vargas llosa reescreve euclides: uma proposta … · cantava, dentre as quais, o inesquecível...

121
1 VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES: UMA PROPOSTA DE BRASIL por Tarciso Gomes do Rego (Aluno do curso de Mestrado em Letras Neolatinas) Rio de Janeiro 2010

Upload: dangcong

Post on 09-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES:

UMA PROPOSTA DE BRASIL

por

Tarciso Gomes do Rego

(Aluno do curso de Mestrado em Letras Neolatinas)

Rio de Janeiro

2010

2

VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES:

UMA PROPOSTA DE BRASIL

Tarciso Gomes do Rego

Dissertação de mestrad o. Programa de Pós-Graduaçãoem Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas. Área: Estudos Literários Neolatinos. Opção: Literaturas Hispânicas.

Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus

UFRJ / Faculdade de Letras

Rio de Janeiro, agosto de 2010

3

FICHA CATALOGRÁFICA

REGO, Tarciso Gomes do.

VARGAS LLOSA REESCREVE EUCLIDES: UMA

PROPOSTA DE BRASIL/Tarciso Gomes do Rego. Rio de Janeiro,

2010. Xx fls.

Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, Estudos Literários, opção Literaturas

Hispânicas). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2010.

Orientador: Victor Manuel Ramos Lemus

1 – Mario Vargas Llosa. 2 – Euclides da Cunha. 3 – Canudos. 4 –

Literatura peruana. 5 – Literatura Brasileira. 6 – Narrativa. 7 –

Literatura Latino-Americana. 8 – Modernidade.

4

Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil

Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas

da UFRJ, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas, Área de Estudos Literários, opção Literaturas Hispânicas.

Aprovada por:

Presidente, Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus

Prof. Doutor Júlio Dalloz – UFRJ

Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins – UFRJ

Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ, Suplente

Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Agosto de 2010

5

A todos os Severinos desta imensa terra que, de uma

forma ou de outra, trabalharam e continuam trabalhando para

torná-la menos Severina.

Aos Severinos que originaram a minha vida. Meu avô,

João Severino do Rego, um típico Severino dentre os muitos que,

com as mãos calejadas pela enxada e o rosto queimado pelo sol

do Nordeste, trabalharam a terra para sobreviver, apesar do

latifúndio. Meu pai, Manuel Severino do Rego, um migrante na

cidade grande, outro Severino dentre os muitos que, com as mãos

sujas de graxa e o macacão tomado pela ferrugem, ajudaram a

construir a estrutura do Brasil industrial. Devo a ele minhas

primeiras noções de História do Brasil e o início de minha

consciência política e social.

A minha mãe, Geralda, a ela devo minhas primeiras

noções de literatura quando, na segunda infância, pôs-me em

contato com o cordel, transportando-me ao mundo da fantasia e

da imaginação através das inúmeras histórias que me contava e

cantava, dentre as quais, o inesquecível “pavão misterioso”.

A minha avó, uma Maria, nome de luta, de força e de fé.

Suas inúmeras histórias do nordeste também ajudaram a povoar

a imaginação da minha infância.

A Benvinda Maria, minha esposa e companheira, também

uma Maria, de muita luta, força e fé. Ela esteve sempre presente

com sua compreensão e seu estímulo, principalmente naquelas

horas em que a vontade de não seguir em frente na realização

deste sonho parecia me dominar.

A Tatiana, Juliana e Mariana, minhas filhas, que deram e

continuam dando a mim um aprendizado constante no

conhecimento do mundo. O carinho e o apoio dados por elas

também foram fundamentais para a concretização do meu sonho.

6

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus, agradeço o forte incentivo à

participação neste curso, desde a Especialização, além da leitura detalhada e constante

deste trabalho, a orientação segura, as muitas sugestões e, acima de tudo, a grande

compreensão a mim dedicada no decorrer da confecção desta dissertação.

Ao Professor Doutor Júlio Dalloz, agradeço o apoio, iniciado também na

Especialização, bem como os inúmeros conhecimentos referentes à literatura hispano-

americana obtidos por mim a partir de suas exposições e indicações.

Ao Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, agradeço o enriquecimento e o

amadurecimento conseguidos a partir de suas aulas e da leitura da bibliografia por ele

sugerida para a realização das mesmas, pois foram vitais para a culminância deste

projeto.

Ao Professor Doutor Ary Pimentel, um agradecimento especial pelo incentivo,

também desde a Especialização, bem como pelas sugestões oferecidas para esta

pesquisa, pela vasta bibliografia apresentada e pelo crescimento obtido nos constantes

debates fomentados ao longo de suas aulas.

Às Professoras Doutoras Maria Lizete dos Santos e Maria Aurora Consuelo

Alfaro Lagorio, agradeço as primeiras observações a respeito deste texto, todas de suma

importância para que eu pudesse desenvolvê-lo de forma organizada.

À Professora Bella Karacuchansky Josef, agradeço os muitos comentários sobre

literatura hispano-americana, com ênfase para Vargas Llosa, dados importantes para que

eu pudesse me aprofundar neste trabalho.

Ao Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno, um agradecimento especial

pela ampliação de meus conhecimentos a respeito das relações entre os poetas e as

cidades, fator para mim essencial no aprofundamento da construção deste texto.

7

À Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, agradeço a descoberta da

força do poder retratada nas obras de ficção, tema fundamental para o amadurecimento

nas minhas reflexões sobre esta dissertação.

À Professora Doutora Cláudia Luna Ferreira da Silva, agradeço a ampliação dos

meus conhecimentos sobre a literatura dos viajantes e exilados da América Latina.

A todos os meus companheiros de jornada, alguns que comigo estão desde a

Especialização e outros que só recentemente chegaram, não importa, a todos meus

sinceros agradecimentos por ter tido a oportunidade de compartilhar com eles os

momentos mais marcantes na consecução deste objetivo.

8

SINOPSE

Análise de La guerra del fin del mundo de Mario

Vargas Llosa, como palimpsesto de Os sertões de

Euclides da Cunha, de modo a delimitar as

semelhanças e as diferenças entre história e ficção

num projeto de construção, não só do Brasil, mas,

de acordo com o escritor peruano, também da

América Latina.

9

RESUMO

REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil.

Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) –

Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A presente dissertação tem o objetivo de mostrar como a interpretação feita por

Mario Vargas Llosa sobre a guerra de Canudos pode nos trazer novas contribuições no

que diz respeito ao papel da literatura como instrumento de análise do processo

histórico. Neste caso, haverá uma ligação com a obra Os Sertões de Euclides da Cunha,

visto ter o escritor brasileiro pretendido fazer uma abordagem objetiva do fato citado,

com o intuito de criar uma proposta de construção do Brasil num momento em que a

jovem República buscava auto-afirmação. Este trabalho mostra que, consoante com as

perspectivas abertas pelos estudos da nova história e consolidado pela pós-modernidade,

Vargas Llosa trouxe novos encaminhamentos para a compreensão deste episódio, tendo

em vista a multiplicidade de representações criadas por ele com o intuito de apresentar o

texto literário como repositório da subjetividade de uma época. Será destacado o fato de

o romancista peruano ter sido um dos expoentes do chamado “boom” do romance

latino-americano, momento em que os escritores desse grupo apresentavam uma

literatura cujos postulados deveriam estar aliados a uma proposta revolucionária no

aspecto político, econômico e social. Será enfatizada a idéia de, no caso de La Guerra

del fin del Mundo, Vargas Llosa pretender questionar as chamadas verdades imutáveis e

eternas, ressaltando que tudo é discurso e representação, o que conduzirá à conclusão de

que, tal qual Euclides da Cunha, o escritor peruano também apresenta uma proposta de,

neste caso, reconstrução do Brasil, estendendo-a, porém, para toda a América Latina.

Palavras-chave: Mário Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Literatura Peruana,

Literatura Brasileira, A narrativa, Literatura Latino-Americana, Pós-modernidade.

10

ABSTRACT

REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil.

Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) –

Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This thesis aims to show how the interpretation made by Mario Vargas Llosa

about the war of Canudos can bring in new contributions regarding the role of literature

as a tool for analysis of historical process. In this case, there will be a link with the work

Os Sertões made by the Brazilian writer Euclides da Cunha, intended to make an

objective approach to the fact mentioned, in order to create a proposal to build Brazil at

a time when the newly created republic sought self-assertion. This work shows that,

depending on the prospects opened up by new studies of history and consolidated by

post-modernity, Vargas Llosa has brought new directions to understand this episode, in

view of the multiplicity of representations created by him with the intention of

presenting the text as a repository of literary subjectivity of an era. It will be highlighted

the fact that the Peruvian novelist was one of the exponents of the so-called boom of

Latin America novel, when the writers of this group had a literature whose principles

should be combined with a revolutionary proposal in the political, economic and social

aspects. It will be emphasized the idea that, in the case of La guerra del fin del mundo,

Vargas Llosa wants to question the so called immutable and eternal truths, pointing out

that everything is discourse and representation, leading to the conclusion that, like

Euclides da Cunha, the peruvian writer also presents a proposal that, in this case, is a

reconstruction of Brazil, extending it for all Latin America.

Key words: Mário Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Peruvian Literature,

Brazilian Literature, narrative, Latin American Literature, Post-Modernity.

11

RESUMEN

REGO, Tarciso Gomes do. Vargas Llosa reescreve Euclides: uma proposta de Brasil.

Rio de janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) –

Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Esta tesis tiene como objetivo mostrar que la interpretación hecha por Mario

Vargas Llosa sobre la guerra de Canudos nos puede traer nuevas aportaciones con

respecto a la función de la literatura como una herramienta para el análisis del proceso

histórico. En este caso, habrá un vínculo con la obra Os Sertões del escritor brasileño

Euclides da Cunha, pues es visible su intención de hacer un enfoque objetivo del hecho

mencionado, a fin de crear una propuesta para la construcción de Brasil en un momento

en que la República, muy joven todavía, buscaba su autoafirmación. Este trabajo

demuestra que, en función de las perspectivas abiertas por los nuevos estudios de la

historia y consolidado por la post-modernidad, Vargas Llosa ha traído nuevas

orientaciones para entender este episodio, en vista de la multiplicidad de las

representaciones creadas por él con la intención de presentar el texto como un

repositorio de la subjetividad literaria de una época. Se pondrá de relieve el hecho de

que el novelista peruano fue uno de los máximos exponentes del así denominado

“boom” de la novela latinoamericana, cuando los escritores de este grupo hacían una

literatura cuyos postulados tendrían que combinarse con una propuesta revolucionaria

en las esferas política, económica y social. Se enfatizará la idea de que, en el caso de La

Guerra del Fin del Mundo, Vargas Llosa pretende cuestionar las llamadas verdades

inmutables y eternas, afirmando que todo es discurso y representación, lo que lleva a la

conclusión de que, como Euclides da Cunha, el escritor peruano también se presenta

una propuesta de, en este caso, reconstrucción de Brasil, que se aplicará también para

América Latina como un todo.

Palavras-llave: Mario Vargas Llosa, Euclides da Cunha, Canudos, Literatura Peruana,

Literatura Brasileña, narrativa, Literatura Latinoamericana, la post-modernidad.

12

SUMÁRIO

01. Introdução ........................................................................................................ 14

02. Capítulo 1: Euclides e o Brasil do início da República ................................... 23

02.01. Os intelectuais e a Republica ................................................................ 24

02.02. Euclides e o conflito de Canudos ......................................................... 29

03. Capítulo 2: Vargas Llosa e o romance na América Latina .............................. 37

03.01. A trajetória intelectual de Vargas Llosa ............................................... 38

03.02. Vargas Llosa e a construção da narrativa ............................................ 45

04. Capítulo 3: Vargas Llosa, leitor de Euclides .................................................. 51

04.01. Discussão do Novo Romance Histórico .............................................. 52

04.02. Os personagens em Euclides e em Vargas Llosa ................................ 65

05. Capítulo 4: Vargas Llosa, Euclides e o Brasil de hoje .................................... 76

05.01. A literatura do pós-modernismo ......................................................... 77

05.02. A materialização das propostas burguesas ......................................... 86

05.03. A proposta de Vargas Llosa e a de Euclides ...................................... 92

06. Conclusão ......................................................................................................... 98

07. Bibliografia ...................................................................................................... 107

08. Anexos ............................................................................................................ 111

13

HINO NACIONAL

Precisamos descobrir o Brasil

Escondido atrás das florestas,

com a água dos rios no meio,

o Brasil está dormindo, coitado.

Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas

muito louras, de pele macia,

alemãs gordas, russas nostálgicas para

garçonettes dos restaurantes noturnos,

E virão sírias fidelíssimas.

Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.

Compraremos professores e livros,

assimilaremos finas culturas,

abriremos dancings subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa

com fogão e aquecedor elétrico, piscina,

salão para conferências científicas.

E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.

Não é só um país sem igual.

Nossas revoluções são bem maiores

do que quaisquer outras; nossos erros também.

E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...

Os Amazonas inenarráveis... os incríveis João Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão

no pobre coração já cheio de compromissos...

se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,

por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,

ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.

O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.

Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?1

Carlos Drummond de Andrade

1 ANDRADE, C.D. Poesia completa, p. 51

14

01. INTRODUÇÃO

OS SERTÕES

Marcado pela própria natureza

O Nordeste do meu Brasil

Ó solitário sertão

De sofrimento e solidão

A terra é seca,

Mal se pode cultivar

Morrem as plantas e foge o ar

A vida é triste nesse lugar

Sertanejo é forte,

Supera miséria sem fim

Sertanejo, homem forte,

Dizia o poeta assim.

Foi no século passado,

No interior da Bahia

Um homem revoltado com a sorte

Do mundo em que vivia

Ocultou-se no sertão,

Espalhando a rebeldia

Se revoltando contra a lei

Que a sociedade oferecia

Os jagunços lutaram

Até o final

Defendendo Canudos

Naquela guerra fatal2

Edeor de Paula

No último quarto do século XIX, começou a engatinhar no Brasil um processo

de industrialização. A guerra civil americana ocorrida na década de 60 estimulou aqui a

cultura do algodão, abrindo caminho para a indústria têxtil, setor que, gradativamente,

tornar-se-ia muito importante durante boa parte do século XX. A decadência do trabalho

escravo gerou uma sobra de capital que passaria a ser aplicado nesse nascente setor

industrial. Junto a esse quadro, acrescente-se o crescimento da cafeicultura no oeste

paulista e a chegada dos imigrantes, fatores que ajudaram a provocar grandes

transformações na estrutura sócio-econômica do país, pois faria surgir uma mão de obra

2 PAULA, E. Samba enredo do GRES Em Cima da Hora/1976.

15

assalariada e, de acordo com Florestan Fernandes, o “fazendeiro do café”.3 Ainda

segundo o sociólogo, esse elemento, com o tempo, começou a se afastar do protótipo do

senhor rural tradicional, adquirindo uma mentalidade burguesa, o que seria fundamental

para fazer aumentar, posteriormente, o número de indústrias neste país.4 Esse quadro

produziu, pouco a pouco, mudanças significativas no pensamento político das classes

médias urbanas, as quais, influenciadas pelas notícias do forte progresso científico e

material ocorrido na Europa, passaram a guiar o pensamento para novas formas de

governo, supostamente mais condizentes com a Modernidade. Deste modo, muitos

setores intelectuais e também da elite agroexportadora iniciaram, progressivamente, a

retirada de seu apoio ao regime monárquico. Junte-se a isso o aumento do prestígio

conseguido pelos militares após a Guerra do Paraguai, e estes, cada vez mais, numa

maioria crescente, influenciados pelo pensamento positivista, viriam tornar-se

defensores de um governo republicano centralizado.

Na última década desse século então, depois de um período de muitas

convulsões, esses grupos conseguiram promover a tão ansiada mudança de regime. A

Monarquia decadente dava seus últimos suspiros, abrindo caminho para o início da

República, cujo nascimento fora estimulado pela já citada visão positivista presente nas

forças armadas e em grande parte dos intelectuais brasileiros da época, dentre eles, a

figura emblemática de Euclides da Cunha. Na verdade, havia sido um início muito

difícil, já que a jovem República provinha de um processo de formação muito

deficiente, carregando consigo séculos de abandono e de exploração, capazes de

continuar trazendo desdobramentos posteriores. O surgimento da figura de Antônio

Conselheiro, o crescimento de Canudos e a atitude desafiadora desse povoado rústico

em relação ao novo governo atiçaram negativamente a imaginação da burguesia

emergente do Rio de Janeiro, a então capital do Brasil. Exaltaram também os ânimos de

boa parte do país, o que significa restringir-se ao litoral, não apenas no Sul e no Sudeste,

mas, de certa forma, no Nordeste também. A presença de Euclides na região

conflagrada e a posterior publicação de sua obra Os sertões, expondo à nação a tragédia

de Canudos, mostrou ao país oficial, o Brasil do litoral, que o Brasil do sertão também

existia.

Quase 80 anos depois, encontramos Vargas Llosa, escritor peruano, no sertão da

Bahia, tentando recompor a epopéia de Euclides, reconstruindo pedra por pedra, tijolo

3 FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil, p. 103.

4 Ibid., p. 103.

16

por tijolo, madeira por madeira, taipa por taipa, o arraial de Canudos, corporificando

Antônio Conselheiro e todos os personagens envolvidos naquele episódio marcante para

a história do Brasil. A presença desse escritor, um dos maiores representantes do

chamado “boom” do romance latino-americano, trouxe uma nova contribuição para o

debate suscitado por Euclides quando da publicação de seu livro. Afinal, Vargas Llosa,

cujos romances anteriores traçavam um painel da sociedade peruana ao longo do século

XX, sempre se mostrara de acordo com a idéia da literatura participativa evidenciada

por outros escritores latino-americanos, como Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Gabriel

García Márquez, Julio Cortazar, dentre outros. Seus textos pareciam ratificar a intenção

de denunciar a miséria, a opressão e a exploração, ou seja, tudo que mostrasse o absurdo

da herança colonial ainda presente na América Latina. Pareciam ir mais além, já que, no

auge da guerra fria, enxergavam-se, em seus escritos, propostas quase sempre afinadas

com as profundas transformações sociais, econômicas e políticas necessitadas por esse

continente.5

Além dos traços políticos e sociais, outro fator marcante na literatura de Vargas

Llosa refere-se aos aspectos inovadores na construção do romance. A leitura de suas

primeiras obras, como La ciudad y los perros, La casa verde e Conversación en la

catedral põe o leitor diante de um formato gestado desde as primeiras décadas do século

XX e que atingiria aqui, na América Latina, com os autores do “boom” já expostos no

parágrafo anterior, um alto grau de elaboração. A ficção criada pelo escritor peruano

assume essa herança, fazendo sobressair a subjetividade exacerbada de personagens que

não passavam de peças da engrenagem da máquina capitalista. Destacava-se, neste caso,

a figura do inadaptado à sociedade burguesa, o “perdedor”, enfim. Técnicas modernas

de apresentação da narrativa foram utilizadas, causando estranheza a princípio para,

depois, tornarem-se práticas correntes. O fluxo de consciência, os diversos planos

narrativos, os vários pontos de vista com um grande número de narradores, o

esvaziamento do tempo cronológico, todo esse arsenal de recursos foi largamente

empregado por ele nestes romances iniciais, assumindo posturas narrativas

amadurecidas ao longo desse século. Afinal, elas provocavam o leitor, faziam-no pensar

na montagem e na construção do texto, aguçando-lhe os sentidos. E Conversación en la

catedral parece ser o ápice da utilização desses métodos. Ao escrever La guerra del fin

del mundo, entretanto, percebemos um abandono desses recursos aplicados por Vargas

5 RAMA, A. El “boom” en perspectiva. In: Más allá del boom: literatura y mercado, p.79.

17

Llosa, já que a estrutura desse romance é muito mais conservadora do que tudo que ele

havia feito até então.

Na verdade, esta transformação na escrita desse escritor serve exatamente como

metáfora para as mudanças também ocorridas em sua visão política, o que pode ser

notado claramente em La guerra del fin del mundo. Quando da publicação desse livro

nos anos 80, em plena era Reagan-Thatcher, muitos países da América Latina estavam

numa fase de transição entre ditaduras de fundo fascista e uma democratização de cunho

neo-liberalizante. Eram repúblicas em crise permanente, já que não conseguiam resolver

seus problemas seculares. Havia uma falta de perspectiva muito grande, pois não se

tinha idéia de como mudar tal estado de coisas. Se a chamada literatura do “boom”, de

certo modo, trazia como componente algumas propostas com o intuito de provocar

alterações de cunho social, La guerra del fin del mundo, de forma alguma se alinha com

tal ideário, uma vez que, neste romance, Vargas Llosa parece assumir uma postura

crítica em relação aos chamados “fanatismos de todo tipo”6, incluindo, neste caso, o que

ele pretende denunciar como “cegueira dos movimentos ditos de esquerda ou que, pelo

menos, encampavam ideais de tal tipo”7. Teria ele se rendido completamente à retórica

da “nova ordem mundial” encabeçada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher? Estaria

ele acreditando que assumir a “modernidade” trazida pelo aprofundamento do processo

de globalização seria a melhor saída para as repúblicas latino-americanas?

Uma leitura atenta do romance aprofunda essa convicção. Não se pode esquecer

que Vargas Llosa volta ao início do Brasil republicano e, retomando Euclides, coloca o

leitor diante do momento do nascimento da jovem nação. Cada personagem que vai se

concretizando se assemelha, de certo modo, não apenas a observadores distantes, mas a

cientistas ou, estreitando a metáfora, a médicos presentes no parto daquela “criança

doente”. E cada um parece ter o remédio adequado para curar-lhe os males. Deste

modo, a presença, logo no início da narrativa, de um personagem importante para o

romance, Epaminondas Gonçalves, diretor do “Jornal de Notícias”, veículo mais

importante de divulgação das idéias republicanas na cidade de Salvador, é bem

exemplar, pois ele assume uma postura política nada diferente do que viria a ser posto

em prática no Brasil ao longo do século XX, quando o chamado quarto poder passou a

exercer uma influência muito forte na condução dos caminhos políticos do país.

6 MENTON, S. La nueva novela histórica, p. 69.

7 VARGAS LLOSA, M. Peixe na água, p. 308.

18

O Barão de Canabrava, outro personagem fundamental, seria a antítese de

Epaminondas. Metaforizando o período monárquico, estaria buscando uma saída

honrosa, uma vez que poderia abandonar tranqüilamente o cenário, desde que alguns

privilégios, seus e de sua classe, fossem mantidos. O Brasil, naquele momento, surgia

com um ideário em tudo semelhante ao que seria fixado mais tarde pelo austríaco Stefan

Zweig em seu livro lançado em 194l, intitulado Brasil: nação do futuro, precisando,

então, libertar-se de uma série de práticas que ainda o atavam ao século XIX. Urgia

trazer a modernidade, urgia concretizar os ideais de uma república que havia cantado

“liberdade, abre as asas sobre nós” e que havia cunhado na bandeira nacional o lema

positivista “Ordem e Progresso”. Mas como fazer para efetivar as promessas de uma

república que realmente merecesse esse nome?

Em meio a todo esse processo, surgiu e cresceu o arraial de Canudos,

provocando um grande questionamento. Afinal, o Brasil do litoral não conseguia

entender como nem por que poderia ter surgido uma comunidade de fanáticos em pleno

sertão. A intelectualidade republicana não conseguia entender como nem por que

funcionaria uma comunidade destituída de todas as benesses da civilização moderna.

Vargas Llosa, então, tenta encontrar respostas para isso, começando por apresentar os

dois lados mais importantes da questão. E se Antônio Mendes Maciel, O Conselheiro,

era visto como um fanático por todos aqueles que julgavam ser a república o remédio

necessário para modernizar o Brasil, incluindo Euclides da Cunha, em La guerra del fin

del mundo, esse personagem é objeto de uma análise muito mais ampla, muito mais

complexa, embora a imagem do fanatismo não tenha sido descartada em nenhum

momento. Já o coronel Moreira César não é poupado nem por Euclides e muito menos

por Vargas Llosa, pois ambos atribuem o desastre de sua expedição à “cegueira

fanática” desse personagem.

E se Moreira César e O Conselheiro saíram do mundo real para personificar o

fanatismo execrado por Vargas Llosa, cumpre lembrar, também, dois outros

personagens, criados, desta vez, pelo escritor, os quais também metaforizam tal idéia. O

primeiro é Galileo Gall, o escocês, militante anarquista, com a vida inteiramente

dedicada à causa revolucionária, numa atitude em tudo muito semelhante à de um

missionário cristão. O outro fanático é um rastreador da região, Rufino, homem rude,

que leva seu desejo de vingança contra sua esposa, Jurema, e Galileo, presumíveis

amantes, de uma maneira extrema. Assumindo uma abstração da moral burguesa, ele

quer matar o escocês de qualquer jeito, não sem antes ter-lhe atingido o rosto, já que,

19

como é apontada no romance, somente a morte do sedutor não seria suficiente para

desagravar a honra manchada de um sertanejo. O fanatismo cego acabaria por destruir

os dois.

É lógico que a figura de Antônio Conselheiro é de suma importância para o

desenvolvimento de La guerra del fin del mundo. Sua capacidade de liderança e seu

carisma são expostos de maneira contundente neste romance, levando o leitor a perceber

por que motivos era capaz de aglutinar tanta gente em torno de uma causa. Suas idéias

pareciam contrapor-se à lógica e à racionalidade do pensamento positivista então

preconizado pela intelectualidade brasileira. Mas lá estava ele, destituído de tudo, numa

postura considerada exemplar por aqueles que o viam, num ascetismo considerado

comovente por aqueles que o seguiam, sendo, por isso mesmo, capaz de convencer

quem dele se aproximava. Seu estilo de vida era coerente com suas exortações, daí a

massa de seguidores que conseguira arrebanhar. Criou na comunidade de Belo Monte,

ou de Canudos, para os republicanos, um ideal de moral atrelado ao bem, à bondade, à

solidariedade e a compreensão, numa concretização da ética cristã. Acrescente-se a isso

a religiosidade mística, uma idéia constante em grande parte do povo brasileiro,

principalmente quando se pensa nos bairros pobres das grandes cidades ou nas vastas

regiões do interior. Tais valores, impulsionados pelas palavras do pregador, brotaram e

se desenvolveram com bastante força em Belo Monte, sendo o fermento que manteria a

população local unida e disposta a resistir até o fim.

Vargas Llosa acredita que esse combustível fomentou o crescimento e a

resistência de Canudos. Parece também, segundo o escritor, que, não de forma fanática

e extremada, como ocorreu nesse episódio, atitudes e pregações como as do Conselheiro

seriam capazes também de melhorar o país, já que este estaria necessitado de um banho

de ética, fundamental para estimular e produzir um espírito de bondade, de

solidariedade e de compreensão. Tais valores estariam consoantes com o Brasil da pós-

modernidade e da globalização. Afinal, percebe-se, nas três últimas décadas, o

crescimento impressionante do que se poderia chamar de fundamentalismo cristão,

presente nas igrejas pentecostais, que surgem em todos os lugares, principalmente nas

periferias. Na verdade, essa prática sectária apenas preencheu o espaço deixado pela

Igreja Católica, cujo conservadorismo predominante até os anos 60 parecia ter recuado

bastante. E se, até aquele momento, a Igreja no Brasil e na América Latina alinhava-se

com a direita política, patrocinando eventos como a “Marcha da família com Deus pela

liberdade”, pregando contra o “perigo vermelho”, o surgimento da chamada “Teologia

20

da Libertação” levou muitos setores católicos para práticas políticas mais à esquerda.

Estimulou-se então outra opção para a discussão do legado cristão, reforçando a

conscientização do povo na luta por seus direitos e no incentivo deste a uma vida

comunitária.

O catolicismo dominante, entretanto, começou a perder espaço para diversas

seitas protestantes, cuja pregação de uma ética individual parecia muito mais alinhada

às práticas políticas que sobressaíram a partir do predomínio do neoliberalismo. É

preciso relembrar que tais seitas têm, quase sempre, origem nos Estados Unidos, e que,

nesse país surgiu também, posteriormente, numa reação católica, uma variante desse

pentecostalismo, que tanto sucesso faz hoje em muitos pontos da América Latina. Trata-

se do movimento carismático católico, de fundo completamente conservador, pois

valoriza o individualismo burguês, opondo-se de forma integral ao comunitarismo

preconizado pela já citada “Teologia da Libertação”, cujos mentores e praticantes foram

acusados de envolvimento político constante e de tentarem fazer uma ligação entre

Cristianismo e Marxismo. É lógico que o crescimento descontrolado das grandes

cidades, inchadas a partir da migração em massa, proporcionou a perda de referencial de

muitos de seus habitantes, os quais, desamparados pelo movimento acelerado e

constante da grande máquina do sistema capitalista, passaram a enxergar nessas práticas

religiosas uma provável saída para seus dilemas, não apenas existenciais, mas

financeiros também.

A esquerda tradicional começou a desconfiar dele, pois passou a enxergar em

seus escritos a presença do espírito burguês, já que Vargas Llosa parecia abandonar a

proposta de uma mudança de cunho político e social tão presente em seus livros iniciais,

mostrando uma rendição total à ideologia neoliberal resultante da chamada nova ordem

mundial. Ele parecia acreditar, também, que só a aceitação desses valores éticos já

mencionados seria a única forma possível para produzir uma grande transformação na

sociedade brasileira e, conseqüentemente, latino-americana. La guerra del fin del

mundo explicita tal idéia, ratificando-a como a verdadeira força de Canudos. Por que

não serviria para o Brasil também? Ou será que não deveríamos aprofundar a discussão

e pensar numa outra proposta?

Deste modo, pretendemos, no capítulo inicial, desenvolver nosso estudo a partir

da análise do relacionamento entre Euclides da Cunha e a intelectualidade brasileira no

início da República. Procuraremos mostrar que aquele foi um momento bastante

conturbado no qual se destacava o aspecto emocional, principalmente se considerarmos

21

a postura daqueles que Nicolau Sevcenko chamou de os “mosqueteiros intelectuais”.8

De acordo com o crítico, esses homens de letras buscavam uma participação efetiva nos

rumos do país, o qual, segundo eles, tinha, naquele momento, uma oportunidade única

de ascender ao progresso tão desejado por todos, além de se firmar de um modo mais

contundente no cenário mundial. Euclides da Cunha estava nesse grupo e pretendeu,

ainda segundo Sevcenko, desenvolver “o exercício intelectual como atitude política”, já

que acreditava fazer parte de um grupo de “Escritores-cidadãos”9.

No capítulo seguinte, observaremos a leitura de Os sertões feita por Vargas

Llosa. Para que tal ocorresse, analisaremos a trajetória intelectual desse escritor,

mostrando sua intensa participação, desde a juventude, nos destinos políticos e sociais

do Peru. Focalizaremos a importância da leitura de Sartre como base de seu

entendimento no compromisso com a sociedade e os acontecimentos vivenciados por

ele. Ressaltaremos a subseqüente releitura de Camus como de suma importância para as

mudanças que ocorreriam em seu pensamento posterior. Destacaremos, também, o quão

fundamental foi para seu desenvolvimento, no que se refere ao aspecto literário, o

conhecimento da literatura francesa, com destaque para Flaubert, além da descoberta de

diversos escritores norte-americanos, William Faulkner à frente, todos de singular

importância para a construção do romance moderno. Por outro lado, acompanharemos

sua inserção nos grupos de esquerda, muito presentes no meio universitário ao longo da

ditadura de Odría no Peru, seu desencanto com tais movimentos, até sua mudança de

pensamento ocorrida a partir de meados dos anos 70, culminando com sua candidatura à

presidência no final da década de 80, como líder e grande representante das idéias

neoliberais que, naquele momento, pareciam dominar, não apenas o Peru, mas toda a

América Latina.

Na seqüência, procuraremos mostrar como Vargas Llosa leu Euclides da Cunha,

levando o estudo para o âmbito da discussão a respeito do “Novo Romance Histórico”.

