valentim, marco antonio - extramundanidade e sobrenatureza (projeto de pesquisa doutorado)

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Extramundanidade e sobrenatureza: elementos para uma crítica da antropogênese filosófica Marco Antonio Valentim 1 Perdão, senhores animais: perdi o mundo num lapso. Paulo Leminski, Catatau Pretendo aqui expor a ideia de um estudo através do qual se procura uma passagem entre dois registros da discursividade teórica do pensamento ocidental: filosofia e antropologia. Esse estudo tem dois objetivos gerais. O primeiro é o de experimentar a diferença entre os dois discursos, problematizando a suposta ascendência da filosofia sobre a “ciência” antropológica; o segundo, o de favorecer o contrário, isto é, uma possível e decisiva repercussão da antropologia – e, ao menos indiretamente, das vozes que ela comunica – sobre a “consciência” filosófica. A motivação básica do estudo que se propõe consiste em colaborar para uma transformação entre tais discursos, particularmente na medida em que possa implicar o questionamento radical do sentido mesmo da filosofia: de sua posição face à “não-”filosofia, face à possibilidade de um sentido outro. “A filosofia precisa de uma não-filosofia que a compreenda” (Deleuze, 1997, p. 279). Antropogênese A possibilidade humana de ser compreendido por outrem, mais do que a de apenas compreendê-lo, é constantemente barrada por um traço do discurso filosófico que parece predominar em sua conformação, e isso ainda quando a filosofia se esforça por aliená-lo de si. Trata-se do traço pelo qual ela afirma o seu caráter fundamental em relação a outras formas de pensamento e atividade (humanas e, sobretudo, não- humanas). Em testemunho disso, a “ciência primeira” inaugurada por Aristóteles e o “tribunal da razão pura” instaurado por Kant manifestam claramente, apesar do hiato histórico que os separa, reivindicação de fundamentalidade para o discurso filosófico. Aristóteles apresenta a filosofia, a qual “seria indigno do homem [ándra] não buscar”, 1 Vínculo institucional: Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFPR. 1

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Page 1: VALENTIM, Marco Antonio - Extramundanidade e Sobrenatureza (Projeto de Pesquisa Doutorado)

Extramundanidade e sobrenatureza:

elementos para uma crítica da antropogênese filosófica

Marco Antonio Valentim1

Perdão, senhores animais:

perdi o mundo num lapso.

Paulo Leminski, Catatau

Pretendo aqui expor a ideia de um estudo através do qual se procura uma

passagem entre dois registros da discursividade teórica do pensamento ocidental:

filosofia e antropologia. Esse estudo tem dois objetivos gerais. O primeiro é o de

experimentar a diferença entre os dois discursos, problematizando a suposta

ascendência da filosofia sobre a “ciência” antropológica; o segundo, o de favorecer o

contrário, isto é, uma possível e decisiva repercussão da antropologia – e, ao menos

indiretamente, das vozes que ela comunica – sobre a “consciência” filosófica. A

motivação básica do estudo que se propõe consiste em colaborar para uma

transformação entre tais discursos, particularmente na medida em que possa implicar o

questionamento radical do sentido mesmo da filosofia: de sua posição face à

“não-”filosofia, face à possibilidade de um sentido outro. “A filosofia precisa de uma

não-filosofia que a compreenda” (Deleuze, 1997, p. 279).

Antropogênese

A possibilidade humana de ser compreendido por outrem, mais do que a de

apenas compreendê-lo, é constantemente barrada por um traço do discurso filosófico

que parece predominar em sua conformação, e isso ainda quando a filosofia se esforça

por aliená-lo de si. Trata-se do traço pelo qual ela afirma o seu caráter fundamental em

relação a outras formas de pensamento e atividade (humanas e, sobretudo, não-

humanas). Em testemunho disso, a “ciência primeira” inaugurada por Aristóteles e o

“tribunal da razão pura” instaurado por Kant manifestam claramente, apesar do hiato

histórico que os separa, reivindicação de fundamentalidade para o discurso filosófico.

Aristóteles apresenta a filosofia, a qual “seria indigno do homem [ándra] não buscar”,

1 Vínculo institucional: Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFPR.

1

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como “ciência mais digna de comandar as demais”, a “única ciência livre”, a “única que

é em vista de si mesma”: “assim como chamamos livre o homem [ánthropos] que é em

vista de si mesmo [ho hautoû héneka] e não de um outro” (Aristóteles, 1998, I-1, 982b).

“Todos os homens [ánthropoi] desejam por natureza o saber” – é a primeira palavra da

Metafísica. Kant, por sua vez, elege como máxima primeira do entendimento humano

“pensar por si”, a “máxima de uma razão jamais passiva”, isto é, jamais “cativa da

natureza”, a libertar-se da “heteronomia”, do “preconceito” e da “superstição”, em

suma, da “cegueira” enquanto “necessidade de ser guiado por outros” (Kant, 2002, § 40,

Ak. 158-159). “Sapere aude!” – é a exortação kantiana dirigida ao “são entendimento

humano”. Mas o que explica que orientações filosóficas tão diferentes – uma voltada

aos “primeiros princípios e causas” do ente em si, a outra às faculdades e limites do

conhecimento objetivo – exibam essa mesma característica? Há razão profunda para a

semelhança formal entre esses dois discursos da filosofia?

Acredito ser possível mostrar que há um desígnio comum à metafísica e à

“revolução copernicana”, desígnio intimamente relacionado à reivindicação de

fundamentalidade que elas compartilham, a saber: o compromisso de primeira ordem

com a possibilidade da constituição de um sentido propriamente (eminentemente, ou

mesmo, exclusivamente) humano. Assim, o caráter de fundamento reivindicado pela

sophía e pela Aufklärung, duas manifestações igualmente originárias do discurso

filosófico, parece estar associado a uma virtude antropogenética como sua condição e

finalidade: a capacidade de constituir a humanidade do homem como um posto

autorreferencial de eminência, imune a catástrofes (sobre-)naturais.

Em uma de suas formulações mais expressivas, que pode ser encontrada nas

lições de Alexandre Kojève sobre a Fenomenologia do espírito, o “Conceito” de

antropogênese é explicado precisamente nos termos das condições sócio-espirituais para

se atingir o “ideal da autonomia” do homem (o “ser humano” como “ser-para-si”).

Trata-se da criação de “um mundo real objetivo, um mundo não-natural, um mundo

cultural, histórico, humano” mediante a libertação do homem “da angústia que o ligava

à natureza dada e à sua própria natureza inata de animal”, à sua “primitividade”

(Kojève, 2002, p. 28). A interação dialética entre senhor e escravo, que Kojève

interpreta como “relação social fundamental” (idem, p. 15), mostra que o mundo

humano implica necessariamente “um elemento de dominação e um elemento de

sujeição, existências autônomas e existências dependentes” (idem): homens e animais,

senhores e escravos, civilizados e bárbaros, esclarecidos e supersticiosos. “A sociedade

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só é humana – pelo menos na origem [!] – sob essa condição” (idem), estruturando-se

internamente por meio da incessante atualização da potência antropogenética de

liberação do humano para si mesmo e, para tanto, através da supressão e da submissão

do que se experimenta como alteridade, como não-humanidade. A humanidade enquanto

tal consiste na ação de “transformar um mundo hostil a um projeto humano em um

mundo que esteja de acordo com esse projeto”; “essencialmente humana porque

humanizadora, antropogênica, essa ação”, completa Kojève, “começa pelo ato de impor-

se ao ‘primeiro’ outro com que se depara” (idem, p. 17).

Por mais gerais que sejam, essas indicações mostram que há um vínculo estreito

e talvez mesmo essencial entre fundamentalidade e antropogênese na constituição do

discurso filosófico: a tendência para um pensamento fundamental, próprio do homem,

exprimiria justamente o “elemento de dominação e sujeição” implicado pela formação

do mundo humano.

