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ABHA DAWESAR VALORES DE FAMÍLIA Tradução Marina Mariz

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de seus membros, um menino fragilizado por uma doença, filho único de um casal de médicos, numa cidade da Índia.Mais do que um retrato vivo da Índia atual, onde a pobreza extrema convive com a corrupção e o enriquecimento de uma pequena minoria, esta obra assinada por Abha Dawesar consegue confirmar que todas as famílias têm a sua quota de drama, mantendo segredos, que às vezes são revelados nos piores momentos, e alimentando ódios surdos e ressentimentos.Da mesma autora de BABYJI.240 páginasFormato: 14x21 ISBN: 9788588193567 Leia mais…

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ABHA DAWESAR

VALORES DE FAMÍLIA

TraduçãoMarina Mariz

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Cercado pela doença e pela morte, o menino procurano dicionário todas as palavras referentes à doençaque ouve: menstruação, histerectomia, parede uteri-

na, trompas de Falópio, vagina. São palavras desinteressantesque não guardam segredo algum. As vozes que vêm se consultarsobre esses problemas, as vozes femininas que acompanham taispreocupações, não são vozes sensuais. São histéricas, temero-sas, lacrimosas, desanimadas e doentias. Vozes de pessoas pegasem um momento de contemplação da própria morte e putrefa-ção, encarando seus órgãos e corpos como se fossem pedaços defrutas podres.

Ele está crescendo com a doença. Não só com a malária e asdoenças da infância, como a catapora que o atacou, mas com osmales dos outros: pedras nos rins, arritmia, leucemia, meningite,depressão, sangramento uterino e eczema. Ele está rodeado pelofedor de mucosas e pela música da laringite. O som das mulheresque chegam hora após hora para se queixarem de seus períodos,“aqueles dias”, como a maioria delas diz. O som esganiçado deporcas. Horas da infância contemplando a cor do xixi alheio. Oxixi de outra pessoa, as fezes de outra pessoa, o catarro verde deoutra pessoa, a urticária de outra pessoa e o cocô amarelado dofilho de outra pessoa ou o vômito pálido da filha desta mesmamulher. Há freiras em trajes brancos flutuantes que fazem isso

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por pura bondade. E médicos — os pais do menino, por exem-plo. Mas ele ainda não pensou em ser missionário ou médico.

Divisórias finas de compensado, que terminam a centíme-tros do teto, separam os cômodos do lugar. Ele defeca sabendoque as pessoas podem ouvi-lo do lado de fora, inclusive a meni-na do vômito pálido, se ela prestar atenção. Ele defeca e depoisvem o som gorgolejante da descarga que os outros ouvem esabem que ele terminou. A menina do vômito pálido pode atéter a idade dele. Quando não está aqui porque vomitou, elabrinca com outras crianças que brincam com ela quando nãoestão vomitando.

A maior parte do início das noites é um borrão, uma fileirade pessoas doentes fluindo sem parar. Com frequência até àsnove horas. Horas pontuadas pela mulher-demônio do primei-ro andar jogando baldes de água sobre os pacientes que passamembaixo da varanda dela. A mulher-demônio é adequadamentechamada de senhora Bosta de Vaca. Essa senhora não gosta demorar tão perto da morte, tão perto dos enfermos que chiam,uivam e gemem de dor sob a janela de sua varanda desde a ma-nhã até a noite. Não são pessoas respeitáveis, não são todas domesmo bairro de classe média. Às vezes são mais ricas, mas écomum que venham das comunidades de baixa renda das áreasvizinhas, como a leiteira local. Ela está sempre cheirando a leite.A senhora Bosta de Vaca vê a morte, a doença e a pobreza, e fazseu criado despejar dois ou três baldes de água suja sobre osdoentes, para que fiquem mais doentes ainda e deixem de virdefinitivamente. Quem sabe os médicos vão à falência e saem deperto do seu nariz.