Frisaremos o fato de que o escritor peruano, como outros autores latino-americanos,

todos frutos do “boom”, punham sua literatura como instrumento de análise dos

aspectos sociais, históricos, culturais econômicos e políticos da América Latina como

um todo. Cada um, evidentemente, voltava-se para seu país, seu povo, sua região, sua

cultura, enfim. Mas havia uma ponte estabelecendo uma completa ligação entre eles.

Vargas Llosa, inclusive, foi além, buscando em outros países, como o Brasil, por

8SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 78.

9 Ibid., p. 106.

22

exemplo, que é o caso de La guerra del fin del mundo, embasamento para sua proposta

de mudança político-social nesta parte do continente. Estabeleceremos, então,

comparação entre o tratamento dado ao tema e aos personagens em Euclides da Cunha e

em Vargas Llosa, acentuando a diferença de objetivo entre os dois, pois se o primeiro

achava que se estava atendo aos fatos históricos, o segundo assumiu claramente a

proposta de estar criando um texto ficcional.

Finalmente, estudaremos a importância deste romance para o Brasil de hoje,

procurando tecer um ponto de contato entre sua estrutura, sua temática e a literatura que

surgiu como resultado das mudanças ocorridas no mundo ao longo dos anos 60 e 70.

Deste modo, mostraremos que Vargas Llosa conseguiu concretizar nele todo arcabouço

adquirido em sua formação intelectual no que se refere aos aspectos sociais políticos e

literários. Será, então, estabelecida uma comparação entre as propostas preconizadas por

Euclides para o Brasil no início da República e o que o escritor peruano tinha em mente

para a América Latina a partir do último quarto do século passado. O mergulho dado

por Vargas Llosa na história não seria em vão, pois, segundo acreditava, os

acontecimentos de Canudos estariam dando a ele o combustível necessário para que

pudesse pregar a materialização das propostas burguesas, que lhe eram tão caras

naquele instante.

23

02. CAPÍTULO 1

EUCLIDES E O BRASIL DO

INÍCIO DA REPÚBLICA

AS CATAS

(fragmento)

Que outros adorem vastas capitais

Aonde, deslumbrantes,

Da Indústria e da Ciência as triunfais

Vozes, se erguem em mágico concerto;

Eu, não; eu prefiro antes

As Catas desoladas do deserto,

– Cheias de sombra, de silêncio e paz...

[...]

Não invejo, porém, os que se vão

Buscando, mar em fora,

De outras terras a esplêndida visão...

Fazem-me mal as multidões ruidosas

E eu procuro, nesta hora,

Cidades que se ocultam majestosas

Na tristeza solene do sertão.10

Euclides da Cunha

10

CUNHA, E. Ondas, p. 76.

24

02.01. OS INTELECTUAIS E A REPÚBLICA

D. QUIXOTE

Assim à aldeia torna o da triste figura

Ao tardo caminhar do Rocinante lento;

No arcabouço dobrado um grande desalento,

No entristecido olhar uns laivos de loucura.

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,

Do ideal e da fé, tudo isto num momento,

A rolar, a rolar, num desmoronamento,

Entre risos boçais do bacharel e do cura.

Mas certo, ó D.Quixote, ainda foi clemente,

Contigo a sorte ao pôr no teu cérebro oco,

O brilho da ilusão do espírito doente;

Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco

Perdendo qual perdeste um ideal ardente

E ardentes ilusões e não se ficar louco.11

Euclides da Cunha

O início da República trouxe muitas esperanças à incipiente burguesia brasileira,

levando essa parcela da população, guiada pela visão positivista dominante na época, a

preconizar um ideal de progresso, capaz de, por si só, produzir as mudanças necessárias

para modernizar o país. É possível afirmar seguramente que, neste caso, a elite

intelectual, pelo menos uma boa parte dela, havia participado da criação do novo regime

e assumia o projeto de construção de uma nova nação. Esses intelectuais, oriundos da

luta pelas causas abolicionista e republicana e de formação liberal, absorveram o

desenvolvimento da vanguarda científica na área do conhecimento responsável pelo

desenvolvimento material do continente europeu. O darwinismo, a revolução sanitária

produzida pela microbiologia e as pesquisas no campo da física e da química aplicada

haviam sido os germes da segunda revolução industrial, provocando um crescimento

material jamais visto até então no velho continente. Eles passaram a se julgar

responsáveis pelo encaminhamento na construção da república, acreditando que o

modelo europeizante seria responsável pela elevação cultural e material da população.

Havia, no entanto, outro aspecto a ser considerado: o surgimento dos estados

modernos havia provocado um forte nacionalismo, capaz de produzir, a curto prazo,

uma crescente disputa hegemônica. O desenvolvimento das Ciências Humanas,

11

CUNHA, E. Ondas, p. 72.

25

financiadas pelos Estados com o intuito de legitimar raça, história, língua, religião,

tradições, dentre outros estudos, seria mais um combustível a ser acrescentado a essa

visão nacionalista estimulada pela mentalidade burguesa, gerando a inclusão de teses

racistas capazes de justificar, não apenas a supremacia do “mundo civilizado” sobre os

“bárbaros”, mas também de uma nação sobre as demais.12

O resultado de todo esse

processo deixou presente na memória da humanidade a tragédia provocada pelo grande

paradoxo montado ao longo do século XIX: as conquistas científicas e materiais em

contraposição às injustiças, às desigualdades e aos sofrimentos produzidos pela busca

dessas conquistas. O ápice seria a mortandade provocada pelas duas grandes guerras

que ocorreriam no século vindouro.

Não era de se esperar, igualmente, que essa sociedade tivesse tolerância com as

formas de cultura e religiosidade populares. Afinal, a luta contra a “caturrice”, a

“doença”, o “atraso” e a “preguiça” era também uma luta contra as trevas e a

“ignorância”; tratava-se da definitiva implantação do progresso e da civilização.13

Evidentemente que o foco desses intelectuais, bastante influenciados pelas idéias

provenientes da Europa, provocou uma série de atitudes capazes de manter imobilizadas

as estruturas sociais herdadas do regime monárquico. Destaque-se, neste caso, o

menosprezo à cultura popular e a intolerância diante de qualquer manifestação de

religiosidade fora dos padrões aceitáveis pelo Estado.14

Cite-se como exemplo a

perseguição aos praticantes das religiões de origem africana, aos capoeiristas e aos

tocadores de violão. O carnaval era aceito, desde que seguisse o estilo da Belle Époque.

Havia, evidentemente, uma panela de pressão sempre pronta a explodir, com maior ou

menor intensidade, a qualquer momento, dependendo da situação, uma vez que as

classes populares, acrescidas agora dos ex-escravos, ansiavam por ascensão econômica

e participação democrática, o que lhes era tolhido.15

Nesse quadro de miséria social, a

polícia reprimia de forma violenta e indiscriminada qualquer tentativa esboçada pela

massa da população pobre de tentar fazer-se ouvir. Essa repressão se tornava ainda

mais aguda quando, instigada pela imprensa, era direcionada para bêbados, supostos

vadios e loucos presumíveis.16

12

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, p. 74. 13

SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 33. 14

Ibid., p. 32. 15

Ibid., p. 53-54. 16

Ibid., p. 59.

26

A consciência da presença de ter um Estado sem possuir necessariamente uma

Nação evidenciava-se cada vez mais. Isso causava uma preocupação muito forte nessas

elites intelectuais, as quais, conscientes do poder das potências européias e de suas

respectivas ações imperialistas na África e na Ásia, temiam uma invasão estrangeira ou,

pelo menos, a perda da autonomia de uma parte do nosso território17

. Era necessário,

então, segundo o pensamento dominante nessa elite intelectual, um alinhamento com o

mundo do progresso, o que implicava assumir posturas excludentes em relação à grande

massa da população, formada em sua maioria por negros, morenos e mulatos. Deste

modo, era fundamental uma europeização de nossa cultura e de nosso comportamento,

com a conseqüente negação de tudo aquilo que remetesse a uma origem popular.

As reformas de Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro no início do século

XX, eram nada mais nada menos do que uma das concretizações mais importantes desse

ideário. A destruição dos cortiços e a expulsão dos pobres e deserdados para os

subúrbios faziam parte da assepsia utilizada pelas reformas promovidas por uma

burguesia, que buscava a todo custo dar um toque cosmopolita ao Distrito Federal.

Afinal, como poderia ser capital da jovem República uma cidade que, em muitos

aspectos, assemelhava-se a um aglomerado qualquer presente em diversos pontos do

continente africano ou asiático? A burguesia sentia-se envergonhada com a imagem

constante daquela ralé grosseira e mal-educada. Um “choque de ordem” era necessário

para impor normas ao coração do Brasil, afastando ou eliminando o “entulho humano”,

que insistia em se fazer presente na vida diária. Tudo isso sob os aplausos de boa parte

da nata intelectual, dentre os quais Olavo Bilac, o príncipe dos poetas, que se reunia na

Confeitaria Colombo para extravasar a veia parnasiana diante dos holofotes da

sociedade burguesa18

.

Havia, entretanto, alguns intelectuais que não se deixavam levar pelo

artificialismo dominante naquele ambiente. Dentre eles, estava Euclides da Cunha. Sua

formação militar e seu autodidatismo moldaram-lhe o arcabouço cultural e embasaram-

lhe o comportamento. O enciclopedismo difundido pelo Positivismo de Benjamim

Constant, seu professor na Escola Militar, havia imprimido marcas profundas naquele

jovem, cujos atos marcados por um desprendimento, muitas vezes considerado

exagerado e até ingênuo, ao contrário da grande maioria, já o levara, ainda de forma

prematura, no auge de seu ardor republicano, ao confronto direto com o regime

17

Ibid., p. 140. 18

DIMAS, Antônio. Três exemplos em espiral. In Discurso, ciência e controvérsia em E. Cunha, p. 84.

27

monárquico. A posterior queda da Monarquia o reconduziria ao exército, mas seu

espírito inquieto jamais o deixaria tornar-se um burocrata, preso a regras e disciplinas

não consoantes com seu caráter. Ele também estava consciente do perigo representado

por nosso imenso vazio territorial diante da gula imperial das potências do velho

continente. Deste modo, ele acreditava que era de extrema importância conhecer o país

e acelerar a colonização do interior. Para isto seria necessária a construção imediata de

uma rede interna de comunicação viária, com o intuito de facilitar o deslocamento da

população e das riquezas provenientes dessas regiões, proposta que se coadunava com a

do Marechal Cândido Mariano Rondon, o qual, após ter sido nomeado chefe do Distrito

Telegráfico de Mato Grosso, havia começado um trabalho de construção de linhas

telegráficas com a finalidade de estabelecer algum tipo de comunicação entre o litoral e

o grande e inexplorado território que se estendia ao longo do oeste e do norte do Brasil.

A República deveria, de maneira urgente, concentrar seus esforços na integração do

país.

Inicialmente, Euclides compactuava com a postura daquele grupo intelectual

dominante, principalmente no que se referia ao apoio incondicional ao nascente regime

republicano. Deslumbrado com o desenvolvido espetacular da Ciência e maravilhado

com o que ele chamava de “esplendor da revolução vitoriosa”19

, ele acreditava piamente

que a força do progresso científico e material desbravaria os caminhos da jovem

república, conduzindo-a para o mesmo nível das nações européias.20

Desde modo, o

escritor aceitava propostas de fundo racista, as quais viam aspectos extremamente

positivos na chegada dos imigrantes, pois eles seriam fundamentais nessa caminhada

para um futuro de transformações, cujo fim seria conseguir atingir o mesmo patamar

dos países europeus.

Seus artigos contra o tratamento desumano dado aos prisioneiros na revolta da

armada provocaram seu afastamento progressivo do exército, distanciando-o aos poucos

do governo de Floriano e de todos aqueles que apoiavam o regime ditatorial conduzido

pelos militares. O desencanto do escritor com aquele governo havia começado a

engatinhar. Suas inquietações afloravam a olhos vistos, levando-o a um trabalho de

campo poucas vezes concretizado por outros intelectuais. Começara a se apartar daquele

ambiente, cuja mediocridade deixava-o desesperado. Segundo Sevcenko “o destino que

se pode legar a um mosqueteiro é não incumbi-lo de nenhuma missão. Sua vida toda

19

SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 123. 20

Ibid., p. 123.

28

perde sentido; sua condição existencial se dilui.” 21

Como podia a jovem república estar

valorizando espertalhões de todo tipo, deixando no limbo algumas das melhores cabeças

pensantes do país? Euclides da Cunha acreditava firmemente no modelo platônico, o

qual preconizara um governo dos sábios.22

Para ele, investir na educação e em tudo

aquilo que pudesse trazer para a sociedade as conquistas da civilização deveria ser o

norte do governo republicano. Mas nada disso ocorria, e as contradições provocadas

pelo jogo de interesses continuavam, numa constância e firmeza, para ele, exasperantes.

“A ver navios! Nem outra coisa faço nesta adorável República, loureira de espírito curto

que me deixa sistematicamente de lado..”23

Começou a percorrer o Brasil, num misto de

engenheiro e jornalista, e, por isso mesmo, vendo, desbravando, trabalhando, criando,

mas, principalmente, escrevendo, pois o poder da palavra escrita havia-se tornado um

dos recursos mais importantes naqueles tempos em que o progresso se fazia presente.

O engajamento de Euclides o levaria a montar Rocinante, passos lentos e tardos,

como o que havia conduzido o cavaleiro da triste figura. Afinal, só assim se poderia

trilhar aquele Brasil gigantesco, mas com uma estrutura social e econômica perversa e

excludente, sem falar nos sistemas viário e de comunicação, nenhum deles condizente

com as necessidades que o país tinha para entrar na chamada modernidade. E como ele

não apreciava “as multidões ruidosas”, começou a procurar, naquela hora, os locais, “as

cidades, que se ocultavam majestosas, na tristeza solene do sertão”.24

Deste modo, ele

assumiu o projeto de conhecer o país, desprezando a idealização européia tão valorizada

pela maior parte dos intelectuais brasileiros naquele momento crucial de nossa história.

Suas convicções, inúmeras vezes, caíram por terra, conflitando com seus valores e

prejudicando, quase sempre, sua vida pessoal. Ele, no entanto, manteve seu projeto,

brandindo uma lança precária e protegendo-se com um escudo assustadoramente frágil,

mas investindo contra um inimigo que se mantinha inabalável. Urgia não perder as

ilusões. Urgia combater. Importava mesmo, segundo Euclides, concretizar mudanças

que pudessem conduzir o país aos trilhos do progresso, fazê-lo chegar à chamada

modernidade.

21

Ibid., p. 93. 22

PLATÃO, A república. Livro VII 23

CUNHA, E. Cartas a Oliveira Lima. Apud SEVCENKO, N. p. 92. 24

CUNHA, E. Ondas, p. 77.

29

02.02. EUCLIDES E O CONFLITO DE CANUDOS

PÁGINA VAZIA

Quem volta da região assustadora

De onde eu venho, revendo inda na mente

Muitas cenas do drama comovente

Da Guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora

Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,

Que possa figurar dignamente

Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.

E quando, com fidalga gentileza,

Cedeste-me esta página, a nobreza

Da vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde nesta folha lesse

Perguntaria: “Que autor é esse

De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?25

Euclides da Cunha

O conflito de Canudos, entretanto, provocou o temor do ressurgimento da

Monarquia, e a idéia de um retrocesso iminente começou a povoar o imaginário social.

Deste modo, era imprescindível combater as forças do “atraso” e do “obscurantismo”.

Depois do fracasso da primeira força militar, uma segunda, bem maior, foi enviada para

esmagar os “revoltosos”. A derrota fragorosa dessa expedição acendeu a luz vermelha

nas hostes governistas. O Exército, instigado pela imprensa, enviou, do Rio de Janeiro,

aquela que seria a terceira expedição. Comandada pelo Coronel Moreira César, militar

acostumado a sufocar revoltas, tornara-se famoso pela brutalidade contra os adversários,

pois, quando governara Santa Catarina, havia debelado a ferro e fogo a Revolução

Federalista de 1894. Moreira César era o grande ídolo dos chamados jacobinos, grupo

formado principalmente por jovens, dentre os quais muitos militares. Esse movimento

atingiu seu apogeu em meados do governo de Floriano Peixoto, tendo como grande

momento impulsionador a “Revolta da Armada” ocorrida em 1893, perdurando até

1897. Pode-se afirmar que a inspiração maior do “espírito jacobino” era o

“florianismo”, pois sua saída da presidência em 1894, substituído por Prudente de

Morais, um civil, havia legado uma série de inquietações no Exército, com muitos

25

CUNHA, E. Ondas, p. 84.

30

pregando um governo “forte”, como o que havia sido liderado pelo “saudoso” Marechal

de Ferro.

A derrota e a humilhação sofrida pela tropa comandada por esse oficial, possível

sucessor de Floriano para os jacobinos, causaram uma surpresa muito grande em todo o

território brasileiro. A comoção nacional foi bastante intensa e, instigada pela imprensa

republicana, ocasionou vários motins e revoltas no Rio de Janeiro e na cidade de São

Paulo. Euclides também sentiu o revés e, como os outros jornalistas, escreveu

furiosamente contra aqueles “bárbaros”, chegando a comparar o processo de construção

do regime republicano com os desdobramentos ocorridos na França após a revolução.

Canudos seria a nossa Vendéia, e era necessário eliminá-la. A quarta expedição seria

deslocada numa mobilização jamais vista em todo o país. Depois de uma luta árdua e

sangrenta, o exército conseguiu, finalmente, invadir e destruir a “urbs monstruosa”, a

“civitas sinistra do erro”,26

denominações dadas por Euclides a Belo Monte, a

comunidade fundada por Antônio Conselheiro. Era uma opinião compartilhada pelas

elites dominantes, como bem expressa uma carta do Coronel José Américo Camelo S.

Velho, um dos maiores latifundiários do Nordeste, ao Barão de Jeremoabo, regozijando-

se a respeito do massacre perpetrado pelo exército.

O tal monstro Vilanova fugiu encontrado na Formosa. Tranquilino monstro

malvado pegado sangrado e queimado. Houve para mais de duzentos degolados de dois

para três dias seguindo assim, e assim tem seguido. Muitas mulheres e crianças em

Monte Santo, seguindo para Bahia para dar maior dispêndio ao Estado!! Que devia era

tudo ser degolado, mas assim não quer o tal marechal, que diz retirar todas as forças

deixando o sertão contaminado com mais de 2 a 3 mil jagunços; [...] Considero que

agora vamos em perigo porque eles se reunirão em grupos para roubar. Já escrevi duas

vezes ao tal ministro em vista do Oscar mandar-me dizer que oficiava ao tal marechal

para ele dar-me força para desalojar a jagunçada de Massacará até Buracos.27

Euclides, no entanto, ao acompanhar o exército como repórter do jornal O

Estado de São Paulo, começou a perder os conceitos elitistas, discriminatórios e racistas

previamente adquiridos, pois, ao constatar de perto a vida dos sertanejos e ver seus

problemas, conseguiu entender suas angústias e carências. Ele percebeu que Canudos

apenas aglutinava os anseios de um povo não disposto a se submeter a uma república,

cuja miopia a tornava incapaz de perceber o total abandono vivido pelos habitantes

daquela imensa região. A explosão era inevitável; e ocorreu. As feridas se abriram,

provocando o conflito entre o Brasil do litoral e o Brasil do sertão. Naquele momento,

26

CUNHA, E. Os sertões, p. 291 27

VELHO, J.A.C. in. Canudos, carta para o barão, p. 221.

31

aquele Brasil das cidades, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador à frente, buscaria,

usando todos os meios a seu dispor, subjugar o Brasil do interior.

Na verdade, os moradores daquela região haviam sido excluídos do Brasil de

esperanças, haviam sido descartados da expectativa alimentada por parte da elite

intelectual e oferecido à classe média emergente dos já citados centros urbanos. Houve

um encontro entre duas culturas muito diferentes entre si. Mas esse encontro, em vez de

provocar união, causou um afastamento brutal e traumático. O sertanejo não quis abrir

mão de seus valores e reagiu à aproximação daquela cultura alheia a seu “modus

vivendi”, a qual procurava se apossar dele sorrateiramente. A presença de Antônio

Conselheiro e sua pregação viriam a calhar naquela região “estranha”, pois o chamado

progresso, tão entusiasticamente apresentado no Rio de Janeiro e em algumas capitais,

estava apartado do homem do sertão. Afinal, o novo regime em nada havia alterado a

estrutura fundiária do país, deixando aflorar o paradoxo de uma república liberal e

discricionária, já que a oligarquia, como ocorrera no regime anterior, continuava a ditar

as regras políticas, sociais e econômicas.

Quando da publicação de Os sertões, era pública e notória a proposta de

Euclides da Cunha de traçar um “painel real” daqueles acontecimentos que estavam

mexendo com o Brasil naquele momento. Sua presença como jornalista no lugar onde

as ações se desenrolavam já dá o tom da pretensão desse escritor: ser legítimo

representante da imprensa numa nova sociedade que surgia naquele Brasil de então e,

como tal, ser fiel aos fatos. A linguagem jornalística representava na época o ápice da

modernidade, numa sociedade que começava a se urbanizar aceleradamente, impondo

um padrão cosmopolita à população. Sua formação positivista conduzia-o para uma

trilha, a qual, para ele, conteria todos os elementos de uma mudança que tanto havia

preconizado. Neste caso, a jovem República deveria impor suas diretrizes, eliminando

tudo aquilo que simbolizasse o “atraso” e o “obscurantismo”.

Evidentemente, considerando a ótica atual, a linguagem euclidiana está

carregada de preconceitos, imperceptíveis, entretanto, no início do século XX. Naquele

momento, era mais importante a valorização de uma idéia cujo lema exaltava a “ordem

e o progresso”. E Euclides acreditava fielmente nisso. Por outro lado, sua ida para

Salvador e sua estada por um mês nessa cidade começaram a produzir no escritor uma

transformação muito grande em relação à realidade presenciada por ele, principalmente

quando passou a ter contato com os feridos que voltavam da frente de batalha. Era a

imagem da derrota e do desencanto. A visão de vários escritos feitos por soldados na

32

região de Contendas, todos criticando ou menosprezando aquela campanha, causaria

nele, também, um impacto muito forte. O escritor chegaria a afirmar que aqueles

“graffitti” eram “palimpsestos ultrajantes” feitos por “mercenários inconscientes,

autores de um crime que em Canudos se cometem”28

. Seu deslocamento para

Queimadas, sua visão dos aspectos geográficos locais e a imagem projetada pelos

habitantes daquelas paragens aprofundaram esse choque, o qual se tornaria muito mais

agudo a partir do momento em que conseguiu visualizar Canudos e presenciar a terrível

carnificina que se desenrolava em seu entorno.

Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e

crianças. Fazia mister, porém, que se não revelassem perigosos.

[...]

A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente.

Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era

a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava, ainda, a poeira de Moreira César,

queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se

degolar. A repressão tinha dois pólos – o incêndio e a faca.

[...]

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.

A História não iria até ali.

[...]

A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu,

inteiriça. Desforrava-se afinal.

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem

altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de

protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos...29

A História, no entanto, estava lá, fixando os acontecimentos naquela “página

sem brilhos”. Embora não o percebesse, Euclides estava levando ao resto do país uma

imagem que ficaria para a posteridade. O massacre estava sendo denunciado, e sua

motivação, questionada. De certo modo, ele estava mostrando que, na construção de

uma nação existe a idéia da identidade nacional, através, não apenas da língua, mas

também de toda uma assimilação cultural. Tal pode ser percebido na terceira parte da

obra, chamada por Euclides de “A Luta”, quando este narra o embate encarniçado entre

o exército e os jagunços de Antônio Conselheiro. A chegada dos soldados à região do

conflito havia provocado neles um misto de torpor e apreensão, e a derrota das

expedições anteriores em muito contribuía para esse quadro. Afinal, eles pareciam estar

invadindo um país estrangeiro, longínquo, uma região desconhecido para eles. Eram

viajantes estrangeiros na caatinga – terra estranha – lugar onde o inferno era absoluto,

28

CUNHA, Os sertões, pp. 685-686. 29

Ibid., pp. 732-736.

33

pois não havia alternativa. Eles eram apenas o braço executor do Estado, legítimos

representantes da República, a qual não reconhecia os habitantes de Belo Monte, e seus

moradores, sentindo-se completamente desterritorializados, também não a reconheciam.

Esta, em sua cegueira congênita, havia entendido que aquele povo fazia parte de uma

outra nação.

Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra.

O vaqueiro encouraçado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca

o campião junto aos trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral,

que não o conhecem.

Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta

Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do

interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba

deploravelmente a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos.

Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e

pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa.

Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica;

criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria. 30

Na primeira parte de Os sertões, Euclides, demonstrando um profundo

conhecimento geológico, destacou a influência do meio no comportamento das pessoas

daquela região, conforme citação no capítulo IV, “As secas. Hipóteses sobre a sua

gênese, As caatingas”31

. Na segunda, através de um estudo antropológico, ressaltou a

questão do mestiço, do caboclo, como fundamental para a construção do modo de ser do

jagunço. Era uma visão bastante carregada dos preconceitos dominantes naquele final

do século XIX. Afinal, a mestiçagem seria responsável também pela religiosidade

mística e indefinida do caboclo.

Não seria difícil caracterizá-la como uma mestiçagem de crenças. Estão ali,

francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio

aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização. Este

último é um caso notável de atavismo, na História.32

Mas ele teve a felicidade de perceber a integração daquele homem a um meio

inteiramente adverso. A descrição do sertanejo agigantou a presença desse elemento aos

olhos da sociedade brasileira de então, pondo por terra aquela visão preconceituosa a

qual atribuía os males do país ao predomínio de uma sub-raça, oriunda de uma

mestiçagem descontrolada. Afinal, Euclides, a partir de suas observações, estava

afirmando, peremptoriamente, que aquele homem era, “acima de tudo, um forte”, pois

“não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.” E acrescenta

30

Ibid., p. 677. 31

Ibid., p. 109. 32

Ibid., p. 238.

34

que esse homem “é desgracioso, desengonçado, torto”, resultando num “Hércules-

Quasímodo”, neologismo que, por si só, reforça a antítese de um ser que concentrava

em si “a fealdade típica dos fracos”. Mas “colado ao dorso do cavalo”, o sertanejo

conseguiria realizar, segundo o escritor, “a criação bizarra de um centauro bronco”

capaz de surgir rapidamente, concretizando a imagem de um homem cuja “compleição

robusta ostentava-se, naquele momento, em toda a plenitude33

.

Uma leitura atenciosa do livro nos leva a perceber a visão euclidiana a respeito

do poder da palavra escrita como motor de progresso e transformação. Ele acreditava

que a história deveria servir como consciência crítica do presente, mas a sua análise

poderia ser usada também para transformar o futuro de um povo ou de uma região,

como era o caso de Canudos. E melhor ainda, de todo o imenso Sertão. Deste modo,

somente a chegada do conhecimento e das conquistas da civilização moderna a esses

lugares poderia libertar o sertanejo de sua ignorância e de seu atraso. Questionou,

também, algo diferente naquele momento, o uso desmedido e arbitrário da força militar

para destruir um povoado nos confins do sertão. Sua obra provocou discussões acirradas

na época, visto a pretensão da crítica em querer enquadrar todo trabalho escrito dentro

de um parâmetro. Reportagem, ensaio sociológico, o que seria afinal aquele livro tão

peculiar adentrando nossas Letras tão vertiginosamente?

Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um

objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos

sertões. Havia um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos

à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o

nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.

[...]

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao

esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu

no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.

Eram apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam

raivosamente cinco mil soldados.34

Euclides, um intelectual bastante atuante, preconizava a construção da Nação,

consoante com o modelo republicano, daí ter procurado enfatizar sempre a importância

de um projeto educacional para poder impulsionar o País e, conseqüentemente,

modificar suas estruturas por completo. No caso de Canudos, o escritor diria

posteriormente, numa reflexão amarga, porém consciente, que “a República não deveria

33

Ibid., p. 207. 34

Ibid., pp. 682-778.

35

ter enviado soldados, e sim mestres-escolas”35

. Ele acreditava mesmo que tudo se

resolveria com a inserção do Brasil nos moldes europeus, embasados, evidentemente,

nos padrões cientificistas, recheados com a então dominante ideologia positivista. Sua

percepção da realidade de Canudos havia-lhe produzido uma profunda desilusão com o

regime ao qual havia dedicado sua vida desde os arroubos da juventude. “Não era essa a

República dos nossos sonhos”36

, confessaria mais tarde.

A partir da realidade presenciada, entendeu que havia uma grande distorção, pois

aquele Brasil tão defendido por ele desconhecia o que se poderia chamar de “um outro

Brasil”. Urgia então denunciar a invasão de Canudos como um crime e mostrar que tudo

aquilo havia sido uma carnificina inútil, uma vez que a única modernidade apresentada

pela república naquele fim de mundo se materializava apenas nos modernos fuzis e na

famosa “matadeira”. Por que, em vez disso, a República não havia levado àquelas

pessoas a educação acompanhada das benesses científicas tão em voga naquele

momento? Esta é a modernidade de Euclides: mostrar claramente que o Brasil oficial

precisava descobrir o Brasil do abandono, que o Brasil da jovem República precisava

transformar, de maneira urgente, o Brasil do atraso e da miséria.

Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, dominado o antro negro, cavado no

centro do adusto sertão, onde o Profeta das longas barbas sujas concentrava a sua força

diabólica, feita de fé e de patifaria, alimentada pela superstição e pela rapinagem!

Cinco horas da madrugada, hoje. Num sobressalto, acordo, ouvindo um

clamor de clarins e um rufo acelerado de caixas de guerra. Corro à janela, que defronta

o palácio do governo.

Uma escura massa de gente, na escuridão da ante-manhã, está agrupada na rua.

Calam-se os clarins e as caixas de guerra. Há um curto silêncio. E, logo, dos

instrumentos de hipercinesia, rompe, alto e vibrante, o hino nacional. É uma banda

militar, que toca à alvorada, em frente do palácio, para celebrar ainda uma vez a grande

nova, transmitida ontem à nossa ansiedade pelo telégrafo.

Todos os galos da vizinhança acordam, ajuntando o estridor de seu canto ao

estridor das trompas da banda. Longe, um pedaço do céu, tocado de rosa e pérola,

anuncia o dia.

Como é bom despertar assim, em pleno júbilo, já com o coração livre daqueles

sustos dos dias passados, – quando a gente abrindo os jornais, sentia o coração pressago,

cheio de medo, temendo o horror de novas catástrofes, de novos morticínios, de novas

derrotas!

Enfim, assaltada e vencida a furna lôbrega, onde a ignorância, ao mando da

ambição, se alapardava perversa! Enfim, desmantelada a cidadela-igreja, onde o Bom

Jesus facínora, como um cura Santa Cruz de nova espécie, oficiava, tendo sobre o

espesso burel a coronha da pistola assassina!... 37

35

ABREU, Regina. O enigma da permanência. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, nº47, p.

23. 36

Ibid., p. 23. 37

BILAC, O. Vossa insolência, pp. 412-413.

36

A crônica de Olavo Bilac exaltando a vitória do governo expressa o pensamento

dos intelectuais da época, que viam Canudos com horror. Segundo Walnice Nogueira

Galvão, as matérias jornalísticas que trataram do conflito podem ser classificadas em:

representação galhofeira, representação sensacionalista, representação ponderada, mas

todas contra Canudos38

. Euclides também chegou a fazer parte desse grupo. Sua

pretensão era ser fiel aos fatos; agir como o historiador; mostrar a verdade. Foi muito

mais além, pois de suas páginas emergiu um painel de nossa terra e de nossa gente,

construindo uma epopéia até então ausente em nossas Letras. Só que ele queria ver uma

coisa, mas conseguiu enxergar outra. E dessa realidade vista, criada e projetada por esse

grande escritor, Vargas Llosa criará sua realidade, transformando-a e transfigurando-a.

