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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretora: Ângela Maria Camargo Rodrigues; Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC– Coordenadora: Nadia Hage Fialho

COMISSÃO DE EDITORAÇÃOEditora Geral: Yara Dulce Bandeira de AtaideEditor Executivo: Jacques Jules SonnevilleEditora Administrativa: Jumara Novaes Sotto Maior

GRUPO GESTOR: Ângela Maria Camargo Rodrigues, Jaci Maria Ferraz de Menezes, Jacques Jules Sonneville,Jumara Novaes Sotto Maior, Luciene Maria da Silva, Marcos Luciano Messeder, Nadia Hage Fialho, RenataMonteiro, Verbena Maria Rocha Cordeiro, Yara Dulce Bandeira de Ataíde.

CONSELHO EDITORIALConselheiros nacionaisAdélia Luiza PortelaUniversidade Federal da BahiaCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da BahiaEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da BahiaIvete Alves do SacramentoUniversidade do Estado da BahiaJaci Maria Ferraz de MenezesUniversidade do Estado da BahiaJacques Jules SonnevilleUniversidade do Estado da BahiaJoão Wanderley GeraldiUniversidade de CampinasJonas de Araújo RomualdoUniversidade de CampinasJosé Crisóstomo de SouzaUniversidade Federal da BahiaKátia Siqueira de FreitasUniversidade Federal da BahiaMarcos Silva PaláciosUniversidade Federal da BahiaMaria José PalmeiraUniversidade do Estado da Bahia e UniversidadeCatólica de SalvadorMaria Luiza MarcílioUniversidade de São Paulo

Naddija NunesUniversidade do Estado da BahiaNadia Hage FialhoUniversidade do Estado da BahiaPaulo Batista MachadoUniversidade do Estado da BahiaRaquel Salek FiadUniversidade de CampinasRobert Evan VerhineUniversidade Federal da BahiaWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia Educacional / Insti-tuto Paulo FreireYara Dulce Bandeira de AtaídeUniversidade do Estado da BahiaConselheiros internacionaisAntônio Gomes FerreiraUniversidade de Coimbra, PortugalEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba, ArgentinaEllen BiglerRhode Island College, USALuís Reis TorgalUniversidade de Coimbra, PortugalMarcel LavalléeUniversité du Québec à Montréal, CanadaMercedes VilanovaUniversidade de Barcelona, España

Equipe coordenadora e pareceristas ad hoc (n.24): Denise Laranjeira (UEFS), Elizabete Santana (UNEB), JaciMaria Ferraz de Menezes (UNEB), Jumara Novaes (UNEB), Maria Alba Guedes M. Mello (UNEB), Silvia M. Leitede Almeida (UNEB).

Revisão: Vera Brito; Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes; Tradução/revisão: Josane D. Freitas Pinto, Eric Maheue Kátia Mota; Capa/editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh; Secretaria: Maria Fernanda Vieira Rosa

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - EDUNEBDiretora: Naddija NunesMuseu de Ciência e Tecnologia - Pró-Reitoria de Extensão - PROEXAvenida Jorge Amado, s/nº - Boca do Rio - 41.710-050 Salvador-BAwww.uneb.br / [email protected] - telefax (71) 3371.00148 – ramal 204

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Revista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBA

EducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoe Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidade

Departamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus I

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, jul./dez., 2005

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Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADERevista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural. Os pontosde vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc.deve ser dirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPERua Silveira Martins, 2555 - Cabula 41150-000 SALVADOR - BAHIA

Tel. (071)3117.2316

Instruções para os colaboradores: vide últimas páginas.

E-mail da Revista da FAEEBA: [email protected]

E-mail para o envio dos artigos: [email protected]

Site da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br

Indexada em / Indexed in:– REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas – www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic– BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)– Centro de Informação Documental em Educação – CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação– EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online – Faculdade de Educação – Biblioteca UNICAMP– Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação – Universidadede São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html– CLASE – Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana –Universidade Nacional Autônoma do México:E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx– INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la RechercheScientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr

Pede-se permuta / We ask for exchange.

Tiragem: 1.000 exemplares

Revista da FAEEBA: Educação e contemporaneidade / Universidade doEstado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,1992) - Salvador: UNEB, 1992-

Periodicidade semestral

ISSN 0104-7043

1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5 CDU: 37(05)

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005

S U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I O

9 Editorial

10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação eContemporaneidade

13 Educação, história e memória: apresentaçãoJaci Menezes

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

21 Memória, documento e arquivo: apontamentos para uma história das instituições educativasSilvia Maria Leite de Almeida

31 As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formaçãoDenice Barbara Catani

41 Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. NeillElizabete Santana

57 O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistemaeducacional brasileiro entre os anos 1940 e 1960Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli

75 A escola da Ordem e do Progresso (Brasil: 1889-1930)Maria Inês Sucupira Stamatto

87 De Escola Normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908–1965):uma referência na formação docente no Rio Grande do Norte - um lugar generificadoLuciene Chaves de Aquino

103 Maria Luiza Marcílio: História da escola em São Paulo e no Brasil - um clássico na literaturasobre educaçãoJacques Jules Sonneville

113 A educação e a ascensão da burguesia na BahiaAlfredo Eurico Rodríguez Matta

125 Isaías Alves de Almeida e a educação na BahiaMaria Alba Guedes Machado Mello

141 Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da BahiaCélia Rosângela Dantas Dórea

155 Origem e formação do sistema estadual de educação superior da Bahia – 1968-1991Edivaldo M. Boaventura

175 Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior(1940-1970)Tânia Mara Pereira Vasconcelos

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005

ESTUDOS

241 Da diferença e da igualdadeCarlos Roberto Jamil Cury

257 A pesquisa em educação no Brasil: oscilações no tempoBernardete A. Gatti

RESENHAS

267 ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: jogos eletrônicos e violência. São Paulo: Futura,2005. 255 p.Camila Santana; Janaína Rosado

270 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro,RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. 432 p.Isabele Pires Santos

272 COLE, Michael & COLE, Sheyla. O desenvolvimento da criança e do adolescente.4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.Ricardo Ottoni Vaz Japiassu

275 OROFINO, Maria Isabel. Mídia e educação: contribuição dos estudos da mídia ecomunicação para uma pedagogia dos meios na escola. In: FLEURI, Reinaldo Matias(org.). Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003.p.109-124.Leonardo de Oliveira Palmeira

277 Instruções aos colaboradores

193 A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafiosAna Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

205 Considerações sobre a história da educação especial no Brasil: movimentos e documentosThaís Cristina Rodrigues Tezani

217 A mediação didática na história das pedagogias brasileirasCristina d’Ávila

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005

C O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T S

11 Editorial

12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da FAEEBA– Education and Contemporaneity

13 IntroductionJaci Menezes

HISTORY OF EDUCATION

21 Memories, Documents and Archives: notes for a history of educational institutionsSilvia Maria Leite de Almeida

31 The self-readings of life and the writing of formation experiencesDenice Barbara Catani

41 Movements and dominant themes in A.S. Neill’s self-development processesElizabete Santana

57 Secondary Teaching as a profession: teachers’ associations and the growing of theBrazilian School System between 1940 and 1960Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli

