética” (Crítica da Razão Prática) do “campo da ciência” (Crítica da Razão

Pura) (ciência aqui entendida como conhecimento – episteme) criou uma ruptura entre a

ordem humana e a ordem da natureza. “Com Kant se dá uma fratura no mundo

fenomenal, devido à separação cortante por ele feita entre o “mundo da liberdade” e o

“mundo da natureza”, ou, por outras palavras, entre o “campo da ética” e o “campo da

ciência”, de tal modo que somente com relação a este seria possível falar-se em

experiência, propriamente dita” (REALE, 2001, p. 69).

Ainda para Reale, há coisas no universo que são encontradas em seu estado

natural, bruto, ou seja, coisas que não possuem a intervenção do ser humano. Já outras,

são resultado da mão do homem. “Constituem-se, então, dois mundos complementares:

o do natural e o do cultural; do dado e do construído; do cru e do cozido” (2007, p. 24).

É neste contexto que Reale insere a cultura, como elemento construído pelo

homem. Para ele “cultura é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e

espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para

modificar-se a si mesmo” (2007, p. 25).

Pode-se perceber claramente que é com apoio na natureza que o homem constrói

sua cultura e sua história20. Dessa maneira, vê-se que as duas ordens (da natureza e

humana) se complementam. O homem, por vezes, tenta controlar a ordem natural em

seu favor, por ter a liberdade para tal. Mas, em outros momentos, a natureza se mostra

mais forte (e maior) em sua ordem da necessidade.

E é assim, com essa eterna complementação, que o ser humano vai constituindo

a si mesmo e a sua humanidade. “A sociedade em que vivemos é, em suma, também,

realidade cultural e não mero fato natural” (REALE, 2007, p. 31).

A distinção clara que se tem das duas ordens pode ser analisada em virtude das

modificações que sofrem ao longo do tempo. Necessariamente, a natureza “funciona”

da mesma maneira por longos períodos. A ordem humana, ao contrário, se modifica de

19 Filósofo alemão (1724-1804). 20 Reale diverge neste ponto de Savigny (1779-1861). O pensador brasileiro acredita que o homem tem participação efetiva na sua história e na cultura, diferentemente do filósofo da Teoria Histórica do Direito, que afirma que a história é única (não existira a história individual, de cada um dos homens; não haveria a participação humana na sua própria história).

28

tempos em tempos, e de um lugar para outro, em virtude da liberdade do homem. O

aspecto cultural indica bem isso: em cada tempo e em cada espaço tem-se uma cultura e

uma história diferentes.

“A sociedade das abelhas e dos castores pode ser vista como um simples dado da

natureza, porquanto esses animais vivem hoje, como viveram no passado e hão de viver

no futuro. A convivência dos homens, ao contrário, é algo que se modifica através do

tempo, sofrendo influências várias, alterando-se de lugar para lugar e de época para

época” (REALE, 2007, p. 31).

Não é preciso salientar que em decorrência dessa análise, pode-se inferir que o

Direito, então, é uma ciência cultural, participante da ordem social. “É evidente que o

Direito, sendo uma ciência social, é também uma ciência cultural” (REALE, 2007, p.

31). Sendo social e cultural, deve o Direito ser, também, transpersonalista, se baseado

não só valor da pessoa, mas no todo da obra cultural.

Vemos, pois, que não assiste razão àqueles que contrapõem o homem à cultura, sustentando que o Direito deve ser transpersonalista, isto é, não deve se assentar sobre o valor da pessoa humana, mas sobre a obra cultural em que o homem está integrado e na qual o homem adquire consciência dos valores mais altos, inclusive do que é representado pela sua própria personalidade. A improcedência desse antagonismo revela-se à simples consideração que é impossível conceber a cultura sem o homem. Se a cultura representa o conjunto das coisas valiosas, ou seja, das realidades integradas em um sistema de valores, e se a cultura representa um patrimônio de bens que uma geração recebe de outra com o dever de transferi-la mais alta à seguinte, cada geração serve à cultura para bem servir ao homem e à humanidade na sucessão do tempo. Quem antepõe personalismo a transpersonalismo esquece que a pessoa é, antes de mais nada, uma realidade moral que não se circunscreve ao casulo de seu bem particular, mas cresce e avulta à medida que serve ao bem da coletividade inteira. (REALE, 1972, p. 309, 310)

Por fim, importa ressaltar que a primeira inserção da cultura na fundamentação

do Direito foi feita como um elemento de conexão entre a realidade (o mundo da

natureza, dos fatos – ser) e o valor (o mundo do homem – dever ser)21.

A inserção desse elo de conexão entre os dois mundos atribui-se aos

neokantianos: “apesar de sua deficiência, representou um grande passo a idéia dos

neokantianos de interpor, entre realidade e valor, um elemento de conexão: a cultura,

significando o complexo das realidades valiosas” (REALE, 2001, p. 70).

21 "No que se refere à minha posição pessoal foi ela, de início, influída pela doutrina de Radbruch, no quadro de um culturalismo genérico, cujo grande mérito consistiu em demonstrar a inexistência de antinomia entre Filosofia do Direito, Ciência do Direito e Sociologia Jurídica, mas antes a necessidade de sua correlação numa visão integral do Direito" (REALE, 2001, p. 149).

29

Mas, para Reale, não bastou essa visão da cultura como elemento intercalar. A

partir de seus estudos mais aprofundados, começou a perceber a importância da cultura

como elemento inserido, sim, na tridimensionalidade, dando base ao valor, mas

envolvido na relação de complementaridade exigida na teoria tridimensional.

Desde o primeiro contato com a Filosofia dos valores, convenci-me da improcedência da doutrina da cultura como elemento intercalar, inserido entre a natureza e o valor, parecendo-me o resultado de um processo cognoscitivo e abstrato, que não correlaciona devidamente sujeito e objeto como termos que se exigem reciprocamente numa relação de complementaridade, além de não superar outro abismo, o posto entre ser e dever ser na vertente ética da ação. (REALE, 2001, p. 71)

Com essa última análise, compreende-se a importância da cultura na teoria

realeana e, como foi a partir dela que o filósofo brasileiro concebeu sua doutrina

jurídico-filosófica.

1.2.3 O Direito (A Teoria Tridimensional)

Para Miguel Reale, o Direito (como não poderia deixar de ser), só existe no meio

social. Ele é um fato ou um fenômeno social. Em cada comportamento humano há a

presença do Direito, do fenômeno jurídico. “O Direito está pelo menos pressuposto em

cada ação do homem que se relacione com outro homem” (REALE, 2007, p. 5).

O Direito é que garante e sustenta os comportamentos humanos. E, para que essa

tutela seja possível, é que as regras foram “criadas”. As normas de direito são

“instrumentos de salvaguarda e amparo da convivência social” (REALE, 2007, p. 6).

Isso porque, para Miguel Reale (assim como para Hobbes), “enquanto houver homens

haverá lutas, choques de interesses, desencontros de opiniões, contrastes de vontades,

desacordos de apetites, incessantes renovações de litígios e repedidas rupturas da ordem

e da paz. Essas contingências põem o poder em função do direito e, em última análise,

põem o próprio problema do direito” (REALE, 1998, p. 234).

“Existem tantas espécies de normas e regras jurídicas quantos são os possíveis

comportamentos e atitudes humanas” (REALE, 2007, p. 6). Por esse motivo mesmo, o

Direito é eminentemente dinâmico e mutável: a cada dia ele se renova.

30

E, para Reale, ele é ciência, a ciência do Direito. E estaria ligado à cultura. Em

resumo, seria “a ordenação bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem

comum” (2007, p. 59).

Como já ressaltado linhas acima, Reale desenvolve sua pesquisa no âmbito das

questões da validade e dos fundamentos do Direito. E é a partir desse estudo que

desenvolve a sua Teoria Tridimensional do Direito.

Para equacionar os elementos da tridimensionalidade, Miguel Reale aborda o

problema da validade do Direito (ou validade da norma jurídica). “A necessária

complementariedade das pesquisas do filósofo, do sociólogo e do jurista revela-se, de

maneira bem marcante, quando se estuda o problema da validade do direito” (REALE,

2001, p. 14).

Ele acentua os três elementos da tridimensionalidade da seguinte maneira: a

norma corresponde à vigência, o fato à eficácia e o valor ao fundamento. Melhor

dizendo: a vigência da norma corresponde à validade formal ou técnico-jurídica, a

eficácia à validade fática e o fundamento axiológico à validade ética22.

“Fácil é perceber que a apreciação ora feita sobre vigência, eficácia e

fundamento vem comprovar a já assinalada estrutura tridimensional do Direito, pois a

vigência se refere à norma; a eficácia se reporta ao fato, e o fundamento expressa

sempre a exigência de um valor” (REALE, 2007, p. 115, 116).

Cabe ressaltar que, em decorrência da Teoria Tridimensional, Miguel Reale

conceitua o Direito de três formas diferentes, com maior ênfase em cada uma das

conceituações de fato, valor e norma.

Quando dá maior ênfase ao fato, diz que o “Direito é a realização ordenada e

garantida do bem comum numa estrutura tridimensional bilateral atributiva” (2007, p.

67) [grifo nosso]. Ao dar maior ênfase ao valor, afirma: “Direito é a concretização da

idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como

fonte de todos os valores” (2007, p. 67) [grifo nosso]. E, por fim, quando trata de

enfatizar a norma, “Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva

das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo

valores” (2007, p. 67) [grifo nosso].

Conclui que só se pode compreender o Direito integralmente numa relação

dinâmica desses três elementos, que são as dimensões da experiência jurídica. O Direito

22 Ver anexo A deste presente estudo.

31

pode ser entendido, então, como "a integração normativa de fatos segundo valores"

(REALE, 2001, p. 97) [grifo nosso].

Vê-se, assim, que os três elementos estão inseridos na validade do Direito, a

saber: vigência (da norma), eficácia (do fato) e fundamento (do valor). “A validade de

uma norma de direito pode ser vista sob três aspectos: o da validade formal ou técnico-

jurídica (vigência), o da validade social (eficácia ou efetividade) e o da validade ética

(fundamento)” (REALE, 2007, p. 105).

A validade é, então, um complexo com aspectos de vigência, eficácia e

fundamento. Esses três aspectos essenciais da validade são os requisitos para que a

norma jurídica seja legitimamente obrigatória. Há, na norma, uma relação necessária

entre validade técnico-jurídica (norma), validade fática (fato) e validade ética (valor)23.

“Em resumo, são três os aspectos essenciais da validade do Direito, três os

requisitos para que uma regra jurídica seja legitimamente obrigatória: o fundamento, a

vigência, e a eficácia, que correspondem respectivamente, à validade ética, à validade

formal ou técnico-jurídica e à validade social” (REALE, 2007, p. 115). Segue, pois, o

estudo de cada um dos três elementos em separado.

1.2.3.1 Elemento norma24

Para Reale, a norma jurídica "nasce" da tensão entre fato e valor, do processo

factual-axiológico: "o meu conceito de norma surgiu na imanência do processo factual-

axiológico, como uma relação concreta e não como simples e abstrato enunciado

lógico" (REALE, 2001, p. 96). Vê-se, pois, daí, a grande diferença em relação à teoria

kelseniana, que concebe a validade da norma como sua existência factual, pura e

simplesmente: "desde o início, minha posição foi de aberto contraste à concepção

kelseniana de norma jurídica como uma proposição lógica, não me satisfazendo nem

mesmo o segundo Kelsen, quando a validade da regra de direito já surge em correlação

com sua eficácia, no pressuposto, outrossim, da efetividade do ordenamento jurídico

global" (REALE, 2001, p. 96).

23 Ver anexo A deste presente estudo. 24 Importante deixar claro, inicialmente, que norma, para Miguel Reale, pode ser entendida, aqui, como sinônimo de lei.

32

Para Reale, a norma jurídica corresponde à vigência em sentido amplo (validade

técnico-jurídica) do Direito. A vigência de uma norma é, pois, o conjunto de requisitos a

que ela (norma) deve satisfazer para ser obrigatória25. “Vigência ou validade formal é a

executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos

essenciais à sua feitura ou elaboração” (REALE, 2007, p. 108). Para a norma vigorar

deverá, então, reunir três elementos:

a) a legitimidade do órgão (deverá ser elaborada por um órgão competente que é

legítimo por ter sido constituído para tal fim – artigos 44 a 58 da Constituição

Federal de 1988).

b) a competência em razão da matéria (também chamada competência ratione

materiae do órgão, isto é, a matéria objeto da norma deve estar contida na

competência do órgão – artigos 22 a 24 da Constituição Federal);

c) a legitimidade do procedimento (a norma deve observar os processos ou

procedimentos estabelecidos em lei para sua produção – artigos 59 a 75 da

Constituição Federal).

O primeiro [requisito de vigência da norma] se refere à ordem das competências do poder político, à legitimidade do órgão emanador da regra. É necessário que o órgão que promulgou a regra tenha legitimidade para fazê-lo, por ter sido constituído para tal fim. [...] Podemos, por conseguinte, afirmar que sem órgão competente e legítimo não existe regra jurídica válida, capaz de obrigar compulsoriamente os cidadãos de um país. Ao lado da competência subjetiva, que se relaciona com o órgão, temos a competência que diz respeito à própria matéria legislada. [...] É necessário, ainda, um terceiro requisito: que o poder se exerça, também, com obediência às exigências legais: é a legitimidade do procedimento. (REALE, 2007, p. 109, 110)

Vigente será a norma se emanada do poder competente com obediência aos

trâmites legais. Logo, o valer de uma norma não depende da existência real e concreta

das condutas que prescreve. Mesmo descumprida, ela vale. Será válida a norma se a

autoridade legiferante for tecnicamente competente e se agiu em conformidade com as

normas de sua competência legislativa. “Quando uma regra de direito obedece, em sua

gênese, a esses três requisitos, dizemos que ela tem condições de vigência” (REALE,

2007, p. 110).

A validade técnico-jurídica pode se dar no tempo e no espaço. Dizer que uma

25 Ver anexo A deste presente estudo.

33

norma vale é a mesma coisa que dizer que ela vigora num certo período de tempo26 e

para um determinado espaço27. Ou seja, que se refere a um comportamento que apenas

pode verificar-se num dado lugar e num certo momento.

Não há como entender vigência e eficácia da norma sem finalidade, sem objetivo

final. A justiça é a razão de ser ou o fundamento da norma, porque é impossível

conceber uma norma jurídica desvinculada dos fins que legitimam sua vigência e

eficácia (a justiça).

E a justiça se justifica por uma racionalidade ou conformidade racional às

situações, aos fatos concretos. Fatos concretos estes que (na linguagem realeana são

fatos sociais brutos) valorados, serão amparados por uma norma. A este conjunto se

denomina fato jurídico.

Não é dos valores enquanto tais, ou seja, enquanto diretamente apreensíveis pela intuição (lembre-se o fato normativo de Gurvitch) que resulta a obrigatoriedade das normas, mas sim da atividade racional que, captando os valores nos fatos, isto é, tais como se revelam através da experiência, os considera e atualiza como a fins, ou seja, convertendo-os em motivo racional de conduta. (REALE, 1972, p. 304) A regra de Direito, por conseguinte, obriga, primeiro, em virtude de seu fim ou de sua conformidade com o valor-fim do Direito [a Justiça]; segundo, por motivo de sua racionalidade ou conformidade racional com as situações objetivas (causas intrínsecas); e, por fim, devido à sua proveniência como ordem de uma autoridade legítima (causa extrínseca). (REALE, 1972, p. 315)

1.2.3.2 Elemento fato

Inicialmente, há que se fazer importante distinção, realizada pelo próprio Reale,

no sentido de diferenciar fato social de fato jurídico. “Tão grande é essa correlação

entre os fatos e o Direito que alguns juristas, sobretudo da Escola neo-empirista, são

levados a estabelecer uma falsa sinonímia entre fato e fato jurídico. É questão que deve

ser preliminarmente esclarecida” (REALE, 2007, p. 199).

Fato social é todo e qualquer fato que ocorra na sociedade, ou seja, a ocorrência

fruto de um grupo de pessoas, ou de um indivíduo, na sociedade. Na expressão realeana,

26 É a partir desse entendimento que se destacam conceitos extremamente importantes na teoria geral do Direito, tais como: vacatio legis, revogação (ab-rogação e derrogação) da norma, repristinação, retroatividade e irretroatividade da lei, ou seja, conceitos ligados à vigência da lei no tempo. 27 Ligado aos conceitos de territorialidade e territorialidade temperada, ou seja, à vigência da lei no espaço.

34

é fato bruto. “Bruto” porque ainda não foi valorado. Sabe-se que o fato social é

valorado por seus próprios membros e, por causa dessa valoração, é que nasce a norma

jurídica (a lei). Vê-se, pois, que quando se fala em fato social (bruto) ainda não se trata

de fato jurídico.

O elemento constituidor da tridimensionalidade é o fato social, acompanhado de

um valor (ou de valores), dando origem à norma. “O fato é dimensão essencial ao

Direito, mas, tal como a teoria tridimensional o reconhece, só uma de suas dimensões”

(REALE, 2007, p. 201).

“Devemos entender, pois, que o Direito se origina do fato, porque, sem que haja

um acontecimento ou evento, não há base para que se estabeleça um vínculo de

significação jurídica. Isto, porém, não implica a redução do Direito ao fato, tampouco

em pensar que o fato seja mero fato bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito,

são fatos humanos ou fatos naturais objeto de valorações humanas” (REALE, 2007, p.

200).

O que se entende por fato jurídico, então, é o conjunto de fato social valorado

que origina norma jurídica28. "Fato [jurídico] é tudo aquilo que na vida do direito

corresponde ao já dado ou ao já posto no meio social e que valorativamente se integra

na unidade ordenadora da norma jurídica, resultando da dialeticidade desses três fatores

o direito como 'fato histórico-cultural'" (REALE, 2001, p. 76).

Não deve o fato jurídico ser confundido com o fato bruto: “não há, em Direito,

fato bruto, pois o fato já deve conter algumas das notas valorativas que permitam a sua

correspondência ao fato-tipo previsto na regra de direito” (REALE, 2007, p. 203). O

fato jurídico é, pois, aquele fato ocorrido no grupo social que recebeu por este um grau

de importância tal (valoração) que repercutiu, de alguma maneira, no mundo jurídico.

28 Ressalta-se importante questão filosófica da qual Miguel Reale trata neste ponto do estudo. Vejamos. Em sua concepção, fato social é fato bruto, ou seja, fato ainda não valorado. Já fato jurídico é fato que repercute para o mundo do Direito, ou seja, é fato social que, valorado, dá origem a uma norma jurídica. Ora. Ontologicamente, fato tem existência (é). Já fato valorado é fenômeno, ou seja, constituição. O fato valorado tem a participação do sujeito em sua constituição, assim como o fenômeno. Se é do fato jurídico que nasce o Direito (tal qual o célebre brocardo romano afirma ex facto oritur jus, “o direito nasce do fato”), então, o Direito é fenômeno. O sujeito, inserido em um dado contexto sócio-cultural e histórico é constituído e constituidor do Direito. De acordo com o pensamento pós-kantiano, da contemporaneidade o Direito pode ser entendido, então, como fenômeno constituído desde a dialética tridimensional de fato, valor e norma. "À luz da epistemologia contemporânea, não há fato bruto ou fato puro, pois todo fato já implica um ângulo de captação, certa coloração teórica que torna possível a sua compreensão intelectiva. Desse modo, o fato, e notadamente o fato de que cuida o jurista, é algo que somente o é enquanto se situa no envolver da história, recebendo significado no contexto ou na estrutura em que ele ocorre" (REALE, 2001, p. 95).

35

Quando falamos, todavia, em fato jurídico, não nos referimos ao fato como algo anterior ou exterior ao Direito, e de que o Direito se origine, mas sim a um fato juridicamente qualificado, um evento ao qual as normas jurídicas já atribuíram determinadas conseqüências, configurando-o e tipificando-o objetivamente. Nada mais errôneo, por conseguinte, do que confundir fato com fato jurídico. Entendemos por fato jurídico todo e qualquer fato, de ordem física ou social, inserido em uma estrutura normativa. (REALE, 2007, p. 200)

Assim, o fato jurídico é aquele fato social que produz efeitos para o mundo do

Direito. Isto é, todo e qualquer fato que foi valorado e, por isso, deu origem a uma

norma jurídica. Portanto, ingressou na esfera do Direito.

Focalizando, porém, a questão sob o prisma particular que estamos considerando, podemos dizer que fato jurídico é todo e qualquer fato que, na vida social, venha a corresponder a o modelo de comportamento ou de organização configurado por uma ou mais normas de direito. O fato jurídico, em suma, repete, no plano dos comportamentos efetivos, aquilo que genericamente está enunciado no modelo normativo. (REALE, 2007, p. 201)

Ainda no que tange ao estudo do fato, conforme já tratado acima, em relação à

validade do Direito, este (fato) corresponde à eficácia da norma.

O que Miguel Reale diz é que não basta a validade técnico-jurídica para que a

norma jurídica cumpra sua finalidade, para que o Direito seja plenamente válido. Há,

também, que ser eficaz. É o como se dá essa eficácia que será tratado a partir de agora.

Consiste a eficácia no fato real da aplicação da norma, tendo, portanto, um

caráter experimental (de reconhecimento), por se referir ao cumprimento efetivo da

norma pela sociedade. Em outras palavras, trata-se do reconhecimento da norma pela

comunidade, no plano social, ou dos efeitos sociais que ela gera pelo seu

cumprimento29.

A eficácia social é a efetiva correspondência da norma ao querer coletivo, ou dos

comportamentos sociais ao seu conteúdo. Por isso Reale diz que “o Direito deve ser

socialmente eficaz” (2007, p. 113). No entender de André Franco Montoro “é a

influência do Direito sobre a sociedade” (2005, p. 680). Essa influência na sociedade se

dá tendo o Direito o efetivo reconhecimento pela comunidade.

Conforme a espécie de reação da comunidade, no tocante ao reconhecimento ou

recusa da norma estabelecida, podem ocorrer as seguintes situações: a lei é respeitada e

cumprida, sendo punidos os transgressores; a lei fica sem aplicação ou como “letra

morta”; ou, ainda, a lei provoca uma reação revolucionária, isto é, os que a devem

29 Ver anexo A deste presente estudo.

36

cumprir não apenas não o fazem, mas se rebelam contra ela.

As motivações pelas quais os membros das comunidades são levados a cumprir as normas jurídicas podem ser diferentes. Uns cumprirão a lei por motivos éticos, conscientes de que é seu dever respeitar o direito [...]. Outros ajustarão sua conduta aos ditames da lei, para evitar as sanções que ela impõe aos infratores. Outros, não querendo obedecer à lei, mas pretendendo evitar suas sanções, inventarão habilmente comportamentos para burlá-la. Outros, finalmente, violarão a lei e serão objeto de suas sanções. A punição é uma forma de cumprimento da lei. Em todos esses casos, a lei atuou como força social, produzindo efeitos múltiplos. Os casos em que a lei fica sem aplicação ou entra em desuso decorrem, em geral, da inadequação de seus preceitos à realidade social. [...] E, finalmente, os casos de reação revolucionária ou rebeldia contra os termos da lei, ou de outras normas jurídicas, explicam-se pelo contraste entre suas determinações e os interesses ou valores da comunidade. (MONTORO, 2005, p. 677)

Como se vê, casos há em que o órgão competente emite normas que, por

violentarem a consciência coletiva, não são observadas nem aplicadas. Estas normas,

então, só são cumpridas de modo compulsório. Em alguns casos também caem em

desuso consequentemente, têm vigência, mas não possuem eficácia espontânea.

