variação linguística em livros voltados para professores em formação

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506 Eutomia, Recife, 12 (1): 506-524, Jul./Dez. 2013 Variação linguística em livros voltados para professores em formação Vanessa Hagemeyer Burgo 1 (UFMS) Eduardo Francisco Ferreira 2 (UFSC) Letícia Jovelina Storto 3 (UENP) Resumo: O objetivo deste trabalho é verificar o tratamento dado à variação linguística em materiais de ensino voltados a estudantes de um curso de Pedagogia. O corpus é composto de dois livros de formação pedagógica a distância. Foi possível observar que ainda existe uma noção precária e às vezes incoerente desse assunto nos materiais analisados. Palavras-Chave: variação linguística, formação docente, material didático. Abstract: The aim of this paper is to verify the treatment given to linguistic variation in distance learning materials designed for distance Pedagogy course students. The corpus consists of two distance pedagogical formation books. It was possible to observe that there are still precarious and sometimes incoherent notion about this issue in the analyzed material. Keywords: linguistic variation, teacher formation, coursebooks. Introdução Este trabalho explora o modo como a variação linguística é tratada em uma coleção de livros didáticos de formação do professor utilizados em um curso de Pedagogia a

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506 Eutomia, Recife, 12 (1): 506-524, Jul./Dez. 2013

Variação linguística em livros voltados para professores

em formação

Vanessa Hagemeyer Burgo1 (UFMS)

Eduardo Francisco Ferreira2 (UFSC)

Letícia Jovelina Storto3 (UENP)

Resumo:

O objetivo deste trabalho é verificar o tratamento dado à variação linguística em materiais de ensino voltados a estudantes de um curso de Pedagogia. O corpus é composto de dois livros de formação pedagógica a distância. Foi possível observar que ainda existe uma noção precária e às vezes incoerente desse assunto nos materiais analisados. Palavras-Chave: variação linguística, formação docente, material didático. Abstract:

The aim of this paper is to verify the treatment given to linguistic variation in distance learning materials designed for distance Pedagogy course students. The corpus consists of two distance pedagogical formation books. It was possible to observe that there are still precarious and sometimes incoherent notion about this issue in the analyzed material. Keywords: linguistic variation, teacher formation, coursebooks.

Introdução

Este trabalho explora o modo como a variação linguística é tratada em uma coleção

de livros didáticos de formação do professor utilizados em um curso de Pedagogia a

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distância. A constatação de que nesse curso os alunos recebem uma coleção de livro

didático e o fato de que os livros apresentam conceitos arcaicos em alguns pontos chamou a

nossa atenção, o que nos motivou a examiná-los. Assim, escolha do corpus deve-se ao fato

de ser um manual didático usado por professores e alunos de um curso de Pedagogia a

distância.

O nosso objetivo é compreender como esse fenômeno linguístico, a variação, tem

sido abordado, de modo preconceituoso ou cientificamente orientado, pois é evidente que

boa parte dos conceitos estudados durante a preparação docente se reflete na prática

futura. Portanto, é imprescindível observar como o os materiais didáticos fornecem ao

vindouro professor alguns conceitos e elementos a serem discutidos, a posteriori, em sala de

aula. Ademais, a formação do docente pode influenciar no modo como ele analisa a

linguagem (falada e escrita) de seus alunos, como corrige os textos e outros.

Assim, pretendemos analisar de que maneira os livros de formação de professor têm

apresentado a variação linguística e verificar em que momento do livro e com qual

perspectiva a variação linguística é apresentada.

Sociolinguística e Variação

Diante da heterogeneidade linguística encontrada na fala, surgiu a necessidade de

registrar, analisar e sistematizar todo esse processo “caótico” da língua, como cita Tarallo

em sua obra “A pesquisa sócio-lingüística” (1985).

Tarallo (1985, p.06) afirma que a relação óbvia entre língua e sociedade foi

abandonada por alguns estudiosos por acreditarem que a competência linguística dos

falantes/ouvintes “pertence a uma comunidade lingüisticamente homogênea”, o que é um

equívoco, já que a sociedade (e a língua) é heterogênea e diversificada, daí a existência de

variações e variantes linguísticas. Porém, esse caos aparente pode ser sistematizado,

porque os falantes/ouvintes, embora utilizem variedades distintas de língua, comunicam-se

sem grandes problemas.

Para os estudos sociolinguísticos, a língua está intrinsecamente ligada à sociedade, a

qual a utiliza com as suas variantes distintas para interagir. “Nesse sentido podem ser

chamados de sociolingüistas todos aqueles que entendem por língua um veículo de

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comunicação, de informação e de expressão entre os indivíduos da espécie humana”

(TARALLO, 1985, p.07).

A Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e tem como objetivo estudar a

língua em uso no cerne das comunidades de fala, dedicando a atenção para um tipo de

investigação que liga aspectos linguísticos e sociais. Essa disciplina “estuda as relações do

comportamento lingüístico e a estrutura social nas quais são examinadas questões como a

dinâmica da mudança lingüística dentro de um contexto social” (FREGONEZI, 1975, p.18).

O campo da pesquisa sociolinguística está relacionado ao estudo dos problemas que

envolvem a relação língua-sociedade. Seu objetivo é mostrar a variação sistemática

linguística da estrutura social e o relacionamento das variedades dentro de uma língua.

Para analisar todo esse leque de variedades encontradas na língua, a Sociolinguística

observa nos falantes a idade, o sexo, o grau de escolaridade e o nível social, não como forma

de demarcar limites nos desníveis sociais, mas para demonstrar que o homem é um ser

sociável dotado de competência linguística com capacidade para se fazer entender e para

compreender a mensagem proposta.

Todos os falantes de uma língua apresentam distinções ora coletivas, ora individuais,

que se refletem na sua linguagem, de modo que esses “membros de uma nação, ligados por

traços socioculturais, econômicos e políticos, tradicionalmente firmados, identificam-se e

distinguem-se dos membros de outra pelo seu instrumento de comunicação” (CAMACHO,

1988, p.29). É por meio do contato entre línguas (ou o contato entre falantes) que elas

individualizam-se, modificam-se e variam. Assim, a língua pode caracterizar e identificar os

naturais de uma região. Além disso, não só pelo contato, mas também historicamente, as

línguas sofrem alterações, pois “uma língua é um objeto histórico, enquanto saber

transmitido, estando, portanto, sujeita às eventualidades próprias de tal tipo de objeto. Isso

significa que se transforma no tempo e se diversifica no espaço” (CAMACHO, 1988, p.29).

Ainda, uma mesma língua pode apresentar variações porque os falantes não são iguais,

nem são idênticos todos os lugares, culturas e povos de uma mesma nação.

Porém, “os fatores de diversidade lingüística não ficam assim limitados aos aspectos

temporal e espacial” (CAMACHO, 1988, p.29), são também condicionados às características

sociais (idade, sexo, classe social, escolaridade) e estilísticas (estilo formal, informal,

coloquial, culto). Isso nos faz considerar que a variação linguística ocorre também

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individualmente, isto é, um mesmo sujeito utiliza diferentemente a língua que fala, sempre

a adequando ao tempo, ao espaço, ao(s) interlocutor(es) e aos objetivos da interação.

Desse modo, observam-se quatro tipos diferentes de variação linguística: variação

histórica ou diacrônica, variação geográfica ou diatópica, variação social ou diastrática e

variação social ou estilística. Parafraseando Camacho (1983), apesar de terem sido citados

isoladamente, os tipos de variação não ocorrem individualmente, mas podem ser

observados num mesmo fato linguístico.

Na primeira a se considerar, a variação histórica, as mudanças na língua ocorrem

gradativamente com o tempo, pois uma forma prestigiada será, futuramente, substituída

por outra, a qual, em princípio, é utilizada por um grupo de falantes como uma variação da

norma padrão. Assim, “as duas variantes diacrônicas, a substituta e a substituída, a rigor

não coexistem num mesmo plano temporal, uma vez que uma deve cair em desuso para

que a outra sobreviva” (CAMACHO, 1988, p.30). É interessante verificar que a variante

substituta, “ao se propagar, é adotada por um grupo socioeconomicamente expressivo”

(CAMACHO, 1988, p.30), ou seja, a partir do instante em que a elite da sociedade aceita

essa variante, ela passa a ser prestigiada (a da norma padrão), substituindo a anterior, a qual

fica confinada aos falantes mais idosos (tornando-se um arcaísmo), e é fixada pela escrita.

A variação geográfica, por sua vez, é aquela que ocorre espacialmente. Desse

modo, falantes brasileiros da Região Sul do país têm variantes (fonéticas, lexicais,

semânticas) distintas dos falantes da Região Nordeste, por exemplo.

Essa diversidade linguística espacial decorre do fato de que nativos de determinada localidade (cidade, estado ou região), orientados para um centro cultural, política e economicamente polarizador, constituem uma comunidade linguística, geograficamente limitada, no interior de uma mais extensa (a nação), através do desenvolvimento de um comportamento cultural próprio que os identifica e os distingue de outras comunidades. (CAMACHO, 1988, p.31).

Portanto, é esse centro polarizador que determinará as variantes, ou seja, é com

base nesse ponto que se podem verificar as variações linguísticas existentes.