Ontologia fundamental

Não é por acaso que Aristóteles, tendo formulado o primeiro princípio da

“ciência primeira” (a impossibilidade de admitir-se ao mesmo tempo que algo é e não

é), compara aquele que pretendesse recusá-lo a um vivente supostamente não-humano, a

uma planta (considerada, é claro, como de todo carente de discurso) (cf. Aristóteles,

1998, IV-4, 1006a). A humanidade do homem repousaria sobre a impossibilidade de um

sentido, não-humano ou mesmo humano, que fizesse exceção ao princípio da ciência

primeira. Na Metafísica, essa ciência não é senão a que trata do “ente enquanto ente”,

sendo celebrada pela tradição filosófica sob o título de ontologia. Seria essa ciência em

si mesma antropogenética, algo como um dispositivo privilegiado de humanização do

“mundo hostil”, de sua adequação ao projeto humano de si?

Uma tal concepção de ontologia é proposta por Giorgio Agamben, em O aberto:

o homem e o animal, na forma de um conjunto de “teses” sobre o conceito de

antropogênese. Destaca-se em especial a segunda delas, que encerra uma lapidar

definição. Nesta se reinterpreta, em sentido eminentemente político, a tradição

ontológica ocidental:

2) A ontologia ou filosofia primeira não é uma inócua disciplina acadêmica, mas a operação, em todo sentido fundamental, em que se leva a cabo a antropogênese, o devir humano do vivente. A metafísica está presa desde o princípio nesta estratégia: ela concerne precisamente àquele metá que cumpre e guarda a superação da physis animal em direção da história humana. Essa superação não é um fato que se cumpriu de uma vez e para sempre, mas um evento sempre em curso, que decide a cada vez em cada indivíduo acerca do

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humano e do animal, da natureza e da história, da vida e da morte (Agamben, 2007b, p. 145).

Uma das teses seguintes esclarece o sentido dessa concepção de ontologia: “5) O

conflito político decisivo que governa todo outro conflito é, em nossa cultura, o conflito

entre a animalidade e a humanidade do homem” (idem, p. 146). Agamben formula tais

teses expressamente a partir da interpretação crítica de um dos desenvolvimentos mais

intensos e extremos da “máquina antropológica da filosofia ocidental” (idem): o projeto

da “ontologia fundamental” (Fundamentalontologie), lançado por Martin Heidegger em

Ser e tempo (1927).2

O projeto filosófico heideggeriano3 consiste em reunir em uma só experiência de

pensamento aquelas duas vertentes da antropogênese filosófica, a ontologia aristotélica

e a filosofia transcendental kantiana. Essa reunião é proporcionada pela reformulação da

questão aristotélica “o que é o ente?”, que se transforma na questão acerca do “sentido

do ser em geral”. Trata-se, para Heidegger, de recuperar a orientação ontológica de

Aristóteles na perspectiva crítica aberta por Kant,4 perguntando-se pelo ser dos entes em

vista de sua compreensibilidade, tomada por princípio como prerrogativa exclusiva do

“ente que nós mesmos somos”, ente que é essencialmente “em vista de si mesmo” (um

seiner selbst willen).5 Sendo determinado, em seu próprio ser, pela compreensão do

sentido do ser dos entes em geral, o homem passa a consistir no foco da problemática

ontológica, e isto de um duplo modo: (i) postulando-se a si mesmo como “condição

ôntico-ontológica da possibilidade de todas as ontologias” (idem, § 4, p. 13) e (ii)

2 Na interpretação de Agamben, que, aliás, parte de uma discussão sobre a antropogênese segundo Kojève, a ontologia fundamental é representada principalmente pela preleção de Heidegger sobre os Conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão (Freiburg, 1929-30).3 Pode-se dizer que o projeto ontológico-fundamental se estende, ao menos em sua formulação primeira, ao longo de pelo menos cinco textos principais, além de Ser e tempo: a preleção de 1927 sobre os Problemas fundamentais da fenomenologia, que retoma e prolonga o tratado publicado no mesmo ano especialmente através da discussão da “diferença ontológica”; a preleção de 1928 sobre Princípios fundamentais da lógica a partir de Leibniz, em que se esclarece o sentido da ontologia fundamental como projeto da própria “transcendência” humana; o tratado de 1929, “Da essência do fundamento”, que concentra a preleção anterior e contribui decisivamente para o esclarecimento do conceito existencial de mundo; o livro Kant e o problema da metafísica (1929), em que se interpreta a filosofia transcendental de Kant como empresa de fundamentação da metafísica a partir de uma “antropologia filosófica” a ser reformada e aprofundada pela ontologia fundamental de Ser e tempo; e, por fim, a preleção de 1929-30 sobre os Conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão, que, concentrando-se particularmente na questão da diferença de ser entre o mundo humano e a vida animal, culmina com a indicação de que a história, enquanto “acontecimento fundamental”, é constituída pelo projeto humano do ser dos entes em geral.4 Cf., por exemplo, Heidegger, 1993, § 6, p. 22-27; idem, § 43a, p. 208; e especialmente 2005, § 13a, p. 172-176.5 Cf. Heidegger, 1993, §§ 4, 9 e 18.

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propondo-se como centro ontológico de referência, tanto para si mesmo quanto para

todo outro ente possível.

Como não poderia deixar de acontecer, as consequências de tal mudança de foco

da ontologia são, especialmente para modos não-humanos de ser, drásticas: se o homem

(o “ser-aí”, Dasein) constitui por si só, independentemente de vínculo ou aliança com o

que quer que seja, o “lugar do ser”, o ser dos entes outros se determina prioritariamente

em função de possibilidades humanas de ser si-mesmo, ou ainda, na linguagem da

ontologia existencial, de ser-no-mundo. “A natureza mesma é um ente que vem ao

encontro dentro do mundo” (Heidegger, 1993, § 14, p. 63), isto é, dentro de um contexto

do qual o homem, compreendido como ser-aí ou “existência”, é o centro único de

referência: “Mundo é, em tudo isso, a designação para o ser-aí humano no cerne de sua

essência” (idem, 2004a, p. 154). Todo nexo ontológico – entre o humano e o humano,

entre o humano e não-humano e mesmo entre o não-humano e o não-humano – remete,

portanto, à relação compreensiva que somente o homem mantém com o ser enquanto

tal, como à sua suprema condição:6 a “transcendência”, pela qual o ser-aí humano

ultrapassa todos os outros entes em direção do seu próprio mundo.

É possível perceber como o projeto de uma ontologia fundamental tende a

acirrar maximamente a vocação antropogenética do discurso filosófico. A título de

antropogênese, nele encontramos, em lugar da ideia da superação da animalidade pela

humanidade,7 a peremptória recusa, feita sob a égide da crítica ao “humanismo”, da

possibilidade de pensar a humanidade do homem sob a perspectiva do não-humano. Em

uma famosa passagem da “Carta sobre o humanismo” (1946), na qual Heidegger discute

e reitera o projeto da ontologia fundamental, lemos que, afastando-se das

“interpretações humanistas do homem como animal rationale, como ‘pessoa’, como

essência espiritual-anímico-corpórea”,

[...] o pensamento em Ser e tempo é contra o humanismo. Porém, essa oposição não significa que tal pensar se bata para o lado contrário do humano [auf die Gegenseite des Humanen] e advogue o não-humano [das Inhumane], que ele defenda a inumanidade [Unmenschlichkeit] e degrade a dignidade do homem [des Menschen]. Pensa-se contra o humanismo porque ele não alça suficientemente alto a humanidade do homem [die Humanitas des Menschen]. [...] o homem é “jogado” pelo ser mesmo na verdade do ser, para que, existindo

6 Cf. Heidegger, 1978, § 10, p. 194-5.7 Central na exegese de Kojève, essa ideia é intensamente criticada por Heidegger, que a vincula ao pensamento metafísico, marcado pelo “esquecimento do ser” – pensamento que a ontologia fundamental pretende poder “destruir” e “superar”. Na “Carta sobre o humanismo”, lemos que “a metafísica pensa o homem a partir da animalitas e não pensa na direção de sua humanitas”; porém, sustenta Heidegger, “o que atribuímos ao homem enquanto animalitas [...] se enraíza na essência da existência” (2004b, p. 323-324).

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conforme a isso, a guarde, a fim de que o ente apareça, como ente que é, à luz do ser. [...] O homem é o pastor do ser (Heidegger, 2004b, p. 330).

