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Vamos Ubuntar? Um convite para cultivar a paz Lia Diskin

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  • Vamos Ubuntar?Um convite para cultivar a paz

    Lia Diskin

  • Vamos Ubuntar?Um convite para cultivar a paz

    Braslia, dezembro de 2008

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  • Associao Palas Athenas

    Conselho Deliberativo 2005/2009

    Ana Maria de Lisa BraganaAparecida Elci FerreiraDaniela Maria MoreauJoo Roberto MorisJudith BerensteinLaura Gorresio RoizmanLuiz Carlos Andrade SantosLuiz Henrique F. S. GesMaria Elvira Ribeiro TuppyMaria Jos Piva R. CorreaMaria Jos Sesti NevesMrcia Regina GambaMariangela VassaloNeusa SerraNilce CappocciaRaimunda de Assis Oliveira

    Conselho para AssuntosEconmicos e Fiscais 2005/2009

    Mariliza Doll de MoraesNazih Curi MeseraniRoberto de Almeida Gallego

    Associao Palas AthenasRua Lencio de Carvalho, 9904003-010 So Paulo/SP - BrasilTel: (55 11) 3266-6188Fax: (55 11) 3287-8941E-mail: [email protected]

    Representao da UNESCO no Brasil

    RepresentanteVincent Defourny

    Setor de Cincias Humanas e Sociais

    CoordenadoraMarlova Jovchelovitch Noleto

    Oficiais de ProjetoCarlos Alberto dos Santos VieiraBeatriz Maria Godinho Barros CoelhoRosana Sperandio Pereira Alessandra Terra Magagnin

    Coordenador EditorialClio da Cunha

    Fundao Vale

    Conselho de Curadores

    Tito Botelho Martins Junior Carla Grasso Gabriel Stoliar Pedro Aguiar de Freitas Orlando Ges Pereira Lima Olinta Cardoso Costa Mrcio Luis Silva Godoy Adriana da Silva Garcia Bastos Marconi Tarbes Viana

    Representao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6,Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar70070-914 Braslia/DF BrasilTel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) [email protected]

    Fundao ValeAv. Graa Aranha, 2620.030-000 - Rio de Janeiro/RJ - BrasilTel.: (55 21) 3814-4477Fax: (55 21) 3814-4040

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  • Vamos Ubuntar?Um convite para cultivar a paz

    Lia Diskin

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  • 2008 Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO)

    Reviso: Jeanne Sawaya e Reinaldo de Lima ReisDiagramao: Paulo SelveiraCapa e projeto grfico: Edson Fogaa

    Diskin, LiaVamos ubuntar? Um convite para cultivar a paz / Lia Diskin. Braslia: UNESCO,

    Fundao Vale, Fundao Palas Athena, 2008. 97 p.

    ISBN: 978-85-7652-079-5

    1. Cultura de Paz 2. Violncia 3. Jovens Desfavorecidos 4. Atividades Extracurriculares5. Brasil I. UNESCO II. Fundao Vale III. Fundao Palas Athena IV. Ttulo

    CDD 303.66

    A autora responsvel pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelasopinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem aOrganizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro noimplicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdicade qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suasfronteiras ou limites.

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  • A experincia do Programa Abrindo Espaos no existiria sem a colaborao de atores de

    inquestionvel competncia e verdadeiramente comprometidos com a melhoria da qualidade da

    educao no Brasil.

    Entre essas pessoas, merece especial agradecimento o Ministro da Educao, Fernando Haddad,

    intelectual e executivo que vem demonstrando grande habilidade em dar novos rumos ao sistema

    educacional brasileiro, sem nunca medir esforos para apoiar as iniciativas da Representao da

    UNESCO no Brasil. Naturalmente, este agradecimento extensivo a toda a sua equipe, sobretudo ao

    Secretrio-Executivo do MEC, Jos Henrique Paim Fernandes, com quem o programa comeou

    quando ainda era presidente do FNDE, ao Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e

    Diversidade, Andr Lzaro, e Coordenadora Nacional do Programa Escola Aberta, Natlia Duarte.

    Agradecemos ao Ministro da Justia, Tarso Genro, e a Ricardo Henriques, pois foi em suas

    gestes como Ministro da Educao e Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e

    Diversidade, respectivamente, que o programa foi lanado e tomou forma.

    Agradecemos tambm Diretora de Comunicao da Vale, Olinta Cardoso, e Fundao Vale,

    que tornou possvel esta coleo. Exemplo vivo de responsabilidade social, a Fundao demonstra

    com consistncia que o conceito de progresso s pleno quando o setor privado leva em conta

    fatores como preservao do meio ambiente, fortalecimento do capital social das comunidades com

    que interage e respeito s identidades culturais.

    Agradecemos, por fim, aos profissionais da UNESCO envolvidos direta ou indiretamente no

    Abrindo Espaos, os quais trabalham incansavelmente pelo sucesso do programa, e aos colegas do

    setor editorial, que contriburam para que este trabalho fosse bem-sucedido. So eles Doutor Clio da

    Cunha, Edson Fogaa, Jeanne Sawaya, Larissa Leite, Mnica Noleto, Paulo Selveira, Pedro Henrique

    Souza e Rodrigo Domingues.

    Agradecimentos

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  • Ao professor Baslio Pawlowicz, parceiro de vida, ideais e realizaes, cujo carinho e bondade

    ainda me surpreendem apesar dos 38 anos de convivncia.

    professora Lucia Benfatti, pela serenidade inspiradora que nos oferece a cada dia.

    senhora Tnia Van Acker, pela competncia e pacincia nas pesquisas contidas nesta publicao.

    Aos companheiros da Associao Palas Athena, que fazem da filosofia uma experincia signi-

    ficativa de entusiasmo renovado.

    Agradecimentos da autora

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  • Coleo Abrindo Espaos: educao e cultura para a paz

    Coordenao

    Marlova Jovchelovitch Noleto Beatriz Maria Godinho Barros Coelho

    Reviso Tcnica

    Marlova Jovchelovitch Noleto Rosana Sperandio Pereira

    Alessandra Terra Magagnin

    Colaboradores

    Gabriela AthiasCandido GomesAdriel Amaral

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  • SUMRIO

    ApresentaoA multiplicao da cultura de paz .........................................................................................................11

    Vincent Defourny

    Viver a paz, viver em paz ......................................................................................................................13

    Slvio Vaz de Almeida

    IntroduoAbrindo Espaos: incluso social e educao para o sculo XXI..............................................................15

    Marlova Jovchelovitch Noleto

    Onde estamos? ..................................................................................................................................21Vamos ubuntar? ....................................................................................................................................29

    A paz na voz das culturas ..............................................................................................................33Vamos ubuntar? ....................................................................................................................................42

    A tica entra em cena ......................................................................................................................45Vamos ubuntar? ....................................................................................................................................58

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  • A paz como cultura ...........................................................................................................................63

    Por que paz como cultura? ....................................................................................................................65

    Novas tecnologias de convivncia ..........................................................................................................70

    Vamos ubuntar? ...................................................................................................................................94

    Referncias bibliogrficas...............................................................................................................95

    Nota sobre a autora .........................................................................................................................97

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  • A multiplicao da cultura de paz

    No ano em que o Programa Abrindo Espaos: educao e cultura para a paz completa oito

    anos, a Representao da UNESCO no Brasil tem a oportunidade de lanar uma coleo de sete

    publicaes para sistematizar uma iniciativa de incluso social e reduo de violncia com foco na

    escola, no jovem e na comunidade.

    O Programa Abrindo Espaos consiste na abertura das escolas pblicas nos fins de semana, com

    oferta de atividades de esporte, lazer, cultura, incluso digital e preparao inicial para o mundo

    do trabalho. Ao contribuir para romper o isolamento institucional da escola e faz-la ocupar papel

    central na articulao da comunidade, o programa materializa um dos fundamentos da cultura de

    paz: estimular a convivncia entre grupos diferentes e favorecer a resoluo de conflitos pela via da

    negociao.

    A UNESCO agradece Fundao Vale pela parceria que lhe possibilita publicar esta coleo,

    uma ferramenta de multiplicao de um programa que j poltica pblica e est presente em

    escolas dos 26 estados da federao e do Distrito Federal.

    O objetivo das publicaes compartilhar com a sociedade o conhecimento e a experincia

    acumulados pela UNESCO na gesto do Programa Abrindo Espaos, que tem como uma de suas

    misses agregar valor a iniciativas focadas na construo e na multiplicao da cultura de paz.

    Apresentao

    11

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  • Alm disso, auxiliar tecnicamente nossos parceiros na execuo de programas e projetos

    capazes de construir um Brasil mais justo e menos desigual, especialmente para as populaes

    vulnerveis, caso de milhares de jovens que vivem nas periferias pobres do pas, onde atuam as

    escolas do Abrindo Espaos.

    Conhecer as publicaes apenas o primeiro passo para o caminho a ser percorrido pelos

    interessados em identificar mais uma opo de sucesso na promoo da cultura de paz, na incluso

    social e na reduo de violncia. A UNESCO no Brasil est disposio para seguir contribuindo

    com estados, municpios e demais parceiros empenhados em aprofundar-se em programas

    dessa natureza.

    Vincent Defourny

    Representante da UNESCO no Brasil

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  • Viver a paz, viver em paz

    Paz, para ser vivida, tem de ser construda, dia a dia, nos pequenos atos, de onde germinam

    as grandes transformaes. Paz para ser realizada, no s idealizada. Paz se faz, no dada.

    Ns, da Fundao Vale, temos conscincia de que a paz , sobretudo, ao. E que s se

    torna realidade quando caminha junto com o desenvolvimento humano. Por isso, adotamos

    como uma de nossas reas de atuao a educao: para a cidadania e para vida.

    Acreditamos no papel estruturante da educao, na importncia da incluso social e no

    protagonismo juvenil crenas partilhadas com a UNESCO no Programa Abrindo Espaos.

    A iniciativa, que nasceu da experincia em trs estados brasileiros, tornou-se poltica pblica

    em 2004 e agora, com esta coleo, realizada em parceria com a Fundao Vale, passa a ser

    sistematizada e oferecida a vrios pases.

    O Programa Abrindo Espaos vem contribuindo para redefinir o papel da escola e firm-la

    como referncia entre os jovens. Ao ampliar o acesso a atividades de lazer, cultura e esporte,

    cria oportunidades para que os jovens exercitem valores como a no-violncia, a liberdade de

    opinio e o respeito mtuo, fortalecendo suas noes de pertencimento ao grupo social.