Já a variação social decorre de muitos fatores: escolaridade, classe social, faixa

etária, sexo, profissão e outros, isolados ou conjugados entre si. Assim, “a variação social é o

resultado da tendência para maior semelhança entre os atos verbais dos membros de um

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mesmo setor sociocultural da comunidade” (CAMACHO, 1988, p.32). Como exemplos disso,

Camacho observa que há distinção entre: a) o falar dos homens e o das mulheres (eles

apresentam uma linguagem mais objetivo, como recorrência a palavras de baixo calão e a

gírias, elas apresentam uma linguagem mais afetiva, mais sonora); b) o falar dos jovens,

marcado principalmente pelas gírias, como forma de identificação do grupo e de negação

do considerado ultrapassado. Acrescentamos as diferenças entre o falar das crianças (que

apresentam um vocabulário muitas vezes restrito, pouco ou nenhum uso de orações

subordinadas e de colocação pronominal em ênclise, entre outros) e o falar dos idosos (que

empregam, em geral, uma língua mais conservadora, menos gírias). Além do mais, existem

as variações decorrentes das profissões, os chamados jargões. Assim, médicos, químicos,

policiais etc. apresentam distinções que lhe são particulares.

O autor ressalta também a existência de comunicação entre os falantes de estratos

sociais distintos e a possibilidade de influência mútua entre padrões linguísticos, pois

Embora o padrão cultural, o grau de educação e as atividades profissionais rejam a formação desses núcleos sociais distintos [socioeconomicamente prestigiado e desprestigiado], o intercâmbio cultural e profissional entre indivíduos de meio diverso possibilita a adaptação das formas de expressão de um para outro grupo. (CAMACHO, 1988, p.33).

A outra modalidade de variação apresentada pelo pesquisador, a variação

estilística, caracteriza-se de acordo com as condições de produção da língua, porque os

falantes modificam o seu modo de falar conforme as circunstâncias em que se encontram e

os objetivos a que almejam. Assim, não falamos numa entrevista de emprego da mesma

forma como falamos num jogo de futebol, por exemplo. “Tal adequação decorre de uma

seleção dentre o conjunto de forma que constitui o saber lingüístico individual, de um modo

mais ou menos consciente” (CAMACHO, 1988, p.34). Portanto, os falantes utilizam-se da

língua de modo mais formal (que é mais preso à normatividade gramatical e que satisfaz às

necessidades intelectuais e profissionais) ou mais informal (o qual é menos preso à

normatividade), conforme a necessidade.

Salientamos que, embora “[...] se tenha dado uma visão isolada das características

essenciais de cada tipo de variação lingüística, é falso supor que coexistem de forma

independente numa língua qualquer” (CAMACHO, 1988, p.36), pois um mesmo falante

pode apresentar mais de uma dessas modalidades num só momento de fala. Quando

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alguém diz, por exemplo, “uai, to cuma dor di cabeça, cumpadi”, percebe-se a variante

espacial (falante de Minas Gerais) e estilística (elocução informal).

Todavia, Camacho (1988, p.37) ressalta que “não são outros os fatores que

determinam a mudança linguística, senão os sociais”, uma vez que, ausente outra forma de

variação, a que se constituirá é a social.

Variação Linguística e Ensino

Não há como negar que o Brasil é um país culturalmente diversificado, basta

relembrar seu passado de colonização e toda a influência advinda de seus colonizadores e

imigrantes, resultando numa miscigenação de raças. Diante de toda essa heterogeneidade

linguística, torna-se impossível uniformizar ou aprisionar a língua, isso seria negar toda a

história de uma nação, pois “a língua é um lugar de marcação de identidades” (POSSENTI,

2002, p.109). No que se refere à diversidade de um idioma, Camacho (1988, p. 29) declara:

As diferenças entre os idiomas, que caracterizam e mesmo identificam os nativos de uma nação, estão longe de ser o único e mesmo principal fator da diversidade lingüística. Uma língua é um objeto histórico, enquanto saber transmitido, estando, portanto, sujeita às eventualidades próprias de tal tipo de objeto. Isso significa que se transforma no tempo e se diversifica no espaço.

A norma padrão, considerada por muitos como a única forma “correta” de se

comunicar, reinou exclusivamente por muito tempo no seio da sociedade e, é claro, no

ensino sistematizado e descontextualizado das escolas. Consequentemente, acreditou-se

durante muito tempo (e ainda há que acredite) no “mito de uma língua uniforme, sem

variação, sem adequação à situação em que é usada e, lá no fundo, o outro mito de que a

norma culta é inerentemente melhor que as outras” (ANTUNES, 2007, p. 104).

Cabe à escola o dever de transmitir os valores sociais de uma comunidade, é sua

responsabilidade ensinar a norma padrão da língua sem desmerecer as demais variações.