75 The school of Order and Progress (Brazil, 1889-1930)Maria Inês Sucupira Stamatto

67 From Normal School of Natal to President Kennedy Education Institute (1908-1965):a reference in professors professional education in the State of Rio Grande do Norte(Brazil) - a gendered placeLuciene Chaves de Aquino

103 Maria Luiza Marcílio: School History in Sao Paolo and in Brazil - a classic in educationliteratureJacques Jules Sonneville

113 Education and the rising of the bourgeoisie in BahiaAlfredo Eurico Rodríguez Matta

125 Isaías Alves de Almeida and the Education in BahiaMaria Alba Guedes Machado Mello

141 Playground School in Rio de Janeiro, DF (1931-1935): genesis of Bahia Park SchoolCélia Rosângela Dantas Dórea

155 Origin and Formation of the Bahia State Higher Education System - 1968-1991Edivaldo M. Boaventura

175 From Punishment to Reward: conceptions of childhood and education in an InlandBrazilian Community (1940-1970)Tânia Mara Pereira Vasconcelos

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 1-278, jul./dez., 2005

STUDIES

241 On Difference, on EqualityCarlos Roberto Jamil Cury

257 Educational Research in Brazil: flow along the timeBernardete A. Gatti

BOOK REVIEWS

267 ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: Electronic Games and Violence. São Paulo:Futura, 2005. 255 p.Camila Santana; Janaína Rosado

270 GILROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. Rio de Janeiro,RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. 432 p.Isabele Pires Santos

272 COLE, Michael & COLE, Sheyla. The Development of Children and Adolescents.4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.Ricardo Ottoni Vaz Japiassu

275 OROFINO, Maria Isabel. Mass Media and Education: the Contribution of Mass Media andCommunication Studies for Pedagogy of Mass Media at School. In: FLEURI, ReinaldoMatias (org.). Intercultural Education: Necessaries Mediations. Rio de Janeiro, RJ: DP&A,2003. p.109-124.Leonardo de Oliveira Palmeira

277 Instructions for collaborators

193 Black People’s History in Education: among facts, actions, and challengeAna Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

205 Considerations on the history of Special Education in Brazil: actions and documentsThaís Cristina Rodrigues Tezani

217 Didactic Mediation in the History of Brazilian PedagogiesCristina d’Ávila

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 9

Jaci Menezes

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO é o tema do número 24 da Revista da FAE-EBA – Educação e Contemporaneidade, sob a coordenação da equipe de ME-MÓRIA DA EDUCAÇÃO, da linha de pesquisa 1 do Mestrado PEC/UNEB,consolidando a integração entre a graduação e o mestrado do Departamento deEducação – Campus I, iniciada com o n. 18 em 2002 e, desde então, continuadae intensificada, permitindo a ambos tornarem-se mais fortes, a fim de reafirma-rem – institucional e cientificamente – a busca constante do conhecimento.

A integração entre graduação e pós-graduação é evidenciada pelos gruposde estudo formados por alunos de ambos os setores, sob a coordenação dediversos professores do mestrado, formando um elo fecundo de produção deconhecimentos no Departamento de Educação I, significativo para sua valori-zação e seu reconhecimento. Este número é, pois, mais uma realização mar-cante desta rica e permanente interação entre Revista, Departamento eMestrado em Educação e Contemporaneidade.

Para o presente tema, recebemos um número muito grande de contribui-ções, obrigando a equipe coordenadora deste número da Revista da FAEEBAa fazer uma seleção de alguns textos mais significativos para a História daEducação, tanto no plano nacional quanto para o Estado da Bahia, deixando osoutros artigos, igualmente ricos em conhecimentos sobre o tema, para umaColetânea a ser produzida e publicada pelo próprio mestrado.

Assim, a Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, cada vezmais reconhecida e valorizada, tornou-se um dos periódicos de maior alcancena socialização da produção de conhecimentos do mestrado e de todo o De-partamento de Educação I, envolvendo seus professores e alunos, junto comos pesquisadores de outras instituições do estado e do país.

Os Editores: Jacques Jules SonnevilleJumara Novaes Sotto Maior

Yara Dulce Bandeira de Ataide

EDITORIAL

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 200510

Educação, história e memória: apresentação

Temas e prazos dos próximos númerosda Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

25 Educação, Arte e Ludicidade 28.02.06 junho de 2006

26 Educação e Trabalho 30.05.06 setembro de 2006

27 Educação Especial 30.09.06 março de 2007

Prazo de entregados artigos

Lançamentoprevisto

Tema

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 11

Jaci Menezes

EDITORIALHISTORY OF EDUCATION is the theme of the number 24 of Revista da

FAEEBA – Education and Contemporaneity, under the coordination of thegroup MEMORY OF EDUCATION, first line of research of the Master’sPEC/UNEB, consolidating that integration between the graduation and master’sof Department of Education – Campus I, that began with n. 18 in 2002 andsince then, it was continued and intensified, allowing both to be stronger, inorder to reaffirm, institutionally and scientifically, the continued search for kno-wledge.

The integration between graduation and post-graduation is emphasized bygroups of students of both sectors, under the coordination of several profes-sors of Master’s, forming a fertile link of knowledge production in Departmentof Education I, meaningful to its valuation and recognition. This number is animportant accomplishment of this rich and permanent integration among Peri-odical, Department and Master’s in Education and Contemporaneity.

For this current theme, we received a high number of contributions and thecoordination of this number of Periodical of FAEEBA was obliged to make aselection of the most meaningful texts to the History of Education, consideringthe sate of Bahia and Brazil, leaving the other articles, also rich in knowledgeabout the theme to the collection that will be produced and published by theMaster’s.

The periodical of FAEEBA - Education and Contemporaneity is more andmore recognized and became one of the periodicals of large power in thesocialization of knowledge production of Master’s and all Department of Edu-cation I, involving all professors, students, together with researchers of otherinstitutions in Bahia and Brazil.