    Com esta coleo, esperamos transmitir vivncias, compartilhar conhecimentos e, ao mesmo

    tempo, ajudar a criar condies para que se construa uma viso de futuro em que prevaleam

    o dilogo, a tolerncia e a responsabilidade.

    Slvio Vaz de Almeida

    Diretor Superintendente da Fundao Vale

    13

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  • Abrindo Espaos: incluso social e educao para o sculo XXI

    No ano 2000, durante as comemoraes do Ano Internacional da Cultura de Paz, a Representao

    da UNESCO no Brasil lanou o Programa Abrindo Espaos: educao e cultura para a paz.

    Ao longo destes oito anos, o programa, que, ao abrir escolas pblicas no fim de semana, combina

    elementos de incluso social e educao, solidificou-se e a primeira ao da UNESCO no Brasil a

    tornar-se poltica pblica. A metodologia proposta pelo Abrindo Espaos a base do Programa

    Escola Aberta, criado pelo Ministrio da Educao, em 2004, hoje presente em todos os estados

    brasileiros.

    Entre 2000 e 2006, em parceria com secretarias municipais e estaduais de educao, o Programa

    Abrindo Espaos abriu 10 mil escolas e atendeu cerca de 10 milhes de pessoas nos cinco primeiros

    estados em que foi implantado Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e So Paulo.

    Cabe destacar que em So Paulo o programa foi implantado em praticamente toda a rede estadual,

    atingindo 5.306 escolas de um total de 6 mil. Com o nome de Escola da Famlia, contou com 30 mil

    voluntrios e 35 mil universitrios atuando diretamente nas escolas.

    A dimenso do Abrindo Espaos nestes anos de existncia revela a riqueza da experincia

    acumulada por toda a equipe da UNESCO e, sobretudo, pelos parceiros e executores do programa.

    A parceria com a Fundao Vale possibilita agora o lanamento de uma coleo de sete publi-

    caes que sistematizam a metodologia do Programa Abrindo Espaos em todas as suas dimenses

    Introduo

    15

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  • bases conceituais, aplicaes prticas e recomendaes, anlise de especialistas, custos de

    implantao , alm de incluir duas cartilhas cujo contedo ensina a vivenciar na prtica a construo

    da cultura de paz. As cartilhas constituem um guia para professores, alunos, supervisores e todos

    aqueles envolvidos na operacionalizao dos programas Abrindo Espaos e Escola Aberta, e

    reforam a necessidade de se ter tambm instrumentais que possam orientar a ao de nossos

    educadores na construo de uma cultura de paz.

    Costumamos dizer que a UNESCO tem muitos objetivos, mas uma nica misso, que est

    destacada em seu ato constitutivo: Uma vez que as guerras comeam na mente dos homens,

    na mente dos homens que as defesas da paz devem ser construdas.

    Por meio da criao e implantao do Programa Abrindo Espaos, a UNESCO no Brasil teve a

    oportunidade de atuar como laboratrio de idias, ajudando a criar as diretrizes metodolgicas de

    um programa nacional baseado na cultura de paz, com o objetivo de propor um espao de

    incluso social e de valorizao da escola pblica.

    Ao inserir-se no marco mais amplo de atuao da UNESCO, o programa contribui para fortalecer

    o conceito de educao ao longo da vida, bem como para a erradicao e o combate pobreza.

    Volta-se ainda para a construo de uma nova escola para o sculo XXI, caracterizada muito mais

    como escola-funo, e no apenas como escola-endereo, ou seja, uma escola que, de fato,

    contribua para o desenvolvimento humano e integral dos seus alunos e da comunidade.

    O programa atua para ajudar a transformar as escolas em espao de acolhimento e perten-

    cimento, de trocas e de encontros. O objetivo que elas sejam capazes de incorporar na programao

    oferecida no fim de semana as demandas do segmento jovem, bem como suas expresses

    artsticas e culturais, fortalecendo a participao dos estudantes e jovens nas atividades da escola.

    Espera-se, ainda, que a abertura das escolas nos fins de semana contribua para uma reflexo

    sobre a escola da semana, sugerindo novas prticas capazes de interferir positivamente nas

    relaes entre alunos e professores. verdade que, quando se sentem acolhidos, os estudantes

    desenvolvem uma relao diferenciada com a escola e tornam-se menos vulnerveis evaso

    escolar. Por isso, podemos afirmar que o programa contribui para ajudar a reduzir os preocupantes

    16

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  • nmeros relacionados grande quantidade de estudantes que ingressam no ensino fundamental em

    comparao com o reduzido percentual que consegue finalizar o ensino mdio.

    importante destacar tambm o papel fundamental que desempenha a educao na reduo de

    desigualdades sociais. No h transformao social sem investimento em educao. Pesquisas feitas

    pelo Banco Mundial e pela Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) demons-

    tram que um ano a mais de estudo na vida de estudantes do sexo feminino impactam na diminuio

    da mortalidade infantil e materna, por exemplo. Tais estudos tambm demonstram o efeito de um

    ano a mais de estudo nos indicadores de empregabilidade e salrios na Amrica Latina.

    O jovem como foco

    O Programa Abrindo Espaos foi criado com base em uma srie de pesquisas sobre juventude

    feitas pela UNESCO no Brasil. Tais pesquisas revelavam que os jovens eram, como ainda so, o grupo

    que mais se envolve em situaes de violncia, tanto na condio de agentes quanto de vtimas.

    A maior parte desses atos violentos acontece nos fins de semana, nas periferias, envolvendo,

    sobretudo, jovens de classes empobrecidas e em situao de vulnerabilidade.

    Alm disso, grande parte das escolas, especialmente as localizadas nas periferias das grandes

    cidades, estava envolvida em situaes de extrema violncia. Os Mapas da Violncia, de autoria do

    pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz, lanados pela UNESCO nos anos de 1999, 2000, 2002 e 2004,

    foram fundamentais para entender o papel dos jovens nos casos de violncia no pas.

    Considerando-se esses dados, pode-se entender que, por trs de uma idia aparentemente simples

    a abertura das escolas aos sbados e domingos para oferecer aos jovens e suas famlias atividades

    de cultura, esporte, arte, lazer e formao profissional , h uma estratgia de empoderar os jovens,

    fortalecer a comunidade, fortalecer o papel da escola e contribuir para a reduo dos ndices de

    violncia, construindo uma cultura de paz.

    O Programa Abrindo Espaos trouxe ainda para o ambiente escolar estratgias utilizadas em

    trabalhos comunitrios, como o levantamento das demandas locais, a valorizao de talentos, o

    fortalecimento das aes por meio de parcerias com organizaes no-governamentais e outras

    entidades que atuam na regio da escola.

    17

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  • O fato de o Abrindo Espaos validar a experincia das comunidades e os saberes locais faz com

    que o programa contribua para quebrar o muro do isolamento institucional das escolas, abrindo

    de fato suas portas para os moradores, os pais dos alunos, enfim, a toda a comunidade, que passa a

    reconhecer a escola como sua. Os estudantes e sua comunidade sentem-se valorizados medida que

    suas demandas so atendidas e que as expresses juvenis so fortalecidas. Isto possibilita maior

    integrao entre todos os atores envolvidos no processo e favorece a descoberta de novas formas de

    relao capazes de gerar o sentimento de pertencimento to necessrio para o exerccio do

    protagonismo juvenil.

    O programa representa ainda uma alternativa falta de acesso a atividades culturais, uma

    realidade nas periferias brasileiras. O acesso cultura, arte, ao esporte, ao lazer e educao

    permite que os jovens encontrem outras formas de expresso diferentes da linguagem da violncia.

    A participao em oficinas de teatro, artesanato, msica, dana e outras tantas atividades ldicas abre

    horizontes, fortalece a auto-estima e capaz de ajudar o jovem a descobrir um novo sentimento de

    pertencimento em relao sua escola e sua comunidade.

    Na dinmica do programa, o jovem e a comunidade so os protagonistas no so vistos como

    meros beneficirios das atividades do fim de semana. Os jovens desempenham papel central:

    articulam atividades e mobilizam a comunidade para participar do programa. Essa participao

    reforada medida que a grade de programao revela e valoriza os talentos locais.

    Outro aspecto a ser ressaltado a natureza descentralizadora do programa, que permite aos

    estados, municpios e escolas terem flexibilidade para adequ-lo s realidades e necessidades locais,

    sempre orientados pelos mesmos princpios, conceitos ticos e metodolgicos. O programa nico

    e flexvel em sua diversidade, e construir essa unidade na multiplicidade foi um de seus grandes

    desafios.

    Acreditamos ter encontrado o fio condutor dessa unidade, materializado numa proposta que

    valoriza o saber local, respeita o protagonismo juvenil, valoriza e refora o papel da escola e envolve

    a comunidade no programa, adaptando a metodologia desenvolvida para cada realidade/diversidade

    nas mltiplas regies do pas.

    18

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  • Com esta coleo, acreditamos estar colocando disposio de educadores, profissionais da rea

    social e especialistas de todo o Brasil um instrumento que, ao lado de outros tantos, certamente

    permitir trabalhar a incluso social e os valores da cultura de paz na escola, de forma a contribuir

    para a reduo das desigualdades e a formao de cidados cada vez mais solidrios, que respeitem

    os direitos humanos e valorizem a tolerncia, reforando o papel fundamental da educao na

    transformao social.

    Alm de disseminar a boa experincia dos programas Abrindo Espaos e Escola Aberta no

    Brasil, acreditamos que esta coleo tambm contribuir para o crescimento da cooperao

    internacional, uma das importantes funes da UNESCO.

    Cabe ainda agradecer a importante parceria da Fundao Vale, por meio de sua ento Presidente,

    Olinta Cardoso, ela prpria uma entusiasta do programa, e de sua contribuio para a incluso social

    e a melhoria da educao.

    Agradeo tambm a todos os parceiros do Programa Abrindo Espaos nos estados e municpios

    onde foi implantado e aos parceiros do Programa Escola Aberta do Ministrio da Educao, que

    juntamente com professores, diretores, alunos, jovens e as comunidades o transformaram em uma

    experincia de sucesso. Por fim, agradeo a todos os profissionais do Setor de Cincias Humanas e

    Sociais da UNESCO no Brasil, uma equipe de pessoas comprometidas com um mundo melhor e sem

    as quais essa experincia no teria sido possvel.

    A concepo e a implantao do Programa Abrindo Espaos iniciaram-se no ano 2000 e se

    estenderam por todo ano de 2001, um ano que marcou profundamente minha vida. Em 2001,

    nasceu Laura, minha filha, e com ela renasceram em mim todas as convices que alimento de que

    construir um mundo menos violento, mais igual e justo tarefa coletiva e s ser possvel se esse

    desafio for assumido por todos, traduzindo os princpios da cultura de paz, dos direitos humanos e

    do respeito diversidade, concretamente, na vida de cada cidado.