Contudo, como afirma Barboza (2004, p.50), “tradicionalmente, a escola tem agido como se

a escrita fosse a língua, ou como se todos os que nela ingressam falassem da mesma

forma”. Antunes (2007), corroborando com essa perspectiva, argumenta que o ensino tem

se centrado num equívoco: a gramática é suficiente para falar, escrever e ler com sucesso.

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Uma causa provável disso é acreditar que gramática e língua sejam a mesma “coisa”, porém

não são. É importante lembrar que, quando os alunos chegam à escola, já possuem um

conhecimento prático dos princípios da linguagem, cabendo à instituição de ensino

desenvolver, ainda mais, esse conhecimento, torná-lo múltiplo e, cada vez mais, propenso à

aceitação de novas ideias relacionadas à língua.

Não é complicado encontrarmos professores que, em sala de aula, sentem dificuldade

em tecer comentários a respeito da variação linguística, porque muitos deles não têm

argumentos contra os exercícios prescritivos e preconceituosos que os livros didáticos

trazem ou porque não adquiriram conhecimento teórico-linguístico que embasem uma

prática centrada no respeito às variações que a língua, naturalmente, exibe. Barros (2004,

p.02) elucida que “há um esforço concentrado em ensinar a norma culta aos alunos, a

linguagem considerada ‘errada’ tem que ser substituída pela ‘correta’ do sistema escolar, o

que acaba por taxar as variedades como erro ou desvio da norma padrão”.

Além do mais, essa norma padrão é validada por meio da literatura e se codifica nas

gramáticas escolares, as quais a transformam, por sua vez, em linguagem dita a como a

única “correta” a ser ensinada e aprendida no âmbito escolar. Por tudo isso, muitos que

assimilam essa mensagem enganosa tratam com bastante preconceito as variantes e

desprezam os falantes de normas diferentes da chamada padrão. Se os professores não

respeitarem as variedades, elas não serão consideradas pelos demais falantes, de modo a

acarretar inúmeros problemas ao aprendizado dos alunos pertencentes às camadas

populares, o que pode levá-los ao fracasso escolar. Além disso, ao tratar da variação

linguística, muitos gramáticos são preconceituosos e desconsideram a oralidade, primando

apenas pela escrita, pois desconsideram a variação como própria da linguagem.

Devemos entender que a norma padrão não deve ser excluída do ensino, mas não

podemos deixar de reconhecer o valor que cada variedade possui. Todavia, como visto

anteriormente, o ensino tem-se pautado em apenas uma variante, a padrão, a considerada

padrão, pois, por fatores histórico-sociais, ela tem sido valorizada em detrimento das

demais. Como solução desse impasse, podemos pensar a sensibilização dos estudantes

“para a variabilidade lingüística, correlacionando-a com as situações a que corresponde”

(CASTILHO, 2002, p.29). Travaglia (2000) argumenta que a educação linguística não deve

ficar limitada ao ensino de regras e nomenclaturas gramaticais, nem ao ensino exclusivo de

uma variante existente, pois a importância do ensino de português se justifica pela

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finalidade de desenvolver a competência comunicativa dos usuários da língua, os quais

devem adquirir a capacidade de empregar adequadamente a língua nas mais diversas

situações de comunicação. Assim, deve-se trabalhar em sala de aula, juntamente à

variedade de maior prestígio social - cujo ensino é função/objetivo primária da escola –, as

variantes com as quais os estudantes conviverão em alguma etapa de sua vida. Isso porque

“o convívio com essas diferenças poderia ser uma oportunidade para se abrir o debate em

torno da variedade de falares que coexistem no país, sem emprestar qualquer resquício de

mais valor a um ou a outro” (ANTUNES, 2007, p.109), uma vez que “existem variações

linguísticas não porque as pessoas são ignorantes ou indisciplinadas; existem, porque as

línguas são fatos sociais, situados num tempo e num espaço concretos, com funções

definidas” (ANTUNES, 2007, 104).

Quanto à variação linguística, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) declaram

que

No ensino aprendizagem de diferentes padrões de fala e de escrita, o que se almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da forma de fala a utilizar, considerando as características e condições do contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a variedade de língua [...] A questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de utilização adequada da linguagem. (BRASIL, 1998, p.31).

Nessa perspectiva, cabe à escola lidar com essa questão, mostrar ao aluno que o

aprendizado da norma padrão deve ser utilizado em seu benefício nas situações que a

exigirem. Precisamos desmitificar a ideia de que há variantes corretas e outras incorretas,

como também anular o pensamento pré-estabelecido (e preconceituoso) de que “há uma

relação de implicação entre capacidade verbal e classe sócio-econômica” (CAMACHO, 1988,

p.40). Portanto, esperamos que a escola

Saiba desenvolver a capacidade dos alunos para acolher as diferenças, com o máximo respeito por aqueles que as apresentam, sem o sentimento de que estão fazendo concessões ou sendo compassivos com os diferentes. Simplesmente, porque a diferença é a parte mais significativa daquilo que nos faz iguais (ANTUNES, 2007, p.109).