Editors: Jacques Jules SonnevilleJumara Novaes Sotto Maior

Yara Dulce Bandeira de Ataide

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Educação, história e memória: apresentação

Themes and time limit to submit manuscriptfor the next volumes of Revista da FAEEBA

Education and Contemporaneity

25 Education, Art and Playing 28.02.06 June of 2006

26 Education and Work 05.30.06 September of 2006

27 Special Education 09.30.06 March of 2007

Time limit LaunchTheme

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 2005 13

Jaci Menezes

É com prazer que apresentamos ao Público da Revista da FAEEBA –Educação e Contemporaneidade o número 24, sobre História da Educação.Estávamos – eu e os companheiros do Projeto Memória da Educação na Bahia– debruçados sobre a organização de um livro que apresentará os resultadosdos nossos trabalhos de pesquisa quando recebemos o convite do prof. Dr.Jacques Jules Sonneville, da equipe da Revista, para participar da organizaçãodesta edição. Aceitamos o convite como mais um desafio que se somava aoesforço que já estava em desenvolvimento. Assim, ampliado o convite a todoo grupo do Projeto Memória – bem como ao público da Revista – chegamos aeste resultado que ora entregamos para sua leitura.1

Há aproximadamente vinte e cinco anos, estamos dedicados, no ProjetoMemória da Educação na Bahia, ao entendimento dos processos educativosque se desenvolveram na Bahia, ao longo de sua História (em especial, naRepública, seja através das instituições escolares, seja através de outras for-mas educativas). Em fins de 1979, um pequeno grupo de educadores deuinício ao Grupo de Pesquisa sobre Educação na Fundação Centro de Planeja-mento e Estudos – CPE, do Governo do Estado da Bahia. Elaborado um diag-nóstico prévio, foram montados projetos de pesquisa a serem desenvolvidosdiretamente pelo grupo, e outros financiados ou executados em parceria comoutras instituições.2 Um dos projetos era o Memória da Educação na Bahia.Em 1983, o grupo foi extinto; muitos passaram à Secretaria de Educação,onde nos juntamos todos no curto período do “Governo da Mudança” (1987 a1990), naquele momento já com o apoio do Instituto Anísio Teixeira. Em 1997,na Universidade do Estado da Bahia, retornamos às atividades de pesquisasobre Educação na Bahia, assumindo o Projeto Memória da Educação a for-ma de um projeto integrado de pesquisa, com outros colegas de várias regiõesdo Estado.

Ao longo dos anos, foi possível identificar pelo menos dois movimentos: atensão tradição x inovação – em que a primeira levava a melhor, fazendo

* Doutora em Ciências da Educação pela Universidade Católica de Córdoba, Argentina. Professora de Politica eHistória da Educação da UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, CampusI, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

EDUCAÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA:APRESENTAÇÃO

Jaci Menezes*

1 Atuaram na organização deste número: Denise Helena P. Laranjeira (UEFS), Elizabete Santana (UNEB), Jaci Maria Ferraz deMenezes (UNEB), Jumara Novaes (UNEB), Maria Alba Guedes Machado Mello (UNEB) e Silvia Maria Leite de Almeida (UNEB).2 Éramos Jaci Menezes, Maria Alba Mello, Ivana Rizvi, Maria José Pereira, Maria Ângela Senna Gomes Teixeira, Lícia Ma.da Rocha Barreto e Regina Martins da Matta, e a nós se agregou a professora Elizabete Conceição Santana, recém retornadada SEPLAN do MEC. O grupo teve como consultora a profa. Dilza Atta, e o suporte da área de documentação e informação,coordenado por Nelcy Mendonça, Gerente de Biblioteca e Documentação da SEPLANTEC. No IAT, o apoio de Maria JoséPalmeira.

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retornar ao tradicional e, mais especificamente, a modelos antidemocráticosde vida e escola, sempre que uma ruptura institucional retirava de cena os“progressistas”; e a tensão centralização x descentralização, alternando-seprocessos de administração e de tomada de decisão centrados na máquinaadministrativa ou na escola; no pólo técnico ou no pólo colegiado; na adminis-tração estadual ou no município – este, até 1997, sem recursos para dar contade tarefas perversamente transferidas.

Aparecem os interesses em luta do público e do privado; não apenascomo antagonistas, mas, muitas vezes, como apropriação da coisa pública esua colocação a serviço de poucos. Fica clara a contradição entre o esmaeci-mento de um sistema público estadual de educação, e, ao mesmo tempo, umacada vez maior afirmação dos requerimentos educacionais para papéis na so-ciedade brasileira – não apenas ligados à estrutura de trabalho, mas à própriaformação de dirigentes vindos das classes populares, subalternizadas. Assumeo sistema educativo baiano a clara função de reprodução dos quadros dospartidos no poder, seja pela ocupação de cargos de direção, através de vincu-lação político-partidária, seja pela limitação do acesso aos diversos níveis deensino para os moradores dos bairros da periferia urbana, das pequenas cida-des, da zona rural, para os pobres e os negros.

Identificamos, no período entre 1920 a 1980, a presença marcante de duaspropostas político-institucionais para a educação na Bahia: Anísio Teixeira, de1925 a 1928 e entre 1947 e 1950; e Isaías Alves de Almeida, no Estado Novo.No período final dos anos 60, a proposta de Luiz Navarro de Britto, antes doAI 5, mas sob a influência de experiências de inovação e sob a pressão docrescente movimento estudantil e do movimento dos professores. Os anos1970-80 estão marcados não mais pela ação dos líderes e dos movimentospolíticos, então punidos e sufocados; mas pela ação da máquina técnico-admi-nistrativa e por uma ação cada vez mais forte no sentido da municipalização –o que vai se completar, recentemente, com a quase completa pulverização dosistema educacional baiano.

O estudo das experiências educativas vindas dos movimentos populares, nabusca e pressão por mais e melhor escola em todos os níveis – desde a escolainfantil até a universidade – certamente nos vai permitir conhecer melhor oque acontece na Bahia em termos de Educação. Todo um programa de pes-quisa precisa ser redesenhado para ampliar este nosso pequeno conhecimento,em especial voltado para o cotidiano da escola, para entender as relações quelá se estabelecem e as conseqüências em termos de inclusão/exclusão dosbaianos à cidadania e ao papel de protagonistas. Estamos tentando, no Progra-ma Pesquisa e Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade como umtodo, dar conta desta necessidade de saber mais sobre este assunto.

Os textos selecionados para este número 24 nos vão dar elementos paraconhecer e entender melhor este desenrolar contraditório da educação na Bahia,e comparar e estabelecer as relações entre o que aqui aconteceu e o queaconteceu em outros estados do Brasil. Contamos com Estudos que devemnos ajudar a balizar a discussão sobre Igualdade e Diferença, eqüidade, cida-dania, como o texto de Carlos Roberto Jamil Cury; e textos que nos permitirãoconhecer um pouco a trajetória da própria Pesquisa em Educação, como otexto de Bernadete Gatti. Outros vêm ao encontro da discussão da relação

Educação, história e memória: apresentação

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 200514

Page 15: v.14 n.24 jul/dez 2005

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 23, p. 15-25, jan./jun., 2005 15

entre Memória e História Documental, o uso da Memória no processo de des-coberta e da auto-descoberta ou na formação de professores como auto-for-mação, iniciando a seção dos textos que se debruçam especificamente sobre aHistória da Educação na Bahia e no Brasil.

O artigo sobre Memória, documento e arquivo: apontamentos parauma história das instituições educativas, de Silvia Maria Leite de Almeida,versa sobre duas formas de memória coletiva: o documento e o arquivo. Refor-ça o entendimento da noção de documento e arquivo como expressões de umamemória, sobretudo de uma memória coletiva e a sua relação com a História,situando alguns conceitos chave para o pesquisador que se debruça na análisedocumental. Procura contribuir para o entendimento de uma forma de memó-ria, a memória escrita, e da memória enquanto registro iconográfico, priorizan-do os documentos e os arquivos como “guardiães” dos mesmos. Propõe umarelação entre esse tipo de memória – o documento, o arquivo, a memória cole-tiva - e a constituição da história das instituições educativas.