Desse modo, excluindo a possibilidade de o não-humano tomar decisivamente parte na

essência do homem, a ontologia fundamental permite algo de que tanto o enfoque

crítico-transcendental de Kant quanto a leitura materialista-histórica de Kojève se viam

incapazes, por permanecerem reféns, respectivamente, do prejuízo metafísico da “coisa

em si” e da noção biológica de natureza, a saber: garantir a centralidade ontológica do

homem existente na história enquanto formação de mundo através do esvaziamento e da

abolição do sentido das potências a-históricas e contra-existenciais (natureza,

animalidade, divindade), seja destinando-as à “apropriação” (Ereignis) no ser e ao

concomitante pastoreamento pelo homem ou relegando-as a um radical exílio

ontológico, “fora do ser”,8 sob uma forma essencial do desprezo humano:

[...] este ente, que nós mesmos somos, tem uma relação com o seu ser. Contra isso, todo ente não-humano [alles nichtmenschliche Seiende] não está simplesmente alienado de seu próprio ser, já que também a alienação [Entfremdung] contra o ser é ainda uma relação com ele. O ente não-humano está, à diferença da transferência [Übereignung] e da alienação, retido, envolvido, entorpecido, trancado e vedado [befangen, eingerollt, dumpf, gedrungen und abgedichtet]. Esse ente não se relaciona com o seu ser, nem sequer de maneira indiferente. Nós, pelo contrário, somos de tal modo que nesse são e ser encontra-se: transferido e delegado [übereignet und überantwortet] ao ser de que se trata, enquanto e na medida em que nós somos entes. [...] Essa delegação torna o ser-aí histórico do homem naquele ente que, a cada vez, de um modo ou de outro, precisa responder ao ser e responsabilizar[-se] por ele (idem, 1998, § 28d, p. 161-162).

Não se trata, portanto, de simplesmente negar o ser do não-humano, o ser do

não-ser-aí, no sentido de superá-lo por supressão dialética, mas de relativizar

infinitamente esse “não-”, concedendo ao outro do homem, como sucede

exemplarmente em Ser e tempo, um estatuto ontológico derivado e dependente em

8 A expressão é de Agamben, que, colocando a questão dos limites do “pensamento do ser”, designa com ela a condição do animal, não-humano, liberto da antropogênese: “Deixar ser o animal significará então deixá-lo ser fora do ser. A zona de não-conhecimento – ou de ignoscência [ignorância/inocência] – que está aqui em questão está mais além tanto do conhecer quanto do não conhecer, tanto do desvelar quanto do velar, tanto do ser como do nada. Mas o que é assim deixado fora do ser não é, por isso, negado ou removido, não é, por isso, inexistente. É um existente, um real, que foi mais além da diferença entre ser e ente” (Agamben, 2002, p. 167). Parece-me que a força do pensamento de Agamben como intérprete de Heidegger reside aqui em indicar, contra a perspectiva antropogenética, a “existência” do que jaz “fora do ser”, isto é, além do escopo possível da ontologia fundamental, determinando-a em sua possibilidade como que de fora (ou ainda, desde radicalmente dentro, pois também o homem é um vivente, “fora do ser”). Por outro lado, a limitação provável desse pensamento está em aparentemente assumir a impossibilidade de uma outra ontologia, não-antropogenética, como se a ontologia fundamental fosse a consumação da experiência e do conceito, humanos e não-humanos, do “ser em geral” (o seu contraposto sendo a “ignoscência” do que jaz fora do ser). Com efeito, “deixar ser o animal fora do ser” é uma tarefa indicada por Agamben como possível, de algum modo, a partir da ontologia heideggeriana: “Por isso, a categoria suprema da ontologia de Heidegger se enuncia: deixar ser” (idem, p. 166).

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relação ao da existência enquanto modo humano de ser, o único através de que se

manteria a relação de transferência (Übereignung) com o ser dos entes em geral.

Reconhece-se assim o outro, mas não a sua alteridade: a possibilidade de o “si-mesmo”

ser originariamente afetado e transformado pela relação com outrem, sobretudo no

modo da “alteração ontológica” entre humano e não-humano (Viveiros de Castro, s/d,

“Alteridade e/ou alteração”, 5). Desde a perspectiva ontológico-fundamental, uma tal

possibilidade, muito longe de implicar uma genuína metamorfose de ser, corresponderia

simplesmente à alienação (Entfremdung) ou não-resolução (Unentschlossenheit)

humanas: a “denegação da essência do ser-aí humano-histórico [des menschlich-

geschichtlichen Daseins]”, isto é, a “afirmação de sua não-essência [seines Unwesens]”

(Heidegger, 1998, § 28c, p. 161).9 Sucede assim, sob o regime existencial, a redução

ontológica da não-humanidade à impropriedade humana – redução acompanhada

necessariamente por um aprofundamento da separação abissal entre o humano e o não-

humano que por certo impossibilita qualquer forma de socialidade entre eles.10

Mais concretamente, se Kant afirmava que “o homem é um animal que necessita

de um senhor”, o qual, contudo, não pode ser encontrado em parte nenhuma,11 para

Heidegger, o homem é aquele que jamais poderia ser escravo de um animal, que, como

tal, simplesmente não “ek-siste”.

Extramundanidade

Não faltariam motivos – sobretudo cosmopolíticos – para examinar criticamente

as bases da ontologia fundamental e indicar com suficiência os seus limites enquanto

paradigma filosófico da antropogênese. Todavia, dificilmente se poderia fazê-lo do

9 É oportuno notar que essa dimensão de contágio entre humanidade e não-humanidade, compreendida por Heidegger como âmbito demarcado pela “não-essência” do homem, constitui, para Lévi-Strauss, precisamente o campo de investigação próprio da antropologia, a “zona de indiscernibilidade” entre natureza (vida) e cultura (mundo): “Mas nem sempre a distinção é fácil assim. Frequentemente o estímulo físico-biológico e o estímulo psicossocial despertam reações do mesmo tipo, sendo possível perguntar, como já fazia Locke, se o medo da criança na escuridão explica-se como manifestação de sua natureza animal ou como resultado das histórias contadas pela ama. Mais ainda, na maioria dos casos, as causas não são realmente distintas e a resposta do sujeito constitui verdadeira integração das fontes biológicas e das fontes sociais de seu comportamento. Assim, é o que se verifica na atitude da mãe com relação ao filho ou nas emoções complexas do espectador de uma parada militar. É que a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem” (Lévi-Strauss, 1976, p. 39-40).10 Cf. Heidegger, 2004b, p. 326; e, especialmente, idem, 2010, § 50, p. 307-310, onde se recusa a possibilidade ontológica da “coexistência” (Mitdasein) com o animal, tomado como paradigma da não-humanidade, com base na tese de que ele é essencialmente privado de mundo, ou seja, carente da condição pela qual somente se tornaria possível a “transponibilidade” (Versetzbarkeit) entre existência humana e vida animal, o seu “ser-com” (Mitsein).11 Cf. Kant, 1986, p. 15-16.

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ponto de vista filosófico-ontológico estrito, devido justamente à dominância, nele, do

viés antropogenético e da consequente limitação do seu conceito geral de humanidade.

Com efeito, é de questionar se a filosofia, representada pela tradição ontológica que

incluem Aristóteles, Kant e Heidegger, já conseguiu pensar os seus “conceitos

fundamentais” em um registro contrário à antropogênese. Mais ainda, é de duvidar que,

tendo eventualmente tentado, se haja logrado fazê-lo sem que isso acarretasse, além da

abdicação de sua fundamentalidade, a implosão do próprio discurso ontológico

(paradigmaticamente, como Górgias contra Parmênides). Em particular, parece faltar à

ontologia filosófica, seja antiga ou moderna, substancial ou existencial, um conceito de

sentido capaz de operar para além ou aquém da perspectiva antropogenética

autocentrada. Trata-se, podemos supor, da ideia de um sentido extramundano, que

permitiria pensar a possibilidade ontológica de um contexto eminentemente relacional,

habitado por humanos e não-humanos, cujo centro (se é que deve haver algum) não

poderia consistir pura e simplesmente na linguagem humana enquanto “casa do ser”.12

Com a noção de extramundanidade (na língua de Sein und Zeit, algo como

Außerweltlichkeit), supõe-se aqui problematicamente, contra Heidegger, que os limites

do que “é” (em especial, os do homem) não equivalem aos do mundo humano (Welt).

