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INDÚSTRIA CULTURAL, TOTALITARISMO E SOCIEDADE DE CONSUMO: REFLEXÕES SOBRE O DECLÍNIO DA TEORIA CRÍTICA André Tezza 1 Universidade Positivo RESUMO Os estudos sobre a Indústria Cultural, nos moldes da Teoria Crítica dos anos 40, alcançaram extraordinária influência ao longo do século XX. As obras posteriores de Hannah Arendt e Michel Foucault, ainda que em perspectivas e epistemologias diferentes, trazem uma certa tradição de análise dos bens simbólicos e da sociedade de consumo que não é incompatível com os preceitos originais da Escola de Frankfurt. O que este trabalho propõe, sem a preocupação de um exame exaustivo, é uma reavaliação desta tradição à luz de alguns autores contemporâneos que contestam a crítica frankfurtiana e apresentam novos modelos de análise para as relações entre Indústria Cultural, sociedade de consumo e totalitarismo. Palavras-chave: indústria cultural, Escola de Frankfurt, sociedade de consumo, totalitarismo. ABSTRACT The studies on culture industry under the patterns of the Critical Theories of the 40s have spread a striking influence throughout the 20th century. The latest works of Hannah Arendt and Michel Foucault, even under different perspectives and epistemologies, bring together a certain tradition of understanding the symbolic wealth and the mass consuming society which is not unsuitable with the original principles of the Frankfurt School.The objective of this article is to reevaluate this tradition according to some contemporary authors who contest the critiques of the Frankfurt School, and present new patterns for the analysis of the relationship between Culture Industry, mass consuming society and Totalitarianism. Key words: Culture industry, Frankfurt School, mass consuming society, Totalitarianism. 1 Coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo, professor da disciplina de Ética e Legisla- ção Publicitária.Publicitário graduado pela UFPR (1996) e especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens pela PUC-PR (2002)

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resumo abstract André Tezza 1 Universidade Positivo 1 Coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo, professor da disciplina de Ética e Legisla- ção Publicitária.Publicitário graduado pela UFPR (1996) e especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens pela PUC-PR (2002)

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IndústrIa cultural, totalItarIsmo e socIedade de consumo:reflexões sobre o declínIo da teorIa crítIca

André Tezza1

Universidade Positivo

resumoOs estudos sobre a Indústria Cultural, nos moldes da Teoria Crítica dos anos 40,

alcançaram extraordinária influência ao longo do século XX. As obras posteriores de Hannah Arendt e Michel Foucault, ainda que em perspectivas e epistemologias diferentes, trazem uma certa tradição de análise dos bens simbólicos e da sociedade de consumo que não é incompatível com os preceitos originais da Escola de Frankfurt. O que este trabalho propõe, sem a preocupação de um exame exaustivo, é uma reavaliação desta tradição à luz de alguns autores contemporâneos que contestam a crítica frankfurtiana e apresentam novos modelos de análise para as relações entre Indústria Cultural, sociedade de consumo e totalitarismo.

Palavras-chave: indústria cultural, Escola de Frankfurt, sociedade de consumo, totalitarismo.

abstractThe studies on culture industry under the patterns of the Critical Theories of

the 40s have spread a striking influence throughout the 20th century. The latest works of Hannah Arendt and Michel Foucault, even under different perspectives and epistemologies, bring together a certain tradition of understanding the symbolic wealth and the mass consuming society which is not unsuitable with the original principles of the Frankfurt School.The objective of this article is to reevaluate this tradition according to some contemporary authors who contest the critiques of the Frankfurt School, and present new patterns for the analysis of the relationship between Culture Industry, mass consuming society and Totalitarianism.

Key words: Culture industry, Frankfurt School, mass consuming society, Totalitarianism.

1 Coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo, professor da disciplina de Ética e Legisla-ção Publicitária.Publicitário graduado pela UFPR (1996) e especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens pela PUC-PR (2002)

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Sessenta anos depois, A Dialética do Esclarecimento, obra-chave para a crítica da cultura do século XX, ainda responde satisfatoriamente às relações entre consumo e a produção dos bens simbólicos?