    Marlova Jovchelovitch Noleto

    Coordenadora de Cincias Humanas e Sociais da UNESCO no Brasil

    19

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  • 20

    Pingue-pongue est entre as atividades mais procuradas nas escolas no fim de semana. So Sebastio (DF).

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 20

  • Ubuntu uma palavra-conceito que, nas lnguas africanas zulu e xhosa, significa Sou quem sou

    por aquilo que todos somos. Ela exprime o reconhecimento de um vnculo universal de comparti-

    lhamento que conecta toda a humanidade, no sentido de sermos pessoas atravs de outras pessoas.

    Nada mais verdadeiro. Quando ingressamos no cenrio da vida, nossa condio extremamente

    precria, precisamos de cuidados permanentes antes de adquirir autonomia. Nossos pais, ou aqueles

    que acolheram nosso desenvolvimento, tiveram de oferecer seu tempo, seu afeto e ateno por anos

    a fio para nos alimentar, agasalhar, educar, encorajar e abrir espaos de segurana onde cada um

    de ns pudesse expressar sua singularidade e potencial criador.

    E no apenas eles, mas toda a comunidade ou cultura est presente em nossa formao. A uni-

    dade de sentido, o repertrio de valores, a viso de mundo, os medos e aspiraes permeiam o

    imaginrio e a racionalidade que acompanha nossos dias. So os alicerces sobre os quais constru-

    mos e cultivamos nossa identidade, que depositria de milhes de variveis que atualizam a

    experincia sempre renovada e crescente da histria da humanidade. Cada um de ns presentifica

    a ancestralidade que nos deu origem, e a cultura a imagem visvel de conhecimentos e fazeres

    que se perpetuam e tambm se renovam de gerao em gerao.

    ONDE ESTAMOS?

    21

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 21

  • 1. MORIN, E.; KORN, A. B. Terra ptria. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 137.

    22

    Nosso corpo, nossos gestos, o modo de ser e estar no mundo revelam nossa origem, que foi

    cantada e celebrada das mais diversas formas em espaos e tempos igualmente diversos, confi-

    gurando inicialmente agrupamentos nmades, mais tarde tribos, cls, aldeias, cidades, naes e hoje

    estados. Contudo, nenhuma dessas experincias seria possvel sem um substrato comum que as

    sustentasse o milagre da vida na Terra. Nas palavras de Edgar Morin: a vida uma emergncia da

    histria da Terra e o ser humano uma emergncia da histria da vida terrestre.1

    Ela o nosso bero, do mesmo modo que foi bero e tmulo de nossos ancestrais. Quando eles

    apareceram, h quase 200 mil anos, a natureza j tinha uma experincia acumulada de 3,5 bilhes

    de anos, portanto, somos personagens que estamos comparativamente h muito pouco tempo no

    cenrio da vida.

    Mas somos curiosos, observadores e aprendemos rpido. As plantas nos ensinaram a tranar fibras.

    H espcies de palmeiras que protegem seus troncos com tecidos de admirvel resistncia. Insetos,

    notadamente a aranha e o bicho-da-seda, tornaram-se modelos para desenvolver nossas criaes.

    Dos animais e pssaros aprendemos a caar, construir moradas para nos protegermos de intempries

    e predadores, a migrar de regio em regio na alternncia das estaes do ano. Com alguns mamferos

    at aprendemos organizao social, regras de convivncia, brincadeiras infantis e cuidados parentais.

    Apesar de distante no tempo, tudo isso chegou a ns atravs de pesquisas arqueolgicas, pin-

    turas, descrio de rituais, mitos e parbolas em que o humano mantinha vnculos muito prximos e

    no necessariamente utilitrios com os outros reinos da Vida. Deuses, potestades, princpios espiri-

    tuais foram caracterizados em numerosas culturas sob formas vegetais e animais, oferecendo uma

    coreografia csmica cujos protagonistas inturam o que hoje sabemos por meio de estudos cientficos:

    todos os elementos de que somos feitos formaram-se no interior de estrelas que existiram antes do

    aparecimento da Terra! E no s os elementos, tambm a fora vital inerente a todos os seres vivos e

    as coisas emanam do cosmos, nica fonte de energia, matriz de toda e qualquer singularidade.

    Os gregos da Antigidade Clssica sentiam-se a si prprios como habitantes de quatro moradas

    ou casas. A primeira e mais abrangente era o Kosmos, espao infinito de possibilidades que com-

    Va m o s U b u n t a r ?

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 22

  • 2. ARISTTELES. tica a nicmaco, v. 2, 3.4.

    23

    partilhamos com tudo quanto existe, composto de matria e energia que obedecem a certas leis que

    as organizam de maneira regular e integrada. Observando e estudando essas leis, os antigos gregos

    falavam de uma harmonia universal que torna previsvel os ciclos diurnos e noturnos; a sucesso

    dos solstcios e equincios que dividem o ano em quatro perodos de trs meses e do origem s

    estaes da primavera, vero, outono e inverno; a influncia da Lua sobre as mars e os perodos

    mais propcios para a colheita.

    segunda morada chamavam Plis, cidade que congregava cls de famlias que guardavam

    entre si um senso de comunidade. Cuidando uns dos outros, ofereciam seus talentos e habilidades

    particulares para se beneficiarem mutuamente, consagrando-se, desse modo, ao bem comum, pelo

    qual todos eram co-responsveis. Mas, para efetivar esse bem comum, foi necessrio criar uma

    ordem, uma organizao, estabelecer certas normas que, como no Kosmos, tornassem previsvel e

    desejvel um repertrio de condutas e relacionamentos nasceu assim a poltica como arte e cincia

    de governar com os instrumentos da justia e das leis.

    Oikos o nome da terceira morada, que designa a residncia particular, o lar onde conviviam

    as pessoas que tinham vnculos familiares, afetivos, onde se nascia e se recebiam os cuidados que

    permitem o desenvolvimento do propriamente humano atravs das relaes interpessoais. Essas

    relaes so saudveis e promotoras de autonomia na medida em que a aceitao, a confiana e

    o respeito mtuos permeiam o espao compartilhado, cuja administrao e direo chamou-se

    oikonoma, da qual deriva nossa palavra economia, hoje mais focada no gerenciamento dos

    recursos e despesas domsticas.

    A quarta e ltima morada referia-se interioridade, alma ou conscincia, onde cultivamos um

    modo de ser, sentir e fazer que expressa e identifica quem somos na interlocuo permanente com

    o mundo. thos, carter, ndole, temperamento, disposio natural para o bem, a inclinao para

    tornar patentes as virtudes ou excelncias que todos os seres humanos temos em condio

    potencial. Na avaliao de Aristteles: As virtudes no nascem nem por natureza nem contra a

    natureza, mas nos cabe de nascena receb-las e aperfeio-las pelos hbitos.2 Portanto, eles

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 23

  • 24

    consideravam o thos a morada onde a nossa liberdade podia expressar-se da forma mais plena,

    visto que no um espao que recebemos pronto, acabado, definitivo, mas no qual podemos fazer

    a cada momento infinitas escolhas. Cabe a ns decidir o que pensar, sentir, imaginar, criar e fazer,

    contanto que assumamos a responsabilidade pelas conseqncias. Contudo, nos primeiros anos de

    vida, estamos totalmente expostos s influncias do meio que nos acolhe, e grande parte da nossa

    aprendizagem d-se mediante o poder de imitao, de reproduo de uma infinidade de cdigos

    culturais que absorvemos de modo natural, e que legitimam nossa pertena a um determinado

    grupo humano.

    Na fase de desenvolvimento o mundo nos molda e bem mais tarde, na fase adulta, adquirimos

    a capacidade de avaliar a qualidade e relevncia, o significado e veracidade do que temos absorvido.

    Isto exige reflexo, distanciamento interior do cenrio que configurou nossa percepo de realidade.

    O povo navajo, que mora no Novo Mxico e no Arizona, representa sua cosmoviso por meio de um

    crculo quebrado: a parte do crculo corresponde aos costumes, instituies e tradies que mantm

    a nao unida; a quebra indica a possibilidade e necessidade de algum sair desse tero protetor

    e fazer uma crtica ao modelo preponderante. A abertura assinala a capacidade de renovao

    e aperfeioamento constante da cultura que lhes oferece identidade, exemplo da tenso

    construtiva entre moral e tica, sobre as quais voltaremos adiante.

    Apesar de termos ingressado no cenrio da vida h pouco

    tempo se comparados com outras espcies , nestes

    quase 200 mil anos de trajetria temos experimentado uma

    diversidade de mudanas comportamentais alucinante.

    A que hoje se apresenta como mais radical, pelas conse-

    quncias ameaadoras que acarreta, o antagonismo

    criado entre natureza e cultura, ilustrado no relatrio do

    Painel Intergovernamental de Mudanas Climticas em

    Paris, no dia 2 de fevereiro de 2007. Compem esse painel

    2.500 cientistas de todo o mundo, provenientes de 193

    pases de diversas regies do planeta: frica, sia, Amrica

    Va m o s U b u n t a r ?

    Pintura de areia Navaja

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 24

  • 25

    do Sul, Amricas do Norte e Central e Caribe, sudeste do Pacfico e Europa. As concluses apresen-

    tadas no deixam dvidas, a atividade humana a responsvel pelo efeito estufa:

    [...] o aquecimento atual no parte do ciclo natural do planeta, mas conseqncia de

    um estilo de vida iniciado na Revoluo Industrial e ainda praticado pelos 6,5 bilhes de

    habitantes do globo. Por estilo entenda-se dependncia de combustveis fsseis para

    gerar energia, em especial petrleo e carvo, e desmatamento em larga escala.3

    Isto provoca concentrao de gases na atmosfera, que impedem a fuga do calor para o espao,

    o que, por sua vez, resulta em aquecimento do planeta e desequilbrio do delicado sistema climtico.

    Conseqncias irreversveis a curto prazo: maior incidncia de furaces, tempestades, inundaes, secas

    prolongadas, plantas que mudam seu ciclo e florescem no inverno, degelo de lenis glaciais e reduo

    da cobertura de neve com a decorrente elevao do nvel das guas dos oceanos.

    O pesquisador brasileiro Jos Antonio Marengo, um dos cientistas que participa do Painel

    Intergovernamental de Mudanas Climticas, estima que no Brasil, ao longo deste sculo, a

    temperatura na regio amaznica aumentar em 8C, o que a transformar em cerrado; o semi-

    rido do Nordeste poder transformar-se em rido e as regies costeiras de Recife, Fortaleza, a foz

    do Amazonas e a Ilha de Maraj ficaro vulnerveis ao aumento do nvel do mar.