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Enfim, a variação de uma língua é um fenômeno inerente à sua própria natureza, e

nenhuma mudança é aleatória. Cada uma tem sua lógica e motivação.

Variação Linguística em Material de Formação Docente

A partir das considerações anteriores, procedemos à análise do corpus elencado. No

capítulo “Didática para o ensino de língua portuguesa” do primeiro livro analisado,

verificamos que a variação linguística (doravante VL) é o conteúdo seguinte às concepções

de língua e ocupa onze páginas do livro. Isso nos revela a consciência da sua autora, a qual

notou que VL está presente no terceiro conceito de língua: lugar de interação, pois, para

essa noção, a língua é variada e variável, heterogênea, uma atividade social, histórica e

cognitiva (MARCUSCHI, 2008).

Na introdução a respeito da VL, no módulo em pauta, há o seguinte texto:

A língua portuguesa, idioma oficial do país, é falada por todos os

brasileiros, mas esta língua não é falada de maneira rigorosamente uniforme

por todos os seus falantes.

Segundo Luiz Carlos Travaglia, a escola deve estar aberta para essa

pluralidade de discursos a fim de que possa desenvolver a competência

comunicativa dos usuários. Essa pluralidade diz respeito às variedades

lingüísticas.

Embora reconheçamos que a variedade é um fato real, ainda se

percebe, dentro da sociedade, a valorização de algumas variações e assim

estabelecemos critérios que julgam algumas variedades como certas ou

erradas, cômicas, aceitáveis, desprestigiadas, etc. sabemos que devemos

adequar a língua às diferentes situações, pois convivemos com pessoas

diferentes, conhecemos pessoas de diversos lugares e temos contato com

uma grande diversidade de outras situações que mostram que a mesma

língua falada no sul do país tem expressões e palavras com significados

completamente diferentes na língua falada no norte.

Quando trabalhamos com Língua Portuguesa, não podemos

trabalhar somente a norma culta, o português padrão, exigindo o seu

domínio. Todas as variedades são importantes, devemos dar possibilidades

ao aluno para que conheça as diversas formas, pois cada uma tem elementos

que a distinguem, inclusive daquelas as quais domina.

É possível observar, nesse excerto, que o livro didático, nesse momento, apresenta a

VL por uma perspectiva próxima da científico-teórica. Contudo, pouco aprofundada, mas

que, ainda assim, respeita esse fenômeno natural e intrínseco à língua. Além disso,

verificamos a consciência de que não há língua sem variação, pois, como está no livro, “a

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variedade é um fato real” e de que a norma padrão não deve ter exclusividade no ensino da

língua portuguesa, porque “todas as variedades são importantes, devemos dar

possibilidades ao aluno para que conheça as diversas formas”. A escola não deve restringir o

estudo da língua a uma variante, porque não formará falantes capazes de adequar a sua

linguagem às mais diversas e notórias situações de interação, as quais requerem um falar e

um agir distintos, para que haja coerência na comunicação.

Entretanto, vemos que, embora o livro busque estar de acordo com as pesquisas

sociolinguísticas, “escorrega” em alguns pontos. Na primeira atividade sobre VL, não há,

necessariamente, exemplos de variação para serem analisados pelos estudantes. Notamos

a presença de um texto não verbal no qual um personagem criado por Maurício de Souza, o

Chico Bento (personagem sempre utilizado para exemplificar o falar caipira – a variação

geográfica e a social), remete-nos ao contexto rural, sem fazer uso de um texto verbal para

mostrar como o falante do campo utiliza a língua de maneira diversa de um falante urbano.

Há ainda um texto que busca evidenciar variantes lexicais do trato social (o falar do

“malandro”), que não são, porém, suficientes para a resolução do exercício proposto.

Em seguida, na segunda atividade, o livro solicita, sem grandes explicações, que os

estudantes comparem dois textos apresentados, um verbal e um não verbal; como se a

imagem do personagem de história em quadrinhos Chico Bento fosse suficiente para os

estudantes argumentarem a respeito da VL social e geográfica.

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Figura 1

Na continuação, há “atividades supervisionadas”. Sem grandes informações acerca

das classificações da VL, é solicitado, na primeira atividade supervisionada, que os discentes

exemplifiquem as variações de sexo, idade, profissão e grupo social. Verificamos que, para a

devida explicação, não houve no livro o retorno dos exercícios anteriores, os quais ficaram

descontextualizados.

