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valença 2012 Priscilla Menezes

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valença

2012

Priscilla Menezes

Eu agradeço estar aqui, agora.

Eu estou aqui nessa cidade onde você também já esteve. Imagino a tua Valença

mais elegante, mais promissora. Te imagino andando por essas ruas, cabelos tão

escuros, a roupa branca, fumando um cigarro, distraída. Te vejo amando essa cidade

pequena, tu que nunca gostaste de espaços amplos, vertiginosos. Com teus sonhos

de moça, pensando em casar com teu noivo bonito e ter filhos bonitos para

crescerem aqui entre as montanhas. Não sei bem o que vim encontrar, ando pelas

ruas às vezes deslumbrada pelas pequenas surpresas, pela minha inédita coragem,

por esse estado de vazio e suspensão, por essa solidão absoluta. Talvez eu tenha

vindo buscar apenas minha capacidade de estar longe e só. Estou apaixonada pela

sonoridade desse nome: Valença. Promessa de uma elegância, de uma antiguidade.

Promessa que é belamente rompida pela decadência, pela arquitetura em ruínas.

Valença é bela e decadente, como uma sedutora.

Rua Silva Jardim, 733

ano de 1973

Rua Silva Jardim, 733

ano de 2012

Previsão de chuva. Espero por chuva faz tantos dias, preguiçosamente, desejando

sentir o conforto de estar protegida enquanto tudo inunda lá fora. Agora eu vou estar

fora, me desprotegendo, me molhando. Talvez a paisagem seja mais exata dessa

forma: eu colocando minha pele à disposição do acaso, me expondo aos humores do

céu. Medo de molhar o que levo. Medo de molhar minha pele? Confesso que

imaginava essa viagem luminosa, uma luz antiga, atemporal, testemunha de um

tempo estático, disponível. Mas então será a luz acinzentada, a água, ela sim,

elemento eterno e renovado, meu corpo poroso, permeável. Vou então mais

corajosamente. Que chova.

Homenagem a Francisco: Chegar em uma cidade desconhecida com os pés nus.

Sob a influência de poucas horas dormidas, ando pelas ruas de Valença entorpecida

de sono e de uma ânsia de deslumbre. Aqui há dois jardins, o de cima e do baixo,

feito uma Babilônia horizontal, rente ao chão.

Saudade de você. Agora à noite me sinto um pouco triste. Vim até aqui me

sentindo livre e, nesse quarto antigo, suspeitando estar sozinha nesse hotel, nada se

parece com a liberdade. Você sempre me disse de como foi difícil se mudar pra cá e

agora eu entendo melhor. Vê só, já é noite e eu também estou com medo. Penso que

poderia sair, ficar bêbada, conversar com estranhos, forçar essa experiência a algum

extremo. Mas vim cedo para o hotel, até liguei a tevê para sentir o tempo mais banal

e saber que estar aqui, sozinha, vai passar. Valença é tão pequena, tão calma, que

me joga para o mais dentro de mim. O dia de hoje passou muito lentamente e me

cansou. Por não estar atrás de exatamente nada, estive buscando tudo, atenta a tudo

e parece que em algum ponto o real sempre engole a poesia. Sempre assumi que a

liberdade fosse um risco, um perigo, mas aqui a liberdade é pesada e tediosa, como

uma solidão.

Senhora idosa, negra, um pouco corcunda, lenço na cabeça, balde no braço.

Trabalha no cemitério da cidade limpando os túmulos, sabe onde fica cada um de

cor, pelo nome da pessoa e ano de morte.

Sonhei com você a tarde toda.

Te carrego no meu peito, na minha barriga, atravessado na minha garganta, no

fundo do meu sexo. Não te abandono, não te deixo pelo chão ou solto no ar. Sinto

meu corpo sempre um pouco mais pesado, porque te engoli e te mantenho dentro de

mim, como um segundo coração que agora bate acelerado.