Ocorre todavia, que os legisladores podem promulgar leis que violentam a consciência coletiva, provocando reações por parte da sociedade. Há leis que entram em choque com a tradição de um povo e que não correspondem aos seus valores primordiais. Isto não obstante, valem, isto é, vigem. Há casos de normas legais, que, por contrariarem as tendências e inclinações dominantes no seio da coletividade, só logram ser cumpridas de maneira compulsória, possuindo, desse modo, validade formal, mas não eficácia espontânea no seio da comunidade. (REALE, 2007, p. 112)

Vigência não se confunde com eficácia. Logo, nada obsta que uma norma seja

vigente sem ser eficaz, ou que seja eficaz sem estar vigorando. A norma deixará de ser

vigente, se permanecer duradouramente ineficaz. Há um mínimo de eficácia, então, que

é condição de vigência da norma. Logo, se ela nunca puder ser aplicada pela autoridade

competente nem obedecida pelo seu destinatário, perderá sua vigência.

Um mínimo de eficácia é sempre exigido da norma. É, portanto, a possibilidade

da norma poder ser obedecida e, em não sendo obedecida pelos indivíduos a ela

subordinados, ser aplicada pelos órgãos jurídicos, isto é, colocada em prática a sanção.

A eficácia se refere, pois, à aplicação ou execução da norma jurídica, ou por outras palavras, é a regra jurídica enquanto momento da conduta humana. A sociedade deve viver o Direito e como tal reconhecê-lo. Reconhecido o Direito, é ele incorporado à maneira de ser e de agir da coletividade. Tal reconhecimento, feito ao nível dos fatos, pode ser o resultado de uma adesão racional deliberada dos obrigados, ou manifestar-se através [de um]

37

“assentimento costumeiro”, que não raro resulta de atos de adesão aos modelos normativos em virtude de mera intuição de sua conveniência ou oportunidade. O certo é, porém, que não há norma jurídica sem um mínimo de eficácia, de execução ou aplicação no seio do grupo. (REALE, 2007, p. 112, 113)

A norma será eficaz se for cumprida. Mas, também se não for cumprida, porque

outro aspecto da norma (outra imputação) entra em funcionamento: a sanção. Logo, a

eficácia tem relação com a ocorrência concreta do prescrito pela norma jurídica no

duplo aspecto da prestação e da sanção.

A título de exemplo: o artigo 121 do Código Penal brasileiro afirma que é crime

“Matar alguém. Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”. Ora. O fato de alguém

não matar faz com a norma jurídica seja efetivamente cumprida, ou seja, a pretensão do

legislador é alcançada. A norma é plenamente eficaz. Mas, o fato de alguém matar e ser

punido por isso também faz com que a norma seja efetivamente eficaz. E assim o será,

quer o indivíduo cometa o homicídio ou não, sendo condenado (com a aplicação da

pena em decorrência da força coercitiva do Estado ou “se entregando espontaneamente”

ao cumprimento da pena).

A vigência e a eficácia do ordenamento jurídico não são, pois, decorrência de uma norma fundamental, como expõe Kelsen, nem é mero fato, como pretendem os positivistas, mas são antes qualidades imanentes ao sentido da experiência jurídica, como experiência axiológica. O Direito é, em verdade, uma das expressões basilares do espírito humano em seu incessante processo de objetivação ordenadora e racional do mundo em que vivemos, representando “sistemas de respostas sucessivas” aos problemas que se põem através da história. (REALE, 2007, p. 197)

Vê-se, pois, que não basta que a norma tenha vigência e eficácia plenas. Há, sim,

que se entender o Direito como uma experiência jurídica, devendo ele responder aos

anseios da sociedade. Daí a importância da questão axiológica no plano jurídico. “O

objeto de estudo do jusfilósofo é a experiência jurídica na integridade de sua estrutura

fático-axiológico-normativa, enquanto geradora de modelos e de significados jurídicos”

(REALE, 2001, p. 14).

1.2.3.3 Elemento valor

Conforme já observado, Miguel Reale parte do entendimento de que existem

38

duas ordens distintas: a ordem da natureza (da necessidade) e a ordem humana ou social

(da liberdade). Inseridas nestas ordens estão suas leis: leis da natureza e leis humanas.

As leis da natureza, como é fácil perceber, são leis necessárias, tais como as leis da

física (por exemplo, a gravidade). Já as leis dos homens, são aquelas elaboradas na sua

esfera de liberdade. Ora, se o homem possui liberdade para elaborar suas próprias leis

(as leis às quais irá se submeter) é certo que estas serão submetidas ao seu critério de

valoração. Os fatos serão submetidos a uma valoração que determinará a possibilidade

de se originarem normas ou não.

As diferenças básicas entre essas duas manifestações legais podem ser tratadas

da seguinte maneira: a lei física (da natureza) é descritiva, representa uma função de

conhecimento; sua finalidade é a explicação de relações constantes entre fenômenos ou

fatos, segundo o princípio da causalidade; esses fatos não possuem uma significação,

não têm sentido, não visam à realização da justiça; esta é a lei do ser (do que é); não é,

portanto, imperativa. Já a lei social (ou ética)30 é prescritiva, manifesta uma função de

vontade; sua finalidade é provocar um comportamento; prescreve simplesmente como o

homem deve se comportar, embora ele possa, se quiser, conduzir-se de outra maneira

(esfera da liberdade); esta é a lei do dever ser (do que deve ser, do agir); é, portanto,

imperativa.

“Toda norma ética expressa um juízo de valor, ao qual, se liga uma sanção, isto

é, uma forma de garantir-se a conduta que, em função daquele juízo, é declarada

permitida, determinada ou proibida. A necessidade de ser prevista uma sanção, para

assegurar o adimplemento do fim visado, já basta para revelar-nos que a norma enuncia

algo que deve ser” (REALE, 2007, p. 35).

As normas advindas da ordem humana, também chamada social, são, portanto,

normas éticas, morais, porque submetidas à valoração. Dentre estas, podem ser

encontradas as seguintes: a norma de ordem moral propriamente dita (proveniente de

um fato ético ou fato humano), a ordem religiosa (proveniente de fato religioso), a

ordem de trato social (proveniente de um fato social) e a ordem jurídica (proveniente de

um fato jurídico).

Cada uma destas ordens normativas possui distinções determinantes. Assim,

pois, não devem ser confundidas.31 Os principais elementos de distinção da ordem

jurídica para as demais ordens normativas são:

30 Dentre a lei social ou ética está a norma jurídica ou lei (conforme será visto mais adiante). 31 Ver anexo D do presente estudo.

39

- a imperatividade: é imperativa porque impõe um dever, um determinado

comportamento; prescreve as condutas devidas e os comportamentos proibidos;

consiste na conexão que há entre o ilícito e a conseqüência do ilícito (sanção);

tem, portanto, uma reação sancionadora previsível, previamente determinada. “A

característica da imperatividade do Direito como de todas as normas éticas, -

embora tenha sido e continue sendo contestada, - parece-nos essencial a uma

compreensão realística da experiência jurídica ou moral”. (REALE, 2007, p. 33)

- o autorizamento: só com este fica o lesado autorizado a coagir o violador da

norma a cumpri-la ou a reparar o mal por ele produzido; mostra-se na

possibilidade de exigência e execução forçada, quer pelo Estado, através de seus

órgãos, quer pelo particular interessado, que buscará sua satisfação através dos

órgãos do Estado, em especial o Poder Judiciário. “A Moral é incoercível e o

Direito é coercível. O que distingue o Direito da Moral, portanto, é a

coercibilidade. Coercibilidede é uma expressão técnica que serve para mostrar a

plena compatibilidade que existe entre o Direito e a força”. (REALE, 2007, p.

46, 47)

Como se vê, “o Direito não é algo de diverso da Moral, mas é uma parte desta,

armada de garantias específicas” (REALE, 2007, p. 42). Em suma, pode-se afirmar que

a norma jurídica, por todos os motivos acima expostos, é uma norma eminentemente

ética, moral e, portanto, valorada e valorativa.

Mas, há que se ressalvar que nem tudo o que é norma moral é norma jurídica.

“Tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico. Há, portanto,

um campo da Moral que não se confunde com o campo jurídico” (REALE, 2007, 42,

43). Este é o campo das normas eminentemente morais, religiosas e de trato social32.

Como já foi dito, todas estão inseridas na esfera da liberdade humana, mas somente a

norma jurídica é que assegura ao homem e à sociedade como um todo sua

imperatividade, autorizando o particular a fazer valer a justiça.

A previsão de um dever, suscetível de não ser cumprido, põe-nos diante de um problema que envolve a substância da estrutura normativa. É que toda norma é formulada do pressuposto essencial da liberdade que tem o seu destinatário de obedecer ou não aos seus ditames. Parece paradoxal, mas é fundamentalmente verdadeira a asserção de que uma norma ética se caracteriza pela possibilidade de sua violação, enquanto que não passaria pela cabeça de um físico estabelecer uma lei no pressuposto de sua não-correspondência permanente aos fatos por ele explicados. Compreende-se a diferença radical quando se

32 Ver anexo D deste presente estudo.

40

pensa que a norma tem por objeto decisões e atos humanos, sendo inerente a estes a dialética do sim e do não, o adimplemento da regra, ou a sua transgressão. É essa alternativa da conduta positiva ou negativa que explica por que a violação da norma não atinge a sua validade. [...] A regra, embora transgredida e porque transgredida, continua válida, fixando a responsabilidade do transgressor. (REALE, 2007, p. 35, 36)

Para Reale, os valores não são objetos ideais33 e, sim, objetos culturais. Não são

ser, mas dever ser. E, por isso, possuem características próprias, são realizáveis,

inexauríveis e possuem polaridade (complementaridade). Explicado pelo próprio autor:

O valor se distingue dos objetos ideais por algumas notas essenciais, que o vinculam ao processo histórico, quais sejam, a realizabilidade (valor que não se realiza é quimera, simples aparência de valor, enquanto um objeto ideal, como um círculo, não deixa de ser o que é, por jamais haver entes circulares perfeitos); a inexauribilidade (por mais, p. ex., que se realize justiça, há sempre justiça a realizar); a transcendentalidade (uma sentença justa não é toda a justiça, pois todo valor supera suas realizações históricas particulares); a polaridade (só se compreende um valor pensando-o na complementaridade de seu contrário, ou seja, positiva e negativamente, enquanto os objetos ideais são pensados independentemente de algo que necessariamente os negue etc.). Esta última nota distintiva é de fundamental importância, pois sobre ela irei fundar, depois, a "dialética de complementaridade". (REALE, 2001, p. 94)

Cabe então, neste momento, indicar qual o conceito de valor para Reale: "o que

entendo por valor, quando emprego esta palavra em minha teoria tridimensional do

Direito, [é] uma 'intencionalidade historicamente objetivada no processo da cultura,

implicando sempre o sentido vetorial de uma ação possível'" (REALE, 2001, p. 94).

Retoma-se, agora, a questão da validade do Direito. Conforme Miguel Reale, o

fundamento do Direito (aspecto de sua validade) tem por base a questão axiológica. É o

valor, segundo ele, o fundamento do Direito. Trata-se, por isso, de uma fundamentação

ética34.

O jusfilósofo afirma que a especulação sobre o fundamento da norma, ou mesmo

do Direito, é muito antiga. Ela acompanhou o homem desde os primórdios, sendo

muitas suas expressões: Teoria do Direito Natural, Contratualista, Positivista, entre

tantas outras.

Mas, afinal, por qual razão devemos obedecer à lei? [...] Em que se funda, em suma, a obrigatoriedade do Direito? Afinal que é legal e que é justo? Essas e outras perguntas, sob as mais diversas formulações e sob as mais distintas perspectivas, foram feitas pelo homem comum e pelos filósofos, políticos, sociólogos e juristas, desde o início da cultura. Por mais estranho que pareça,

33 Conforme já foi tratado no subtítulo 1.2.1.1. 34 Ver anexo B deste presente estudo.

41

os homens não sabiam ainda em que consistia a lei, como estrutura lógica, ou como elemento da Ciência Jurídica, e já se preocupavam com o seu fundamento. (REALE, 2007, p. 371)

Não há possibilidade de se conceber a validade do Direito nas perspectivas de

vigência e eficácia sem nenhuma finalidade, sem nenhum objetivo. E, ainda mais, sem

nenhum fundamento. É nessa esteira de raciocínio que Reale afirma a necessidade de se

aprofundar o estudo na questão axiológica do Direito, como fundamento teleológico do

mesmo.

Toda regra jurídica, além de eficácia e validade, deve ter um fundamento. O Direito [...] deve ser, sempre, “uma tentativa de Direito justo”, por visar à realização de valores ou fins essenciais ao homem e à coletividade. O fundamento é o valor ou fim objetivado pela regra de direito. É a razão de ser da norma, ou ratio juris. Impossível é conceber-se uma regra jurídica desvinculada da finalidade que legitima sua vigência e eficácia. (REALE, 2007, p. 115)

A norma jurídica deve ser sempre uma tentativa de realização de valores

(liberdade, ordem, segurança etc.), objetivando a concretização dos fins necessários ao

homem e à sociedade. Sua finalidade, então, é implantar uma ordem justa na vida social.

O objetivo final da norma é, pois, a realização da justiça.

“Assume a autoridade legislativa uma atitude de quem relaciona fatos e valores,

mas sem valorar os fatos. Não lhe interessa saber qual o valor determinado. Sua função

não é estimar positiva ou negativamente a norma de direito, mas relacioná-la a valores,

ou seja, dar um sentido à norma, sem lhe atribuir um valor. O sentido da norma é ser ela

um instrumento de realização de determinado valor: a justiça” (DINIZ, 2007, p. 404).

Não é preciso, porém, que a regra receba a sua força obrigatória diretamente do valor-fim [a Justiça]. Os valores-meio fundamentais como a liberdade, a utilidade econômica, a utilidade científica, a segurança, a ordem pública etc. concretizam-se em valores particulares, em função das contingências de cada sociedade, e estes valores particulares bastam para dar força obrigatória às normas desde que a apreciação racional da autoridade competente as considere indispensáveis ao bem público, ainda que desde logo não conquistem a adesão das conseqüências. (REALE, 1972, p. 312, 313)

1.2.4 O Poder

42

E como se daria a relação do Direito com o poder? A essa indagação, Reale

propõe uma reflexão acerca da possibilidade de se pensar o Direito sem o poder e o

poder sem o Direito. Para o filósofo, não seria possível pensar o Direito sem o poder,

pois essa correlação se daria a partir de determinado momento da evolução social, em

um determinado tempo e um determinado espaço, distintos. Tampouco, seria possível

pensar o poder sem o Direito.

A meu modo de ver, por todos os motivos já aduzidos, não há que falar em anterioridade do poder ou do direito, de um ponto de vista lógico, pois os dois fatores se implicam e se exigem numa relação de polaridade. Diz-se que há polaridade entre dois fatores quando o conceito de um é essencial à plena determinação conceitual do outro, sem que um possa, no entanto, ser reduzido ao outro, mantendo-se, pois, sempre distintos e complementares. Ora, o direito despido do pode é impotente, torna-se mero desideratum ético ou asseveração lógica sem condições de realizabilidade (e a realizabilidade, disse-o bem Jhering, é da essência da juridicidade); por outro lado, o poder, privado de referência jurídica ou não subordinado a limites objetivos, converte-se em pura força ou arbítrio. Poder e direito se exigem, pois reciprocamente se iluminam. (REALE, 1998, p. 230)

A partir daí, a norma jurídica, em sua concepção mais simples, é “o enunciado

de um comando ou de uma diretriz de conduta, a cuja observância ou descumprimento

estão ligadas determinadas conseqüências, previamente estabelecidas” (REALE, 1998,

p. 221).

Toda norma jurídica, então, envolve uma opção por uma possibilidade dentre

muitas possibilidades, dentre muitos caminhos possíveis. “A norma jurídica, como se

vê, é posta tendo em vista a realização de algo valioso ou a não ocorrência de algo

desvalioso. [...] É a necessidade da escolha de uma diretriz de conduta dotada de

validade objetiva que nos revela o que há de essencial na correlação entre direito e

poder” (REALE, 1998, p. 222).

Nesse passo, Reale, em dado momento, houve por bem, aprofundar sua pesquisa

acerca de um duplo significado do poder: como exercício de soberania e como força.

Diante dessa divisão, resolveu limitar-se à análise da apreciação do poder como força,

coação.

O poder tem duplo significado. Ora significa auctoritas, ou seja, o mero poder ou comando do Estado no exercício de sua soberania, tanto nas relações internas como nas internacionais; ora se refere à força que, com a anuência da coletividade, preside o surgimento dos modelos jurídicos. Fazendo abstração do poder como soberania – matéria de estudo da Teoria do Estado, ou do Direito Constitucional – vou me limitar a apreciar o poder como elemento de conexão no processo de formação do direito, observando que quando um

43

determinado número de valores incide sobre o fato social, dá lugar a várias soluções normativas (por exemplo, vários projetos de lei) uma das quais se converte em norma legal, devido à escolha decisória do Poder. Como se vê, a opção do poder no Estado de Direito não é arbitrária mas ocorre no âmbito de um processo axiológico global. (REALE, 2009, p. 108)

E, aplicando o poder na sua Teoria Tridimensional, ressaltou três aspectos

básicos discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: “um aspecto

normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o

Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o

Direito como valor da Justiça)” (REALE, 2007, p. 65).

Dessa forma, a partir desses três aspectos, Reale tratou em profundidade da

Teoria Tridimensional do Direito (teoria esta que seria por ele trazida ao Brasil e

adaptada a nossa realidade, constituindo-se em uma das principais teorias acerca da

fundamentação do Direito).

Para tratar dos elementos dessa tridimensionalidade, ele partiu do problema da

validade do Direito (ou validade da norma jurídica). “A necessária complementariedade

das pesquisas do filósofo, do sociólogo e do jurista revela-se, de maneira bem marcante,

quando se estuda o problema da validade do direito” (REALE, 2001, p. 14).

Nesse passo, acentua os três elementos da tridimensionalidade da seguinte

maneira: a norma corresponde à vigência, o fato à eficácia e o valor ao fundamento.

Melhor dizendo: a vigência da norma corresponde à validade formal ou técnico-jurídica,

a eficácia à validade fática e o fundamento axiológico à validade ética35.

“Fácil é perceber que a apreciação ora feita sobre vigência, eficácia e

fundamento vem comprovar a já assinalada estrutura tridimensional do Direito, pois a

vigência se refere à norma; a eficácia se reporta ao fato, e o fundamento expressa

sempre a exigência de um valor” (REALE, 2007, p. 115, 116).

Vê-se, assim, que os três elementos estão inseridos na validade do Direito, a

saber: vigência (da norma), eficácia (do fato) e fundamento (do valor). “A validade de

uma norma de direito pode ser vista sob três aspectos: o da validade formal ou técnico-

jurídica (vigência), o da validade social (eficácia ou efetividade) e o da validade ética

(fundamento)” (REALE, 2007, p. 105).

A validade é, então, um complexo com aspectos de vigência, eficácia e

fundamento. Esses três aspectos essenciais da validade são os requisitos para que a

norma jurídica seja legitimamente obrigatória. Há na norma uma relação necessária 35 Ver anexo A deste presente estudo.

44

entre validade técnico-jurídica (norma), validade fática (fato) e validade ética (valor)36.

“Em resumo, são três os aspectos essenciais da validade do Direito, três os

requisitos para que uma regra jurídica seja legitimamente obrigatória: o fundamento, a

vigência, e a eficácia, que correspondem respectivamente, à validade ética, à validade

formal ou técnico-jurídica e à validade social” (REALE, 2007, p. 115).

Esses elementos não estão “soltos”, desligados um do outro. Ao contrário:

possuem um elo que é o poder. O poder, em sua teoria, seria a integração entre fato,

valor e norma. Não se trata de um quarto elemento da teoria. Mas, antes, é o elemento

de união entre os três elementos da tridimensionalidade.

A questão do poder na relação entre fato, valor e norma surgiu, em Reale, à

partir da seguinte indagação: “ora, se toda norma jurídica representa sempre uma

integração de fatos segundo valores, é o caso de pergunta como é que essa integração se

realiza, e qual é a sua razão determinante. É aqui que se põe a problemática do poder”

(REALE, 2009). É por esse motivo que Reale entende que o poder, como coação, é o

elemento de conexão no processo de formação do direito (é o elemento de ligação entre

fato, valor e norma)37.

Essa ligação se dá da seguinte forma: entre fatos e valores existe uma tensão.

Essa tensão surge pela possibilidade que se abre (através da característica dinâmica do

Direito) de se seguir vários caminhos. Ou seja, muitos são os valores (as vontades dos

indivíduos) incidentes em um mesmo fato. Todos os indivíduos querem, de alguma

forma, que sua vontade prevaleça. Mas, apenas um valor deverá ser escolhido para que

o fato valorado se torne uma norma jurídica ou não. E é justamente o poder (de um

determinado grupo) que irá realizar essa escolha, que fará essa opção. É o poder que,

dentre muitos valores, irá decidir qual valor irá prevalecer.

É claro que, diante de um contraste ou conflito entre valores e fatos, ou mesmo diante de um conflito entre múltiplas atitudes estimativas condicionadas por um valor, que esteja historicamente incidindo em dado meio social, uma única solução pode preponderar juridicamente. [...] Pode haver mais estudo e meditação, maior ou menor possibilidade de escolha, mas, em um dado momento, é mister não protelar a opção. Uma opção se impõe, e toda vez que se escolhe uma via, sacrificam-se todos os demais caminhos possíveis. Havendo, por exemplo, vários projetos de lei em debate no Parlamento, a respeito de dado assunto, por mais que se procrastine, chega o momento do fiat lex, átimo culminante de uma decisão. É este o momento por excelência do poder. (REALE, 1998, p. 225)

36 Ver anexo A deste presente estudo. 37 Ver anexo C deste estudo.

45

Para Reale, tanto o órgão legislativo quanto um grupo de pessoas no meio social

podem deter o poder para decidir dentre muitos valores por apenas um. São essas

pessoas que irão decidir por uma via ou outra: por valorar um determinado fato de tal

maneira, que será a ele dado o status de norma jurídica, ou não. Uma (ou algumas)

dentre muitas vontades, é a que será escolhida.

“É, repito, a co-participação opcional da autoridade (seja ela a de um órgão

legislativo ou judicante, ou ainda o poder difuso no corpo social) que converte em

norma, armando-a de sanção, uma dentre as “As normas jurídicas não despontam de

forma imanente e automática, de um complexo de fatos, pois pressupõem sempre uma

atitude da autoridade que se põe diante dos fatos e os julga, firmando uma norma de

adesão ou de repulsa, segundo princípios ou diretrizes axiológicas” (REALE, 1998, p.

238).

De acordo com essa explanação, até certo ponto ideal, poderia se indagar: como

explicar, a partir daí, a possível insatisfação daquelas vontades não acolhidas pelo

poder? Como resolver a possível insatisfação dos sujeitos que não viram acolhidas suas

vontades, seus valores em relação a um determinado fato?

A essas indagações, Reale afirma que “é preciso não esquecer que a força

impeditiva da norma jurídica independe da adesão espontânea do obrigado e vale até

mesmo contra a sua vontade, de sorte que a heteronomia se correlaciona com a

objetividade da opção axiológica do poder. Em poder escolher para outrem consiste a

nota distintiva e eminente do poder” (REALE, 1998, p. 227).

E, para que a decisão de quem detém o poder não surta efeitos negativos

(insatisfação e revolta, por exemplo), necessário é que a pessoa que faz a escolha, por

um valor ou por outro, não aja de maneira arbitrária. Tanto o órgão legislativo quanto a

pessoa (ou o grupo) que detém o poder deve, antes de tudo, levar em consideração a

vontade da maioria em prol do bem comum38. Não deve privilegiar a sua própria

vontade, ou os seus próprios interesses, tampouco os de grupo a quem pretende

“proteger” ou privilegiar.