Mantendo-a, porém, pois é possível reconhecer muito de Os sertões em La guerra del

fin del mundo.

38

GALVÃO, W. N. No calor da hora: a Guerra de Canudos nos jornais da 4ª expedição.

37

03. CAPÍTULO 2

VARGAS LLOSA E O ROMANCE

NA AMERICA LATINA

A pesar de su orientación decididamente marxista, Vargas Llosa no es

un militante político. “Después de la injusticia”, dice, “lo que más detesto es el

dogmatismo”. Además, agrega, en el Perú, donde seis millones de personas – el

50% de la población – no votan, la “política” es una caricatura. Sin embargo, lo

angustiaba la posibilidad de tener que someterse a los intereses minoritarios de

una prensa o una radio que podría servir sin mala conciencia. Lo que importaba

era poder escribir, y para ese propósito le convenía perfectamente París, aunque

como a todos los exiliados, lo obsesionaba el problema del lenguaje. Lo

perseguía a diario, dice, el temor de perder el contacto con el español. Pero en su

caso el peligro no llegó a ser nunca inminente. Leía y trabajaba en español, y en

cierta forma, dice, el exilio, la sensación de ser un extranjero en una sociedad

lingüísticamente hermética, hasta intensificaba, “apasionaba” su relación con su

idioma materno. 39

Luis Harss

39

HARSS, L. Los nuestros, pp. 426-427

38

03.01. A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE VARGAS LLOSA

Sou um autor, em primeiro lugar, por minha livre intenção de escrever. Mas

imediatamente segue-se que eu me torno um homem que outros homens consideram um

escritor, isto é, que tem de responder a uma certa demanda e que foi investido de uma

certa função social. Seja qual for o jogo que ele queira jogar, deve jogá-lo com base na

representação que outros fazem dele. Pode querer modificar o caráter que se atribui ao

homem de letras (ou intelectual) numa dada sociedade; mas para mudá-lo tem antes de

introduzir-se nela. Depois, o público intervém, com seus costumes, sua visão de mundo

e sua concepção da sociedade e da literatura no interior da sociedade. O público cerca o

escritor, encurrala-o, e suas exigências imperiosas ou dissimuladas, suas recusas e suas

fugas são os fatos concretos em cuja base uma obra pode ser construída.40

Jean Paul Sartre

A discussão a respeito do papel do intelectual na construção da sociedade

cresceu ao longo do século XX, gerando várias concepções e provocando as mais

diversas reações. Segundo Gramsci em Cadernos do cárcere, escrito nas prisões de

Mussolini entre 1926 e 1937, “todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer:

mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”41

.

Deste modo, ele passou a acentuar o papel daquele que, em sua opinião, seria o

intelectual verdadeiramente transformador, chamado por ele de orgânico, em virtude de

seu envolvimento nas modificações dentro do cotidiano de uma sociedade democrática,

contrastando, ainda segundo ele, com um tipo muito comum de intelectual, como

professores, clérigos e administradores, devido à postura de mantenedores da ordem

tradicional sustentada por esses indivíduos. Esta definição contrapõe-se, também, a

Julien Benda, o qual, em A traição dos intelectuais, afirma que os verdadeiros

intelectuais “são aqueles cuja atividade não é essencialmente a busca de objetivos

práticos, ou seja, todos os que procuram sua satisfação no exercício de uma arte ou

ciência ou da especulação metafísica, em suma, na posse da vantagem não materiais, daí

de certo modo dizerem: „Meu reino não é deste mundo‟”. Isso gerou uma atribuição

quase que religiosa ou, pelo menos, clerical a essa classe de homens, aos quais

acrescentaria Edward Said: “constituiriam a consciência da humanidade”, frisando ainda

que eles “deveriam correr o risco de serem queimados na fogueira, crucificados ou

condenados ao ostracismo”42

. Conforme visto em nossa análise, Euclides da Cunha

seria um misto do intelectual orgânico definido por Gramsci com o intelectual clérigo

40

SARTRE, J.P. Que é a literatura?. In: SAID, E.. Representaçõe do intelectual, p. 79. 41

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, v.2. In: SAID, E. Representações do intelectual, p. 19. 42

BENDA, J. La trahisons des clercs. In: SAID, E. Representações do intelectual, p . 21.

39

apresentado por Benda. Poderíamos dizer o mesmo em relação a Mario Vargas Llosa,

em virtude de seu envolvimento nos acontecimentos políticos e sociais de seu país?

A iniciação do escritor peruano ocorreu no final dos anos 40 e início dos 50

quando, entre 1948 e 1956, Manuel Odría, um dos ministros de José Luis Bustamante,

governo eleito constitucionalmente, liderou um golpe militar, estabelecendo uma

ditadura. Apoiado pelo grande capital e pelas oligarquias, Odría utilizou a justificativa

de que a anarquia estava tomando conta do país. A recusa do presidente de pôr o APRA,

partido político muito popular, na ilegalidade, foi a gota d‟água para que os golpistas

agissem. Começou, então, uma violenta perseguição aos apristas e a quem quer que se

colocasse contra o regime, como os comunistas, por exemplo43

. Naquele momento,

Vargas Llosa, ao adentrar o espaço da universidade, estabeleceu contato com os

diversos grupos políticos de esquerda que buscavam um enfrentamento com o regime

ditatorial. Sua entrada no mundo das letras o levaria a buscar novas opções, já que,

segundo ele, o ambiente literário limenho daquele tempo era bastante pobre. Passou a

abominar o vocábulo “telúrico”, o qual, julgava ele, havia-se tornado símbolo do

provincianismo, do conformismo e do subdesenvolvimento no campo da literatura44

. A

leitura de romancistas norte-americanos como Erskine Caldwell, Steinbeck, Dos Passos,

Hemingway e Waldo Frank o levaria a novos caminhos, aprofundados com a leitura de

William Faulkner45

, autor fundamental, pois, com ele, o escritor peruano descobriria “a

maleabilidade da forma narrativa e as maravilhas que é possível conseguir em uma obra

de ficção utilizada com a destreza desse romancista”46

.

A descoberta de Sartre e de sua tese sobre o compromisso social seria outro

momento fundamental para as inquietações daquele jovem idealista oriundo da

burguesia, que começava a penetrar num mundo de indefinições ideológicas e

confrontos acirrados produzidos pela militância política no mundo universitário. As

leituras de Sartre e de Les Temps Modernes tornaram-no menos dogmático que os

demais, levando-o, uma vez ou outra, a tecer algumas críticas sartrianas ao marxismo,

estabelecendo confronto com os demais companheiros47

. O “sartrezinho valente” inicia,

simultaneamente, seu envolvimento no campo da literatura, trabalhando com o

professor Raúl Porras Barrenechea de 1954 até sua primeira ida para Paris em 1958.

43

VARGAS LLOSA, M. Peixe na água, p. 296. 44

Ibid.. p. 339. 45

Ibid.. p. 281. 46

Ibid.. p. 338. 47

Ibid., p. 245.

40

Sua tarefa inicial consistia em ler as crônicas da conquista e fazer fichas sobre os mitos

e as lendas do Peru, o que lhe deixaria lembranças apaixonantes a respeito dessas

antigas fantasias e daqueles reinos utópicos com todo o seu manancial de cidades

encantadas e continentes desaparecidos48

. A primeira publicação de um de seus contos,

Os chefes, que posteriormente daria título a seu primeiro livro, prefigurava boa parte do

que ele faria depois como romancista: usar uma experiência pessoal como ponto de

partida para a fantasia; empregar uma forma que finge ser realista mediante detalhes

geográficos e urbanos precisos; uma objetividade obtida através de diálogos e

descrições feitas a partir de um ponto de vista impessoal, apagando os traços de autoria,

e, finalmente, uma atitude crítica em relação a determinada problemática, que é o

contexto ou horizonte do entrecho.

A continuação do envolvimento político, social e literário de Vargas Llosa

ocorreu com o início de seu trabalho na imprensa escrita, tendo tido um aprofundamento

a partir do convite para trabalhar na rádio Panamericana49

. Com o tempo, apaixonou-se

por esse meio de comunicação de massa tão importante naquela década, pois assim

poderia melhor interagir com o público, num trabalho que ele considerava vital. Seus

boletins noticiosos para a rádio ajudavam-no a aprofundar sua participação intelectual

no cotidiano da sociedade peruana. Nessa época, tomou a decisão de ser escritor, mas,

como era impossível sobreviver exercendo tal atividade, resolveu dedicar-se ao

jornalismo e ao ensino. Afinal, “ensinar literatura era compatível com escrever”50

. A

função de assistente da cadeira de literatura peruana na Universidade de San Marcos o

introduziria no mundo acadêmico, levando-o a buscar um doutorado naquela instituição.

A vitória num concurso de contos da La Revue Française em 1957 o conduziria para o

objetivo tão tenazmente desejado, ir a Paris, a capital do país mítico, terra natal de

escritores, como Sartre, que ele tanto apreciava.

Sua admiração por Bustamante, um dos grandes líderes da Democracia Cristã,

havia sido mantida, mesmo em sua época de militância no Cahuide, nome com o qual o

Partido Comunista tentava burlar a ditadura para poder ressuscitar51

. Com o tempo, a

participação nesse movimento passou a ser inútil e tediosa, visto considerá-la

inconstante e cheia de propostas pueris.52

Por outro lado, o sentimento de honra e o

48

Ibid., p. 252. 49

Ibid., p. 386. 50

Ibid., pp. 389-390. 51

Ibid., p. 286. 52

Ibid., pp. 248-249.

41

culto religioso à lei expressos pelo ex-presidente deposto, tão ridicularizado pelos

seguidores da APRA, atraíam o escritor, levando-o a inscrever-se em seu partido assim

que começou o processo de redemocratização. Cedo ele começaria a se questionar a

respeito do que estaria fazendo ali no meio daquelas pessoas, extremamente

respeitáveis, mas muito distantes do sartriano anticlerical, esquerdista, ainda não

completamente “curado” das noções de marxismo adquiridas nos anos de militância

universitária. Seu entusiasmo político era bem maior que sua coerência ideológica, o

que não o impedia de sentir-se mal inúmeras vezes como, por exemplo, quando da

leitura da chamada doutrina social da Igreja expressa através da Rerum novarum,

famosa encíclica de Leão XIII.53

Afinal, os democratas cristãos sempre a citavam como

prova do compromisso dessa instituição com a justiça social e de sua determinação de

realizar uma reforma econômica capaz de ajudar os pobres. O paternalismo explícito e

as vagas críticas aos excessos do capital deixavam-no perplexo. O advento da revolução

cubana tornaria o jovem escritor, como ocorreria com tantos intelectuais naquele

momento, apaixonado por sua causa. A defesa extremamente tímida da Democracia

Cristã em relação às mudanças que começavam a ocorrer naquele país levaria Vargas

Llosa a afastar-se desse partido, levando-o a buscar novos rumos em sua participação

política54

.

Os intelectuais tiveram tanta responsabilidade quanto os militares pelo que

ocorreu no Peru durante aqueles anos, principalmente nos primeiros sete – de 1968 a

1975, os do general Velasco –, em que se adotaram todas as soluções equivocadas para

os grandes problemas nacionais, agravando-os e precipitando o Peru numa ruína a que

Alan García viria dar a última volta no parafuso. Eles aplaudiram a destruição pela força

do sistema democrático, que, por defeituoso e ineficiente que fosse, permitia o

pluralismo político, a crítica, a vida sindical e o exercício da liberdade”55

.

O escritor também não esconde seu apreço pelo grande precursor do pensamento

de esquerda no Peru: José Carlos Mariátegui (1894-1930), considerando seus artigos e

ensaios de divulgação do marxismo, de análise da realidade peruana, de comentários

políticos e até de crítica literária, como exemplos de acuidade intelectual. Com efeito, a

originalidade dos escritos de Mariátegui criou um séquito de seguidores, uma vez que

toda a esquerda peruana, dos mais diversos matizes, passou a se denominar

“mariateguista”56

. Não obstante, Vargas Llosa atribui um papel bastante negativo aos

53

Ibid.. p. 298. 54

Ibid.. p. 298. 55

Ibid.. p. 306. 56

Ibid.. p. 306.

42

intelectuais peruanos com os desdobramentos dos fatos ocorridos desde o final dos anos

60 até meados dos 70, quando o general Velasco Alvarado, então comandante geral do

exército, em 3 de outubro de 1968, liderou a junta militar que derrubou o presidente

Fernando Belaúnde Terry. Alvarado formou um gabinete composto por ministros

militares, estabelecendo um governo que, ao contrário do que ocorria no resto do

continente, entrou para a história da América Latina por ser a primeira ditadura militar a

promover uma considerável reforma agrária, tendo decretado a divisão das terras dos

latifúndios improdutivos em cooperativas administradas pelos camponeses.

O governo do general começaria, depois de alguns anos, a perder fôlego, uma

vez que os interesses econômicos internacionais não lhe dariam trégua. As contradições

do regime começaram a aflorar, pois atacava o capital estrangeiro, mas não conseguia

deter sua penetração na economia, promovia uma reforma agrária, mas não dava a

devida estrutura aos camponeses, apresentava um discurso nacionalista, mas calava a

imprensa e suspendia eleições e partidos políticos. Setores militares conservadores

acabaram pondo fim àquele regime em 1975. Medidas promovidas por Alvarado, como

confisco e coletivização de terras, nacionalização e estatização de empresas, supressão

da liberdade de imprensa e expropriação de todos os canais de televisão, de muitos

jornais e de grande número de estações de rádio foram consideradas por Vargas Llosa

um golpe muito forte contra a democracia peruana. Ele conclui, afirmando que alguns

intelectuais, ao apoiarem aquela ditadura militar, agiam ingenuamente, enquanto outros

faziam-no por simples acomodação, ou por mero oportunismo.57

Vargas Llosa, a partir da realidade peruana, passou a defender a tese de que tudo

aquilo, sem nenhuma exceção, não passava de uma amostra do que ocorria na parte

latino-americana do continente. Para ele, as ditaduras crônicas e todo o seu séquito de

opressões e corrupções haviam criado o mito de que os intelectuais representariam “uma

reserva moral”58

, uma esperança na condução de mudanças capazes de produzir

transformações significativas nesta região. Seria uma aproximação da imagem projetada

pelos membros dessa classe com a idéia de clerezia tão cara a Julien Benda. Entretanto,

o escritor considera que era praticamente impossível um intelectual sobreviver num país

como o seu sem “render homenagem à ideologia socialista e demonstrar em seus atos

públicos – seus escritos e sua atuação cívica –, que fazia parte da esquerda”59

. Segundo

57

Ibid.. p. 309. 58

Ibid.. P. 312. 59

COSTA, Adriane Vidal, Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus, p. 7.

43

ele, aflorava o “intelectual barato”60

, uma vez que tal situação diminuía sobremaneira a

atitude dessas pessoas, levando-as a um comportamento interesseiro e mesquinho,

conforme visto a partir de suas observações.

Seria também de singular importância para ele a leitura de Albert Camus. A

princípio, o escritor admirava a postura de Sartre, para o qual a única literatura digna

desse nome deveria ser “engajada”. Afinal, o escritor francês fazia esforços intelectuais

e morais para, “não sendo um deles, jamais parecer que era contra eles”61

, e, em

nenhum momento, abriria mão da convicção de que o Socialismo seria a única solução

viável para todos os problemas sociais e a única saída para os problemas humanos.

Sartre encarnaria, para Vargas Llosa, o intelectual progressista de esquerda dos anos 50

e 60 do século passado. Afinal, como não admirar a postura de um homem que tinha a

coragem de apoiar a União Soviética, a China e Cuba, mas era suficientemente

independente a ponto de simpatizar com o trotskismo e jamais se inscrever no Partido

Comunista? A decepção com Sartre ocorreria em 1964, segundo o escritor peruano,

quando ele leu uma reportagem no Le Monde, na qual o filósofo dizia que, “diante de

uma criança que morre de fome, La nausée não valeria nada”62

. Vargas Llosa afirmou

ter ficado atônito, pois considerou tal afirmativa uma tremenda contradição, uma vez

que negava tudo o que o filósofo dissera anteriormente a respeito da Literatura,

influenciando-lhe o modo de pensar e de escrever. “Significava, então, que escrever

romances ou poemas era coisa inútil, ou pior, imoral, enquanto houvesse injustiças

sociais?” Parecia que sim, pois, na mesma reportagem, Sartre “aconselhava aos

escritores dos novos países africanos que renunciassem a escrever no momento e se

dedicassem muito mais ao ensino e outras tarefas urgentes, a fim de construir um país

onde mais tarde a literatura fosse possível.”63

Era como se ele estivesse retomando

Platão em A República, quando este afirmou que uma cidade organizada e governada

apenas por sábios dispensaria o trabalho dos poetas64

.

O choque foi tão grande que Vargas Llosa, desiludido, mesmo não negando a

importância do filósofo francês em sua vida literária e em sua trajetória intelectual,

rompeu com um pensamento que passara a julgar incoerente. A releitura de L’homme

revolté de Camus na década de 70, que ele, anteriormente, não havia compreendido

60

Ibid., p. 309. 61

COSTA, Adriane Vidal, Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus, p. 7. 62

Ibid., p. 5. 63

VARGAS LLOSA, M. Contra viento y marea, p. 321. 64

PLATÃO. A república. Livro X.

44

muito bem, levou-o a descobrir a visão desse escritor a respeito da política, da história e

da cultura contemporânea. Camus condenava todo tipo de totalitarismo, terrorismo,

ditadura, fanatismo ou qualquer manifestação que se aproximasse dessa idéia. Havia

para ele uma “moral dos limites”, pois a “política seria somente um dos componentes da

experiência humana, e que esta era mais ampla que aquela, e que, se a política se

convertesse na atividade central à qual todas as outras se subordinassem, a conseqüência

seria o „aviltamento do indivíduo‟, que poderia, conseqüentemente, levá-lo ao fanatismo

político”65

. O que mais impressionaria Vargas Llosa nessa visão construída por Camus

seria o horror a qualquer tipo de dogma, já que, para ele, toda teoria que se julgasse

absoluta, como o Cristianismo ou o Marxismo, por exemplo, mais cedo ou mais tarde,

teria de mentir ou até mesmo justificar algum crime. Tais opiniões coincidiam com a

sua, e ele preferiu a lição política de Camus.

65

COSTA, Adriane Vidal. Vargas Llosa: um intelectual latino-americano entre Sartre e Camus, pp. 8-9.

45

03.02. VARGAS LLOSA E A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA

Una ficción lograda encarna la subjetividad de una época y por eso las novelas,

aunque cotejadas con la historia, mientan, nos comunican unas verdades huidizas y

evanescentes que escapan siempre a los descriptores científicos de la realidad. Sólo la

literatura dispone de las técnicas y poderes para destilar ese delicado elixir de la vida: la

verdad escondida en el corazón de las mentiras humanas. Porque en los engaños de la

literatura no hay ningún engaño. No debería haberlo, por lo menos, salvo para los

ingenuos que creen que la literatura debe ser objetivamente fiel a la vida y tan

dependiente de la realidad como la historia. Y no hay engaño porque, cuando abrimos

un libro de ficción, acomodamos nuestro ánimo para asistir a una representación en la

que sabemos muy bien que nuestras lágrimas o nuestros bostezos dependerán

exclusivamente de la buena o mala brujería del narrador para hacernos vivir como

verdades sus mentiras y no de su capacidad para reproducir fidedignamente lo vivido.66

Mario Vargas Llosa

Na primeira metade do século XIX, a prosa de ficção se estabeleceu como

elemento de representação da classe burguesa, a qual havia conquistado o direito de se

ver retratada de forma épica. Surgiu, então, legítimo representante da literatura

romântica, o herói burguês, positivo, ponta de lança do progresso numa luta aberta

contra os resquícios do antigo regime, o qual, de uma forma ou de outra, insistia em se

perpetuar. Essa tendência progressista acabou provocando contradições, já que o

romance, pronto para ressaltar o desenvolvimento e a vitória da burguesia, acabou, de

certo modo, denunciando, também, a crueldade das transformações sociais no momento

da acumulação capitalista. Afinal, o herói romântico costumava se revestir de uma

pureza que não condizia com a realidade da sociedade burguesa.

De uma parte, o Romantismo combate o capitalismo em nome de formas

sociais ultrapassadas; doutra, ele se coloca, muitas vezes de forma inconsciente, no

interior do capitalismo: trata-se de um combate idealista, animado por uma ideologia

subjetivista, contra o capitalismo como algo concluso, como “destino”. Neste combate,

o Romantismo reduz as contradições capitalistas que pretendia aprofundar, produzindo

um falso dilema entre um subjetivismo vazio e um objetivismo inflado. O Romantismo

realça, unilateralmente e por vezes inflexionando-se reacionariamente, o fator de

degradação humana no capitalismo. Os escritores importantes deste período alcançam o

grande estilo realista superando as tendências românticas, lutando para compreender a

totalidade da sua época no bojo das suas contradições. Mas as suas relações com o

Romantismo são sempre ambíguas: de um lado, eles superam verdadeiramente as

tendências românticas e integram elementos românticos na sua representação como

momentos ultrapassados; doutro, seu combate contra a prosa da vida contém

necessariamente elementos românticos não-superados.67

66

VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras, p. 27. 67

LUKÁCS, M. Sociologia da literatura, p. 184.

46

Então, num crescendo, na esteira das grandes transformações produzidas pela

burguesia ao longo do século XIX, a literatura a partir de meados desse, passou a ser

vista como elemento de conscientização do homem, tendo como grande objetivo o fim

da sociedade burguesa e a construção de outra, sem exploradores nem explorados.

Resultante das diversas filosofias de cunho materialista e cientificista, o romance

realista/naturalista abriu caminho rapidamente, num momento em que o declínio

ideológico da burguesia se tornara evidente. Os heróis românticos, personagens

individualizados vivendo peripécias de todo tipo, começaram a desaparecer, sendo

substituídos por homens médios, vivenciando situações corriqueiras, cotidianas,

representados numa prosa em que a visão analítico-descritiva se sobrepunha ao aspecto

narrativo.

Segundo Mikhail Bakhtine, a figura do herói entrou em crise na segunda metade

do século XIX, com os romances de Dostoievski. Ele acrescenta que “o herói só

interessava a esse escritor russo como ponto de vista particular sobre o mundo e sobre

ele próprio, como a posição do homem que busca a sua razão de ser e o valor da

realidade circundante e de sua própria pessoa”68

. Deste modo, a subjetividade

exacerbada, herança da visão niilista crescente desde o final do século XIX, passou a

dominar a estrutura dos romances já no primeiro quarto do século XX, enfatizando as

situações absurdas vivenciadas por personagens que não passavam de peças da grande

engrenagem da máquina capitalista. Destacou-se, neste caso, a figura do herói

problemático, em luta para adaptar-se à sociedade burguesa, tornando-se, na maioria das

vezes, um perdedor. Para Lukács, esse tipo de herói seria resultante de um “romance

burguês cada vez mais dominado pelo falso dilema do subjetivismo esvaziado de

qualquer conteúdo e da objetividade artificialmente inflada”69

. Essas perspectivas

seriam associadas a técnicas modernas de apresentação da narrativa, causando

estranheza a princípio para, depois, tornarem-se práticas correntes. O fluxo de

consciência, os diversos planos narrativos, os inúmeros pontos de vista com incontáveis

narradores, o esvaziamento do tempo cronológico, todo esse arsenal de recursos

passaria a ser largamente utilizado por diversos autores ao longo desse século.

O romance latino-americano não ficou alheio a essas mudanças. As vanguardas

européias ajudaram, não só na formação de uma consciência crítica, mas também na

68

BAKHTINE, M. La poétique de Dostoievski, in: Silva, V.M.A., p. 276. 69

LUKÁCS, G. Sociologia da literatura, p. 185.

47

busca de novas formas de composição.70

Aquele complexo de inferioridade que sempre

havia caracterizado o intelectual latino-americano diante dos europeus começava a

desaparecer. Importava, então, para os autores deste continente, voltar-se para sua

gente, discutir suas dificuldades, expor seus anseios e, de certo modo, retratar a luta

empreendida por seu povo com o intuito de produzir uma mudança estrutural em sua

forma de vida. Tais autores começaram, então, a expor as chagas abertas por um longo

processo de colonização imposto a essa região. É neste contexto que surgiram diversos

escritores, criando aquilo que, ao longo dos anos 60 e 70, seria chamado de “boom” do

romance latino-americano.71

Para alguns, o “boom” assumia uma ótica esquerdizante justamente no auge da

guerra fria, quando o continente estava sendo dominado por ditaduras fascistas, ou

sofrendo golpes militares de direita com forte apoio dos Estados Unidos. É evidente

que a imagem projetada pela revolução cubana estimulava essa proposta de uso da

literatura com intenção política, uma vez que esse tipo de romance seria provavelmente

a única voz a se destacar naquele momento de censura e opressão.72

A prosa de ficção

deveria tornar-se um dos principais canais de conscientização, numa tentativa de

ampliar o pensamento de esquerda entre jovens estudantes e, de certa forma, angariar

simpatias no meio da classe média ascendente. Por outro lado, muitos acreditavam que

o “boom” era apenas o resultado de uma expansão de mercado oriunda da diminuição

do analfabetismo em toda essa região.73

Essa teoria valida a idéia da classe média

emergente, visto acreditar que o romance estaria valorizando o aspecto narrativo e

factual, procurando esvaziar, portanto, a proposta ideológica citada no início deste

parágrafo.

O “boom”, de certa forma, foi tudo isso e muito mais. Na verdade, aquele grupo

de escritores surgiu com uma forte consciência da existência da cultura de massas,

especialmente do cinema e do rádio. Afinal, haviam crescido numa época em que a

grande explosão populacional havia provocado o crescimento desmesurado dos grandes

centros urbanos, principalmente em suas periferias. Assimilaram, como todos, naquele

momento em que as massas semi-alfabetizadas eram jogadas dentro do torvelinho

provocado pela industrialização da sociedade capitalista, a imensa gama de

manifestações artísticas ou pseudo-artísticas geradas por essa explosão, como as

70

FRANCO, J. La cultura moderna en América Latina, pp. 193-198. 71

Ibid., p. 225. 72

Ibid., p. 261. 73

RAMA, A. El “boom” en perspectiva. in: Más allá del boom, p. 91.

48

histórias policiais e de aventuras, a fotonovela, a música, o cinema popular, a

radionovela e, posteriormente, a telenovela. Neste caso, passou a ocorrer a valorização,

não do talento, mas da imagem, criando a idéia de que o mais importante era tornar-se

uma celebridade. Segundo Jean Franco, a fama não seria mais conquistada pelo autor,

mas pela estrela.74

Na verdade, havia um preço a ser pago por essa massificação imposta

à população. A América Latina, mais uma vez, sofria um processo de colonização, e

aquela sociedade predominantemente agrária estava sendo transportada a fórceps para o

mundo industrializado. Tal processo projetou influências na construção daquela ficção

que estava surgindo, uma vez que ela refletiria o resultado da já mencionada introdução

da cultura de massas, feita de uma forma tão violenta que produziu, ainda de acordo

com Jean Franco, uma narrativa que “trataria de abarcar, simultaneamente, o

maravilhoso da cultura oral, a criatividade individual do autor e a gravação da imagem

imutável da super-estrela”.75

Demonstrando, então, uma consciência muito forte da importância da indústria

cultural, surgiu no cenário da América Latina a ficção de Vargas Llosa, o qual, em seu

trabalho na Rádio Panamericana já havia feito roteiros para novelas de rádio. Muito

contribuíram para o desenvolvimento da técnica narrativa do escritor as entrevistas

semanais que conduzia para o suplemento dominical do jornal El Comercio, embora as

considerasse, na maioria dos casos, decepcionantes. Conforme mencionado, o contato

com a obra de Faulkner deixara-o deslumbrado, levando-o a uma busca constante das

diversas técnicas do romance, como a questão do ponto de vista, a organização do

tempo e a função do narrador. Os escritores peruanos, em geral, menosprezavam tais

questionamentos, considerando-os meramente “formalismos” ou “formalismos

estrangeirizantes, europeístas”76

. E novamente emergia o vocábulo “telúrico”, que

“significava escrever uma literatura com raízes nas entranhas da terra, na paisagem

natural, e costumbrista, e preferencialmente andina, e denunciar o mandonismo e o

feudalismo da montanha77

”. É preciso destacar, neste caso, que a literatura de mercado

continuava mantendo, de certo modo, a mesma estrutura que tanto sucesso fazia desde a

época do Romantismo. No entanto, a leitura de diversos autores americanos, dando

destaque para Faulkner, havia sido fundamental para produzir o embasamento

74

FRANCO, J. Memoria, narración y repetición: la narrativa hispanoamericana en la época de la

cultura de massas. In: Más allá del boom: literatura y mercado, p. 122. 75

Ibid., p. 114. 76

VARGAS LLOSA, M. Peixe na agua, p. 339. 77

Ibid., p. 339.

49

necessário para que o escritor peruano pudesse construir seu arcabouço literário,

levando-o a se destacar, posteriormente, na literatura da América Latina.

A farta utilização dessas diversas técnicas do romance moderno passaria, então,

a ser uma constante em Vargas Llosa, deixando patente uma contradição, já que o

modelo preconizado por ele remetia a Flaubert, um perfeccionista da técnica narrativa

no auge do Realismo. No entanto, não lhe interessava também o hermetismo de uma

anti-narrativa tão em voga no romance pós-vanguarda ao longo do século XX, cuja

leitura seria desvendada apenas por uma minoria de iniciados altamente qualificados.

Ele desejava, na verdade, ser lido por aquele público resultante da cultura de massas,

aspiração um tanto paradoxal se considerarmos a sua raiz flaubertiana, cheia de

purismo, e o seu profundo conhecimento das diversas nuances da narrativa moderna.78

É

possível afirmar, então, que Vargas Llosa, ao conter a maior parte dessas características

citadas neste capítulo, tornara-se um legítimo representante do “boom” do romance

latino-americano com todas as implicações decorrentes dessa idéia.

A publicação de romances como La ciudad y los perros, La casa verde e

Conversación en la catedral, marcariam um ciclo na obra desse escritor, tornando-o um

dos mais eminentes autores daquele momento singular nas letras do continente. É

necessário pensar, entretanto, no contexto de uma luta crescente a partir da ascensão das

massas, as quais eram cooptadas, na maioria das vezes, por populismos de todo tipo. A

guerra fria produziria, também, frutos espúrios ao longo da América Latina, criando um

clima de perseguições, prisões arbitrárias, torturas, exílios e desaparecimentos

constantes daqueles que eram considerados, direta ou indiretamente, inimigos dos

regimes fascistas que surgiam aqui e ali. Deste modo, a narrativa de Vargas Llosa

parecia assumir uma postura muito clara de confronto em relação a esse estado de

coisas, uma vez que a análise da sociedade peruana presente em seus romances iniciais

remetia à idéia de ficção como recriação da realidade e, mais ainda, como elemento de

transformação social. A herança de Sartre pulsava nos escritos do escritor peruano.