Escrita sob o impacto da Segunda Guerra Mundial (a publicação é de 1947), por Theodor Adorno e Max Horkheimer — dois notórios refugiados judeus-alemães do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt que migraram para os Estados Unidos durante o conflito —, a obra entrou para o cânone do pensamento crítico contemporâneo devido, especialmente, a um capítulo em particular — A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. Negando a nomenclatura Cultura de Massas, termo tradicional dentro dos estudos franceses do século XX2 dos bens simbólicos (para evitar qualquer possibilidade de ambigüidade: nos novos moldes propostos, a cultura de massas é necessariamente produzida para as massas, isto é, por uma classe diferente das próprias massas), com A Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer fundam uma nova metodologia de compreensão da cultura na era industrial.

A grande questão para os autores é a inserção da cultura nos padrões da racionalização administrativa, nas demandas técnicas da linha de montagem, em que a finalidade da produção simbólica não é a emancipação intelectual, mas, ao contrário, a dominação, a disciplina e o lucro. Nos contornos da teoria, o que se percebe é, de um lado, um projeto marxista não ortodoxo, em que deve haver uma chance libertária para a cultura (desde que filiada à ética política) e, de outro, uma associação possível entre o modelo nazi-fascista de persuasão simbólica e a utilização dos meios de comunicação nas modernas sociedades capitalistas (em ambos os casos, a razão burocrática que objetiva o controle sobre as massas). Grosso modo, estes dois grandes aspectos viriam a ser conhecidos como os fundamentos da Escola de Frankfurt — ou ainda, como os fundamentos da Teoria Crítica — que, em maior ou menor grau, com a apropriação eventual de outros modelos epistemológicos (como a psicanálise) também estão presentes nas obras de diversos pensadores do Instituto de Frankfurt, como Walter Benjamin e Herbert Marcuse.

Sobre o primeiro aspecto, a questão de emancipação pela cultura, um recorte significativo das possibilidades de associação entre marxismo e a Escola de Frankfurt pode ser avaliado nesta proposta de Walter Benjamin:

(...) acrescentarei agora uma palavra sobre a música, baseada num depoimento de Eisler. “Também na evolução musical, tanto na esfera da produção como da reprodução, temos que reconhecer um processo de racionalização cada vez mais rápido... O disco, o cinema sonoro, o automático musical, podem fazer circular obras-primas da música em conserva, como mercadoria. (...) A crise da música de concerto é a crise de uma forma produtiva obsoleta, superada por novas invenções técnicas”. A tarefa consistia, portanto, em refuncionalizar a forma-concerto, mediante duas condições: primeiro, eliminar a oposição entre intérprete e ouvinte, e segundo, eliminar a oposição entre técnica e conteúdo.

2 A origem francesa da preocupação com uma cultura de massas está na psicologia social, no final do século XIX, na obra de Gustave Le Bon. É curioso que neste momento já havia uma poderosa crítica à possibilidade de entender uma psico-logia das massas escrita por Freud. Sobre os primeiros estudos da cultura de massas e sua crítica, conferir MATTELART (2006).

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A esse respeito, Eisler faz uma instrutiva observação: “Devemos guardar-nos de sobrevalorizar a música orquestral, considerando-a a única arte elevada. Somente no capitalismo a música sem palavras teve tanta significação e conheceu uma difusão tão ampla”. Ou seja, a tarefa de transformar o concerto não é possível sem a cooperação da palavra. Somente ela, como diz Eisler, pode transformar um concerto num comício político. Brecht e Eisler provaram, com a peça didática Die Massnahme (As medidas), que essa transformação pressupõe um altíssimo nível de técnica musical e literária. (BENJAMIN, 1993, p. 131, 132).

O comentário de Benjamin sobre o depoimento de Hanns Eisler (um discípulo de Schoenberg, que ficou conhecido como colaborador de Bertolt Brecht) é inequívoco: o papel da música de concerto é um papel político — somente no capitalismo a música pôde ser divorciada de sua função na vida pública. Ainda que, notoriamente, a versão de Benjamin para as possibilidades culturais no século XX seja menos apocalíptica que a de Adorno (isto é especialmente relevante na defesa de Chaplin e do cinema), também há aqui uma crítica ao modo burguês de fruição estética, voltado a um esvaziamento político e ideológico da arte.