A posteriori, o livro apresenta os tipos de variação linguística, citando e tecendo

pequenos comentários a respeito da variação sociocultural, da variação geográfica e ad

variação histórica. Para a primeira, o conceito oferecido é “variação social ao qual o falante

pertence”; para a segunda, a “região em que o falante vive durante certo tempo”; e para a

terceira, “tempo em que o falante vive”. Acreditamos serem bastante insuficientes e nada

claras as noções dadas, pois, além de não recorrerem aos teóricos do assunto, são escassas

de informações, o que compromete, significativamente, a compreensão que o futuro

professor terá do assunto e, talvez, o incapacite de argumentar a seu respeito. Notamos,

nesse caso, que, por causa da precariedade de subsídios, o aluno terá que recorrer a outras

fontes de pesquisa se quiser entender o que está estudando, o que é interessante, já que o

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leva a buscar conhecimento, realizando pesquisas fora da sala de aula. Mas que pode

dificultar o processo de aprendizado, haja vista se tratar de um curso a distância, no qual o

aluno não tem contato com o professor. Além do mais, essa atitude faz com que o livro não

cumpra um papel a ele determinado: ser fonte de dados e instrumento de estudo para o

aluno que estuda em casa sem a presença de um mediador.

Entretanto, o livro em análise, mesmo que insuficientemente, exemplifica os

conceitos que estão sendo tratados. Para elucidar a variação geográfica, por exemplo, o

livro traz o texto “Noturno de Belo Horizonte”, de Mário de Andrade, e para a variação

histórica, “Antigamente” e “Entre palavras”, ambos de Carlos Drummond de Andrade. Além

disso, o livro dá dicas de músicas nas quais os estudantes encontram algumas variantes

geográficas: “Piá Curitibano”, de João Lopes; “Vaneirão Sambado”, de Gaúcho da Fronteira;

“Garota Nacional”, do grupo Skank; “Garota Carioca”, de Fernanda Abreu; e “Você é linda”,

de Caetano Veloso.

O livro traz também explicações que nos remetem ao problema da

intercompreensão dialetal de que trata Bortoni-Ricardo (1986). Segundo a referida

pesquisadora, é um equívoco pensar que, no Brasil, país em que predominantemente se fala

apenas a língua portuguesa, não há problemas de comunicação entre os falantes. Podemos

afirmar que, por causa da grande variedade de falares que nele coexistem, há, sim,

dificuldades de compreensão entre falantes de dialetos/variantes do português brasileiro.

Porém, ainda há quem acredite que isso simplesmente não ocorre no Brasil, já que a grande

massa de sua população tem como língua materna o português. Disso decorre uma questão

emblemática: “na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre

falantes de diferentes variedades da língua, nada se faz também para resolvê-los”

(BORTONI-RICARDO, 1986, p.09). O livro, a respeito disso, afirma que:

Se juntarmos numa mesma sala um gaúcho, um nordestino e um carioca, é

possível que não entendamos nada ou até pensemos no auxílio de um

tradutor. A pronúncia é bem diferente, e o significado de certas palavras em

algumas regiões pode ser bem diferente.

Entretanto, o livro se contradiz quando afirma:

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Podemos viajar de norte a sul do Brasil que não teremos problemas em nos

comunicarmos. A língua falada no Brasil é a mesma, expressamo-nos por

meio do português e nos fazemos entender por meio dessa língua.

Fora isso, o manual didático apresenta “lembretes”, nos quais há a explicação de

alguns termos que podem gerar dúvidas: sotaque, variante, dialeto, falar.

Os exercícios das páginas 24 e 25 (Tabela 1) mostram-se coerentes com uma

proposta sócio-interativa que respeite as variações da língua, pois as atividades, em geral,

não procuram modificar as variantes apresentadas, mas identificá-las. Contudo, ainda falta

aos exercícios a reflexão acerca do que se tem discutido até então a respeito de VL.

“Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era para tirar o pai da forca e não caíam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passasse a manta e azulava, dando às de vila-diogo. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.

Havia os que tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: “Dominus tecum”. Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias.

Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam

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qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um cabrito, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.

Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.

Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.” (Antigamente, Carlos Drummond de Andrade).