O lançamento de La guerra del fin del mundo no começo dos anos 80 criou uma

expectativa muito grande no meio da crítica e dos leitores aqui no Brasil. Afinal, como

aquele estrangeiro tinha a pretensão de escrever alguma coisa a respeito da realidade

brasileira? Como tinha ele a presunção de refazer o trabalho de um dos maiores ícones

da nossa literatura? Acrescente-se a isso as mudanças em seu pensamento político e

78

RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Madurez de Vargas Llosa, in: Asedios a Vargas Llosa, p.39

50

social, as quais, evidentemente, haviam-lhe trazido um sem número de

desentendimentos. Vargas Llosa, ao se propor escrever a respeito dos acontecimentos

de Canudos, fez uma ampla pesquisa, incluindo um trabalho de campo. Seu purismo

jamais o deixaria escrever de forma desleixada e com pouco conhecimento a respeito de

qualquer assunto. Deste modo, a quebra da linearidade histórica pela pós-modernidade

seria uma constante no palimpsesto produzido pelo escritor peruano, uma vez que pôde

pôr em prática todo um arcabouço resultante das mudanças percebidas por ele na

sociedade latino-americana ao longo dos anos 40 e 50.79

A cultura de massas trazida

pelo rádio e pelo cinema havia tido uma influência profunda em seu trabalho, e La

guerra del fin del mundo era conseqüência disso.

79

RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Una escritura revolucionaria, in: Narradores de esta América, p. 34.

51

04. CAPÍTULO 3

VARGAS LLOSA,

LEITOR DE EUCLIDES

Por creer que la realidad es como pretenden las ficciones, Alonso

Quijano y Emma Bovary sufren terribles quebrantos. ¿Los condenamos por

ello? No, sus historias nos conmueven y nos admiran: su empeño imposible de

vivir la ficción nos parece personificar una actitud idealista que honra a la

especie. Porque querer ser distinto de lo que se es ha sido la aspiración humana

por excelencia. De ella resultó lo mejor y lo peor que registra la historia. De ella

han nacido también las ficciones. 80

MarioVargas Llosa

80

VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras, p. 22.

52

04.01. DISCUSSÃO DO NOVO ROMANCE HISTÓRICO

La recomposición del pasado que opera la literatura es casi siempre falaz. La

verdad literaria es una y otra la verdad histórica. Pero, aunque esté repleta de mentiras –

o, más bien, por ello mismo – la literatura cuenta la historia que la historia que escriben

los historiadores no sabe ni puede contar.

Porque los fraudes, embaucos y exageraciones de la literatura narrativa sirven

para expresar verdades profundas e inquietantes que sólo de esta manera sesgada ven la

luz.81

Mario Vargas Llosa

A leitura de Os sertões como base para a escrita do romance La guerra del fin

del mundo é o primeiro elemento fundamental para conceituar o texto de Vargas Llosa

na perspectiva do Novo Romance Histórico. Para o escritor peruano, o vínculo com a

realidade sempre encabeçara sua lista de preocupações no ato da escrita, como pode ser

observado a partir da leitura de alguns de seus primeiros romances, como os já

mencionados La ciudad y los perros, La casa verde e Conversación en la catedral, por

exemplo. No entanto, ele sempre afirmou também que, apesar desse vínculo, todos os

romances, sem exceção, afastavam-se da verdade, pois o seu grande objetivo seria

mentir de forma consciente com o intuito de criar sua própria realidade.

Logicamente, ao se propor escrever a respeito de Canudos, o escritor peruano

executou uma ampla pesquisa, indo além do já narrado por Euclides em Os sertões. Na

verdade, ele procedeu exatamente como o escritor brasileiro fizera 80 anos atrás, uma

viagem ao local, fato que mudaria significativamente a imagem do escritor brasileiro a

respeito do que estava ocorrendo naquela região destituída das benesses da civilização.

A técnica apurada de Vargas Llosa e sua visão perfeccionista, predicativos muito

semelhantes aos de Euclides, não lhe permitiriam construir uma narrativa sem muito

apuro e com pouca base temática. Importa mesmo entender que seu trabalho segue uma

proposta de objetividade, mesclando-a, entretanto, com as mudanças desenvolvidas pelo

romance moderno ao longo do século XX, incluindo, conforme já citado, influências

provenientes, não apenas do cinema, mas também dos aspectos resultantes da chamada

cultura de massas.

Pero la lógica de los elegidos del Buen Jesús no era la de esta tierra. La guerra

que ellos libraban era sólo en apariencia la del mundo exterior, la de uniformados contra

andrajosos, la del litoral contra el interior, la del nuevo Brasil contra el Brasil

tradicional. Todos los yagunzos eran conscientes de ser sólo fantoches de una guerra

81

VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras, p. 26.

53

profunda, intemporal y eterna, la del bien y del mal, que se venía librando desde el

principio del tiempo. 82

Luiz Costa Lima, em Terra ignota: a construção de Os sertões, afirmou que “a

ciência detinha a autoridade central nesse livro, enquanto a literatura seria apenas um

elemento embelezador ou ressaltante de verdades cientificamente dispostas, elemento

este que, marginal, não tornaria Os sertões uma obra literária”.83

Neste caso, a difícil

classificação dessa obra dentro de determinados parâmetros estabelecidos pela crítica,

vem sendo uma constante, apesar da objetividade científica buscada por Euclides, o qual

pretendia agir como um historiador. De suas páginas, entretanto, emergem um painel de

nossa terra e de nossa gente, construindo uma epopéia até então ausente em nossas

Letras. E é dessa realidade vista, criada e projetada por Euclides que Vargas Llosa

criará sua realidade, transformando-a e transfigurando-a; mantendo-a, porém, pois é

possível reconhecer muito de Os sertões em La guerra del fin del mundo. Segundo

Seymour Menton, “un ejemplo extremo de intertextualidad es el palimpsesto, o la re-

escritura de otro texto”84

. Deste modo, é possível afirmar que o palimpsesto como

reprodução mimética da história domina a estrutura do romance, acentuando sua base

histórica.

Os três dias de luta terminaram. Estou salvo, isto é o que importa. Descreverei

agora, e em toda oportunidade, os detalhes do grande acontecimento, ou seja, o que

pude dele observar... A manhã do dia 18 de junho surgiu sobre nós e nos encontrou

ensopados de chuva, entorpecidos e tremendo de frio... Você muitas vezes me censurou

por fumar, quando eu estava em casa no ano passado, mas devo dizer-lhe que, se eu não

tivesse um bom estoque de tabaco nessa noite, poderia ter morrido.85

Na descrição da batalha de Waterloo feita por William Wheeler, soldado da 51ª

Infantaria Britânica, numa dentre as várias cartas enviadas a sua esposa, Jim Sharpe

ressalta uma reviravolta em relação à história tradicional, “que era encarada, desde os

tempos clássicos como um feito dos grandes”, relatando as inúmeras guerras presentes

na história da humanidade, esquecendo-se, entretanto, do “ponto de vista do soldado

raso”.86

Ele destaca, então, que uma das características mais importantes dos novos

historiadores era a preocupação que estes passaram a demonstrar com o homem do

82

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, séptimo capítulo, p. 120. 83

LIMA, L.C. Terra ignota, p. 206. 84

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 44. 85

WHEELER, W. The letters of prívate Wheeler 1809-1828, Ed. B.H. Liddel Hart, Londres, 1951, pp.

168-172. In: A escrita da história, p. 39. 86

SHARPE, J. A história vista de baixo. In: A escrita da história, pp. 39-40.

54

povo, evidenciando, pela primeira vez, “a história vista de baixo”, numa inversão da

visão dominada pela história tradicional, cujo objetivo primordial havia sido até então

“mostrar os feitos dos grandes homens, estadistas, generais, destinando ao resto da

humanidade um papel secundário no drama da história”.87

O Novo Romance Histórico,

ao contrário do tradicional, também assume essa postura, pondo em segundo plano a

proposta de Walter Scott, o qual reforçava a figura do herói.88

Em La guerra del fin del

mundo, personagens populares, como o Leão de Natuba, Maria Quadrado, os irmãos

Vilanova, o Anão, o padre Joaquim, Jurema e Rufino, entre outros, povoam a narrativa,

o que é extremamente importante para exemplificar essa idéia. Desde modo, salta aos

olhos do leitor a vida de cada uma dessas pessoas, com seus sonhos, suas paixões, suas

frustrações, sua luta pela sobrevivência, seus dramas, suas tragédias, o cotidiano delas,

enfim.

El Enano se le prendió, tratando de atajarla, pero cuando ella salió del foso, la

siguió gateando. Bajó hasta las rocas y zarzas donde había visto a Pajeú y se acuclilló.

Pese a la polvareda, divisó en las faldas de los cerros del frente un hervidero de

hormigas oscuras, y pensó que más soldados bajaban hacia el río, pero pronto

comprendió que no bajaban sino subían, que huían de Canudos. Sí, no había duda,

salían del río, corrían, trataban de ganar las cumbres y vio, en la otra margen,a grupos

de hombres que disparaban y correteaban a soldados aislados que surgían de entre las

casuchas, tratando de ganar la orilla. Sí, los soldados se estaban escapando y eran los

yagunzos quienes ahora los perseguían. “Vienen para acá”, gimoteó el Enano y a ella se

le heló el cuerpo al advertir que, por observar los cerros del frente, no se había dado

cuenta que la guerra tenía lugar también a sus pies, a ambas orillas del Vassa Barris. De

ahí venía el bullicio con el que creyó soñar. 89

Além desses personagens mencionados, outros, reais, totalmente históricos,

também preencherão os espaços do romance, reforçando a idéia da importância de se

dar vez e voz aos excluídos. Pajeú, João Abade, Vilanova e João Grande, por exemplo,

além de Beatinho, o mais importante auxiliar do Conselheiro, tiveram existência

comprovada. Em vez de bandidos, facínoras ou, no mínimo, seres exóticos, segundo

apresentação feita por Euclides em Os sertões, em La guerra del fin del mundo, no

entanto, adquirem uma dimensão épica e altamente dramática. A construção de cada

um deles reveste-se de elementos comparáveis aos grandes heróis trágicos e, na medida

em que cresce o assédio a Belo Monte, o papel desses seres na defesa da “Tróia de

Taipa” realça-se de uma grandiosidade épica em tudo semelhante aos protagonistas das

epopéias clássicas.

87

BURKE, P. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro, in: A escrita da história, p. 12. 88

LUKACS, G, Le roman historique, p. 48. 89

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, séptimo capítulo, p. 335.

55

“Las cosas no son como las vemos, sino como las recordamos”, escreveu Valle-

Inclán, citado por Vargas Llosa, em La verdad de las mentiras.90

Le Goff ressalta que o

historiador não deveria ser basicamente “um investigador da verdade do passado, mas

um profético intérprete do passado, condicionado pelas suas opiniões políticas, pela fé

religiosa, características étnicas e, finalmente, mas não em exclusivo, pela situação

social”.91

Ele acrescenta ainda que “todas as evocações poéticas, míticas, utópicas, ou,

de qualquer modo, fantásticas do passado entram na historiografia”.92

Ao longo do

romance, inúmeras vezes, o eixo narrativo se espalha em vertentes que valorizam as

crenças populares e as histórias contadas pelos cantadores nas feiras e festas dos

lugarejos ou nos circos itinerantes que percorriam aquelas pequenas cidades do sertão, o

que remete a um medievalismo bastante presente na cultura daquela região.

É bem marcante, neste caso, a história de João Satã, cuja alcunha surgira a partir

de sua vingança contra os policiais que haviam assassinado seus pais adotivos. Tornara-

se extremamente violento e perigoso e virara lenda viva, de forma que qualquer tipo de

crime passara a ser atribuído a ele. Evidentemente, a polícia o perseguia de forma

implacável. O encontro com o Conselheiro mudaria sua vida completamente, pois João

Satã, agora batizado como João Abade, transformara-se num dos mais fiéis servidores

do pregador. A história de Roberto do diabo contada pelos cantadores e repentistas,

destacando, neste caso, o anão, deixava-o bastante comovido, pois as peripécias vividas

pelo personagem mítico eram as mesmas vivenciadas por ele. Só lhe restava aguardar a

sua hora e a sua vez, pois a salvação, com certeza, viria.

Es una viejecita sin pelos, menuda como una niña, que lo mira a través de sus

legañas:

– ¿Quieres saber de João Abade? – balbucea su boca sin dientes.

– Quiero – asiente el Coronel Macedo –. ¿Lo viste morir?

La viejecita niega y hace chasquear la lengua, como si chupara algo.

– ¿Se escapó entonces?

La viejecita vuelve a negar, cercada por los ojos de las prisioneras.

– Lo subieron al cielo unos arcángeles – dice, chasqueando la lengua –. Yo los

vi.93

En ese momento Mackandal agitó su muñon que no habían podido atar, en un

gesto conminatorio que no por menguado era menos terrible, aullando conjuros

desconocidos y echando violentamente el torso hacia adelante. Sus ataduras cayeron, y

90

VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentira, p.25. 91

LE GOFF, J. História e memoria, p. 49. 92

Ibid., p. 50. 93

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, sexto capítulo, p.570.

56

el cuerpo negro se espigo en el aire, volando por sobre las cabezas, antes de hundirse en

las ondas negras de la masa de esclavos. Un solo grito llenó la plaza.

– Mackandal sauvé.94

A conclusão de La guerra del fin del mundo nos mostra, então, que a recriação

da realidade por Vargas Llosa apresenta uma visão diferente da proposta por Euclides

da Cunha. E como qualquer obra de ficção deve encarnar a subjetividade de um povo, o

escritor peruano põe em relevo o seu arcabouço de descobertas capazes de evidenciar os

mitos e as histórias contadas pela população. O diálogo entre o oficial e a velha

prisioneira no final do romance ilustra muito bem tal idéia. Quando questionada a

respeito de que fim teria levado João Abade, sua resposta, como a da população negra

do Haiti diante da execução de Mackandal em El reino de este mundo, contraria a lógica

cartesiana do pensamento racional. Alejo Carpentier, numa descrição bastante

expressiva, mostra a cena mitificada pelo imaginário popular. Da mesma forma, Vargas

Llosa destaca a resposta dada pela moradora local ao oficial, pois o que valia mesmo era

ressaltar que, não só Antônio Conselheiro, mas todos aqueles que viram seu exemplo de

vida, ouviram suas pregações, seguiram-no incansavelmente pelo sertão e por ele

lutaram heroicamente, não haviam morrido, como o ”estado oficial” afirmava. Aqueles

personagens e aqueles acontecimentos ficariam gravados no imaginário das pessoas

daquela região e continuariam entranhados nelas, preenchendo suas vidas para sempre.

Vargas Llosa entende mesmo que “una ficción lograda encarna la subjetividad

de una época” e, por isso mesmo, “las novelas, aunque, cotejadas con la historia,

mientan, nos comunican unas verdades huidizas y evanescentes que escapan siempre a

los descriptores científicos de la realidad”.95

Tal afirmação está de acordo com Le Goff,

segundo o qual, “o passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um

futuro que é parte integrante e significativa da história”.96

Ao contrário do que ocorre

em Os sertões, com a pretensa objetividade de Euclides, Vargas Llosa assume, de forma

consciente, a postura desse historiador, o qual acrescentou que “a história na medida em

que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida

em que o seu sentido se mantém confuso, misturado...”.97

É o que sucede em La guerra

del fin del mundo quando da criação de personagens fictícios, como o Barão de

Cañabrava, Galileo Gall, Rufino, Jurema e Epaminondas Gonçalves. A visão

94

CARPENTIER, A. El reino de este mundo, p. 51. 95

VARGAS LLOSA, M, La verdad de las mentiras, p. 27. 96

LE GOFF, J. História e memoria, p. 24. 97

Ibid., p. 21.

57

diferenciada que cada um desses personagens tem dos acontecimentos servirá para

comprovar que, ainda segundo Le Goff, “a história é, na verdade, o reino do inexato”.98

– El partido Republicano Progresista no quiere ayudar ni tener el menor

contacto con gentes que se rebelan contra la ley – silabeó Epaminondas Gonçalves.

– El Honorable Diputado Epaminondas Gonçalves, entonces – dijo Galileo

Gall –. ¿Por qué a través mío?

– El Honorable Diputado Epaminondas Gonçalves no puede ayudar a

revoltosos – silabeó el Director del Jornal de Notícias – Ni nadie que esté vinculado,

de cerca o de lejos, a él. El Honorable Diputado está dando una batalla desigual por los

ideales republicanos y democráticos en este enclave autocrático, de enemigos

poderosos, y no puede correr semejante riesgo. – Sonrió y Gall vio que tenía una

dentadura blanca, voraz –. Usted vino a ofrecerse. No se me hubiera ocurrido nunca, si

no hubiera sido por esa extraña visita suya, anteayer. Fue la que me dio la idea. La que

me hizo pensar: “Si es tan loco para convocar un mitin público en favor de los

revoltosos, lo será también para llevarles unos fusiles”. – Dejó de sonreir y habló con

severidad –: En estos casos, la franqueza es lo mejor. Usted es la única persona que, si

es descubierta o capturada, en ningún caso podría comprometernos a mí y a mis

amigos políticos.99

A presença do personagem Epaminondas Gonçalves, proprietário do Jornal de

Notícias é bastante significativa, pois passamos a conhecê-lo logo no início da narrativa

quando Galileo Gall dirige-se a seu jornal para publicar uma moção de solidariedade

aos revoltosos de Canudos. Mais uma criação de Vargas Llosa, esse republicano

extremado procura se aproveitar do idealismo do escocês para provocar uma

intervenção militar na Bahia. Ele consegue convencer Galileo a levar alguns fuzis para

os homens do Conselheiro e, logo após, contrata alguns pistoleiros para matá-lo. O

corpo de um suposto estrangeiro ao lado de fuzis ingleses seria suficiente para provar

que os jagunços de Antônio Conselheiro estavam recebendo ajuda externa, mais

precisamente, da monarquia inglesa. A forma como Epaminondas manipula as notícias

divulgadas por seu jornal mostra a força da imprensa, cujo poder é capaz de criar

situações e de manejá-las a seu bel-prazer. Na verdade, esse personagem representa uma

forma de exercício de poder que começava a se fazer presente naquele Brasil do início

da República. Segundo Sevcenko, era “a nova grande força que havia absorvido quase

toda a atividade intelectual naquele período, pois estava crescendo emparelhado com o

processo de mercantilização na cidade”.100

O escritor peruano destaca, então, o 4º poder,

cuja voz tinha força suficiente para penetrar em “territórios até então intocados e

zelosamente defendidos”.101

98

Ibid., p. 21. 99

Ibid., Libro Uno, cuarto capítulo, p. 78. 100

SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 99. 101

Ibid., p. 99.

58

No, nunca comprendería. Era tan vano tratar de razonar con él, como con

Moreira César o con Gall. El Barón tuvo un estremecimiento; era como se el mundo

hubiera perdido la razón y sólo creencias ciegas, irracionales, gobernaran la vida.

[…]

Veía tanta angustia en la cara del escocés que, súbitamente, sintió compasión

por él. Pensó: “Todo lo que anhela es ira morir como un perro entre gentes que no lo

entienden y a las que no entiende. Cree que va a morir como un héroe y en realidad

va a morir como lo que teme: como un idiota”. El mundo entero le pareció víctima de

un malentendido sin remedio. 102

O caso do Barão de Cañabrava, monarquista convicto, é bastante pertinente, uma

vez que as ações desse personagem se aproximam, de certo modo, da imagem projetada

pelo imperador D. Pedro II, o qual exercia seu poder moderador entre as diversas

disputas e intrigas montadas por Liberais e Conservadores. Sua descrição e seus atos

chegam a inspirar simpatia ao leitor, já que ele se mostra um homem compreensivo e

bonachão, em nenhum momento parecendo-se com um latifundiário ou um típico

coronel do Nordeste. Cogita-se que Vargas Llosa, em sua criação, deve ter-se inspirado

em Cícero Dantas Martins, Barão de Jeremoabo, provavelmente o maior proprietário de

terras da Bahia naquela época, 61 fazendas ao todo, com a maioria tendo se originado

nas antigas sesmarias. Devido a sua atuação política desde a monarquia, tornara-se um

dos mais ativos e combativos homens públicos daquele estado, tendo chegado ao cargo

de Senador. Foi também industrial, atividade que o levaria a implantar, com sucesso, a

primeira usina de açúcar na região nordestina, que seria a quinta em todo o país.103

Vargas Llosa destaca, então, no Barão de Cañabrava, a habilidade em manter um

relacionamento afetuoso e cordial, não só com todos os seus empregados, mas também

com os demais moradores da região. Tal imagem, segundo o narrador, vinha de longe e

se acentuara quando, bem antes da assinatura da Lei Áurea, ele já havia libertado todos

os seus escravos, tendo todos, no entanto, permanecido fiéis a ele. Além do mais, o

barão era um homem afeito ao progresso e procurava se adaptar às mudanças trazidas

pela modernidade. Na verdade, a figura do barão simboliza a visão de Vargas Llosa a

respeito de pessoas que, sem idealizações exacerbadas, sem extremismos, teriam

capacidade suficiente para, através do diálogo, conduzir o processo de solução dos

diversos problemas sociais e econômicos presentes, não apenas no Brasil, mas em toda

a América Latina.

102

Ibid., Libro Tres, cuarto capítulo, pp. 255-260. 103

SAMPAIO, C.N. Canudos: cartas para o barão, pp. 18-25.

59

¿Se burlaban de él? Balbuceó, se le trabó la lengua, luchó contra la sensación

de impotencia que lo ganaba al darse cuenta que las cosas que decía no eran

exactamente las que quería decir, las que ellos hubieran podido entender. Lo

desmoralizaba, sobre todo, advertir en la indecisa luz de las antorchas que los yagunzos

cambiaban miradas y gestos significativos y que se sonreían piadosamente,

mostrándoles sus bocas donde faltaban o sobraban dientes. […] Quedó con las manos

estiradas y sintió los ojos cargados de lágrimas. ¿Qué hacía aquí? ¿Cómo había llegado

a meterse en esta trampa, de la que no iba a salir creyendo que así ponía un granito de

arena en la gran empresa de desbarbarizar el mundo? Alguien le aconsejaba que no

tuviera miedo: eran sólo masones, protestantes, sirvientes del Anticristo, y el Consejero

y el Buen Jesús valían más. 104

Na cena descrita acima, vemos o desespero de Galileo Gall, o escocês anarquista

que empreendera uma caminhada quixotesca pelos sertões da Bahia para colocar-se ao

lado das fileiras de Antônio Conselheiro. O crescimento de Canudos e sua luta de

resistência contra o governo central haviam atiçado sua imaginação. Afinal, ele já estava

acostumado a participar de diversos movimentos contra o poder do estado burguês no

continente europeu e, agora, naquele país estranho e distante, fora surpreendido por

aquela revolta, cuja determinação havia criado uma cidade libertária, mas extremamente

funcional, pois havia sido construída com a força, a fé e o sangue do povo.

Ressalte-se que, em 1919, o escritor escocês Robert Cunninghame Graham

escreveu A Brazilian Mystic: Being the Life and Miracles of Antonio Conselheiro, o

qual seria uma tradução livre e abreviada de Os Sertões. Segundo o crítico americano

Peter Elmore, “a Brazilian Mystic não somente resume Os sertões, mas o reduz: a

diferença entre Os Sertões e A Brazilian Mystic limita-se à biografia de Antônio

Conselheiro”105

. Elmore quer ressaltar apenas “o atavismo cultural numa sociedade

periférica”. O mais interessante, porém, neste caso, para estabelecer uma ligação entre

tal fato e a narrativa de Vargas Llosa, é a citação do crítico: “Livre-pensador e cético, o

escocês Cunninghame Graham – alguma coisa mais do que sua nacionalidade pode

partilhar com outro escocês, aquele Galileo Gall de La Guerra del Fin del Mundo – não

queria escrever a vida de um santo, tampouco ver no seu protagonista um caso

clínico.”106

Deste modo, seria fundamental enfatizar a associação do escocês anarquista,

Galileo Gall, personagem de destaque na narrativa de Vargas Llosa, ao “livre-pensador

e cético, Cunninghame Graham.

Na verdade, as idéias revolucionárias deste personagem aliadas a seu

comportamento são o espelho perfeito para que Vargas Llosa explicite seu pensamento

104

Ibid., Libro Tres, según capítulo, p. 184. 105

ELMORE, P. Renan, Euclides, Cunninghame Grahm, Borges: a chave gnóstica. In: BERNUCCI,

L.M. (org).: Discurso, Ciência e Controvérsia em Euclides da Cunha, p. 106. 106

Ibid., p. 106.

60

a respeito de militantes revolucionários, cujas atitudes, consideradas pelo escritor como

infantis, despropositadas e utópicas, remetiam-no a seus antigos companheiros do

Cahuide.107

O idealismo do escocês levava-o a empunhar a bandeira da causa anarquista

e a lutar tenazmente para concretizá-la, independente do conhecimento ou não das

motivações dos condutores dessa luta e da enormidade dos problemas que pudessem

surgir a todo instante para a consecução de sua proposta. No caso de Canudos,

acontecimentos imprevistos acabaram desviando o escocês do seu objetivo primordial:

chegar ao arraial para cerrar fileira ao lado do Conselheiro e de seus seguidores. Seu

inesperado envolvimento amoroso com Jurema, esposa de Rufino, um rastreador da

região incumbido de conduzi-lo a Canudos, e a perseguição implacável que este

sertanejo empreenderia contra ele, não permitiram que Galileo pudesse ir além da

solidariedade aos defensores de Belo Monte, conseguindo inserir-se de forma concreta

na luta dos conselheiristas.

– ¿Se da cuenta? – dijo el periodista miope, respirando como si acabara de

realizar um esfuerzo enorme –. Canudos no es una historia, sino un árbol de historias. 108

Segundo Stanley Fish, a respeito da pós-modernidade: “Tu saberás que a

verdade não é o que parece ser e essa verdade te libertará”.109

Essa postura é

evidentemente assumida por Vargas Llosa na construção do romance. Acrescente-se a

observação de Seymour Menton a respeito do conceito bakhtiniano de dialogismo, de

que inúmeras obras consideradas representantes do Novo Romance Histórico “projetam

duas ou mais representações dos acontecimentos e dos personagens”, ressaltando uma

multiplicidade de “visões do mundo”.110

Tal assertiva apenas corrobora a afirmação de

Bakhtin a respeito de quem fala no romance, pois, segundo o crítico, “O plurilingüismo

penetra no romance, por assim dizer, em pessoa, e se materializa nele nas figuras das

pessoas que falam, ou, então, servindo como um fundo ao diálogo, determina a

ressonância especial do discurso direto do romance”111

. Ocorre exatamente deste modo

em La guerra del fin del mundo, quando diversos personagens assumem o foco

narrativo, tendo este sido dividido basicamente em duas linhas mestras: a visão dos

republicanos e a dos sertanejos. Duas delas, entretanto, ambas referentes a dois

107

VARGAS LLOSA, M. Peixe na água, p. 286. 108

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, cuarto capítulo, p. 464. 109

HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo, p. 30. 110

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 44. 111

BAKHTIN, M. A pessoa que fala no romance. In.: Questões de literatura e de estética, p. 134.

61

personagens fundamentais, chamam bastante a nossa atenção: a do Barão de Cañabrava,

personagem já citado, e a do jornalista míope. O longo diálogo entre os dois ao longo do

quarto capítulo explicita a construção polifônica proposta por Vargas Llosa ao longo do

romance. 112

– Se están olvidando de Canudos – dijo el periodista miope, con voz que

parecía eco –. Los últimos recuerdos de lo sucedido se evaporarán con el éter y la

música de los próximos Carnavales, en el Teatro Politeama.

– ¿Canudos? – murmuró el Barón –. Epaminondas hace bien en querer que no

se hable de esa historia. Olvidémosla, es lo mejor. Es un episodio desgraciado, turbio,

confuso. No sirve. La historia debe ser instructiva, ejemplar. En esa guerra nadie se

cubrió de gloria. Y nadie entiende lo que pasó. Las gentes han decidido bajar una

cortina. Es sabio, es saludable.

– No permitiré que se olviden – dijo el periodista, mirándolo con la dudosa

fijeza de su mirada –. Es una promesa que me he hecho.

(…)

– ¿Cómo? – dijo, porque sí, para llenar el vacío.

– De la única manera que se conservan las cosas – oyó gruñir al visitante –.

Escribiéndolas. – También me acuerdo de eso – asintió el Barón –. Usted quería ser

poeta, dramaturgo. ¿Va a escribir esa historia de Canudos que no vio? 113

De acordo com Peter Burke, “Nós nos deslocamos do ideal da Voz da História

para aquele da heteroglossia, definida como „vozes variadas e opostas‟.”114

Deste modo,

a fragmentação se apresenta de forma constante ao longo da narrativa, expondo os

diversos pontos de vista dos diferentes personagens que povoam o texto. No trecho

abaixo, o jornal do deputado Epaminondas Gonçalves expõe de modo claro e direto o

papel exercido por aquela supracitada forma de poder já completamente consolidado no

continente europeu e que despontava com muita força em nosso país. Era a força da

impressa, não apenas expressando, mas também conduzindo a visão do Brasil do litoral,

do Brasil das capitais, do Brasil da burguesia emergente, do Brasil dos “civilizados”,

enfim.115

Segundo Zygmut Bauman em Modernidade e ambivalência, o estado moderno

havia começado a construir uma sociedade racionalmente planejada, era o que ele

chamava de “Estado Jardineiro”, no qual as ervas daninhas deveriam ser destruídas para

que as plantas úteis pudessem sobreviver. Deste modo, o quarto poder clamava a favor

da aniquilação daqueles “estranhos” que impediam a construção da sociedade

moderna.116

112

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 44. 113

VARGAS LLOSA, La guerra del fin del mundo, Libro Cuarto, primer capítulo, p. 365. 114

BURKE, Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro, in: A escrita da história, p.15. 115

SEVCENKO, N. Literatura como missão, p. 100. 116

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalencia, p. 29.

62

II

Un Brasil Unido, Una Nación Fuerte

JORNAL DE NOTÍCIAS

(Propietario Epaminondas Gonçalves)

Bahia, 3 de Enero de 1897

La Derrota de la Expedición del Mayor Febronio de Brito

en el Sertón de Canudos

Nuevos Desarrollos

EL PARTIDO REPUBLICANO PROGRESISTA ACUSA AL GOBERNADOR Y AL

PARTIDO AUTONOMISTA DE BAHÍA DE CONSPIRAR CONTRA LA REPÚBLICA

PARA RESTAURAR EL ORDEN IMPERIAL OBSOLETO

El cadáver del “agente inglés”

Comisión de Republicanos viaja a Río para pedir intervención del Ejército Federal

contra fanáticos subversivos

TELEGRAMA DE PATRIOTAS BAHIANOS AL CORONEL MOREIRA CÉSAR:

“¡SALVE A LA REPÚBLICA!” 117

Outro exemplo de destaque em relação a essa fragmentação proposta por Peter

Burke refere-se à já mencionada participação de Galileo Gall, nas idealizações criadas

por Vargas Llosa. O militante revolucionário, principalmente ao longo da primeira parte

do romance, expressa seu ponto de vista através de algumas cartas que enviava para o

jornal anarquista L’Étincelle de la Révolte de Lyon. Elas demonstram seu entusiasmo

por uma revolução inesperada, que estaria sendo gestada naquele lugar estranho e

distante.

Ya sabéis, por mi carta anterior, que la Iglesia condena al Consejero y a

Canudos y que los yagunzos le han arrebatado las tierras a un Barón. Pregunté al de la

cicatriz si los pobres del Brasil estaban mejor cuando la monarquía. Me repuso en el

acto que sí, pues era la monarquía la que había abolido la esclavitud. Y me explicó que

el diablo, a través de los masones y los protestantes, derrocó al Emperador Pedro II para

restaurarla. Como lo oís: el Consejero ha inculcado a sus hombres que los republicanos

son esclavistas. (Una manera sutil de enseñar la verdad, ¿no es cierto?, pues la

explotación del hombre por los dueños del dinero, base del sistema republicano, no es

menos esclavitud que la feudal.) 118

117

VARGAS LLOSA, M, La guerra del fin del mundo, Libro Dos, según capítulo, p. 139. 118

Ibid., Libro Uno, quinto capítulo, p. 94.