Sobre o segundo grande aspecto da Escola de Frankfurt, a associação entre a produção de bens simbólicos do capitalismo e a persuasão nazifascista, o pano de fundo é a racionalidade técnica, a razão destituída de suas prerrogativas éticas, isto é, a razão instrumental, outra categoria fundamental da análise frankfurtiana da cultura. Em ambos os casos, a questão da cultura é uma questão subserviente aos direitos da administração (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 123): “o denominador comum ‘cultura’ já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração”. Para Adorno, domínio da administração, além da burocratização e da classificação mercadológica, é também a própria reificação da cultura. Num dos muitos exemplos musicais de Adorno (é sempre prudente lembrar que Adorno foi músico prodígio — aos 17 anos, um quarteto de cordas seu impressionou o então professor Alban Berg — e que 11 de seus 23 volumes da obra-completa são dedicados exclusivamente à música), a questão é facilmente exemplificada: se não mais do que uma dúzia de ouvintes do mundo é capaz de diferenciar o som, como explicar o preço exorbitante de um Stradivarius senão pela associação entre fetichismo e reificação da arte? Ou ainda: qual o sentido de apreciar o valor de um Stradivarius e não o valor de uma obra ou interpretação musical? (ADORNO, 1991, p.86)

A Teoria Crítica frankfurtiana teve uma influência colossal sobre o pensamento do século XX. Em qualquer visão pessimista da cultura massificada, em qualquer possibilidade de associar os bens simbólicos a instrumentos de controle, disciplina e persuasão, a bibliografia frankfurtiana, mesmo que às vezes diluída, mesmo que às vezes reconfigurada, esteve presente. Aliás, se o ponto de partida é discutir a impossibilidade de autonomia dos sujeitos frente aos bens simbólicos industrializados e massificados, a Escola de Frankfurt ainda é um modelo a ser considerado.

Posteriormente, em perspectivas diferentes, sobretudo na crítica ao marxismo, Michel Foucault e Hannah Arendt não se furtarão a associar a produção dos bens

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simbólicos com os (des)caminhos de uma sociedade de esvaziamento político, disciplina e controle.

Para Hannah Arendt, o último estágio da modernidade é o da vitória do Animal Laborans sobre o Homo Faber, isto é, a vitória do labor — a atividade do trabalho que coincide com o ciclo biológico da própria vida e destituído de consciência e participação política — sobre o trabalho que produz a mundanidade, o artesanato em que há consciência entre os meios e os fins. O Animal Laborans é tanto o proletário imaginado na sociedade sem classes de Marx quanto o consumidor do moderno capitalismo — em ambos os casos, a Vita Activa, a vida pública, não é mais a primazia da ação, em que a condição humana é a da pluralidade (como na Antiguidade), mas a primazia do antipolítico, em que o “homem está a sós com o seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo” (ARENDT, 2008, p.224). Em A Condição Humana, Arendt buscava a compreensão de como em uma organização burocrática de massas o totalitarismo seria possível3, dando continuidade a sua obra clássica, As Origens do Totalitarismo. Sem mais as preocupações típicas de várias vertentes do marxismo, de restaurar a realidade sociopolítica — aliás, a autora critica as possibilidades de apontar uma práxis objetiva em uma obra ou teoria4 —, Arendt aponta como a vitória do animal laborans sobre o homo faber permitiu uma sociedade em que os bens simbólicos são consumo e massificação. Neste sentido, ao apontar na arte (em oposição à cultura de massas) uma das últimas atividades do homo faber no nosso tempo, há uma semelhança entre o modelo frankfurtiano de análise da cultura contemporânea e o de Arendt: o aniquilamento da política5. Em Society e Culture, a autora distingue o entretenimento (a Indústria Cultural) da cultura, sendo o primeiro o artefato para o simples consumo e a segunda relativa aos objetos e à mundanidade — em outras palavras: esta é exatamente a mesma distinção entre labor e trabalho, entre os feitos do animal laborans e os do homo faber6.