Já os textos da professora Denice Catani e Elizabete Santana trabalhama memória como repensar, reescrever a própria história de vida – e comoinstrumento auxiliar no estudo das trajetórias de formação de professores. EmAs leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação, De-nice Barbara Catani investiga formas de apropriação das experiências de for-mação, que são descritas em obras autobiográficas publicadas no Brasil, entreo final do século XIX e a década de 1970. Parte do reconhecimento de que aescrita das obras autobiográficas, ao testemunhar as relações pessoais com aescola, pode ser útil como fonte para a elaboração da história da educação.Elizabete Conceição Santana nos brinda com um texto sobre o processo deautoformação de um educador inglês, A.S. Neil, autor de experiência peda-gógica de grande impacto, a escola Summerhill, signo de uma ação voltadapara a reafirmação de valores muito caros à década de 60 – a liberdade paraaprender, o respeito para com aquele que aprende, a responsabilidade e o com-promisso coletivo e a possibilidade de criar, de inovar. Nessa década se conso-lidam experiências que vinham se anunciando/ realizando desde há muito tempopelo combate ao tradicionalismo, aos currículos excessivamente rígidos, ao au-toritarismo. Aqui, se faz a reafirmação da liberdade. Não foi à toa que a déca-da culminou com o Maio de 1968.

Embora trabalhando com a profissão docente, em O magistério secundá-rio como profissão, Paula Vicentini e Rosário Lugli caminham em outra dire-ção e com outros métodos. O texto analisa as representações sobre a profissãoconstituídas pelos professores secundários de São Paulo, privilegiando a histó-ria da APESNOESP, desde 1945 até 1960, quando este segmento da categoriadefinia um perfil de formação e de atuação, procurando afirmar-se no interiordo movimento docente. Analisam as lutas que definiram a identidade profissio-nal no interior do campo educacional e buscaram dar visibilidade às especifici-dades do exercício da docência no nível de ensino médio, para melhorar o seuestatuto profissional no âmbito do serviço público.

Outro grupo de textos apresenta a expansão da escola na República e seuideário civilizatório. Em A escola da Ordem e do Progresso, Maria Inês Sucu-pira Stamatto apresenta características da escola primária no primeiro períodorepublicano no Brasil, através da análise iconográfica de Grupo Escolar funda-

Jaci Menezes

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 13-17, jul./dez., 200516

Educação, história e memória: apresentação

do em 1927, em Vila das Flores, no Rio Grande do Norte. Relaciona o prédioescolar ao ideário de modernização das elites locais que controlavam a admi-nistração pública nesse momento. Reflete sobre o mito da escola republicana esobre a exclusão da maioria da população da escolarização, contrariando odiscurso acerca da necessidade da educação como formadora do cidadão re-publicano.

Analisando a Escola Normal de Natal e sua transformação no Institu-to de Educação Presidente Kennedy (1908-1965), Luciene Chaves de Aqui-no aponta os avanços, conquistas e mudanças nas relações de gênero implicadasnuma instituição constituída de e para moças. São acentuados momentos signi-ficativos da educação norte-rio-grandense, no que se refere à formação doprofessor. Reflete sobre os efeitos das relações entre os homens e as mulhe-res nas relações sociais que constituíam a Escola Normal de Natal.

No texto Maria Luiza Marcílio: História da escola em São Paulo eno Brasil - um clássico na literatura sobre educação, Jacques Jules Sonne-ville apresenta um resumo do livro de Maria Luiza Marcílio onde são destaca-dos os achados mais importantes para o entendimento da evolução escolarpaulistana, com sua repercussão para a realidade nacional. O livro é divididoem três partes: 1) Origens: 1554-1870; 2) O “século” da escola: 1870-1990; 3)Educação para todos: 1990-2000. Considera o livro um roteiro para entender aluta por uma educação de qualidade para todos os brasileiros.

Outro grupo de textos estuda a Bahia. Alfredo Eurico Rodríguez Matta,em A educação e a ascensão da burguesia na Bahia analisa o processo deemergência da educação formal na sociedade baiana e sua estreita relaçãocom o desenvolvimento do mercado nos últimos séculos, mostrando como acontradição social e suas superações históricas participam e influenciam, in-fluenciadas pelas transformações na educação e pela dinâmica das classessociais.

Maria Alba Machado Mello, em Isaías Alves de Almeida e a Educa-ção na Bahia, apresenta o pensamento e a proposta pedagógica de IsaíasAlves de Almeida, Secretário da Educação na Bahia -1938/1942. Realizoureformas na estrutura do ensino que perduraram até a década de 1960. NoEstado Novo, contribuiu para a consolidação da Educação como mecanismode legitimação do Estado, articulando o ideário cristão à nova ordem ditatorial.

Em Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gê-nese da Escola Parque da Bahia, Célia Rosângela Dantas Dórea estuda omodelo Escola Playground, construído no Rio de Janeiro-DF, nos anos 1930,como embrião do modelo Escola Parque, construído em Salvador por AnísioTeixeira, secretário de Educação e Saúde da Bahia. Apesar de surgir comoproposta circunstancial, que visava a conciliar dificuldades técnicas e econô-micas, esse tipo de escola se firmaria como a solução ideal para o problema daeducação integral e serviria de base para a concepção de novos modelos deescola a partir de então.

O prof. Edivaldo Boaventura, no texto Origem e formação do SistemaEstadual de Educação Superior da Bahia – 1968-1991, estuda o processode implantação e crescimento das universidades estaduais na Bahia, comoelemento dinâmico de expansão do ensino superior público no estado. Objeti-vando a interiorização da educação superior, o estado da Bahia instituiu quatro

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Jaci Menezes

universidades que possibilitaram a autonomia da educação superior baiana, nasua função de formadoras de profissionais para o ensino e qualificação derecursos humanos para outros setores produtivos, cooperando para o desen-volvimento sócio-econômico e cultural das regiões interioranas onde estão in-seridas.

Em Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numacomunidade do interior, Tânia Mara Pereira Vasconcelos se propõe a discu-tir concepções de infância e educação em uma comunidade do interior daBahia (1940-1960). Faz um histórico da relação entre as visões da criança e aeducação e analisa discursos e práticas que refletem estas visões a partir daanálise histórica da educação formal em Serrolândia. As escolas têm em co-mum o objetivo de moldar a criança; variam, no entanto, as formas utilizadaspara este fim: a repressão, através do uso dos castigos físicos, a religião ou adisciplina moderna.