Longe de significar o pura e simplesmente inefável, o extramundano é um nome

possível para o que não tem lugar na ontologia fundamental de Ser e tempo: um modo

de ser que não seja determinado a priori, constitutivamente, em função do projeto

humano de ser, o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein).

O termo é proposto por Michel Haar, em uma luminosa, não menos enigmática,

passagem de Heidegger e a essência do homem:

O lançamento, de originalmente extra-mundano [extra-mundain], se torna o fato, puramente intra-mundano, de devotar-se somente à inautenticidade das ocupações e em geral ao Se [On]. O movimento mesmo do Wurf [lançamento] é identificado com o ‘turbilhão’ (Wirbel) da inautenticidade (1990, p. 75).

Nesse trecho, Haar comenta, de um ponto de vista crítico, o que considera uma

parcialidade da ontologia existencial: a recusa em conceder à facticidade da existência,

ou seja, ao caráter pelo qual ela se vincula a outrem não-“humano” (não-existente), o

estatuto de origem ontológica do mundo, que, pelo contrário, se supõe projetado a partir

de um livre poder-ser para possibilidades, bem como a tendência, intimamente

associada àquela recusa, a interpretar o caráter fático do existir unilateralmente a partir

12 “Porém, o homem não é apenas um ser-vivo [Lebewesen], que, junto a outras faculdades, possui também a linguagem. Muito antes, a linguagem é a casa do ser, na qual, morando, o homem eksiste [eksistiert] na medida em que, guardando a verdade do ser, pertence a ela” (Heidegger, 2004b, p. 334).

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do projeto existencial, como condição da decadência do existente em seu próprio mundo

(a impropriedade ou inautenticidade). Nisso, “extra-mundano” designa aquilo que se

mantém incompreensível sob o horizonte do mundo enquanto campo existencial de

sentido – embora, é preciso acrescentar, possa efetivamente fazer todo sentido sob outro

horizonte, não-mundano.

Para o esclarecimento dessa noção, convém insistir especialmente na

necessidade de não confundir-se extramundanidade com o estado de “desmundanizado”

(entweltlichtet) que afeta o ente intramundano (innerweltlich) quando comparece como

correlato de um comportamento derivado e decadente do ser-no-mundo (cf. Heidegger,

1993, § 16). Não há nada mais intramundano que o desmundanizado, ao passo que o

extramundano se contrapõe ao mundano (weltlich, welthaft) como limite externo do

mundo, ou mesmo, como algo essencialmente relativo a um outro “mundo” possível (e

possível segundo sua própria, outra, determinação de possibilidade). Ademais, poder-se-

ia ser tentado a aproximar o termo àqueles com que, nos Conceitos fundamentais da

metafísica (cf. 2010, § 42), Heidegger designa a coisa inanimada e o animal:

respectivamente, “sem mundo” (weltlos) e “pobre de mundo” (weltarm). Todavia, na

medida em que, no mesmo contexto metafísico-fundamental, esses predicados são

compreendidos como privações, impõe-se igual ressalva: eles nomeiam modos de ser

determinados a priori em função do ser-próprio do homem, “formador de mundo”

(weltbildend) (cf. idem, § 76).

Finalmente, contra a aparência de inefabilidade da noção, pode-se dizer que o

extramundano coincide com o “mundo”, só que experimentado de modo

originariamente impróprio: invertendo-se a conceituação heideggeriana, o mundo “em

vista de” (um-willen) outrem.

Cosmopolítica

A tarefa de pensar a possibilidade ontológica de um “mundo por outrem”

(Viveiros de Castro, s/d, “Existe, logo pensa”, 11) é assumida de forma expressa por

Eduardo Viveiros de Castro, nos termos do projeto de uma “teoria antropológica da

imaginação conceitual, sensível à criatividade e à reflexividade inerentes à vida de todo

coletivo, humano e não-humano” (idem, 2009, p. 7). Fruto de uma experiência de

pensamento que começa por reconhecer ao discurso do nativo a posse do “sentido de

seu próprio sentido” (idem, 2002b, p. 115), essa teoria pretende, de um lado, permitir

uma “descrição das condições de autodeterminação ontológica dos coletivos estudados”

9

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(idem, 2009, p. 7) e, de outro, promover o efeito reverso das suas ontologias sobre a

metafísica ocidental, ensejando assim uma transformação radical dos conceitos

ontológicos desta última e, em especial, a invenção de “outro modo de criação de

conceitos que o modo filosófico” (idem, p. 20). A aplicação da ideia de ontologia ao

pensamento não-ocidental dos povos da América indígena é justificada pelo propósito

de “tomar a contrapelo uma manobra frequente contra o pensamento indígena”, qual

seja, a de enquadrá-lo em uma ontologia, a “nossa”, suposta como universalmente

válida, por meio de sua redução a práticas de sentido que somente ela tornaria possíveis

(crença, representação, conhecimento, visão de mundo etc.) (cf. Viveiros de Castro, s/d,

“A imagem do vínculo”, 11). Por conseguinte, atribuir a esse pensamento outro a

condição de ontologia significa, antes de mais nada, reconhecer a possibilidade de um

“outro sentido” (idem), isto é, de um pensamento irredutível e talvez incomensurável

com o “nosso”: a possibilidade de uma ontologia não-antropogenética.

Tendo-se em mente o conceito da antropogênese, tal ontologia deve poder exibir

pelo menos dois traços, bastante gerais mas não menos decisivos: a afirmação do

descentramento radical do humano e a recusa prévia de fundamentalidade perante outras

formas de pensamento. De fato, ambos parecem achar-se indissoluvelmente reunidos na

ideia do “perspectivismo cosmológico”, na qual se exprime, segundo etnografias

dedicadas ao seu estudo,13 o pensamento ameríndio: “the conception, common to many

peoples of the continent, according to which the world is inhabited by different sorts of

subjects or persons, human and non-human, which apprehend reality from distinct

points of view” (Viveiros de Castro, 2012a, p. 45).

“Nesse outro mundo que foi descoberto em nosso século”,14 a experiência que

cada sujeito humano/não-humano faz d“o” mundo consiste em uma passagem contínua

entre modos de apresentação, humanos e não-humanos, do próprio mundo enquanto

contexto de diferença e relação entre perspectivas ou pontos de vista. De acordo com

isso, sem consistir na propriedade de uma espécie nem no modo de ser de um ente, “a

‘humanidade’ é o nome para a forma geral tomada pelo sujeito” – sujeito, humano e

não-humano, que é “criado” por uma perspectiva implicada em outras perspectivas, que

“ativam” outros sujeitos, não-humanos e humanos (cf. Viveiros de Castro, 2012a, p. 99-

100). Por conseguinte, se o mundo é habitado por humanos e não-humanos como

sujeitos de pontos de vista, se esses sujeitos veem-se a si mesmos como humanos e aos

13 Para um recenseamento de algumas dessas etnografias, cf. Viveiros de Castro, 2012, p. 49-53.14 A expressão é de Montaigne (cf. 2010, p. 141).

10

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outros como não-humanos, se cada qual é humano e não-humano ao mesmo tempo,

segundo diferentes perspectivas, se, desse modo, a humanidade é algo compartilhado e

disputado desde logo por todos os sujeitos, assim como a não-humanidade,15 é possível,

senão mesmo necessário, que a orientação antropogenética, o projeto humano de si, ou

simplesmente não faça sentido em um tal contexto ontológico, ou o faça nele de modo

incomensuravelmente diverso.

O mesmo se pode dizer da “questão do sentido do ser em geral” ou da pergunta

pela “condição de possibilidade de todas as ontologias”: colocá-las equivaleria a negar a

diferença entre as perspectivas, reduzi-las todas a uma única, que já não seria mais um

ponto de vista. Tratando-se de “diferentes perspectivas ontológicas” (Viveiros de Castro,

2012a, p. 77), não caberia pretender um conceito fundamental e unitário de ser que as

múltiplas perspectivas viriam apenas modalizar, sem nisso mesmo neutralizá-las

enquanto perspectivas virtualmente ontológicas. Por isso, embora afirme que “o

perspectivismo amazônico poderia ser descrito como uma ontologia relacional”, em

que, numa inversão da tábua aristotélica, a categoria primeira seria a de relação, e não a

de substância, Viveiros de Castro adverte que, nessa “ontologia”, a relação não é um

modo de ser (idem, s/d, “A imagem do vínculo”, 9), e sim “o ‘ser’ é relação” – o que,

acrescenta, consistiria em “indicar o contrário de uma Ontologia” (idem, 11).