O poder é essencialmente decisão objetivante, inserida como momento no processo nomogenético do direito. Esse caráter de objetividade, inerente ao poder, não deve ser confundido com o arbítrio, porque este não é momento de um processo, mas permanece fora dele, enquanto que o poder no instante

38 Interesse da coletividade e do Estado, para Miguel Reale é “o que pressupõe a conquista do poder de decidir em última instância sobre o que deve ser obedecido como comando jurídico e o que pode ser considerado compatível com ele” (REALE, 1998, p. 238).

46

mesmo em que instaura o direito, fica ligado ou delimitado por ele. Indo ao fundo do problema, o poder, através de uma opção objetiva, interfere para eliminar o arbítrio, pondo termo à insegurança e à incerteza. (REALE, 1998, p. 227)

Não se pode negar que, a partir de uma primeira leitura da explicação de Reale

acima transcrita, conclui-se, de maneira pueril, que a vontade daqueles que detém o

poder sempre será imparcial, racional, segura, justa, ou seja, ideal.

Entretanto, Reale adverte: “seria evidentemente ingênuo quem apresentasse a

decisão do poder como um ato de pura racionalidade, no qual, em suma, os elementos

de ordem racional fossem sempre os determinantes da opção” (REALE, 1998, p. 228).

Então, para que não se tire nenhuma conclusão precipitada, deve-se ler sua interpretação

de uma outra forma:

Um dos problemas mais complexos que surgem no exame da correlação direito-poder diz respeito aos fatores determinantes da decisão que instaura uma norma jurídica. [...] Na realidade, são múltiplos os motivos ou as causas que induzem, por exemplo, os deputados a votar pró ou contra um projeto de lei, não faltando motivos de natureza emocional, dos quais participam até mesmo impulsos instintivos inexplicáveis. [...] Isto não impede, todavia, que a norma jurídica seja, em si mesma, uma entidade racional. [...] Parece-me, com efeito, que, qualquer que possam ter sido as causas determinantes da opção normativa, ou por mais irracionais que possam ter sido as suas causas determinantes, não se deve olvidar que, uma vez posta a norma jurídica, esta se apresenta desde logo sub specie rationis, não podendo deixar de ser considerada uma ordenação racional. [...] O poder objetivante do poder, no campo do direito, alberga uma destinação racional, sob pena de reduzir-se ao arbítrio. (REALE, 1998, p. 228 e 229)

Muitas poderiam ser as questões levantadas a partir dessa tese realeana. Por

exemplo: como se daria e qual seria o momento da mudança da pretensão da sociedade

por valorar um fato e a sua “transformação” em norma jurídica? Qual seria a linha

divisória do poder que decide pelos interesses de todos, da maioria ou de um pequeno

grupo de pessoas? Qual a divisão entre a defesa dos interesses dos outros e a defesa dos

interesses particulares (como aquele que detém o poder poderia saber essa distinção)?

A todas essas indagações, o filósofo responde da seguinte forma:

Como se efetua essa translação do momento de mera pretensão social para o momento propriamente normativo? Como a representação jurídica se torna norma verdadeiramente positiva? Que representa o poder nesse processo de positivação da regra jurídica? Toda regra de direito tem sempre como antecedente necessário uma “representação jurídica”, ou, de maneira genérica, pressupõe sempre um correspondente estágio de consciência social? Eis aí uma série de problemas, de cuja solução depende, magna parte, a teoria jurídica do Estado e do direito. (REALE, 1998, p. 238, 239)

47

Infelizmente, não existiriam respostas simples e acabadas para essas dúvidas.

Também não seria neste momento do desenvolvimento de sua teoria que elas seriam

respondidas. Assim sendo, o que se deve levar em consideração das explanações do

pensador brasileiro, é que o Direito e o poder não podem existir de maneira distante;

ambos nasceram para caminhar lado a lado, implicando na coexistência de um

equilíbrio social.

Em verdade, todo direito exige o poder para realizar-se como norma garantida e genérica. É por isso que uma idéia de direito deve ser sempre o preço de uma conquista legítima do poder. O poder que não realiza o direito é sintoma patológico obtido por compressão, pois só pode dar lugar a uma ordem precária e mecânica, arranjada sem adesão de consciência, incapaz de refrear, por longo tempo, as forças vivas do crescimento orgânico. (REALE, 1998, p. 239, 240)

48

PARTE 2

2 A PERSPECTIVA DE MICHEL FOUCAULT – O PLANO REAL

2.1 “De onde fala Michel Foucault” 39

Michel Foucault, francês, nascido em 1926, falecido em 1984, é considerado um

filósofo herdeiro de seu tempo. Nascido em uma família tradicional de médicos, Michel

Foucault frustrou as expectativas de seu pai, cirurgião e professor de anatomia em

Poitiers, ao interessar-se por História e Filosofia. Apoiado pela mãe, Anna Malapert,

mudou-se para Paris em 1945, onde foi aluno do filósofo Jean Hyppolite, responsável

por lhe apresentar a obra de Hegel. Em 1946 ingressou na École Normale.

Em sua vida pessoal, era dono de um temperamento fechado que o fez uma

pessoa solitária, agressiva e irônica. Em 1948, após uma tentativa de suicídio, iniciou

um tratamento psiquiátrico. Em contato com a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise,

conheceu as obras de Platão, Hegel, Marx, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Freud,

Bachelard, Lacan e outros, aprofundando-se em Kant (mesmo não concordando com

todas as suas idéias).

Em 1950, Foucault se licenciou em Filosofia na Sorbone e no ano seguinte

formou-se em Psicologia. No ano de 1952, cursou o Instituto de Psychologie e obteve

diploma de Psicologia Patológica. Trabalhou durante muito tempo como psicólogo em

hospitais psiquiátricos e prisões.

Conviveu com intelectuais importantes como Jean-Paul Sartre, Jean Genet,

Canguilhem, Gilles Deleuze, Merlau-Ponty, Lacan, Binswanger, entre outros. Maurice

Blanchot e Georges Bataille aproximaram Foucault de Nietzsche, filósofo que muito o

influenciou.

Foi professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de

France de 1970 a 1984.

Como já dito, o filósofo francês contribuiu muito para o desenvolvimento do

39 É importante que fique esclarecido que não existe a pretensão, no presente subtítulo, de se esgotar a pesquisa acerca do tema das heranças que influenciaram o pensamento de Michel Foucault. O que se pretende, apenas e tão somente, é introduzir e localizar (historicamente) o pensamento do autor no devir histórico e filosófico para embasar a continuidade do estudo da relação entre o Direito e o poder.

49

pensamento contemporâneo. Sua maneira absolutamente particular de “fazer a história”,

de “contar a história” foi decisiva para que conceitos tradicionalmente tratados

pudessem receber outro olhar na perspectiva do autor.

Mais precisamente com relação ao instituto do poder (tema aqui abordado), em

um dado momento de suas análises, aprofunda o estudo de uma concepção diferente

daquela já anteriormente visitada pelos filósofos anteriores a ele (Foucault nunca negou

ser herdeiro de seus antecessores).

Nesse mesmo sentido, ainda com relação à análise do poder, também foi

influenciado pelas teorias políticas tradicionais de sua época, porém, se restringia a

fazer (todas as vezes) uma análise crítica das mesmas.

Como já dito, Foucault parte do estudo das doutrinas tradicionais do poder, para

desenvolver sua própria conceituação de poder. Com vistas a elaborar sua analítica, ele

propõe uma prática atuante. Na abordagem teórica se opõe, frontalmente, ao

pensamento dos filósofos contratualistas dos séculos XVII e XVIII e ao pensamento

marxista. Na abordagem prática, atua concretamente na política de seu país, acreditando

ser esta atuação absolutamente importante para o desenvolvimento de sua analítica.

Em 1950, entra para o Partido Comunista Francês, mas, depois de algum tempo,

afasta-se devido a divergências doutrinárias.

Por volta de 1970, participa de um debate sobre a justiça popular, se inserindo

em um movimento específico de militância política. Enfrenta o discurso de líderes da

militância maoísta (a qual irá aderir).

Nesse mesmo período, participa ativamente da política por meio de

reivindicações, manifestações e protestos. É partidário das mobilizações contra o

racismo na França, o desenrolar das Guerras (especialmente do Vietnã, Irã e Turquia),

das ameaças aos estrangeiros imigrantes, engajando-se em uma série de disputas

políticas.

Importante ressaltar que Foucault teve vários contatos com diversos movimentos

políticos. Porém, filiou-se à esquerda francesa de sua época, sem, contudo, ser adepto de

nenhum movimento político específico (tendo, apenas, uma forte aderência à esquerda

maoísta).

Vários países chamaram a atenção de Michel Foucault, entre eles o Japão, sendo

considerado “um local de discussão”, assim como o Oriente Médio. Os Estados Unidos

o atraíram em função do apoio à liberdade intelectual e em função de São Francisco,

cidade onde Foucault pode vivenciar algumas experiências marcantes em sua vida

50

pessoal no que diz respeito à sua homossexualidade. Esta foi por ele assumida e

vivenciada ao lado do companheiro Daniel Defert, por vinte anos. Mesmo tendo

contaído AIDS, considerava seus atos homossexuais como situações-limite. Entendia a

doença como uma nova experiência de assassinato.

O Brasil também o interessou, tendo visitado o país várias vezes. Nessas visitas,

realizou conferências e firmou amizades (como a de Roberto Machado). Foi no Brasil

que pronunciou as importantes conferências sobre A Verdade e as Formas Jurídicas, na

Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, texto que mais tarde seria

publicado e que traria grande reconhecimento e repercussão ao filósofo no país.

Em 25 junho de 1984, falece, aos 57 anos, por complicações decorrentes da

AIDS (septicemia que o leva à morte por supuração cerebral), em plena produção

intelectual.

Mesmo após sua morte, Foucault continuou influenciando muitos filósofos

contemporâneos devido à riqueza de suas teorias e de seu pensamento inovador no

âmbito da análise da realidade social.

Porém, não se pode esquecer que a visão de Foucault é a visão de um historiador

que enxerga o novo, fazendo uma análise crítica do antigo, que está dado. Trata, pois,

do instituinte e não do que está instituído40.

A perspectiva foucaultiana é a do historiador crítico, que analisa a realidade sem

a pretensão de desenvolver teorias (ideais) acerca do Direito ou do poder. Indica,

apenas, a estrutura de sua crítica, que é oferecida de forma radical.

Foucault é herdeiro do liberalismo clássico, a que tece forte crítica, tanto na

perspectiva histórica, quanto na perspectiva filosófica.

Assim, propõe, como será visto a seguir, uma práxis fundada na resistência aos

modelos dados de governo (precipuamente aquele baseado no poder soberano), por

meio de uma postura ética com a recusa do governo do outro, atingindo, a partir disso,

um “direito novo”41 libertador.

Daí dizer que sua perspectiva é filosófico-jurídica, com abordagem analítico-

crítica da realidade e da prática do Direito e do poder.

40 Ao revés do que entende Miguel Reale (ver subtítulo 1.1.1). 41 Nas palavras de Márcio Alves da Fonseca (comentador de Michel Foucault, na obra Michel Foucault e o Direito).

51

2.1.1 Breve evolução do pensamento de Michel Foucault

Michel Foucault é hoje considerado um dos principais filósofos da

contemporaneidade, fazendo uma análise própria da história e um estudo absolutamente

inovador no tocante ao pensamento da história ocidental.

Sua filosofia exerce um forte impacto sobre as ciências humanas, principalmente

porque seu estudo, apoiado no projeto nietzscheano, “destrói” os valores vigentes. Ele

apresenta uma transvaloração que propõe desconfiar da herança metafísica tradicional e

de conceitos “prontos” como verdade, razão, Estado, Direito, poder, entre outros.

Várias foram as obras publicadas e vários os percursos históricos abordados,

sendo feita sempre uma profunda análise dos valores (principalmente o poder) com o

objetivo de “retirá-los do lugar” onde sempre estiveram.

Foucault questiona as relações entre o saber, o poder, a verdade e o direito, bem

como a vontade que dá base a essas relações. Nas palavras do doutrinador François

Ewald (comentador de Michel Foucault) em sua obra Foucault, a norma e do direito,

ele afirma: “Foucault interessa-se pelas relações entre o jurídico e o político, o poder e o

direito do ponto de vista das condições de uma análise adequada dos mecanismos do

poder” (1993, p. 122).

Partindo do pensamento kantiano42, Foucault investiga os valores através de uma

genealogia, por influência de Nietzsche. E conclui que a verdade está intimamente

ligada ao poder, pois toda verdade gera efeitos de poder e todo poder se ampara e se

justifica em saberes considerados verdadeiros.

“Foucault é de fato o inventor de um estilo, de novas técnicas de escrita que

contestam um regime tradicional da verdade” (EWALD, 1993, p. 25).

Esse estilo diferente se mostra em todas as suas obras. Aos 28 anos, em 1954,

ele publica Doença Mental e Psicologia. Em 1961, escreve sua tese de doutorado na

Sorbone, trabalho este publicado sob o título de História da Loucura. Foi com essa obra

que Foucault se firmou como filósofo.

Apesar de filósofo reconhecido, preferia ser intitulado de “arqueólogo”, pois se

dedicava à reconstituição do que existe de mais profundo numa cultura.

Em 1963 publica O Nascimento da Clínica, em 1966, As Palavras e as Coisas e,

42 “Para Foucault, tal como para Kant, não há coisa-em-si. Aquilo que identificamos como objeto nunca é mais do que uma objetivação” (EWALD, 1993, p. 180).

52

em 1969, A Arqueologia do Saber.

No âmbito político, Foucault apóia seu olhar na relação entre poder e direito

para, querendo entender esta, analisar as múltiplas relações de poder presentes nas

instituições sociais nas quais se "criou" um homem disciplinado e normalizado. Foi na

obra Vigiar e punir (de 1975) que se dedicou ao poder repressor, tratando dos micro-

poderes disciplinares que exerciam seus efeitos sobre os indivíduos disciplinados e

normalizados.

O fundamento do poder estaria na ficção de um sujeito jurídico que dá aos

outros o poder de exercer sobre ele mesmo uma dominação. Já o fundamento do direito

de punir, sob a égide do poder, encontrar-se-ia no contrato, na teoria do contrato.

A obra é um amplo estudo sobre a disciplina na sociedade moderna: uma técnica

de produção de corpos dóceis. A partir desse trabalho, Foucault explicitou a noção de

que as formas de pensamento são também relações de poder, que implicam a coerção e

a imposição.

Assim, é possível lutar contra a dominação representada por certos padrões de

pensamento e comportamento sendo, no entanto, impossível escapar completamente a

todas e quaisquer relações de poder.

Em razão desse estudo, o autor desenvolve o conceito do "biopoder",

aprofundado na obra História da Sexualidade (precipuamente em seu primeiro volume,

datado de 1976).

O biopoder é uma nova forma de exercício de poder soberano, cujo alvo não é

mais a produção do indivíduo útil e dócil, mas a gestão calculada da vida da população

de um determinado corpo social.

É fazendo a análise do passado, através da crítica história do pensamento

ocidental que Foucault interpreta o presente. E essa interpretação acaba por ser

absolutamente própria, pois parte de uma análise histórica também própria43.

Muitas foram as doutrinas herdadas por Foucault que influenciaram toda a sua

obra. De Nietzsche “aproveitou” conceitos como genealogia e a atualidade de seu

pensamento: “pois o que digo aqui só tem sentido se relacionado à obra de Nietzsche

que me parece ser, entre os modelos de que podemos lançar mão para as pesquisas que

proponho, o melhor, o mais eficaz e o mais atual” (FOUCAULT, 2008, p. 13).

De Hobbes, trouxe o entendimento antropológico do homem como aquele que é

43 Justamente por fazer essa análise peculiar do presente, é que o filósofo francês foi escolhido para ser estudado em paralelo com Miguel Reale na análise e interpretação da relação entre o Direito e o poder.

53

o lobo do homem: “é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as

coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros,

querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que

consiste o conhecimento” (FOUCAULT, 2008, p. 23).

Porém, ressalta, que: “é preciso estudar o poder colocando-se fora do modelo do

Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. É

preciso estudá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação” (FOUCAULT, 2007, p.

186).

Citada obra História da Sexualidade restou inacabada, sendo considerada seu

mais ambicioso projeto. Nesse estudo, Foucault pretendia mostrar como a sociedade

ocidental faz do sexo um instrumento de poder, não por meio da repressão, mas da

expressão.

Enfim, toda a vasta produção de Michel Foucault, sem dúvida, contribuiu para o

desenvolvimento da Filosofia Ocidental na contemporaneidade, sendo o filósofo, por

isso, considerado um dos mais importantes do nosso tempo.

2.2 Conceitos

Foucault não desenvolveu conceitos fechados, tampouco teorias acabadas. Ele

propôs inúmeras questões a se pensar, inclusive, elaborando alguns textos de forma

aporética44.

Mas, coisa notável, esses espaços abertos, Foucault recusa-se a ocupá-los. Foucault não nos dá teoria, não produz teses, quando muito hipóteses a verificar. [...] Foucault não ataca ninguém. [...] Presente em todo o lado, ele encontra-se sempre noutra parte, onde não é esperado. Inabordável e fugidio. Poderia falar-se, com Foucault, de um pensamento sem compromisso. [...] Será que não há, no estilo de Foucault, nas suas maneiras, na sua esquiva, no seu modo de pôr os problemas e as questões, na elaboração do seu método, uma reposta nova aos impasses políticos e teóricos do nosso tempo, uma possibilidade de acabar com os debates infindáveis em que estamos encerrados? (EWALD, 1993, p. 09, 10) [grifo nosso]

Pois bem. Toda a dificuldade no estudo do filósofo está no fato de que ele exige

do seu leitor um envolvimento. Exige, além da simples leitura, uma análise crítica, uma

44 A obra Vigiar e punir é um exemplo.

54

reflexão e um posicionamento acerca do que propõe45.

Em que pese, portanto, não encerrar conceitos e fechar teorias, certo é que, de

alguma forma, Foucault tratou de diversos institutos apontando interpretações

absolutamente inovadoras e, ainda que de maneira provisória, indicou conceitos para a

verdade, a história, o direito e o poder, por exemplo. Tais conceitos, por serem de

grande importância para a presente pesquisa (e muito próprios no vocabulário do autor),

passam a ser estudados.

2.2.1 Sujeito, conhecimento e verdade

Para tratar da concepção de verdade na visão de Michel Foucault há que se

estabelecer, inicialmente, em brevíssimas linhas, alguns esclarecimentos acerca do

pensamento foucaultiano. Entre eles, deve-se entender como Foucault concebe o sujeito,

o conhecimento e, consequentemente, a verdade.

Michel Foucault propõe uma “reelaboração da teoria do sujeito” (2008, p. 09) e,

para isso, se utiliza da história, do estudo do percurso histórico desse sujeito constituinte

e constituído por seu tempo e por seu espaço. Com base nesse estudo histórico, o

filósofo francês oferece uma análise absolutamente diversa daquela proposta (e

“imposta”) pela filosofia moderna.

Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história. É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir. (FOUCAULT, 2008, p. 10)

Através da filosofia de Nietzsche (que muito lhe influenciou) ele entende ser

necessária uma ruptura com a tradição filosófica ocidental: com a epistemologia tal qual

concebida pela modernidade e, por conseguinte, com esse sujeito constituído por essa

mesma herança.

45 Por isso, desde já, ressalta-se que não se pretende aqui esgotar o tema (tal qual já foi aclarado na Introdução do presente trabalho), pois a abordagem da relação entre Direito e poder é árida e os filósofos escolhidos são complexos. Uma pesquisa mais detalhada demandaria muito tempo e dedicação, o que, na presente dissertação, não é possível.

55

Parece-me haver, nessa análise de Nietzsche, uma dupla ruptura muito importante com a tradição da filosofia ocidental e cuja lição devemos conservar. A primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas. O que, efetivamente, na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbitrariedade? O que garantia isto na filosofia ocidental, senão Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para não ir mais além e ainda mesmo em Kant, é esse princípio que assegurava haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento fundado, em verdade, nas coisas do mundo. Descartes precisou afirmar a existência de Deus. Se não existe mais relação entre o conhecimento e as coisas a conhecer, se a relação entre o conhecimento e as coisas conhecidas é arbitrária, de poder e de violência, a existência de Deus não é mais indispensável no centro do sistema de conhecimento. [...] Em segundo lugar, diria que, se é verdade que entre o conhecimento e os instintos – tudo o que faz, tudo o que trama o animal humano – há somente ruptura, relações de dominação e subserviência, relações de poder, desaparece então, não mais Deus, mas o sujeito em sua unidade e soberania. (FOUCAULT, 2008, p. 10)

Assim, para se entender o sujeito foucaultiano é preciso romper com a

concepção de indivíduo moderno, com toda a herança moderna. Partindo de Kant, é

preciso superá-lo. É necessário pensar o homem como uma superação de si mesmo,

desprendido de imposições, tal qual a visão nietzschiana.

Assim, gostaria particularmente de mostrar como se pôde formar, no século XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das práticas sociais, das práticas sociais do controle e da vigilância. E, como, de certa maneira, esse saber não se impôs a um sujeito de conhecimento, não se propôs a ele, nem se imprimiu nele, mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conhecimento (FOUCAULT, 2008, p. 08)

Esse “novo” sujeito foucaultiano não está envolvido no processo de

conhecimento fenomênico. Nunca alcançou a “coisa em si”, tampouco irá chegar ao

fenômeno.

“Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas sociais podem chegar a

engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetivos, novos

conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de

sujeitos e de sujeitos de conhecimento” (FOUCAULT, 2008, p. 08).

E, por isso, para Foucault o conhecimento foi inventado. Não há origem para o

conhecimento. A episteme é resultado de um jogo. E se o conhecimento faz parte desse

56

jogo46, certo é que a verdade produzida por ele também faz parte do mesmo, sendo as

suas regras traçadas por uma manifestação de poder (ou melhor, poderes).

O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, por mais paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana. [...] O conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um compromisso, que algo se produz. Este algo é o conhecimento. [...] O conhecimento tem por fundamento, por base e por ponto de partida os instintos, mas instintos em confronto entre si, de que ele é apenas o resultado, em sua superfície. (FOUCAULT, 2008, p. 16) [grifo nosso]

Para Foucault a verdade não é um acordo de um pensamento com um objeto.

Mas, ao contrário, é aquilo que constrange um pensamento a pensar de certa maneira.

“É o princípio de uma partilha de enunciados que, em si mesmos, não são verdadeiros

nem falsos, mas que são validados ou invalidados em função de um certo regime de

verdade ou de verificação. Nesta medida, pode haver uma história da verdade”

(EWALD, 1993, p. 180).

Haverá, sempre, sistemas de pensamentos que produzirão tipos de verdades que,

por sua vez, obrigarão os sujeitos. Dessa forma, só se pode falar em uma verdade

relativa, e não absoluta. Ou melhor, em verdades, e não em uma única verdade.

"E é isso que importa: não produzir algo de verdadeiro, no sentido de definitivo,

absoluto, peremptório, mas dar [...] verdades modestas [...] que não implicam um

silêncio de estupefação ou um burburinho de comentários, mas que sejam utilizáveis por

outros" (EWALD, 1993, p. 26). E essas verdades são originadas de processos, relações

de poder.

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...]. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2007, p. 12)

Não se diga que o fato de tratar de verdades e não de uma única verdade seja o

46 Pode ser feita, aqui, uma referência aos “jogos de linguagem” de Wittgenstein (Ludwig Wittgenstein, 1889-1951).

57

caminho mais curto para um relativismo. Ao contrário. O que Foucault propõe é o

repúdio ao relativismo47 para se ter um perspectivismo das relações, o que é muito

diferente.