    Em 8 de abril de 2008, o Banco Mundial apresentou um novo relatrio com o balano do

    desmatamento no mundo durante o perodo 2000 2005, cujo grfico podemos ver a seguir.

    No temos motivos para nos orgulhar: o Brasil foi campeo em derrubada e queima de florestas.

    As florestas so recursos naturais especialmente importantes, pois abrigam biodi-

    versidade, oferecem servios ambientais, e seqestram o dixido de carbono (CO2).

    Segundo a Organizao das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura, em 2005 o

    patrimnio mundial de florestas era de 0,61 hectares per capita, equivalente ao tamanho

    de cinco piscinas olmpicas. Mas esse patrimnio no est partilhado de modo igual,

    sendo que dois teros da rea florestal global esto concentrados em dez pases, enquanto

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    3. O ESTADO DE SO PAULO, a. 128, n. 41.381; p. 1; A 25-27, 3 fev. 2007.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 25

  • cerca de 140 pases tm menos de 5% das florestas do mundo. [...] De 2000 a 2005, a

    perda bruta de rea florestal foi de 73.000 km2 por ano (uma rea aproximadamente do

    tamanho do Panam). O desmatamento, principalmente para a criao de campos para

    a agricultura, foi grande em pases de baixa e mdia renda, especialmente na

    Amrica Latina, Caribe e frica Subsaariana.4

    Abaixo, a tabela com os dados numricos sobre o desmatamento no mundo.

    O alerta j vinha sendo dado por cientistas e grupos ambientalistas do mundo todo h mais de 30

    anos, e hoje o senso de responsabilidade bate s portas da comunidade mundial sem fazer excees.

    Nas palavras de Kofi Annan, durante a reunio da Conferncia das Partes (COP) realizada em Nairobi

    em novembro de 2006: A questo no se a mudana climtica est acontecendo ou no, mas

    se diante desta emergncia planetria seremos, ns prprios, capazes de mudar rpido o suficiente.

    Grfico 1

    26

    Va m o s U b u n t a r ?

    90

    80

    70

    60

    50

    40

    30

    20

    10

    0

    -10

    -20

    31,0

    18,7

    5,9

    4,7

    4,4

    4,1

    4,1

    3,2

    3,1

    2,9

    0

    -9

    -1 -1

    1

    4147

    -6

    79

    20 30 40

    mil km2

    Brasil

    Indonsia

    Sudo

    Miamar

    Zmbia

    Tanznia

    Nigria

    Congo

    Zimbbue

    Venezuela

    Leste Asitico

    e Pacfico

    Europa esia Central

    OrienteMdio efrica do

    Norte

    Sul dasia

    fricaSubsaariana

    AmricaLatina

    e Caribe

    Pasesde baixae mdiarenda

    Pasesde rendaelevada

    4. WORLD BANK. Global monitoring report, 2008. Washington, D. C.: The World Bank, 2008. cap., p. 184-186.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 26

  • Como chegamos a isso? Em grande parte porque temos confiado mais no mapa do que no terri-

    trio, nas teorias e representaes do que seja a realidade mais do que na base concreta que as

    inspirou. Um desses mapas nos fez acreditar que a Terra, com todas as formas de vida vegetal e

    animais areos, aquticos e terrestres, foi criada apenas para usufruto de nossa espcie. Outro

    desses mapas afirmava a condio inesgotvel dos recursos naturais. Um terceiro assemelhava a

    natureza a uma mquina, portanto, objeto mecnico de fcil controle por parte do homem, que

    passava assim condio de sujeito totalmente dissociado de seu meio, um ser no-natural, fora

    e acima da natureza.

    Bastou um passo para chegarmos Revoluo Industrial viabilizada por uma srie de invenes

    como o motor a vapor, a mecanizao da agricultura, a mquina de fiar rotativa, a locomotiva, o

    telgrafo, o telefone e a bateria eltrica iniciada na Gr-Bretanha no sculo XVIII e mundializada

    no sculo seguinte. Isto provocou uma mudana nos meios de produo que resultou no deslo-

    camento das populaes rurais para as cidades, na formao de massas humanas assalariadas

    e na primazia da idia de progresso cientfico e tecnolgico baseados na noo quantitativa do

    crescimento econmico, com a conseqente centralizao das decises no sistema produtivo e na

    estrutura do poder poltico.

    A doutora Elisabet Sahtouris, biloga e consultora das Naes Unidas para povos indgenas, assinala que:

    A confuso de modelos com a realidade tem origem na incapacidade de compreender

    que cientistas criam abstraes, da mesma maneira que os artistas. Se considerassem os

    modelos da natureza como abstraes, no os confundiriam mais com a realidade do que

    artistas confundem seus quadros ou esculturas com os sujeitos reais que retratam. [...]

    Podemos entender agora que o perigo real de confundir modelos cientficos com a

    realidade que os aspectos da natureza que no podemos medir e, por conseguinte, no

    podemos abstrair, talvez sejam os aspectos mais essenciais.5

    Ou seja, a capacidade complexa de auto-organizao, mudana ou renovao constante que a

    perpetua, e na qual estamos imersos como sistemas vivos, de onde cada ser humano uma unidade

    27

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    5. SAHTOURIS, E. A dana da terra, sistemas vivos em evoluo: uma nova viso da biologia. Rio de Janeiro: Editora Rosados Tempos, 1998. p. 204-205.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 27

  • 28

    complexa ao mesmo tempo fsica, biolgica, psquica, cultural, social e histrica. Subtrair qualquer destas

    dimenses, ou priorizar uma sobre a outra, dilacera a unidade e a integralidade que faz de ns aquilo

    que somos humanos dotados de capacidade de perceber e se perceber, de criar, imaginar e pla-

    nejar um futuro, e ainda de promover aes to singulares como as inspiradas pelo amor e o perdo.

    Os desafios no so poucos, pois estamos assinalando concretamente mudanas compor-

    tamentais que no acontecem nem por decreto nem por inspirao potica necessrio um

    esforo real e contnuo para revisitar nossos procedimentos cotidianos e relacionamentos inter-

    pessoais. Qual a qualidade de minha presena no mundo? Contribuo no meu dia-a-dia para paci-

    ficar, criar oportunidades de expresso e realizao daqueles que me cercam? Evito o juzo apressado

    e que desqualifica os outros? Legitimo atravs do respeito as opinies alheias, que nem sempre

    convergem com as que eu sustento? Fico alerta para no desperdiar gua, alimentos, que sabemos

    serem necessrios para a prpria sobrevivncia dos seres vivos? Acompanho os gastos pblicos

    atravs dos portais governamentais ou em reunies de classe ou mesmo associaes de bairro?

    Participo no meu prdio dos encontros de condminos para atender agendas urgentes como a

    seleo do lixo, diminuio de consumo eltrico, organizao de parcerias com outros prdios para

    aproximar vizinhos em busca de criatividade para cuidar do livre acesso das caladas e das rvores

    ou plantas que houver nelas? Seguramente as questes vo alm do local, e devem abraar o global.

    Nessa perspectiva, nas ltimas dcadas emergiram novas oportunidades e ferramentas para gerar

    conhecimentos, notadamente a ciberntica e a internet. Os desafios apresentados pela degradao

    ambiental, a pobreza crescente, a desigualdade e a excluso social, o fracasso das ideologias

    em proporcionar bem-estar para todos, a escalada da violncia urbana, o consumismo como

    finalidade e o esgotamento das instituies sociopolticas para renovar vises de futuro comum

    abrem as portas de espaos de conscincia que buscam ressignificar nosso modo de ser e estar no

    mundo, religando natureza e cultura, cincia e espiritualidade, tradio e atualidade, autonomia

    e interdependncia, o prosaico e o potico. Que buscam, enfim, re-encantar o mundo criando

    redes de comunicao planetria que incentivem o protagonismo cidado, compartilhamento

    de responsabilidades, circulao das informaes, compromisso cotidiano com os direitos humanos,

    democracia participativa e implementao da cultura de paz mediante o exerccio de novas

    tecnologias de convivncia.

    Va m o s U b u n t a r ?

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 28

  • 29

    Vamos ubuntar?

    1. Nas grandes reas tribais do oeste da ndia, especialmente no Rajasto, ainda vivem comu-

    nidades que consideram os bosques lugares sagrados, pois so as rvores que oferecem alimento,

    combustvel, forragem para os animais, proteo para o solo e o ar, e a umidade que gera as chuvas.

    Sempre que nasce uma criana planta-se uma rvore em seu nome, estabelecendo entre a criana

    e a rvore uma relao mais forte do que a existente entre a criana e sua famlia, porque a rvore

    pertence apenas criana, explica Gita Mehta no seu livro Escadas e Serpentes 6.

    H trezentos anos, nessa mesma regio, aconteceu a primeira manifestao coletiva de

    martrio em defesa das rvores de que temos notcia. O rei de Jodhpur requisitou madeira para

    alimentar os fornos de seu palcio e enviou seu exrcito para cumprir suas ordens. Quando che-

    garam aos bosques circunvizinhos foram interpelados pelos bishnoi, tribo estritamente vegetariana

    cuja f probe o corte de rvores vivas. Sem dar-lhes ouvidos, comearam a usar seus machados.

    Amrita Devi, desafiante, amarrou-se ento a uma rvore, e assim fizeram mais 363 mulheres e homens

    de sua aldeia. Todos morreram.

    Informado sobre a tragdia, o rei de Jodhpur apresentou pedido oficial de desculpas aos membros

    da tribo e promulgou um decreto real:

    Probe-se estritamente o corte de rvores vivas e a caa de animais nas reas habitadas pelos bishnoi.

    Se por algum engano algum violar estas ordens ser processado e receber severa pena.

    Mesmo os membros da famlia real esto proibidos de caar animais tanto nas vilas como nas

    redondezas das comunidades bishnoi.

    At os dias de hoje, anualmente, h uma feira na aldeia de Amrita Devi para homenagear sua

    coragem e esprito visionrio as terras dos bishnoi ainda continuam frteis e generosas, ao passo

    que nos arredores o deserto, a salinizao e a aridez avanam de maneira alarmante, provocando

    migraes em massa e desolao na populao remanescente.

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    6. MEHTA, G. Escadas e serpentes. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 173.

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  • 30

    Sugestes para reflexo e dilogo em grupo:

    Qual a relao entre desmatamento e pobreza?