Faculdade de Medicina de Valença

ano de 1973

Faculdade de Medicina de Valença

ano de 2012

Hoje é domingo, o comércio está quase todo fechado e, em uma praça, tem uma

feirinha com ar de medieval. Cacarecos de metal, louças, peças de madeira, objetos

incompreensíveis amontoados no chão. Aves engaioladas, carnes expostas,

estranhas medicinas. A feira é movimentada, olho para os moradores desconfiada de

que todos eles compartilham um segredo, que saber viver aqui é uma rara e

silenciosa sabedoria.

Carlinho caipira, mateiro, entra no mato para buscar plantas. Faz combinados

medicinais, chás, conservas. Me disse que na vida a gente tem que ter vergonha de

roubar e de outras indecências, de puxar conversa não.

Clara de Valença

Dois buracos no lugar dos olhos. Enxergava o mundo através desses dois furos, que às vezes preenchia de corpos e volumes e às vezes esvaziava

ainda mais, aumentando o oco do seu rosto. Quando tinha os olhos preenchidos, sabia que fazia do mundo uma espécie de prótese, ao modo de

um pirata que acopla um gancho ao braço sem mão e um cotoco de madeira à perna aleijada. O mundo inteiro em suas órbitas esvaziadas se fazia

um grande olho de vidro. Então suas pálpebras mal se fechavam sobre esse volume imenso e igualmente imensos eram os furos que ostentava

quando tirava o mundo do rosto.

A falta de olhos próprios a fazia tanto temida como desejada. Quando estava com os olhos vazados, alguns homens mais brutos ou sensíveis

diziam que ela era fascinante, maravilhosa. O mais sincero disse-lhe que gostaria de fazer amor com ela, pelos olhos. Ela tinha um método

estranho para escolher os homens com quem queria dormir. Gostava de estar com homens pouco atraentes, ou mesmo feios e estranhos. Podia-se

dizer que se punia, dando-se a homens rudes, toscos. Mas, para ela, a excitação estava em extrair prazer da brutalidade, ternura da estranheza. O

que se anunciava facilmente prazeroso e belo lhe parecia triste.

Desde criança buscava comprometer-se com os riscos. Quando tinha oito anos pegou sua bicicleta e pedalou até fora da cidade, voltou pra casa

vendo o céu alaranjar. A surra que levou da mãe só tornou a experiência mais solene. Aos doze, estava tomando um sorvete quando um homem

muito mais velho a convidou para sair. Foram a um bar, ele tomou cerveja e ela uma coca-cola. Quando estavam no carro, ele tentou beija-la e

ela deixou. Ele era grande, gordo e tinha as mãos trêmulas, mãos que a acariciaram por debaixo da blusa e da saia. Aquele homem desconhecido

acariciou todas as partes do seu corpo antes de deixa-la em casa, com o sexo dolorido e o coração batendo forte. Quando fez dezoito anos, fez

uma viagem solitária e teve muito medo de morrer ou enlouquecer com seus pensamentos alados, ciganos. Aos vinte e dois, arrancou os próprios

olhos.

Clara, seu nome era Clara. O que parecia uma piada de seus pais, já que sua pele era escura, assim como seus cabelos, olhos, boca e o bico dos

peitos. Sua mãe havia dito que Clara era o nome de uma santa e, desde que soube disso, Clara rezava para Santa Clara quando se sentia triste ou

muito desejosa. Santa Clara, por favor, me dá a boneca com o vestido brilhante que eu vi na loja, amém. Santa Clara, não deixa minha

cachorrinha morrer. Santa Clara, faz com que tenha sorvete hoje depois do jantar. Quando ficou mais velha, não conseguia acreditar em Deus,

por mais que quisesse, mas continuava, por algum motivo, pedindo e agradecendo à Clara, que podia tanto ser essa mulher antiga como ela

mesma, em sua face divina, luminosa.