Se Foucault não falar por referencia a uma verdade, que não visa sequer estabelecer uma verdade última sobre o poder, fala de acordo com o princípio de uma perspectiva. [...] Toda a adoção de perspectiva se inscreve na relatividade do seu ponto de vista. E quando se trata do poder, há três perspectivas e não duas como se poderia pensar: não só a dos que o exercem e a dos que o combatem, mas a dos que o exercem, a dos que queriam exercê-lo e a dos que o sofrem. (EWALD, 1993, p. 26) [grifo nosso]

E, assim, Foucault afirma existirem dois tipos de histórias da verdade: uma

interna e outra externa.

A história da verdade interna é aquela conhecida, que se faz a partir da própria

história das ciências, do pensamento, do conhecimento – a partir de uma constituição

herdada do devir histórico do qual o sujeito faz parte.

O segundo tipo de história da verdade é aquele que se encontra em outros

lugares: se constitui a partir de certas formas de subjetividade, de certos domínios,

poderes, tipos de saber e de conhecimentos. Diz-se “externa” porque é a partir desses

novos lugares que haverá o desenvolvimento de uma nova história da verdade – exterior

à tudo o que já pré-existe.

A hipótese que gostaria de propor é que, no fundo, há duas histórias da verdade. A primeira é uma espécie de história interna da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a parir da história das ciências. Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade. (FOUCAULT, 2008, p. 11)

Como se pôde constatar, essa história exterior da verdade é constituída em vários

outros lugares. E aí está a dificuldade em sua identificação: não existe um único local de

produção: “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém

de todos os lugares” (FOUCAULT, 2006, p. 103).

É isto. Para Foucault, a verdade é produzida. E para que se possa, então,

identificar essa verdade produzida, há que se ter em mente que ela está em muitos

47 “Foucault não é um relativista” (EWALD, 1993, p. 180).

58

lugares. E é o poder que tem a função de aglutinar todos os pequenos fragmentos, todos

os pequenos lugares nos quais o poder se encontra “espalhado”. Daí a sua importância.

Daí a importância do estudo do poder.

“O poder se manifesta, completa seu ciclo, mantém sua unidade graças a este

jogo de pequenos fragmentos, separados uns dos outros, de um mesmo conjunto de um

único objeto, cuja configuração geral é a forma manifesta do poder” (FOUCAULT,

2008, p. 38).

O poder também submete o sujeito a chegar à verdade. É por meio dele (poder)

que se produz a verdade: “somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só

podemos exercê-lo através da produção da verdade. [...] Somo obrigados pelo poder a

produzir a verdade, somos obrigados ou condenados a confessar a verdade ou a

encontrá-la” (FOUCAULT, 2007, p. 180).

Mas, cabe aqui, antes de adentrar ao estudo do poder48 como elemento

aglutinador desses fragmentos de um mesmo jogo, tratar da questão do que produz a

verdade.

A verdade é produzida por saberes, condições políticas, sociais, históricas,

geográficas, formas de conhecimento, inquéritos. Foucault pretende, com suas

pesquisas, mostrar como tudo isso não se apresenta como “um véu ou um obstáculo

para o sujeito de conhecimento”, mas são “aquilo através do que se formam os sujeitos

de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade” (FOUCAULT, 2008, p.

27).

Ao pôr a verdade no centro do seu trabalho, Foucault não pretende, pois, denunciar os erros, para em seu lugar colocar novas verdades, substituir aos erros da psiquiatria a verdade da loucura, às mentiras da justiça a verdade do criminoso, às do humanismo a verdade do homem, mas estudar, numa dada sociedade, neste ou naquele período histórico, como é que algo como a verdade aí foi produzido e extraído, como é que ela funciona, com que efeitos de exclusão, de invalidação e de desqualificação em face de outros discursos e de outros saberes. (EWALD, 1993, p. 15)

É necessário, então, que seja promovida uma mudança. Não da consciência do

sujeito, mas, sim, uma mudança nas instituições que foram criadas por forças de poder e

que, por sua vez, criaram saberes que constituíram os sujeitos. “Não se trata de livrar a

verdade de todo o sistema de poder, o que seria uma quimera, porquanto a verdade é,

ela própria, poder – mas separar o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais,

48 Como será mais bem estudado no capítulo 2.2.4.

59

econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona por enquanto” (EWALD, 1993,

p. 16).

Assim como a verdade (lato sensu) é produzida, na visão de Foucault, a verdade

jurídica é estabelecida. De acordo com sua pesquisa histórica, a verdade jurídica foi

estabelecida desde a Idade Antiga (na Grécia) passando pela Idade Média, até a

modernidade. Esse estabelecimento se deu através de regulamentos judiciários49.

As práticas chamadas por Foucault de “judiciárias” são as formas pelas quais os

homens arbitraram os danos e suas responsabilidades; o modo como decidiram ser

julgados pelas faltas cometidas. Essas práticas, na sua visão, definiram tipos de

subjetividade, formas de saber que, por conseqüência, definiram também as relações

entre o homem e a verdade.

Para Foucault existem dois tipos de regulamentos judiciários que produzem

verdades. O primeiro se encontra em Homero, numa forma bastante arcaica. Nessa

modalidade de regulamento judiciário “não há juiz, sentença, verdade, inquérito nem

testemunho” para se saber quem diz a verdade. Em suma, o encargo não é para se

verificar quem disse a verdade, mas, apenas, para se verificar quem tem razão “à luta,

ao desafio, ao risco que cada um vai correr” (FOUCAULT, 2008, p. 53).

Já a segunda modalidade de regulamento judiciário é dada pela prova. A prova a

qual Foucault se refere é tida por um jogo (o “jogo da prova”), uma espécie de “desafio

lançado por um adversário ao outro” (FOUCAULT, 2008, p. 32). É uma prova

fornecida pela testemunha50 que estabelece uma verdade, a verdade jurídica.

Em Sófocles, Foucault identifica o “profissional do poder político e do saber”.

Em Édipo, aponta o personagem do tirano, “o homem do poder e do saber, aquele que

dominava tanto pelo poder que exercia quanto pelo saber que possuía. [...] Saber e poder

eram exatamente correspondentes, correlativos, superpostos. Não podia haver saber sem

poder. E não podia haver poder político sem a detenção de um certo saber especial”

(2008, p. 49, 50).

Porém, em dado momento, há um declínio desse tipo de saber ligado ao poder.

“Assistimos a essa longa decomposição durante os cinco ou seis séculos da Grécia

arcaica. [...] A partir desse momento o homem do poder será o homem da ignorância”

(ibid, p. 50).

49 Esse tema é amplamente tratado por Foucault em sua obra A verdade e as formas jurídicas. 50 E aqui, Foucault desenvolve uma larga análise sobre a confissão, como meio de produção de prova e da verdade.

60

É com Platão, entende Foucault, que o saber e o poder serão desvinculados. Ele

dirá que a verdade não mais pertence ao poder político. Que a verdade está afastada do

poder de uma maneira geral.

O Ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder político é cego, de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contato com os deuses ou nos recordamos das coisas, quando olhamos o grande sol eterno ou abrimos os olhos para o que se passou. Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver poder político. (FOUCAULT, 2008, p. 50, 51)

Com se sabe, esse entendimento irá permanecer aplicado, de certa forma, até a

contemporaneidade. E, quanto a isso, Foucault tece uma crítica objetiva: “esse grande

mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar,

em numerosos textos já citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que

está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é

tramado com o saber” (FOUCAULT, 2008, p. 51).

É por isso que, nos dias de hoje, não se pode olvidar que o poder e o saber estão

juntos, caminham unidos. São o “poder-saber” a que Foucault afirma: não há poder sem

saber e saber sem poder; “poder e saber encontram-se assim firmemente enraizados”

(2008, p. 126). O poder, para se exercer, precisa organizar e pôr em circulação um

saber.

Nesse contexto, há que se renunciar à toda a herança que faz acreditar que só

pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode se

desenvolver fora de seus interesses. Há que se abrir mão da concepção de que o poder

(político) provém do contrato e que o saber provém de um modelo epistemológico.

Todo o saber, de acordo com esse pensamento, está “contaminado” por um

poder. Não há, pois, saber puro51. Todo e qualquer saber já nasce influenciado por um

poder, um valor. Portanto, o saber não decorre de nenhum sujeito epistemológico, mas,

sim, das relações de poder. O saber não é um reflexo, mas um produto das relações de

poder, pois ambos se implicam diretamente.

Temos antes que admitir que o poder produz saber. [...] Que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição

51 Não há como se conceber uma razão pura (daí a crítica à Kant), tampouco uma Teoria pura do Direito (tal qual desejava Hans Kelsen).

61

correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento. (FOUCAULT, 1998, p. 27) [grifo nosso]

O poder se manifesta, então, nas relações mais singelas, mais invisíveis,

menores. São micropoderes ou focos locais de poder-saber52 que, em conjunto,

difundem o poder no corpo social. Foucault entende que existem estados dentro do

Estado: pequenos poderes que auxiliam a difusão do saber-poder.

O Estado que conhecemos [...] é [...] um problema totalmente diverso do da possibilidade de uma centralização do poder. [...] A sociedade [...] está fragmentada numa infinidade de "partes" singulares, dispersas e disseminadas em tantos lugares quantos aqueles em que o poder se exerce e se joga segundo modalidades específicas. O Estado não tem o privilégio da totalidade. (EWALD, 1993, p. 39 - 42)

E, como facilmente se pode concluir, a verdade (que é produzida por um tipo de

saber), utiliza como meio de produção a palavra. O testemunho, a confissão, o discurso

são meios de persuadir o interlocutor e, dessa forma, produzem verdades e incidem

poder. "É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. E, por essa

mesma razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos,

cuja função tática não é uniforme nem estável" (FOUCAULT, 2006, p. 111).

O que Foucault pretende, então, é “ver historicamente como se produzem efeitos

de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos”

(2007, p. 07). Daí, um perspectivismo da realidade (e não um relativismo, tal qual já foi

abordado linhas acima).

Os discursos, portanto, poderiam ser entendidos como “vazios” em um primeiro

momento, já que dependem, para ser verdadeiros ou falsos, de uma constituição espacial

e temporal determinadas. “Por outras palavras, a verdade não é um objeto, mas uma

forma, uma regra de procedimento. Há, talvez, menos saberes verdadeiros e saberes

falsos, ciências e ideologia, que saberes legítimos ou ilegítimos para tais ou tais relações

52 Focos que, a partir do século XVIII ou do século XIX, entraram em atividade para suscitar os discursos sobre o sexo: educação, medicina, psiquiatria, justiça penal.

62

de poder” (EWALD, 1993, p. 57).

Não existe, portanto, saber neutro, puro, pois todo o saber é político (advindo de

uma relação de poder), dependente de uma constituição histórica, temporal, cultural,

dado por um espaço e um tempo53.

Ou seja, para cada espaço e tempo, para cada sujeito constituído por um devir

histórico e por uma epistemologia herdada, existe uma verdade que se originou de um

discurso permeado de poderes e saberes. “Ora, a meu ver isso é que dever ser feito: a

constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado

como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais” (FOUCAULT,

2008, p. 11).

O discurso pode, então, ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder,

ponto de partida e de resistência.

Efeitos diferentes segundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional em que se encontra; com o que comporta de deslocamentos e de reutilizações de fórmulas idênticas para objetivos opostos. Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras. (FOUCAULT, 2006, p. 112) [grifo nosso]

Portanto, para Foucault a verdade é o “conjunto das regras segundo as quais se

distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder;

[...] não se trata de um combate ‘em favor’ da verdade, mas em torno do estatuto da

verdade e do papel econômico-político que ela desempenha”. A verdade é “um conjunto

de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o

funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 2007, p. 13, 14).

E conclui que: “não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o

que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o

poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior

das quais ela funciona no momento” (FOUCAULT, 2007, p. 14).

53 Para Foucault, as categorias espaço e tempo também são produtos do poder; são formas de poder constitutivas da sensibilidade do sujeito.

63

2.2.2 A história

Michel Foucault desenvolve todo o seu estudo baseado na história, na coletânea

de fatos históricos e de seu desenrolar, de forma profunda e com abordagem

diferenciada.

O estudo da história da sexualidade, da loucura, da violência nas prisões, entre

outros, marca de forma decisiva, um novo olhar, uma nova marca sobre a história do

pensamento ocidental.

Entretanto, Foucault entendeu que todo esse estudo, em determinado momento,

encontrava-se isolado, solto, sem conclusão, e que deveria "fechá-lo" de alguma forma,

através da indicação de um único fio condutor que, já havia percebido, costurava todos

esses fatos históricos e todo esse percurso do pensamento ocidental.

Este ano eu gostaria de concluir uma série de pesquisas que fizemos nos últimos quatro ou cinco anos e de que hoje me dou conta que acumularam inconvenientes. Trata-se de pesquisas próximas umas das outras, mas que não chegaram a formar um conjunto coerente, a ter continuidade e que nem mesmo terminaram. Pesquisas dispersas e ao mesmo tempo bastante repetitivas, que seguiam os mesmos caminhos, recaíam nos mesmos temas, retomavam os mesmos conceitos, etc. [...] Estas pesquisas se arrastam, não avançam, se repetem e não se articulam; um uma palavra, não chegam a nenhum resultado. [...] Todos esses fragmentos de pesquisa, todos estes discursos, poderiam ser considerados como elementos destas genealogias, que não fui o único a fazer. Questão: por que então não continuar com uma teoria da descontinuidade [...]? É verdade que poderíamos continuar – e até certo ponto procurarei continuar – se não fosse um certo número de mudanças na conjuntura. Em relação à situação que conhecemos nestes últimos quinze anos, as coisas provavelmente mudaram; a batalha talvez não seja mais a mesma. [...] Trata-se portanto não de dar um fundamento teórico contínuo e sólido a todas as genealogias dispersas, nem de impor uma espécie de coroamento teórico que as unificaria, mas de precisar ou evidenciar o problema que está em jogo nesta oposição, nesta luta, nesta insurreição dos saberes contra a instituição e os efeitos de poder e de saber do discurso científico. (FOUCAULT, 2007, p. 167 – 174) [grifo nosso]

A desconstrução do sujeito é o fio condutor. E, para tratar dessa desconstrução,

seria, pois, necessário desenvolver um estudo, uma análise mais profunda sobre o

próprio sujeito e sua constituição ao longo do devir histórico e sobre os motivos dessa

desconstrução.

A partir desse estudo, Foucault tratou, entre outras questões, das instituições e os

efeitos de poder e de saber, apoiados em uma modalidade de discurso marcada pelas

64

relações de poder. Assim, a análise histórica deveria, necessariamente, passar pela

abordagem das instituições, das relações de poder que originam um determinado saber

que, por sua vez, desconstruiu o sujeito.

“De produção de poder (que, algumas vezes têm a função de interditar), das

produções de saber (as quais, frequentemente, fazem circular erros ou

desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer as histórias dessas instâncias e de

suas transformações” (FOUCAULT, 2006, p. 19).

Para Foucault, então, a história é “contada” à luz de poderes, produzidos em um

determinado espaço e tempo. A história é, pois, relativa a um determinado olhar: o olhar

de quem a “conta”, de quem a “faz”, daquele que detém o poder.

“A historicidade ‘evolutiva’, assim como se constitui então – e tão

profundamente que ainda hoje é para muitos uma evidência – está ligada a um modo de

funcionamento do poder” (FOUCAUTL, 1998, p. 136).

Essa história, de que hoje se tem conhecimento, é uma história que deve ser

entendida como produzida por um complexo de poder: de um determinado grupo, ou de

algumas pessoas, que pretenderam que assim o fosse. Mas, nem por isso, ela perde sua

importância.

A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem "sentido", o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. (FOUCAULT, 2007, p. 04)

A história não deve, pois, ser dissociada desses poderes, saberes e discursos que

a constituem. Não deve ser analisada sob a ótica de um sujeito, de um tempo, um

espaço. Não deve respeitar a uma única perspectiva. O método, a atividade da

perspectiva, essa forma de história é chamada por Foucault de genealogia.

“É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê

conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter

que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de

acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”

(FOUCAULT, 2007, p. 07).

A genealogia reúne todos os pontos de vista anteriores à constituição histórica da

qual faz parte. E faz isso porque se estabelece na perspectiva do poder. A genealogia se

65

apresenta como uma arma contra o poder, contra todos os poderes. E encara o poder tal

como ele é e se exerce, não pretendendo fazer dele melhor do que é na realidade.

Ao contrário, tenta destruir todas as máscaras que o encobrem. Pretende mostrar

o poder às claras para que possa ser conhecido realmente como é. E faz isso através de

um saber minucioso, particular, preciso: uma microfísica do poder.

A genealogia descreve [os efeitos do poder]: produção de almas, produção de idéias, de saber, de moral, o mesmo é dizer produção de poder que se reconduz sob outras formas. O poder é simultaneamente causa e efeito. Segundo esta perspectiva, a análise do poder, de qualquer tipo de poder, seja qual for a esfera em que se exerce, será peça de uma genealogia da alma e da moral. (EWALD, 1993, p. 28).

No contexto da microfísica, o poder não é concebido como uma propriedade,

mas, antes, é uma estratégia, uma manobra, uma tática, uma técnica que se utiliza de

uma rede de relações sociais. Esse poder é exercido e não possuído. É causa e efeito ao

mesmo tempo. Está presente em todos os lugares, exercendo influência a todo o

momento, até onde não se acredita poder estar.

A genealogia, então, “torna patente o fato de que há uma perspectiva própria do

poder, irredutível, específica” (EWALD, 1993, p. 27) [grifo nosso]. A perspectiva

própria do poder, em que pese a análise geral, é aquela que também trata do individual,

do particular, com minúcia e cuidado para extrair daí a casuística que servirá de base

para a análise do todo.

“É o aluno que faz funcionar a máquina escolar, o doente o hospital. O que eles

sofrem, o que os sujeita e os investe, é a sua própria força reenviada, obediente às leis

dessa física do poder. É a própria força e o próprio corpo deles que será deformado e

politizado, de acordo com o princípio dessas maquinarias” (EWALD, 1993, p. 53).

Serão esses sujeitos individualizados que irão servir de base para análise foucaultiana do

poder.

Essa perspectiva histórica denominada genealogia, tratando do particular, não

produz um saber, mas traça uma genealogia do saber, sendo chamada por Foucault de

anatomia política, pois verifica a relação do poder com o indivíduo, com o que tem ele

66

de mais específico e mais singular: seu corpo54.

A anatomia política trata do estudo do corpo político “como conjunto dos

elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de

comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os

corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber” (FOUCAULT, 1998, p.

27).

Essa anatomia se apresenta como uma “mecânica do poder [...] que define como

se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que

se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a

eficácia que se determina” (ibid, p. 119).

Tal domínio se dá através da disciplina. Daí Foucault dizer que “a disciplina é

um anatomia política do detalhe” (ibid, p. 120), pois a disciplina domina o corpo na sua

menor reação, no seu mais singelo gesto.

Ela está presente na sociedade atual, sendo uma “antipsicologia, uma

antipsicanálise, uma antipolítica, uma antifilosofia” (EWALD, 1993, p. 52). Isso porque

retira toda a moral da relação de poder, além de ser uma “antiepistemologia” (ibid, p.

55), pois retira toda a possibilidade de conhecimento do sujeito – que, para Foucault, é

constituído por uma relação de poder. A anatomia política denuncia a ilusão da verdade,

já que apresenta um sujeito antiepistemológico.

O método genealógico, então, coloca em evidência, especificamente, o problema

do poder e dos corpos a partir da tomada de poder sobre os corpos. Michel Foucault faz

essa análise relativa aos corpos e ao poder precipuamente na obra Vigiar e punir (1975).

Na citada obra Foucault analisa a relação do poder incidente sobre os corpos,

como isso se iniciou, como perdurou, como se manifestou, enfim, como marcou a

humanidade em sua história.

A análise se inicia em meados do século XVII e se estende até o século XIX.

Durante todo esse período, Foucault apresenta uma evolução (ou involução?) desde a

54 “A ‘invenção’ dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturaram a organização militar” (FOUCAULT, 1998, p. 119).

67

presença dos suplícios na vida da população européia55 (como prática comum de

repressão ao crime) até o nascimento da prisão carcerária.

A passagem se dá desde a transferência da incidência do poder sobre o corpo do

indivíduo (pela tortura e pelos suplícios), passando pelo trabalho forçado, pela repressão

amparada pela clausura religiosa, escolar, laboral, psiquiátrica, até a tentativa de se

retirar totalmente o poder sobre o corpo do indivíduo. Não é mais o corpo que é

atingido: agora, atinge-se a alma56.

Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos – daqueles que abriram por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou – é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições (FOUCAULT, 1998, p. 18).

Para isso, surge a prisão como forma de punir o condenado sem tocar em seu

corpo, atingindo sua alma. O poder, aparentemente, é transferido de lugar: do corpo do

condenado para o cerceio de sua liberdade, ou seja, para a repressão à sua alma.

“O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente

até meados do século XIX. Sem dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício

como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito”

(FOUCAULT, 1998, p. 18).

Porém, a incidência do poder sobre os corpos nunca deixou de ter um objetivo

único: a sua utilização econômica, em meio ao campo político de relações complexas e

recíprocas de poder.

E, de acordo com a análise de Foucault, foi a disciplina quem retirou dos corpos

55 Verificar, no Anexo E deste estudo, um pequeno levantamento de crimes praticados na atualidade. Pode ser feito um contraponto: a semelhança entre os suplícios como pena (no século XVII) e os mesmos suplícios, hoje, como constituidores dos crimes. 56 Foucault trata da questão da alma da seguinte forma: “Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão [...] mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, quem é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. [...] Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. [...] Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma ‘alma’ o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” (FOUCAULT, 1998, p. 28, 29).

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toda a sua capacidade de ação e reação, nos seguintes termos: a disciplina “fabrica

corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do

corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos

políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo” (1998, p. 119).

Dessa forma, mesma havendo uma transferência do “local” do poder (do corpo

para a alma) Foucault, através de uma análise minuciosa, prova que não há mudança

efetiva, concreta. Isso porque a relação do poder sobre os corpos se apresenta difundida

na totalidade da sociedade.

Em todos os campos e em todos os lugares está presente essa relação. E,

principalmente, nos níveis mais baixos, menores, naqueles em que não se imagina estar

presente uma relação de poder, ali é que efetivamente se encontra a relação dele com os

corpos.

As anatomias políticas dispersam-se: no mesmo Estado em que se articulam segundo ligações laterais, formando redes e correias de transmissão; enfim, conjuntos técnicos, a sua coerência não é a de uma estrutura, mas de estratégias de táticas. A anatomia política desenvolve assim os seus efeitos segundo três direções privilegiadas: o poder, o corpo, o saber, que não é possível isolar senão por preocupação de clareza. (EWALD, 1993, p. 29)

Nas relações de poder, então, há sempre a presença dos corpos dos indivíduos

que são afrontados, insultados, aviltados, mortos, mesmo que de maneira indireta.

É isso que Michel Foucault quer combater: a desumanização do poder pela

anatomia política e o absurdo da produção da verdade pela tomada dos corpos. “Quem,

pois, nos dirá a partir de quantos mortos uma verdade pode ser uma grande verdade?

Foucault liberta-nos desta tradição, deste poder esmagador, atrofiante, mutilador, de um

certo regime de verdade” (EWALD, 1993, p. 23).

O estudo que Foucault faz do poder é, então, uma analítica do poder. E essa

análise não é “apenas um trabalho negativo e crítico. Na formulação paciente dos sues

conceitos e do seu método, pode ler-se o passo em frente de uma filosofia política

simultaneamente nova e positiva” (EWALD, 1993, p. 14).

Sendo uma análise construtiva, a genealogia pretende tratar dos espaços

deixados de lado, dos fatos esquecidos, da história que não foi contada. Essa forma “de

fazer história” desmascara e desvela o que foi feito segredo por forças ocultas de poder

ao longo dos tempos.