Explica-se ainda que, no perspectivismo cosmológico, a “relação primeira”, da

qual o próprio ser constituiria como que uma modalidade, consiste “[n]o nexo de

alteridade, [n]a diferença ou [n]o ponto de vista implicado em Outrem” (idem, 9), de

modo que “a noção de ontologia, portanto, não é empregada aqui para sugerir que o

pensamento indígena exprime mais uma metafísica do Ser, mas sim para sublinhar que

esse pensamento é inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior” (idem, “A

imagem do vínculo”, 11). É como dizer que a “diferença ontológica” não corresponde,

no pensamento ameríndio, à distinção entre ser e ente, desdobrada “explicitamente” no

âmbito de uma mesma e única a “compreensão de ser” (propriamente humana), mas

antes à diferença entre ontologias enquanto pontos de vista essencialmente sujeitos à

alteração do seu sentido, por meio da relação que mantêm entre si, fora do ser

compreendido existencialmente.16 Assim, o que permite caracterizar uma perspectiva

como ontológica, no contexto indígena, seria menos a articulação entre os seus

15 De forma por demais abstrata, tento resumir nessas linhas o que é originalmente objeto de uma densa exposição (cf. Viveiros de Castro, 2012).16 Como exposição do conceito de diferença que serve de base a essa interpretação da ontologia perspectivística ameríndia (“diferença intensiva pura”, ou “multiplicidade”), conceito ao qual aludo aqui apenas exteriormente, cf. sobretudo Viveiros de Castro, 2009, p. 79-86.

11

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conteúdos em vista da unidade do ser que o seu poder de interação com outras

perspectivas, o de “fazer proliferar a multiplicidade” (Viveiros de Castro, 2009, p. 9):17

em suma, a sua virtude cosmopolítica, no sentido de participar de uma “zona de

intercâmbio maximamente intenso com a alteridade – nos planos mítico, xamânico,

onírico, metamórfico de articulação entre humanos e não-humanos” (idem, 2011a, p.

356).

Império do Uno

Evidentemente, a noção de cosmopolítica como campo de alteração entre

perspectivas é de todo avessa, na verdade simetricamente oposta, à noção filosófica

introduzida por Kant no célebre opúsculo sobre a Ideia de uma história universal de um

ponto de vista cosmopolita [weltbürgerlich], onde o termo designa o “ponto de vista”

em que se considera

o plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política [Staatsverfassung] perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições (Kant, 1986, p. 20).

Trata-se, nesse caso, da própria idéia de Estado enquanto ideal da formação (Bildung)

humana. Tal como enunciado na passagem, e em testemunho do seu caráter

antropogenético, o ponto de vista cosmopolita toma claramente por fundamento a tese

com a qual se inaugura a antropologia filosófica: “O objeto mais importante no mundo,

a que o homem pode aplicar todos os progressos na cultura, é o homem, pois ele é o seu

próprio fim último” (Kant, Antropologia de um ponto de vista pragmático, Prefácio,

apud Heidegger, 2004a, p. 153-154). Em “Da essência do fundamento”, essa tese de

Kant, que afirma o homem como único habitante do mundo propriamente dito, é

explicitamente retomada por Heidegger para a fundamentação e explicação do conceito

ontológico-existencial de mundo (cf. 2004a, p. 142-155). Consistindo na herança

kantiana, não surpreende que, ao ser transportado para o cerne da ontologia

fundamental, o conceito kantiano de mundo possa trazer consigo nada menos que o

ideal político da Aufklärung – o Estado “cosmopolita” –, convertido em condição

existencial de possibilidade da história enquanto formação do mundo humano. Em uma

das seções finais da supracitada preleção de 1934, publicada sob o título Lógica. A

17 Viveiros de Castro, 2009, p. 9. Para a explicação do conceito filosófico-antropológico de multiplicidade, oriundo da obra de Deleuze e Guattari (O Anti-Édipo e Mil platôs), cf. especialmente idem, p. 77-92.

12

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pergunta pela essência da verdade, Heidegger extrai da essência do homem

compreendida como existência e “cuidado” a necessidade também essencial do Estado

como estrutura ontológico-existencial:

O cuidado [Sorge] é como tal cuidado da liberdade do ser-si-mesmo histórico [des geschichtlichen Selbstseins]. [...] Uma vez que o ser do ser-aí histórico do homem se funda na temporalidade, isto é, no cuidado, o Estado é essencialmente necessário [wesensnotwendig] – o Estado não como uma abstração [Abstraktum] nem deduzido de um direito inventado e referido a uma natureza humana atemporal, mas o Estado como a lei essencial do ser histórico, por força de cuja ordenância, somente, o povo assegura para si duração histórica, isto é, a preservação de sua missão e a luta por sua tarefa. O Estado é o ser histórico do povo (1998, § 28d-e, p. 164-65).

Por vertiginosa contraposição, se o perspectivismo ameríndio se apresenta como

pensamento da impossibilidade da ontologia antropogenética, pode-se dizer que,

positivamente, se demonstra como a ontologia do que Pierre Clastres chamou

“sociedade contra o Estado”. Interpretando o pensamento dos Guarani, ele a descreve

em termos da “insurreição ativa contra o Império do Uno” (Clastres, 1979, p. 168),

evidente de maneira exemplar mediante uma “bizarra operação do princípio de

identidade” (idem) capaz de “fazer estremecer até à vertigem a mais longínqua aurora

do pensamento ocidental” (idem, p. 167):

Talvez agora estejamos a compreender melhor. A terra imperfeita onde “as coisas na sua totalidade são uma” é o reino do incompleto e o espaço do finito é o campo de aplicação rigorosa do princípio da identidade. Porque dizer que A = A, que isto é isto e que um homem é um homem, é declarar ao mesmo tempo que A não é não-A, que o isto não é o aquilo, e que os homens não são deuses. Nomear a unidade nas coisas, nomear as coisas segundo a sua unidade, é também consignar-lhes o limite, o finito, o incompleto. É descobrir tragicamente que esse poder de designar o mundo e de lhe determinar os seres – isto é isto e não outra coisa, os Guarani são homens e não outra coisa – não é mais do que o escárnio do verdadeiro poder, do poder secreto que pode silenciosamente enunciar que isto é isto e ao mesmo tempo aquilo, que os Guarani são homens e ao mesmo tempo deuses. […] Um habitante da Terra sem Mal não pode ser qualificado univocamente: ele é um homem, evidentemente, mas também outro além do homem, um deus. O Mal é o Uno. O Bem não é o múltiplo, é o dois, ao mesmo tempo o uno e o seu outro, o dois que designa veridicamente os seres completos. Ywy mara-ey, destino dos Últimos Homens, não abriga mais homens, não abriga mais deuses: apenas seres iguais, deuses-homens, homens-deuses, de tal modo que nenhum de entre eles se diz segundo o Uno (idem, p. 169-170).

Com efeito, a ideia de que “dizer as coisas segundo a sua unidade é consigná-las à

incompletude” faz contraponto direto à tese ontológica fundamental com que se abre o

livro IV da Metafísica: “Mas o ente se diz de múltiplos modos, embora segundo [o] um

e certa natureza única [pròs hén kaì mían tinà physin]” (Aristóteles, 1998, 1003a).

13

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Atesta-se com essa contraposição algo decisivo: assumido por Aristóteles como

primeiro fundamento da discursividade humana, o princípio da antropogenêse

ontológica (o “princípio da identidade”) adquiriria, na ontologia dos Guarani, antes que

o pretenso mutismo das plantas,18 um sentido radicalmente outro: “O Uno: fixação da

morte. A morte: destino do que é uno” (Clastres, 1979, p. 169). Trata-se do pensamento

do “não-Uno” (idem), isto é, da relação entre os múltiplos modos de ser precisamente

enquanto resistem à sua subsunção analógica à unidade do sentido próprio (apropriado e

apropriável por um discurso exclusivamente humano), permanecendo, com isso,

refratário à classificação dos modos de ser em uma hierarquia categorial: pois “O Mal é

o Uno”, e a sua linguagem, que o pensamento antropogenético toma como constitutiva e

normativa de todo fazer sentido, “enganadora” (idem).