    Os bishnoi talvez sejam os primeiros ambientalistas que conhecemos. Os precursores doGreenpeace. Os antecessores de Chico Mendes. Quais so as causas que defendem? Por qu?

    A Amaznia brasileira. Por que se fala ento de internacionalizar a floresta? Quais so osargumentos a favor e contra?

    Percorra o quarteiro de sua casa ou escola. H rvores? Em que estado se encontram? Sabe dizer a queespcie pertencem?

    J plantou uma rvore, j cuidou ou cuida de uma planta? Consegue identificar os sentimentos queacompanham essas experincias?

    O historiador William Irwin Thompson, organizador do livro Gaia uma teoria do conhecimento, assinala:

    paradoxal que embora o Produto Nacional Bruto (PNB) seja invisvel, e a poluio uma

    das coisas mais visveis, a abstrao seja aceita como realidade concreta e a experincia

    de vida real relegada s margens da sociedade, onde recolhida por ambientalistas,

    artistas, filsofos e outros grupos descontentes 7.

    Que esto denunciando estas observaes? Onde est o mapa, onde o territrio?

    Se quiser fazer uma pesquisa hoje h muitas fontes disponveis: jornais, revistas, internet,

    publicaes de ONGs dedicadas ao meio ambiente e sustentabilidade do planeta, programas

    de TV, programas de rdio.

    Va m o s U b u n t a r ?

    7. THOMPSON, W. I. (Org.). Gaia: uma teoria do conhecimento.

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  • 31

    2. O mundo inteiro acompanhou recentemente, com emoo e surpresa, a participao de um

    golfinho em uma operao de resgate. A Folha Cincia do dia 13 de maro de 2008 nos informa:

    Um golfinho salvou duas baleias moribundas da morte por encalhe na Nova Zelndia,

    guiando-as em segurana para o mar, afirmaram testemunhas. O ato do animal, uma fmea

    da espcie nariz-de-garrafa apelidada Moko, deixou boquiabertas as pessoas que tentavam

    ontem resgatar as baleias e um especialista, que viram naquilo uma evidncia da natureza

    amigvel desses animais. As baleias, dois cachalotes-pigmeus (aparentemente me e

    filhote), se desorientaram e encalharam numa praia a 500 km de Wellington, capital do pas.

    Uma equipe de resgate tentou por mais de uma hora conduzi-las de volta ao mar, mas elas

    encalharam mais quatro vezes e se recusavam a voltar ao mar. Foi quando Moko apareceu,

    aparentemente atrada pelos chamados de agonia das baleias. Metendo-se entre o grupo de

    resgate e os animais, ela fez com que as baleias nadassem em direo a um canal na sada da praia.

    Sugestes para reflexo individual ou em grupo:

    J soube de outras intervenes solidrias por parte de animais?

    Ser que a cooperao e a empatia so qualidades apenas humanas? Ou sero parte integrante da vida,portanto passveis de emergir como comportamento em todos os seres vivos?

    Por que os seres humanos tm bichos de estimao? O que acontece nesse tipo de relacionamento?

    Voc conhece o Projeto Tamar? Ele nasceu nos anos 70 para salvar e proteger as tartarugas marinhas

    do Brasil, conscientizando e mobilizando as comunidades locais para evitar a caa indiscriminada

    e a apropriao dos ovos. Hoje j foram salvos 8 milhes de filhotes de tartaruga que foram liber-

    tados no mar 8.

    Voc conhece as aes do Instituto Nina Rosa? Ele foi criado para promover a valorizao da vida

    animal atravs da educao humanitria e oferece informao de qualidade sobre a explorao e

    maus-tratos com animais, e d sugestes prticas para sermos humanos amigos dos animais, da

    comunidade e do planeta onde vivemos 9.

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    8. Disponvel em: .

    9. Disponvel em: .

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 31

  • Algumas escolas possuem bandas de msica que se apresentam em vrios locais da cidade. Escola Dcio Martins Costa, Rio de Janeiro (RJ).

    32

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  • Os estudos sistemticos sobre a paz so relativamente recentes. Datam da segunda metade do

    sculo XX, em grande parte motivados por uma crescente sensibilidade que vamos adquirindo frente

    violncia em todas suas expresses, desde as mais brandas e naturalizadas, culturalmente legiti-

    madas, como a palmada pedaggica, o trfego de influncias, o nepotismo, a burocracia, o sigilo

    de informaes, at as hediondas como o genocdio, as xenofobias, as discriminaes raciais e

    sociais, a instigao ao conflito blico entre naes para obter dividendos com a indstria arma-

    mentista. A guerra cada vez mais impopular, indesejada, inconveniente e incompatvel com nossas

    aspiraes de vida.

    Contudo h antecedentes relativos paz dignos de nota na histria tanto do Oriente quanto

    do Ocidente, que estimamos importante analisar pela profundidade de suas reflexes e pela contri-

    buio que ainda oferecem a estes estudos.

    No Extremo Oriente, encontramos o aporte oferecido pelo jainismo, tradio filosfica espiritual

    pr-vdica cujos preceitos foram compilados e organizados por Mahavira, contemporneo histrico

    do Buda, no sculo VI a.C., e que exerceu grande influncia no pensamento de Gandhi.

    33

    A PAZ NA VOZ DAS CULTURAS

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 33

  • 34

    O postulado central a doutrina do carter multifacetado da verdade, Anekantavada, segundo

    a qual tudo no universo pode ser observado a partir de diferentes pontos de vista, possibilitando

    diferentes concluses. Assim, uma determinada coisa existe unicamente com referncia sua

    substncia, seu espao, tempo e modo particulares; e no existe com referncia sua substncia,

    seu espao, tempo e modo diferentes.10 Esta abertura pluralista, que expressa respeito pelas diversas

    abordagens do conhecimento em busca de compreenso, est alicerada no compromisso ine-

    quvoco com a primeira e principal observncia tica estabelecida pelo jainismo: a no-violncia,

    ahimsa, em pensamento, palavra e ato. Abster-se de causar sofrimento o princpio fundante da

    humanidade do homem, cuja existncia no consiste em estar no mundo, mas sim em estar com

    os outros.

    A violncia fsica a ponta do iceberg, a expresso visvel do que foi antes expresso pela palavra

    e articulado no silncio do sentir e do pensar. Podemos ferir algum sem atingi-lo corporalmente,

    com um gesto, um olhar e at um no olhar. H pessoas que se tornam invisveis socialmente, seja

    pelas funes que desempenham, aparncia que carregam ou estado em que se encontram. O psi-

    clogo social Fernando Braga da Costa evidenciou a invisibilidade pblica na sua tese de mestrado

    apresentada na USP em 2002. Durante oito anos ele vestiu as roupas e bon dos garis e passou meio

    perodo do dia trabalhando nessa funo nas ruas da prpria USP. Nunca foi reconhecido pelos seus

    professores nem pelos seus colegas de estudo. Descobri que um simples bom-dia, que nunca recebi

    como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da prpria existncia.

    A palavra pode ser igualmente violenta quando humilha, difama, desqualifica, ofende, ironiza,

    ridiculariza ou demoniza algum, um grupo, uma tradio ou nacionalidade. Mas a recusa em dirigir

    a palavra a outrem tambm pode menosprezar, intimidar e envergonhar.

    Os jainistas esto cientes deste potencial ofensivo que carregamos, por isso destinam tempo para

    se auto-educar, disciplinando primeiramente as atitudes, as disposies internas que nos autorizam

    a prejudicar os outros comprometendo os relacionamentos e o convvio social. A violncia no um

    direito, pelo contrrio, a quebra do princpio de convivncia que viabiliza a nossa sobrevivncia.

    Va m o s U b u n t a r ?

    10. JAIN, J. C. Jainismo: vida e obra de Mahavira Vardhamana. So Paulo: Palas Athena Editora, 1982. p. 68.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 34

  • 35

    Amitigati, um praticante dessas disciplinas e destacado filsofo do sculo XI recomenda:

    Amizade para com todos os seres,

    alegria pelas qualidades dos virtuosos,

    mxima compaixo pelos aflitos,

    equanimidade para os que no esto

    bem-intencionados comigo.

    Que minha alma tenha sempre estas inclinaes.

    Foi dessa nascente milenar que Gandhi criou uma das arquiteturas polticas mais bem-sucedidas,

    capaz de conquistar a independncia de um pas sem recurso violncia. Raychandbhai, jainista

    natural da mesma regio onde cresceu o Mahatma, foi um de seus interlocutores mais assduos e

    com quem manteve fecunda e longa correspondncia durante suas viagens, e a quem atribui

    profunda influncia nas suas convices e conseqente ao.

    Nascido numa sociedade que aclamava a obedincia, a submisso e o respeito s tradies

    ancestrais como objetivos naturais da vida pblica e privada, Gandhi quebrou o elo da dominao

    externa que durante trezentos anos manteve a ndia na condio de colnia britnica e, ao mesmo

    tempo, aboliu costumes enraizados na sua cultura que perpetuavam uma sociedade estratificada em

    castas que legitimavam supersties desumanas.

    As injustias impostas a uma comunidade ou nao afirmava Gandhi so perpetradas por

    alguns, mas sustentadas por todos, inclusive pelos oprimidos. Esta a grande descoberta sociolgica

    que ele nos oferece: vtima e carrasco se alimentam mutuamente. Para combater a injustia

    necessrio se auto-educar, isto :

    reconhecer que qualquer situao de violao de direitos se perpetua se h cooperao por parte

    dos oprimidos, ou seja, se estes aceitam a opresso como fatalidade ou condio natural da existncia;

    mudar a atitude interna de passividade, resignao, indiferena, e gerar respeito por si mesmo,

    dignidade, autoconfiana e coragem;

    ter a determinao para deixar de obedecer e submeter-se, apesar das represlias que isso possa

    acarretar.

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 35

  • 36

    Portanto, a no-cooperao com o ignominioso um dever. Cooperar seria participar da violncia

    que condenamos. Mas esse dever, diz Gandhi, pode realizar-se unicamente por meios no-violentos.

    Sejam quais forem os instrumentos usados para acabar com a explorao e as injustias, eles devem

    estabelecer um compromisso com a no-violncia princpio soberano de transformao pessoal e

    social cujo objetivo restaurar a dignidade tanto do agressor como da vtima. Conseqentemente,

    a ao reparadora deve estar dirigida agresso e nunca ao agressor.