A senhora Bosta de Vaca tem pavor de doença. Que é o avisoda morte. Ela usa mais alho e cebola na comida para espantar avisita do espectro e mandou modificar o encanamento de suacasa; assim, o único ralo existente na casa-ambulatório, o que ficano banheiro do menino, vem diretamente da pia da cozinha delapara o nariz dele. Além de o mundo inteiro poder ouvi-lo fazendococô, todos sentem o cheiro de alho podre que exala do banheiro,porque ele acaba se alastrando pela casa. A porta do banhei-ro, muito fina e mais parecendo uma divisória de banheiro pú-

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blico, porque começa a centímetros do chão e termina antes dechegar ao teto, dá para o quarto. Sim, o mesmo cômodo quetambém é cozinha e escritório, além de sala de jantar. As cama-das de compensado entre esse cômodo multifuncional e a sala deespera dos doentes ou a de exames possibilitam a transmissãode vozes e cheiros. E germes, germes letais que pertencem às pes-soas que esperam sua vez com os médicos, que vão acabar mor-rendo por causa desses germes. Mas isso é raro. As que morrem,e são poucas — afinal isto é uma clínica e não um pronto-socor-ro —, morrem em decorrência de suas próprias besteiras. Pe-quenas bobagens — comer muito ovo e fritura, não moderar aingestão de açúcar, não parar de fumar — podem ser terminais.

Da fragilidade e debilidade da existência o menino sabe osuficiente. Esse saber está em seu sangue e no ar que ele respira.Os cheiros e sons de sua casa-hospital são o mundo do meninoporque ele não tem permissão para ir brincar na rua. Há muitosmotivos para isso, sendo que um dos mais importantes é a rela-ção tensa com os Bostas de Vaca, que podem recorrer a tudo,inclusive à violência. Também há o fato de recentemente estarocorrendo uma onda de sequestros de crianças, que desapare-cem não muito longe do bairro. A cidade tem um histórico de-plorável de jovens roubados que remonta até o caso do irmão eda irmã, trinta anos atrás. Eram dois adolescentes que pediramcarona numa estrada deserta adiante do cinturão verde urbanoque existia na época. Os dois agressores, Pálido e Falho, violen-taram a menina e mataram o irmão quando este tentou impedi-los. Depois que a dupla fez o que queria com a menina, tambéma matou. Os dois homicídios, as vítimas e os assassinos foramnotícia no país inteiro e a justiça acabou sendo feita. Pálido,com sua pele manchada de branco, e Falho, que não passara doprimeiro grau, se dedicaram ao crime e foram enforcados. Maso dilúvio recente de sequestros é diferente. Os jornais só noticia-ram um total de três casos, em uma coluna escondida ao lado deuma branda reportagem sobre projetos públicos do governo,enquanto a leiteira teimosamente insiste em que pelo menosquarenta crianças estão desaparecidas. Isso o menino ouve peladivisória de compensado. Quinze dessas crianças ela alega co-

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nhecer de nome. Nenhum resgate foi pedido, portanto a mídianão tem uma matéria chamativa. E como a mídia não tem umamatéria chamativa, ela se concentra em outras histórias quepossam ter uma continuidade, como a do político cômico quetem se gabado do modo como se apossou de fundos destinadosà compra de forragem para gado. O boato que circula extraofi-cialmente pela cidade é que as crianças que são sequestradassão mutiladas para poder ser arregimentadas como pedintes. Aleiteira se surpreende quando Mamãe lhe conta isso, mas Ma-mãe ouviu a história de um paciente que a ouviu de uma fontesegura. Alguns meses antes, um jornalista havia descoberto quea rede urbana de mendigos era organizada por uma máfia nacio-nal, que arrecadava mais dinheiro com seus pedintes do queuma cidade de porte médio com suas atividades industriais. Osucesso era atribuído ao baixo custo de manutenção desse exér-cito de mendicantes mutilados e à piedade do povo. Até a clíni-ca, que não é uma casa particularmente religiosa, tem uma fotode uma deusa cavalgando um tigre, no cômodo multifuncional.A deusa está enquadrada numa moldura fina de madeira, co-berta por um fino plástico transparente, presa ao espelho dapenteadeira onde Papai faz a barba. Na escrivaninha da Mamãe,do outro lado da divisória, há o ícone de um deus-elefante, e namesa do Papai no consultório, diagonalmente oposto ao cômo-do multifuncional, há uma foto pequena do trio do rei divino,que mandou sua virtuosa esposa para o exílio, com o leal irmãomais jovem do rei e o fiel macaco, que era tão devotado ao seusenhor que, quando este abriu seu peito, lhe revelou uma visãoda divindade. Apesar da presença de todos esses deuses tão dife-rentes, o menino está com medo dos sequestradores. Ele se sen-te seguro nesta sala que tem a mesa de jantar, o bufê, a camagrande, a geladeira, a pequena despensa, o guarda-louça e o fo-gão, com seu cilindro vermelho de gás que todo mês é trocado.Quando ele crescer poderá esbarrar nessas peças da mobília enos aparelhos, como faz seu pai, mas para os membros peque-nos e o físico franzino do menino, por enquanto o cômodo ésuficiente. De qualquer forma, o menino não gosta do ar livre.Ele não aprecia correr e se esfalfar como seus colegas de classe,

