vanessa diniz, epistemologia juridica

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A evolução das concepções epistemológico-jurídicas de fundamentação do direito e o novo enfoque do direito natural Vanessa do Carmo Diniz Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais Mestranda em Direito pelo Centro UNISAL Resumo O texto aborda a construção epistemológico-jurídica de fundamentação do direito, dando ênfase à importância do jusnaturalismo ao longo dos séculos. Demonstra, assim, que o direito natural, em que pese não mais ser utilizado como base científica para fundamentação do direito, tem sido resgatado como parâmetro para a busca de um direito justo, que melhor se adapte aos anseios da sociedade. Palavras-chave Epistemologia – Direito – Ciência – Direito Natural – Justiça. Sumário Introdução. 1. A cientificidade do saber jurídico. 1.1 Jusnaturalismo. 1.1.1 O jusnaturalismo na antiguidade. 1.1.2 O jusnaturalismo na idade média. 1.1.3 O jusnaturalismo na era moderna. 1.2 Positivismo. 1.3 Culturalismo Jurídico. 2. O resgate do direito natural como parâmetro de um direito justo. Conclusão. Referências bibliográficas. Introdução Partindo do estudo epistemológico do direito, o presente trabalho tem por objetivo a análise das teorias que buscaram fundamentar o direito enquanto ciência ao longo dos séculos, desde as primeiras manifestações do direito natural na antiguidade

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Page 1: VANESSA DINIZ, Epistemologia Juridica

A evolução das concepções epistemológico-jurídicas de fundamentação do direito e o novo enfoque do direito natural

Vanessa do Carmo Diniz Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais

Mestranda em Direito pelo Centro UNISAL Resumo

O texto aborda a construção epistemológico-jurídica de fundamentação do

direito, dando ênfase à importância do jusnaturalismo ao longo dos séculos. Demonstra,

assim, que o direito natural, em que pese não mais ser utilizado como base científica

para fundamentação do direito, tem sido resgatado como parâmetro para a busca de um

direito justo, que melhor se adapte aos anseios da sociedade.

Palavras-chave

Epistemologia – Direito – Ciência – Direito Natural – Justiça.

Sumário

Introdução. 1. A cientificidade do saber jurídico. 1.1 Jusnaturalismo. 1.1.1 O

jusnaturalismo na antiguidade. 1.1.2 O jusnaturalismo na idade média. 1.1.3 O

jusnaturalismo na era moderna. 1.2 Positivismo. 1.3 Culturalismo Jurídico. 2. O resgate

do direito natural como parâmetro de um direito justo. Conclusão. Referências

bibliográficas.

Introdução

Partindo do estudo epistemológico do direito, o presente trabalho tem por

objetivo a análise das teorias que buscaram fundamentar o direito enquanto ciência ao

longo dos séculos, desde as primeiras manifestações do direito natural na antiguidade

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clássica, passando pelo jusnaturalismo, positivismo e culturalismo jurídico, até as

modernas teorias da justiça que trazem um novo enfoque do direito natural.

O jusnaturalismo, a par de não configurar hoje uma doutrina utilizada para

fundamentar e legitimar o direito, mostrou-se forte o suficiente para servir de base para

a construção do conhecimento jurídico-científico ao longo da evolução da ciência do

direito. Partindo do estudo do direito natural, demonstrou um pluralismo no enfoque

desse direito, sem perder a importância ao longo da busca do ideal de justiça na

sociedade.

Atualmente o direito natural é resgatado por jusfilósofos que abandonam o

caráter universal e imutável desse direito, para identifica-lo com as aspirações de cada

sociedade e em cada época. Esse direito vai servir de parâmetro para a busca de um

direito justo.

Na verdade, o desencanto em torno do positivismo jurídico e sua concepção de

que os juristas deveriam aplicar a lei sem questionar a sua justiça e legitimidade fez com

que positivistas se convertessem a esse novo enfoque jusnaturalista, através do qual o

direito natural vai servir de crítica ao modelo positivista fundado na organização política

liberal e as injustiças decorrentes de sua aplicação ao longo dos anos.