O texto de Ana Rita Santiago da Silva e Rosângela Souza da Silva, Ahistória do negro na educação: entre fatos, ações e desafios, resulta depesquisas no Mestrado em Educação e Contemporaneidade, da UNEB, e dis-cute as desigualdades educacionais, vividas pelos afro-descendentes, comoconseqüência do projeto de educação gerado no processo de abolição da es-cravatura bem como iniciativas educativas organizadas pelo povo negro brasi-leiro e as implicações das questões étnico-raciais e sociais no desenvolvimentode ações para se contrapor às desigualdades educacionais existentes atual-mente.

Considerações sobre a história da educação especial no Brasil:movimentos e documentos, de Thaís Cristina Rodrigues Tezani, apresenta ahistória e os paradigmas do atendimento às pessoas com necessidades especi-ais. É feita uma revisão dos movimentos e documentos internacionais e nacio-nais que influenciaram o movimento inclusivo no Brasil e os diversos paradigmasa que esteve subordinada a educação especial, destacando o Paradigma daInclusão, que pressupõe o atendimento educacional especializado na rede re-gular de ensino para alunos com necessidades educacionais especiais, com asdevidas adaptações necessárias.

Por fim, em A mediação didática na história das pedagogias brasi-leiras, Cristina d’Ávila discute a mediação didática no seio das pedagogiasque compuseram o cenário educacional brasileiro desde a chegada da Compa-nhia de Jesus no séc. XVI até hoje. Analisa as características da pedagogiajesuítica, da pedagogia nova, tecnicista, freireana, histórico-crítica e construti-vista, enfatizando em cada tendência pedagógica o tipo de mediação maismarcante, seja através do mestre (como na pedagogia jesuítica), dos meios(como na tecnopedagogia), ou outros. A compreensão dessas tendências sedá par e passo à análise do quadro didático-pedagógico que se descortinaatualmente no contexto escolar. Conclui pela possibilidade de construção deuma síntese superadora, numa prática pedagógica mais criativa, prazerosa econstrutiva, garantindo o conteúdo sistematizado e a autoria docente.

Estes, os textos. Esperamos que a leitura deles resulte em prazer eaprendizado para todos.

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HISTÓRIADA EDUCAÇÃO

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Silvia Maria Leite de Almeida

MEMÓRIA, DOCUMENTO E ARQUIVO:apontamentos para uma história

das instituições educativas

Silvia Maria Leite de Almeida*

* Doutora em Educação pela UFRGS. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia / Departamento deEducação do Campus XIII – Itaberaba/BA. Endereço para correspondência: Departamento de Educação, CampusXIII. Rua Orman Ribeiro, s/n., Barro Vermelho – 46880-000 Itaberaba/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOEste trabalho versa sobre duas formas de memória coletiva: o documento e oarquivo. A escolha deveu-se pela necessidade da elaboração de pesquisa decaráter documental. Faz-se necessário o entendimento da noção de documentoe arquivo como expressões de uma memória, sobretudo de uma memória coletivae a sua relação com a História. O trabalho não tem a pretensão de esgotar otema proposto, considerando que o mesmo possui uma densidade ecomplexidade que não foi explorada. Busca situar alguns conceitos chave parao pesquisador que se debruça na análise documental. Procura contribuir para oentendimento de uma forma de memória, a memória escrita, a memória enquantoregistro iconográfico. E, neste caso, serão priorizados os documentos e osarquivos como “guardiões” dos mesmos. Ainda é feita uma tentativa de relaçãocom a possibilidade metodológica da constituição da história das instituiçõeseducativas, enquanto forma que utiliza e se apóia com esse tipo de memória –o documento, o arquivo, a memória coletiva. À guisa de conclusão, foramabordados os desafios trazidos com os novos meios de arquivamento econservação dos documentos a partir da década de 60.

Palavras-chave: Memória e Educação – História das Instituições Educativas– História da Educação

ABSTRACTMEMORIES, DOCUMENTS AND ARCHIVES: notes for a history ofeducational institutions

This study encompasses two types of collective memory: document and archive.Such a procedure was adopted upon the need of developing document-basedresearch. For this purpose, it is of great importance to have a clear understandingof the notion of document and archive as expressions of a collective memory,especially in relation to History. Considering that the work brings a density andcomplexity which have not yet been explored, the study does not aim to exhaustthe proposed theme. It intends to make key concepts clear to the researcherwho works with documental analysis. It aims at contributing to the understanding

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of a specific type of memory, the written memory, the memory as an iconographicregister. In this case, priority will be given to the documents and the archivesas “guardians” of themselves. The work has also made an attempt to establisha relationship with the methodological possibility of the historical constitution ofeducational institutions as a form which uses and supports itself in such a kindof memory – the document, the archive, the collective memory. In the conclusionthe study discussed the challenges

Keywords: Memory and Education – History of educational institutions –History of Education

Este trabalho versa sobre duas formas dememória coletiva: o documento e o arquivo.

Essa escolha, proposital, deve-se primordi-almente pela necessidade da elaboração depesquisa de caráter documental. Para tanto, faz-se necessário o entendimento da noção de do-cumento e de arquivo como expressões de umamemória, sobretudo de uma memória coletivae a sua relação com a História, pois, no enten-dimento de Le Goff (1996) os documentos etambém os monumentos1 são aplicações ma-teriais da memória coletiva e da sua forma ci-entífica – a história.

Esse ensaio não tem a pretensão de esgotaro tema proposto, considerando que o mesmopossui uma densidade e complexidade, que nãofoi explorada. Busco situar alguns conceitos cha-ve para o pesquisador que se debruça na análisedocumental. Procuro, de maneira simples, con-tribuir para o entendimento de uma forma dememória, a memória escrita, a memória enquan-to registro iconográfico. E, neste caso, prioriza-rei os documentos e os arquivos como “guardi-ões” dos mesmos, por acreditar que tais temassão importantes para esta abordagem.

Ainda, tento fazer uma relação com a pos-sibilidade metodológica da constituição da his-tória das instituições educativas enquanto formaque utiliza e se apóia com esse tipo de memória– o documento, o arquivo, a memória coletiva.

1. Memória e DocumentoNesta seção abordarei o conceito de me-

mória, memória coletiva e documento, bemcomo as relações entre esses.

Meneses, em artigo publicado em 1992, pro-cura fazer um mapeamento do tema memória,no sentido de “superar os limites da conceitua-ção corrente de memória e suas funções”(p.10). Lembra o autor que, muitas vezes, amemória é automaticamente relacionada aosmecanismos de registro e retenção, como de-pósito de informações, conhecimento e experi-ências. No entanto, acresce a esta conceitua-ção, normal para muitos, outros elementos queampliam a noção simplória de memória. Mene-ses ressalta que a elaboração da memória édada no presente para atender às demandasdeste presente e que esta presentificação podealterar radicalmente o valor de um dado passa-do. Afirma, ainda, que a memória é um “siste-ma de esquecimento programado” (p.16), namedida em que possui mecanismos de seleçãoe descarte. Em outras palavras, a memória tam-bém é esquecimento.