    Nesse sentido, a no-violncia uma linguagem, uma modalidade de ser e de estar no mundo

    que se aprende com a prtica, com o exerccio cotidiano inspirado no compromisso de no causar

    sofrimentos gratuitos nem alimentar ressentimentos. Se o que se busca estabelecer relaes mais

    justas e libertrias, ento necessrio concentrar o poder reparador da ao na prpria situao que

    gerou e sustenta a beligerncia. Inverter a situao entre opressor e oprimido, tornando este ltimo

    ganhador e o outro perdedor seria intil, porque preservaria o crculo vicioso de vingana que

    retroalimenta vtima e o carrasco, corrompendo e bestializando ambos.

    A respeito disto Gandhi afirma: Podemos ter certeza de que um conflito foi solucionado se-

    gundo os princpios da no-violncia se no deixa nenhum rancor entre os inimigos e os converte

    em amigos. Isto revela uma ousadia intelectual que amplia nosso entendimento da condio humana,

    ao mesmo tempo em que promove a criao de um nmero maior de alianas para fortalecer

    o tecido social sobre bases de convivncia confiveis que, por sua vez, abrem caminho para a paz.

    oportuno lembrar que Gandhi testou suas idias nos tribunais, em meio a manifestaes popu-

    lares inflamadas, no crcere, com dissidentes polticos, entre parlamentares e at com repre-

    sentantes da coroa britnica. No um terico nem um acadmico de gabinete, mas um poltico,

    um cientista social e articulador paciente e persistente. Tampouco um romntico que ignora a

    seduo que a sede de poder, de reconhecimento e de riquezas exerce sobre todos ns. Todavia,

    acredita firmemente na condio transformadora das foras espirituais que desencadeiam o legado

    das religies, independentemente da cultura onde tenham florescido. Ele diz a respeito de si mesmo:

    No sou um santo que se tornou poltico. Sou um poltico que est tentando ser santo.

    A centralidade tica da sua experincia poltica foi continuada por quase todos os revo-

    lucionrios pacifistas do sculo XX. Notadamente Martin Luther King Jr., Desmond Tutu, Nelson

    Va m o s U b u n t a r ?

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 36

  • 11. ROMILLY, J. de . A Paz na antiguidade. In: _____ et al. Imaginar a paz. Braslia: UNESCO, Paulus Editora, 2006.

    37

    Mandela, o Dalai Lama, Vaclav Havel e outros, cujas aes construtivas na esfera econmica, social,

    poltica, cultural e religiosa afirmam os princpios mais elevados do amor e a justia. A atualidade de

    suas experincias est evidenciada pelo fato de ser referncia unnime em todos os estudos e

    pesquisas contemporneos sobre cultura de paz, mediao de conflitos, desenvolvimento e empo-

    deramento, simplicidade voluntria, responsabilidade social, economia solidria. Atualidade endos-

    sada nas palavras de Martin Luther King Jr.: Gandhi era inevitvel. Se a humanidade h de progredir,

    no poder esquecer Gandhi. Ele viveu, pensou e agiu inspirado pela viso da humanidade evoluindo

    para um mundo de paz e harmonia. Se ignorarmos os seus ensinamentos, no poderemos nos queixar.

    As reflexes sobre a paz no Ocidente seguiram outras trilhas, que podemos analisar sob duas

    vertentes historicamente simultneas: aquelas aliadas a um projeto coletivo, que associa a paz

    justia, e as que centram seu exerccio na atividade da alma, na conquista da liberdade interior

    proporcionada pela razo/vontade quando estas sobrepujam a tirania das paixes desagregadoras,

    egostas e beligerantes.

    Jaqueline de Romilly,11 helenista e professora do Collge de France, diz que os gregos da

    Antiguidade Clssica, apesar de abominarem a guerra, conceberam a paz apenas como intervalos

    dela. Na paz, os filhos enterram os pais. Por sua vez, na guerra os pais enterram os filhos,

    advertia Herdoto. Miserveis humanos, por que motivo vocs pegam em armas e matam-se uns

    aos outros? Basta, deixem de combater. Fiquem em casa, em paz; e deixem os outros em paz,

    clamava Eurpedes.

    Hesodo, bardo do sculo VIII a.C., portanto anterior ao surgimento da plis, nos diz em sua

    Teogonia que Zeus, deus todo-poderoso, e Tmis, outro nome da prpria Terra, conceberam trs

    filhas: Eunmia, Dique e a viosa Eirene, que ns traduzimos por Eqidade, Justia e Paz, conhecidas

    sob o nome coletivo de as Hrai as Estaes, que, como assinala o prof. Jaa Torrano,

    pem em evidncia quanto o pensamento arcaico apreende como uma Ordem nica

    e unitria o que ns cindimos em distines como ordem poltico-social, ordem natural

    e ordem temporal. Uma crena profunda de Hesodo era a de que as injustias sociais

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 37

  • 38

    acarretavam no s perturbaes e danos s foras produtivas da natureza, mas tambm

    subvertiam a prpria ordem temporal. [...] Eqidade, justia e paz tm por funo

    instaurar a boa distribuio dos bens sociais, as boas relaes entre humanos e a ordem

    que d ritmo s foras produtivas da natureza.12

    significativo o fato de, no Olimpo, serem estas trs irms as responsveis por guardar as portas

    da manso dos deuses.

    O estoicismo a filosofia representativa de uma outra vertente, que denuncia os horrores das

    guerras civis e da discrdia, das lutas intestinas pelo poder, das preocupaes, adversidades,

    cuidados e das emoes da vida comum como a ambio, a ganncia e o carter ilimitado dos

    desejos. Seu ideal conquistar a imperturbabilidade, a serenidade e paz da alma atravs do cultivo

    da razo, da aceitao do destino e da educao das foras irracionais que ameaam desde o

    interior de cada ser humano o desfrute de uma felicidade duradoura. Assim como o animal guiado

    infalivelmente pelo instinto, o homem infalivelmente guiado pela razo; e esta que lhe oferece

    normas infalveis de ao que constituem o direito natural.

    Esta escola aconselha dedicar-se s questes que verdadeiramente dependem de ns. Fama,

    poder e riqueza no dependem apenas de ns, mas de uma srie de circunstncias que as

    possibilitam ou no. Entretanto, aquilo que pensamos e fazemos, a qualidade dos relacionamentos

    que estabelecemos, o ncleo de interesses que cultivamos, estes sim dependem de ns. A estes

    devemos nos dedicar.

    A vida contemplativa no levou os esticos a aceitar tudo que existe como necessrio. Eles

    exerceram uma poderosa crtica social e poltica que chegou a promover reformas fundadas nos seus

    ideais do sbio e do cosmopolitismo, isto , a tese de que o homem cidado do mundo e no de

    um pas determinado, idia revolucionria que afirma a identidade da natureza humana e reconhece

    o valor absoluto de toda pessoa. Tais sentimentos eram totalmente desconhecidos para o mundo

    antigo, onde esto presentes escravos, estrangeiros, forasteiros, inimigos; onde campeia solitria

    uma justia que de fato existe, porm, apenas para os concidados livres. [...] Esse cosmopolitismo

    Va m o s U b u n t a r ?

    12. HESODO. Teogonia: a origem dos deuses. So Paulo: Iluminuras, 2006. p. 62.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 38

  • 39

    promove os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional13 que iro influenciar

    a Roma imperial e o cristianismo, mas tambm toda a cultura ocidental at os nossos dias.

    Em Roma a paz vincula-se ao poder, a um poder centralizado, autoritrio, que inicia com Augusto

    Csar (29 a.C.) ao declarar o fim das guerras civis e instaurar a Pax Romana. Nesse perodo, o imprio

    dominava desde a fronteira da atual Esccia at o Oriente Mdio e do Danbio ao Egito e ao

    Marrocos. Centenas de povos com seus costumes, idiomas e tradies ficaram sob a proteo do

    imperador, seus legionrios e instituies militares, que lhes ofereciam segurana pessoal, tran-

    qilidade e possibilidade de desenvolvimento, visto que o prprio exrcito dedicava-se construo

    de estradas e pontes, saneamento urbano e espaos de cultura. Terras que antes eram constan-

    temente devastadas, aldeias e cidades saqueadas e populaes dizimadas, sentem a presena do

    Imprio como promotora de paz. Obviamente uma paz imposta e, conseqentemente, ambgua,

    perigosa e dependente.

    A paz deixa de ser associada justia e eqidade, como na Grcia, para se vincular guerra

    e vitria. A paz romana uma paz armada, [...] que retomou alguns elementos da simbologia grega

    e os releu em novos contextos, diz o Dr. Marcelo Rezende Guimares, que mais adiante conclui:

    No mais a compreenso de paz para a civilizao, como condio de desenvolvimento

    e florescimento desta, mas a paz da civilizao, conseqncia da organizao e ao

    imperial. A simbologia da paz torna-se expresso da autoconscincia do cidado romano.

    Ao mesmo tempo, imprimiu uma conotao de serenidade, tranqilidade e concrdia

    noo de paz, caractersticas que, junto com a noo de segurana, marcaro indele-

    velmente a simbologia ocidental.14

    No podemos ignorar o aporte sapiencial que nos proporcionaram todas as religies e tradies

    espirituais do mundo na compreenso e experincia da paz. Cada uma a seu modo com a

    linguagem e o cenrio que lhe ofereceram as culturas onde articularam sua inspirao apresenta

    cartografias do Sagrado, onde o mundo est povoado de significados que nos convidam a decifr-

    los. Cada uma assinala uma realidade profunda que os sentidos no conseguem perceber, a razo

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    13. PADOVANI, H.; CASTAGNHOLA, P. L. Histria da filosofia. So Paulo: Editora Melhoramentos, 1995. p. 149.

    14. GUIMARES, M. R. Paz, reflexes em torno de um conceito. Disponvel em: .

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 39

  • no atina a compreender e a palavra fica muda, incapaz de exprimir o que sente. E o que se sente

    , ao que tudo indica, universal, pois a experincia religiosa transmitida ao longo da histria por

    metforas, alegorias, smbolos ou cnticos celebra o mistrio de uma dimenso de vida mais plena,

    gratificante e cheia de sentido.

    Com o fim da Idade Mdia e o esgotamento das respostas oferecidas pela teologia da paz, busca-

    se uma nova ordem, agora fundada na razo, na identidade nacional, na investigao sistemtica da

    natureza e das leis que a tornam irredutvel. Entre os filsofos iluministas diz Norberto Bobbio

    prevalece a idia de que a causa principal da guerra seja o despotismo [...] e que s a deposio

    dos tronos e a instaurao de estados fundados sobre a soberania do povo permitiro humanidade

    pr fim quele evento sumamente destrutivo que a guerra entre estados soberanos.15 justamente

    no Iluminismo do sculo XVIII que surgem as primeiras construes tericas da paz atravs do direito

    ou pacifismo jurdico, a saber: Projeto para tornar a paz perptua na Europa, do abade de Saint-

    Pierre; Pela paz perptua, de Emanuel Kant, e Reorganizao da sociedade europia, de Saint-Simon

    e Thierry. Nasce aqui a idia de Estado, como um pacto de sociedade e no de submisso, portanto

    necessariamente democrtico, onde a liberdade individual de cada membro da sociedade fica

    subordinada lei comum com vistas a garantir a igualdade de todos os cidados.