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que esperam impacientes a aula de educação física. Ele passoutanto tempo doente na cama que sua posição favorita é sentar-se nela com as costas apoiadas sobre um travesseiro na cabeceira.Por causa das consultas dos pais, o menino não tem permissãopara ver televisão. Os pacientes que vêm consultar os médicospoderiam ouvir sons vindos do lado do menino na clínica; por-tanto, ele deve ficar no maior silêncio possível. Apesar disso,raramente se entedia. Ele tem alguns livros infantis e lápis decor. Tem também um diário com capa rosa de pele falsa de jaca-ré que sua mãe lhe deu, no qual ele rabisca. Mamãe ganhou odiário de brinde de um laboratório farmacêutico.

Às vezes, quando uma empresa farmacêutica convida os mé-dicos para um seminário, os pais levam o menino junto, para queele também possa passear. Além do mais, ele não tem idade paraficar sozinho em casa. Ele os acompanha a um seminário sobreantibióticos de amplo espectro. O representante médico se apa-vora porque esses médicos tão jovens apareceram com seupirralho mais moço ainda, que sem dúvida ficará correndo e ar-ranjando confusão, coisa que fará o gerente regional franzir ocenho; isso também irritará os médicos mais velhos, que estão alipor motivos sérios; motivos que poderão aumentar as vendaspara o representante médico, o chefe dele e a região vendas inteirado chefe do chefe. No final, o representante está mais atônito ain-da, pois o menino não ficou correndo. Aliás, ele é uma das poucaspessoas que não adormeceram durante o seminário. Depois damedíocre sessão de perguntas e respostas, quando a reunião éencerrada, esse pequeno pedaço de gente vai até o esperto químicoda matriz que fez a apresentação e lhe pergunta algo. Uma pergun-ta que faz o químico demorar um momento para responder. Orepresentante está surpreso e fascinado. Ele quer um filho assim?Uma aberração? Um gênio? Ele dá ao menino uma pasta de plás-tico azul com o logo da companhia e vê o menino sair com os pais.

É fácil pensar que, por morar numa casa-hospital, o meni-no teria a constituição de um touro, mas esse benefício pareceter passado ao largo. E, ironicamente, ele nunca fortaleceu seusistema imunológico. Seus pais com frequência o enchem de an-tibióticos para combater uma tosse recorrente e as bactérias

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anaeróbias que infestam seu sistema digestivo, que parecem terse afeiçoado a esse garoto fraco que mora ao lado da doença. Omenino sabe que os portadores de males em sua garganta sãocomo as baratas, desenvolvendo uma rápida resistência a todasas drogas consumidas pela barriga da criança. Ele sucumbe àamidalite e sugere aos pais que lhe deem o novo antibiótico deamplo espectro, já que ainda não criou resistência a ele. O meni-no se lembra de estar doente sempre que alguma coisa impor-tante está para acontecer em sua vida, como seu aniversário. Noúltimo, ele estava de cama com uma febre viral. Todos os convi-dados elogiaram a comida do restaurante e lhe desejaram umfuturo brilhante como médico. O avô do menino deu-lhe umanota de dez — o suficiente para um refrigerante na escola —,dois tios deram cinquenta e sua prima o presenteou com umcolete, em nome da família dela. O Primo, filho de seu tio, nãolhe deu presente. Os adultos beliscaram com força suas boche-chas e riam ao fazê-lo. O garotinho não quer ser médico, igual aPapai e Mamãe? Para ele poder conversar sobre eczemas ao jan-tar com sua mulherzinha, que também será médica? Para elepoder trabalhar pela manhã em um hospital distante e estarperto da pleurisia? Para ele poder, à tarde, dividir o consultóriocom o deprimido filho do deprimido psiquiatra Doutor Z e ou-vir os filhos fedidos da leiteira fedida reclamarem de dor de bar-riga? A leiteira fedida é uma pessoa simpática. Ela tricotou umcachecol de lã cinza para o menino, porque essa é a cor oficial daescola, e as esposas dos filhos dela certamente tricotarão cache-cóis cinza para os filhos do menino quando ele for o médicodeles. Pois todos os meninos acabam fazendo o que os pais fa-zem; se não, por que todo mundo quer ter só filhos homens?