Complementando essa idéia, Santos (1993)afirma que, muitas vezes, a memória é tida comoa capacidade de lembrar o passado e que umasimples definição pode ter diversos significadose estes podem ser denominados por diversos ter-mos. Assim, a memória pode ser entendida comodiversas capacidades, desde o decorar algo oufazer algo, como também a recordar fatos vi-venciados no passado e/ou aprender através de-les. Segundo ela, estes são denominados aspectossócio-culturais da memória.

1 Defino o conceito de monumento, conforme Le Goff(1996, p. 535), como sendo “... tudo aquilo que pode evo-car o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atosescritos ...” ainda pode ser uma obra comemorativa de ar-quitetura ou arte, ou ainda, um monumento funerário.

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À medida que aspectos sociais são considera-dos, os conceitos de memória se diversificam:“memória social”, “atos coletivos de lembrar eesquecer”, “tradição”, “traços da memória”. Es-ses conceitos representam não só diferentesabordagens de um mesmo fenômeno, como tam-bém explicam diferentes fenômenos indistinta-mente classificados como memória. (SANTOS,1993, p. 72).

Santos ainda vai chamar a atenção para ofato de que, nas décadas de 1970 e 1980, surgi-ram vários estudos sobre a memória. Essesestudos representaram uma abordagem inter-disciplinar e a tentativa de integrar, com suasênfases, as dimensões de “tempo”, “indivíduo”e “sociedade”.

Esses novos estudos sobre memória vão enfati-zar que não existem memórias individuais ousociais, mas atos de lembrar e esquecer, que de-vem ser considerados práticas ou ações huma-nas constituídas socialmente. Além disso, elesvão rejeitar a idéia de que a memória é capaz derecuperar um passado real, como também o fize-ram anteriormente outros autores... (SANTOS,1993, p. 73)

A autora sublinha que os conceitos de me-mória vão continuar se contrapondo e não al-cançado o almejado consenso nas ciênciassociais, uma vez que as noções e as relaçõesentre “indivíduo”, “sociedade” e “tempo” sãocompreendidas de diferentes formas.

Por memória podemos compreender reminiscên-cias através das quais nos encontramos com opassado, repetição de atitudes e sentimentos dosquais raramente nos damos conta, construção ereconstrução de nossas identidades ao longode nossas vidas, e até mesmo o inexplicável sa-ber. Esses são, no entanto, aspectos da memóriaque só podem coexistir e ser criticamente anali-sados numa orientação que considere que elesnão só se transformam ao longo do tempo, comotambém transformam o presente à medida quereinterpretam o passado. (SANTOS, 1993, p. 83)

Nesse contexto, lembranças, reminiscênci-as, esquecimentos, enfim, a memória, vai te-cendo um cenário complexo, do passado nopresente, do presente visto pelo passado e vaitambém construir uma identidade de uma co-munidade a partir de uma memória coletiva. É

justamente este conceito que trago neste mo-mento. Para abordar o conceito de memóriacoletiva, no entanto, me aproprio do entendi-mento de Meneses (1992). Para ele, a memó-ria coletiva:

... é um sistema organizado de lembranças cujosuporte são grupos sociais espacial e temporal-mente situados. Melhor que grupos é preferívelfalar de redes de inter-relações estruturadas, im-bricadas em circuitos de comunicação. Essa me-mória assegura a coesão e a solidariedade dogrupo e ganha relevância nos momentos de cri-se e pressão. Não é espontânea: para manter-se,precisa permanentemente se reavivada. É, porisso, que é da ordem da vivência, do mito e nãobusca coerência, unificação. Várias memóriascoletivas podem coexistir, relacionando-se demúltiplas formas. (MENESES, 1992, p. 15)

Um outro conceito utilizado nesta seção é oconceito de documento. Documento é entendi-do aqui como texto no seu sentido mais amplo,seja ele escrito, ilustrado, transmitido pelo som,pela imagem, ou de qualquer outra maneira. Noentanto, especificamente para este ensaio, voume ater a um tipo de documento: o documentoescrito. Lembro, ainda, que o documento é, alémde um suporte, uma expressão da memória co-letiva.

Segundo Le Goff (1996), o aparecimento daescrita transformou radicalmente a memóriacoletiva. A escrita permitiu a essa memória umprogresso em dois sentidos: a comemoração,na qual a celebração é realizada através de ummonumento comemorativo de um acontecimen-to a ser lembrado e o documento escrito. Valeressaltar que, para Le Goff, “todo documentotem em si um caráter de monumento e não existememória coletiva bruta” (p. 433). Salienta ain-da que, no documento, há duas funções da es-crita: a de armazenar informações possíveis deserem transmitidas através do tempo e do es-paço e o de garantir a transposição da esferaauditiva à visual.

No entanto, vale ressaltar que essa transi-ção da memória pela escrita não foi intempesti-va; ela se estabeleceu lentamente e de formadiferenciada em alguns espaços e tempos. As-sim, no início da escrita não houve um rompi-mento do movimento tradicional da memória

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coletiva. Esse suporte – a escrita – foi utilizadobasicamente nos elementos urbanos nos quaisnão era possível a fixação através da memória,ou seja, na gerência da circulação de produtos,na gerência celeste, humana e na gerência dosdirigentes (atos financeiros e religiosos, dedi-catórias, genealogias, confecção de calendárioetc).

A memória, vinculada à escrita, possui di-versos estatutos, atrela-se ao poder, às técni-cas, à educação, à cultura, ao trabalho, entreoutras categorias, desde os tempos das antigascivilizações até a Contemporaneidade.2

A história na sua concepção tradicional, doperíodo entre 1870/1880 até 1920/1930, foi in-tensamente marcada pela influência positivista,na qual o documento era o suporte essencial,pois ele – o documento – estava repleto de in-formações que permitiam a reconstrução do fatohistórico. No entanto, ainda vai ser sinônimo detexto.

Flamarion e Brignoli afirmam que nesse pe-ríodo:

... a missão do historiador consistiria em estabele-cer – a partir dos documentos – os ‘fatos históri-cos’, coordená-los e, finalmente, expô-loscoerentemente. Os ‘fatos históricos’ seriam aque-les fatos singulares, individuais, que não se repe-tem: o historiador deveria recolhê-los todos,objetivamente, sem optar entre eles. Seriam enca-rados como a matéria da História que já existirialatente nos documentos antes do historiador ocu-par-se destes. Sua coordenação em uma cadeialinear de causas e conseqüências constituiria asíntese, a apresentação dos fatos estudados: fa-tos quase sempre políticos, diplomáticos, milita-res ou religiosos, muito raramente econômicos ousociais. (apud NUNES, 1989, p. 5).

Le Goff (1996) alerta ainda que, naquelaépoca, autores como Saraman ou Lefebvre afir-mavam categoricamente que, sem documentos,a História não existia. “Pas de document, pasd’Histoire”.

Apesar da concepção de documento não sealterar, o seu conteúdo vai se modificar e am-pliar.