01. Releia o texto Antigamente, de Carlos Drummond de Andrade, e responda às

questões abaixo:

O texto foi elaborado pelo escritor com palavras que não fazem parte da nossa

época, é uma linguagem desatualizada para os nossos dias, certamente Carlos

Drummond usou essas palavras propositalmente porque são construções

(palavras e frases) que podem ser consideradas “antigas”. Relendo o texto, você

pode observar que algumas palavras e expressões até são conhecidas, e você

provavelmente até sabe o que significam. Se conversar com alguém mais velho

(avós, tios, pais, etc.) é possível que eles conheçam e, mais, tenham usado essa

linguagem quando eram mais jovens.

a) Escreva algumas expressões utilizadas no texto e tente explicar o significado

usando a sua linguagem do dia-a-dia. Use, se necessário, as gírias, elas

fazem parte da nossa língua e mostram a criatividade dos grupos que as

usam.

b) Se existirem retire do texto palavras ou expressões utilizadas por nós.

c) Algumas palavras do texto são tão diferentes que, talvez, nem soubéssemos

que existiam. Quais seriam as palavras mais antigas? Escreva-as.

d) Pense na seguinte situação: Quando estamos na fila de um banco, vemos e

ouvimos muitas coisas. Imagine que na sua frente havia um casal de

namorados apaixonados e você escutou alguns trechos da conversa deles.

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Mas o que causou maior estranheza foi a seguinte expressão que o rapaz

disse à moça:

_Querida, você é muito mimosa e prendada!

Você ficou surpreso? Achou estranha a forma de falar do rapaz? Por quê?

Escreva outra expressão que ficaria mais adequada para a nossa época.

02. Você conseguiu um emprego novo. Irá trabalhar numa empresa como criador de

textos publicitários, e o seu primeiro trabalho é criar um texto para uma

propaganda de um novo refrigerante. Cuidado! O texto deve conter

características próprias do grupo social ao qual se destina.

O texto será dirigido aos seguintes tipos de público consumidor do produto:

- jovens adolescentes (urbanos)

- crianças na faixa etária de 5 a 8 anos.

Tabela 1

Em seguida, o livro difere a língua culta da língua coloquial, argumentando que

“precisamos saber diferenciar as duas modalidades de expressão da nossa língua para

podermos desmitificar, no uso da língua, o conceito do ‘certo’ e do ‘errado’ tão impregnado

na nossa sociedade”. Notamos que o livro traz a noção de adequação linguística, ou seja, é

preciso adequar a linguagem ao contexto de produção em que ela está situada. Isso nos

mostra a consciência linguística presente no livro didático analisado.

Finalizando o estudo do primeiro livro, salientamos a falta de referências

especializadas em VL. Na bibliografia, verificamos textos que não apresentam uma

abordagem mais teórica e/ou científica desse fenômeno. Como foi comprovado, a ausência

de um aporte teórico mais específico e talvez mais denso deixa incompletas e pouco claras

as noções apresentadas no livro, dificultando a compreensão do assunto.

No capítulo “Didática para o ensino de língua portuguesa”, do segundo livro,

verificamos que a VL fica entre textos sobre a concordância nominal e verbal (Figura 2) e

ocupa apenas uma página e meia do livro. Isso nos releva o total descaso e

desconhecimento acerca da VL, pois colocá-la antes e depois da concordância nominal e

verbal é afirmar, mesmo que inconscientemente, que a Variação é uma deturpação, uma

degradação da língua, não sendo, por isso, aceita, mas considerada como “erro”, extravio

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da norma padrão. Além disso, ao contrário da busca por se respeitar a VL vista no primeiro

livro, neste nos deparamos com textos preconceituosos:

Figura 2

Notamos que o preconceito linguístico é latente, por exemplo em: “ficamos

perplexos e não entendemos como podem existir pessoas que falam de maneira tão

‘errada””. Isso ao de encontro ao que o livro propõe, o respeito à VL, haja vista no livro haver

a busca pelo respeito às variações, pois, antes do texto acima apresentado, o manual

afirma:

As línguas apresentam maneiras diferentes de se organizar, têm as suas

próprias convenções e regras. Todavia dentro de uma mesma língua

observamos inúmeras variações, sendo possível, portanto, encontrar regras

diferentes de concordância. [...] cabe à escola a função de explicar aos alunos

que não existe forma melhor ou pior de usar a língua; na verdade, existem

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variedades dentro de uma mesma língua que permitem a cada falante o

indispensável para garantir o processo de comunicação.

Percebemos, portanto, uma contradição: ora o manual é preconceituoso, ora não.

Isso nos faz refletir a respeito de até que ponto o profissional que elaborou esses livros está

convencido de a VL ser inerente à linguagem.

Observamos também que a única atividade presente na parte da VL diz mais a

respeito de concordância nominal que a outro assunto. Notamos que houve uma

preocupação com a VL, porém ela se torna incoerente quando colocada ao lado de

expressões como “não entendemos como podem existir pessoas que falam dessa maneira

tão ‘errada’” – observamos que o livro tenta elucidar a questão da adequação linguística,

mas cai na mesma perspectiva pouco científica acerca da VL com a qual nos deparamos há

muito tempo.