63

Entretanto, com o desenrolar da seqüência textual, toda vez que o foco narrativo

se volta para o escocês, é visível o crescimento de sua angústia diante da consciência a

respeito de uma situação que se tornara totalmente incompreensível para ele, visto não

conseguir entender o ponto de vista dos jagunços com os quais fizera contato. E pior

ainda: ser incapaz de conseguir a compreensão deles. Ao longo do romance, também, o

foco narrativo se volta muitas vezes para vários seguidores de Antônio Conselheiro e,

na medida em que os acontecimentos vão atingindo o seu ápice, esse foco penetra no

arraial e começa a destacar a visão dos habitantes de Canudos, culminando com a

resistência heróica e desesperada desses personagens diante do cerco que se fechava

sobre eles.

La furia del estruendo que remece al Santuario, lo obliga a cerrar los ojos, a

encogerse, a alzar las manos ante lo que parece una avalancha de piedras. Ciego, oye el

ruido, los gritos, las carreras, se pregunta si ha muerto y si es su alma la que tiembla.

Por fin, oye a João Abade: “Cayó el campanario de San Antonio”. Abre los ojos. El

Santuario se ha llenado de polvo y todos han cambiado de lugar. Se abre camino hacia

el camastro, sabiendo lo que le espera. Divisa entre la polvareda la mano quieta sobre

la cabeza del León de Natuba, arrodillado en la misma postura. Y ve al Padre Joaquim,

con la oreja pegada al pecho flaco. Luego de un momento, el párroco se incorpora,

desencajado:

– Ha rendido su alma a Dios – balbucea y la frase es para los presentes más

estruendosa que el estrépito de afuera. 119

Peter Burke afirma que “a história da vida cotidiana passou a ser considerada,

por alguns historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais

deve ser relacionado”.120

Tal ocorre nesse romance, numa conseqüência direta de um

recurso também largamente valorizado pelos escritores do chamado Novo Romance

Histórico. Na verdade, conforme já visto ao longo dessa análise, a visão do cotidiano

caminha lado a lado com essa fragmentação largamente explorada por Vargas Llosa.

Dentre elas, a mais importante de todas se evidenciará ao longo do quarto capítulo,

quando o foco narrativo se volta para o jornalista míope.

Y sin embargo ninguno se sorprendió cuando João Abade anunció que iban a

atacar mañana. Sabía todo. Cañonearían Canudos toda la noche, para ablandar las

defensas, y a las cinco de la madrugada comenzaría el asalto de las tropas. Sabía por

qué sitios. Hablaban tranquilos, se repartían los lugares, tú espéralos aquí, hay que

cerrar la calle allá, levantaremos barreras acá, mejor yo me muevo de aquí por si

mandan perros de este lado. ¿Podía el Barón imaginar lo que él sentía, escuchando eso?

[…]

119

Ibid., Libro Cuatro, quinto capítulo, pp. 516-517. 120

BURKE, P. A nova história, seu pasado, seu futuro. In.: BURKE,P. A escrita da história, p. 23.

64

– Ahora sé que en ese momento sólo nueve cañones disparaban contra Canudos

y que nunca dispararían más de dieciséis al mismo tiempo – dijo el periodista miope –.

Pero esa noche parecían mil, parecían como si todas las estrellas del cielo se hubieran

puesto a bombardearnos.121

A narração deste personagem a respeito do cerco a Canudos põe em relevo o

aspecto polifônico do romance. A visão de dentro da vila sitiada pelas forças militares

aumentará sobremaneira a dramaticidade do desfecho iminente, contrastando com a

visão euclidiana, cujo desejo de objetividade histórica poderia ter esvaziado essa

imagem. Tal não ocorre, entretanto, uma vez que, conforme já mencionado, a percepção

do escritor brasileiro levou sua análise dos acontecimentos bem acima do esperado por

ele. Ressalte-se aqui apenas o papel da ficção que, devido a sua proposta de liberdade,

pode ir muito além da suposta isenção pregada por aqueles que querem dar

preponderância ao fato histórico.

121

Ibid., pp. 428-429.

65

04.02. OS PERSONAGENS EM EUCLIDES E EM VARGAS LLOSA

DODECASSÍLABOS

Estala na mudez universal das coisas

estrídulo tropel de cascos sobre pedras

e naquela assonância ilhada no silêncio

o cataclismo irrompe arrebatadamente.

O doer das folhas urticantes

corta a região maninha das caatingas

fazendo vacilar a marcha dos exércitos

sob uma irradiação de golpes e de tiros.

Por fim tudo se esgota e a situação não muda,

lembrando um bracejar imenso, de tortura,

em longo apelo triste, que parece um choro.

Num prodigalizar inútil de bravura

desaparecem sob as formações calcáreas

as linhas essenciais do crime e da loucura.122

Augusto de Campos e Euclides

da Cunha (parceria póstuma)

Outro aspecto fundamental na obra de Vargas Llosa no que se refere à

comparação entre a História e a Literatura reporta-se à transformação de alguns

personagens históricos em seres fictícios. É evidente que o romancista, ao utilizar Os

sertões como ponto de partida, procurou apresentar uma base documental sólida e

consistente, tendo criado, conforme já salientado, um palimpsesto típico e, por isso

mesmo, fundamental para a sua colocação como uma espécie de modelo do Novo

Romance Histórico. É possível afirmar que, neste caso, o distanciamento no tempo

trouxe para o escritor peruano um conhecimento muito mais completo a respeito das

ações e decisões das pessoas que participaram daquele conflito. Isso provocou uma série

de alterações capazes de ressaltar a visão subjetiva, porém muito mais ampla, de Vargas

Llosa na construção desses personagens, contrastando com a pretensão de objetividade

assumida por Euclides.

El hombre era alto tan flaco que parecía siempre de perfil. Su piel era oscura,

sus huesos prominentes y sus ojos ardían con fuego perpetuo. Calzaba sandalias de

pastor y la túnica morada que le caía sobre el cuerpo recordaba el hábito de esos

misioneros que, de cuando en cuando, visitaban los pueblos del sertón bautizando

muchedumbres de niños y casando a las parejas amancebadas. Era imposible saber su

edad, su procedencia, su historia, pero algo había en su facha tranquila, en sus

costumbres frugales, en su impertubable seriedad que, aun antes de que diera consejos,

atraía a las gentes.123

122

CAMPOS, A e CUNHA, E. Jornal de poesia. In. www.revista.agulha.nom.br/euclid.html.última

consulta em 23 de julho de 2010. 123

VARGAS LLOSA, M. Libro Uno, primer capítulo, p. 15.

66

…E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros,

barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um

hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apóia o passo

tardo dos peregrinos...

[...]

O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.

Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta

condensava o obscurantismo de três raças.

E cresceu tanto que se projetou na História...124

Como nos grandes épicos hollywoodianos, a descrição de Antônio Conselheiro

surge diante do leitor, num crescendo, tendo como pano de fundo o cenário do sertão

nordestino. Esse aspecto descritivo será uma constante ao longo do romance, expondo o

domínio de uma técnica a qual poderíamos chamar de cinematográfica. Após a leitura

do texto de Euclides, entretanto, cumpre chamar a atenção para o fato de as estratégias

serem muito parecidas. A leitura das duas obras, no entanto, apresenta mudanças

bastante significativas. Salta aos olhos, neste caso, a inversão feita por Vargas Llosa em

relação à narrativa euclidiana, pois, se este se havia preocupado inicialmente com os

aspectos naturais da região e com a gênese da formação do sertanejo, segundo um

determinismo mesológico, numa longa análise geográfica e social, para somente depois

apresentar o elemento humano, o escritor peruano, de imediato, põe o homem na frente

da paisagem. E não se trata de um homem qualquer, mas de Antônio Vicente Mendes

Maciel, conhecido como “o Conselheiro”.

O aprofundamento dessas leituras leva o leitor a outra constatação: Euclides da

Cunha mostra a figura do Conselheiro na segunda parte de Os sertões, “O homem”,

somente depois de um exame minucioso a respeito da constituição do homem brasileiro.

Ele enfatiza a ação do meio na fase inicial da formação das raças e, ao voltar-se para o

Nordeste, apresenta a provável origem do jagunço. Chega finalmente ao criador de

Canudos, exibindo-o como um documento vivo do atavismo, “um gnóstico bronco”125

.

Era, ainda segundo Euclides, “um grande homem pelo avesso”126

, representante natural

do meio em que nascera. Tal descrição criaria uma imagem bastante negativa deste

personagem, não exatamente como a de Vargas Llosa, que destaca o forte carisma

exercido pelo pregador sobre o povo daquela região. Outro aspecto a ser ressaltado

refere-se ao fato de, em Os sertões, Euclides ter feito um mergulho na vida pregressa do

personagem, detalhando seus problemas familiares, seus primeiros reveses, chegando

124

CUNHA, E. Os sertões, pp. 266-268. 125

Ibid., p. 254. 126

Ibid., p. 255.

67

até a sua “queda”. Euclides, em sua lógica, quer mostrar “como se faz um monstro”127

.

As peregrinações e os martírios ajudariam a alimentar a lenda que o “projetaria na

história”. Vargas Llosa, por outro lado, enfatiza o tom misterioso do personagem,

acentuando-lhe o aspecto romanesco, pois “era impossível saber sua idade, sua

procedência e sua história”. E em vez da “face escaveirada”, acompanhada do “olhar

fulgurante e monstruoso”, temos um homem com “aspecto tranqüilo e costumes

frugais”, o qual, “mesmo antes de dar conselhos, era capaz de atrair a todos”. Euclides,

coerente com sua formação, trouxe ao leitor uma imagem negativa de Antônio

Conselheiro. Vargas Llosa, por outro lado, deu-lhe outra apresentação, mostrando a

importância do seu carisma, mas destacou, como veremos posteriormente, o aspecto

fanático do pregador. Importa ressaltar, porém, que a controvérsia em torno deste

personagem é fundamental para a projeção de sua imagem, a qual, segundo o poeta

popular Ivanildo Vila Nova, teria, conforme destaca o Anexo 1 deste trabalho, página

111, sua figura resgatada pela história.

Em relação às diversas pessoas que seguiram o pregador para fundar Canudos e

trabalhar para o crescimento da comunidade, ocorre uma inversão. Euclides muito

pouco fala a respeito desses personagens e, quando a eles se refere, ressalta neles, de

forma constante, o aspecto facinoroso ou, no mínimo, grotesco. O escritor peruano,

porém, chama a atenção para a angústia de cada seguidor do Conselheiro e, deste modo,

seus dramas são expressos, também, com bastante intensidade. Ao contrário do

ignorado por Euclides, o momento da conversão de cada um deles, e seus possíveis

motivos, será exposto detalhadamente, destacando as qualidades que surgirão neles a

partir daquele momento tão significativo em suas vidas. Deste modo, Vargas Llosa

enfatiza dois fatores importantes no relacionamento entre Antônio Conselheiro e os

moradores de Canudos: a força da imagem projetada pelo pregador, resultante de sua

maneira de agir e de ser, acrescida ao poder de sua capacidade de indução, resultante de

sua oratória. Esses dois aspectos seriam fundamentais para o convencimento daquelas

consciências e para suas respectivas transformações, culminando com a conseqüente

aglutinação de todos à vida comunitária daquela cidade.

La primera vez que vio al Consejero, el Beatito tenía catorce años y había

sufrido, pocas semanas antes, una terrible decepción. El padre Moraes, de la misión

lazarista, le echó un baño de agua helada al decirle que no podía ser sacerdote, pues era

hijo natural. Lo consoló, explicándole que igual se podía servir a Dios sin recibir las

órdenes, y le prometió hacer gestiones con un convento capuchino, donde talvez lo

127

Ibid., pp. 266-268.

68

recibirían como hermano lego. El Beatito lloró esa noche con sollozos tan sentidos, que

el Tuerto, encolerizado, lo molió a golpes por primera vez después de muchos años.

[…]

Después de observarlo unos segundos, sin pestanear, el Consejero asintió y una

sonrisa cruzó brevemente su cara que, diría cientos de veces al Beatito en los años

venideros, fue su consagración. El Consejero señaló un pequeño espacio de tierra libre,

a su lado, que parecía reservado para él entre el amontonamiento de cuerpos. El

muchacho se acurrucó allí, entendiendo, sin que hicieran falta sus palabras, que el

Consejero lo consideraba digno de partir con él por los caminos del mundo, a combatir

contra el Demonio. Los perros trasnochadores, los vecinos madrugadores de Pombal

oyeron mucho rato todavía el llanto del Beatito sin sospechar que sollozos eran de

felicidad. 128

No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato

espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio

sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando,

insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e

transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as

novidades existentes.129

A descrição do Beatinho, provavelmente o mais importante auxiliar do

Conselheiro, acompanhada de sua adesão à causa do pregador, é apenas a primeira

dentre outras que surgirão ao longo de La guerra del fin del mundo. Quase todas

baseadas em personagens extraídos do mundo real, as descrições vão-se sucedendo e,

em cada uma delas, as motivações para cada conversão são analisadas detalhadamente

por Vargas Llosa, sempre focalizando o aspecto pessoal daqueles seres sofridos, sem

deixar, porém, de fazer uma análise das implicações sociais geradoras do drama vivido

por cada um deles nos diversos episódios. O contraste estabelecido entre as duas

descrições acima é bastante evidente, pois Vargas Llosa humaniza o personagem,

enquanto Euclides o ridiculariza. Essa imagem será uma constante ao longo das duas

obras, pois o escritor peruano procura sempre sensibilizar o leitor com o drama

individual daquelas pessoas que haviam largado suas vidas para seguir as prédicas do

conselheiro. E no momento em que a narrativa se encaminha para o desfecho, o escritor

peruano acentua-lhes o tom épico e heróico. Já o escritor brasileiro, embora deixe

entrever também a epopéia dos defensores da cidade, procura citar apenas o que ele,

como repórter da época, acompanhante da tropa e republicano exaltado, sem ter estado

dentro de Canudos durante o cerco, pôde observar. Ressalte-se que, quando descreve os

diversos personagens do grupo de Antônio Conselheiro, Euclides evidencia-lhes o

aspecto selvagem, bárbaro e até cruel, mostrando-os como bandidos perigosos. Vargas

128

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, primer capítulo, p. 23. 129

CUNHA, E. Os sertões, p.313.

69

Llosa, por outro lado, acentua a humanização dessas pessoas conseguida através do

arrependimento, da conversão e de uma vida dedicada aos padrões cristãos pregados

pelo Conselheiro na comunidade.

El Brasil del Sur ha entendido ya que la República es irreversible. Se lo hemos

echo entender. Pero aquí, en Bahia, queda mucho aristócrata que no se resigna. Sobre

todo desde la muerte del Mariscal; con un civil sin ideales en el gobierno creen que se

puede dar marcha atrás. No se resignarán hasta sufrir un buen escarmiento. Y ésta es la

ocasión, señores. 130

Ora de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era

quem parecia haver herdado a tenacidade rara do grande debelador de revoltas.

O fetichismo político exigia manipansos de farda.

Escolheram-no para novo ídolo.

[...]

Aos que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que estivesse naquele

homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o campeador brilhante,

ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinham os traços característicos nem

de um, nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo. 131

Da mesma forma que Vargas Llosa descreve os personagens mais marcantes que

habitavam Canudos, também o faz com todos os demais, incluindo, neste caso, militares

das mais diversas patentes, que povoam a narrativa. Euclides, neste caso, como pôde

acompanhar de perto o deslocamento da tropa e como via a história a partir do ângulo

daqueles que pretendiam conduzi-la, teve condições de fazer descrições bastante

detalhadas desses personagens. Sobressai, neste caso, a figura do coronel Moreira

César, o qual, naquele momento, dispunha de muito prestígio dentro do Exército

Brasileiro. A descrição que Vargas Llosa faz deste militar, tão minuciosa quanto a de

Euclides, põe em relevo a crítica que esse autor faz aos extratos urbanos e à burguesia

emergente, as quais passaram a exaltar os militares, vendo-os como salvadores da

pátria. Neste caso, os governos civis seriam sempre incapazes de exercer o poder a

contento, deixando-se dominar por corruptos de vários matizes, além de serem presas

fáceis para agitadores e revolucionários de diversos tipos.

Ressalte-se que a imagem desse personagem construída por Euclides ao longo de

sua obra em nada difere da de Vargas Llosa, pois é possível perceber, nos dois casos,

que Moreira César representava um tipo de liderança militar muito comum nos países

da América Latina desde a separação de suas matrizes ibéricas, tendo-se acentuado no

130

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, tercer capítulo, p. 184. 131

CUNHA, E. Os sertões, pp. 420-423.

70

Brasil a partir da Proclamação da República, criando o chamado “jacobinismo de

caserna”. Tal liderança conduziria os diversos países do continente a uma série de

golpes militares ao longo do século XX, deixando aflorar ditaduras de cunho fascista.

As elites burguesas apreciavam a idéia de que somente o poder exercido com mão de

ferro conseguiria trazer o progresso e criar uma sociedade moderna, além de reduzir

consideravelmente a possibilidade de movimentos reivindicatórios ou que pudessem

produzir qualquer tipo de contestação. Euclides denuncia, já naquela época, a fraqueza

da sociedade civil, sempre ansiosa por um “manipanso de farda”, e a excessiva

intromissão dos militares na política nacional. Vargas Llosa faz o mesmo tipo de

denúncia, acentuando o autoritarismo e o fanatismo do coronel, de modo a mostrar que

suas atitudes, além de não conseguirem produzir as mudanças necessárias à sociedade,

seriam, também, sua perdição naquela campanha.

Rufino tenía en la mano una suerte de puñal de madera. Lo vio soltar a Jurema,

empujarla, agazaparse para embestir:

– Qué clase de bicho eres, Gall – lo oyó decir –. Hablas mucho de los pobres,

pero traicionas al amigo y ofendes la casa donde te dan hospitalidad.

Lo calló, lanzándose contra él, ciego de furia. Habían comenzado a

desrtrozarse y Jurema los miraba, estupidizada de angustia y fatiga.132

“Ya le pusiste la mano en la cara, Rufino”, piensa Jurema. “¿Qué has ganado

con eso, Rufino? ¿De que te sirve la venganza? Si has muerto, si me has dejado sola en

el mundo, Rufino?” No llora, no se mueve, no aparta los ojos de los hombres inmóviles.

Esa mano sobre la cabeza de Rufino le recuerda que, en Queimadas, cuando para

desgracia de todos Dios hizo que viniera a ofrecer trabajo a su marido, el forastero

palpó una vez la cabeza de Rufino y leyó sus secretos, como el brujo Porfirio los leía en

las hojas de café y doña Casilda en una vasija llena de agua.133

Os episódios acima remetem a dois personagens criados por Vargas Llosa com o

intuito de instaurar o tom novelesco da narrativa. Segundo Seymour Menton, na

pregação do escritor peruano contra qualquer tipo de extremismo, Rufino, esposo de

Jurema, seria o quarto fanático, depois de Antônio Conselheiro, Coronel Moreira César

e Galileo Gall. Diferente dos outros, porém, que lutavam pelas causas que conduziam o

eixo dos acontecimentos nacionais presentes na região de Canudos, o rastreador tem

uma causa que se poderia dizer restrita, exclusivamente pessoal. Ele se sente

pressionado por seus próximos a limpar sua honra tanto matando a sua esposa Jurema –

porque foi violada por Gall – como esbofeteando a este antes de matá-lo ou no mesmo

132

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, sexto capítulo, p. 305. 133

Ibid., Libro Tres, sexto capítulo, p. 315.

71

ato e matá-lo.134

A voz de seu amigo Caifás não parava de repercutir em sua mente “La

muerte no basta, no lava la afrenta. La mano o el chicote en la cara, en cambio, si.

Porque la cara es tan sagrada como la madre o la mujer.”135

A quebra do código

matrimonial vigente, não apenas naquela região, mas em toda a América Latina,

conduzia seu desejo cego de vingança. E Rufino não ficaria em paz enquanto não

encontrasse o escocês e reparasse, de forma violenta, o dano que este lhe causara.

A presença de Jurema, ex criada da esposa do Barão de Cañabrava, dá o tom

diferente proposto pelo autor. Tudo ocorre involuntariamente quando essa mulher,

esposa de Rufino, ao ajudar Galileo Gall a escapar do atentado provocado por

Epaminondas para, após a morte do revolucionário, imputar-lhe a pecha de monarquista,

acaba tendo um relacionamento sexual com o escocês. Segundo Renata Wasserman, “é

uma mulher que torna possível a narração em La guerra del fin del mundo, quando por

amor faz com que a testemunha dos últimos dias da cidade, o jornalista míope sem

óculos, consiga „ver‟ o que depois nos conta dos acontecimentos.”136

Depois de ter

mudado a trajetória de Galileo, Jurema, em meio ao caos e à destruição, faz amor com o

jornalista míope, contribuindo de maneira significativa para a mudança vivenciada por

esse personagem.

Ao contrário de Euclides, que utiliza a guerra como motivação para sua obra,

esvaziando a figura feminina e desconsiderando qualquer aspecto sentimental, Vargas

Llosa envereda por esse caminho. Afinal, Jurema não apenas seria preponderante na

transformação da vida do jornalista míope, mas também na de Pajeú, visto na Bahia

como um bandido muito perigoso, agora um dos líderes mais importantes dentre os

defensores de Canudos. O jagunço, apaixonado por ela, havia-se tornado um homem

mais compreensivo e, de certo modo, bem menos violento. Afinal, ele chegara até a

aceitar o fato de que Jurema houvesse escolhido o jornalista míope, não ele. O encontro

dela com Galileo provocaria também profundas alterações na trajetória do militante

revolucionário, cuja postura era tão ascética e misógina, a ponto de julgar que o sexo

poderia diminuir consideravelmente o fervor revolucionário. As atitudes de Jurema ao

longo dos Livros Três e Quatro se contrapõem ao “fanatismo exacerbado” de Rufino e

de Galileo. Sua fala, questionando o fato de o marido, agora morto, ter posto a mão na

cara do escocês, é bem representativa. Afinal, “o que ele havia ganhado com isso?”

134

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 74. 135

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, según capítulo, p. 197. 136

WASSERMAN, R. Mapeando os sertões: congruências. In.: BERNUCCI, L.M. (org.) Discurso,

Ciência e Controvèrsia em Euclides da Cunha, p. 179.

72

– ¡Prejuicioso! !Insensato! !Vanidoso! !Terco! – gritó, ahogándose –. No soy tu

enemigo, tus enemigos son los que tocan esas cornetas ¿No las oyes? Eso es más

importante que mi semen, que el coño de tu mujer, donde has puesto tu honor, como un

burgués imbécil.

[…]

– No moriré por las miserias que hay en mí, Rufino. – rugía Gall –. Mi vida

vale más que un poco de semen, infeliz. 137

A cena acima descreve o desespero de Galileo ao tentar fugir da perseguição de

Rufino. O anarquista, que havia lutado na Comuna de Paris em 1871, acreditava que sua

experiência revolucionária no continente europeu seria suficiente para inseri-lo na luta

de Antônio Conselheiro e de seus seguidores. Esse personagem foi criado por Vargas

Llosa para, conforme já mencionado no capítulo anterior, criticar o que ele considerava

uma postura cega e, às vezes, pueril de muitos extremistas de esquerda. As atitudes de

Galileo remetem ao escritor peruano suas experiências de juventude com seus antigos

companheiros do Cahuide. De acordo com Vargas Llosa, o fanatismo do escocês

afastava-o da realidade, em vários aspectos. É o que ocorre na cena descrita acima,

quando o escocês tenta, de forma racional, dialogar com o rastreador, procurando fazê-

lo abandonar um código de honra que lhe havia sido inculcado de modo permanente ao

longo de sua vida. Vargas Llosa enfatiza que a “cegueira revolucionária” de Galileo

toldara-lhe a compreensão. Em vez de morrer lutando contra a opressão do Estado

burguês, em vez de morrer lutando para transformar a sociedade, o militante

anticlerical, ao qual a ironia do escritor atribuíra uma postura nada diferente da de um

missionário cristão ou de um monge de alguma dessas ordens mendicantes, morreria

ingloriamente por causa de um código de honra burguês assimilado pelo sertanejo. Ele

havia sucumbido diante de uma suposta armadilha do destino, acentuando o tom

melodramático da narrativa.

– Muchos se han arruinado ya, allá en el interior – dijo –. Yo he perdido dos

haciendas. Esta guerra civil va a hundir y matar a muchísima gente. Si nosotros

seguimos destruyéndonos, ¿cuál será el resultado? Lo perderemos todo. Aumentará el

éxodo hacia el Sur y hacia el Marañón. ¿En qué quedará convertida Bahía? Hay que

hacer las paces, Epaminondas. Olvídese de las estridencias jacobinas, deje de atacar a

los pobres portugueses, de pedir la nacionalización de los comercios y sea práctico. El

jacobinismo murió con Moreira César. Asuma la Gobernación y defendamos juntos, en

esta hecatombe, el orden civil. Evitemos que la República se convierta aquí, como en

tantos países latino-americanos, en un grotesco aquelarre donde todo es caos,

cuartelazo, corrupción, demagogia…138

137

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, sexto capítulo, pp. 303-305.. 138

Ibid., Libro Tres, séptimo capítulo, p. 357.

73

Outro personagem criado por Vargas Llosa, de importância vital para o

desenvolvimento da narrativa, é o já comentado Barão de Cañabrava. Segundo Seymour

Mentón, “el Barón llega a ser el coprotagonista de la novela, opacado sólo por el

periodista miope, y a veces el portavoz ideológico de Vargas Llosa.”139

A postura

“camaleônica” do barão, no bom sentido, ainda segundo Mentón,140

é fundamental para

que o escritor peruano possa expor sua condenação ao fanatismo, já que, de acordo com

Vargas Llosa, esse tipo de comportamento seria o único responsável por todos os

fatores que haviam precipitado a região de Canudos em direção à dor e à destruição. A

flexibilidade desse personagem o leva à busca de adaptação a todas as situações,

contrapondo-se à já mencionada cegueira dos fanáticos. Ele racionaliza, procurando a

reconciliação com inimigos cujas idéias e interesses eram inconciliáveis com os seus.

Ele tenta fazê-los enxergar que o radicalismo, a mesquinharia e o egoísmo seriam a

perdição de todos. De certa forma, existe uma menção à instabilidade das instituições

democráticas, uma realidade vivida por Vargas Llosa no Peru, mas também presente nos

demais países da América Latina. Para o escritor, o barão estaria dando uma lição de

diálogo e tolerância.

– ¿De qué se ríe ahora? – dijo el Barón de Cañabrava.

– Es demasiado ruin para poder contárselo – balbuceó el periodista miope.

Permaneció ensimismado y, de pronto, alzó la cara y exclamó: – Canudos ha cambiado

mis ideas sobre la historia, sobre el Brasil, sobre los hombres. Pero, principalmente,

sobre mí.

– Por el tono en que lo dice, no ha sido para mejor – murmuró el Barón.

– Así es – susurró el periodista –. Gracias a Canudos tengo un concepto muy

pobre de mí mismo.141

Outro aspecto fundamental para a compreensão do texto ocorre quando Vargas

Llosa não apenas reescreve o manuscrito, mas também seu próprio autor. O

comportamento idealista do jornalista míope em relação a sua profissão e à vida como

um todo dará um tom bastante peculiar a esse personagem. Acrescente-se a isso sua

dificuldade de adaptação à realidade cotidiana e teremos alguém cujo procedimento se

destaca por atitudes, na maioria das vezes, inusitadas. Espelhado em Euclides da

Cunha, o homem da cidade, o republicano convicto, ele também se desencantará com a

selvageria perpetrada pelo exército naquela guerra, a qual acabaria identificando como

completamente inútil e sem nenhum sentido.

139

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 75. 140

Ibid., p. 71. 141

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 429.

74

E se a pena de Euclides nos mostrou as vicissitudes da terra e a visão da

desgraça sofrida pelos jagunços, que iam sendo massacrados pelo exército, o foco

narrativo direcionado no ponto culminante do romance para o jornalista míope nos dá

uma imagem não percebida por Euclides em Os sertões. Ao contrário do escritor, esse

personagem, que o representa, conseguiu penetrar em Canudos, ver de perto e sentir o

drama daquelas pessoas até então esquecidas pelo poder público e, neste caso,

violentadas por um estado discricionário e destruidor. Na verdade, tal qual Euclides, ele

também não havia visto muita coisa, pois, conforme diz ao barão num longo diálogo ao

longo do Livro Quatro: “se me rompieron los anteojos el día que deshicieron al Séptimo

Regimiento. Estuve allí cuatro meses viendo sombras, bultos, fantasmas.” Diante da

objeção do barão, ele acrescentou: “Aunque no las vi, sentí, oí, palpé, olí las cosas que

pasaron. Y, el resto, lo adiviné.”142

A miopia do jornalista, quase cegueira nestes momentos finais, foi inspirada na

“miopia” de Euclides, pois seu embasamento positivista e seu ardor republicano

haviam-lhe ofuscado a compreensão dos fatos. Vargas Llosa quer ressaltar que todos,

sem exceção, têm uma visão bastante limitada e parcial dos acontecimentos. Todos

enxergam somente até onde a “miopia” lhes permite. E se Euclides, mesmo de fora,

conseguiu perceber o massacre que ocorria dentro de Canudos, o jornalista míope, de

dentro, mesmo sem os óculos, que ele havia perdido, conseguiu perceber muito mais.

Da mesma forma que as imagens projetadas numa tela de cinema, a tragédia daquele

povo excluído salta a nossos olhos, numa visão dantesca e apocalíptica, mas

inesquecível.

Hubo outro silencio, largo, interrumpido por um zumbar de moscardones.

– En Canudos no hubo heridos – dijo el periodista – Los llamados

sobrevivientes, esas mujeres y niños que el Comité Patriótico de su amigo Lelis

Piedades ha repartido por el Brasil, no estaban en Canudos, sino en localidades de la

vecindad. Del cerco sólo escaparon siete personas.

– ¿También sabe eso? – levantó la vista el Barón.

– Yo era uno de los siete – dijo el periodista miope. Y, como queriendo evitar

una pregunta, añadió de prisa: – La estadística que les preocupaba a los yagunzos era

otra. Cuántos morirían de bala y cuántos de cuchillo. 143

O fato de Vargas Llosa ter ficcionalizado Euclides, transformando-o no

jornalista míope, o grande protagonista do romance, provocou um aprofundamento do

142

Ibid., Libro Cuatro, primer capítulo, p. 364. 143

Ibid., Libro Cuatro, según capítulo, p. 392.

75

que poderia ser chamado de visão euclidiana, uma vez que o jornalista, mesmo

distinguindo apenas contornos, mesmo sem ter visto quase nada, conseguiu enxergar

muito além. Seu relato a partir de sua experiência na cidadela acossada é de singular

importância para a grandiosidade da imagem épica que salta aos olhos do leitor, o qual

pode se sentir tão aterrorizado quando os defensores de Belo Monte. Afinal, ele vivera

o cotidiano do apocalipse que se abatera sobre a “Tróia de Taipa”. O jornalista míope

havia-se integrado a Belo Monte.

76

05. CAPÍTULO 4

VARGAS LLOSA, EUCLIDES

E O BRASIL DE HOJE

NOTÍCIAS DO BRASIL

(OS PÁSSAROS TRAZEM)

Uma notícia tá chegando lá do Maranhão

não deu no rádio, no jornal ou na televisão

veio no vento que soprava lá no litoral

de Fortaleza, de Recife e de Natal

A boa-nova foi ouvida em Belém, Manaus,

João Pessoa, Teresina e Aracaju

e lá do norte foi descendo pro Brasil central

chegou em Minas, já bateu bem lá no sul

Aqui vive um povo que merece mais respeito, sabe?

e belo é o povo como é belo todo amor

aqui vive um povo que é mar e que é rio

e seu destino é um dia se juntar

O canto mais belo será sempre mais sincero, sabe?

e tudo quanto é belo será sempre de espantar

aqui vive um povo que cultiva a qualidade

ser mais sábio que quem o quer governar

A novidade é que o Brasil não é só litoral

é muito mais, é muito mais que qualquer zona sul

tem gente boa espalhada por esse Brasil

que vai fazer desse lugar um bom país

Uma notícia tá chegando lá do interior

não deu no rádio, no jornal ou na televisão

ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil

não vai fazer desse lugar um bom país144

Milton Nascimento & Fernando Brant

144

NASCIMENTO, M. e BRANT, F. Notícias do Brasil. In: Caçador de mim.

