valor86-2008-ideologia, item de luxo

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    Ideologia, item de luxo?

    Fbio Wanderley Reis

    Nancy Koehn, da Harvard Business School, falando sobre governos quese tornam acionistas de bancos, declara que ideologia um item de luxo emtempos de crise na linha, alis, de muita gente mais, incluindo The

    Economist, que, em matria sob o ttulo de Capitalism at bay, diz na ediodesta semana que o resgate global com dinheiro dos contribuintes

    pragmtico, no ideolgico.

    Dada a identificao perversa entre o interesse pblico e o dosfinancistas privados diante da catstrofe iminente, preciso conceder, comofiz aqui mesmo h algumas semanas, o carter imperioso do socorro pblico.Da no se segue, porm, que seja preciso confundir as coisas quanto aideologia e pragmatismo.

    A declarao de Koehn transforma ideologia numa espcie de adereosem importncia real: se se trata de idias sem serventia em momentos decrise, como pensar em adeso efetiva a elas ou compromisso com elas? J The

    Economistsugere a assimilao de ideologia ao apego firme a uma posiopr-Estado ou anti-Estado, e as contores de que cerca, na matria citada, seureconhecimento da necessidade da interveno estatal redundam em reafirmaros mritos do liberalismo como ideologia. claro, isso aponta para a

    possibilidade do apego igualmente firme a uma posio contrria, que contecom a atuao do Estado, e temos a, naturalmente, o cerne de muitas das maisimportantes disputas polticas dos tempos modernos.

    A experincia recente, especialmente com a derrocada do socialismo, aglobalizao e a nova dinmica econmica, j vem impondo h tempos a umdos lados do enfrentamento envolvido o reconhecimento, de bom ou maugrado, de que sem mercado no h soluo: se se preza o valor democrtico daautonomia dos cidados, no cabe comear por neg-lo na decisiva esferaeconmica. Mas no parece menos difcil o aprendizado, do outro lado, de que

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    tampouco cabe abrir mo de um Estado democraticamente sensvel aointeresse pblico, com suas muitas faces, e disposto ao que no se limite,sob condies de chantagem pragmtica, a fazer abortar as catstrofes.

    Os processos eleitorais que se desenvolvem no momento nos EstadosUnidos e no Brasil permitem apreciar a relevncia de aspectos diversos daquesto da ideologia. A campanha presidencial nos Estados Unidos nosmostra, de mais de uma forma, as distores e os traos negativos que podemmarcar a ideologia como compromisso e engajamento e notvel que issoocorra no pas visto at algum tempo atrs como a terra do pragmatismo e de

    partidos desprovidos de ideologia. Assim, temos pesquisas em que osRepublicanos de McCain surgem apegados religio e a posturas moralistas,

    aos temas da fora militar e segurana e disposio do pas a enfrentar-secom outros e fazer inimigos, enquanto os apoiadores de Obama favorecem adiplomacia e os direitos civis, querem a separao entre poltica e religio evem a afirmao nacional relacionada idia de justia.

    Mas outro aspecto talvez mais revelador. Se vimos McCain apoiar,como Obama, a ao governamental de resgate financeiro, vimo-lo tambm,no ltimo debate, denunciar como estatismo os gastos sociais propostos porObama. E essa postura sem dvida se ajusta a algo que, como salientam A.Alesina e E. Glaeser, singulariza os Estados Unidos e permite h muito falardo excepcionalismo americano: sua desigualdade maior do que a dos paseseuropeus e o fato de nunca se ter desenvolvido l um welfare state dedimenses comparveis s encontradas na Europa. No volumeFighting

    Poverty in the U.S. and Europe, de 2004, os autores mostram as idiasassociadas com isso: 60% dos estadunidenses acreditam que os pobres so

    preguiosos, contra 26% dos europeus com a mesma opinio, enquanto 60%dos europeus vem os pobres como vtimas de armadilhas sociais, contra

    apenas 29% dos americanos, que acreditam majoritariamente viver numasociedade aberta e de grande mobilidade o que estudos comparativosrigorosos mostram ser simplesmente falso h algum tempo, como o relatadoem artigo de 2002 de P. Gottschalk e E. Spolaore (On the Evaluation ofIncome Mobility). Mas Alesina e Glaeser apontam tambm as causas dessasidias na heterogeneidade tnica e racial (entre os prprios estados

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    americanos, h forte correlao negativa entre a proporo de negros e agenerosidade dos mecanismos de welfare) e nas instituies polticas (afalha dos menos favorecidos em conquistar a representao proporcional, aatuao restritiva, tudo somado, da Suprema Corte etc.).

    A idia geral a destacar surge com clareza: se a ideologia como iderioa envolver engajamento rgido pode ser crucialmente importante de modonegativo (e conter assimetrias equvocas quanto a aspectos importantes da luta

    poltica), torna-se tambm crucial que haja a possibilidade do esclarecedorembate de idias que a candidatura de Barack Obama, em particular,representa no caso dos Estados Unidos e que faz dos componentesintelectuais da ideologia tudo menos o adereo irrelevante que Nancy Koehn

    assinala. J no Brasil, temos tido grandes equvocos em torno da adesoingnua a um modelo idealizado de poltica ideolgica, que se dispensa deatentar para as limitaes das condies do confronto poltico-partidrio no

    pas e seu substrato de deficincias sociais. De qualquer modo, vemos agora,no segundo turno das eleies municipais, alm da evidncia renovada dainconsistncia partidria que os jornais apontam insistentemente em vrioscasos, que no cabe seno lamentar a indigncia intelectual e ideolgica talvezmelhor ilustrada pelo exemplo belo-horizontino da demagogia eficiente, e

    provavelmente vitoriosa, de Leonardo Quinto.

    Valor Econmico, 20/10/2008

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