1. A cientificidade do saber jurídico

As questões atinentes à cientificidade do saber jurídico, tais como: “O que é a

ciência do direito? Qual o seu objeto específico?”, dentre outras, são interrogações

atinentes a um dos problemas jusfilosóficos fundamentais. Compete, pois, à filosofia do

direito, na sua parte especial denominada epistemologia jurídica, estudar os

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pressupostos do conhecimento jurídico, bem como a evolução das escolas cientifico-

jurídicas que predominaram na história da busca do caráter científico do direito.

Epistéme vem do grego e significa ciência, e logos, também do grego, quer

dizer estudo. Assim a epistemologia jurídica representa o estudo do direito enquanto

ciência. Nesse sentido, Maria Helena Diniz tece os seguintes esclarecimentos:

Logo, a epistemologia jurídica é a teoria da ciência do direito, um estudo sistemático dos pressupostos, objeto, método, natureza e validade do conhecimento jurídico-científico, verificando suas relações com as demais ciências, ou seja, sua situação no quadro geral do conhecimento. (2005, p. 06).

E acrescenta:

A fundamentação filosófica da ciência [...] é tarefa da filosofia da ciência, ou melhor, da epistemologia. Isto é assim porque nenhum ramo da ciência pode viver sem filosofia, porque é nela que o cientista vai buscar as linhas mestras que orientam e norteiam o saber científico. [...] Uma explicação crítica sobre o conhecimento de seu método, de seu objeto de estudo, de seus pressupostos ou postulados, não nos saberia dar a ciência. Tudo isso, portanto, é tarefa da teoria da ciência, ou seja, da epistemologia. (op. cit., p. 22).

A seguir, será apresentado um panorama histórico das principais teorias

epistemológico-jurídicas que se preocuparam com o pensamento jurídico enquanto

ciência, desde o jusnaturalismo da antiguidade clássica até o tridimensionalismo

jurídico de Miguel Reale e a moderna filosofia do direito natural de Rudolf Stammler.

1.1 Jusnaturalismo

Os jusnaturalistas partem do direito como sendo a atividade humana voltada à

garantia de uma convivência justa, o que significa uma convivência ordenada de acordo

com os padrões adequados da moralidade.

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Para alcançar essa ordem justa, parte-se de princípios que são justos por

natureza, tais como, a vida do semelhante não deve ser ofendida, as promessas devem

ser mantidas, deve-se dar a cada um o que é seu, quem causar prejuízo a outras pessoas

deverá repara-lo, os pais devem zelar por seus filhos e os filhos observar os comandos

de seus pais. Ou seja, a máxima do direito natural é: faz o bem e evita os males

(COSTA, 2001, p. 248).

Mas, para garantia de uma ordem justa, a observância do direito natural é

necessária, mas não suficiente, pois, ainda que se tenha como preceito do direito natural

que não é permitido matar, este não estabelece quais devem ser as penas, havendo

necessidade do direito positivo.

Há, no entanto, uma pluralidade de jusnaturalismos, vez que ao longo dos

séculos houve vários entendimentos sobre o que significa natureza.

Assim, autores afirmaram que o direito natural decorria da vontade divina.

Outros, que não se prenderam à teologia, entendiam o direito natural como derivado da

razão humana. Por fim, especialmente após a segunda guerra mundial, a idéia de direito

natural foi revista e reformulada a partir da análise de conteúdos históricos e variáveis,

resgate este que será abordado no último item do presente trabalho.

Percebe-se, pois, que o jusnaturalismo nasceu e se desenvolveu como uma

tentativa de resolver os problemas relativos ao direito em geral, partindo da referência a

padrões gerais de justiça que servem como base e limites do direito.

1.1.1 O jusnaturalismo na antiguidade

A idéia de que existem certos princípios jurídicos naturais está presente na

cultura do direito ocidental desde a antiguidade.

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Na Grécia antiga, a tragédia Antígona1, de Sófocles, tem um enredo que gira em

torno do conflito entre as leis divinas e as leis humanas. Tem-se, com isso, uma das

primeiras manifestações da idéia de um direito natural decorrente da vontade dos

deuses.