    Kant expe na primeira parte de sua obra os requisitos necessrios paz entre estados:

    Nenhum acordo de paz ser considerado vlido se for feito com uma reserva secreta com

    vistas a uma guerra futura. [...[

    Exrcitos permanentes sero gradualmente abolidos. [...]

    Nenhum Estado em guerra permitir atos de hostilidade que tornem impossvel a mtua

    confiana em uma poca de paz futura...

    O mais surpreendente, contudo, a capacidade visionria de suas idias, que antecipam em 200

    anos a criao do direito internacional, do direito hospitalidade (estrangeiros e refugiados), da Liga

    das Naes e da Organizao das Naes Unidas, tudo em uma poca em que no havia no planeta

    40

    Va m o s U b u n t a r ?

    15. BOBBIO, N. O problema da guerra e as vias da paz. So Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 161.

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  • nenhuma democracia efetiva e as experincias americana e francesa recm iniciavam sua trajetria.

    Vejamos o que Kant nos diz a respeito na segunda parte de Pela paz perptua:

    O Direito das Naes ser baseado em uma federao de estados livres. [...] Consi-

    derando que os vnculos entre os povos da Terra so cada vez mais estreitos, a violao

    do direito em determinado lugar sentida por toda parte; segue-se que a idia de um

    direito cosmopoltico deixou de ser uma forma quimrica e extravagante de conceber

    o direito para tornar-se um complemento necessrio ao cdigo no escrito do direito

    nacional e internacional, com o objetivo de chegar ao direito pblico da humanidade e,

    assim, paz perptua, que s poder ser alcanada mediante esta condio.

    reveladora a observao de Per Ahlmark, poeta e ex-vice-primeiro-ministro da Sucia, em torno

    da contribuio kantiana ao conceito de paz democrtica, hoje uma das questes mais relevantes

    no cenrio das relaes internacionais e na teoria da democracia:

    Nas 70 guerras travadas no decorrer dos ltimos 175 anos [...] uma democracia nunca

    chegou a declarar guerra a outra democracia sem nenhuma exceo. [...] Em uma

    democracia extremamente difcil obter suficiente apoio da populao para desencadear

    um confronto militar contra outra democracia.16

    Na dcada de 1950 iniciam-se os estudos sistemticos sobre a paz, que ganham status

    acadmico, primeiramente na Noruega, em virtude do pioneirismo do prof. Johan Galtung hoje

    unanimidade e referncia mundial nesta rea e que logo se difundem em outros pases da Europa,

    na ndia e nos Estados Unidos. Na Amrica Latina a Costa Rica que abrir as portas da Universidade

    para la Paz das Naes Unidas, tornando-se a partir de sua fundao, em 1980, a inspirao terica

    e mobilizadora de todo o continente.

    No Brasil necessrio destacar, a partir dos anos 60, a ao inspiradora da educao para a paz,

    encabeada por Paulo Freire, e a mobilizao promovida uma dcada mais tarde pela Comisso

    Brasileira Justia e Paz para a redemocratizao do pas nos tempos da ditadura. Mais recentemente,

    41

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    16. AHLMARK, P. A democracia e a paz. In: ROMILLY, J. de et al. Imaginar a Paz, op. cit.

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  • destacam-se a contribuio do dr. Pierre Weil na fundao da Unipaz, a criao da ctedra da UNESCO

    de Cultura de Paz e Direitos Humanos nas Universidades de Braslia, de So Paulo e Federal do Paran.

    Vamos ubuntar?

    1. Fundamentado nos postulados do prof. Galtung, que sintetizou o conceito de paz na frmula:

    PAZ = paz direta + paz estrutural + paz cultural, Carlos Velzquez Callado apresenta um quadro

    muito ilustrativo em seu livro Educao para a paz promovendo valores humanos na escola atravs

    da educao fsica e dos jogos cooperativos (Wak Editora e Cooperao Editora, Santos, 2004). Nele

    ficam claros os contornos e sentidos que vai adquirindo o conceito paz nestas ltimas dcadas.

    Sugerimos analisar comparativamente as duas colunas:

    42

    Va m o s U b u n t a r ?

    Cultura tradicional (paz negativa) Cultura de paz (paz positiva)

    A paz defini-se como ausncia de guerras e de violnciadireta.

    A paz define-se como ausncia de todo tipo de violncia (diretae estrutural) e como presena de justia social e das condiesnecessrias para que exista.

    A paz limita-se s relaes nacionais e internacionais esua manuteno depende unicamente dos estados.

    A paz abrange todos os mbitos da vida includos o pessoal e ointerpessoal e , portanto, responsabilidades de todos e decada um de ns.

    A paz o fim, uma meta a que se tende e que nunca sealcana plenamente.

    A paz um processo contnuo e permanente No h caminhopara a paz, a paz o caminho (Muste)

    O fim justifica os meios. portanto, justificvel o uso daviolncia para alcanar e garantir a paz.

    Ao considerar a paz como um processo contnuo e no comoum fim, no justificvel o uso de meios que no sejamcoerentes com o que se persegue. A violncia no , portanto,justificvel em nenhum caso.

    A paz um ideal utpico e inalcanvel, carente designificao prpria e derivado de fatores externos a ela.

    A paz converte-se num processo contnuo e acessvel em que acooperao, o mtuo entendimento e a confiana em todos osnveis assentam as bases das relaes interpessoais e intergrupais.

    O conflito visto como algo negativo.O conflito independente das conseqncias derivadas de suaregularizao. O negativo no o conflito se no recorrer violncia para regul-lo.

    preciso evitar os conflitos.O conflito necessrio. preciso manifestar os conflitoslatentes e regul-los, sem recorrer violncia.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 42

  • 43

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    Sugesto para reflexo individual ou em grupo

    H algo em comum entre estas trs fotos? Se tivesse que usar outra linguagem que no as

    palavras, poderia dizer qual o sabor que elas tm em comum? Voc se lembra de alguma msica

    que poderia associar-se a essas imagens? Se tivessem cheiro, qual seria?

    As fotos falam, e algumas so muito mais eloqentes do que as prprias palavras. Que tal

    criarmos neologismos, trocadilhos para cada uma delas? Lembre que ubuntar uma inveno,

    no existe esse verbo na lngua zulu nem na xhosa. Ele uma criao brasileira, mas vai ganhar o

    mundo. Aguarde!

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  • 44

    Jud e carat ensinam os estudantes a respeitar o oponente. Escola Instituto de Educao Governador Roberto Silveira, Rio de Janeiro (RJ).

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 44

  • Os conceitos, como tudo que existe, tm histria movem-se no tempo e no espao adquirindo

    as feies que lhes empresta a dinmica natural, cultural e social. O termo tica no uma exceo.

    Etimologicamente nasce em solo grego, entre os pr-socrticos do sculo VIII a.C., perodo exu-

    berante e relativamente pacfico, durante o qual puderam desenvolver suas instituies, estabelecer

    contato com outros povos e criar as pleis, cidades-Estado independentes onde os cidados

    aprendiam a arte de se autogovernar, pois a comunidade inteira com exceo das mulheres

    e dos escravos participava das deliberaes e decises sobre organizao social, investimentos

    pblicos, datas comemorativas, expanso econmica etc. Desse modo, experimentaram diversas

    formas de governo, o que viabilizou a primeira experincia democrtica na Antigidade, resultante

    de uma srie de quatro condies dignas de nota, a saber: 1) a busca sistemtica do pensamento

    para compreender a realidade, de onde nasce a filosofia como resposta racional frente ao espetculo

    da natureza; 2) a idia de lei como vontade coletiva, consensual; 3) um espao fsico destinado

    deliberao pblica, a gora, e 4) a poltica como discurso partilhado que estimula a reflexo sobre

    os problemas prticos da vida em sociedade.

    45

    A TICA ENTRA EM CENA

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  • Os mercadores gregos viajavam muito, e na maioria de suas cidades havia portos: isto significa

    que existia um fecundo intercmbio com outros povos e culturas, dos quais aprendiam e incorpo-

    ravam saberes. Por exemplo, adaptaram a escrita fencia para seu prprio uso, construram templos

    com base na arquitetura do Oriente Prximo, e mesmo seus deuses receberam influncia dos que

    eram objeto de devoo na sia Menor.

    A primeira verso do termo tica encontrada em Homero e Hesodo: thos, com a letra eta

    inicial, que significa morada, casa, habitat, toca de animais, refgio, estbulo, ninho e, portanto,

    faz referncia a um espao fsico mensurvel onde acontece a vida em segurana, onde se est

    protegido e, em conseqncia, onde os mecanismos de ataque e defesa podem repousar. Pressupe

    espaos onde a sobrevivncia est garantida pelas condies naturais que constituem o entorno do

    organismo; a ameaa existncia por parte de predadores est atenuada e h possibilidade de

    conforto, segurana e familiaridade com seus pares. Quando chegamos em casa aps um dia de

    labuta e exigncias, deixamos as nossas armas, os nossos uniformes, nos despimos das

    convenes necessrias subsistncia e, acolhidos pelos que nos so mais prximos, baixamos a

    guarda. Tudo que nos rodeia conhecido, previsvel, e aqueles com quem convivemos so confiveis,

    nos oferecem conforto, afeto, respeito e significao.

    Portanto a tica, nessa origem remota dos poetas compiladores dos mitos que percorreram vrias

    geraes por transmisso oral, uma palavra que denota o espao de convvio entre iguais em que se

    recebem as competncias necessrias para dar conta da prpria vida seja animal ou humana,

    adquirir autonomia e assegurar a perpetuao da espcie. Trs sculos mais tarde, quando surgem

    as figuras de Scrates, Plato e Aristteles, a palavra ethos, agora com a letra grega psilon inicial,

    passa a significar carter, ndole, natureza pessoal, hbito, costume. Essa nova acepo corres-

    ponde mudana de foco das investigaes filosficas daquele tempo: enquanto os primeiros

    pensadores gregos tinham por objetivo compreender a origem do Universo a partir de sua consti-

    tuio material ou elementos afastando-se das explicaes mitolgicas de seus predecessores, de

    Scrates em diante as questes relevantes giram em torno da alma, do conhecimento, da beleza e

    da justia e o objetivo prprio da filosofia no mais era apresentar teorias a respeito do cosmos,

    mas ensinar a viver, construo incessante e nunca acabada. Sempre estamos nos fazendo, em

    transformaes e descobertas constantes.