A análise genealógica mostra como o poder, fundado em força, foi quem

69

“contou” a história do pensamento ocidental tal qual como hoje é conhecido. Foi o

poder, que gerou um saber, que constituiu a história ocidental.

E esta genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só se pode tentar realizá-la à condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica. Chamemos provisoriamente genealogia o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais. (FOUCAULT, 2007, p. 171)

A genealogia é um tipo de análise histórica que prescinde das doutrinas e teses

dadas. Ela pretende tratar do sujeito marcado por seu devir histórico, pela sua formação

constituída por forças e poderes que geraram um saber. Ela quer analisar esses saberes

locais e entender como se deram para poder desconstituir as doutrinas e teses as quais

prescindiu.

Não é um empirismo nem um positivismo, no sentido habitual do termo, que permeiam o projeto genealógico. Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderiam depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. [...] São os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater. (FOUCAULT, 2007, p. 171)

Por ser uma analítica positiva, o objetivo maior da genealogia é libertar o sujeito

da herança que o constituiu e que fez com que não fosse preparado para lutar contra as

instituições e forças de poder, as quais ainda ele tem dificuldade para identificar, pois

acredita nos saberes e discursos os quais foram utilizados para sua constituição. “A

genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na

hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da sujeição

os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de

um discurso teórico, unitário, formal e científico” (FOUCAULT, 2007, p. 172).

A genealogia daria ao sujeito a liberdade necessária para, fazendo uma análise

crítica, se posicionar diante do devir histórico que o constituiu, trazendo à sua

consciência, todas as implicações que o formaram, chegando, assim, à verdade, ou

melhor, a sua verdade.

“Se há que lutar pela verdade em nome da verdade, tal já não pode ter o sentido

de que, aos erros de uns e às mentiras de outros, se tenham de objetar verdades

encobertas, soterradas ou desnaturadas, produzir enunciados verdadeiros, mas lutar

70

contra o regime de verdade, contra a sua economia política” (EWALD, 1993, p. 16).

Como já dito acima, a análise histórica deve passar pela abordagem das relações

de poder que originam um determinado saber. Alguns saberes históricos, na visão de

Michel Foucault, possuem um conteúdo escondido, com status de saber desqualificado,

impotente para servir de base ao conhecimento científico. A esses saberes ele denomina

“saber dominado”.

Por saber dominado, entendo duas coisas: por um lado, os conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais. [...] os saberes dominados são estes blocos de saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento da erudição. [...] Em segundo lugar, por saber dominado se deve entender outra coisa e, em certo sentido, uma coisa inteiramente diferente: uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou cientificidade. (FOUCAULT, 2007, p. 170)

2.2.3 O Direito

Permeando o estudo do poder, Michel Foucault também se preocupou com o

Direito durante os anos de pesquisas: “o que tentei investigar, de 1970 até agora, [...] foi

o como do poder. [...] As regras do direito que delimitam formalmente o poder e [...]

os efeitos de verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez reproduzem-

no. Um triângulo, portanto: poder, direito e verdade” (FOUCAULT, 2007. 179) [grifo

nosso]. Em uma palavra, para Foucault, o Direito nasce do poder.

Assim sendo, Foucault aprofundou suas teses relativas ao Direito (sem nunca,

entretanto, ter feito, propriamente, uma teoria do Direito57), tratando das normas, mais

precisamente, investigando o que comumente se chama de teoria das normas. Porém,

não se pode dizer que tenha desenvolvido uma tese própria sobre o tema, mas a maneira

57 Tal qual afirma Márcio Alves da Fonseca: “não há unidade do objeto ‘direito’ em Foucault. Menos ainda o desenvolvimento de uma teoria ou um pensamento sistemático sobre o tema. O ‘direito’ de que trata em diversos momentos de seus trabalhos não é sempre a mesma coisa e não remete a uma realidade em que se possa identificar traços gerais e recorrentes. [...] Uma pesquisa sobre o direito em Foucault não pode beneficiar-se da precisão e da constância de um objeto que permitiriam um estudo linear”. Na visão do autor, o que Foucault propõe é o que ele denomina “direito novo”, ou seja, pensar o direito de uma forma diferente, “pensar diferentemente” o direito tratando das questões do poder, da lei e da norma (2002, p. 17-23).

71

como a abordou foi inédita. Foucault pensou o Direito de uma maneira diferente.

Não se trata de dizer que Foucault é um filósofo da norma. Aliás, ele nunca tematizou essa questão por si mesma. Em contrapartida, é verdade que o projeto que era o seu, o de uma história das relações sujeito-verdade no Ocidente, o conduziu de maneira recorrente à verificação de que, nas sociedades modernas, elas passaram pelo desenvolvimento e a multiplicação paralela das práticas da norma. (EWALD, 1993, p. 81) [grifo nosso]

Foucault desconfiou de toda forma de Direito até então existente, da qual foi

herdeiro e, pretendeu abordar o tema do Direito através de uma nova perspectiva, a do

chamado “direito novo”58.

Se as massas já sofreram tanto com a justiça para que continuar a impor-lhes sua forma velha, mesmo que seja com um novo conteúdo? Percebe-se aí, portanto, uma desconfiança geral acerca da forma do direito que é manifestada continuamente nas intervenções do autor [...] Diante de uma desconfiança generalizada da forma do direito [...] qual poderia ser a forma de uma prática do direito? Certamente, qualquer reutilização de uma forma do direito, como por exemplo a forma do tribunal, deve passar pelo crivo de uma crítica muito severa. A única reutilização válida da forma do direito seria aquela que permitisse se constituir, paralelamente a qualquer processo, um contra-processo que fizesse aparecer como mentida a verdade do outro, e como abuso de poder as suas decisões. [...] Em outros termos, é preciso desconfiar da forma do direito cuja arquitetura seria ao mesmo tempo uma mecânica da ordem. (FONSECA, 2002, p. 254, 255)

Dessa forma, como mesmo foi ressaltado acima, Foucault nunca abandonou,

nesse estudo, as relações do direito com o poder e a verdade. “Regras de direito,

mecanismos de poder, efeitos de verdade, ou regras de poder e poder dos discursos

verdadeiros, constituem aproximadamente o campo muito geral que escolhi percorrer

apesar de saber claramente que de maneira parcial e ziguezagueando muito”

(FOUCAULT, 2007, p. 180).

Há que se ressaltar, porém, que “aplicar o método de Michel Foucault ao direito

pressupõe que nos desprendamos de alguns usos correntes” (EWALD, 1993, p. 60).

Deve-se, em primeiro lugar, suspender idéias abstratas (principalmente fornecidas pela

modernidade) como direito, Estado e poder.

“Onde houver sociedade, poder, coerção, legalidade, não há necessariamente

direito. O direito deve ser considerado como um fenômeno raro e precário e a existência

de um direito, numa sociedade, como um acontecimento do qual compete precisamente,

a uma filosofia do direito dar conta” (EWALD, 1993, p. 60). 58 Expressão usada por Márcio Alves da Fonseca.

72

Suas pesquisas, então, se deram a partir das seguintes questões: “de que regras

de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de verdade? Em

uma sociedade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir discursos de

verdade dotados de efeitos tão poderosos?” (FOUCAULT, 2007, p. 179).

E para responder a essas perguntas, há que se fazer uma análise sobre a diferença

entre lei, regulamento, norma e normalização em Foucault: "se, juridicamente, o poder

de Estado se exerce através de leis, os estados dentro do Estado são regidos por

regulamentos (acerca da oposição da lei e da regra ou do regulamento)" (EWALD,

1993, p. 41).

A lei define um espaço de liberdade, traçando seu limite, definindo uma divisão

imperfeita entre o permitido e o proibido. O regulamento toma o espaço deixado vazio

(pela imperfeição da lei) diferenciando, individualizando, impondo gestos, atitudes,

modos de conduta, normalizando e moralizando ao mesmo tempo. Em suma: o

regulamento é decretado e a norma negociada.

O regulamento, e a sanção que o reduplica, é um dos operadores do investimento do poder sobre os homens que fabrica, forma e torna dóceis, de maneira que os indivíduos assim formados e educados reproduzirão, na sua vida, na sua conduta, mas talvez também nas suas idéias, nas suas vontades, a própria forma do poder que se exerce sobre eles. (EWALD, 1993, p. 41)

A norma, por sua vez, está entre as “artes de julgar”. Ela tem relação com o

poder, não pelo uso da força, da coerção, mas, sim, "por uma maneira do poder refletir

as suas estratégias e definir seus objetos. A um tempo, aquilo que faz que a 'vida' possa

ser objeto de poder e o tipo de poder que torna a seu cargo a 'vida'. Numa palavra,

aquilo que lhe dá a forma de uma 'biopolítica'" (EWALD, 1993, p. 78).

A norma designa uma regra de juízo, uma maneira de produzir a regra de juízo. É uma maneira de ordenar multiplicidades, de as articular, de as relacionar consigo mesmas segundo um princípio de pura referência a si. A norma produz objetividade. [...] A norma igualiza; torna cada indivíduo comparável a cada outro; fornece a medida. [...] Mas a norma desigualiza do mesmo modo. É, aliás, a única objetividade que nos dá: a norma convida cada indivíduo a reconhecer-se diferente dos outros; encerra-o no seu caso, na sua individualidade, na sua irredutível particularidade. Precisamente, o normativo afirma tanto mais a igualidade de cada um perante todos quanto infinitiza as diferenças. [...] A norma não é totalitária; individualiza; permite que cada indivíduo se reivindique na sua individualidade; deixará de boa vontade que cada um a viva; é que, por mais forte que possa reivindicar-se, ele nunca escapará à medida comum. (EWALD, 1993, p. 108, 109)

Não se pode olvidar que a lei não se confunde com a norma em Foucault. Para

73

ele, a lei é tida como o código, a legislação material, a regra codificada legalmente. A

lei é o comando geral e abstrato, positivado pelo Estado. Já a norma é entendida como

um mecanismo de normalização.

Mas, pode ocorrer da lei funcionar como norma. Nas palavras do próprio

Foucault: “Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam

a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição

judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos

etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras” (FOUCAULT, 2006, p. 157).

Também há que se distinguir o que o autor entende por norma e normalização,

mesmo que estas noções não sejam claras e perfeitamente distintas em Foucault.

As noções de norma e normalização em Foucault não gozam de uma continuidade e uma unidade de sentido e implicam em diversas imagens e figuras. No entanto, são noções por ele construídas e descritas, que permitem que se acompanhe as diversas imagens do direito que aparecem em seus textos, pois são elas que possibilitam a articulação de tais imagens como o funcionamento, com os usos, que as define (FONSECA, 2002, p. 28).

Ainda que se possa encontrar em sua obra outras conceituações de norma e

normalização, pode-se dizer que Foucault entende que a norma é “o elemento a partir do

qual o exercício de poder torna-se possível” e normalização “é o próprio movimento

descrito por tal exercício” (FONSECA, 2002, p. 89).

Não se pode, porém, entender a norma (em Foucault) como uma regra de

restrição, de repressão ou exclusão. Tampouco a normalização como a imposição de

limites a determinadas condutas. Ao contrário. A norma é uma situação ou um meio

pelo qual a “tecnologia de poder é possível” e a normalização é o “agenciamento da

produção de condutas esperadas” (FONSECA, 2002, p. 87).

A partir das indagações acerca das regras de direito, das relações de poder e da

produção da verdade, Foucault procurou abordar, em seus estudos, a relação entre

Direito e poder. Vejamos.

2.2.4 Poder (biopoder)

É importante que fique claro, inicialmente, que Foucault não faz uma teoria do

74

poder e suas relações. Ele faz, sim, uma analítica do poder.

A analítica do poder em Foucault não representa a elaboração de uma teoria sobre o poder, nem se constrói em apenas um dos seus trabalhos. A diferença entre uma “teoria” e uma “analítica” do poder aqui é fundamental. Uma teoria do poder supõe, de algum modo, a identificação de um objeto. Seu ponto de partida seria a determinação de algo como o “ser” do poder, a partir do que, seria possível uma série de descrições de sua estrutura, suas regras de funcionamento, seus efeitos. Uma analítica do poder, por outro lado, não parte da pressuposição de uma essência, não procura definir “o” poder, mas se limita a perceber diferentes situações estratégicas a que se chama “poder”. A analítica do poder em Foucault corresponde a uma concepção nominalista do poder: este não é uma coisa, não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma potência de que alguns seriam dotados, mas apenas o nome dado a uma situação estratégica complexa numa determinada sociedade. (FONSECA, 2002, p. 95, 96).

A partir dessa relevante distinção, fazendo a análise da práxis do poder, é que o

filósofo francês parte para uma análise mais minuciosa do assunto, sempre percorrendo

seu devir histórico.

Inicialmente, importa distinguir, então, duas “formas” de poder estudadas por

Foucault: o poder soberano e o poder disciplinar (a soberania e a disciplina).

O filósofo trata do poder soberano através da análise histórica, desde o medievo,

com a elaboração do pensamento jurídico que se deu através do poder do monarca.

Desde esse período, a relação entre poder e Direito esteve baseada no poder da realeza.

Um princípio geral no que diz respeito às relações entre direito e poder: parece-me que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder real. É a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado. [...] O personagem central de todo o edifício jurídico ocidental é o rei. É essencialmente do rei, dos seus direitos, do seu poder e de seus limites eventuais, que se trata na organização geral do sistema jurídico ocidental. (FOUCAULT, 2007, p. 180, 181)

E fazer essa afirmação, de que a relação entre poder e Direito se fundou na

soberania, é também afirmar que o discurso e a técnica do Direito tiveram a função de

dissolver a dominação dentro do poder para, em seu lugar, fazer aparecer os direitos

legítimos da soberania e a obrigação legal da obediência (FOUCAULT, 2007, p. 181).

"Através do desenvolvimento da monarquia e de suas instituições instaurou-se

essa dimensão do jurídico-político; ela certamente não é adequada à maneira como o

poder se exerce e tem sido exercido; mas é o código segundo o qual ele se apresenta e

prescreve que o pensem" (FOUCAULT, 2006, p. 98).

75

Para Foucault, então, “o direito é, de modo geral, o instrumento dessa

dominação [...]. E quando digo direito não penso simplesmente na lei, mas no conjunto

de aparelhos, instituições e regulamentos que aplicam o direito. [...] [O direito] veicula

relações que não são relações de soberania e sim de dominação” (2007, p. 181).

Faz parte do direito uma série de instituições que, na visão foucaultiana,

imprimem no sujeito uma relação de dominação. Por isso, “o direito deve ser visto

como um procedimento de sujeição, que ele desencadeia, e não como uma legitimidade

a ser estabelecida” (FOUCAULT, 2007, p. 182).

A soberania e a obediência são substituídas, respectivamente, pela dominação e

sujeição. E é justamente isso que deve ser evitado, de acordo com Foucault59.

A essa análise desenvolvida (sobre a relação entre Direito e poder, mais

precisamente sobre a influência do poder-saber real), Foucault chama de “teoria

jurídico-política da soberania”. De acordo com essa teoria, o poder soberano

desempenhou quatro papéis: 1) foi um mecanismo de poder efetivo; 2) serviu de

instrumento para a constituição das grandes monarquias administrativas; 3) foi uma

arma que circulou tanto na guerra quanto na religião, limitando e reforçando o poder

real; e 4) construiu um modelo alternativo contra as monarquias administrativas,

autoritárias ou absolutas, chamado de democracia parlamentar.

Porém, como já antecipado linhas acima, além do poder soberano também

existiu o poder disciplinar que era alheio à soberania. Ele era absolutamente alheio ao

poder soberano. E, como seria consequente, seu surgimento deveria ter provocado o

desaparecimento do poder soberano. Mas, não foi isso que ocorreu. Ambas as formas de

poder subsistiram.

Este poder não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar. Indescritível nos termos da teoria da soberania, radicalmente heterogêneo, o poder disciplinar deveria ter causado o desaparecimento do grande edifício jurídico daquela teoria. Mas, na verdade, a teoria da soberania continuou não só existindo como uma ideologia do direito como também organizando os códigos jurídicos. (FOUCAULT, 2007, p. 188)

E as suas existências, em paralelo, se deram porque o direito de soberania e o

mecanismo de disciplina serviram de limite ao exercício do poder. “No espaço

disciplinar ou normativo nada vem substituir o lugar do soberano” (EWALD, 1993, p.

85).

59 Essa questão será melhor aprofundada no subtítulo que trata da resistência (2.2.4.1.).

76

O poder disciplinar não faz parte do direito, pois a disciplina (que lhe é inerente)

fabrica indivíduos, o que não é aceito pelo Direito. Nas palavras de Foucault, as

disciplinas são “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,

que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de

docilidade-utilidade” (1998, p. 118). “A disciplina procede em primeiro lugar à

distribuição dos indivíduos no espaço” (ibid, p. 121), controlando o tempo de cada um e

de todos.

“A disciplina, é a arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos

arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os

distribui e os faz circular numa rede de relações” (ibid, p. 125). Ela é uma técnica de

poder que vê os homens como objetos e instrumentos do seu exercício: do exercício do

próprio poder, fato este não tolerado pelo Direito. Por isso, o poder disciplinar não faz

parte do Direito.

As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico. (FOUCAULT, 2007, p. 189)

Nessa mesma esteira de raciocínio, Foucault diz que a disciplina, além de não

fazer parte do Direito, é considerada um infradireito ou uma espécie de contradireito, já

que o Direito objetiva a igualdade, estando sempre fundado em princípios isonômicos e

a disciplina, ao contrário, é formada por sistemas de micropoderes inigualitários.

Enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limite, desqualificam e invalidam. De qualquer modo, no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle e fazem funcionar as assimetrias de seu poder, elas efetuam uma suspensão, nunca total, mas também nunca anulada, do direito. Por regular e institucional que seja, a disciplina, em seu mecanismo, é um “contradireito”. E se o juridismo universal da sociedade moderna parece fixar limites ao exercício dos poderes, seu panoptismo difundido em toda parte faz funcionar, ao arrepio do direito, uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes e torna vãos os limites que lhe foram traçados. (FOUCAULT, 1998, p. 183, 184)

É a prisão, segundo o filósofo francês, que está no ponto de mutação entre o

77

poder codificado de punir e o poder disciplinar de vigiar. A prisão está nessa passagem:

entre o direito que “se inverte e passa para fora de si mesmo, e no contradireito que se

torna o conteúdo efetivo e institucionalizado das formas jurídicas. O que generaliza

então o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de

direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos”

(FOUCAULT, 1998, p. 184)60.

Com relação à disciplina, Foucault adverte: “a ‘disciplina’ não pode se

identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma

modalidade para exercê-lo que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas,

de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma ‘física’ ou uma ‘anatomia’

do poder, uma tecnologia” (1998, p. 177).

Ainda segundo Foucault, foi o crescimento da economia capitalista que

impulsionou o poder disciplinar a crescer e se difundir, pois é o próprio capitalismo

quem apela para essa modalidade específica de poder, atrelada à disciplina. Não se pode

esquecer que o poder disciplinar pode ser posto “em funcionamento através de regimes

políticos” (FOUCAULT, 1998, p. 182).

O poder disciplinar, em suma, é um poder que tem como função primordial

“adestrar” os sujeitos, apropriando-se de seus corpos e de sua energia para controlá-los

mais e melhor. O poder disciplinar não reduz as forças dos indivíduos, mas, ao

contrário, tenta uni-las para multiplicá-las e utilizá-las da “melhor” maneira possível,

dentro de uma rede interligada de relações de poder.

Através da disciplina e do exame, analisa, classifica, diagnostica, prescreve,

separa, exclui, pesquisa, até atingir seu objetivo. Assim, deixa os corpos adestrados e

prontos para serem manipulados.

[O poder disciplinar] não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos. O aparelho judiciário não escapará a essa invasão, mal secreta. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame. (FOUCAULT, 1998, p. 143)

60 Nesse ponto, Michel Foucault demonstra claramente sua oposição ao imperativo categórico kantiano, quando utiliza a expressão “consciência universal da lei”.

78

O exame, por exemplo, “é um controle normalizante, uma vigilância que permite

qualificar, classificar e punir”. É através do exame que se produz a verdade. Por isso,

ele é o corolário da relação poder-saber61. “O exame supõe um mecanismo que liga um

certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do poder” (ibid, p. 154 –

156).

O exame abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não contudo para reduzi-lo a traços ‘específicos, como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa ‘população’. [...] O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. (FOUCAULT, 1998, p. 158 – 160)

Foucault afirma que é através das disciplinas que o poder da norma aparece. E

diz mais: “compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um

sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele

introduz, como imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das

diferenças individuais” (ibid, p. 153, 154).

A partir da constatação (de que é através da disciplina que o poder da norma

aparece), Foucault irá fazer uma diferenciação no tocante às sociedades nas quais o

poder disciplinar se manifesta.

Ele diz que a sociedade atual é marcada pela presença de duas formas sociais

distintas: a sociedade de normalização (ou sociedade normalizadora ou, ainda,

sociedade normativa) e a sociedade disciplinar. “Há assim uma relação necessária entre

a idéia de uma ‘sociedade disciplinar’ e a de norma” (EWALD, 1993, p. 106).

A sociedade de normalização tem, de um lado, o poder disciplinar e, de outro, o

Direito. A nomenclatura “normalização” é dada por Foucault porque o poder se exerce

simultaneamente através das técnicas e dos discursos criados pelas disciplinas. E porque

os procedimentos de normalização colonizam cada vez mais os procedimentos da lei.

Assim, a sociedade passa a ser de normalização e, por consequência, da exclusão.

61 Sobre a relação poder-saber verificar o subtítulo 2.2.1. deste estudo.

79

Que estranha sociedade é a sociedade normativa. Como qualquer outra, ela exclui, sem que esta exclusão implique um juízo prévio de natureza. Ela é polaridade, diferença de potencial, tensão entre um passado e um futuro. Tem as suas exigências. Naturais nunca, sociais sempre. Coloca, pois, no seu próprio seio o princípio de uma partilha de valorização. Mas procura ao mesmo tempo as discriminações que lhe são conseqüentes. (EWALD, 1993, p. 117, 118)

Nessa sociedade são dados “novos procedimentos de poder que funcionam, não

pelo direito, mas pela técnica, não pela lei mas pela normalização, não pelo castigo mas

pelo controle, e que se exercem em níveis e formas que extravasam do Estado e de seus

aparelhos” (FOUCAULT, 2006, p. 100).

A partir daí, fácil é perceber as diferenças entre ambas: a sociedade

normalizadora é mais abrangente, estando presente dentro e fora do âmbito estatal,

sendo marcada pela técnica, pela norma e pelo controle. A norma é aplicada a um

número indistinto de pessoas e casos. Já a sociedade disciplinar é mais restrita, estando

presente ao nível estatal. É marcada pelo Direito, pela lei e pelo castigo (disciplina),

intimamente ligada aos corpos dos indivíduos.

O que caracterizaria o início da modernidade, para Foucault, seria justamente a

passagem da sociedade normalizadora para a sociedade disciplinar.

Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. Por referência às sociedades que conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução francesa, os Códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador. E contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se apoiaram exatamente naquilo sobre que ele investe - isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo. (FOUCAULT, 2006, p. 157)

Para Foucault a formação da sociedade disciplinar se caracteriza por dois “fatos

contraditórios, ou melhor, de um fato que tem dois aspectos, dois lados aparentemente

contraditórios: a reforma, a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes

países da Europa e do mundo” (FOUCAULT, 2008, p. 79).

A esse período em que essa sociedade se iniciou, Foucault denomina de “idade

da ortopedia social. Trata-se de uma forma de poder, de um tipo de sociedade que

classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que

conhecíamos anteriormente” (ibid, p. 86).