Carlos Eduardo de Abreu Boucault, no artigo O conceito platônico-aristotélico

de direito natural e o mito de Antígona: do direito arcaico ao jusnaturalismo cristão,

publicado na Revista de Estudos Jurídicos Unesp (1997), questiona a correlação do

direito invocado por Antígona com a idéia de direito natural hoje difundida, aduzindo

que:

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. [...] Existem uma justiça que é natural e uma justiça que não é natural. É possível ver claramente quais as coisas que podem ser de outra maneira, que são como são por natureza, e as que não são naturais, e sim convencionais. (apud COSTA, 2001, p. 256)..

De fato, o direito natural assumiu um novo enfoque na sociedade

contemporânea, o que será analisado no último tópico do presente artigo. No seu

surgimento, contudo, havia um caráter divino identificado no direito natural, o qual era

tido como algo universal e imutável, e que hoje não mais prevalece.

Com efeito, o estudo evolutivo do enfoque do direito natural através do que foi

chamado acima de pluralidade de jusnaturalismos auxilia na análise de seu regate na

atualidade.

Ainda na antiguidade, o autor supracitado já identifica que “Aristóteles é

favorável (ao menos, sob certas circunstâncias) às normas convencionais ou

1 A Antígona de Sófocles conta que o Imperador Creonte, ao assumir o trono, determinou que seu sobrinho Polinices permanecesse insepulto, e que o descumprimento ensejaria a condenação à morte. Diante de tal decreto, Antígona, irmã de Polinices, decidiu proceder aos ritos funerários de seu irmão na certeza de que estaria obedecendo à lei divina, que lhe ordenava enterrar o irmão.

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costumeiras que sejam modificadas ao influxo do progresso social”. Ou seja, já se

percebe um início da descaracterização da imutabilidade do direito natural, o que,

contudo, só será melhor desenvolvido bem mais tarde.

Mas ainda na Grécia, os sofistas, conhecidos como “professores itinerantes”,

começam a teorizar a diferença entre natureza (eventos que acontecem de forma regular

em todos os locais) e cultura (realidade construída socialmente). Essa concepção foi

desenvolvida pelos filósofos e melhor formulada por Aristóteles, que propôs a

diferenciação entre as regras que são válidas por natureza e aquelas que são válidas por

convenção social, dizendo que:

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. [...] Existem uma justiça que é natural e uma justiça que não é natural. É possível ver claramente quais as coisas que podem ser de outra maneira, que são como são por natureza, e as que não são naturais, e sim convencionais. (apud COSTA, 2001, p. 256).

Em seguida, surge o estoicismo representando a comunhão de grande número de

pensadores, marcados por uma mesma visão de mundo, apesar da liberdade de

interpretação dessa escola, que, não obstante a ausência de obras conservadas, perdurou

pelo menos seis séculos. O conceito de natureza foi colocado pelos estóicos no centro

do sistema filosófico. Para eles, o direito natural era idêntico à lei da razão, e os

homens, enquanto parte da natureza cósmica, eram uma criação essencialmente

racional. Portanto, enquanto este homem seguisse sua razão, libertando-se das emoções

e das paixões, conduziria sua vida de acordo com as leis de sua própria natureza. Existia

um direito natural comum, baseado na razão, que era universalmente válido em todo o

cosmos e era a base do direito e da justiça.

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De certa forma, os estóicos confundiam lei geral do universo com o direito

natural que se aplicaria a todas as criaturas. Entretanto, entre eles e mais tarde entre os

romanos, mas sobretudo entre os filósofos cristãos, seria realçado o aspecto humano do

direito natural.

O estoicismo influiu sobre a justiça romana, e Cícero foi o maior representante

na antigüidade clássica da noção de direito natural, sendo o grande divulgador dos

princípios da ética estóica. O que interessava a Cícero era o direito e não a lei. Para ele

os homens nasceram para a justiça e era na própria natureza, não no arbítrio, que se

fundava o direito. Apesar da riqueza desses pensamentos encontrados na antiguidade

sobre o direito natural e o conceito de justiça, a realidade não correspondia à

preocupação demonstrada pelos pensadores. Muitas das civilizações ocidentais antigas

baseavam-se em conceitos primitivos de justiça, sendo que o trabalho escravo se

colocava na base da sociedade.