Sobrenatureza

Face à diferença do pensamento do não-Uno, ao que o torna outro e irredutível à

tradição ontológico-política ocidental – não no sentido de estar privado de algo como o

“princípio da identidade”, mas sim no sentido de ter dado à possibilidade desse

princípio e de sua ontologia um sentido verdadeiramente oposto –, não só se pode como

talvez se deva perguntar, sobretudo para tentar experimentar os limites da antropogênese

filosófica: qual é o seu conceito de ser? Ou melhor, revertendo-se o teor ainda

ocidentalizante da pergunta: qual é o estatuto virtual do que nós mesmos

compreendemos como ser nesse “outro mundo” que o “nosso século” ainda está por

deixar de encobrir?19

18 É oportuno aqui referir o perspicaz comentário de Christiane Bailey, presente em um estudo justamente intitulado “A vida vegetativa dos animais: a destruição heideggeriana da animalidade como redução biológica”: “O argumento dos Conceitos fundamentais da metafísica não é inteligível senão se consideramos que, para Heidegger, a vida animal não é essencialmente distinta da vida vegetal: a ‘vida’, dirá Heidegger em 1929-30, ‘isto é, a maneira de ser do animal e da planta’ (281)” (Bailey, 2007, p. 109); “É unicamente porque Heidegger pensa os comportamentos animais a partir do modelo dos movimentos tropísticos dos vegetais que ele pode deixar ao silêncio o problema da relação dos animais com o tempo, pois que por definição os tropismos são indiferentes à situação, isto é, ao que vem antes da excitação e ao que virá depois. Isso que os caracteriza é a sua indiferença ao tempo. Um ente puramente tropístico ou táxico – ainda poderíamos dizer: puramente instintivo – não pode aprender nem antecipar absolutamente nada: ele é rigorosamente o representante de sua espécie e não tem história individual” (idem, p. 111). Esse comentário indica a reiteração, por parte de Heidegger, da “decisão do sentido” aristotélica. Nos dois casos, o vegetal é tomado como exemplo ou protótipo da inaptidão para o sentido e o discurso: segundo Aristóteles, seria como uma planta aquele que não observasse discursivamente o princípio da ciência primeira; para Heidegger, sendo “privado de mundo, isto é, de todo acesso ao ‘enquanto que’” (cf. idem, p. 113), o animal é essencialmente mais próximo da planta e mesmo da “pedra sem vida” do que do “homem que fala” (cf. Heidegger apud Bailey, 2007, p. 82).19 Mundo cujos habitantes têm, segundo a etnografia de Montaigne, “uma tal maneira [radicalmente contra-existencial] de se expressar na sua linguagem que chamam os homens de ‘metades’ uns dos outros”: “[...] tinham visto que havia entre nós homens repletos e abarrotados de toda espécie de comodidades, e que suas metades eram mendigos às suas portas, descarnados de fome e pobreza; e

14

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Encontra-se no pensamento antropológico contemporâneo, particularmente na

obra de Viveiros de Castro, o princípio de uma resposta a tal questão (que, por sinal, ela

mesma projeta20):

Isso, como se sabe, é o que os etnólogos da Amazônia chamam de “perspectivismo”: a ideia de que todos os habitantes do cosmos são gente em seu próprio departamento, ocupantes potenciais da posição dêitica de “primeira pessoa” ou “sujeito” do discurso cosmológico. Nada mais distante de um mundo edênico, diga-se de passagem: as relações interespécies são marcadas por uma disputa perpétua em torno dessa posição pronominal de sujeito, que não pode ser ocupado simultaneamente por duas espécies distintas; por isso, ela é comumente esquematizada em termos da polaridade predador/presa. A “agência”, no sentido de agency ou autodeterminação, é, acima de tudo, essa capacidade de predação, a “intencionalidade predatória”, como escrevem alguns etnógrafos. A vida é roubo, e o ser é devoração (Viveiros de Castro, 2011a, p. 355; grifo meu).

Sem poder interpretá-la mais a fundo no presente (ecoam aqui as vozes, além

principalmente do próprio pensamento nativo e de seus intérpretes, de Nietzsche,

Benveniste, Clastres, Deleuze, Whitehead, Proudhon, Oswald de Andrade etc.) gostaria

de destacar nessa resposta o elemento, de raiz etnográfica, que parece central no

conceito cosmopolítico de ser (ser como “devoração”), por determinar implicitamente

as noções de sujeito como “posição pronominal” e agência como “predação

[ontológica]”: a ideia de sobrenatureza, o “ponto de vista do inimigo” (cf. idem, 1992).

Haurida do pensamento ameríndio, essa ideia é explicada, em conjunção

essencial com as ideias de natureza e cultura, nos seguintes termos:

Following the analogy with the pronominal set (Benveniste 1966a, b) we can see that between the reflexive “I” of culture (the generator of the concept of soul or spirit) and the impersonal “it” of nature (marking the relation with bodily alterity), there is a position missing, the “you,” the second person, or the other taken as other subject, whose point of view is the latent echo of that of the “I.” I believe that this analogy can aid in determining the supernatural context. The typical “supernatural” situation in an Amerindian world is the meeting in the forest between a human—always on his/her own— and a being which is at first seen merely as an animal or a person, then reveals itself as a spirit or a dead person and speaks to the human. These encounters can be lethal for the interlocutor who, overpowered by the non-human subjectivity, passes over to its side, transforming him/herself into a being of the same species as the speaker: dead, spirit or animal. He/she who responds to a “you” spoken by a non-human accepts the condition of being its “second person,” and when assuming in his/her turn the position of “I” does so already as a non-human. The canonical form of these supernatural encounters, then, consists in suddenly finding out that the other is “human,” that is, that it is the human, which automatically dehumanises and alienates the interlocutor and transforms him/her into an prey object, that is, an animal. As a context wherein a human subject is captured by

achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas” (Montaigne, 2010, p. 156-157).20

Cf. especialmente Viveiros de Castro, 2011c, p. 15.

15

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another cosmologically dominant point of view, wherein he/she is the “you” of a non-human perspective, supernature is the form of the other as subject, implying an objectification of the human I as a “you” for this other (Viveiros de Castro, 2002, p. 149).

Está em jogo, na ideia de sobrenatureza, precisamente o caráter pelo qual se constituem

as “relações de sujeitos a sujeitos” (idem, p. 77), isto é, a possibilidade ontológica, para

o sujeito de um ponto de vista, de passar para o “outro lado”, transitando entre a cultura

(humanidade enquanto “forma na qual cada sujeito experimenta a sua natureza”; idem,

p. 100) e a natureza (não-humanidade enquanto “forma do outro como corpo, isto é,

como o objeto para um sujeito”; idem, p. 114), compreendidas não como “províncias

ontológicas”, mas como “perspectivas intercambiáveis e contextos posicional-

relacionais” (idem, p. 47). O “encontro sobrenatural” explicita a alteração como

“relação primeira”, em que as posições pronominais do “eu” (cultura), do “ele”

(natureza) e do “tu” (sobrenatureza) atuam como operadores ontológicos de

subjetivação e dessubjetivação. É, portanto, o “ponto de vista do inimigo” que, pondo o

sujeito humano como “o ‘tu’ de uma perspectiva não-humana”, ativa o perspectivismo

cosmológico.

Dessa maneira, a ontologia do pensamento ameríndio demonstra o seu traço

intrinsecamente cosmopolítico, radicalmente não-fundamental: se, no contexto

indígena, “o ser é devoração”, é porque compreender ser significa aí estar situado, antes

de mais nada, em relação a outro, sobretudo no sentido de ter sido posicionado, em sua

“própria” situação cósmica, por outrem. É, mais precisamente, porque o “sentido de ser

dos entes em geral” se decide no encontro sobrenatural entre humanos e não-humanos –

e não na relação “ek-stática”, dificilmente extática, entre uma compreensão que se quer

exclusivamente humana e o ser enquanto tal. É, enfim, porque o conceito mesmo de ser

consiste em um hábito social partilhado por todos os agentes do cosmos enquanto

contexto supra-ontológico, mais amplo e complexo que o mundo.