Podemos afirmar, então, que o material analisado é insuficiente para um bom e real

entendimento desse interessante fenômeno linguístico. No entanto, esses, assim como

outros livros, têm aberto portas para que os alunos busquem conhecer mais sobre esse

assunto. Além disso, acreditamos que a falta de respaldo teórico-científico que se reflete no

material analisado é ainda resultado de desconsideração e de descaso que muitos centros

acadêmicos e de formação de professores têm com a VL e com os estudos da

Sociolinguística.

Ademais, parece que, embora esses livros didáticos tentem estar de acordo com as

pesquisas sociolinguísticas realizadas, eles não as compreendem significativamente, caindo

em contradição em alguns momentos. Entretanto, essa busca pelo conhecimento e pela

adesão da VL nos materiais didáticos é, sem dúvida, necessária e louvável (louvável porque

muitos livros didáticos sequer tocam nesse tema).

Enfim, devemos, como docentes, dosar e conciliar os objetivos do ensino aos

objetivos dos livros. Essa pode não ser uma tarefa fácil; no entanto, traz grandes benefícios

ao trabalho do professor e ao aprendizado do aluno.

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Considerações Finais

A linguagem é um lugar de interação, pois é por meio dela que os sujeitos

comunicam-se e interagem social e culturalmente. Para Barboza (2007, p.14), “a língua não

é usada de modo homogêneo por todos os seus falantes”, uma vez que até os falantes são

heterogêneos em muitos sentidos: histórico, psicológico, social, familiar, entre outros. Já

que “a língua só existe em sociedade, e toda sociedade é inevitavelmente heterogênea,

múltipla, variável e, por conseguinte, com usos diversificados da própria língua” (ANTUNES,

2007, p.104).

Os livros analisados mostraram-nos que precisamos pesquisar mais a respeito da

variação linguística, pois os professores ainda não estão preparados para tratar desse

assunto nos manuais didáticos e, muito provavelmente, nas salas de aula. Acreditamos que

a visão um pouco preconceituosa que ainda persiste pode ser eliminada com mais esforço

por parte de alguns professores e autores de manuais didáticos, os quais, em alguns

momentos, precisam buscar textos e pesquisas mais científicas para compreender o que

vem a ser a variação da linguagem. Além disso, foi possível perceber que há, sim, procura

por entender e respeitar esse fenômeno, mas que isso não se concretiza no ensino.

Barros (2004, p.46) afirma que “é preciso estar atento e questionar as propostas de

trabalho oferecidas pelo livro e verificar se não são redutoras e discriminadoras...”, pois o

livro didático não é o único a fornecer conhecimento, há que se buscar em dicionários,

enciclopédias, Internet, livros teóricos/técnicos e outros, para uma visão mais ampla e

coerente daquilo que necessitamos aprender e/ou ensinar. Embora o livro didático auxilie (e

muito) o professor, não deve ser o único meio utilizado no processo de ensino-

aprendizagem. Assim, o docente deve, sempre, pesquisar em outras fontes o material

necessário para que suas aulas sejam proveitosas.

Enfim, esperamos ter aguçado a curiosidade a respeito do que, de fato, a língua nos

oferece e dos estudos acerca desse importante fenômeno linguístico, a variação.

Referências

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.

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BARBOZA, Teresinha Pereira. Pensando a língua em suas diferentes formas: uma nova abordagem em relação ao ensino de língua portuguesa. 2007. 55p. Monografia (Especialização em Língua Portuguesa) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. BARROS, Lucinéia Aparecida Lopes de. Livro didático e o ensino da variação lingüística: recurso ou dirigente? 2004. Monografia (Especialização em Língua Portuguesa) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Problemas de comunicação interdialetal. Tempo

Brasileiro, n.53/54, jul.-dez. 1986, p.09-31. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. CAMACHO, Roberto Gomes. A variação lingüística. In: SÃO PAULO. Secretaria de Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Subsídios à Proposta

Curricular de Língua Portuguesa para os 1º e 2º graus: coletânea de textos. São Paulo: SE/CENP. 1988, v.I, 53-9, p.29-41. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Variação dialetal e ensino institucionalizado da língua portuguesa. In: BAGNO, Marcos. Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002, p.27-36. FREGONEZI, Durvali. A variação lingüística e o ensino de português. Cornélio Procópio, Pr.: [s/n], 1975. POSSENTI, Sírio. Um programa mínimo. In: BAGNO, Marcos. Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática, 1985. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2000.

1 Vanessa HAGEMEYER BURGO, Doutora Universidade Federal do Mato Grosso do Sul [email protected] 2 Eduardo FRANCISCO FERREIRA, Doutorando

Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] 3 Letícia JOVELINA STORTO, Doutoranda Universidade Estadual do Norte do Paraná [email protected] Recebido: 21.05.13 Aprovado:26.06.13