Outrossim, o direito romano, de acordo com Fábio Konder Comparato, ao

escrever sobre Ética, direito, moral e religião no mundo moderno, “foi o primeiro

sistema jurídico capaz de se aplicar fora do meio social onde havia sido gerado”, o que

se explica em razão do seu universalismo. Ou seja, antes cada sistema jurídico fazia

parte das instituições próprias de um povo, passando a ultrapassar esse meio a partir das

construções romanas, o que influenciou sobremaneira na criação da ciência do direito.

1.1.2 O jusnaturalismo na idade média

Na idade média, a teoria jusnaturalista assumiu um conteúdo teológico, na

medida em que os fundamentos do direito natural eram a inteligência e a vontade

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divina, devido ao fato de a sociedade e a cultura estarem marcados pelo predomínio da

fé.

Seguindo a linha de pensamento do autor supracitado, o mesmo traça a linha em

que se desenvolve o cristianismo:

O cristianismo, embora movendo-se na linha lógica de alguns princípios da filosofia estóica [...], timbrou, no entanto, em distinguir a esfera divina da humana, e esta do mundo inferior ao homem. O Deus único e verdadeiro, criador do céu e da terra, e não mais a natureza, tornou-se o modelo absoluto para as nossas vidas, pois Ele é, em si mesmo, segundo o Evangelho, a fonte primeira e eterna da verdade, da justiça e do amor.

Nesse contexto, as normas morais e costumeiras tinham profundas raízes

teológicas e eram consideradas direito. Contudo, era preciso desenvolver teorias que

explicassem a relação entre o direito natural e o direito positivo, de forma a legitimar o

direito posto através de uma fundamentação religiosa, decorrente da natureza divina do

homem.

Essas idéias difundiram-se de maneira mais profunda na alta idade média,

quando São Tomás de Aquino propôs a existência de três espécies de leis: a lei eterna

ou divina (a razão divina, a verdade revelada nas escrituras), a lei natural (parcela da

razão divina que o homem poderia conhecer a partir da sua própria racionalidade) e a lei

humana (estabelecida convencionalmente). Dessa forma, a lei eterna ou divina era

perfeita e imutável, seguida pela lei natural, e em último lugar a lei humana, a mais

imperfeita de todas, que deveria seguir as leis divinas e naturais, não podendo

transgredi-las.

A concepção de São Tomás já indica a idéia central que se tornará a base do

jusnaturalismo na era moderna: o problema da racionalidade.

1.1.3 O jusnaturalismo na era moderna

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A partir do renascimento cultural na Europa, a razão substituiu a fé como valor

fundamental, dando origem ao desenvolvimento de linhas filosóficas racionalistas, que

culminaram no Iluminismo do século XVIII.

Houve, contudo, um período de transição entre a substituição da fé pela razão,

destacando-se o pensamento de Hugo Grocio, que definiu o direito natural como:

[...] um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário, segundo seja ou não conforme à própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em consequência disto, vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza. (apud COSTA, 2001, p. 259).

A descrição de direito natural supracitada demonstra a natureza racional do

homem, bem como a origem divina das regras naturais, caracterizando o momento de

transição.

Na medida em que o iluminismo tomava conta das idéias européias, teóricos

como Locke, Montesquieu e Rousseau empenharam-se em explicar, a partir de bases

agora unicamente racionais, a organização política e jurídica das sociedades.

As correntes jusracionalistas defendiam a existência de um direito natural

composto por regras que poderiam ser fundamentadas na própria razão humana, através

da qual o homem seria capaz de construir uma nova legislação para subordinar toda a

sociedade por meio de um governo uniforme.

Na área jurídica, havia a necessidade de oferecer novos fundamentos para o

direito positivo, na medida em que o jusnaturalismo teológico perdia gradualmente sua

força. Sendo o direito positivo emanado do poder do Estado, o fundamento do direito

não poderia ser diverso do fundamento da autoridade estatal. Assim, as construções

teóricas passaram a utilizar para legitimar o direito a mesma teoria iluminista de

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justificação da autoridade política do Estado, qual seja, a teoria do contrato social, que

parte do pressuposto de que o homem é naturalmente livre e racional.