Como o arroubo à propriedade, a sobrenatureza – o ser como devoração, o ser

como devorável – opõe-se assim à apropriação no ser, isto é, à compreensibilidade a

priori do ente em geral.

Ser-aí mítico

Em vista de discernir, junto com a possibilidade de uma ontologia não-

antropogenética, também as condições de sua impossibilidade para a antropogênese

16

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ontológica, é preciso igualmente perguntar pelo eventual (não-)lugar da ideia de

sobrenatureza no paradigma ontológico projetado por Heidegger.

No Apêndice II de Kant e o problema da metafísica, publicado no volume 3 da

Gesamtausgabe, encontramos uma resenha crítica feita por Heidegger sobre a segunda

parte (“O pensar mítico”) do livro Filosofia das formas simbólicas, de Ernst Cassirer. A

discussão gera, para Heidegger, a oportunidade de interpretar, por via indireta, um

conteúdo do assim chamado pensamento mítico: o mana, referido por Cassirer como

“representação-mana” (Mana-Vorstellung). Heidegger esboça, em linhas gerais, uma

“interpretação do ser-aí mítico [mythischen Daseins] em termos de uma caracterização

central da constituição de ser desse ente” (1991, p. 266). O seu objetivo é situá-lo no

quadro da ontologia de Ser e tempo, o que se faz notadamente por recurso à facticidade

da existência:

No “estado-de-lançado” reside um estar-entregue do ser-aí ao mundo, de modo que um tal ser-no-mundo é oprimido [überwältigt] por aquilo a que se entrega. […] Em tal estar-confiado ao sobrepujante [Übermächtige], o ser-aí é tomado [benommen] por ele e só é capaz de experimentar-se como pertencente e unido por parentesco [verwandt] a esse real mesmo. No estado-de-lançado, portanto, todo ente descoberto, de qualquer modo que seja, adquire o caráter de ser do sobrepujante (mana) (idem, p. 267).

Suposto que a noção do “sobrepujante” (mana/Übermacht) possa ter algum lastro

etnográfico, ou seja, proveniência a partir da palavra do “ser-aí mítico”, caberia ligá-la à

ideia de sobrenatureza, com base no fato de que se trata, em ambos os casos, de uma

potência contra-existencial que se impõe como dominante em relação a um possível

existir, isto é, a um poder ser si mesmo. Qual seria o lugar do sobrenatural na

constituição ontológica do ser-aí? A seguinte tese, genuinamente ontológico-

fundamental (talvez a principal afirmada por Heidegger no contexto de seu comentário

crítico a Cassirer), permite responder à pergunta: “Na representação-mana não se

manifesta [sich bekundet] nada outro que [nicht anderes als] a compreensão de ser

pertencente a cada ser-aí em geral” (idem). A sobrenatureza tem, pois, fundamento na

ontologia do ser-aí: para Heidegger, ela se mostra precisamente como uma manifestação

(Bekundung) da compreensão de ser.

Não obstante, aí onde poderia se dar o reconhecimento da possibilidade

ontológica de um “outro sentido”, ocorre justamente o contrário.

Em primeiro lugar, Heidegger contesta a originariedade do mana enquanto

fenômeno de ser: “comportamentos do ser-aí mítico sempre são apenas modos

conforme os quais a transcendência do ser-aí para o seu mundo é revelada, mas nunca

17

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produzida por primeiro. A ‘confrontação’ [entre mundo e eu] funda-se na transcendência

do ser-aí” (1991, p. 268). O confronto com a sobrenatureza está fundado na relação de

ser que o ser-aí humano mantém consigo mesmo. Isso parece querer dizer que a

experiência do mana só adquire estatuto ontológico na medida em que serve à

autoconstituição do ser-aí, consistindo sobretudo em um modo, encoberto para ele

mesmo, de “ultrapassar a natureza”21 – ao invés de um modo de encontro com o não-

humano elevado à condição de sujeito de um ponto de vista, “Outrem” (Viveiros de

Castro), potencialmente dominante sobre o “ente que nós mesmos somos”.

É nesse sentido, aliás, que Heidegger reconhece à obra de Cassirer “pleno valor”

(1991, p. 264). Opondo-se às “tentativas naturalistas, totemísticas, animísticas e

sociológicas de explicação” por meio da recusa a compreender o mito por referência a

“determinados círculos objetivos dentro do mundo mítico” e da consequente afirmação

do “pensar mítico” como uma “forma funcional autonôma do espírito” (idem, p. 264), o

autor de Filosofia das formas simbólicas teria dado, segundo Heidegger, um passo

decisivo na direção de uma “interpretação essencial do mito como uma possibilidade do

ser-aí humano” (idem, p. 265), passo que o teria permitido “apreender o mana” em um

sentido radicalmente contrário ao “'animismo' […] dominante na pesquisa etnológica”

(idem, p. 260), a saber, em um sentido propriamente ontológico:

Na verdade, a análise da representação-mana por Cassirer permanece importante frente às interpretações correntes na medida em que ele não apreende o mana como um ente entre outros entes, mas antes vê nele o “como” de todo real mítico, isto é, o ser desse ente (idem, p. 266).

Heidegger chega mesmo a subscrever a interpretação cassireriana do fenômeno do

sacrifício, ressaltando nela o elemento ontológico-fundamental: aprisionado no

“horizonte da sobrepujança mágica” (idem, p. 261), o ser-aí mítico prepara para si

mesmo com o rito sacrificial, concebido como “ato que se consuma a si mesmo”, “uma

certa desvinculação [Entbindung] do poder exclusivo das forças mágicas” (idem, p.

263); com isso, completa Heidegger, “descobre-se o livre poder do ser-aí [die freie

Macht des Daseins]” (idem). É, pois, como se o “processo mítico”, que “se consuma no

ser-aí mesmo sem reflexão” (idem), estivesse essencialmente destinado a libertar o ser-

21 “Na ultrapassagem, o ser-aí se dirige, antes de mais nada, ao ente que ele é, a ele como ele ‘mesmo’. A transcendência constitui a ipseidade [Selbstheit]. Contudo, de novo, nunca imediatamente apenas a ela, mas a ultrapassagem se refere nisso mesmo, a cada vez, ao ente que o ser-aí ‘mesmo’ não é; mais exatamente: na ultrapassagem e por meio dela é que somente se pode distinguir e decidir no interior do ente quem e como um ‘si mesmo’ é e o que não [é]. Na medida, porém, em que o ser-aí existe como si mesmo – e apenas nesta medida –, ele pode se comportar para com o ente que, contudo, deve ser ultrapassado antes disso. Ainda que sendo em meio ao ente e envolvido por ele, o ser-aí enquanto existente sempre já ultrapassou a natureza [grifo meu]” (Heidegger, 2004a, p. 138-139).

18

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aí da “prisão mágica das coisas” (idem, p. 261), para fazê-lo chegar, por meio de um

“desvio através do mundo”, “ao seu próprio si-mesmo [eigenen Selbst]” (idem, p. 269).

Em outros termos, é, enfim, como se a sobrenatureza, enquanto ponto de vista de

Outrem, não passasse de figura imprópria (“nada outro que”) da ipseidade do humano, o

único sujeito hegemônico possível, sendo “em si mesma” carente de sentido.