Essa sociedade disciplinar “nasceu” no período da Revolução Industrial, onde a

distribuição de riquezas passou a se estabelecer de forma inovadora, com o

80

desenvolvimento de novas relações de poder e controle social.

Foi, portanto, essa nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou necessários novos controles sociais no fim do século XVIII. Esses novos sistemas de controle social agora estabelecidos pelo poder, pela classe industrial, pela classe dos proprietários foram justamente tomados dos controles de origem popular ou semi-popular, a que foi dada uma versão autoritária e estatal. Esta é, a meu ver, a origem da sociedade disciplinar e estatal. (FOUCAULT, 2008, p. 102)

E, conforme já afirmado acima, o filósofo entende que essa sociedade disciplinar

é a própria sociedade contemporânea, atual, que tem por característica não ser uma

sociedade do enclausuramento generalizado, mas, antes, uma sociedade da comunicação

absoluta, pois as disciplinas se difundem e permitem que tudo se comunique entre si

(EWALD, 1993, p. 83).

De acordo com o que foi antecipado acima, a partir do momento em que os

crimes praticados em meio à sociedade disciplinar começam a ser punidos não mais

pelo suplício dos corpos, mas pelo atingimento das almas, inicia-se uma fase de controle

social através da observação, da avaliação, do exame e da disciplina.

Esse poder, visivelmente exercido pelo controle, se concretiza na prática em um

modelo chamado panoptismo62. Trata-se de uma forma de poder que se baseia na

observação dos indivíduos, no controle total de suas vidas.

No Panoptismo vai se produzir algo totalmente diferente; [...] Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre ele um poder – mestre-escola, chefe de oficinas, médico, psiquiatra, diretor de prisão – e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber. [...] Esse novo saber [...] se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou não fazer. (FOUCAULT, 2008, p. 88)

Esse poder se exerce eminentemente mediante a observação produzindo poder

através do controle dos indivíduos. “O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a

partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder” (FOUCAULT,

1998, p. 167).

Todas as vezes em que se pretender manipular, controlar, dominar um

determinado agrupamento de pessoas, poderá ser utilizado o modelo panóptico. “Em

cada uma de suas aplicações, permite aperfeiçoar o exercício do poder” (idem, p. 170).

62 O panoptismo foi “criado” por Jeremy Bentham (1748–1832), fundador do utilitarismo e autor do “Princípios da Moral e da Legislação” (1789).

81

Por isso, esse modelo é aliado da implementação do poder, é um intensificador para

qualquer aparelho de poder.

Ele controla o tempo, o espaço, os corpos, os gestos, os gostos, os desejos, as

vontades e tudo o mais que se pretender manipular e reter de cada um dos indivíduos em

questão. Dessa forma, ajusta perfeitamente a relação poder-saber, produzindo

exatamente o que o mais forte (detentor do poder) o desejar.

O Panóptico é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo agrupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo. [...] O Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. [...] É um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. [...] Funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça. (FOUCAULT, 1998, p. 168, 169)

O panóptico tem por objetivo corrigir, emendar, ajustar. E, por isso, Foucault

afirma que a sociedade que o “utiliza” é denominada de “sociedade da ortopedia

social”. E, em que pese o panoptismo estar presente (como mesmo demonstra Foucault)

em toda a sociedade (escola, oficinas, escritórios, consultórios), também está presente, e

de forma muito mais explícita, na prisão.

Conforme a pesquisa foucaultiana, essa forma de poder exercida pela observação

carcerária que visa à correção do detento, surpreendentemente não se originou no

universo jurídico, mas, antes, é uma idéia policial, nascida no âmbito social.

Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos, de penalidade que procura corrigi-los pela reclusão e pelo internamento não pertence, na verdade, ao universo do Direito, não nasce da teoria jurídica do crime, não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria. Essa idéia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma idéia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça, em uma prática dos controles sociais ou em sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder. (FOUCAULT, 2008, p. 99)

E por ter se originado no plano social (e não no plano jurídico), o panoptismo é

uma forma de exercício de poder que não se apresenta somente nas relações com o

Estado, nas grandes forças sociais, nas grandes potências industriais. Mas, encontra-se

também e principalmente nos pequenos nichos de poder, nas relações mais simples do

cotidiano, da vida social, onde não se estabelece claramente uma relação de poder: é lá

82

que ele também está.

“Gostaria simplesmente de apreender este panoptismo, esta vigilância na base,

no lugar mais afastado do centro da decisão, do poder do Estado; no funcionamento

quotidiano de instituições que enquadram a vida e os corpos dos indivíduos; o

panoptismo, ao nível, portanto, da existência individual” (FOUCAULT, 2008, p. 107).

A prisão, portanto, seria uma instituição inócua uma vez que, fundada no castigo

e no controle, não teria objetivo determinado, a não ser a possibilidade de satisfazer a

ânsia social de ver o culpado, não recuperado, ressocializado, mas sendo castigado pelo

crime cometido.

Nesse passo, há que se distinguir norma e disciplina, que são institutos diversos

na teoria foucaultiana. A norma é uma maneira de produzir uma medida comum, a

mediania aplicada a um número indefinido de pessoas, a partir do que se dá a

possibilidade de um direito nas sociedades modernas. Já a disciplina visa o corpo do

indivíduo, com uma função de adestramento deste, sendo, pois, de aplicação mais

restrita.

O que é pois uma norma? Uma maneira de um grupo se dotar de uma medida comum segundo um rigoroso princípio de auto-referência, sem recurso a nenhuma exterioridade, quer seja a de uma idéia quer a de um objeto. Ela pressupõe arquiteturas, dispositivos, toda uma física do pode graças à qual a grupo poderá tornar-se visível para si mesmo, mas também procedimentos, notações, cálculos, toda uma constituição de saber destinada a produzir, em completa positividade, o um a partir do múltiplo. O procedimento normativo pode obedecer a diferentes esquemas: esquema panóptico das disciplinas, esquema probabilista das seguranças, esquema comunicacional da norma técnica. Estes três esquemas têm a mesma forma: em todos os casos, a regra que há de valer como norma, em função da qual cada indivíduo vai poder medir-se, avaliar-se, identificar-se portanto, será extraída daqueles mesmos aos quais ela se dirige. (EWALD, 1993, p. 108)

Para Foucault não existe sociedade sem norma, sem código, sem medida

comum, sem princípio de comunicação. Mas, não se pode esquecer que, conforme já

dito, para Foucault, norma e lei são institutos distintos. “Normalizar não é legislar. Não

se normaliza por decreto. A normalização não é uma função de Estado. Normalizar

pressupõe a instituição de associação em que o conjunto dos atores interessados –

produtores, consumidores, engenheiros, cientistas – poderão negociar a medida comum

das respectivas exigências” (EWALD, 1993, p. 105).

As disciplinas não são necessariamente normativas. O que caracteriza a modernidade, segundo Foucault, é o advento de uma era normativa: a

83

normalização das disciplinas, a passagem da disciplina bloqueio à disciplina mecanismo, e correlativamente à formação de uma sociedade disciplinar (que não se caracteriza pelo enclausuramento, ainda que se continue a utilizar o respectivo processo), mas optando pela constituição de um espaço: liso, intermutável, sem segregação, indefinidamente redundante e sem exterior. (EWALD, 1993, p. 88)

Se o poder disciplinar vê o indivíduo como um objeto, um instrumento de seu

exercício, fabricando o homem, aplicando-lhe, na sociedade disciplinar, o castigo dos

corpos através do suplício, da dor, da tortura, certo é que, esse mesmo homem, tendo

consciência disso, deve se libertar. Libertar o indivíduo da disciplina é libertá-lo do

próprio homem, da sua constituição formada e construída pelo poder. E, quanto a isso,

Foucault conclui:

Estamos hoje numa situação tal que o único recurso aparentemente sólido que nos resta é exatamente o recurso ou o retorno a um direito organizado em torno da soberania. [...] Creio, porém, que chegamos assim a uma espécie de beco sem saída: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que os efeitos do poder disciplinar poderão ser limitados, porque soberania e disciplina, direito da soberania e mecanismos disciplinares são duas partes intrinsecamente constitutivas dos mecanismos gerias do pode em nossa sociedade. [...] Não é em direção do velho direito da soberania que se deve marchar, mas na direção de um novo direito antidisciplinar e, ao mesmo tempo, liberado do princípio de soberania. (FOUCAULT, 2007, p. 190)

O poder disciplinar, então, em um primeiro momento, se apresenta como um

produtor de normas de conduta, de leis, de moral, de instituições, de conhecimento e

saberes. Produtor do próprio homem. Somente após essa produção, e por consequência,

é que ele se apresenta como repressor.

Mas, o contrário também pode se dar: através da repressão, do terror, da

atrocidade, o poder tira um efeito positivo: de produção da verdade, de reativação do

poder, de reconstrução da soberania lesada. “E não há dúvida que qualquer dispositivo

de poder contém indissociavelmente a possibilidade da sua reversão. [...] De maneira

que o poder encontra a sua energia nas nossas próprias necessidades” (EWALD, 1993,

p. 46).

É a norma que tem a capacidade de transformar o negativo em positivo, a

repressão em produção. Porque possibilita a generalização disciplinar como aquilo que

se institui em virtude dessa transformação. “A norma é precisamente aquilo pelo qual e

mediante o qual a sociedade comunica consigo própria a partir do momento em que se

torna disciplinar. A norma articula as instituições disciplinares de produção, de saber, de

riqueza, de finança, torna-as interdisciplinares, homogeneíza o espaço social, se é que

84

não unifica” (EWALD, 1993, p. 83).

Portanto, o poder tem um pólo positivo (de produção) e um pólo negativo (de

repressão, de constrangimento).

A noção de repressão para Michel Foucault “permanece sendo jurídico-

disciplinar, independentemente do uso crítico que se queira fazer dela. Deste modo, o

uso da noção de repressão como carro-chefe da crítica política fica viciado, prejudicado

de antemão pela referência – jurídica e disciplinar – à soberania e à normalização”

(FOUCAULT, 2007, p. 191).

“A um poder que age por repressão, Foucault opõe as táticas de poder, ou seja, a

gestão, a utilização de uma relação de forças com vista a dela tirar efeitos de

dominação, benefícios e dividendos de poder” (EWALD, 1993, p. 13).

Com base nessas premissas, o filósofo francês indica algumas precauções

metodológicas que devem ser impostas para desenvolver a análise da relação entre o

Direito e o poder. Deve-se:

1) Captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício;

2) Levar em consideração onde o poder implanta e produz efeitos reais;

3) Analisar o poder como algo que só funciona em cadeia, só se exerce em rede.

Nunca está nas mãos de uma única pessoa. Não se aplica aos indivíduos porque

passa por eles. O indivíduo é um efeito do poder.

4) Analisar a maneira como os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder

atuam nos níveis mais baixos;

5) Entender que o poder, para exercer-se nos mecanismos sutis, é obrigado a

formar, organizar e pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber

que não são construções ideológicas.

Para Michel Foucault a teoria do poder parte da seguinte questão: “o que é o

poder, ou melhor – pois a questão o que é o poder seria uma questão teórica que

coroaria o conjunto, o que eu não quero – quais são, em seus mecanismos, em seus

efeitos, em suas relações, os diversos dispositivos de poder que se exercem a níveis

diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados?" (2007, p. 174).

Fazendo, então, uma análise profunda e complexa de, como em um percurso

histórico, o poder se constituiu ao longo do tempo e em inúmeras instituições, ele

conclui que não existiria "um poder", mas "inúmeros poderes".

Esses poderes não estariam presentes em um único lugar, mas em vários locais

de produção de poder. Em suma, o poder estaria em toda a parte, porque provem de

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todos os lugares.

O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalista: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. (FOUCAULT, 2006, p. 103)

Não existe poder como instituição nem como estrutura. O que existe é uma

situação elaborada, produzida por uma força. Existe uma estratégia pensada para ser

aplicada a uma determinada sociedade, em um determinado tempo e um determinado

espaço. Foucault diz que o poder não seria uma instituição definida, mas uma

"multiplicidade de correlações de força".

“Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais”. (FOUCAULT, 2006, p. 102)

É através do estudo e da análise do poder que se compreende como ele se

constitui em uma estratégia que dá origem à formação do Estado e de seus aparelhos,

bem como à formulação das leis.

Importa ressaltar que é a análise do poder que dá origem à soberania estatal e à

formulação das leis, não o contrário (como se pode imaginar). A inovação trazida pelo

estudo feito por Michel Foucault é justamente esta: não são as formas pré-constituídas

como a soberania e as leis que dão origem ao poder. Mas, é o poder que dá origem a

essas formas que o homem aprendeu a pensar como "pré-constituídas".

“A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a

soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são

apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais” (FOUCAULT, 2006, p. 102).

Foucault deixa muito claro que não entende o poder como um conjunto de

instituições e aparelhos ou como um sistema de dominação. Ele afirma que é o poder

que dá origem a essas formas que o homem foi "ensinado a entender como resultantes

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do poder”. Em suma: os homens foram "condicionados" a aceitar que é o poder que

constitui aparelhos e sistemas de dominação. Para Foucault o que ocorre é exatamente o

contrário: é o poder que dá origem a esses aparelhos e sistemas de dominação.

“Esse termo de “poder”, porém, corre o risco de induzir a vários mal-entendidos. Mal-entendidos a respeito de sua identidade, forma e unidade. Dizendo poder, não quero significar “o Poder”, como conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado. Também não entendo poder como modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma da regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro”. (FOUCAULT, 2006, p. 102)

O poder se exerce e, para isso, possui uma mecânica, uma forma de exercício.

Foucault afirma que são duas as formas de exercício do poder: a repressão e a guerra.

O poder é repressão e é guerra.

Dizer que o poder é repressão significa dizer que “o poder é o que reprime a

natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe” (FOUCAULT, 2007, p. 175).

E, dizer que o poder é guerra significa três coisas: 1) que as relações de poder

nas sociedades atuais têm, na base, uma relação de força estabelecida na guerra e pela

guerra; 2) que, mesmo com uma aparente paz no meio social, em seu interior, ainda

existem lutas políticas, confrontos a respeito do poder, com o poder e pelo poder que

devem ser interpretados como continuações dessa guerra; e 3) que a decisão final só

pode vir da guerra, onde o mais forte terá razão e será o juiz.

"O final da política seria a última batalha, isto é, só a última batalha suspenderia

finalmente o exercício do poder como guerra prolongada” (FOUCAULT, 2007, p. 176).

Em suma, existem dois grandes sistemas de análise do poder que se opõem: o

primeiro é chamado “contrato-opressão”, jurídico, que remonta do século XVIII e se

fundamenta na soberania, “tendo o contrato como matriz do poder político” e, quando

se excede, oprime.

O segundo sistema chama-se “guerra-repressão” e se funda na continuação de

uma relação de dominação (“a repressão seria a prática, no interior desta pseudo-paz, de

uma relação perpétua de força”) (FOUCAULT, 2007, p. 177).

O primeiro tem por oposição o legítimo e o ilegítimo e o segundo, a luta e a

submissão.

Para Foucault, o poder é, então, o que se vê, o que se mostra. É o que se

manifesta claramente, de maneira exposta. "Que o poder não é algo que se guarde ou

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deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações

desiguais e móveis" (FOUCAULT, 2006, p. 104).

Diante de toda essa visão acerca do Direito e do poder, Foucault dá a entender

que não há a possibilidade do indivíduo se manter submisso a toda essa “exploração”, a

toda a repressão causada pela forma desenvolvida pelas relações de poder no âmbito

social.

Ele sugere, então, que se lute contra essa ordem de coisas, através da noção de

resistência.

2.2.4.1 A noção de resistência

Como já visto, para Foucault o pensamento e o conhecimento são efeitos da

tomada de poder. Os corpos dos indivíduos são a sede do poder. A alma é o objeto de

investimento do poder político, um instrumento de domínio. “Não se deve opor a alma

ao corpo, o físico ao moral, nem o ser ao pensamento” (EWALD, 1993, p. 51).

Trata-se de fazer deles [corpos], por assim dizer, “corpos políticos”, ou corpos politizados e policiados. Sem dúvida que todo o corpo produtivo é corpo político. Produzir corpos “políticos” é fazer corpos que produzirão e reproduzirão o poder que se exerce sobre eles. [...] É, sem dúvida, o que Foucault chama de “gestão”, princípio de utilização das forças do corpo pelo poder, e mesma das forças “negativas”, maneira de opor a força à força para daí tirar efeitos úteis. [...] O poder do corpo é correlativo do exercício do poder sobre ele. [...] produzir corpos, submetê-los, é, simultaneamente, dotá-los de poder. Daí a possibilidade permanente de reversões e desvios do poder, a necessidade da batalha perpétua, o princípio de gestão dos ilegalismos e das resistências. (EWALD, 1993, p. 49, 50)

O poder (quer sobre o corpo, quer sobre a alma) produz uma força útil à

sociedade, pois o corpo do indivíduo se torna produtivo e submisso. O próprio corpo do

sujeito passa a ser útil: útil ao poder que o produziu. Daí existir um saber do corpo que

não é exatamente a ciência de seu funcionamento, mas que é um controle que se pode

chamar de “tecnologia política do corpo” (FOUCAULT, 1998, p. 26).

Essa tecnologia política produz um determinado saber, uma determinada

verdade, que só interessa àquele poder inicial, originário. O poder é, pois, o produtor do

indivíduo e o que dele (indivíduo) se produz, retorna ao poder.

Essa relação poder-direito-saber (ou poder-direito-verdade), tratada por Foucault

88

em suas obras, constitui um dos cernes de sua doutrina, já que explica, de maneira clara,

como essa triangulação dá origem às “artes de governar”.

Não se pode falar em governo dos homens e das coisas, em governo da vida, sem a consideração das relações entre estes três pólos. [...] Foucault esclarece que, em ao menos grande parte dos seus trabalhos, o que está em jogo é como se organiza, em uma sociedade como a nossa, a relação entre poder, direito e verdade, o domínio constituído por “regras de direito”, “mecanismos de poder” e “efeitos de verdade”. (FONSECA, 2002, p. 25)

Essa trama triangular criada pela formação estatal moderna é, sem dúvida, uma

armadilha que produz verdades através da tomada dos corpos, da submissão do sujeito,

da lei que normaliza e do Direito normalizador.

Na interpretação de Márcio Alves da Fonseca, o que se extrai da obra de Michel

Foucault em conclusão a toda essa análise feita pelo filósofo, é que se deve pensar o

Direito como uma prática não-normalizadora (2002, p. 30). E a melhor forma de se ter

um Direito, na prática não-normalizador, não-repressor é resistindo a ele. A essa

inovadora forma de enxergar o Direito (através dos “olhos” da resistência) Fonseca dá o

nome de “direito novo”.

Essa perspectiva de um a oposição entre normalização e direito permite identificar uma imagem do direito em que este aparece como uma forma de resistência aos mecanismos da normalização. Tal perspectiva perguntaria pela possibilidade de se pensar em práticas do direito que escapem aos mecanismos de normalização e, desse modo, possam resistir a tais mecanismos. Estaríamos assim diante de uma imagem do direito que poderia definir-se como um “direito novo”. (FONSECA, 2002, p. 30)

A perspectiva dessa oposição ao Direito (de base contratualista, desenvolvido

nos séculos XVII e XVIII63) procura verificar a possibilidade de se desenvolver práticas

ligadas que representem resistência ao já citado poder normalizador64. Esse “direito

novo” é “um direito que se constitui numa forma de resistência às disciplinas e aos

dispositivos de seguranças” (FONSECA, 2002, p. 242).

O que se deve deixar claro é que o Direito, ao qual Foucault afirma que se deve

resistir, é aquele fundado em uma relação de poder soberano (já tratado no subtítulo

63 “Para Foucault, em face das tecnologias do poder disciplinar-normalizador, a teoria da soberania não só continuou a existir como ideologia do direito, mas também continuou a organizar os Códigos jurídicos que a Europa do século XIX elaborou a partir dos Códigos Napoleônicos” (FONSECA, 2002, p. 244, 245). 64 Para Foucault, a partir do final do século XVII e início do século XVIII, surge um mecanismo de poder de controle, que em nada se assemelha a um mecanismo de poder de exclusão e segregação.

89

anterior).

Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais. E é certamente a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa sobre a integração institucional das relações de poder. É nesse campo das correlações de força que se deve tentar analisar os mecanismos de poder. Com isso será possível escapar ao sistema Soberano-Lei que por tanto tempo fascinou o pensamento político. (FOUCAULT, 2006, p. 107) [grifo nosso]

O poder soberano (da realeza) cria a obrigação legal da obediência e,

consequentemente, um Direito dominador. Para que a soberania e a obediência não

sejam substituídas, respectivamente, por uma relação de dominação e pela sujeição dos

indivíduos, é que Foucault diz que deve haver resistência. A soberania, a obediência, a

dominação e a sujeição devem ser evitadas.

Ora, em suas pesquisas em torno de uma analítica do poder, Foucault procurará deixar aparecer as relações de dominação em seus mecanismos e em suas formas múltiplas, elidindo de seu horizonte de análise o princípio da soberania. [...] Recusando analisar o poder a partir do problema da sua legitimidade e da obrigação legal da obediência, a analítica do poder em Foucault propõe deixar a dominação “valer como um fato”, sendo que o direito será pensado, nessa perspectiva, como um dos instrumentos das múltiplas formas de dominação. (FONSECA, 2002, p. 243)

Assim, a partir dessa oposição ao Direito fundado na soberania, o “direito novo”

(da resistência) deverá repensar os mecanismos gerais de poder em nossas sociedades

que se constituem, na visão foucaultiana, na soberania, na disciplina e nos mecanismos

da normalização.

Que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Deve-se afirmar que estamos necessariamente "no" poder, que dele não se "escapa", que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto, por estarmos inelutavelmente submetidos à lei? (FOUCAULT, 2006, p. 106)

No entender de Márcio Alves da Fonseca, para se chegar a essa concepção de

“direito novo”, como uma nova forma de enxergar um “direito antigo”, Foucault teria

passado por dois “momentos” distintos de sua análise: teria tido uma primeira postura

negativa, de desconfiança e recusa às formas de direito conhecidas e, posteriormente,

um momento positivo, com uma postura de manifesta resistência (ou oposição) à

90

normalização “gerada” pelo “direito antigo”.

Essa postura negativa acaba por não reconhecer todas as formas conhecidas de

direito, ou seja, toda a forma da lei, da produção legislativa, das instâncias de

julgamento, de aplicação de regras de Direito, a forma de organização e da reprodução

do saber jurídico, “por identificar em todas elas a associação entre o princípio da

soberania (organizador do direito formal e burguês no Ocidente) e os mecanismos da

normalização” (FONSECA, 2002, p. 248).

Já a postura positiva se desenvolve na “valorização das possibilidades concretas

de certos saberes e de certas práticas do direito constituírem um ‘direito novo’, ou seja,

um direito liberado simultaneamente do princípio da soberania e dos mecanismos da

normalização” (FONSECA, 2002, p. 248). Ter essa postura positiva é considerar que as

práticas jurídicas são capazes de constituir uma oposição, uma resistência aos

mecanismos de normalização.

E aqui, nesse ponto, a questão da governabilidade ganha relevância. Deve-se

pensar: “em que medida o governo de si mesmo pode se opor ao governo em que se é

submetido por um outro?” (FONSECA, 2002, p. 259). A problemática dessa questão

está na dúvida quanto à forma que se deve encontrar para governar e não ser governado.

A postura positiva de que fala Fonseca, interpretando Foucault, é aquela que se

opõe à todo mecanismo de governo que está dado. Resiste a todo o modo de governar

que é inspirado na “arte de governar”.