Kant levou o jusracionalismo às últimas conseqüências. Em sua teoria,

desenvolve a separação entre direito e moral através de uma ótica formal, e não

material. Ou seja, a distinção depende do motivo pelo qual se cumpre a norma jurídica

ou moral: no ato moral, o motivo só pode ser a própria idéia do dever, mesmo que seja

diretamente dever jurídico e só indiretamente dever moral; porém, no ato jurídico, o

motivo de agir pode ser, além do motivo moral de cumpri o dever, o da aversão à

sanção.

Para Kant, sendo o homem racional e livre, é capaz de impor a si mesmo normas

de conduta, designadas por normas éticas, válidas para todos os seres racionais. Assim,

essa norma moral básica imposta pelo homem a si mesmo se identifica com a norma de

direito natural. As normas jurídicas serão de direito natural se sua obrigatoriedade for

identificada pela razão pura, sem depender de legislação externa.

A partir do desenvolvimento do jusracionalismo, os juristas da época julgavam

ser possível descobrir, mediante procedimentos racionais, quais eram as regras de

direito natural adequadas para organizar qualquer sociedade humana. Assim, grandes

códigos foram construídos.

Nesse contexto, a revolução francesa marcou o apogeu do direito natural, vez

que o direito positivo passou a ser construído pelos jusracionalistas. Na medida em que

o direito positivo começou a ser entendido como a expressão perfeita do direito natural,

não havia mais como questionar o direito posto pelo Estado com base em regras

naturais. Assim, o direito natural foi praticamente reduzido ao direito positivo, ou seja, à

lei, desvinculando-se gradualmente de suas bases jusnaturalistas e dando origem a uma

nova fase de fundamentação do direito, denominada positivismo.

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1.2 Positivismo

A transição do jusnaturalismo para o positivismo jurídico foi marcada pelo

historicismo, de acordo com o qual a organização jurídica seria condicionada por fatores

históricos. Tendo como principal representante o alemão Savigny, as teorias

historicistas criticavam as idéias jusnaturalistas que identificavam regras universais,

válidas em qualquer tempo e para qualquer povo, afirmando que o direito era uma

criação cultural de cada povo.

Mais tarde, o historicismo vai servir de base para a construção de teorias do

direito natural de conteúdo variável. Por hora, cabe ressaltar que as escolas históricas

serviram para fazer cair por terra as antigas concepções de direito natural de caráter

universal e imutável, declinando de vez com o jusnaturalismo.

Conforme especificado no final do item anterior, as mudanças no contexto social

e na estrutura econômica trazidas pela revolução francesa forneceram as bases para o

desenvolvimento do positivismo jurídico. As idéias democráticas identificavam a

vontade do povo como fonte do direito a partir dos fatores históricos de cada época e

lugar. A ênfase na legislação como fonte de regras estáveis para manutenção do sistema

capitalista também serviu para fortalecer as idéias positivistas.

O principal representante do positivismo jurídico foi Hans Kelsen. Através de

sua teoria pura do direito pretendeu a amoralização completa do direito e da ciência

jurídica, através da eliminação da moral ou do direito natural. Logo, a validade da

norma jurídica é explicada pela das normas jurídicas hierarquicamente superiores, sendo

que a validez da norma constitucional é justificada pela norma hipotética fundamental,

que não é positiva, mas lógica. Com isso, Kelsen chegou a um positivismo jurídico

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radical, que concebe o direito positivo como sistema normativo, completamente alheio a

influências sociológicas, ideológicas e políticas.

Contudo, na segunda metade do século XX, o positivismo kelseniano começou a

ser muitas vezes atacado porque, em seu formalismo, admitia como jurídico qualquer

sistema normativo imposto por um Estado. Com isso, o positivismo jurídico passou a

ser utilizado para justificar a formação de sistemas jurídicos altamente injustos, como

foi o caso do nazismo.

Após o fim da segunda guerra mundial, o alemão Gustav Radbruch dirigiu-se

aos estudantes da universidade de Heidelberg, afirmando que o positivismo “deixou

sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais

criminosas” (COSTA, 2001, p. 280).

1.3 Culturalismo Jurídico

A crise do positivismo jurídico não foi ainda totalmente superada quando o

assunto é a concretização da dignidade da pessoa humana.