Como já foi dito, na História Tradicional, otermo documento era utilizado no seu sentidoestrito, ou seja, documento era igual a texto es-

crito. No entanto, em 1862, Fustel de Coulan-ges, sentindo o limite dessa definição, realizauma primeira ampliação do termo, ou melhor,do conteúdo. Declarou Coulanges, na Univer-sidade de Estrasburgo: “Onde faltam os monu-mentos escritos, deve a história demandar àslínguas mortas os seus segredos... Deve escru-tar as fábulas, os mitos, os sonhos da imagina-ção... Onde o homem passou, onde deixouqualquer marca da sua vida e da sua inteligên-cia, aí está a história”. (apud LE GOFF, 1996,p. 539).

Já o advento da História Nova, a partir de1929, através da criação dos Annales d’Histoireéconomique et sociale, vai trazer uma outraconcepção do valor do documento, tanto para ahistória como para a memória.

Le Goff (1996), referindo-se a Nora, afirmaque a História Nova vai se esforçar no sentidode criar uma história científica a partir da me-mória coletiva, que poderia ser interpretadacomo uma revolução da memória, pois confereuma “rotação” em torno de alguns suportes fun-damentais. Problemáticas contemporâneas, mascom iniciativas retrospectivas, o abdicar de umalinearidade temporal com vistas a aproveitar osmúltiplos tempos vividos. A história que se faza partir de lugares topográficos, monumentais,simbólicos, funcionais.

Mas não podemos esquecer os verdadeiros lu-gares da história, aqueles onde se deve procu-rar, não a sua elaboração, não a produção, masos criadores e os denominadores da memóriacoletiva: ‘Estados, meios sociais e políticos, co-munidades de experiências históricas ou de ge-rações, levadas a constituir os seus arquivos emfunção dos usos diferentes que fazem da memó-ria’. (LE GOFF, 1996, p. 473).

Com a Nova História houve uma ampliaçãoda noção de documento. Febvre, também cita-do por Le Goff, afirma:

... a História faz-se com documentos escritos,sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode

2 Para saber sobre o desenvolvimento da memória atravésdos tempos, consultar o capítulo sobre Memória, na obra deLe Goff: História e Memória, Campinas, SP: Editora daUnicamp, 1996, ou o capítulo sob o mesmo título na Enci-clopédia Einaudi, do mesmo autor.

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Silvia Maria Leite de Almeida

fazer-se, deve fazer-se sem documentos escri-tos, quando não existem. Com tudo o que a habi-lidade do historiador lhe permite utilizar parafabricar o seu mel, na falta das flores habituais.Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas.Com as formas do campo e das ervas daninhas.Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cava-los de tiro. Com os exames de pedras feitos pe-los geólogos e com as análises de metais feitaspelos químicos. Numa palavra, com tudo o que,pertencendo ao homem, depende do homem,serve o homem, exprime o homem, demonstra apresença, a atividade, os gostos e as maneirasde ser do homem. (LE GOFF, 1996, p. 540).

Henri Marrou chama atenção não somen-te para a ampliação da noção de documento,mas também para as questões que os docu-mentos suscitam. Ou seja, o que se torna im-portante a partir daí são as perguntas feitaspelo historiador:

... é um documento toda a fonte de informaçãode que o espírito do historiador sabe tirar qual-quer coisa para o conhecimento do passadohumano, encarado sob o ângulo da pergunta quelhe foi feita. É evidente que se torna impossíveldizer onde começa e onde acaba o documento: apouco e pouco, a noção dilata-se e acaba porabarcar textos, monumentos, observações detoda a ordem”. (apud NUNES, 1989, p. 18).

Marrou acredita que um estoque de determi-nados documentos representa uma inesgotávelfonte de conhecimento e de pesquisa, pois podese constituir como fonte de inúmeras perguntasdiferentes as quais podem ser respondidas portais documentos se forem bem interrogados. Ouseja, o que importa é o problema que o docu-mento suscita. Nesse caso, “A originalidade dohistoriador consistirá amiúde em descobrir amaneira como tal grupo de elementos, que já seconsideravam bem explorados, pode passar aresponder a uma pergunta nova”. (MARROU,apud NUNES, 1989, p. 19).

Le Goff (1996) ainda se refere a Foucault,afirmando que, para esse autor, os problemasda história estão em questionar o documento,ou seja, pas de problème, pas d’Histoire. ParaFoucault, “O documento não é o feliz instru-mento de uma história que seja, em si própria ecom pleno direito, memória: a história é uma

certa maneira de uma sociedade dar estatuto eelaboração a uma massa documental de que senão separa” (sic). (Apud LE GOFF, 1996, p.545-6).

E quanto à mudança da relação história,memória e documento afirma:

A história, na sua forma tradicional, dedicava-sea ‘memorizar’ os monumentos do passado, atransformá-los em documentos e em fazer falaros traços que, por si próprios, muitas vezes nãosão absolutamente verbais, ou dizem em silên-cio outra coisa diferente do que dizem; nos nos-sos dias, a história é o que transforma osdocumentos em monumentos e o que, onde dan-tes se decifravam traços deixados pelos homens,onde dantes se tentava reconhecer em negativoo que eles tinham sido, apresenta agora umamassa de elementos que é preciso depois isolar,reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação,constituir em conjunto” (FOUCAULT, apud LEGOFF, 1996, p. 546).

A partir de 1960, ocorre a chamada revolu-ção documental. Assim, como a imprensa po-pularizou as obras escritas e os documentos, osurgimento dos bancos de dados, da fita mag-nética, dos disquetes, CD rom, bites e megabi-tes estão realizando uma verdadeira revoluçãodocumental e também acabam instaurando umacrise que traz desafios à atualidade. Na últimaseção desse trabalho tematizarei essa crise ealguns dos seus desafios conseqüentes.

2. O arquivo – “guardião” da me-mória coletiva

Geralmente, os documentos são guardados,acondicionados, classificados em lugares comoos arquivos.

Existem vários tipos de arquivos3 ; no entan-to, utilizarei o termo no seu sentido amplo. Ar-quivo, entendido como locus, lugar de guardados documentos, uma espécie de solidificaçãoda memória coletiva, que constrói uma identi-dade – nesse caso a identidade institucional.Normalmente, a divisão dos tipos de arquivos é

3 Os arquivos são divididos em correntes, intermediários epermanentes.

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devido ao valor atribuído ao documento. Enun-ciarei alguns valores que, no meu entendimen-to, considero importantes para o trabalho dopesquisador em educação. Posteriormente,abordarei sobre a importância do arquivo, en-quanto detentor de uma memória coletiva queservirá de suporte para a constituição da histó-ria das instituições educativas.