O “direito novo” deve resistir às formas de governar (àquelas formas advindas

do poder soberano). Aquele que tem a consciência do “direito novo” deve se recusar a

ser governado. Essa resistência às formas de governo deve ser inspirada na triangulação

saber-poder-subjetividade, sendo esta compreendida como uma relação, uma

implicação.

Quando o indivíduo se recusa em ser governado, com a consciência da

implicação saber-poder-subjetividade, está agindo de maneira crítica, segundo Foucault.

Quando os domínios do saber, do poder e da subjetividade passam a ser considerados em sua articulação segundo uma arte de governar, a resistência ganha uma nova consistência. Pode-se resistir às formas de um “governo” (entendido como conjunto de mecanismos de condução das condutas) na medida em que se pode “recusar ser governado” de um modo ou de outro. Foucault denomina essa atitude de “recusa em ser governado” de “atitude crítica”. (FONSECA, 2002, p. 262)

Essa atitude crítica teria um conteúdo político e moral, ao mesmo tempo. Seria a

91

oportunidade do sujeito interrogar a verdade, seus discursos e efeitos. Interrogar se essa

verdade é produzida (ou não) pelo poder, se seus discursos e efeitos estão implicados

(ou não) em uma relação de poder.

Essa atitude faz com que o indivíduo seja coerente consigo mesmo e com suas

verdades. De alguma forma, ele pode (e deve) se livrar da implicação do poder na

constituição do conhecimento, bem como se libertar de toda e qualquer governabilidade

que, por ventura, venha a dirigir sua vida política e social.

Diante disso, a questão da ética (para Foucault) não se constitui a partir da

relação com o outro (somente). Mas, na relação consigo mesmo. O processo de

subjetivação onde o indivíduo está envolvido na questão do "como governar a si

mesmo" por meio de uma práxis65, é um instrumento de libertação a que Foucault dá o

nome de "domínio da ética".

O campo da “ética”, para Foucault, não é o campo compreendido pelos sistemas de regras e de valores, pelos códigos de conduta que vigoram numa determinada sociedade ou grupo, assim como também não é o domínio compreendido pelas ações, pelos comportamentos dos indivíduos e dos grupos diante dos códigos. Ao contrário, o campo da “ética” é o campo das relações que o indivíduo estabelece consigo mesmo a fim de se constituir como um sujeito moral, em função de um “estilo” que procura dar à própria existência. Daí as expressões “prática de si”, “técnicas de si” e “cuidado de si” servirem para localizar as análises que o autor realiza em tal domínio. (FONSECA, 2002, p. 269)

Esse domínio da ética, denominado assim por Foucault, implica em uma atitude

(positiva para ele e para seu comentador Márcio Alves da Fonseca) de não se submeter

ao governo, da forma herdada pelo modelo contratualista do século XVIII. O domínio

da ética traz a proposta da libertação dessa forma de submissão, bem como a

possibilidade da resistência. Somente se concretiza essa liberdade de se construir um

"direito novo" à partir da autenticidade de se dominar a possibilidade do "governar-se a

si mesmo".

"Pode-se então dizer que a imagem de um 'direito novo' presente em Foucault

corresponderia, para o autor, a uma forma 'ética' do direito" (FONSECA, 2002, p. 278).

Além da resistência e da liberdade de se deixar governar apenas por si mesmo,

Foucault diz que, também, se deve ter a noção do falar francamente, do falar a palavra

verdadeira: aquele que tem consciência dessas coisas deve, também, assumir a

65 “O ‘direito novo’ esboçado por Foucault encontra seu fundamento na práxis” (FONSECA, 2002, p. 292).

92

pronúncia do seu discurso e os riscos implicados nele. Deve-se ter a coragem de dizer a

verdade, mesmo que, para isso, esteja colocando em risco sua própria vida. Somente

assim, esse sujeito terá o domínio da ética.

A ética, para Foucault, então (nesse contexto) é o conjunto de práticas que o

indivíduo determinada para si, à partir das quais se constitui como um sujeito moral, em

função de uma livre adesão a essa existência. Essa ética é, também, a ética da

responsabilidade (pelo que se diz, e pela forma através da qual se age)66.

"O 'eu' e o 'outro' são componentes irredutíveis do problema de como 'organizar

a própria existência'. E o conjunto de tais relações seria justamente aquilo que, em

Foucault, poderia ser designado pelo termo geral de 'poder'. Assim, como problema da

organização da existência, a ética é coextensiva à questão do poder" (FONSECA, 2002,

p. 277).

Por fim, o que não se pode esquecer, é que na visão foucaultiana a resistência

está presente em toda a parte, em todas as relações de poder. E assim deve ser: a

resistência deve estar presente em todas as frentes da vida social, para que possa servir

de motivação para a mudança que em cada tempo e cada espaço se fizer necessária.

Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder [...] As resistências [...] são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor irredutível. Também são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. (FOUCAULT, 2006, p. 106)

66 "Responsabilidade com respeito às verdades que enunciamos, às estratégias políticas no interior das quais essas verdades se inserem, e responsabilidade com respeito às relações que estabelecemos conosco mesmo e que nos fazem nos conformar com as configurações existentes ou resistir a elas" (FONSECA, 2002, p. 278).

93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho propunha, como objetivo inicial, a reflexão sobre a distância

entre a teoria e a prática do Direito e sobre sua relação com o poder. Para tanto, seriam

analisadas (como foram) as teorias de dois filósofos contemporâneos: Miguel Reale e

Michel Foucault.

Dessa forma, alguns resultados e constatações foram alcançados. Vejamos.

A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale é, hoje, considerada uma

das teorias (explicativas do fundamento do Direito), mais completas e inovadoras

desenvolvidas até o momento. Por isso, ela é utilizada por mestres em muitas faculdades

de Direito e por muitos juristas em suas teses no cotidiano forense67.

Ela traz uma proposta ao plano ideal do universo jurídico na contemporaneidade.

Isso porque, em que pese Reale pretender propor uma teoria prática, sua doutrina é

plenamente aplicável no plano da idealidade.

Pelo fato dele dialogar com teorias bidimensionais jurídicas de todos os tempos,

só considera proveitoso, à luz de suas concepções, o que cada uma trouxe de positivo

para o Direito até os dias de hoje.

Reale reconhece ser herdeiro de todos os autores anteriores ao seu tempo. Com

isso, tentou realizar um estudo aprofundado sobre o tema da justificação

(fundamentação) do Direito não apenas no plano teórico, mas objetivando desenvolver

uma teoria que atendesse aos anseios e contribuições conceituais da contemporaneidade.

Porém, apesar de pretender que sua teoria tivesse aplicabilidade prática,

concreta, o que se percebe é que ela é uma doutrina ideal.

O pós-guerra trouxe novas e incontornáveis exigências de reflexão acerca dos

direitos dos homens em sociedade, desencadeando discussões filosóficas e científicas,

principalmente nas ciências humanas. Assim sendo, não se tratava mais de repetir as

antigas doutrinas, que em mais nada (ou em muito pouco) atendiam aos homens dessa

época. Era necessário, como vinha ocorrendo na Europa, desenvolver um estudo mais

67 Mesmo com sua larga divulgação, a Teoria Tridimensional do Direito ainda não é bem vista por muitos docentes e profissionais no país, sendo certo que, infelizmente, em alguns casos, é rechaçada no meio acadêmico e profissional principalmente pelos admiradores do Positivismo Jurídico.

94

amplo sobre as possibilidades de se inserir questões valorativas no campo jurídico.

Com essas modificações, diante da exigência de uma compreensão axiológica do

regramento jurídico, abria-se espaço para a tridimensionalidade68 em sua mais ampla

aplicação: novas conceituações para a norma e para o fato jurídico. A norma não era

mais vista (como na acepção positivista kelseniana) como um hipotético transcendental

(de influência neokantista), apenas com validade técnico-jurídica (vigência) assegurada

pela existência real da própria norma69.

Agora, na acepção da tridimensionalidade, a norma passa a ser compreendida

como síntese de uma tensão entre fato social e valor, o resultado do fato social valorado,

participante de uma dialética dinâmica. Sua validade encontra-se não só na vigência (na

existência real), mas também no conjunto da validade formal do próprio Direito, a

saber: a vigência, a eficácia (factual) e o fundamento (ético).

Reale aprofunda suas pesquisas justamente a partir deste reconhecimento da

necessidade da tridimensionalidade jurídica, entendida como dialética de fato, valor e

norma. Sua inovação encontra-se na afirmada indissociabilidade dialética destes três

fatores, no que tange a acepção da dialética com a característica da

complementaridade70.

É dessa maneira que o filósofo brasileiro compreende poder desenvolver uma

teoria jurídica que concretize as contemporâneas contribuições filosóficas e jurídicas,

acabando por atender as exigências de regramento social não perdendo de vista a

relação deste com os fatos. Estes entendidos como sujeitos a tais regras e aos valores de

cada sociedade.

Entretanto, apesar de Reale acreditar desenvolver uma teoria jurídica prática, 68 Tridimensionalidade, porque envolve três elementos: fato, valor e norma. 69 “Analisando o fenômeno jurídico sob esse prisma, verifica-se que a maioria dos juristas ainda se mantém fiel ao espírito da passada centúria, pois, em geral, o direito é para eles norma e nada mais do que norma, numa atitude claramente contraposta à de certos sociólogos do direito, que só vêem o jus em termos de eficácia ou de efetividade, para não falar na posição daqueles jusfilósofos que, infensos aos problemas que cercam as atividades forenses, preferem pairar no mundo dos valores ideais, ou se quedam contemplativos perante puros arquétipos lógicos. Quem assume, porém, uma posição tridimensionalista, já está a meio caminho andado da compreensão do direito em termos de “experiência concreta”, pois, até mesmo quando o estudioso se contenta com a articulação final dos pontos de vista do filósofo, do sociólogo e do jurista, já está revelando salutar repúdio a quaisquer imagens parciais ou setorizadas, com o reconhecimento da insuficiência das perspectivas resultantes da consideração isolada do que há de fático, de axiológico ou ideal, ou de normativo na vida do direito” (REALE: 2001, p. 11). 70 “Penso que um dos momentos decisivos de minhas pesquisas é representado pela "descoberta" (permitam-me o emprego desta palavra talvez pretensiosa) da natureza dialética ou dinâmica de elementos até então analisados abstraídos um do outro (dando lugar a domínios separados de investigação, como a Axiologia Jurídica, a Sociologia Jurídica e a Dogmática jurídico-normativa) ou então de maneira estática, sem se reconhecer a sua radical historicidade” (REALE, 2001, p. 97).

95

acabou por desenvolver uma teoria ideal. Aplicável na prática, mas, ainda, presa ao

plano ideal.

É em razão desta inalienável dialeticidade entre fato, valor e norma que a

abordagem jurídica, em Reale, ganha um acento hermenêutico. Ou seja, não se trata

mais de definir quais fatos serão sujeitos a regramentos, mas interpretar as condições

axiológicas (valor) de um dado fato jurídico vir a ser constituído como tal e, assim,

sujeito a normatizações.

O fato jurídico passou a ser entendido, não mais como um fato (pertencente à

ordem da natureza, um ser), mas como um fenômeno (pertencente à ordem social, um

dever ser), ou seja, um fato social valorado que culmina numa norma jurídica.

A todo o tempo em sua obra, Reale afirma que sua teoria é resultado de todo o

legado por ele herdado desde a antiguidade. É reconhecendo-se como fruto desse devir

histórico, que entende poder afirmar a necessidade da tridimensionalidade jurídica (para

se alcançar um modelo ideal de Estado e de Direito pretendidos).

Sabe-se que, por causa das raízes positivistas, normatizadoras do Direito

(justificadoras da herança jurídica ocidental), essa ciência é tratada apenas com

relevância à vigência da lei, sem nenhuma cogitação da eficácia desse próprio Direito

ou de seu fundamento ético. O que ocorre nesse caso é uma total desvinculação dos

valores e, mais precisamente do valor justiça, tal qual defende Miguel Reale.

Pelo fato do Positivismo Jurídico (predominante em nosso ordenamento) só dar

importância à vigência da norma (e do próprio Direito) - processos de elaboração da lei

e dos seus legisladores - não sobra espaço para a fundamentação ética do mesmo. Ou

seja, trabalha-se a todo o tempo com um Direito sem objetivo, sem finalidade, isto é,

sem liame axiológico com os sujeitos que estarão submetidos a ele (Direito).

Sendo o fim último do Direito a realização da justiça, na positivação jurídica,

não há espaço para a mesma. Exagerando na linguagem, utilizando um radicalismo,

pode ser dito que, neste caso, trata-se de um Direito sem justiça, ou até mesmo de um

Direito injusto.

Para fugir desses radicalismos é que Miguel Reale aponta para a

tridimensionalidade, dando importância à valoração e ao processo hermenêutico de

interpretação da própria realidade jurídica, tendo sempre consciência de que o sujeito

está condicionado por sua história e cultura.

A Teoria Tridimensional realeana é, pois, fundada em uma dialética dinâmica (e

não estática) que possui uma posição de tridimensionalismo jurídico concreto e não

96

abstrato (como outras tantas, por exemplo, o tridimensionalismo de Norberto Bobbio71).

A tridimensionalidade concreta trata de seus elementos em uma dialética, ou

seja, correlacionados e não isolados. O filósofo (que estuda o aspecto valorativo), o

sociólogo (que estuda o aspecto fático) e o jurista (que estuda o aspecto normativo)

devem estar em sintonia, relacionando a todo o tempo esses institutos. Ao contrário, a

tridimensionalidade abstrata crê que cada um desses elementos deve ser estudado

isoladamente.

Só se pode compreender o Direito integralmente numa relação dinâmica dos três

elementos (fato, valor e norma), que são as dimensões da experiência jurídica. O Direito

é a integração normativa de fatos segundo valores.

É nesse sentido que Reale entende que o Direito deve ser realizado na prática.

Advogados, juristas, promotores, juízes e demais profissionais do Direito devem aplicar

a tridimensionalidade dando importância à questão axiológica. “Fatos, valores e normas

se implicam e se exigem reciprocamente, o que [...] se reflete também no momento em

que o jurisperito (advogado, juiz ou administrador) interpreta uma norma ou regra de

direito (são expressões sinônimas) para dar-lhe aplicação”. (REALE, 2007, p. 66)

A hermenêutica jurídica, nesse ponto, é de extrema importância. Esses

profissionais não podem se esquecer que é necessária uma interpretação da realidade e

que esta interpretação está carregada de valor, do que cada um deles é (de seus próprios

valores, sociais e historicamente ganhos e introjetados). Isso porque o sujeito passa a ser

quem é desde a inserção em uma dada sociedade axiologicamente constituída.

Na concepção filosófica dos pensadores aos quais Reale se filia (e em sua

própria), não há sujeito sem objeto, não há homem sem sociedade, isto é, sem cultura,

história e valores. Cada homem se torna o homem que é desde uma dada circunstância

social.

Por isso, quando o advogado defende seu cliente, ou o promotor acusa o réu, ou

o juiz julga a causa, em qualquer caso, cada um deles está participando de maneira ativa

na constituição dessas realidades (de uma certa realidade fenomênica), ou seja, está

concretizando o Direito valorativamente.

A teoria realeana clama por uma prática perfeita, fundada em uma teoria

perfeita. Porém, o que se constatou com este estudo é que a teoria é perfeita, porém (não

por ter falhas, mas por deixar lacunas) é que a realidade não condiz com a doutrina.

71 Filósofo italiano (1909-2004).

97

Mas, como bem ressaltou Reale “é assim que o Direito deve ser realizado na

prática” [grifo nosso]. Não quer dizer que o seja. Vejamos.

Reale entende que sua teoria é plenamente aplicável, na prática, devendo,

inclusive ser observada pelos juristas. Assim sendo, para que tudo isso seja efetivamente

concretizado, ele propõe um modelo jurídico72: uma estrutura jurídico-hermenêutica.

Essa estrutura está baseada em um processo interpretativo das normas jurídicas

(por isso, hermenêutico), partindo-se do princípio de que não há Direito sem

interpretação. Por isso mesmo, não há como conceber modelos doutrinários

(prescritivos) ou dogmáticos, porque pecam pela ausência de liberdade para a valoração

(só permitem a repetição de normas impostas). Só se pode admitir um modelo

hermenêutico que permite que o profissional do Direito possa usar de sua liberdade

valorativa para realmente interpretar a norma de acordo com o caso concreto73.

É assim que ele demonstra que sua teoria, implicativa de valor e interpretação

hermenêutica da norma, pode ser colocada em prática e atende aos anseios da

contemporaneidade, no sentido de ser um modelo atual e efetivamente eficaz74. Afirma

que a Hermenêutica Jurídica, além de esclarecer o significado das regras positivas,

assegura-lhes continua atualização e operabilidade (2001, p. 114).

Quanto ao poder, Miguel Reale afirma que a Teoria Tridimensional envolve três

elementos (fato, valor e norma) e o poder é o “elo de ligação” entre esses elementos.

Não esboça de maneira mais profunda essa questão. E isso será objeto de discussão

mais adiante.

O outro filósofo aqui estudado foi Michel Foucault. Em sua filosofia, ele propõe

72 "É preciso notar, outrossim, que quando emprego expressões como modelos do Direito ou modelos jurídicos, não me refiro a nenhum protótipo ideal, a algo que se ponha como alvo superior a ser atingido. Os modelos jurídicos, objeto de estudo por parte dos juristas, e por eles aplicados, são antes modelagens práticas da experiência, formas de viver concreto dos homens" (REALE, 2001. 112). 73 Mas, Reale adverte: O que subsiste, no caso, é a advertência de que o intérprete não deve forçar ou desviar o sentido de uma regra jurídica, quando este é manifesto. [...] Não há norma sem que haja interpretação. Resulta desse fato que, ao procurar compreender a norma jurídica, ou seja, ao querer determinar o alcance da prescritividade valorativa inerente à fórmula legal objetivada, o intérprete refaz, de certa forma, o caminho do legislador: vai da norma ao fato, mas tendo presentes os fatos e valores que condicionaram o aparecimento desta, bem como fatos e valores supervenientes. É por essa razão que o ato hermenêutico também ocorre numa estrutura que é sincrônica ou homóloga à do ato normativo. Entre um e outro não pode haver solução de continuidade: quando esta se dá, a vida jurídica entra em crise pela verificação da insuficiência ou superamento dos modelos normativos em vigor, impondo-se a sua substituição. (REALE, 2001, p. 113) [grifo nosso] 74 Com o que não se concorda, pois Reale, em sua teoria, previu, mas não desenvolveu a questão do poder inserido na estrutura jurídica.

98

uma reelaboração da teoria do sujeito e, para isso, se utiliza da história. O devir

histórico, caracterizado pelo tempo e pelo espaço, é decisivo para constituir o sujeito

contemporâneo.

A influência de Nietzsche na filosofia foucaultiana foi decisiva para ele romper

com a tradição ocidental e para compreender o sujeito como um indivíduo constituído

pela herança filosófica moderna.

Mas, não se pode olvidar que o “novo” sujeito foucaultiano não está envolvido

no processo de conhecimento fenomênico. Por isso, para Foucault, o conhecimento foi

inventado. A verdade que é “produzida” pelo conhecimento faz parte de um jogo (assim

como o próprio conhecimento), onde as regras são ditadas por manifestações de

poderes. Esses conceitos de sujeito e conhecimento são bastante distintos das

concepções de Miguel Reale.

Em Foucault, então, a verdade é produzida em muitos lugares, muitos ambientes

da vida social. É o poder que tem a função de agrupar todas essas manifestações de

verdades, todos os lugares onde possa existir uma produção de verdade.

É por meio do poder que o sujeito chega à verdade (é por meio do poder que se

produz a verdade). O que Foucault pretende, com sua teoria do poder, é mostrar como a

influência deste último cria um obstáculo para que o sujeito conheça e como esse saber

produzido é contaminado por influências externas ao sujeito.

Diante disso, é que não se pode esquecer que poder e saber caminham juntos

(daí a expressão utilizada por Michel Foucault: “poder-saber”). Portanto, não existe

conhecimento puro; todo e qualquer saber já nasce influenciado pelo poder, ou por

poderes.

O poder está disseminado por todos os lugares, em todas as instituições: desde as

mais invisíveis até as mais visíveis. São micropoderes que influenciam e constituem o

sujeito e o conhecimento.

Por conta dessa contaminação, Foucault propõe uma mudança nas instituições

criadas por forças de poder e que, por sua vez, criam saberes que constituem sujeitos e

conhecimentos. Há que se separar o poder da verdade, das formas sociais, econômicas,

culturais no interior das quais ela funciona. Isso porque não seria possível libertar a

verdade de todo sistema de poder, ou o sujeito de sua constituição, pois a verdade é

poder e o sujeito é sempre constituído.

Para fundamentar toda essa proposição, Foucault se baseia no devir histórico, na

coletânea de fatos da história e do seu desenrolar, tais como a história da sexualidade,

99

da violência nas prisões, da loucura, do próprio Direito e do poder.

O fio condutor de toda essa análise histórica é a desconstrução do sujeito. E,

além da abordagem da desconstrução, Foucault atinge, também, com sua pesquisa, a

relação deste indivíduo desconstruído com o poder.

A história, então, é “contada” à luz de poderes, assim como o sujeito é

construído a partir de poderes (teias de poder). Essa perspectiva histórica é genealógica,

segundo Foucault, pois trata de uma genealogia do saber. Nesse sentido, é a anatomia

política que irá verifica a relação do poder com o indivíduo, mais precisamente com seu

corpo.

Vê-se claramente, pois, que Foucault faz uma análise inovadora do poder e de

sua relação com o indivíduo. Da mesma forma como faz com a análise do Direito, que

entende nascer do poder.

A partir dessa diferente análise do poder (distinguindo o poder disciplinar do

poder soberano, a repressão, da guerra e da opressão, entre outras questões), Foucault

propõe que o poder, é, então, o que se manifesta claramente, de maneira exposta.

O poder faz parte de uma triangulação, assim denominada por Foucault de

“poder-direito-verdade”. É essa tríade que dá origem às “artes de governar”. Ela é

entendida como uma armadilha que produz verdades através da tomada dos corpos dos

indivíduos, da lei que normaliza e do direito normalizador.

Diante desse estado de coisas, o autor informa que não há como se manter

submisso a toda a “exploração”, a toda a repressão gerada pelas relações de poder no

âmbito social que originam saberes e “constroem” sujeitos.

Para isso, ele indica, como meio de luta contra essa ordem de coisas, a

resistência (principalmente a resistência ao denominado “poder soberano”).

O ato de resistir, assim chamado por Márcio Alves da Fonseca de “direito novo”,

seria a proposta de Foucault. Essa resistência se justificaria pelo fato do poder soberano

criar uma obrigação legal de obediência, consubstanciada em um Direito dominador. A

resistência é, então, necessária para que a soberania e a obediência não sejam

substituídas, respectivamente, por uma relação de dominação e pela sujeição dos

indivíduos.

Como já adiantado linhas acima, cumpre ressaltar que Miguel Reale, em sua

doutrina, não aborda de maneira aprofundada a questão do poder. E, esse fato, contribui

100

não para indicar uma falha em sua teoria, mas, para indicar uma lacuna na mesma.

É justamente essa lacuna, a meu ver, que faz com que sua teoria não explique, na

prática, o que ocorre com a ausência do alcance do objetivo primeiro do Direito: a

justiça. Essa doutrina não esclarece porque, sendo aplicada, não faz cumprir o resultado

do Direito.

Ela não trata do porquê de crimes cada vez mais bárbaros, o aumento crescente

da violência social, o aparecimento de injustiças entre classes sociais, a descrença no

Poder Judiciário, enfim, a ausência do ato justo75.

Mas, mesmo que a teoria em questão não explique o porquê dessas constatações,

ela deve ser considerada uma teoria ideal, que deve ser almejada76. Essa lacuna não faz

dela algo que não deva ser observado e praticado. Ao contrário. É necessário que o

homem tenha um alvo para que não perca sua objetividade, em meio ao caos.