77

05.01. A LITERATURA DO PÓS-MODERNISMO

Para Camus, el revolucionario es el que pone el hombre al servicio de las ideas,

la voluntad de sacrificar el hombre que vive por el hombre venga, ¿Qué es la moral de

una técnica regida por la política, que prefiere la justicia a la vida y que está en el

derecho de mentir y matar de acuerdo con el ideal. El rebelde puede mentir y matar,

pero sabe que no tiene derecho a hacerlo, y que ello pone en peligro su causa, admite

que mañana tiene privilegios en el presente, con el fin justifica los medios y las causas

de la política que sea la consecuencia de una causa superior: la moral.145

Mario Vargas Llosa

Uma nova representação da realidade ressalta aos olhos do leitor, pois Vargas

Llosa, afinado com toda uma série de mudanças produzidas ao longo do século XX e

procurando agregar-se a novas posturas ideológicas ocorridas entre os anos 60 e 70,

desconfia da suposta verdade única preconizada por Euclides, cujo credo positivista,

conforme salientado, dominava o ideário defendido pelo escritor brasileiro. No caso do

peruano, representante do “boom do romance latino-americano”, era perceptível a ótica

de esquerda, justamente no auge da guerra fria, quando o continente estava sendo

dominado por ditaduras de direita, respaldadas econômica e militarmente pelos norte-

americanos. O processo que havia conduzido as mudanças que culminaram na

revolução cubana estimulava essa proposta de uso da literatura como instrumento de

transformação política e social, uma vez que a expressão advinda dos romances seria

provavelmente a única voz a se destacar naquele momento de censura e opressão. A

prosa de ficção seria então, principalmente se considerarmos o ideário marxista

evidenciado na época, um dos principais canais de conscientização da sociedade. Deste

modo, o romance deveria conter em seu bojo o objetivo declarado de ampliar o

pensamento de esquerda entre jovens estudantes e, de certa forma, angariar simpatias no

meio da classe média ascendente.

Os rumos tomados pelo regime cubano, entretanto, mudariam bastante a postura

de Vargas Llosa em relação à chamada proposta revolucionária de provocar uma

mudança social através da literatura, e o escritor começou a remar, segundo ele, contra

“o vento e a maré”. Associe-se a isso toda uma série de acontecimentos com

desdobramentos contínuos desde o final dos anos 60, principalmente a partir do

momento em que os jovens manifestantes que haviam provocado as jornadas de maio de

68 em Paris tinham sido abandonados pela “esquerda tradicional”, no caso, o Partido

145

VARGAS LLOSA, M. Contra viento y marea, pp. 334-335.

78

Comunista Francês.146

A primavera de Praga, também ocorrida naquele ano, poria a nu,

de forma brutal, a postura ditatorial da máquina soviética. Os desmandos ocorridos no

regime maoísta, principalmente durante a Revolução Cultural, além de inúmeras outras

contradições dos diversos movimentos revolucionários que brotavam em todas as partes

fizeram o escritor peruano repensar seu caminho. O caso Padilha, poeta cubano preso

pelo regime em 1971, seria então, para ele, a gota d‟água em sua esperança de uma via

democrática, não apenas em Cuba, mas na prática adotada por todos aqueles que,

segundo Vargas Llosa, pregavam a chamada utopia socialista.

Que pensar então de uma literatura com uma proposta fechada e dogmática? Ela

deveria também, segundo o escritor, adaptar-se aos diversos acontecimentos produzidos

pelo processo de globalização acelerado a partir dos anos 60. Novos movimentos

sociais, como o feminismo, a luta contra o preconceito racial, a defesa dos imigrantes e

a busca pelos direitos dos homossexuais, tudo isso associado à expansão da educação

superior, serviriam também de combustível para as já citadas jornadas de maio. Uma

Nova Esquerda surgiria no final dos anos 70 com o intuito de confrontar a postura

monolítica da chamada esquerda tradicional. Acrescente-se a isso o processo de

globalização crescente ocorrido nas últimas décadas do século XX, impulsionando uma

série de mudanças nos relacionamentos entre os diversos países, com conseqüentes

alterações também nas relações individuais. Segundo James Petras e Henry Veltmeyer,

este fenômeno poderia ser descrito como “a ampliação e o aprofundamento dos fluxos

internacionais de comércio, capital, tecnologia e informação”. Eles acrescentam que,

pensando na definição da palavra como prescrição, “ela supõe a liberalização dos

mercados nacional e mundial de acordo com a crença de que o livre fluxo de comércio,

capital e informação poderá produzir o melhor resultado para o crescimento e o bem

estar da humanidade.”147

Evidentemente, neste caso, o mundo como “aldeia global”

acabaria recebendo a difusão de valores e práticas culturais associadas a esse

desenvolvimento.

Vargas Llosa vivenciou esses acontecimentos e, como tal, estava atento às

mudanças provocadas por eles. Deste modo, acreditou que a prosa de ficção deveria

também refletir esse avanço das múltiplas facetas expostas pela globalização. Por que

crer em verdades absolutas se o auge da modernidade havia sido marcado com a idéia

de que tudo que era sólido já se havia desmanchado no ar? Havia um descompasso

146

MOTA, C. G. Os bondes da história, In. Revista Cult, nº 126. 147

PETRAS, J e VESTMEYER, H. La globalización desenmascarada, p. 11.

79

entre o que se pregava e o que se fazia. Urgia modificar tudo na esteira do pensamento

pós-moderno, segundo o qual, conforme afirma Linda Hutcheon, uma das coisas para a

qual devemos estar sempre “abertos para escutar” seria aquilo que ela chama de “ex-

cêntrico”. Ela acrescenta que “o pós-modernismo questiona sistemas centralizados,

totalizados, hierarquizados e fechados: questiona, mas não destrói.”148

Essa postura é

supostamente assumida por Vargas Llosa, pelo menos ele assim o crê, na construção de

La Guerra del Fin del Mundo.

Esse romance surgiu na virada dos anos 70, num momento em que o escritor,

segundo a esquerda, passou a ser visto como um neo-conservador, já que se havia

afastado de uma literatura cujos postulados deveriam estar aliados à já citada proposta

política revolucionária. Vargas Llosa, entretanto, parecia pretender, conforme já

salientado, questionar as chamadas “verdades eternas e imutáveis”, em todos os

sentidos. Discordando de qualquer pensamento monolítico e contrariando todos os

dogmas, ele, na verdade, queria ressaltar que tudo não passava de discurso e

representação. Era então necessária uma dessacralização, principalmente no que se

referia à consciência a respeito dos inúmeros pontos de vista presentes na narrativa.

La diversidad humana coexistía en Canudos sin violencia, en medio de una

solidaridad fraterna y un clima de exaltación que los elegidos no habían conocido. Se

sentían verdaderamente ricos de ser pobres, hijos de Dios, privilegiados, como se los

decía cada tarde el hombre del manto lleno de agujeros. En el amor hacia él, por lo

demás, cesaban las diferencias que podían separarlos: cuando se trataba del Consejero

esas mujeres y hombres que habían sido cientos y comenzaban a ser miles se volvían un

solo ser sumiso y reverente, dispuesto a darlo todo por quien había sido capaz de llegar

hasta su postración, su hambre y sus piojos para infundirles esperanzas y

enorgullecerlos de su destino. Pese a la multiplicación de habitantes la vida no era

caótica. 149

O milagre do funcionamento daquela comunidade estarrecia Euclides e todos os

outros, que não conseguiam compreender a “mágica” capaz de manter uma “comunhão”

perfeita. Vargas Llosa, dentro dos postulados do novo romance histórico, recorre à

ficção para buscar a compreensão do fato. A história “vista de baixo” o leva a entender

a harmonia dominante naquele local, vista como resultado da acolhida recebida pelos

sertanejos. Deste modo, é bem relevante a imagem de Canudos presente no Anexo 3

deste trabalho, página 113, mostrando o desenho de uma cidade, talvez utópica, como

148

HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo, p. 65. 149

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, sexto capítulo, p. 99.

80

descreve Zé Antônio, o poeta popular, mas em tudo diferente da já mencionada “urbs

mostruosa”, conforme citação de Euclides .

O caminho percorrido pelo escritor peruano foi facilitado pelo amadurecimento

de conceitos da pós-modernidade, como a dessacralização, que ocorre na medida em

que cada personagem vai emergindo diante dos olhos do leitor. Seymour Menton

destaca, neste caso, o envolvimento de um grande número deles, geralmente em papel

de destaque no romance, em situações consideradas inverossímeis, como a conversão

religiosa de tantos ladrões e assassinos.150

É o caso de Pajeú, Pedrão, João Satã e Maria

Quadrado. Essa personagem, a filicida de Salvador, peregrinava pelo sertão, fugindo de

si mesma, numa tentativa de expiação de seu pecado terrível. Buscava, na verdade, um

novo rumo para sua vida, tendo encontrado na pregação do Conselheiro e na vida

comunitária de Canudos a paz que ela tanto buscara. Sua postura ascética e sua imagem,

despojada de toda e qualquer ligação que lembrasse um mínimo de vaidade, tornara-a

um ser exótico e, por isso mesmo, lendário. “Tenía veinte años, pero había padecido

tanto que parecía viejísima.” Vargas Llosa acrescenta ainda que ela “vestía dos polleras

con una cinta, una blusa azul”, criando uma imagem que impressionava, pois “su

cabeza, de mechones mal tijereteados y cráneo pelado, recordaba las de los locos del

hospital de Salvador. Se había rapado ella misma después de ser violada por cuarta

vez”151

Tornou-se, como tantos, uma seguidora do Conselheiro, e seu completo

envolvimento em Canudos aprofundara sua postura mítica. Tornara-se sacerdotisa de

Belo Monte, uma espécie de Beatinho do sexo feminino, pois, além de comandar o coro

das beatas, dava assistência espiritual a todos que a buscavam, incluindo o personagem

descrito abaixo.

Nació con las piernas muy cortas y la cabeza enorme, de modo que los vecinos

de Natuba pensaron que sería mejor para él y para sus padres que el Buen Jesús se lo

llevara pronto ya que, de sobrevivir, sería tullido y tarado. Sólo lo primero resultó

cierto. Porque, aunque el hijo menor del amansador de potros Celestino Pardinas nunca

pudo andar a la manera de los otros hombres, tuvo una inteligencia penetrante, una

mente ávida de saberlo todo y capaz, cuando un conocimiento había entrado a esa

cabezota que hacía reír a las gentes, de conservarlo para siempre. […] en vez de andar

en dos pies como los humanos lo hiciera a cuatro patas y su cabeza creciera de tal

manera que parecía milagro que su cuerpecillo menudo pudiera sostenerla. Pero lo que

dio pie para que los vecinos de Natuba comenzaran a murmurar que no había sido

engendrado por el amansador de potros sino por el Diablo, fue que aprendiera a leer y

escribir sin que Nadie se lo enseñara. 152

150

MENTON, S. La nueva novela histórica, p. 96. 151

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Uno, tercer capítulo, p. 52. 152

Ibid., Libro Uno, sexto capítulo, p. 106.

81

Chama também a atenção do leitor, dentre os moradores de Belo Monte, o Leão

de Natuba, um homem fisicamente deformado, quase um monstro, extremamente

inteligente, e que se tornara uma espécie de escrivão oficial da comunidade. Esse

personagem, a quem Vargas Llosa deixa entrever uma profunda sensibilidade, num

contraste com a forte desumanização projetada por sua imagem física, reveste-se de um

crescimento extraordinário na medida em que o romance caminha para o seu desenlace.

Discriminado e ridicularizado pela vizinhança, provocara vergonha em seus próprios

pais. Insultado, cuspido e apedrejado por todos desde a infância, teve sua vida

modificada no dia em que o Conselheiro o salvou de morrer queimado por ter sido

acusado de bruxaria pelo pai de uma jovem, que morrera, segundo ele, por culpa

daquele “monstro”. Encontraria também, em Canudos, a paz que nunca tivera e, melhor

ainda, o prestigio que nunca ousara pensar ter algum dia em sua pobre vida. Era o único

seguidor alfabetizado do Conselheiro e, por isso mesmo, muito respeitado por todos.

Seu corpo contorcido ajuda a torná-lo memorável, transformando-o numa figura

emblemática, a qual todos queriam tocar, como se sua deformação pudesse produzir,

neles, algum tipo de milagre. Com o passar do tempo, porém, as ruas haviam-se tornado

demasiadamente perigosas para ele, amedrontando-o, pois “Las gentes se precipitaban a

tocarle el lomo, creyendo que les traería suerte, y se lo arranchaban como un

muñeco”.153

Sua imagem repulsiva, mas misteriosa e, talvez por isso mesmo,

carismática, passou a se revestir de uma importância ainda maior devido a missão que

ele havia assumido, redigir um “Novo Evangelho” fundamentado nas pregações do

Conselheiro e nos acontecimentos cotidianos vivenciados no arraial. Mas os escritos do

Leão de Natuba perderam-se, juntamente com ele, num dos incêndios provocados pelos

constantes bombardeios.

A visão dessacralizante prossegue com outro personagem, cuja força cresce ao

longo da narrativa. Trata-se do padre Joaquim, um homem muito fraco e bastante

covarde, pois, quando preso por Moreira César, chorou e implorou por sua vida,

chegando a dar várias indicações a respeito da localização de Canudos e de como era o

dia-a-dia no arraial. Naquele momento, ele não se julgava um mártir, como os demais,

e, na verdade, sentia um grande mal-estar e muita inveja dos moradores de Canudos por

causa da fé e da serenidade de espírito mostrada por aquelas pessoas, pois contrastava

com algo que ele nunca tivera.154

No final da narrativa, vamos encontrá-lo convertido à

153

Ibid., Libro Tres, quinto capítulo, p. 276. 154

Ibid., Libro Tres, quinto capítulo, pp. 262-266.

82

causa de Belo Monte, lutando heroicamente pela defesa da cidade e morrendo ao lado

dos jagunços. O barão referiu-se a ele, estupefato, como “aquele padrezinho cheio de

filhos” e se surpreende, indagando se “aquele bêbado e praticante dos sete pecados

capitais estaria realmente em Canudos”. Ele não consegue acreditar. Mas o jornalista

míope lhe replica, afirmando que aquilo seria “um bom indício do poder de persuasão

do Conselheiro”, acrescentando ainda que, “além de transformar os ladrões e assassinos

em santos, fora capaz de catequizar os padres corrompidos e simoníacos do sertão”.155

E assim, ao longo da narrativa, diversos outros personagens se destacam devido

às varas inversões de papéis estereotipados ou, poderíamos dizer também, à quebra de

diversos paradigmas, como ocorre com Antonio Vilanova, um hábil comerciante, o

qual, por haver-se transformado num fiel devotado à causa de Canudos, tornara-se um

dos homens de confiança do Conselheiro, uma espécie de secretário de administração.

Nos momentos de crise, continuava arriscando sua vida para prover a cidade de todo o

necessário e, quando o cerco final se avizinhava, numa imagem épica, cerrou fileiras

com os jagunços na defesa de Belo Monte. O barão de Cañabrava também não

acreditava nessa história e, mais uma vez, questionou o jornalista míope a respeito

daquele comerciante, “Un ser metalizado y calculador como pocos. Los conocí mucho a

él y al hermano. Fueron proveedores de Calumbí. ¿También se volvió santo?”156

Seu

pragmatismo burguês havia sido colocado à disposição daquele povo, sem que, em

nenhum momento, ele tentasse tirar alguma vantagem disso, pois a vivência em

Canudos levara-o a adquirir uma postura de quem não se importava com as mudanças

que a vida comunitária trouxera para sua vida.

¿Cómo sería sucia, impura, esa aguadija que mana sin tregua desde hace ¿seis,

siete, diez día? de ese cuerpo lacerado? “Es su esencia lo que corre por ahí, es parte de

su alma, algo que está dejándonos.” Lo intuyó en el acto, desde el primer momento.

Había algo misterioso y sagrado en esos cuescos súbitos, tamizados, prolongados, en

esas acometidas que parecían no terminar nunca, acompañadas siempre de la emisión de

esa aguadija. Lo adivinó: “Son óbolos, no excremento”. […] Con dichosa inspiración,

se adelantó, estiró la mano entre las beatas, mojó sus dedos en la aguadija y se los llevo

a la boca, salmodiando: “¿Es así como quieres que comulgue tu siervo, Padre? ¿No es

esto para mí rocío?”. Todas las beatas del Coro Sagrado comulgaron también, como

él.157

O texto acima retrata a agonia final do Conselheiro durante o cerco que se

fechava cada vez mais sobre a cidade. O sofrimento dele era também a angústia dos

seguidores mais íntimos, que compartiam o dia-a-dia com o pregador. As condições

155

Ibid..Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 424. 156

Ibid..Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 430. 157

Ibid.. Libro Cuarto, quinto capítulo, p. 512.

83

precárias trariam ao velho homem uma diarréia suficiente para levá-lo ao fim. Beatinho

interpretou tudo aquilo como uma mensagem do Divino Espírito Santo, o qual, naquela

hora de provação, havia transformado os excrementos daquele “homem santificado”

numa espécie de hóstia. A cena, quase no desenlace do romance, remete o leitor a mais

um momento importante nesse tom dessacralizante conduzido por Vargas Llosa ao

longo da narrativa. Trata-se da visão bakhtiniana, cujo aspecto carnavalesco se destaca

sobremaneira a partir da idéia do aviltamento de tudo o que fosse considerado sério ou

dogmático. O crítico russo, partindo de observações feitas ao analisar a inversão da

realidade ocorrida durante o período do carnaval, acentuou que o uso generalizado de

blasfêmias e profanações de todo tipo, presentes desde a Idade Média, seria uma forma

de contestação social, que se tornaria evidente em inúmeros textos literários, como em

Gargântua e Pantagruel de Rabelais.158

É evidente que um texto produzido no último

quarto do século passado teria tudo para se aproximar desse postulado, expondo-o como

um de seus pontos culminantes. Deste modo, a ênfase dada ao realismo grotesco,

presente na causada pela defecação seria um dos momentos cruciais. A dessacralização

conduzida pelo escritor peruano não pouparia ninguém, nem mesmo o homem cujo

carisma havia arrebanhado multidões na construção e na defesa daquela cidade.

Destaca-se também, de forma quase inverossímil, a inversão feita pelo escritor

na postura do já analisado Barão de Cañabrava, o poderoso latifundiário, cujas atitudes,

conforme já ressaltado, são contrárias às de um típico coronel do Nordeste. Graças a sua

luta constante contra o fanatismo, Vargas Llosa transforma-o, segundo Seymour

Menton, em co-protagonista do romance, ficando abaixo apenas do jornalista míope.159

Sua habilidade o coloca em oposição a todos os demais fanáticos da narrativa, pois, do

mesmo modo que não se deixa abater diante da arrogância de Moreira César, demonstra

serenidade e compaixão para receber o militar em sua casa quando este esteve doente.

Ainda segundo Menton, a posição deste personagem na obra é reforçada, “por mais

paradoxal que seja, quando ele viola Sebastiana, criada lésbica devota de sua esposa

Estela, na presença desta” e que a interpretação positiva desse episódio “se reforça ainda

mais, considerando que ele já havia aceitado a relação supostamente lésbica entre sua

esposa e a criada”.160

Parece, no entanto, uma afirmativa um tanto despropositada, uma

vez que a ação do barão estaria apenas reafirmando uma prática comum e constante na

158

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. pp. 122-123. 159

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 93. 160

Ibid., pp. 78-80.

84

formação patriarcal brasileira desde o início da colonização deste país, quando o senhor

de engenho detinha um poder muito grande, sexual inclusive, sobre as escravas. Vargas

Llosa, porém, apresenta a cena como uma espécie de ato libertador, não apenas para o

barão, mas também para sua esposa. Estaria ele levando sua guerra contra o fanatismo

até as últimas conseqüências? Ou tal atitude seria apenas mais uma expressão da

chamada “pós-modernidade”?

– ¿Te amarramos o aguantas como bravo?

– Como bravo, su señoría – dice el soldado Queluz, palidiciendo.

– Como bravo que se tira a los cornetas – aclara alguien y hay otra salva de

risas. – Media vuelta, entonces, y cógete las bolas – ordena el Teniente Pires

Ferreira.

Le da los primeros azotes con fuerza, viéndolo trastabillar cuando la varilla

enrojece su espalda; […] Con el último varazo, el soldado cae de rodillas, pero se

incorpora ahí mismo y se vuelve hacia el Teniente, tambaleándose:

– Muchas gracias, su señoría – murmura, con la cara hecha agua y los ojos

inyectados.161

De acordo com Jacques Le Goff, “os fatos são por vezes menos sagrados do que

se pensa, pois, se fatos bem estabelecidos não podem ser negados, o fato não é em

história a base essencial da objetividade.”162

Deste modo, nada escapa à pena

dessacralizante de Vargas Llosa, como a morte de Pajeú, jagunço perigosíssimo,

efetuada pelo soldado Queluz, um homossexual no meio da tropa. Este, de

ridicularizado, passa a herói. O que ninguém sabia é que havia sido um heroísmo por

acaso, pois ele estava dormindo no seu posto e fora surpreendido com a invasão do

acampamento. Além do mais, seu descuido havia permitido que os jagunços

conseguissem penetrar no local, causando, inclusive, a morte de um soldado. Sua única

opção naquele momento seria apenas lutar, nada mais que isso. O escritor simplesmente

não se deixou levar pela facilidade de criar mais um clichê. Já em imagens anteriores, o

comportamento desse personagem trazia um quê de contestação pela própria questão

homossexual, tema, ainda hoje, considerado tabu nos meios militares. No deslocamento

da tropa, após ser punido com 30 chibatadas, por assédio, suportou o castigo como um

verdadeiro “macho”, fazendo com que sua imagem crescesse entre os companheiros.

Segundo Menton, o que dá mais força a este episódio é a ambigüidade, remetendo o

acontecimento à filosofia do “Tema del traidor y del héroe” de Jorge Luís Borges. 163

161

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, primer capítulo, pp. 384-385. 162

LE GOFF, J. História e memoria, p. 31. 163

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, p. 86.

85

– Desde que pude sacarme de encima a los impertinentes y a los curiosos, He

estado yendo al Gabinete de Lectura de la Academia Histórica – dijo el miope –. A

revisar los periódicos, todas las noticias de Canudos. [...] He leído todo lo que se

escribió, lo que escribí. Es algo… difícil de expresar. Demasiado irreal, ¿ve usted?

Parece una conspiración de la que todo el mundo participara, un malentendido

generalizado, total.

[…]

– Hordas de fanáticos, sanguinarios abyectos, caníbales del sertón, degenerados

de la raza, monstruos despreciables, escoria humana, infames lunáticos, filicidas,

tarados del alma – recitó el visitante, deteniéndose en cada sílaba –. Algunos de esos

adjetivos eran míos. No sólo los escribí, los creía también.164

A dessacralização promovida por Vargas Llosa atinge seu ponto máximo na

figura do jornalista míope. Um ícone da literatura brasileira estava sendo exposto, para

muitos, de forma até desrespeitosa. Na verdade, o escritor peruano está resgatando um

momento de crescimento do personagem e, se pensarmos que se trata de um

palimpsesto de Euclides da Cunha, esse instante de reflexão entre o jornalista e o barão

significaria exatamente os momentos vividos pelo escritor brasileiro nos anos

posteriores à guerra de Canudos, quando ele pôde repensar suas teorias a respeito dos

fatos que haviam gerado aqueles acontecimentos trágicos. Ele também havia escrito

contra os “fanáticos de Canudos”, havia vociferado contra o Conselheiro e contra os

seus seguidores, havia clamado contra a nossa “Vendéia”. Ou seja, ele havia ajudado a

criar o clima necessário para que a burguesia dos grandes centros urbanos preparasse o

massacre de Canudos. A imprensa havia mostrado toda a sua força, todo o seu poder, e

ele havia participado ativamente dessa monstruosidade.

164

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, primer capítulo, pp. 364-365.

86

05.02. A MATERIALIZAÇÃO DAS PROPOSTAS BURGUESAS

Para sair da pobreza, as políticas redistributivas não são adequadas. As

melhores são aquelas que, como implicam inevitável desigualdade entre os que

produzem mais ou menos, carecem do encanto intelectual e ético que sempre rodeou o

socialismo e sofreram uma condenação por estimular o espírito do lucro. Mas as

economias igualitárias baseadas na solidariedade jamais tiraram um país da pobreza;

sempre o empobreceram mais. E, muitas vezes, limitaram ou retiraram as liberdades, já

que o igualitarismo exige um planejamento rígido, que começa sendo econômico e

depois se estende para o resto da vida. Disso resultam, para quem governa, ineficiência,

corrupção e privilégios que contradizem a própria noção de igualdade. Os raros casos

de deslanche econômico no Terceiro Mundo seguiram, todos, a receita do mercado.165

Mario Vargas Llosa

Um dos momentos mais importantes do envolvimento intelectual de Vargas

Llosa ocorreria, então, com sua participação no “Movimiento Libertad”, criado no final

de setembro de 1987 nos chamados “Encontros pela Liberdade”. Era um movimento

que procurava aglutinar todo aquele que, de acordo com Vargas Llosa, estivesse

comprometido com “um programa realista para acabar com os privilégios, os benefícios

com títulos públicos, o protecionismo, os monopólios, a supremacia do Estado, um

programa que, finalmente, abriria o Peru para o mundo e criaria uma sociedade em que

todos tivessem acesso ao mercado e vivessem protegidos pela lei”.166

O “Movimiento

Libertad” procurou atrair para seus quadros pessoas que nunca haviam feito política

anteriormente, nem pretendiam fazê-lo no futuro. Eram engenheiros, arquitetos,

advogados, médicos, empresários, economistas, com o intuito de formar um plano de

governo, ainda segundo ele, decente e eficaz. Outro trabalho do movimento seria dar

vez, voz e visibilidade aos intelectuais que, no passado, haviam defendido teses liberais,

em contraposição aos socialistas e populistas. Eles poderiam ajudar o “Movimiento

Libertad” em sua luta contra o paternalismo e o protecionismo, que estariam dominando

o país.167

Tal como o Peru, Cingapura era uma sociedade multirracial – brancos,

chineses, malaios e hindus –, de línguas, tradições, costumes e religiões diferentes. Só

que ao mesmo tempo eles tinham um território diminuto, onde mal cabia a população, e

padeciam de um calor asfixiante e de chuvas torrenciais. Tinham uma boa situação

geográfica, mas careciam de recursos naturais. Ou seja, eram vítimas de todos os fatores

considerados os piores obstáculos para o desenvolvimento. E, não obstante haviam se

165

VARGAS LLOSA, M. Peixe na agua, pp. 218-219. 166

Ibid.. p. 158. 167

Ibid.. p. 158.

87

transformado numa das sociedades mais modernas e avançadas da Ásia, com altíssimo

nível de vida, o maior e mais eficiente porto do mundo e indústrias de alta tecnologia.168

Tudo isso desembocaria em sua candidatura à presidência da república com uma

proposta que seguia estritamente a onda neoliberal incentivada por Ronald Reagan e

Margareth Thatcher. A viagem feita por ele à Ásia, detendo-se no Japão, na Coréia do

Sul, em Cingapura e em Taiwan levou-o a refletir a respeito do, segundo sua conclusão,

espantoso desenvolvimento desses países. O texto acima cita Cingapura, cujo exemplo

lhe havia chamado bastante a atenção, pois aquele pequeno país, graças à liberdade

econômica, ao mercado e à internacionalização, em menos de 30 anos havia-se

transformado numa meca financeira, com um sistema bancário altamente eficiente. Ele

admite que o regime sempre fora autoritário e repressivo, o que ele afirmava não

pretender imitar. “Mas por que o Peru não poderia levar a cabo um desenvolvimento

semelhante, dentro da democracia?”169

Taiwan, então, deixara-o bastante admirado,

pois, no momento de sua visita, a renda per capita do Peru havia descido a cerca de

metade do que era nos anos 50, enquanto a de Taiwan havia aumentado mais de sete

vezes, depois de ter crescido a um ritmo médio de 8,5% ao ano entre 1981 e 1989. O

crescimento econômico devera-se a uma multiplicação de empresas de médio e pequeno

porte de altíssimo nível tecnológico, exportando produtos de alta competitividade. Para

ele, era o modelo mais conveniente para o Peru.170

Mais cedo do que imaginava, Vargas Llosa descobriria em meio à campanha que

o processo eleitoral era mais sujo do que ele imaginava. Sua pregação de um

capitalismo supostamente puro começou a contrariar até mesmo diversos setores do

meio empresarial, visto estarem eles acostumados à proteção do estado, capaz de

socorrê-los nos momentos de dificuldades. Segundo o escritor, “uma economia

deformada por práticas mercantilistas deforma o próprio empresário, no qual gera uma

mentalidade passiva e dependente da posição estatal, uma psicologia insegura e um

medo pânico da competição”.171

Surpreso, então, ele descobre que alguns empresários

jamais aceitariam suas propostas, chegando até a ouvir afirmações atribuídas a alguns

desses elementos, dentre os mais conservadores, que os comunistas eram preferíveis a

ele.172

Além do mais, passou a ter consciência de que a aliança estabelecida por seu

168

Ibid., p. 262. 169

Ibid., p. 263. 170

Ibid., p. 265. 171

Ibid., p. 260. 172

Ibid., p. 260.

88

partido tinha uma ligação muito precária e a adesão de todos os dirigentes às idéias, à

moral e às propostas que ele fazia estava subordinada a meros interesses políticos.

Um acontecimento, porém, deixara-o bastante animado: a vitória de Fernando

Collor de Mello nas eleições brasileiras. Afinal, o brasileiro havia vencido com um

programa liberal radical semelhante ao seu, em oposição “às idéias mercantilistas,

estatizantes e intervencionistas do líder sindical Lula da Silva”.173

Ao visitar o Brasil e

ser recepcionado pelo novo presidente, Vargas Llosa pôde encontrar-se com um velho

amigo, José Guilherme Merquior, ensaísta e filósofo liberal, discípulo de Raymond

Aron e Isaiah Berlin. Segundo ele, Merquior, com quem estudara na Sorbonne, “era um

dos pensadores que com maior rigor e consistência defendera as teses de mercado e da

soberania individual na América Latina quando a maré coletivista e estatizante parecia

monopolizar a cultura do continente”.174

Vargas Llosa lamenta o fato de Merquior já se

encontrar bastante doente, o que, segundo o escritor, contribuiria para eliminar um dos

quadros mais importantes daquele momento para a concretização de uma sociedade

liberal. O escritor peruano, talvez não percebendo as contradições da dinâmica política e

social, lamenta também o fato de que “aquele presidente jovem e enérgico, que parecia

tão bem preparado para levar a cabo a revolução liberal em seu país, não a fizesse,

senão de maneira muito fragmentária e contraditória, e, pior ainda, amparando a

corrupção, com o decorrente resultado calamitoso”175

O crescimento inesperado da candidatura de Fujimori o deixaria perplexo. A

suposta pureza de princípios neoliberais pregada por ele e pela Frente Democrática

parecia não convencer a população, principalmente a dos bairros mais pobres. Seu

nome havia sido associado aos políticos tradicionais, de quem tanto tentara desvincular-

se e, pior ainda, aos “blanquitos”,176

eternos exploradores das classes menos

favorecidas. Além do mais, o povo, farto de tudo que pudesse ser associado à política

tradicional, deixara-se seduzir pelas propostas de Fujimori, o qual, além de simbolizar o

amálgama de raças dominante no país, aproveitava o crescimento das seitas

neopentecostais nas periferias e ainda conseguira passar uma imagem completamente

apolítica.177

Subitamente, ele se veria também no meio de uma guerra religiosa em

pleno final do século XX. E, mais surpreendente ainda, recebendo apoio da cúpula da

173

Ibid., pp. 413-414. 174

Ibid., p. 157. 175

Ibid., pp. 414-415. 176

Ibid., p. 494. 177

Ibid., p. 484.