É notável que, na crítica à cultura de massa, Arendt não utilize nem as categorias nem os princípios epistemológicos de Adorno — isto é especialmente surpreendente pelo passado comum a ambos (refugiados da Alemanha nazista) e também pela mesma preocupação dos fins: as razões que propiciaram, durante o século XX, a invenção do totalitarismo. As diferenças de ambos, por um lado, têm uma escolha fundamental de fundo: Arendt descarta o marxismo (e suas derivações de organização de Estado) e o vê, já nos anos 50, como um modelo que, ao impor uma metodologia de verdade, 3 Sigo aqui as considerações de Celso Lafer no posfácio da edição brasileira de A Condição Humana.4 Respostas são dadas diariamente no âmbito da política prática, sujeitas ao acordo de muitos; jamais poderiam se basear em con-siderações teóricas ou na opinião de uma só pessoa, como se se tratasse de problemas para os quais só existe uma solução possível. (...) O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo. (ARENDT, 2008, p. 13).

5 Sobre a arte como atividade do Homo Faber, a autora afirma que “Dada a sua permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosi-vo dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas (...)”. (ARENDT, 2008, p. 181). 6 Culture relates to objects and is a phenomenon of the world; entertainment relates to people and is a phenomenon of life. (...) The disappearance of culture in a mass society, on the other hand, comes about when we have a consumer´s society which, in so far as it produces only for consumption, does not need a public worldly space whose existence is independent of and outside the sphere of its life process. (...) If we understand by culture what it originally meant (the Roman cultura – derived from colere, to take care of and preserve and cultivate) then we can say without any exaggeration that a society obsessed with consumption cannot at the same time be cultured or produce a culture. Artigo de Hannah Arendt incluso na coletânea organizada por Norman Jacobs (1961).

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trai a própria verdade, uma vez que a verdade, ou pelo menos a verdade que está além das abstrações racionais inventadas pelo homem, como a matemática, tem natureza necessariamente política, isto é, plural. Mas, por outro lado, há uma questão pessoal. Arendt nunca perdoou a recusa de Adorno em levar a sério e com profundidade a obra de Benjamin. Em parte, a obra de Benjamin sobreviveu à guerra e ganhou relevo e importância no Ocidente por conta da determinação de sua amiga Hannah7.

O que Arendt já apontava na metade do século XX como problemático no ideário frankfurtiano seria um prenúncio para a refutação teórica mais consistente dos estudos de comunicação do século XXI. Ao propor, como verdade, aquilo que as pessoas devem ou não consumir na cultura e na arte ou, ainda, os modelos corretos de entendimento da política, a Escola de Frankfurt, ela própria foi acusada, ironicamente, de se sustentar sobre um ideário totalitário. Num comentário preciso de Slater (2002, p. 128):

Quando as instituições e os discursos modernos proclamam ser autoridades em relação às necessidades das pessoas e, além disso, quando procuram legitimar a autoridade de seu conhecimento das necessidades por meio da ciência, da razão ou da verdade, podem constituir-se eles mesmos como uma forma particularmente insidiosa de poder social totalitário: o Estado, o sistema de bem-estar ou os serviços de saúde, a economia de comando que afirma conhecer as necessidades reais de seus cidadãos melhor do que eles, e com uma base científica, é antidemocrática no sentido mais ameaçador possível e tem o poder de impor suas definições de necessidades ao indivíduo na vida cotidiana prática.

A preocupação de Slater faz sentido não só por conta dos pressupostos teóricos frankfurtianos, mas pelas escolhas privadas e práticas dos autores da Escola. Como não observar aqui as considerações de Adorno sobre o jazz? Qual a autoridade “científica” ou de “verdade” pode justificar que Adorno tenha apoiado a decisão de Goebbels, às vésperas da segunda guerra, de proibir o jazz das rádios alemãs?8 Como não associar o radicalismo do que pode e deve ser considerado como arte e cultura “autênticos” com um ideal totalitário? Qual autoridade pode conjecturar sobre o que deve ser o homem “ideal” e refutar as escolhas privadas dos indivíduos? As perguntas são demolidoras e, por si sós, já demonstram o declínio de todo um movimento intelectual.