Diante dessa lacuna e dessas indagações (acerca da distância entre a teoria e a

prática) é que se tentou aproximar os dois autores aqui estudados. O que se conclui é

que essa aproximação foi salutar para abordar a visão teórica do Direito e a visão prática

do poder e, com o estudo paralelo dos dois pensadores, a relação entre os elementos

Direito e poder, bem como analisar a distância entre a teoria e a prática jurídica.

Também pôde-se verificar que a Teoria Tridimensional do Direito, trazida ao

Brasil por Reale, é, atualmente, a teoria mais bem elaborada e mais completa ensinada

nos bancos universitários para fundamentar o Direito. É ela, entre outras, que dá a base

filosófico-jurídica ao “estudante” para, na vida prática, compreender como se aplica o

valor ao fato, para, daí, nascer a norma.

Porém, o que se constata, é que essa teoria não é bem aplicada na prática (tal

como pretendeu ou indicou Reale) ou ela não é passível de ser aplicada na prática. De

qualquer forma, um diagnóstico pode ser feito: a questão valorativa, no âmbito jurídico,

não é levada em consideração; ou seja, não existe uma íntima ligação entre a teoria e a

prática.

Na vida real, as teias do poder soberano fazem com que o jurista se sinta

impotente diante do status quo. Daí a necessidade de se compreender, em profundidade,

como se origina a relação do Direito com o poder e como este último se manifesta no

meio social. Para isso, no presente estudo, foi utilizada a filosofia de Michel Foucault.

75 Consultar o anexo E do presente estudo. 76 A Teoria Tridimensional deve servir de “norte” para os estudantes e os profissionais do Direito; um objetivo a ser alcançado.

101

Para Foucault, uma saída para a formação crítica do jurista seria a práxis, ou

seja, a prática foucaultiana. Vejamos.

Para o autor francês, o pensamento e o conhecimento são efeitos da tomada de

poder. Os corpos e as almas dos indivíduos “sofrem” com a influência do poder. São

objeto de investimento do poder político e instrumento de domínio. A tecnologia

política produz um determinado saber, uma determinada verdade, que só interessa ao

poder inicial, originário. O poder é, pois, o produtor do indivíduo e o que dele

(indivíduo) se produz, retorna ao poder.

Essa relação poder-direito-saber dá origem às “artes de governar”. Essa tríade é

uma armadilha que produz verdades através da tomada dos corpos, da submissão do

sujeito, da lei que normaliza e do direito normalizador.

Para que o indivíduo não caia nessa armadilha, o que Foucault propõe (na

interpretação de Márcio Alves da Fonseca), é que ele pense o Direito como uma prática

não-normalizadora. E a melhor forma de se fazer isso, é resistir ao Direito.

Essa inovadora forma de “encarar” o Direito, por meio da resistência, é

denominada “direito novo”. Somente por meio da prática do “direito novo” é que haverá

a possibilidade desse mesmo indivíduo alterar o atual meio social (violento, injusto,

repleto de criminalidade impune, torturador, agressivo, rebelde, com uma característica

valorativa adulterada em meio a uma desconfiança nas relações sociais que gera

insegurança e instabilidade). Consequentemente, aquele que põe em prática um “direito

novo”, se torna um crítico (construtivo).

No mundo do Direito, o jurista de formação crítica será, então, aquele que irá

resistir às “artes de governar”, ou seja, irá resistir à triangulação “poder-direito-saber”,

colocando em prática sua consciência acerca da verdade produzida pelo poder, e, assim,

irá mudar o atual estado social.

O jurista crítico irá ter consciência de que é fruto de uma teia de poderes que o

constituíram e que produziram verdades. Saberá que o Direito é (assim como as demais

instituições), resultado da influência do poder na sociedade. E, dessa forma, irá

aproximar a teoria da prática, tendo uma postura crítica diante da ausência de valores,

por exemplo, na elaboração das leis do país. Ou irá alertar a outros, sobre o fato de que

algumas normas não são elaboradas (tão pouco aplicadas) de forma valorativa,

funcionando, assim, como uma negação da essência axiológica do homem.

O jurista crítico deve resistir às disciplinas e aos dispositivos de segurança. Deve

repudiar o Direito dominador, aquele baseado no poder soberano, que cria a obrigação

102

legal de obediência. Deve abandonar esse “direito antigo”, criticando-o e resistindo a

ele, para construir o “direito novo”, como um sujeito inovador, aderir a novas verdades.

Um dos caminhos para se chegar a isso, seria se espelhar na conduta do próprio

filósofo. Foucault, de início, declara uma postura negativa, de desconfiança e recusa às

formas de direito conhecidas (principalmente as formas de direito nascidas do poder

soberano, oriundo do contratualismo do século XVIII).

Posteriormente, passa por um momento positivo, com uma postura de manifesta

resistência (ou oposição) à normalização gerada pelo “direito antigo”.

O sujeito deve negar para afirmar. Deve dizer não para, depois, dizer sim. Dizer

não ao “direito antigo” (às práticas dominadoras de poder que geram violência,

impunidade, injustiça) para, depois, dizer sim ao “direito novo” (ao Direito justo, ético,

à norma axiológica, valorada).

Há que se dar importância as possibilidades concretas de certos saberes e de

certas práticas do direito constituidoras de um “direito novo”.

Mas, diante disso pode-se questionar sobre a questão da governabilidade, ou

seja: o indivíduo resistente, crítico, pode querer investigar o status que se dá ao governo

de si e o governo do outro? O governo de si pode se opor ao governo do outro? Posso

resistir às formas de governos por não concordar com elas? Posso querer me governar,

sem me submeter a um “governo externo”? Posso governar sem ser governado?

Foucault responde a essas questões, afirmando que, a recusa ao governo do outro

(governo este fundado numa relação de poder-direito-saber), é uma prática de

libertação. Resistir ao governo do outro e governar-se a si mesmo, é libertar-se.

Essa resposta foucaultiana se depara com uma discussão de cunho político e

moral. Isso porque, para que o indivíduo se liberte, governando-se a si mesmo, se

recusando ser governado, obriga-o a ser coerente consigo mesmo e com suas verdades.

Para que o sujeito possa se governar, é preciso, antes de mais nada, que ele seja

verdadeiro e coerente consigo mesmo. Para isso, ele deve ter consciência que é

constituído por uma teia de poderes, que o influenciam, que suas verdades são

produzidas por esses mesmos poderes, assim como o conhecimento é fruto do poder.

Deve falar a verdade, a sua verdade, utilizando o poder do discurso a esse favor. Mesmo

que isso lhe custe a vida, segundo Foucault.

Só, então, é que ele poderá, de alguma forma, se livrar da implicação do poder

na constituição do conhecimento, bem como se libertar de toda e qualquer

governabilidade que, por ventura, venha a dirigir sua vida política e social.

103

Todavia, há que se deixar claro que, na prática, não vigorará a lei do sujeito, a

norma do indivíduo. O que entrará em vigor, nesse caso, será uma nova lei, derivada de

um novo direito, em consequência da justiça das coisas.

Portanto, a ética (para Foucault) não se constitui a partir da relação com o outro

(somente). Mas, na relação consigo mesmo. O processo de subjetivação onde o

indivíduo está envolvido na questão do "como governar a si mesmo" por meio de uma

práxis, é um instrumento de libertação a que Foucault dá o nome de "domínio da ética".

Dessa forma, o chamado “direito novo” corresponderia a uma forma 'ética' do

direito. Uma ética de responsabilidade, para um Direito de responsabilidade. Um “eu”

responsável, que organiza a própria existência em harmonia com a existência do

“outro”.

Em Miguel Reale, a exigência de uma compreensão axiológica do regramento

jurídico abre espaço para a tridimensionalidade: a norma passa a ser compreendida

como síntese de uma tensão entre fato social e valor, ou seja, o resultado do fato social

valorado, participante de uma dialética dinâmica. O Direito não possui mais, apenas,

uma existência real, uma vigência no tempo e no espaço, é concebido agora com uma

validade formal: uma eficácia e um fundamento ético. A inovação dessa teoria

(Tridimensional) está no fundamento ético – valorativo.

Em Michel Foucault, sua proposta de um “direito novo” corresponde a uma

forma ética de Direito, porque se constitui a partir de um sujeito ético responsável por

uma prática de libertação, fundada na resistência a governos dominadores.

Fica claro, por conseguinte, que os dois filósofos se aproximam, em tese, pelos

resultados de suas teorias: em ambas, a questão ética é central; as duas doutrinas são

concluídas pela união da política e do Direito à ética.

É através da prática ética que se dirime a distância entre a teoria e a prática

jurídica. Com o valor presente na fundamentação do Direito (através, por exemplo, da

elaboração legislativa) e a com formação crítica do jurista (através da prática ética), a

teoria jurídica, aprendida nos bancos acadêmicos, e a prática forense, poderão cada vez

mais se unir: porque o jurista saberá da necessidade da presença de uma veia axiológica

na teoria judiciária, bem como terá consciência da necessidade de sua atuação prática na

sociedade, através de um ato de liberdade, fundado na resistência aos governos

dominadores.

Uma das formas dessa mudança (jurídico-social), portanto, poderá se dar através

da educação. Também, através da resistência aos poderes dominadores, através da

104

libertação, por meio da luta. Há que se ressaltar que nem Miguel Reale, nem Michel

Foucault nos fornecem a “fórmula” para resistir e o meio para lutar. A cada um, caberá

descobrir o caminho transformador. Não existe uma fórmula generalizável. Cada um

deve, em seu meio, saber o que fazer. E fazer. E começar já.

O sujeito tem que lutar. Não importa como. Para que, com sua resistência, possa

gerar frutos de mobilização social como forma de melhorar o presente.

Quem sabe, um bom início, seja a mudança de postura de cada um: para uma

conduta mais ética, mais valorativa e valorizada, para que nossa sociedade possa ser

mais justa e as relações sociais mais toleráveis.

Essa, como se pretendia, é uma primeira reflexão sobre o tema. O que resta,

agora, é unir essa teoria (aqui esboçada em poucas linhas) à prática. Mãos à obra.

105

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abr. 2010

<http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1544846-5598,00.html> Acesso em 12

abr. 2010

108

ANEXO A - Validade formal do Direito ou da norma jurídica77

ELEMENTOS VALIDADE REQUISITOS OU ASPECTOS ESSENCIAIS

NORMA Técnico-jurídica

Vigência: para a norma vigorar ela deverá reunir três elementos: a legitimidade do órgão, a competência em razão da

matéria e a legitimidade do procedimento.

OBRIGATORIEDADE FORMAL DA NORMA

FATO SOCIAL Social

Eficácia ou efetividade: é a aplicação ou execução da norma jurídica, ou seja, é a regra jurídica enquanto momento

da conduta humana. Em suma: é o reconhecimento da norma (do Direito) pela comunidade no plano social.

EFETIVA CORRESPONDÊNCIA DOS COMPORTAMENTOS SOCIAIS AO CONTEÚDO DA NORMA

VALOR Ética

Fundamento: toda regra jurídica deve ter um fundamento. O fundamento é o valor ou o fim objetivado pela regra de

direito. É a razão de ser da norma. Impossível é conceber-se uma regra jurídica desvinculada da finalidade que

legitima sua vigência e eficácia.

VALORES CAPAZES DE LEGITIMAR A EXEPERIÊNCIA JURÍDICA NA SOCIEDADE

77 Conteúdo retirado da obra Filosofia do direito de Miguel Reale.

109

ANEXO B

Teoria dos objetos78

físicos

objetos naturais

Ser Psíquicos objetos culturais

objetos ideais (são enquanto devem ser)

Dever ser valores

ANEXO C

Nomogênese jurídica 79

78 Retirado da obra Filosofia do direito de Miguel Reale, p. 188. 79 Retirado da obra Filosofia do direito de Miguel Reale, p. 553.

110

ANEXO D - Aspectos da ordem normativa80

ORDEM MORAL (ato ético ou ato humano) ORDEM RELIGIOSA (ato religioso) ORDEM DE TRATO SOCIAL (ato

social) ORDEM JURÍDICA (ato jurídico)

Conceito

É uma ordem de conduta que visa ao aperfeiçoamento da pessoa (não da

organização social). De reprovação própria (da própria pessoa)

É uma ordem normativa que assenta num sentido de transcendência. Ordena condutas

impostas pela religião

É a ordem existente em uma ordenação social destinada a tornar a convivência

mais fluida e mais agradável (mas que não é tida como ordem necessária à

conservação e ao progresso sociais)

É a ordem que inclui os aspectos mais importantes da convivência social e

exprime-se através de regras jurídicas. Visa a concretização dos valores da justiça e da

segurança

Sanção Pena expiatória (remorso) Pecado Reprovação social (exclusão) Pena imposta pelo Estado Norma/lei Norma moral Norma religiosa Norma social Norma jurídica – lei

Bilateal/ unilateral

É unilateral porque apenas impõe um dever, prescreve um comportamento, mas não

autoriza ninguém a empregar coação para obter o seu cumprimento.

É unilateral porque apenas impõe um dever, prescreve um comportamento, mas não

autoriza ninguém a empregar coação para obter o seu cumprimento.

É unilateral porque apenas impõe um dever, prescreve um comportamento, mas não autoriza ninguém a empregar coação

para obter o seu cumprimento.

È bilateral porque é dirigida a duas pessoas. De um lado impõe dever a determinada pessoa, dizendo o que ela deve fazer. De

outro lado, autoriza o lesado pela sua violação a exigir o dever.

Heterônoma/ autônoma

É autônoma, porque está de acordo com a consciência do próprio homem. Compele o homem, se ele quiser, a realizar a ação (ou não). Neste caso, o sujeito é auto-legislador (“legislador de si mesmo”). Só será válida

se o próprio sujeito a aceitar como obrigatória – de acordo com sua

consciência.

É autônoma, porque está de acordo com a consciência do próprio homem. Compele o homem, se ele quiser, a realizar a ação (ou não). Neste caso, o sujeito é auto-legislador (“legislador de si mesmo”). Só será válida

se o próprio sujeito a aceitar como obrigatória – de acordo com sua fé.

É autônoma, porque está de acordo com a consciência do próprio homem. Compele o homem, se ele quiser, a realizar a ação

(ou não). Neste caso, o sujeito é auto-legislador (“legislador de si mesmo”). Só

será válida se o próprio sujeito (ou o grupo) a aceitar como obrigatória.

É heterônoma porque é posta por terceiros: legislador, juiz etc. Por isso, pode ser

criticada, mas todos devem agir de conformidade com ela, obedecendo-a.

Reação Quando de sua violação, pode gerar reações imprevisíveis (deixadas ao arbítrio de cada um, dependendo da consciência pessoal).

Quando de sua violação, pode gerar reações imprevisíveis (deixadas ao arbítrio de cada

um, baseadas na fé).

Quando de sua violação, pode gerar reações imprevisíveis (deixadas ao arbítrio

da opinião pública).

Gera uma reação previsível (previamente determinada) em relação ao descumprimento da norma.

Autoriza o lesado a coagir o violador da norma a cumprir a obrigação ou repara o mal produzido. 80 Conteúdo retirado da obra Lições preliminares de direito de Miguel Reale.

111

ANEXO E

Exemplos de crimes na atualidade Do site: http://www.gterra.com.br/policia/estuprou-a-estudante-e-depois-esquartejou-15273.html Acesso em: 12/4/2010 – 9:31hs 06/07/2009 - ESTUPROU A ESTUDANTE E DEPOIS ESQUARTEJOU O corpo de uma adolescente de 15 anos foi encontrado esquartejado nas matas da rodovia Transamazônica, na última quinta-feira, no município de Uruará, localizado na microrregião de Altamira. O principal acusado é outro adolescente de 17 anos, que teria, junto com a sua namorada de 15 anos, atraído a garota para o local e praticado o crime. [...] O corpo estava a poucos metros da estrada sem o órgão genital, com o pescoço cortado, dois tiros no rosto, a mão direita e os dedos do pé decepados. “Os cortes estavam perfeitos. É um cara que já conhece”, comentou o capitão Márcio Abud, comandante da 13ª Companhia de Policiamento Militar de Uruará. O adolescente é conhecido como “Açougueiro” por trabalhar em um açougue na cidade. [...] Ainda segundo o capitão, o adolescente foragido possui três processos na promotoria da infância e adolescência, sendo dois em Santarém, por tentativa de homicídio e roubo de um carro, e outro em Uruará, por ter esfaqueado um homem. Do site: http://www.cruzeiroagora.com.br/exibir.php?noticia=1186 Acesso em: 12/4/2010 – 9:34hs 12/2/2010 – TIO É O PRINCIPAL SUSPEITO DE TER MATADO E ESQUARTEJADO KAROENI OLIVEIRA DE 14 ANOS O principal suspeito de assassinar e mutilar a jovem Karoeni Oliveira de 14 anos na manhã da ultima segunda-feira (8) em Queluz, foi preso no final da noite de quinta-feira (11). [...] De acordo com informações extra-oficiais o tio da menina Kilder Batista da Conceição Barbosa, 33 anos, foi detido em sua residência no bairro da Palha 2 e não manifestou nenhum tipo de reação. [...] Noticias dão conta de que durante o depoimento desta madrugada á polícia, Kilder teria confessado o crime. [...] De acordo com o BO da PM uma menina de 14 anos foi encontrada totalmente esquartejada em sua residência no bairro da Palha 2. [...] Segundo os avós de Karoeni Rodrigues de Oliveira, por volta das 05h30 eles teriam saído de casa para uma consulta medica e deixaram a neta dormindo. Já ás 8h30 a mãe da vitima chegou em casa e se deparou com a tragédia, encontrando parte dos órgãos da filha espalhados pela residência. Para se ter idéia do bárbaro crime, o assassino arrancou as orelhas da vítima, quebrou seus dentes, maxilar e ainda cortou o pescoço da menina em várias partes. O delegado de Queluz, João Luis de Biase, disse que prendeu um suspeito que estava de posse de um facão. A polícia tenta descobrir o motivo do crime. A princípio, se imagina que Karoeni de Oliveira Rodrigues, tenha sido vítima de uma tentativa de estupro. Talvez por reagir e conhecer o criminoso, tenha pagado pela própria vida. Do site: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia.php?id=104443 Acesso em: 12/4/2010 – 9:41hs Publicação: 23 de Março de 2009 – HOMEM MATA E DEGOLA NAMORADA Um crime com requintes de crueldade chocou os moradores do loteamento Novo Horizonte na manhã desta segunda-feira (23) na zona norte de Natal. Joana D'arc da Silva Clementino, 40 anos, foi morta e degolada por Marciano Santos Feitosa, 19 anos, com quem vivia há dois anos. Informações colhidas no local do crime, na rua Tenente Souza, dão conta que Joana D'arc foi morta porque teria negado emprestar dinheiro ao namorado. Parentes da vítima revelaram que Marciano era viciado em drogas. Marciano pegou R$ 100,00 com a vítima na noite de domingo (22) e teria gasto tudo com drogas. Ele voltou na manhã desta segunda para pedir mais e diante da negativa de Joana D'arc, teve um acesso de fúria. Marciano espancou, matou e degolou sua companheira, fugindo em seguida.

112

Do site: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1544846-5598,00.html Acesso em: 12/4/2010 – 9:44hs 25/03/2010 – RAPAZ QUE DEGOLOU A MÃE E FUGIU COM A CABEÇA É MORTO PELA POLÍCIA – Após degolar a mãe, de 56 anos, o jovem ainda chegou a atingir as costas do pai e tentou matar o irmão O jovem foi encontrado perto de um riacho, que ele usava para beber água durante a fuga. Escondido atrás de uma árvore, o rapaz surpreendeu a equipe de buscas e cortou o braço de um investigador com um facão. "No confronto, ele foi atingido por um tiro de fuzil feito por um policial militar". O corpo dele foi levado para o Instituto de Medicina Legal (IML) de Juazeiro (BA), de onde será liberado para o sepultamento. O crime: após degolar a mãe, de 56 anos, o jovem ainda chegou a atingir as costas do pai e tentou matar o irmão, de 13 anos. Após o crime, ele carregou a cabeça da mãe e a foice usada no crime para dentro da mata que cerca a casa da família. [...] Na terça-feira (23), policiais militares encontraram o rapaz [...]. A foice foi localizada no matagal nesta quarta-feira (24). O corpo da vítima foi sepultado nesta segunda-feira (22), no cemitério municipal. A cabeça foi localizada na terça-feira, passou por exames periciais no Instituto de Medicina Legal (IML) da região e liberada em seguida para ser sepultada com o corpo. Do site: http://www.cabecadecuia.com/noticias/55800 Acesso em: 13/4/2010 – 14:15hs 25/09/2009 – DEGOLOU PROFESSORA E VIROU O CORPO PARA O SANGUE SAIR RÁPIDO Um crime bárbaro aconteceu na manhã de ontem (24) no município de Araguanã, a 341km de São Luís. A professora Maria Natividade Marchão, de 40 anos, foi assassinada a golpes de facão quando saía de casa com destino à escola onde trabalhava. Segundo informações do delegado da regional de Zé Doca, Porfilho da Anunciação, ao programa Rádio Patrulha da Rádio Mirante AM, um homem identificado como Augusto Ribeiro Cabral foi o autor do crime. De acordo com o delegado, Augusto Cabral abordou a vítima no meio da rua e desferiu inúmeros golpes de facão na altura do pescoço. A vítima quase teve a cabeça separada do corpo. “Ela foi golpeada na altura do pescoço. Os golpes praticamente separaram a cabeça do corpo da professora” – contou o delegado. O assassino foi preso e autuado em flagrante pela polícia de Zé Doca. Motivação: Questionado pela polícia sobre os motivos que o levaram a assassinar a professora, Augusto Cabral explicou que assassinou Maria Natividade Marchão por supostos “ciúmes”. Durante o depoimento, o assassino afirmou que “era apaixonado” pela vítima e, ao descobrir que ela possuía um namorado quis “tomar satisfações”. [...] “Depois que ele a matou, ele virou o corpo da professora, para que o sangue saísse mais rapidamente do corpo. Isso ele afirma” – explicou o delegado. Do site: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=736626 Acesso em: 13/4/2010 – 15:13hs 14/2/2010 - SUMIÇO MISTERIOSO DE DETENTO EM CAUCAIA - CE Um detento é esfaqueado, enforcado e morto dentro de uma unidade prisional [em Caucaia - CE]. Os outros oito presos, responsáveis pelo crime, ocultam o cadáver e esquartejam a vítima. Durante vários dias, pedaços do corpo são jogados na rede de esgoto da penitenciária, colocados no lixo em embalagens de marmita e até no telhado. [...] O motivo de tamanha selvageria, segundo as investigações da Polícia, era dívida que a vítima, o detento Ricardo Rodrigues de Sousa, o “Ricardo Pança”, 32 anos, possuía dentro da prisão com outros presidiários. [...] A arma utilizada para ferir Ricardo foram “cossocos” (facas artesanais). Em seguida, arrastaram o corpo e o esconderam no forro das camas, ainda vivo. Por fim, eles o enforcaram e passaram a "cortar" o preso em pedaços. O trabalho dos presos para esconder os restos mortais de Ricardo foi elaborado, segundo a investigação da Polícia Civil. O sangue do corpo de Ricardo era dissolvido com sabão em pó, para evitar o mau cheiro. Alguns pedaços eram colocados nos restos de refeições diariamente. Outra parte, ia parar no esgoto e no telhado. De acordo com o delegado, em determinados momentos, a direção da unidade teve problemas com o encanamento, possivelmente gerados pelo acúmulo de material jogado pelos presos, pelos vasos sanitários e ralos. [...] Além dos crimes pelos quais já estão presos, eles agora vão responder por mais esse procedimento na Justiça.