Assim, persistindo na busca de uma ordem jurídica justa, a ciência do direito

surge agora como uma ciência cultural, sendo o culturalismo jurídico uma das mais

recentes conquistas no campo da epistemologia jurídica e concebe o direito como um

objeto criado pelo homem, dotado de um sentido de conteúdo valorativo, pertencente ao

campo da cultura (DINIZ, 2005, p.131).

Partindo da idéia de que cultura é tudo que o ser humano acrescenta às coisas

com a intenção de aperfeiçoa-las, o culturalismo identifica o direito como objeto

cultural, isto é, como uma realização do espírito humano, com um substrato e um

sentido.

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Miguel Reale, um dos principais representantes do culturalismo jurídico,

desenvolveu a teoria tridimensional do direito, visto como a integração normativo de

fatos segundo valores. Ou seja, o direito, enquanto elemento normativo, pressupõe uma

dada situação de fato (substrato), referida a determinados valores (sentido).

Referido jusfilósofo desenvolve a tridimensionalidade nos seguintes termos:

a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;

b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta;

c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram. (REALE, 2005, p. 65, grifo do autor).

Considerando que a construção do conhecimento deve partir de uma base

filosófica, a identificação do tridimensionalismo jurídico como fundamentação do

direito tem a principal função de alertar o jurista para a necessidade de se considerar que

a norma não é instrumento para a realização de interesses pessoais, mas tem a finalidade

de atender aos valores extraídos da sociedade para a qual foi criada.

2. O resgate do direito natural como parâmetro de um direito justo

A par da fundamentação epistemológica do direito enquanto ciência, o direito

natural ressurge na atualidade sob um novo enfoque, dessa vez como parâmetro na

busca de um direito justo, especialmente em razão da crise do positivismo acima

enfocada.

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Não é mais possível crer que jusnaturalismo ou juspositivismo sozinhos e

separados serão capazes de concretizar o objetivo do direito, qual seja, alcançar uma

ordem jurídica justa.

Nesse sentido, salienta Carlos Eduardo de Abreu Boucault que:

Mas o Jusnaturalismo e o Juspositivismo dos últimos séculos têm enformado um conflito entre conceitos de ordem legal e de ordem natural como uma modalidade de conflito que antagoniza as regras estatais e a prudência da lei (1997, grifo do autor).

É por isso que no século XX destaca-se a doutrina jusnaturalista do alemão

Rudolf Stammler, que propôs uma renovação da idéia de direito natural, especialmente

como reação antijuspositivista. A moderna teoria do direito natural possui conteúdo

variável, rejeitando o direito natural universal e imutável, baseado na natureza humana.

Ao estudar a história das concepções do jusnaturalismo, Stammler percebeu que

cada época tinha um conceito próprio de direito natural, cuja invocação sempre foi feita

como tentativa de limitar os poderes políticos na sua função legislativa, de forma a não

contrariar a natureza humana. Diante disso, percebeu também que a referência ao direito

natural era resultado da pretensão de que o direito positivo fosse justo ou legítimo.

Assim, criou o conceito de direito natural de conteúdo variável, de forma que cada

sociedade em cada época tem regras próprias, mas sempre buscando alcançar o ideal de

justiça.

O desencanto em relação ao positivismo e sua concepção de que os juristas

deveriam aplicar a lei sem questionar a sua justiça e legitimidade fez com que

positivistas se convertessem ao jusnaturalismo, como foi o caso de Gustav Radbruch,

segundo o qual quando as leis “arbitrariamente concedem ou negam a certos homens

os direitos naturais da pessoa humana, então carecerão tais leis de qualquer validade,

o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os primeiros a recusar-

lhes o caráter de jurídicas” (apud COSTA, 2001, p. 281).

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No Brasil, a influência desse movimento é percebida nos escritos de Vicente

Ráo:

Acima dessas concepções particulares, uma concepção geral do direito existe, que a todos os povos se impõe, não pela força da coerção material, mas pela força própria dos princípios supremos universais e necessários dos quais resulta, princípios estes inerentes à natureza do homem, havido como ser social dotado, ao mesmo tempo, de vida física, de razão e de consciência. (apud COSTA, 2001, p. 281).

Nessa época, porém, contrariamente ao que defendia Ráo, o processo de

ressurgimento do direito natural não o enxergava como universal e imutável, mas

particular de uma cultura em um dado momento histórico, conforme desenvolvido por

Stammler e acima exposto.