    46

    Va m o s U b u n t a r ?

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  • Para Aristteles o carter, a natureza ou a ndole humana visam o bem. Toda arte, toda

    investigao, todo ato e todo propsito parecem ter em mira um bem; por isso definem o bem

    como aquilo a que todos aspiram, diz na sua tica a Nicmaco, e acrescenta: De todos os bens,

    a felicidade o supremo, visto que a buscamos por ela mesma e no como um meio para outra

    coisa. Todos queremos ser felizes, tudo quanto fazemos persegue esse estado, mas para Aristteles

    a felicidade algo que se constri, que se cultiva pela prtica persistente de comportamentos,

    modos de agir orientados pela razo tendo em vista um bem comum, que nem sempre atende

    nossos interesses particulares momentneos, os que temos voluntariamente de subordinar em

    benefcio da sade social que resulta de atender interesses maiores e coletivos.

    Ns no vivemos, convivemos. Ns no existimos, coexistimos. O ser humano por natureza um

    ser gregrio, portanto o que fazemos atinge outras pessoas, da mesma forma que somos afetados

    pelo que elas fazem. Direitos e obrigaes so a expresso das relaes que nos vinculam uns aos

    outros por sermos membros de uma comunidade. O princpio da reciprocidade alimenta e sustenta

    esse vnculo, que exige atribuir aos interesses alheios o mesmo peso que atribumos aos nossos.

    Como salienta a prof. Terezinha Azevedo Rios: Ns nos definimos, nos apresentamos, vivemos

    efetivamente em relao uns com os outros. O outro entra na minha constituio e comigo constri

    o mundo. Quando ignoro o outro, quando o considero como alheio que nada tem a ver comigo

    tenho a atitude de alienao.17 Objetivando benefcio mtuo, as pessoas estabelecem um

    contrato tcito por meio do qual recebem as contribuies culturais, cientficas e polticas do passado

    e igualmente do presente, ao passo que oferecem o talento e capacidade que cada uma tem.

    Consideramos oportuno distinguir aqui tica de moral, cuja raiz latina, mor-mores, significa

    conforme os bons costumes, ou seja, aqueles abalizados pela autoridade oficial segundo o direito

    e as instituies romanas que, na poca do Imprio, foram impostos a todos os povos colonizados,

    desmoralizando seus costumes autctones como portadores de barbrie e ignorncia. Desse modo,

    a moral tem um carter vertical, normativo, que prescreve comportamentos e prticas e que legitima

    costumes, nem sempre ticos. A moral um sistema de regras de conduta, um conjunto de prescries

    e proibies de ao e de valores que funciona como norma em uma sociedade ou, como definiu

    47

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    17. PONTFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO. Hypnos: ethos, tica. So Paulo: Centro de Estudos da Antigui-dade Greco-Romana da PUC-SP, Educ/Palas Athena Editora, n. especial, p. 41.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 47

  • 48

    Durkheim, um sistema de regras de ao que predeterminam o comportamento, modelam nossa

    convivncia e, uma vez internalizadas, nos fazem agir conforme elas, sem questionamentos, sem

    sequer perceb-las. a tica, como reflexo racional sobre a moral, que nos permite questionar e,

    se necessrio, mudar aquilo que funda a moral, que perpetua costumes, instituies, modos de

    relacionamento social, justifica prticas, impe critrios e valores. Na cosmoviso do povo navajo

    da qual falamos anteriormente , a tica estaria representada pela abertura do crculo que contm

    as tradies, abertura essa que sempre admite renovaes, transformaes e atualizao. Vida

    mudana. Nas palavras do astrofsico Marcelo Gleiser: todas as coisas fundamentais que existem

    dependem de um desequilbrio, o prprio Universo se originou do desequilbrio. Quando o sistema

    est equilibrado, no se transforma. Sem transformao no h criao, nada acontece. E nada

    teria acontecido se ainda estivessem operando as velhas estruturas de regulamentao societria

    que deram origem ao humano. Se a nossa espcie houvesse vingado desse modo, o que pouco

    provvel, no passaramos de animais, que sempre sabem o que fazer.

    Obedecer sem refletir abdicar da prpria capacidade de fazer escolhas, de tomar decises, de

    correr riscos no ato de criar e planejar o inusitado, abrir mo do pensar que articula e relaciona

    idias produzindo significados. Nossos sentidos so incapazes de elaborar uma sinergia a partir das

    informaes que nos oferece a realidade. necessrio convocar a inteligncia (inter=dentro e

    legere=ver), que no s estabelece relaes entre as coisas do real como tambm est dotada do

    poder de observar os prprios processos de pensamento, orient-los em uma direo e retificar a

    rota se avaliamos que incorremos em erro.

    Mas desobedecer sem ter razes, argumentos, porqus, apenas para atender convenincias,

    interesses privados, oportunismos, caprichos, para obter privilgios, igualmente desarrazoado, pois

    viola o pacto social que me torna depositrio de direitos e me legitima como um ser confivel, isto

    , um cidado.

    Moral o conjunto de comportamentos e normas que voc, eu e algumas das pessoas que nos

    cercam costumamos aceitar como vlidos; tica a reflexo sobre por que os consideramos vlidos

    e a comparao da nossa com outras morais de pessoas diferentes,18 salienta o filsofo Fernando

    Va m o s U b u n t a r ?

    18. SAVATER, F. tica para meu filho. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 48

  • 19. MORA, J. F. Diccionrio de filosofia. Madri: Alianza Editorial, 1986. p. 1971-1972,

    49

    Savater. esse por qu? o espao privilegiado da liberdade, que nos define e constitui como

    realizadores da trajetria histrica da nossa espcie, da nossa prpria existncia, a vida que queremos

    e vale a pena ser vivida. Da podermos afirmar que tica :

    compromisso que se assume voluntariamente;

    consentimento livre versus obedincia automtica;

    autoconstruo incessante de si mesmo (prxis);

    vigncia de leis internas que fazem menos necessrias as leis externas;

    respeito pela inteligncia, integralidade e singularidade de cada criatura humana.

    Mas o termo liberdade tambm sofre inflexes com o correr do tempo. Na sua origem latina, lber

    designava o jovem que havia chegado maturidade sexual e estava apto para procriar, incorpo-

    rando-se, ento, comunidade como homem capaz de assumir responsabilidades. Nessa condio,

    recebia a toga virilis, ou toga libera, como sinal de sua autonomia e igualmente de sua limitao,

    pois alm de submeter-se s leis da natureza, devia agir conforme os deveres que lhe impunha sua

    comunidade.

    Na Idade Mdia, com o cristianismo, a liberdade concebida dentro do marco do conflito: entre

    a liberdade humana e a predestinao divina, contexto no qual a graa passa a ter papel decisivo.

    Santo Agostinho distingue entre livre arbtrio como possibilidade de escolha e liberdade propria-

    mente dita como a realizao do bem. [...] No suficiente saber o que bom, necessrio poder

    efetivamente avocar-se a ele,19 o que exige o poder da vontade para fazer escolhas consoantes com

    uma ordem sobrenatural, a lei de Deus, pax spiritualis.

    Na modernidade, recentemente, aparece a idia de liberdade como valor, como um fazer-se a si

    prprio; visto que a vida humana algo a ser feito apenas por cada um de ns uma tarefa

    intransfervel considerando que sempre temos de decidir o que vamos fazer e ser, mesmo quando

    decidimos no decidir. Para Ortega y Gasset, a liberdade no algo que temos, mas algo que somos:

    Um conv i t e p a ra cu l t iv a r a paz

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 49

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    estamos obrigados a ser livres. Contudo, ningum em s conscincia pode escolher nascer em uma

    sociedade injusta; uma famlia violenta ou desagregada; com potencialidades que dificilmente

    encontraro espao para desabrochar; em condies de precariedade econmica e intelectual.

    Ningum escolhe nascer mulher ou homem, doente ou racialmente discriminado, sem oportunidade

    de usufruir de direitos que so garantidos a outros... De fato, aqui no houve escolha, houve

    contingncia; mesmo assim h espao para a liberdade no sentido de podermos escolher como viver

    tais condies. Esse como nada nem ningum pode nos subtrair, por mais limitada que seja a

    participao da liberdade no desenrolar concreto da vida humana.

    Das cerca de 100 famlias que moram no distrito de Coronel Goulart (pequeno distrito

    que fica a 625 km. a oeste de So Paulo), a maioria trabalha em roas de legumes, que

    so transportados por intermedirios e vendidos nas feiras da capital. No h saneamento

    bsico, as ruas so de terra, as casas de madeira, e as perspectivas de futuro limitadas.

    Para os meninos que tiveram a oportunidade de participar do time de vlei, contudo,

    essas perspectivas se ampliaram um pouco.

    A nica escola do distrito tem 180 alunos, e a equipe de vlei faz parte das atividades de

    abertura das escolas estaduais da rede pblica paulista nos fins de semana. Mas

    fruto da iniciativa da professora de educao fsica Paula Avanzato, 24 anos, que mora

    na cidadezinha, e tambm passou a infncia e a adolescncia trabalhando em roas, sem

    grandes perspectivas de futuro: Tentei fazer por essas meninas o que ningum fez pela

    minha gerao, diz.

    Paula passou os ltimos dois anos desde agosto de 2003, quando o programa comeou

    tentando evitar que as garotas do time se tornassem estatsticas: bebessem lcool em

    excesso, usassem drogas, engravidassem precocemente e abandonassem a escola.20

    O texto acima de Gabriela Athias, autora de Dias de Paz a abertura das escolas paulistas para

    a comunidade, que relata as experincias do Programa Abrindo Espaos: educao e cultura para a paz,

    implementado pela UNESCO em vrios estados brasileiros a partir de 2000, e que em So Paulo, onde se

    Va m o s U b u n t a r ?

    20. ATHIAS, G. Dias de paz: a abertura das escolas paulistas para a comunidade. Braslia: UNESCO, 2006. p. 80.

    Vamos Ubuntar:Layout 1 November/26/08 6:08 PM Page 50

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    chama Escola da Famlia, congrega 5.304 escolas pblicas que abrem suas portas nos finais de semana

    oferecendo s crianas, aos jovens e suas famlias, principalmente s comunidades mais

    vulnerabilizadas pelo processo de excluso social, atividades de lazer, esporte, arte, cultura,

    educao para a cidadania, formao profissional, apr