89

Igreja Católica peruana. Vargas Llosa observa inclusive, ironicamente, que o arcebispo

de Lima, ao ser questionado a respeito do agnosticismo do escritor, apresentou uma

interpretação teológica muito estranha, afirmando que “um agnóstico não era um

homem sem Deus, mas alguém em busca de Deus, um homem que não crê, mas que

gostaria de crer, um ser tomado por uma agônica busca unamoniana, ao final da qual

talvez se encontre a volta à fé.178

O crescimento de Fujimori seria inevitável, levando-o à vitória. Vargas Llosa

atribui tal fato a inúmeros fatores, dentre os quais, a já citada associação de sua

candidatura às elites peruanas e aos chamados políticos tradicionais. Ele crê, porém, que

a “guerra suja” estimulada pela APRA do presidente Alan Garcia e por parte da

esquerda seria fundamental para sua derrocada. Sua divergência com Cuba e com tudo o

que representava qualquer proposta revolucionária, associada à sua conversão ao

neoliberalismo eram atitudes que a esquerda jamais perdoaria. Ele acha, entretanto, que

as armas mais importantes utilizadas por seus adversários foram seu “antimilitarismo” e

seu “antinacionalismo”. Uma de suas frases preferidas, que ele afirma continuar

subscrevendo, diz ser o nacionalismo uma das “aberrações humanas que mais sangue

fizeram correr na história”.179

A candidatura de Fujimori passaria como um rolo

compressor por cima da sua, causando a derrota do projeto idealizado pelo

“Movimiento Libertad”. O sonho de Vargas Llosa de poder intervir na realidade de seu

país e modificá-la concretamente desvanecera-se, mas não suas convicções.

Viendo bajar los ojos tímidamente al Presidente de la República, el general

Román salió por unos segundos del gelatinosos extravío mental para decirse que, a

diferencia de él, ese hombrecito desarmado que escribía versos y parecía tan poquita

cosa en este mundo de machos con pistolas y metralletas, sabía muy bien lo que quería

y lo que hacía, pues no perdía un instante la serenidad. En el curso de esa noche, la más

larga de su medio siglo de vida, el general Román descubrió que, en el vacío y desorden

que lo ocurrido con el Jefe causaba, aquel ser secundario, al que todos habían creído

siempre un amanuense, una figurilla decorativa del régimen, empezaba a adquirir

sorprendente autoridad.180

Que dizer, então, da literatura produzida por ele? No caso do texto acima,

descreve-se um dos momentos mais importantes do livro La fiesta del chivo, escrito 10

anos depois de sua candidatura à presidência do Peru. A cena retrata o diálogo entre

Joaquín Balaguer, presidente fantoche da República Dominicana, e o general Román a

respeito do vazio de poder que se havia instalado no país naquele instante. O ditador

178

Ibid., p. 482. 179

Ibid., pp. 417-418. 180

VARGAS LLOSA, M. La fiesta del chivo, pp. 419-420.

90

Leônidas Trujillo, que durante 31 anos havia corrompido e coberto de sangue o país,

tinha sido alvejado dentro de seu carro, enquanto seguia para a capital, Santo Domingo,

a qual, na época, fora rebatizada para Ciudad Trujillo. Esse homem, que se proclamara

“Pai da Pátria Nova”, “Benfeitor da Pátria”, e que tentara exigir do clero que lhe

concedesse o título de “Benfeitor da Igreja”, conduzira, durante todo esse tempo, um

regime responsável pela morte de mais de 20 mil pessoas. Naquela noite de 30 de maio

de 1961, aquele ditador, causador de tanta violência, tivera um fim não menos violento.

Seu filho, Ramfis Trujillo, assumiria o comando do país, promovendo uma vingança

sanguinária contra os supostos responsáveis pela morte de seu pai, incluindo, neste caso,

os parentes dessas pessoas. Muitos foram barbaramente torturados e vários se

suicidaram. É neste momento que se destaca a personalidade de Balaguer, em cuja

descrição Vargas Llosa o apresenta como o paradigma do liberal. Sua atitude serena

naquele momento de confronto o transforma em co-protagonista da narrativa, tal qual

ocorrera com o Barão de Cañabrava, cujo sucesso se deve a sua já citada postura

“camaleônica”.

Da mesma forma que o Barão, em quatro momentos importantes do texto,

enfrenta de maneira calma, mas bastante firme, os fanáticos da narrativa (Moreira

César, Galileo Gall, Rufino e o representante do conselheiro, Pajeú), Balaguer faz o

mesmo com todos os generais que queriam se apossar do comando da República

Dominicana. Sua habilidade de negociador ajuda a salvar sua própria vida da sanha

vingativa dos parentes de Trujillo, principalmente do sanguinário Ramfis, que almejava

tornar-se sucessor do pai. Melhor que isso, Balaguer consegue, aos poucos, afastar

todos os próceres daquela ditadura sanguinária, acabando por, em 1966, exatamente

cinco anos depois, tornar-se presidente da República. O país havia sido colocando no

rumo da “democracia”, pelo menos segundo os padrões liberais de Balaguer, de acordo

com o modelo pregado pelos norte-americanos.

De maneira muito parecida, o Barão de Cañabrava consegue pôr um fim às

disputas políticas do Estado da Bahia, para que todos pudessem se fortalecer contra o

inimigo comum. Conforme já foi citado no quarto capítulo, ele pede encarecidamente a

Epaminondas, o diretor do maior jornal republicano daquela região, que se esquecesse

de suas “estridências jacobinas”, pois elas só aprofundariam as divergências entre os

grupos políticos locais. O Barão conclama o jornalista a ajudá-lo a evitar que a

“República Brasileira se transformasse, como em tantos países da América Latina,

91

numa baderna, cheia de quarteladas, muita corrupção e bastante demagogia”.181

Era

realmente uma postura “camaleônica”, no melhor sentido, porém, já que exercida com o

intuito de provocar um diálogo constante, capaz de conduzir ao progresso e de produzir

o bem comum.

Cuando un Estado democrático es gobernado o controlado por la clase

capitalista o, más probablemente, operado de acuerdo con sus intereses, la democracia

es vista como un “bien en si mismo”. Empero, cuando proporciona una plataforma para

transformar las relaciones sociales y los derechos de propiedad, la tendencia es

apreciarla como un “lujo”, y, de acuerdo con esta visión, es permutable, y puede ser

reemplazada por un sistema autoritario que, bajo determinadas circunstancias, sea un

mejor instrumento para proteger las relaciones y requisitos de la propiedad.182

Em La fiesta del chivo, no entanto, Vargas Llosa não dá continuidade à história

de Balaguer, porque, conforme o título do livro, seu objetivo maior seria analisar a

figura emblemática de Rafael Trujillo, “el chivo”, e a projeção do poder desse homem

truculento na vida dos cidadãos da República Dominicana. O ponto culminante seria a

morte do ditador e os desdobramentos causados por essa ação. O escritor peruano

enfatiza, então, a importância do trabalho de Balaguer, ao costurar, com muita

habilidade, a desmontagem do regime e a passagem para outro, que se poderia chamar

de mais civilizado. Um de seus principais argumentos para convencer, principalmente o

sanguinário Ramfis, além dos demais parentes e todos os mandatários da ditadura, seria

o possível desembarque dos marines na ilha, já que os Estados Unidos não viam mais

com bons olhos aquela repressão brutal promovida pela ditadura. Essa possível invasão

acarretaria, segundo ele, o fim do país. Deste modo, ele conseguiu assumir, com apoio

dos norte-americanos, o controle do país, iniciando um governo semi-ditatorial, o qual

só terminaria 12 anos depois.183

É preciso ressaltar que Balaguer, o grande liberal, havia

passado muitos anos, mais precisamente de 1932 a 1961, exercendo cargos muito

importantes dentro daquele governo despótico, corrupto e assassino. É necessário

relembrar também que a ditadura de Trujillo havia sido colocada pelos Estados Unidos

e mantida econômica e militarmente durante muito tempo por esse país. Como fica a

consciência de Vargas Llosa em relação aos modelos de liberal e de liberalismo

propostos por ele?

181

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Tres, séptimo capítulo, p. 357. 182

PETRAS, J. e VELTMEYER, H. Democracia y Capitalismo: una relación incómoda, in: La

globalización desenmascarada, p. 140. 183

JORNAL DO BRASIL, Hoje na história: 30 de maio de 1961. Ditador Trujillo é assassinado.

92

05.03. A PROPOSTA DE EUCLIDES E A DE VARGAS LLOSA

Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de

advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha e sanguinária.184

Euclides da Cunha

– ¿Canudos? – murmuró el Barón –. Epaminondas hace bien en querer que no

se hable de esa historia. Olvidémosla, es lo mejor. Es un episodio desgraciado, turbio,

confuso. No sirve. La historia debe ser instructiva, ejemplar. En esa guerra nadie se

cubrió de gloria. Y nadie entiende lo que pasó. Las gentes han decidido bajar una

cortina. Es sabio, es saludable.

– No permitiré que se olviden – dijo el periodista, mirándolo con la dudosa

fijeza de su mirada –. Es una promesa que me he hecho.

[…]

– ¿Cómo? – dijo, porque sí, para llenar el vacío.

– De la única manera que se conservan las cosas – oyó gruñir al visitante –.

Escribiéndolas185

Mario Vargas Llosa

Segundo o crítico Lourival Holanda, Canudos seria “o espaço de uma etnofania:

um ethnos, um povo ali se deixa ver pela primeira vez”.186

Ele reafirma o termo a partir

da junção dos radicais gregos (ethnos + phanos) para significar a fusão dos diversos

“brasis”. O vocábulo estaria representando a idéia de “brasileiros vindos de vários

quadrantes, mas completamente ignorantes da existência real desses “outros”

justapostos em Canudos”187

. Tal assertiva aponta para a proposta de Euclides em Os

sertões: a criação da nação a partir desses diversos brasis. Tal só ocorreria, entretanto,

caso os brasis justapostos se descobrissem uns aos outros e passassem a se conhecer. Já

foi citado que o livro resultou de sua cobertura jornalística à Guerra de Canudos. O

escritor assistiu à luta durante três semanas, de 16 de setembro a 3 de outubro, quando

se retirou devido à precariedade de sua saúde naquele instante.188

Deste modo, ele não

chegou a presenciar o massacre dos prisioneiros, nem o holocausto sofrido pela cidade,

incendiada com tochas de querosene e destruída a dinamite. Estas cenas estiveram

184

CUNHA, E. Carta a Francisco Escobar. In. GALVÃO, W.N. e GALLOTTI. O (org.)

Correspondência de Euclides da Cunha. p. 139. 185

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, primer capítulo, p. 365. 186

HOLANDA, L, Os Sertões: o nascimento de uma nação. In: BERNUCCI, L.M. (org.) Discurso,

ciência e controvérsia em Euclides da Cunha, p. 137. 187

Ibid., p. 137. 188

REVISTA CARTACAPITAL, 26 de dezembro de 2001, p. 36.

93

ausentes em suas reportagens para o jornal Estado de São Paulo e aparecem de forma

bem sucinta em Os Sertões.

Naquele momento, Euclides, como todos os outros repórteres, omitiu-se em

relação às diversas atrocidades perpetradas pelo exército brasileiro. Afinal, aquele

estava sendo o primeiro evento dessa monta a ter cobertura feita por correspondentes de

guerra. Só que todos deveriam submeter-se à censura militar. O caso de Euclides

apresenta um dado importante: ele tivera sua formação feita dentro da caserna e tornara-

se tenente reformado desde 1896, quando deixou a carreira militar para trabalhar como

engenheiro no Estado de São Paulo. Além do mais, durante a cobertura do conflito, ele

estava adido ao Estado-Maior do Ministério da Guerra.189

A publicação de Os Sertões

ocorreria cinco anos depois e, por causa desse intervalo, Euclides pôde reconhecer suas

falhas e omissões na cobertura daquele embate. Havia, neste caso, um distanciamento,

pequeno que fosse, mas suficiente para fazê-lo refletir e, posteriormente, lançar o livro

que poderia ser chamado de “Bíblia de nossa nacionalidade”.

Euclides traçou paralelos entre os dois lados do conflito, mergulhados no

mesmo fanatismo: entre o soldado e o jagunço, entre o litoral e o sertão, entre a

República e Canudos. Os soldados saudavam a memória do marechal Floriano Peixoto,

cujo retrato traziam no peito, com o mesmo entusiasmo doentio com que os jagunços

bradavam pelo Bom Jeus. O coronel Moreira César, comandante da terceira expedição,

é tido como desequilibrado. Tanto quanto o Conselheiro. Ambos refletiriam a

“instabilidade” dos primórdios da República.190

Euclides havia conseguido perceber que a idéia de uma conspiração monarquista

apoiada por países estrangeiros era pura falácia, pois a motivação dos seguidores do

Conselheiro era, basicamente, mística e religiosa. Sua visão preconceituosa a respeito da

questão racial também havia caído por terra, já que os fundamentos da guerra não

seriam mais explicados como resultantes de um choque entre a mestiçagem do litoral e a

do sertão. O sertanejo foi alavancado à condição de herói, como se fosse um cavaleiro

medieval, tendo sido chamado de “rocha viva da nacionalidade”191

, o elemento básico

para a construção do homem tipicamente brasileiro.

A atuação de Euclides em seu trabalho incansável de construtor de uma

sociedade para aquele Brasil do início da República foi concretizado então na

elaboração de Os sertões. Conforme análise já feita inicialmente, ele seguiu os

189

Ibid., p. 36. 190

VENTURA, Roberto. O combate à República para salvar a alma. In: REVISTA CARTACAPITAL,

26 de dezembro de 2001. 191

CUNHA, E. Os sertões, p. 761.

94

postulados do determinismo científico, daí a estruturação do livro em três partes, como

pode ser ilustrado no Anexo 8, na página 118. “A terra”, na qual ele descreve o

ambiente físico e a importância desse elemento, não apenas para a formação do

sertanejo, mas também para a eclosão do conflito e seu posterior desenvolvimento, é a

primeira. A segunda, nomeada “O homem”, na qual ele teoriza a respeito da

mestiçagem na gênese e no comportamento do sertanejo, detendo-se em Antônio

Conselheiro, apresentando-o como produto de um meio físico e social responsável por

sua insanidade. A terceira, “A luta”, subdividida em cinco outras (”Travessia do

cambaio”, “Expedição Moreira César, “Quarta expedição”, “Nova fase da luta” e

“Últimos dias”) na qual ele, de forma épica, narra o desenvolvimento do conflito,

procurando detalhar as diversas fases da guerra.

Vargas Llosa, por outro lado, busca outro caminho. De acordo com análises já

feitas a respeito de sua assimilação das várias mudanças produzidas pela narrativa ao

longo do século XX, acrescentando, neste caso, as inúmeras perspectivas abertas pela

Nova História e, posteriormente, pelo Novo Romance Histórico, La guerra del fin del

mundo abriu um novo leque de possibilidades para a compreensão do episódio narrado

por Euclides. O romance se estrutura em quatro partes maiores, todas subdivididas em

vários capítulos. A primeira já ressalta o tom novelesco da narrativa, compondo-a com a

apresentação de Antônio Conselheiro, completamente inserido no cenário, e da maior

parte dos personagens, dando destaque para Galileo Gall, Epaminondas e os principais

seguidores do líder dos sertanejos. A segunda, como ilustra o Anexo 4, na página 114,

bem minúscula, apresenta apenas três capítulos, os quais demonstram a inquietação das

elites baianas provocada pela derrota do major Febrônio de Brito e a conseqüente

continuação do crescimento de Canudos. A terceira focaliza a preparação da expedição

comandada por Moreira César e a surpreendente derrota daquele que aglutinava as

esperanças das elites de todo o país. Nesse momento do romance, o tom novelesco

atinge seu ponto culminante com a perseguição encarniçada empreendida por Rufino a

Galileo e a luta mortal entre os desafetos. Na última, vemos o desenlace da narrativa a

partir da formação da quarta expedição, o cerco a Canudos, o assalto final e a destruição

da cidade. Sobressai nesse trecho do livro o longo diálogo entre o Barão de Cañabrava e

o jornalista míope, entremeado com as diversas cenas nas quais se delineiam a luta

épica dos moradores da cidade sitiada, pondo em destaque as façanhas dos principais

seguidores de Antônio Conselheiro.

95

La condena del fanatismo en la novela, cuya importancia no ha sido

suficientemente señalado por la mayoría de los críticos, se complementa con el elogio

de la flexibilidad, del cambio, de la objetividad y de la relatividad, elogio que va

acompañado de la subversión de ciertos estereotipos.192

Seymour Menton enfatiza o fato de os críticos não identificarem a condenação

ao fanatismo como o eixo estruturante de La guerra del fin del mundo. Ele acrescenta

que muitos colocam a questão, como Raymond Souza, que chega a “reconhecer uma

relação entre o romance e os guerrilheiros do Sendero Luminoso”, ou Ángel Rama, que

“discute a ideologia do romance, sem, porém, aludir à realidade peruana. Outros, como

Cornejo Polar e Jorge Rufinelli, “reconhecem a importância do fanatismo, mas criticam

o conteúdo anti-revolucionário da narrativa”. Já Raymond Williams identificaria “o

fanatismo como um dos fatores que motivam os personagens, mesmo não sendo o

principal”. Ocorre que todos esvaziam a relevância atribuída ao Barão de Cañabrava,

não dando muita importância à evolução positiva desse personagem.193

Chama a

atenção também a organização do livro em quatro partes principais, numa associação

direta aos quatro fanáticos: Antônio Conselheiro, Coronel Moreira César, Galileo Gall e

Rufino. Para Vargas Llosa, cada um deles se considerava dono de verdades absolutas,

capazes de criar dogmas, os quais deveriam ser executados ou, dependendo do caso,

seguidos cegamente por seus membros.

Pienso muchísimo en ti y en lo que te ha sucedido. Me solidarizo totalmente

con tu libro y me gustaría compartir contigo este asalto sobre el racionalismo, la razón y

la libertad. Los escritores deberíamos unirnos en este momento muy crítico para la

libertad de creación. Creíamos que se había ganado esta guerra hace mucho tiempo pero

no fue así. En el pasado fueron la Inquisición católica, el fascismo, el estalinismo; ahora

se trata del fundamentalismo musulmán y probablemente habrá otros. Las fuerzas del

fanatismo siempre estarán allí. El espíritu de la libertad siempre será amenazado por la

irracionalidad y la intolerancia, que están aparentemente arraigadas en la profundidad

del corazón humano.194

Não haveria, então, nenhum tipo de diferença na postura de alguém que, como

Antônio Conselheiro, pregasse uma verdade de fundo místico e religioso, e o coronel

Moreira César, que julgava lutar em nome de uma suposta razão republicana, a qual

deveria, caso fosse necessário, impor-se através da violência. O fanatismo do primeiro

seria comparável ao de movimentos inspirados por fundamentalismos religiosos. A

carta acima, escrita por Vargas Llosa e publicada no New York Times Book Review em

192

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina, pp. 70-71. 193

Ibid.. p. 71. 194

VARGAS LLOSA, M. apud MENTON, S., p. 69.

96

12 de março de 1989, como uma resposta à condenação à morte do escritor Salman

Rushdie pelo Aiatolá Khomeini, por causa de sua novela Versos Satânicos, mostra,

segundo Menton, uma referência explícita à temática de La guerra del fin del mundo,

quando do lançamento deste romance em 1981.195

O carisma de Antônio Conselheiro

continuaria mais presente do que nunca, manifestando-se de forma dominadora e

intolerante. Quanto ao coronel, a história da América Latina está cheia de quarteladas

provocadas, na maioria das vezes, pelo vazio de poder decorrente da desorganização da

sociedade civil, cujas elites costumavam enxergar os militares como âncoras da

estabilidade e propulsores do progresso.

Não existiria, também, nenhuma divergência entre o código de honra sustentado

por Rufino e a cegueira revolucionária pregada por Galileo Gall. O primeiro encerra em

si todas as características do macho latino, violento e prepotente, alçando a bandeira da

“vendetta” sempre que uma questão de honra se apresentava. No caso do anarquista

escocês, já analisamos o ponto de vista de Vargas Llosa no que se refere às inúmeras

implicações decorrentes da atuação da esquerda, principalmente em relação à América

Latina. Segundo o escritor peruano, tais militantes seriam, por ingenuidade, mas, na

maioria das vezes, por fanatismo, incapazes de compreender as necessidades reais da

população pela qual julgavam estar lutando. Pior ainda, não conseguiam entender a

linguagem dessas pessoas. Deste modo, Rufino e Galileo representariam aqueles que, de

forma alucinada, seriam capazes de matar ou morrer para defender seus preceitos

inquebrantáveis.

– La seguridad de La gente, su apetito de fantasía, de ilusión – dijo el Barón –.

Había que explicar de alguna manera esa cosa inconcebible: que bandas de campesinos

y de vagabundos derrotaran a tres expediciones del Ejército, que resistieran meses a las

Fuerzas Armadas del país. La conspiración era una necesidad: por eso la inventaron y la

creyeron.196

O barão, de forma serena, enfrenta a todos, e, como porta-voz ideológico de

Vargas Llosa, acaba, apesar do quase exclusivo domínio da já citada polifonia,

conduzindo o fio narrativo no momento da conclusão do romance. Por ser um

monarquista, entendemos que seu comportamento, de certo modo, assemelha-se à

tradicional imagem projetada pelo imperador D. Pedro II, quando, através do Poder

Moderador, pairava acima das intrigas e dos questionamentos presentes na política

195

Ibid.. p. 69. 196

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, tercer capítulo, p. 422.

97

cotidiana do Segundo Reinado. Muitos historiadores, inclusive, consideram que a

presença desse poder havia sido fundamental para a estabilidade e a não fragmentação

do país durante o regime monárquico. Mas a Monarquia havia terminado, e homens

como o Barão de Cañabrava estavam sendo colocados no ostracismo. No quadro criado

pelo escritor peruano, urgia encontrar pessoas que se projetassem dentro da sociedade

republicana capazes de unir o país através do diálogo, do entendimento, de tudo aquilo

que pudesse elevar o ser humano a uma condição de civilizado. Deste modo, deveriam

ser combatidos todos os arroubos religiosos, políticos, pessoais, revolucionários,

quaisquer que fossem, pois eles apenas seriam capazes de produzir dor e destruição.

Que fazer, então, a partir dos episódios de Canudos? A princípio, as duas obras

convergem, pois pretendem evitar o esquecimento do massacre e da tragédia. Euclides,

como bem ressalta o Anexo 2 destas reflexões, página 112, pretendeu vingar o sertão,

registrando para a posteridade a hediondez de cenas que fixariam “os pobres sertanejos

assassinados por uma sociedade pulha e sanguinária”, como bem ilustra o Anexo 7, na

página 117. Euclides continua presente em Vargas Llosa, agora na figura do jornalista

míope, o qual havia feito uma promessa a si mesmo: a de que “não permitiria que

esquecessem Canudos". E prosseguiu reafirmando que o faria “da única maneira que se

conservam as coisas, ou seja, escrevendo-as”. A força da palavra escrita está presente

nos dois momentos. Em Euclides, porém, tem como objetivo unificar os diversos brasis,

apresentando-os uns aos outros, com o propósito de criar um país realmente uno. Em

Vargas Llosa, temos como objetivo principal a construção, não de um Brasil, mas de

uma América Latina de cunho neoliberal, livre do que ele chamaria de fanatismo e

intolerância.

98

06. CONCLUSÃO

A MATADEIRA

(OU NO BALANÇO DA JUSTIÇA)

A matadeira vem chegando

No alto da favela

No balanço da justiça.

Do seu criador

A matadeira vem chegando

No alto da favela

No balanço da justiça

Salitre pólvora enxofre chumbo

O banquete da Terra

O Teatro do céu

Diz aí quem vem lá

O velho soldado

O que traz no seu peito

A Vida e a Morte

O que traz na cabeça

A matadeira

E o que veio falar

Fogo197

Lirinha

Segundo Zygmunt Bauman em Modernidade e ambivalência, o maior problema

da modernidade residiria numa “obsessiva marcha adiante não porque se queira mais,

mas porque nunca se consegue o bastante”.198

O autor questiona essa marcha obsessiva,

resultante do avanço perpetrado pela urbanização acelerada devido ao avanço

extraordinário da industrialização. É um fenômeno da modernidade, cujo início, ainda

de acordo com Bauman nesse livro, seria “uma questão discutível”199

. Cumpre

observar, no entanto, que, ao longo do século XIX, esse processo veio-se acelerando e,

neste caso, o sociólogo polonês cita Walter Benjamin, segundo o qual haveria uma

“tormenta impelindo os caminhantes de forma irresistível para o futuro ao qual dão as

costas, enquanto uma pilha de detritos diante deles cresce até os céus”. Ainda de acordo

com o sociólogo, Benjamin concluíra essa opinião, acrescentando que “a essa tormenta

197

LIRINHA, A matadeira. In: CORDEL DO FOGO ENCANTADO. 198

BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, p. 18. 199

Ibid., p. 11.

99

chamamos progresso”200

. Já é por demais conhecido o resultado do incremento da

sociedade capitalista, embasado pelo forte desenvolvimento das ciências associado ao

crescimento material. Se considerarmos a visão nacionalista estimulada pela ideologia

burguesa dominante, teremos um quadro em que “a pilha de detritos” da modernidade

teria se acumulado de forma incontrolável.

Os casos mais extremos e bem documentados de “engenharia social” global na

história moderna (aqueles presididos por Hitler e Stalin, não obstante as atrocidades

resultantes, não foram nem explosões de barbarismo ainda não plenamente extinto pela

nova ordem racional da civilização, nem o preço pago por utopias alheias ao espírito da

modernidade. Ao contrário, foram produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia

de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição que foi por toda

parte a mais eminente marca da era moderna. [...] A visão nazista de uma sociedade

harmoniosa, ordeira, sem desvios extraía sua legitimidade e atração dessas visões e

crenças já firmemente arraigadas na mente do público ao longo do século e meio de

história pós-iluminista, repleta de propaganda cientificista e exibição visual da

assombrosa potência da tecnologia moderna.201

Neste cenário de crescimento do sistema capitalista, pode-se acrescentar então a

importância do acompanhamento da ciência moderna e sua tentativa de controle da

natureza. Essa busca constante da perfeição conduziria não apenas ao desejo de dominar

as forças naturais, pois produziria também a idéia de moldar os seres humanos,

deixando afluir, conforme já salientado, teses racistas capazes de justificar a supremacia

dos “civilizados” sobre os “bárbaros”. A perseguição deliberada às “ervas daninhas” foi

colocada em prática de um modo nunca visto até então, deixando evidente que a criação

do “estado jardineiro” trouxera em seu bojo o triunfo do mundo racional, com este

“apresentando uma força missionária, empenhado em submeter as populações

dominadas de modo a transformá-las numa sociedade ordeira, afinada com os preceitos

da razão.”202

O que eles não pensavam, ou pelo menos não levavam em consideração,

seriam os inúmeros resíduos deixados ao longo do caminho. As minorias deveriam ser

controladas ou eliminadas, colocando no mesmo barco tudo que, segundo os parâmetros

do “estado jardineiro”, fugisse do normal, desde loucos e aleijados, até os considerados

anti-sociais, como vagabundos e criminosos, passando por, dependendo da ocasião,

índios, negros, ciganos, homossexuais, árabes ou judeus. Urgia “limpar” tudo, urgia

eliminar os “indesejáveis”, urgia podar as “ervas daninhas”.

200

Ibid., p. 18. 201

BAUMAN, Z. A prática do estado jardineiro, p. 38 202

Ibid., p. 29.

100

Como vimos ao longo do primeiro capítulo, o surgimento da República trouxera

consigo os ideais desse estado dominado pela razão, e a intelectualidade burguesa,

ansiosa pela assimilação dos moldes europeus, havia incluído, dentre os seus objetivos

primordiais, algo que se poderia chamar de engenharia social. Vimos, também, que,

neste caso, o surgimento de Canudos havia escancarado, inesperadamente, uma chaga

viva da nação. Pudemos analisar, então, a presença de Euclides da Cunha, fundamental

para o início de uma compreensão até então inexistente em nossa cultura, a descoberta

daquele Brasil ignorado pela República, a qual estaria sendo cooptada pela estrutura

social e econômica herdada do regime monárquico. Euclides, a princípio, defendera,

como os demais, o “estado jardineiro” e queria, como tal, podar as “ervas daninhas”.

Sua sensibilidade, no entanto, levou-o a perceber também os destroços deixados pela

ação “civilizatória” desse Estado. E não foram poucos, pois eles continuam presentes,

levando-nos a acreditar que os acontecimentos de Canudos deixaram marcas profundas

em nossa sociedade.

Como pensar, por exemplo, na intensa favelização, que insistiu em acompanhar

nosso crescimento econômico e social ao longo do século passado? Na verdade, esse

processo teve seu início desde fins do século XIX, acelerando-se após a abolição da

escravidão, quando muitos ex-escravos dirigiram-se para a então capital federal com o

intuito de se fixar em lugares sem nenhuma infra-estrutura. Acrescente-se a esse fato o

crescimento desmesurado do Rio de Janeiro, e temos um quadro social trágico, que

perduraria durante o século XX, aumentando a partir dos anos 50 devido a grande leva

de nordestinos que se deslocaram em busca do “eldorado” presente na região Sudeste.

Segundo o livro Um século de favela, o preconceito em torno dessas comunidades e de

seus moradores seria e continuaria sendo uma constante. Pudemos constatar então que o

primeiro censo organizado pela prefeitura da cidade, feito somente em 1948, conteria a

afirmação de que: “Os pretos e pardos prevaleciam nas favelas por serem

hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências

sociais modernas”.203

Nessa imagem carregada de preconceito, o estado racional estava

assumindo publicamente a sua incapacidade na resolução de um problema que se

alastrava, gerando o caldo de violência que viria explodir décadas depois. Na verdade,

toda vez que o chamado poder público agiu na tentativa de “solucionar o problema”,

deu ênfase a planos urbanísticos que apenas pretendiam “embelezar” o local. Em vez da

203

ZALUAR, A e ALVITO, M (org.) Um século de favela, p.13.

101

integração social para melhorar a qualidade de vida dos moradores, a maquiagem para

esconder os detritos.

É preciso relembrar, também, que a palavra “favela”, ironicamente, é uma

herança da Guerra de Canudos, pois foi trazida por cerca de dez mil soldados os quais,

por não terem mais recebido o soldo, haviam-se estabelecido em barracos provisórios

no Morro da Providência, aguardando a promessa feita pelo Governo de que eles

ganhariam casas na então capital federal. Esperaram durante muito tempo que o exército

ou uma autoridade qualquer os acolhesse ou, pelo menos, desse-lhes alguma satisfação.