O menino acha intolerável o cheiro do leite. Desde quetinha três anos ele toma seu leite com chocolate, café ou chá. Aleiteira cheira a litros de leite, um cheiro suspeito de leite quen-te. Ele prefere o vômito pálido da menininha ou o cocô amare-lado do irmão dela ao odor do leite, embora aqueles outroscheiros ele só tenha imaginado. A leiteira é grata pelos remédi-os que os médicos lhe arrumam de graça. A família dela, tãogrande com seus filhos, filhas, sobrinhas, sobrinhos e cunha-

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das, não é menos agradecida. Os médicos recebem seu supri-mento diário de leite de búfala da família dela, cuja ordenha émanual. Um recente programa de televisão falava como a mai-oria dos produtores dilui o leite com água e fertilizantes paraenganar os clientes. O leiteiro que entrega leite na casa do Avôfaz isso. Ele nem sequer nega o fato. Quando lhe pedem queadicione menos água, ele diz que então cobrará mais por litro.Mas na casa do menino o leite é puro e sem diluir, um leite ricoem gorduras e proteínas. Uma grossa camada de nata se formasobre o leite depois que Mamãe o ferve no fogão e o deixa esfri-ando. Ela guarda a nata e cinco dias depois tem creme suficien-te para rechear meia dúzia de éclairs. Uma vez ou outra elamima o menino fazendo-lhe éclairs.

Na escola o menino finge que mora numa casa igual à detodo mundo e que desconhece o que sejam coisas nojentas comomenarca e parasitas intestinais. Ele sabe que as meninas come-çam a menstruar aos onze ou doze anos e os meninos já terãoconhecimento disso. Ele vai fingir que nada sabe por enquanto.O Primo, que é mais velho do que ele, já é um adolescente e semdúvida sabe dessa e muitas outras coisas. O menino pressenteque o Primo é rebelde e indisciplinado, embora os próprios paisdo Primo não deem mostras de perceber. O Primo conversa des-cuidadamente com o menino, porque acha que o garoto é pe-queno demais para compreender ou se importar com tais coisas.

O Primo mora com os pais na casa do Avô e dorme na camaentre eles, muito embora já seja um adolescente. O garotinhodorme com os pais também, mas logo deixará de fazê-lo: aqualquer momento os médicos se mudarão para uma casa deverdade. Na casa do Avô só tem um quarto no térreo, e o Avô éobrigado a dormir na sala de estar. Eles se revezam para usar oúnico banheiro, que fica no fim do comprido corredor que levada sala para o quarto, passando pela cozinha e pela varanda. OPrimo dormirá entre os pais para sempre, porque seu pai e suamãe, os Seis Dedos, nunca pouparam dinheiro algum. Eles es-tão esperando o velho bater as botas para que possam ficar coma casa.