Quando percebeu seu talento para o acolhimento do diverso e para o amor sem culpa, Clara decidiu negociar seu corpo. Procurou o único bordel

que sabia existir em Valença, em uma rua lateral do Jardim de Cima. A dona da casa, em princípio, duvidou que os homens se interessariam por

uma mulher cega, e ainda pior, sem os dois globos oculares. Mas resolveu dar-lhe uma chance, com a condição que sempre usasse óculos escuros

para não espantar ninguém. Clara aceitou e virou uma curiosa figura na casa de dona Cristina. Morena, traços finos, ar de moura , de rainha

oriental, os cabelos volumosos e crespos lhe caindo sobre os ombros, grande óculos escuros como os de viúva em filme. Passava as noites

aguardando por alguma solicitação fumando, sentada em uma mesa bebendo cachaça.

Segundo a tradição, o nome de Santa Clara vem de uma inspiração dada à sua religiosa mãe, de que haveria uma filha que iluminaria o mundo.

Clara gostava muito de fazer amor. Mesmo com os homens mais pesados, grosseiros, bêbados ou exageradamente envergonhados. E foi seu

gosto pelo ofício que a fez a moça mais bem sucedida da casa de dona Cristina. Clara explicava que o amor era como entrar no mar, era preciso

enfrentar as ondas com leveza, deixando-se arrastar, deixando o corpo ora leve para que flutuasse e ora pesado para não ser tragado de vez pelo

fundo. Todo corpo a interessava, todo toque lhe inspirava gratidão ou raiva apaixonada.

Foi num dia de Folia de Reis que, ainda muito jovem, ela teve essa inspiração. Conhecia o sertão apenas através de um livro que tinha lido

quando era criança. Ao contrário desses espíritos livres que peregrinam em direção ao mar, Clara deveria ir em direção à seca, ao chão rachado,

ao azul insano do céu. O som dos tambores e das maracas faziam seu corpo tremer e percebia o toque do seu coração desarrumado no compasso

da música imprevisível. As cores das pedrarias, tecidos brilhantes e frestas de pele suada enfeitiçavam o pensamento de Clara que, no meio desse

mar de som e cor, recebeu a revelação que seu destino era ir para o sertão.

Então manchas brancas começaram a aparecer em sua pele. Quanto mais Clara ia ganhando essas manchas, mais lhe parecia forte e necessário ir

para o nordeste. Sentia que o seu desejo pelos tons do chão seco já era tão forte que se manifestava no seu próprio corpo. Aos poucos, Clara ia

virando um arquipélago de ilhas desertas sobre um mar escuro.

Quando se apaixonava por algum homem, fugia por um ou dois dias da casa de dona Cristina e leva-o para ficar com ela em Conservatória, numa

pequena casa perto do mato, que tinha herdado de seus pais. Gostava de viver o amor perto das plantas selvagens, da terra batida, dos bichos. Foi

um de seus amantes, na casa de Conservatória, que lhe falou pela primeira vez da estranha doença que se abatia sobre sua pele. Disse-lhe que

suas mãos estavam ficando manchadas de branco, como uma queimadura ao contrário.

Aos poucos, doença ia se revelando mais uma solução que um tormento.

Quando Clara finalmente conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar a passagem, as manchas claras já haviam tomado mais que metade de

seu corpo. Despediu-se de seus amantes, suas colegas e de dona Cristina. Fez uma mala pequena e embarcou em uma noite quente de Janeiro.

Clara usava um vestido bege, solto. Dias depois chegou em Massapê, uma cidade no interior do Ceará. Antes de procurar abrigo ou pouso, ela

saiu andando, descalça, tocando o solo do chão seco, sentindo seu corpo estremecer. Clara, em seu vestido leve e da cor do chão, andou até ela

mesma ser perdida de vista, misturada ao solo arranhado do sertão.

- Clara, por que foi que tu arrancou teus olhos?

- Para amar sem olhar a o quê.

Valença

2012

Priscilla Menezes

Dedicado à minha mãe, minha avó, à cidade de Valença, à cidade de Massapê - que

amo e nunca vi - e ao Gustavo, meu segundo coração.