Tal não ocorreu, e a permanência dessas pessoas naquele local gerou uma comunidade,

cujo “modelo” se espalharia posteriormente por toda a cidade. Ela seria logo batizada de

Morro da Favela. A referência remete a Canudos, que crescera perto de uma elevação

com esse mesmo nome, visto conter, de forma abundante, uma planta com igual

denominação e bastante comum na região da caatinga. Da mesma forma que os

jagunços, contra os quais eles haviam utilizado fuzis, baionetas e a poderosa

“matadeira”, os ex-soldados, agora desarmados e reintegrados à população civil,

também receberiam seu quinhão: o abandono da República, que não tinha a menor

consideração em relação a tudo que cheirasse a povo ou a qualquer coisa que a essa

idéia remetesse. Na verdade, permitir informalmente que eles construíssem em lugares

sem nenhum valor de mercado seria a única recompensa que Ela lhes daria pelo

“relevante serviço” prestado à pátria.

Também Euclides nos legou um livro, „Os sertões‟, que pode ser um ensaio,

pode ser uma peça da história, talvez seja um trabalho jornalístico, tem a forma de um

romance. Tem poesia? Acho que tem. Sempre que o releio, me pergunto: o que ele é?

Muito antes das vanguardas e do modernismo, Sarmiento e Euclides

anunciaram uma verdade devastadora: ninguém pode retratar o mundo. Podemos rondar

em torno dele, puxar-lhe as barbas de velho, acariciá-lo, desafiá-lo – para que, enfim,

acorde. Disso decorrem fragmentos extraordinários, ainda assim, homem algum

consegue pintar.

Os sertões é um livro sobre a crueldade e simboliza um enfrentamento. Ele só o

escreveu porque esteve cara a cara com a loucura de Canudos. O que importa é que a

Literatura é indiferente a relógios e a fórmulas. Na verdade, eles a asfixiam e matam.

Euclides via o Brasil dividido entre a civilização e a barbárie. Seria fácil se

soubéssemos dizer de que lado cada uma delas está. Não sabemos. Na verdade, nós a

carregamos dentro de nós. Toda ficção sempre se desloca, toda literatura se esquiva e

fere, ou literatura, de fato, não é. Escritores corajosos sabem disso. Não importa se

dizem isso, ou não. 204

O texto acima expressa o resultado do trabalho de Euclides naquele momento

em que a República engatinhava, buscando afirmação. Expressa, também, um misto de

204

CASTELLO, J. Sarmiento desaparecido, Prosa & Verso, O Globo, 29 de maio de 2010.

102

espanto e reconhecimento. Espanto pela modernidade de um escritor que, muito antes

das vanguardas, marcara uma virada em nossa literatura com um trabalho, cuja estrutura

era tão indefinida, que ninguém ousava classificar. José Castelo retoma também

comparações já feitas entre nosso escritor e o argentino Sarmiento, principalmente no

que se refere à primeira tentativa de compreensão do paradoxo deixado nesse continente

pelos colonizadores: a dicotomia entre civilização e barbárie. Importa mesmo enfatizar,

como muito bem ressalta o crítico, que Euclides havia estado “cara a cara com a loucura

de Canudos”. Afinal, de suas páginas saem a mais contundente denúncia contra o

extermínio de uma comunidade, organizado por um estado que portava modernos fuzis

e dirigia a poderosa matadeira contra um povo que apenas queria viver em paz.

A descrição feita por Euclides da chegada dos prisioneiros, ressaltada no Anexo

5, página 115, desta dissertação, chamaria a atenção para o ato de crueldade que estava

sendo perpetrado pela República, pois guerra, segundo o escritor, não houve, já que ela

“pressupõe o embate franco de dois exércitos regulares em campo aberto de batalha,

com artilharias e divisões similares, estudadas técnicas de ação e definidas estratégias

militares de ataque, recuo e confrontação”.205

A imagem dessas pessoas, no entanto,

deixaria espantados, inclusive, muitos militares envolvidos no combate. Já foi citada a

afirmação do escritor de que os soldados se “sentiam fora do Brasil”. Se pensarmos que

os invasores, num todo, tinham a mesma cara dos defensores de Canudos, é estranha

essa sensação de estar num território estrangeiro.

Infelizmente, a situação continua, pois, não raras vezes, é muito comum a cena

em que, parafraseando Caetano Veloso, vemos “a fila de soldados, quase todos pretos,

batendo em malandros e em ladrões pretos, ou em outros, quase brancos, mas tratados

como pretos”. E como ocorreu em Canudos, quando a República dizimou os habitantes

da comunidade por terem tido a petulância de defender o seu espaço, o “estado

jardineiro” continuou ouvindo o clamor da burguesia a qual, através da mídia, de modo

constante, continua pregando a invasão das favelas e, não raras vezes, a colocação do

Exército na rua, pois só assim poderia ser contida a violência que tanto abala a cidade.

E, continuando a paráfrase, percebemos que “o Haiti continua aqui”. Deste modo, é

preciso mostrar sempre “aos pretos, ou aos quase pretos, ou aos brancos e aos quase

brancos, mas pobres”, os quais, neste caso, também “haviam virado pretos”, pois é

assim que “pretos, pobres e mulatos devem ser tratados”. Afinal, “pobres são como

205

FONSECA, A. O pêndulo de Euclides, p. 183.

103

podres”.206

Daí a necessidade de podar as “ervas daninhas”, tal qual ocorrera no final do

século XIX, continua, muitas vezes, sendo colocada na ordem do dia. E se, em vez de

“mestres-escolas”, como sugeriu Euclides, a matadeira foi o sinal da modernidade

civilizatória em Canudos, hoje o “caveirão” atua como ponta de lança na invasão das

diversas comunidades cariocas, cuja população apresenta uma baixa perspectiva de vida

em todos os sentidos. Enfim, sem saúde, educação ou quaisquer benesses do poder

público, esses moradores foram, e continuam sendo, vítimas do “apartheid social”

criado pela República brasileira ao longo desses mais de cem anos.

Este resíduo da Modernidade pode ser expresso também através das inúmeras

mudanças promovidas pelo Estado com o intuito de caminhar para um progresso direto

e inevitável. Como vemos no Anexo 9, página 119, Canudos persiste, apesar de ter tido

seu local original alagado nos primeiros dias de março de 1969. Naquele momento,

seguindo um projeto executado em plena ditadura militar, as águas do rio Vaza Barris

foram represadas, formando o açude de Cocorobó, o qual cobriria o núcleo da antiga

Canudos. Por que eliminar um local no qual ocorrera talvez a mais forte manifestação

contra o poder do Estado aqui no Brasil? Mas Canudos sobrevive, mesmo tendo seus

arredores cercados agora pelo lixo e abandono, num outro resíduo da modernidade,

como observamos no Anexo 10, página 120. Segundo reportagem da revista

CartaCapital, “metade das caatingas se foi, substituída, quase sempre, pelo Cenchrus

ciliares, mais conhecido como Capim Buffel.”207

Essa vegetação foi transformada em

pastagem e, com o tempo, começou a ser tomada pelo plástico e pelo lixo resultantes

dos crescentes aglomerados urbanos. Mais uma vez, depois da matadeira, a

modernidade estava presente no sertão.

– O Soldado Velho possui a verdade da experiência e o Soldado Jovem, a

verdade da ficção. Nunca são idênticas, contudo, embora sejam de ordem diversa, às

vezes podem não ser contraditórias – diz Pichón.

– Certo – responde Soldi. – Mas a primeira pretende ser mais verdade do que a

segunda.

[...]

– Não o nego – diz. – Mas, a segunda, por que ela gosta tanto de se vender nas

casas de tolerância?208

O diálogo acima, presente em Juan José Saer, discute a questão da

verossimilhança pregada pela História, expondo a divergência entre a verdade da

206

VELOSO, C e GIL, G. Haiti. In.: Fina Estampa 2, 1995. 207

REVISTA CARTACAPITAL, 26 de dezembro de 2001, p. 27. 208

SAER, J.J. A pesquisa, p. 112.

104

experiência e a verdade da ficção. De certo modo, reflete o processo de construção de

Vargas Llosa em La Guerra del Fin del Mundo, evidenciando a sobreposição do fictício

em relação ao histórico, numa concretização natural como resultante do processo das

mudanças no campo intelectual citadas neste trabalho. Se Euclides se ancorava no

histórico, acreditando piamente, pelo menos a princípio, numa suposta verdade objetiva,

Vargas Llosa demonstrou que essa verdade tem que conjugar história, mito e

imaginação. Canudos era uma árvore de histórias, conforme dissera o jornalista míope

num dos momentos cruciais do romance. Essa conclusão, em suas devidas proporções,

também foi visualizada por Euclides; no entanto, em virtude do clima reinante na

intelectualidade da época, apresentou uma série de limitações. Em resumo, a miopia

intelectual e ideológica não lhe permitira, pelo menos inicialmente, enxergar o drama de

Canudos por inteiro.

Euclides trazia consigo um projeto de construção do Brasil, acreditando que tal

projeto levaria o país à modernidade. Entretanto, ele percebeu os conflitos latentes no

processo de constituição da nação, conseguindo entender as contradições daquelas

propostas, o que o fez chegar a essa tão sonhada modernidade bem antes de seu tão

querido país. Vargas Llosa, por outro lado, ampliou seu projeto, direcionando-o para a

América Latina. Na verdade, o escritor peruano aproveitou um momento em que essa

parte do continente procurava avidamente encontrar sua identidade e,

conseqüentemente, descobrir o seu lugar na América como um todo. O papel periférico

dessa região, ressaltado após as guerras de independência, transformara-a em fantoche,

mero joguete das grandes potências. O clima da Guerra Fria, em meados do século XX,

agudizava essa percepção. Cabia então à intelectualidade participar ativamente desse

processo.

A publicação de La guerra del fin del mundo em 1981 veio a calhar,

considerando o clima sócio-político-cultural reinante naquele momento. A narrativa

levou o leitor a um novo mergulho na realidade transformada em ficção por Vargas

Llosa, o qual sempre pretendera, conforme já afirmara em relação a Cien años de

soledad de Gabriel García Márquez, escrever o “romance total”. Se considerarmos que

sua narração dos eventos englobou diversos episódios, desde os antecedentes do

conflito, os detalhes de sua duração e a conclusão dos acontecimentos, ele certamente

conseguiu, pois os fatos que geraram Canudos e seu trágico desenlace não haviam sido

exclusividade do Brasil, mas uma constante em diversos pontos e em inúmeros

momentos da América Latina.

105

La guerra del fin del mundo trouxe em seu bojo um projeto de reconstrução para

este continente. Afinal, neste romance, Vargas Llosa quis ressaltar o fracasso das idéias

“extremadas”, destacando que elas em nada haviam contribuído para impulsionar os

diversos países latino-americanos, visto ele não acreditar que tais propostas

conseguissem efetivar uma integração entre o “eu” e o “outro”. Os diversos sectarismos,

de direita ou de esquerda, segundo sua opinião, não haviam conseguido mudar as

estruturas nem levar os habitantes dessa região a uma vida mais digna. Seu projeto

coadunava-se com os novos estudos culturais propostos a partir dos anos 70, tendo sido

fruto daquela série de acontecimentos que modificaram a sociedade mundial no pós-

guerra. Combinava, também, com um projeto neo-liberal o qual o escritor peruano

julgava ser o modelo impulsionador para a América Latina. Alguns de seus livros

mostram ditaduras sanguinárias, como Conversación en la catedral e La fiesta del

chivo, estabelecendo críticas contundentes a regimes discricionários. No entanto, ele

passa ao largo do fato de que tais regimes sempre ancoraram sua durabilidade no forte

apoio da “democracia” norte-americana. Segundo Petras, a ditadura seria inerente ao

capitalismo, pois nos Estados Unidos a democracia funcionaria, única e exclusivamente,

por estar submetida à ditadura do mercado. E não houve, até agora, nada que

conseguisse acuar tal poder.209

Todas as vezes que o estado norte-americano se viu

ameaçado, como na época do MaCartismo, por exemplo, o estado policial, de cunho

fascista, agiu com toda sua força.

Los cariños, el arrullo, el consuelo, el olor de esa mujer que había matado a su

hijo cuando él, adolescente, comenzaba a trabajar en un diario y que era ahora

sacerdotisa de Canudos, se parecían al opio y al éter, eran algo suave y letárgico, una

grata ausencia, y se preguntó si alguna vez, de niño, esa madre a la que él no había

conocido lo acarició así y le hizo sentir invulnerabilidad e indiferencia ante los peligros

del mundo. Por su mente desfilaron las aulas y patios del Colegio de los Padres

Salesianos donde, gracias a sus estornudos, había sido, como sin duda el Enano, como

sin duda el monstruo lector que estaba allí hazmerreír y víctima, blanco de burlas. Por

los accesos de estornudos y por su escasa vista había sido apartado de los deportes,

juegos fuertes, excursiones, tratado como inválido. Por eso se había vuelto tímido, por

esa maldita nariz ingobernable había tenido que usa pañuelos grandes como sábanas, y

por culpa de ella y de sus ojos obtusos no había tenido enamorada, novia, ni esposa y

había vivido con esa permanente sensación de ridículo que no le permitió declarar su

amor a las muchachas a las que amó, ni enviarles los versos que les escribía y que

luego cobardemente rompía. Por culpa de esa nariz y esa miopía sólo había tenido entre

los brazos a las putas de Bahía, conocido esos amores mercantiles, rápidos, sucios, que

dos veces pagó con purgaciones y curas con sondas que lo hacían aullar. Él también

era monstruo, tullido, inválido, anormal. No era accidente que estuviese donde

habíanvenido a congregarse los tullidos, los desgraciados, los anormales, los sufridos

del mundo. Era inevitable pues era uno de ellos.210

209

PETRAS, J. e VELTMEYER, H. Democracia y capitalismo: una relación incómoda, p. 140. 210

VARGAS LLOSA, M. La guerra del fin del mundo, Libro Cuatro, cuarto parágrafo, p. 483.

106

Euclides da Cunha, mesmo mostrando o abandono e a espantosa miséria daquela

região, mesmo ressaltando a luta titânica dos sertanejos, que pareciam renascer das

cinzas eternamente, mesmo denunciando os crimes cometidos pelo exército em

Canudos, não havia “ultrapassado a fronteira” nem passado para o “outro lado”. Ele,

como homem do seu tempo, insistia sempre na tese de que somente um “banho de

civilização” poderia salvar “aquela gente”. A ficção, entretanto, fizera o jornalista

míope viver a experiência de ser “um deles”. Ele havia sido acolhido por Maria

Quadrado, a infanticida, agora sacerdotisa de Canudos. Sentira a miséria e a angústia

dentro de si mesmo e vira o apocalipse se abater sobre a cidade. Euclides, inicialmente,

não havia conseguido perceber de maneira muito clara o andamento dos fatos, uma vez

que seu idealismo levava-o a acreditar no poder exercido pela República. De certo

modo, ele, como intelectual, também havia sido visto, muitas vezes, como um estranho

dentro da sociedade brasileira do início do século XX. Já citamos que Luís Costa Lima

o apresenta como um grande romântico, daí a ligação estabelecida por Vargas Llosa

entre o escritor brasileiro e um personagem considerado idealista pelo autor peruano.

O jornalista míope, no entanto, havia entendido que Antônio Conselheiro e a

cidade de Canudos tinham dignificado todos os moradores daquela comunidade e se

eternizariam, como bem mostra o Anexo 6, na página 116. E a pena de Vargas Llosa,

cujo foco narrativo está direcionado no momento mais importante do livro pela ótica

desse personagem, leva-nos a perceber que todos em Canudos, sem exceção, eram

vencedores e, mais importante ainda, ele, o jornalista míope, havia experimentado isso

também. É fundamental mesmo, nisso tudo, compreender a grandiosidade de Euclides,

míope apenas por causa dos poucos meios de que dispunha para tentar fixar o que ele

julgaria ser a verdade objetiva. Como não enxergar então a modernidade presente nas

opiniões de um escritor que, na primeira década do século XIX, num país como o

Brasil, distante ainda da consciência adquirida pelos protagonistas das lutas sociais

travadas no continente europeu, teve a capacidade de entender que “a exploração

capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da

máquina”?211

Ele teve sensibilidade suficiente para perceber a incoerência do “Estado

Jardineiro” para assim poder denunciar o crime cometido por aquela “sociedade pulha e

sanguinária”.

211

CUNHA, E. Contrastes e confrontos. In: MATOS, M. Migalhas de Euclides da Cunha, p. 395.

107

BIBLIOGRAFIA

01. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 2002.

02. BAKHTIN, Mikhail, Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro:

Forense-Universitária, 1997.

03. ------. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São

Paulo: Editora Hucitec, 1988.

04. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1999

05. BERNUCCI, Leopoldo M., org. Discurso, Ciência e Controvérsia em

Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp. 2007.

06. BOMBINHO, Manuel Pedro das Dores. Canudos, história em versos. São

Paulo, Editora Hedra Ltda., 2002.

07. BILAC, Olavo. Vossa insolência, A.Dimas, Companhia das Letras, São

Paulo, 1996.

08. BURKE, Peter. A escrita da história. Novas Perspectivas. São Paulo:

Unesp, 2001.

09. CAMPOS, Augusto de e CUNHA, Euclides da. Jornal de poesia. In:

www.revista.agulha.nom.br/euclid.html.

10. CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. Madrid: Alianza Editorial,

2006.

11. COSTA, Adriane Vidal. Vargas Llosa: um intelectual latino-americano

entre Sartre e Camus. Revista Brasileira de História e Ciências Sociais,

Ano I, nº I, Julho de 2009.

12. CUNHA, Euclides da. Ondas. São Paulo: Martin Claret, 2005.

13. ------. Obra completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1966, vol. I.

14. ------. Os sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

15. DÍEZ, Luís Alfonso, org. Asedios a Vargas Llosa. Santiago: Editorial

Universitaria, 1972.

16. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1981.

108

17. FOLHA DE SÃO PAULO, 02 de maio de 2010.

18. FONSECA, Aleilton. O pêndulo de Euclides. Rio de Janeiro: Editora

Bertrand Brasil Ltda, 2009.

19. FRANCO, Jean. La cultura moderna en América Latina. México:

Editorial Grijalbo, 1985.

20. GALLOTTI, Oswaldo e GALVÃO, Walnice Nogueira. Correspondência

de Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp, 1997.

21. GALVÃO, Walnice Nogueira. O império do Belo Monte: vida e morte de

Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

22. ------. No calor da hora: a Guerra de Canudos nos jornais da 4ª

Expedição, São Paulo: Editora Ática, l974.

23. GIL, Gilberto e VELOSO, Caetano. Haiti. In: Fina Estampa ao vivo. São

Paulo: Polygram, 1995. 1 disco (CD): som, faixa 5.

24. GOMES, Gínia Maria, org. Euclides da cunha: literatura e história. Porto

Alegre: Editora da UFRGS, 2005.

25. HARRS, Luís. Mario Vargas Llosa, o los vasos comunicantes. In: Los

Nuestros. Del original en Inglés: “Into the mainstream”. Traducción,

revisión y adaptación del autor. Buenos Aires: Editorial Sudamericana,

Colección “Perspectivas”, 1966.

26. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago

Editora, 1988.

27. JORNAL DO BRASIL, 30 de maio de 2010.

28. JOZEF, B.K. Romance hispano-americano. São Paulo: Editora Ática,

1986.

29. KURTZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Editora Vozes, 1998.

30. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.

31. LIMA, Luiz Costa. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

32. LIRINHA. A matadeira (ou no balanço da justiça). In: Cordel do fogo

encantado. O palhaço do circo sem futuro. São Paulo: Estúdio Be bop

(gravação independente), 2002. 1 disco (CD): som, faixa 11.

33. LUKÁCS, Georg. La novela histórica. Traducción de Jasmín Reuter. 3

ed. México: Biblioteca Era, 1977.

109

34. ------. Sociologia. Org. José Paulo Neto. Coleção grandes cientistas sociais.

São Paulo, Editora Ática, 1981.

35. MATOS, Miguel. Migalhas de Euclides da Cunha. São Paulo: Editora

Migalhas, 2009.

36. MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina,

1979-1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

37. MOTA, Carlos Guilherme. Os bondes da história. In: Revista Cult. Ano

11, número 126, julho/2008. São Paulo: Editora Bregantini.

38. NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernando. Notícias do Brasil (Os

pássaros trazem). In: NASCIMENTO, Milton. Caçador de mim. Rio de

Janeiro: Universal Music, 2000. 1 disco (CD): som, faixa 4.

39. O GLOBO, 29 de maio de 2010.

40. PESAVENTO, Sandra Jatahy e LEENHARDT, Jacques, org. Discurso

histórico e narrativa literária. Campinas: UNICAMP, 1998.

41. PETRAS, James e VELTMEYER, Henry. La globalización

desenmascarada: El imperialismo en el siglo XXI. México, Universidad

Autónoma de Zacateca, 2003.

42. PLATÃO. A república. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 2004.

43. RAMA, Ángel. Más allá del boom: literatura y mercado. Buenos Aires:

Folios Ediciones, 1984.

44. REVISTA CARTACAPITAL, Os sertões 100 anos depois. São Paulo:

Carta Editorial Ltda., nº 171, 26 de dezembro de 2001.

45. REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, Guerra de

Canudos: a comovente história de um órfão. Rio de Janeiro: Sociedade de

Amigos da Biblioteca Nacional, nº 26, novembro de 2007.

46. ------. Euclides da Cunha: o homem, a obra-prima, a morte trágica. Rio

de Janeiro: Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, nº 47, agosto,

2009.

47. RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Narradores de esta América (t.2).

Buenos Aires: Editorial Alfa Argentina, 1974.

48. SAER, Juan José. A pesquisa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

49. SAID, Edward W. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia

das Letras, 2005.

110

50. SAMPAIO, Consuelo Novais Sampaio. Org. Canudos: cartas para o

barão. São Paulo: EDUSP, 2001.

51. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação

cultural na Primeira República. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1987.

52. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra, Livraria

Almedina, 1973.

53. VARGAS LLOSA, Mario. La verdad de las mentiras. Madrid: Santillana

Ediciones Generales, 2003.

54. ------. Contra viento y marea (I). Barcelona: Seix Barral, 1986.

55. ------. La fiesta del chivo. Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2006.

56. ------. La guerra del fin del mundo. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1993.

57. ------. Peixe na água. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

58. ZALUAR, Alba e ALVITO, Marcos (org.). Um século de favela. Rio de

Janeiro: Editora FGV, 2004.

111

ANEXO I

LA HISTORIA HARÁ SU HOMENAJE A LA

FIGURA DE ANTONIO, EL CONSEJERO.

En un profundo desierto sin ninguna fuente Quienes vivían a su lado siempre quisieron

surgió un régimen igualitario. cambiar en real la fantasía.

Allá, un justo ya sexagenario El reino de los cielos no les prometía,

hizo erguir la ciudad de Belomonte , pero un reino en la tierra, más feliz.

para entonces discernir un horizonte, Al final, solo el pueblo del país

Sin malicia, sin delincuencia y sin dinero, puede dar su retrato verdadero

sin burdel, ningún impuesto, ni carcelero. de este líder, auténtico mensajero,

Mas fue asesinado y visto como un salvaje. ya que alguien ha distorsionado su imagen.

Pero la Historia hará su homenaje Pero la Historia hará su homenaje

a la figura de Antonio, el Consejero. a la figura de Antonio, el Consejero.212

212

VILA NOVA, Ivanildo. Interpoética.

112

ANEXO II

O HOMEM QUE VINGOU O SERTÃO.

Testemunhei in loco as ações militares em Belo Monte. Constatei a ferocidade

dos combates. Vi o desespero dos soldados e dos comandantes diante da bravura e da

resistência dos sertanejos. Estes defendiam suas famílias, suas terras, suas casas, suas

igrejas. Em geral, só reagiam quando atacados. Entretanto, tomados de ódio e

ansiedade, os militares perpetraram diversas atrocidades contra os camponeses: homens

e mulheres, velhos e crianças. Lançaram bombas de dinamite e incendiaram a cidadela,

destruindo-a totalmente. Mataram a sangue-frio, humilharam os sobreviventes,

traficaram órfãos. Entre tais crimes avulta a infame degola, a terrível gravata vermelha,

aplicada aos prisioneiros que se entregaram e, ainda assim, foram executados friamente.

Cidadãos, não houve a Guerra de Canudos!

O que houve foi o ataque brutal de um exército regular contra um povo

destemido, entocado em sua cidadela, sem preparo nem vocação militar, mas cioso de

seu sagrado direito de defesa, ainda que movido unicamente pela fé e pela honra. Eles

pereceram, mas os soldados não triunfaram.

Encerrou-se, no vasto teatro do sertão, uma tragédia: o terrível massacre do

Arraial do Belo Monte!213

213

FONSECA, A. Testemunho de Euclides. In: O pêndulo de Euclides, pp.182-184.

113

ANEXO III

CANUDOS ANTES DA GUERRA

214

(...)

Naquela terra eles plantam

Mandioca, milho e feijão

Criam carneiros e bodes

Que agüentam o sol do sertão

Trabalhando, a comunidade

Reparte em igualdade

A safra do mutirão

(...) 215

No faltaba que comer. Había granos, legumbres, carnes, y, como el Vassa

Barris tenía agua, se podía sembrar. Los que llegaban traían provisiones y de otros

pueblos solían mandarles aves, conejos, cerdos, cereales, chivos.216

… las gentes no venían a Canudos atraídas por la codicia o la idea de

prosperidad material. La comunidad vivía entregada a ocupaciones espirituales:

oraciones, entierros, ayunos, procesiones, la construcción del Templo del Buen Jesús y,

sobre todo, los consejos del atardecer que podían prolongarse hasta tarde en la noche y

durante los cuales todo se interrumpía en Canudos.217

214

Reprodução do arraial de Canudos feita por anônimo. 215

Zé Antônio, O guerreiro de Belo Monte contra a prudente matadeira. Imprenta, Aracaju, 1992. p.26. 216

VARGAS LLOSA, M. Libro Uno, quarto capítulo, p. 62. 217

Ibid. p. 64.

114

ANEXO IV

21 DE NOVEMBRO DE 1896

Pintura de Trípoli Gaudenzi

Não pareciam guerreiros

Símbolos da paz portavam

A bandeira do Divino

E ao som de Kyries marchavam,

Levando uma grande cruz,

De longe se anunciavam.218

Zé Guilherme

Un extraño grito de guerra – !Viva el Consejero!, ¡Viva el Buen Jesús! –

conmovió a los elegidos, que, azuzados por el júbilo, apresuraron el paso. […] Ni la

cruz ni la bandera, en las varias horas de lucha y confusión, dejaron de estar erecta la

una y danzante la otra, en medio de una isla de cruzados que, aunque acribillada,

subsistió, compacta, fiel, en torno a esos emblemas en los que, más tarde, todos verían

el secreto de la victoria. Porque ni Pedrão, ni João Grande, ni la Madre de los Hombres,

que llevaba la urna con la cara del Hijo, murieron en la refriega. 219

218

www.portfolium.com.br 219

Ibid., Libro Uno, quinto capítulo, pp.82-83.

115

ANEXO V

O HAITI É AQUI.

220

Por fim os próprios prisioneiros que chegavam e eram, no fim de tantos meses

de guerra, os primeiros que apareciam. Notou-se apenas, sem que se explicasse a

singularidade, que entre eles não surgia um único homem feito. Os vencidos,

varonilmente ladeados de escoltas, eram fragílimos: meia dúzia de mulheres tendo ao

colo crianças engelhadas como fetos, seguidas dos filhos maiores, de seis a dez anos.

Passaram pelo arraial entre compactas alas de curiosos, em que se apertavam fardas de

todas as armas e de todas as patentes. Um espetáculo triste.

As infelizes, em andrajos, camisas entre cujas tiras esfiapadas se repastavam

olhares insaciáveis, entraram pelo largo, mal conduzindo pelo braço os filhos

pequeninos, arrastados.

Eram como animais raros num divertimento de feira.221

220

REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, N° 16. 221

CUNHA, E. Os sertões, p. 679.

116

ANEXO VI

ANTÔNIO CONSELHEIRO VIVE.

222

Mediante a sua instrução Desta forma na Bahia

Naquela sociedade Crescia a comunidade

Reinava paz e união E ao mesmo tempo crescia

Dentro do grau de igualdade Uma bonita cidade,

Com a palavra de Deus, Já Antônio Conselheiro

Ele conduzia os seus, Sonhava com o luzeiro

Era um movimento humano Da aurora de nova vida,

De feição socialista, Era qual outro Moisés,

Pois não era monarquista Conduzindo seus fiéis

!Nem era republicano. Para a terra prometida.223

222

REVISTA CARTA CAPITAL nº 171, 26/12/2001. 223

EUCLYDIANA 100 + PATATIVA DO ASSARÉ

117

ANEXO VII

CORAÇÃO DAS TREVAS NO SERTÃO BRASILEIRO

O HORROR!!! O HORROR!!!

CADÁVERES NAS RUÍNAS DE CANUDOS

224

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao

esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu

no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.

Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais

rugiam raivosamente cinco mil soldados.

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos

fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas

cerramo-la vacilante e sem brilhos.

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma

perspectiva maior, a vertigem.

Ademais não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em

que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares,

abraçadas aos filhos pequeninos?...

[...]

Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas,

5200, cuidadosamente contadas.225

224

BARROS, Flávio. Imagens de fotos da Guerra de Canudos. 225

CUNHA, E. Os sertões, p. 778-779.

118

ANEXO VIII

226

E o sertão é um Vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.

Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora;

o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem

a intermitência das chuvas – o espasmo assombrador da seca.

A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.227

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. [...]

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a

fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso,

aparenta a translação de membros desarticulados. [...]

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendente do que vê-la desaparecer de improviso. [...] Basta o

aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias

adormecidas. 228

Canudos só seria conquistado casa por casa. Toda a expedição iria despender

três meses para travessia de cem metros, que a separavam do abside da igreja nova. E

no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas na História,

os seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs

famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil

homens!229

226

FOLHA ILUSTRADA. In: FOLHA DE S.PAULO, Domingo, 02/05/2010. 227

CUNHA, E. Os sertões, p. 135. 228

Ibid., pp. 207-208. 229

Ibid., p. 622.

119

ANEXO IX

O SERTÃO VAI VIRAR MAR

Representação do fundador do povoado, a estátua de Antônio Conselheiro parece

observar do mirante o açude de Cocorobó (à esquerda) e a nova Canudos (à direita).230

SOBRADINHO

O Homem chega e já desfaz a Natureza

Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar

O São Francisco lá pra cima da Bahia

Diz que dia menos dia vai subir bem devagar

E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia

Que o sertão ia alagar

O sertão vai virar mar, dá no coração

O medo que algum dia o mar também vire sertão

Vai virar mar, dá no coração

O medo que algum dia o mar também vire sertão231

230

FOLHA ILUSTRADA, in: FOLHA DE S.PAULO, Domingo, 02/05/2010. 231

Sá e Guarabyra, Sobradinho.

120

ANEXO X

O RESÍDUO DA PÓS-MODERNIDADE

O SERTÃO VAI VIRAR PLÁSTICO. E PASTO.

NÃO VIROU MAR. Em Queimadas, Cansanção, Monte

Santo, Canudos... a caatinga dá lugar ao plástico e ao lixo.232

METADE DA CAATINGA JÁ SE FOI

CC: Qual o problema nisto?

EM: A caatinga é uma vegetação natural com muitas funções. Ela protege e

preserva o solo. [...] Além de um bem produtivo, é um bem cultural do Brasil. O

sertanejo tem uma visão sacralizada da natureza, para ele é uma manifestação

privilegiada de Deus.

CC: O que já se perdeu?

EM: A perda é em todo o Nordeste, mas nessa região já se perdeu 50% das

caatingas. É urgente criar unidades de conservação das caatingas, não há um único

Parque Nacional.233

232

OS SERTÕES 100 ANOS DEPOIS. In.: REVISTA CARTA CAPITAL, nº 171, 26/12 2001. p. 27. 233

Ibid., Entrevista do agrônomo Eduardo de Miranda. p. 30.

.

121