Num outro momento teórico importante das relações entre poder e cultura, agora nos anos 70, Michel Foucault alertava que, desde meados do século XVIII, a modernidade ocidental trocou as formas espetáculo de punição (em que os suplícios públicos marcavam o castigo corporal e irascível de muitos sobre poucos) para as formas disciplinares e sutis do panoptismo. Inspirado no modelo carcerário de Bentham, o panóptico, Foucault argumenta que o controle visual de poucos sobre muitos — que objetiva a normalização, a disciplina, a economia do policiamento e o aumento de produção — é o que justifica e explica as extraordinárias semelhanças arquitetônicas e de gerenciamento entre as escolas, os presídios e as fábricas. Numa sociedade regulamentada por produtividade e normalização estatística, o panóptico é 7 Sobre a amizade de Hannah Arendt e Benjamin, cf. ADLER (2005)8 Sobre este episódio, cf ADLER (2005).

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mais do que uma forma-presídio, é uma forma-conceito de aproveitamento diverso e que, para muitos comentadores de Foucault, perfeitamente aplicável à mídia e à propaganda da modernidade contemporânea. Neste caso, a Indústria Cultural, seus valores e seus empregos, é também uma poderosa força simbólica de estabelecer o normal, o socialmente aceito, o ideologicamente correto9. A mídia, na interpretação foucaultiana tão freqüente nos estudos de comunicação, é ela própria uma forma-presídio, de determinação sobre os valores e distinções socialmente aceitos.

Ainda que remeta a um novo momento de sociedade, ainda que diferentemente de marxismo tradicional, Foucault faz parte de certa tradição, iniciada, sobretudo, com os frankfurtianos, de desconfiança da autonomia dos sujeitos frente às forças do capital e de seus desdobramentos no espaço do poder. É possível que Foucault seja o último representante importante desta tradição e eis aqui o ponto central do trabalho que estamos propondo: há uma nova bibliografia, bastante crítica a este modelo, surgida ainda com timidez nos anos 60, mas que hoje pode até ser defendida como hegemônica. Esta nova bibliografia não é simplesmente uma crítica à anterior, mas uma perspectiva que se fez necessária frente às mudanças do capitalismo durante o século XX bem como à própria reestruturação da Indústria Cultural nos últimos anos.

Nos anos 60, Umberto Eco, naquele momento ainda em uma atitude de equilíbrio e neutralidade, já apontava para novos horizontes de entendimento da Indústria Cultural em seu clássico Apocalípticos e Integrados, em que a grande novidade, de fato, era o posicionamento dos Integrados, que avaliavam os efeitos da cultura de massas também como positivos e muito distantes da alienação e do controle. O próprio Eco tenderia mais tarde para os Integrados, numa coletânea de ensaios dos anos 70 cujo título já expressa toda uma resposta: Apocalypse Postponed (ECO, 1994), ou o apocalipse postergado.

Num dos artigos, “A audiência traz efeitos ruins para a televisão?” [Does the Audience have Bad Effects on Television?], título, diga-se de passagem, indiscutivelmente provocador, porque é uma inversão de conceitos (o estudo convencional seria: a TV traz efeitos ruins para a audiência?), Eco faz uma detalhada descrição do que foi a primeira geração televisiva na Itália — país em que as relações complexas entre mídia e poder, tendo em vista o fenômeno Berlusconi, são o palco para importantes estudos de comunicação, como o próprio Eco já apresentava em Apocalípticos e Integrados. Na Itália, a TV nasceu no começo dos anos 50 — da mesma forma que na maior parte do mundo industrializado, inclusive no Brasil. Observa Umberto Eco que o primeiro bebê italiano televisivo começou a falar imediatamente antes de seus pais comprarem o primeiro aparelho televisor, que deve ter chegado a sua casa por volta de 1953. Na seqüência, Eco descreve, ano a ano, todos os programas que acompanharam o desenvolvimento deste italiano — programas de auditório, de religião católica pausterizada, de conhecimento científico banalizado —, que, mesmo sem os conhecermos, sabemos que seguem as mesmas fórmulas dos programas que foram veiculados em todo o mundo nesse período (e sobrevivem até os dias de hoje). Ainda que o autor não fale a respeito, esta primeira geração mundial televisiva também 9 FOUCAULT (2007). Sobre as relações entre o panoptismo e a mídia, Cf.: THOMPSON (2001).