Consoante a tudo isso, Heidegger acusa uma privação fundamental no ser-aí

mítico: “Contudo, o mana não é concebido como modo de ser [als Seinsart begriffen]

no ser-aí mítico, mas sim representado ele mesmo como aquilo que é atado ao mana,

isto é, como um ente” (Heidegger, 1991, p. 269). Não seria possível ser mais claro: à

semelhança do “selvagem da Nova Holanda” celebrizado por Kant,22 o ser-aí mítico é,

enquanto tal, incapaz de formar um conceito (Begriff) de ser, estando limitado por si

mesmo, por seu “estar-entregue” ao mana, a representá-lo “impropriamente” como um

ente. Assim, ele não se torna capaz de pensar ontologicamente, isto é, para Heidegger,

explicitamente a partir da diferença ontológica entre ser e ente – o que significa

também, e necessariamente: “em vista de si mesmo”.23 Como comenta Christiane Bailey

(inclusive com base em outros textos da ontologia fundamental), primitividade e

impropriedade parecem estar de tal modo ligadas no pensamento de Heidegger que se

chega a “assimilar a situação ontológica do homem primitivo à do animal, pois tanto em

um quanto no outro ‘nada é ainda objetivado’” (2011, p. 86-87).24

22 Cf. Brum Torres, 2004.23 Importa aqui notar que, se, para Heidegger, a noção primitiva de mana denota uma forma decadente da compreensão de ser, o seu estar-entregue a outrem e, portanto, fechado para si mesmo (a Un-entschlossenheit do ser-aí mítico), Marcel Mauss, que introduz e interpreta sociologicamente a noção em Esboço de uma teoria geral da magia (1904), enfatiza em sua interpretação precisamente a potência eminentemente social do mana, isto é, o seu poder de “abertura”, de geração, articulação e alteração entre perspectivas: “O que nos seduziu na expressão ‘potencialidade mágica’ que Hewitt aplica às noções de mana e de orenda, é que ela implica precisamente a existência de um espécie de potencial mágico [...] O que chamávamos lugar relativo ou valor respectivo das coisas, poderíamos chamar igualmente diferença de potencial. Pois é em virtude dessas diferenças que elas agem umas sobre as outras. Não nos basta dizer, portanto, que qualidade de mana se associa a certas coisas em razão de sua posição relativa na sociedade, mas devemos dizer que a ideia de mana não é outra coisa senão a ideia desses valores, dessas diferenças de potencial. Eis aí a totalidade da noção que funda a magia e, portanto, da magia. É evidente que tal noção não tem razão de ser fora da sociedade, que ela é absurda do ponto de vista da razão pura e que ela só resulta do funcionamento da vida coletiva” (Mauss, 2003, p. 154-155). Para o comentário desta passagem e da noção maussiana de mana, cf. Viveiros de Castro, 2009, p. 116-117, e idem, 2011b, p. 141-142. Interpretando a interpretação que Lévi-Strauss dedica à noção como “conceito de um desequilíbrio perpétuo entre duas séries que compõem as duas metades desiguais do símbolo”, Viveiros de Castro adverte na noção de mana o índice da “origem radical da semiose”, “o lugar propício para a antropologia erguer a sua torre de vigilância: o cruzamento entre sentido e não-sentido” (idem, 2011b, p. 141-142). Desse ponto de vista, o fato de que Heidegger compreenda a noção primitiva de mana como designando, contrariamente à compreensão do ser-aí mítico ele mesmo, uma origem imprópria do sentido do seu existir confirma que, na concepção ontológico-fundamental da gênese do sentido, a potência contra-existencial (a facticidade, a que Heidegger reduz o mana) seja neutralizada em vista da possibilidade originária do sentido próprio.24 “Referido a outrem – nisso o outro não é manifesto como ente. O ser-apto-para... não é nenhum

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Finalmente, Heidegger propõe então uma redução do “problema fundamental do

mito”, a saber, “de que modo o mito pertence ao ser-aí enquanto tal”, à questão: “A que

respeito é o mito um fenômeno essencial no âmbito de uma interpretação universal do

ser em geral e de suas declinações?” (1991, p. 269; grifo meu). Trata-se, portanto, de

converter o sentido impróprio do discurso e da existência míticas à propriedade de uma

compreensão do ser universalmente vigente, fundamental, denegando-se com isso, por

princípio, “subjetividade”, no sentido perspectivístico, e mesmo “poder-ser”, no sentido

de possibilidade e de potência ontológicas, a todo agente tal como o “ser-aí mítico”, ou

seja, não-autocentrado. Sob o regime do poder-ser próprio, isto é, desde a identificação

ontológico-fundamental entre possibilidade e propriedade (cf. idem, 1993, § 9), “nada

[seria] impossível, exceto não ser para si mesmo o seu próprio fim” (Clastres, 2011, p.

86).

No ser existencialmente compreendido, a sobrenatureza simplesmente se

extingue como polo de relacionamento – embora, do outro lado, se possa experimentar

como sobrenatural a própria antropogênese, que “começa pelo ato de impor-se ao

‘primeiro’ outro com que se depara”.

* * *

Estabelecendo-se nesses termos, a aproximação almejada tem como resultado

provisório, manifestamente abstrato, a constatação de que, entre ontologia fundamental

e cosmopolítica, se abre o mais profundo abismo. Há, contudo, quem o tenha

suplantado, ao menos no sentido de tê-lo entrevisto como uma ponte, por mais perigosa

que se apresentasse: “A angústia de Kierkegaard, o ‘cuidado’ de Heidegger, o

sentimento do ‘naufrágio’, tanto em Mallarmé como em Karl Jaspers, o Nada de Sartre

não são senão sinais de que volta a Filosofia ao medo ancestral ante a vida que é

devoração” (Andrade, 1995, p. 159). Penso que seria possível guiar-se por essa

apercepção antropofágica de Oswald de Andrade, recomendada por Viveiros de Castro

em um sentido próximo (cf. s/d, “Existe, logo pensa”, 12), como mote para o

desenvolvimento de uma dupla hipótese interpretativa: (i) a de que a sobrenatureza do

comportamento dirigido ao ente” (Heidegger, 2010, § 60b, p. 369). Esta é uma das formulações para o “sentido” animal que se encontram nos Conceitos fundamentais da metafísica. Embora situados em graus diferentes de impropriedade (respectivamente, privação de intencionalidade ôntica e privação de intencionalidade ontológica), dir-se-ia que, para Heidegger, o “ser-aí primitivo” e o animal “pobre de mundo” são mais próximos entre si, em vista da possibilidade da compreensão própria e explícita de ser, do que o seriam o “ser-aí primitivo” e o ser-aí “histórico”.

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“ser-aí mítico” persevera obliterada, porém não menos decisiva, sob o fundamento da

ontologia antropogenética de Heidegger, podendo ser adivinhada, por exemplo, através

do conceito ontológico, potencialmente contra-existencial, de extramundanidade; e (ii) a

de que, desde o ponto de vista extramundano, a compreensão existencial de ser acontece

e se revela a si mesma, em sua situação cosmopolítica, como sobrenatural (o “império

do Uno”). Nisso tudo, o extra-mundo seria o que resta quase nulo da neutralização de

Outrem operada mediante o dispositivo ontológico-fundamental do sentido próprio: a

“nulidade” (Nichtigkeit) da qual o ser-aí humano procura, talvez em vão porém não sem

efeito, “ser o fundamento” (Grundsein für) (cf. Heidegger, 1993, § 58, p. 283). Ou, mais

além, um “quase-outro mundo”25 – aquele que Cartesius perdera quando, num lapso,

tomou senhores por máquinas. Tentemos adentrá-lo.26

25 “O sobrenatural não é o imaginário, não é o que acontece em outro mundo; o sobrenatural é aquilo que quase-acontece em nosso mundo, ou melhor, ao nosso mundo, transformando-o em um quase-outro mundo” (Viveiros de Castro, 2008, p. 238).26 O estudo que ora se propõe pretende assim colaborar, o mínimo que seja, com duas tarefas intimamente relacionadas: discernir os limites da antropogênese ontológica por referência à cosmopolítica indígena e, ao mesmo tempo, esboçar a partir desta os elementos de uma ontologia antropofágica. Sendo comparativo, o estudo assume como referências principais as obras filosófico-antropológicas de Heidegger e Viveiros de Castro, tentando desdobrar a questão aqui formulada por meio da articulação entre três núcleos temáticos: (i) a oposição entre cultura e natureza; (ii) a diferença entre homem e animal; e (iii) o conceito ontológico de sentido. Supõe-se com isso, a título de antropologia, um domínio de problemas que se colocam com igual intensidade à etnologia e à filosofia. Naturalmente, o recurso a fontes etnográficas será imprescindível para a realização do estudo projetado.

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