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O velho goza de uma saúde perfeita. Tem a mente jovem ealerta. Sua vida é mais ativa que a dos netos, filhos, filhas ou côn-juges da sua prole. Ele pretende viver por muito tempo ainda.Continua se sentindo forte como um cavalo. Ele nunca esqueceonde deixou os óculos de leitura, jamais tropeça nas palavras enão troca os nomes dos filhos e netos de seus antigos colegasburocratas, sendo que eles próprios se confundem. Afora umaligeira surdez, que ele usa a seu favor, não tem do que reclamar.Vai de ônibus visitar os ex-colegas. Trabalhou na mesma reparti-ção pública por mais de quarenta anos. Agora, ele e todos osoutros estão aposentados. O resto sofre de artrite, espondilite,diabetes, úlcera de estômago, reumatismo, dor nas costas e hiper-tensão. Cabe ao Avô saber das fofocas e repassá-las para os ou-tros. Ele o faz regularmente. Em sua pequena agenda de bolso eleanota sua rotina: segunda-feira para o senhor P, terça-feira para osenhor C, D na quarta-feira, S na quinta, e assim por diante.

Contudo, a família sabe que o Avô morrerá. Eles pensamnisso sempre que o nome dele é mencionado e ficam à espera,porque a casa do Avô é pequena, mas bem localizada e com adocumentação em dia, o que significa que as regras imobiliáriaspendem a favor do proprietário. Compradores e vendedores nãoprecisam depender de uma procuração. Até o menino sabe quenão se pode confiar em ninguém, nem mesmo na família. Fala-seque crianças desaparecidas são, com frequência, sequestradaspor parentes e vendidas como criadas ou mandadas para terraslongínquas. Já que a cidade inteira é desconfiada, como regrageral uma propriedade com escritura própria tem muito maisvantagens que uma que seja arrendada. O governo pode confis-car arbitrariamente um apartamento arrendado, se quiser. Issojá foi feito antes, pois tem havido momentos arbitrários na his-tória desta nação. Ocasiões em que o povo não tinha acesso aostribunais. Mesmo nas melhores épocas, a máquina da lei e daordem, o Judiciário e a polícia, está acima de tudo. Mas a sus-pensão oficial dos direitos fundamentais dos cidadãos e das ins-tituições que garantem tais direitos é outra questão. Em resumo,não se deve confiar muito no governo, assim como não se deveacreditar piamente na família. O velho se gaba de que ninguém

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pode tomar sua propriedade dos descendentes que levam seusobrenome — ele deixa claro que nem todos os seus descenden-tes têm direitos iguais e que quando chegar a hora ele escolheráseus favoritos, do mesmo modo como definiu seus prediletos ejogou seus filhos uns contra os outros até agora.

O andar de cima da casa do Avô está alugado para umagente de pele escura do sul. Ninguém gosta deles, mas todos nonorte sabem que são honestos e pontuais e mais propensos apagar o aluguel no vencimento do que os locais. As leis do inqui-linato são parciais a favor do inquilino. Se este não paga o alu-guel, um processo de despejo pode demorar anos. Basta ver osmédicos: eles moram numa casa alugada desde que se casaram eusam a propriedade comercialmente, mas mesmo assim os Bos-tas de Vaca não conseguem tirá-los dali. Os Bostas de Vacaentraram com vários processos no tribunal para despejar osmédicos, mas o advogado destes garante que o tribunal chegaráaté o ponto de dizer que os médicos não podem ser privados deseu meio de subsistência. Os outros filhos do velho tambémmoram em casa alugada. Seus senhorios também não têm comodespejá-los. Mas eles pagam o aluguel regularmente, assim comoos médicos. Os aluguéis foram estabelecidos antes do pico doaumento no valor e, por isso, todos os senhorios adorariampoder despejar os inquilinos atuais e cobrar somas mais altas.

Assim que o velho morrer, coisa que é inevitável, o imóvelpossibilitará a cada um de seus herdeiros dar início ao processode compra da própria casa. O dinheiro não será suficiente parauma compra à vista, mas dará para investir num esquema deincorporação, que pode ir sendo pago. A herança poderá serusada para dar a entrada em um apartamento em um condomí-nio ao longo das muitas rodovias que levam para a capital. Opagamento inicial também qualificará o comprador a um em-préstimo. A menos que já se tenha algum dinheiro, não é possí-vel ter mais; é por isso que os ricos sempre ficam mais ricos e ospobres permanecem no zero. Com seus salários básicos, comfilhos para alimentar e o preço do litro de leite custando o quecusta, ninguém da prole do velho consegue economizar o sufi-ciente para a entrada.