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viu a ascensão dos comerciais, uma vez que as agências de propaganda começaram a se profissionalizar também nos anos 50.

Pergunta Eco: se déssemos valor para o discurso apocalíptico, que segundo o autor italiano tinha as pretensões de um marxismo aristocrático com origem Nietzschiana (isto é, a Escola de Frankfurt), o que teria acontecido com esta geração que foi submetida a milhares de horas televisivas, a dezenas de milhares de comerciais publicitários? Certamente, deduziriam os apocalípticos, seria uma geração apática e niilista, conformista e conservadora, superficial e submissa. Mas, como todos nós sabemos, não foi exatamente isso o que aconteceu. Quando essa geração entrou na Universidade, o ano era o de 1968: foi essa primeira geração televisiva que abraçou o anticonformismo, o parricídio, a crise na família, a causa das minorias homossexuais, o direito das mulheres, a crítica do autoritarismo do Estado e da escola. O que faz com que Umberto Eco conclua: I - A televisão sozinha (ou qualquer outra mídia) não é responsável pelo modo de pensar de uma geração, ainda que esta geração “faça sua revolução” com slogans que eventualmente saíram da televisão; II - Se uma geração se revolta contra aquilo que a televisão propaga, então ela pode interpretar a televisão de uma forma diferente daqueles que a produzem, consomem ou teorizam sobre — em outras palavras, a consciência, a crítica, não é uma impossibilidade. Sendo a TV, neste momento, a grande preocupação dos seguidores da teoria crítica, não é equivocado nem frágil apontar as reflexões de Eco não como uma revisão das teorias de produção audiovisual, mas de toda a metodologia em que a Indústria Cultural é associada ao totalitarismo, apatia e controle social e político.

Uma década depois, Gilles Lipovetsky (1989) publicaria O Império do Efêmero, em que após uma breve explicação sobre as teses apocalípticas que permitem associações entre publicidade, Indústria Cultural e totalitarismo, o autor afirma, não sem ácido humor e não sem a contestação radical das teses de Foucault, que a forma moda, essa vitoriosa contemporânea da sociedade de consumo, é a oposta à lógica panóptico-totalitária:

Essas teses [sobre o totalitarismo] tiverem sua obra de glória. Continuam em grande parte a servir de pano de fundo à apreensão do fenômeno, no próprio momento em que a rejeição social da publicidade está em baixa. (...) Alegaremos de forma radical a falsidade de toda assimilação da ordem publicitária à lógica totalitária. A disjunção é com efeito grande: nada em comum com o trabalho de absorção da sociedade civil pelo poder político e pelo projeto ilimitado de mudar o homem, de reconstituí-lo inteiramente. Nada em comum também com o processo de controle de tênue das ‘disciplinas’ de essência igualmente totalitária, em sua pretensão de normalizar e programar os corpos. As disciplinas tais como Foucault as analisou dependem estruturalmente da lógica totalitária: as instâncias de poder trabalham para reconstituir de ponta a ponta o movimento dos corpos, pensam no lugar dos sujeitos, dirigem-nos ‘racionalmente’, orquestrando de fora os detalhes mais íntimos dos comportamentos. Nada igual à publicidade: ao invés da coerção minuciosa, a comunicação; no lugar da rigidez regulamentar, a sedução; no lugar do adestramento mecânico, o divertimento lúdico. (...) A forma moda está em ruptura com a lógica panóptico-totalitária: a publicidade integra em sua ordem a livre disponibilidade das pessoas e o

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aleatório dos movimentos subjetivos.(LIPOVETSKY, 1989, p. 192)

Uma defesa radical do retorno do sujeito? Sem dúvida — sobretudo depois do enfraquecimento do estruturalismo, do colapso do marxismo como teoria materialista de compreensão da história, da não-confirmação dos sistemas políticos totalitários e, finalmente, a ruína da aposta frankfurtiana na fácil manipulação das massas após as pesquisas empíricas de recepção das mensagens da Indústria Cultural, muito comuns nos estudos de comunicação dos anos 80.