O que se busca, na verdade, é impor limites ao poder legislativo do Estado com

fundamento em valores de moralidade e justiça. Entretanto, é certo que os órgãos do

Estado não reconhecem validade a esse tipo de argumentação e que os tribunais não

utilizam o direito natural como um critério para o julgamento dos processos. Todavia, o

direito natural não deixa de ser ainda hoje uma forte base para fundamentar uma

oposição ao Estado, sem, contudo, pregar um abandono das normas positivas, pois o

que se busca é o equilíbrio inerente ao direito. O direito natural é um complemento:

estabelece limites ao poder do Estado, mas sem contestar a sua autoridade para instituir

o direito positivo.

A partir desse pensamento também surgiram teorias críticas do direito, como por

exemplo o direito alternativo, que representa um movimento deflagrado na década de 60

por juizes italianos, e que foi difundido no Brasil através da magistratura gaúcha.

Antônio Alberto Machado, em artigo publicado na Revista de estudos jurídicos

da Unesp, esclarece o caráter crítico do direito alternativo:

O movimento do Direito Alternativo inscreve-se no âmbito de uma crítica do direito que, no plano teórico, identifica o esgotamento do paradigma positivo-normativista da ciência jurídica, buscando um outro

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referencial teórico e prático para o direito, mais flexível e pluralista, comprometido com a transformação – e não com a mera conservação – da realidade social, especialmente quando esta última apresenta níveis insustentáveis de exclusão e injustiça, como é o caso dos países da América Latina e de todo o mundo não desenvolvido. (2005, p. 09).

O trabalho de crítica ao positivismo vem alcançando bons resultados, mas sem

produzir mudanças substanciais na aplicação do direito. Na verdade, as teorias críticas

não conseguiram desenvolver uma teoria verdadeiramente fundamentada, capaz de

substituir o modelo jurídico atual. Ao contrário, a dogmática positivista possui base

sólida e é fundada na organização política liberal, especialmente na garantia da

segurança jurídica como valor fundamental.

Dessa forma, permanece o maior desafio colocado aos juristas na atualidade:

desenvolver as bases para a construção de uma nova dogmática, que supere o modelo

positivista e responda aos anseios da sociedade contemporânea.

Conclusão

O estudo epistemológico do direito tem a importância de trazer à tona a

fundamentação e a legitimação do direito enquanto ciência. O direito natural teve

especial relevância durante esse processo, pois, a partir do jusnaturalismo, foi utilizado

para fundamentar o direito positivo, impedindo o arbítrio por parte do soberano.

Desde suas primeiras manifestações na antiguidade clássica, o direito natural foi

sendo enfocado de diversas maneiras, passando pela idade média, pela era moderna, até

o seu declínio após as revoluções burguesas, ocasião em que perdeu espaço para o

direito positivo.

O positivismo jurídico, por sua vez, perdurou até o momento em que passou a

ser utilizado para justificar injustiças e atrocidades contra a pessoa humana.

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Especialmente após a segunda guerra mundial, teorias críticas vêm sendo construídas

com o objetivo de substituir o positivismo dogmático, em busca de um direito que

melhor se adapte aos anseios da sociedade.

Miguel Reale, a partir dos ensinamentos do culturalismo jurídico, que identifica

o direito como objeto cultural, criado pelo homem, desenvolveu a teoria tridimensional

do direito. Segundo o jusfilósofo, o direito, enquanto elemento normativo, nasce a partir

do fato social, para atender os valores vigentes em determinada sociedade. Portanto,

fato, valor e norma formam a base filosófica da construção do conhecimento científico

do direito.

A par da construção científica do direito, percebe-se que o direito natural sempre

fez parte dessa construção doutrinária, tendo influência até os dias de hoje na busca de

um direito justo para a sociedade contemporânea.

Através desse resgate do direito natural, agora identificado como um direito de

conteúdo variável, ou seja, que se adapte a cada sociedade e em cada época diferente em

busca do ideal de justiça, as teorias críticas procuram uma alternativa que venha

substituir a dogmática positivista e sua concepção de que os juristas devem aplicar a lei

sem questionar a sua justiça e legitimidade.

Referências bibliográficas

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