O posicionamento de Lipovetsky tem toda a paixão (e os perigos da paixão) que é habitual a todo pensamento de ruptura. Lipovetsky, mais recentemente (2007), ponderou os problemas maiores da sociedade de consumo e, diferentemente de seus textos dos anos 80, contextualizou os perigos próprios do nosso tempo, em especial a crise da educação. Mas, é importante ressaltar, o autor ainda mantém a recusa de associar a comunicação de massa aos mecanismos totalitários, inclusive nas questões polêmicas das grandes corporações e marcas contemporâneas10.

Num texto também mais próximo do presente, e já com os devidos pesos e medidas que o tempo providencia às provocações, um pensador como Bauman também é taxativo quanto à possibilidade de uma realidade totalitária contemporânea:

Durante muito tempo, a distopia de Orwell, juntamente com o sinistro potencial do projeto iluminista revelado por Adorno e Horkheimer, o panóptico de Bentham/Foucault ou sintomas recorrentes de retomada da maré totalitária, foi identificada com a idéia de “modernidade” (...). Parece que o tipo de sociedade diagnosticada e levada a juízo pelos fundadores da Teoria Crítica (ou pela distopia de Orwell) era apenas uma das formas que a versátil e variável sociedade moderna assumia. Seu desaparecimento não anuncia o fim da modernidade. Nem é o arauto do fim da miséria humana. Menos ainda assinala o fim da crítica como tarefa e vocação intelectual. E em nenhuma hipótese torna essa crítica dispensável. (...) Não há mais “o Grande Irmão à espreita” (...) Não há mais grandes líderes para lhe dizer o que fazer e para aliviá-lo da responsabilidade pela conseqüência de seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro exemplo. (BAUMAN, 2001).

Sim, um retorno do sujeito, mas não a liberdade, nem a autonomia kantiana. Para o pensamento contemporâneo, a modernidade do nosso tempo é ainda a modernidade da heteronomia, mas não mais a heteronomia estatal totalitária, das determinações panópticas da mídia, da história ou de imposições de classe — a Indústria Cultural está provisoriamente absolvida (a bem da verdade, depois da revolução da Internet e das tecnologias da informação, a cultura de nicho, num processo aparentemente sem volta, é cada vez mais importante que a cultura de massa), o Estado é uma idéia-conceito em franca decadência e o materialismo histórico uma teoria que a cada dia 10 Lipovetsky aposta na capacidade de discernimento dos sujeitos e na frágil potencialidade de manipulação da comuni-cação de massa. Neste sentido, é um crítico contundente de, por exemplo, posturas que ainda guardam o ideário marxista, como o de Naomi Klein (2002).

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carece mais de demonstração e adeptos. A heteronomia do nosso tempo é advinda das crises e ansiedades individuais, da rigorosa performance exigida individualmente no tempo e espaço das grandes corporações (que substituíram o Estado em força e poder – neste aspecto, a teoria de sociedade de controle, de Deleuze, um apocalíptico tardio, é atual e precisa) e nas doenças advindas da falha desta performance: “As grandes doenças estudadas pela psiquiatria hoje são aquelas em que a performance falha: a depressão (o sujeito trancado em si mesmo) e a síndrome do pânico (o sujeito que não consegue estar num contexto em que a exibição de sua performance é requerida)” (DUPAS, 2001).

No âmbito coletivo, a heteronomia do nosso tempo é o da dependência de um modelo produtivo que garante tanto o hedonismo e as marcas individuais da sociedade de consumo (bem-vindos para diversos autores, vale salientar) quanto a implacável destruição dos recursos naturais e a real ameaça de extinção da espécie. Pelo menos num aspecto, a trajetória do pensamento frankfurtiano permanece atual: o mito do progresso iluminista não nos levou nem à autonomia nem à felicidade.

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referÊncIas

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