O documento possui diversos valores, al-guns considerados como valores gerais, outrosconsiderados como específicos. Todos os do-cumentos conservados nos mais diferentesarquivos possuem valores gerais. Estes valo-res gerais ainda se dividem em outros valores,a saber: intrínseco, arquivístico e histórico. Se-gundo Nunes (1989), valor intrínseco é o valorpróprio, inerente a um documento, que depen-de de fatores como seu conteúdo, circunstân-cia de sua produção, presença ou ausência deassinatura, existência ou não de selos afixa-dos, etc. É, na perspectiva filosófica, equiva-lente ao seu valor total depois de subtrair asoma de seus valores instrumental e contribu-tivo. Já o valor arquivístico é de caráter admi-nistrativo – técnica e operacional – fiscal, legal,probatória e informacional que justifica a con-servação de documentos em um arquivo, sejaeste corrente, intermediário ou permanente.Finalmente, o valor histórico do documento édevido à importância que possui de testemu-nhar fatos sucedidos que permitam ao pesqui-sador dar-se conta do vivido no passado,identificar as relações estabelecidas e trans-formações ocorridas e compreender a gênesee percurso dos processos presentes.

Nunes (1989) lista ainda uma série de valo-res específicos englobados em outros dois va-lores, os valores primários e secundários.Dentre estes últimos, destaco o valor informa-tivo que, segundo a autora:

... é o interesse dos documentos quanto à infor-mação que contêm para referência ou pesquisa,independentemente do seu valor de testemunhosobre o histórico da instituição produtora. É ovalor que têm os documentos de dar informa-ções sobre pessoas, fatos ou fenômenos cujamemória, em termos históricos, seja consideradarelevante ... (NUNES, 1989, p. 3).

Se o arquivo é o guardião de uma memóriacoletiva, ele também vai guardar lacunas, silên-cios e não ditos que essa memória encerra.Pollak (1989, p. 9) faz referência ao enquadra-mento da memória, enquanto processo alimen-tado por materiais fornecidos pela história. Esseenquadramento, “reinterpreta incessantementeo passado em função dos combates do presen-te e do futuro”. Afirma ainda o autor que todaa organização política difunde o seu passado deacordo com a imagem que fabrica de si mes-ma. Essa memória enquadrada – que pode serrefletida em arquivos, monumentos, museus,bibliotecas – guarda discursos, objetos, símbo-los, entre outros, que ao ser tombada refleteescolhas de testemunhas autorizadas e ao ser(re) visitada, muitas vezes, é constrangida a nãodesviar daquela memória consolidada. “Se ocontrole da memória se estende aqui à escolhade testemunhas autorizadas, ele é efetuado nasorganizações mais formais pelo acesso dos pes-quisadores ao arquivos e pelo emprego de ‘his-toriadores da casa’”. (POLLAK, 1989, p. 10).

É importante, no entanto, ter em conta nãosó a dimensão técnica instrumental de um ar-quivo, como também a sua dimensão filosófica.Segundo Magalhães4 , o arquivo enquanto me-mória é anárquico, ou seja, não sofreu filtra-gens dos documentos guardados. Já, o arquivoenquanto identidade foi objeto sistemático devigilância. Em outras palavras, o que está pre-servado foi objeto de seleção e descarte deacordo com a imagem institucional que se pre-tende (u) conservar e/ou publicizar. Há umatensão entre essa relação do arquivo enquantomemória e identidade que, certamente, vai re-presentar, ilustrar e justificar a instituição, as-pectos para os quais o pesquisador deve estaratento.

Alguns pesquisadores em educação, nota-damente aqueles que se debruçam na pesquisahistórica, muitas vezes têm a memória enqua-

4 As referências que trago de Magalhães sem a indicação dedata, referem-se a contribuição do Prof. Justino Magalhães,da Universidade do Minho, Portugal, quando ministrou oSeminário História das Instituições e das Práticas Educativas,na Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS, no períodoentre 04 a 06 de dezembro de 2001.

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drada como sua fonte principal de investigação.Essa memória pode ser expressa em documen-tos escritos, fotografados, orais etc. Esse arse-nal de documentos palpáveis, muitas vezes, estáacondicionado em arquivos, bibliotecas, museusou até mesmo num recinto abandonado.

Magalhães comenta que a instituição edu-cacional, antes da constituição da história dasinstituições educativas, foi objeto de algumasanálises institucionais, no sentido de conferir aarquitetura da sua história. Uma análise, atra-vés da qual se encarou durante muito tempo ainstituição, foi a análise sistêmica, ou seja, a ins-tituição vista como um sistema, dividida em par-tes, com múltiplas entradas e múltiplas saídasem que o produto final tende a diluir-se. Umaoutra abordagem tem sido feita a partir da aná-lise organizacional, que interpreta a instituiçãoenquanto organização em função de um produ-to; nessa perspectiva há uma tendência a privi-legiar a explicação e deixar de lado a compre-ensão. A análise, a partir da constituição dahistória das instituições educativas, tem comoprioridade realizar uma meso-abordagem quearticule a complexidade da dinâmica institucio-nal, que leve em conta a diversidade de infor-mações, desde a integração das paisagens físi-ca e humana, à estrutura arquitetônica, àsrelações de poder, à memória individual e cole-tiva e à relação educativa. Não se pode perce-ber a instituição como um plano parado; a evo-lução dialética opera-se na conflitualidade doque se constitui naquele momento.

A evolução arquitetônica, a gestão/adaptaçãodos espaços e das estruturas, os ciclos de pro-cura de instrução, os ciclos de renovação dosrecursos humanos e materiais, as políticas dehabilitação e recrutamento do pessoal docente,as políticas de admissão e de sucesso do pesso-al discente, são fatos, acontecimentos e combi-natórias que de igual modo, não apenas nãopodem ser deixados de fora na preparação dodiscurso, integrador e problematizante da sínte-se histórica, como são fundamentais enquantofatores de informação e vias de estruturação dainvestigação. A complexidade desta abordagemlevanta questões de representatividade pelo queexige a definição de uma problemática relacio-nal, não linear, fundamentadora, metaprodutivae organizacional, no que se refere às várias di-

mensões em análise. Uma via metodológica quepermita estruturar e construir um discurso quetraduza com significativa aproximação toda a vi-talidade de uma instituição educativa. (MAGA-LHÃES, 1999, p. 68-69).

A abordagem metodológica que leva em contaa história das instituições educativas é, segundoMagalhães (1999, p. 63), “uma abordagem quepermita a construção de um processo históricoque confira uma identidade às instituições edu-cativas”. Neste processo investigativo há umcruzamento de informações de várias naturezas– orais, arquivísticas, museológicas, arquitetôni-cas, fontes originais e fontes secundárias – que,ao serem exploradas e utilizadas, requerem umcriterioso cuidado hermenêutico. Como esse pró-prio autor diria, “um vaivém esclarecido entre amemória e o arquivo”.

Magalhães ainda vai alertar que:

As instituições educativas, como as pessoas,são portadoras de uma memória. Uma memóriafactual, assente na transmissão oral, uma memó-ria fixista e por vezes justificativa e marcada deexageros de vária ordem [sic]. Uma memória ge-rada por contraposição com outras memórias,que corre ao ritmo do tempo – o tempo da ou daspessoas, o tempo das gerações. Uma memóriaque encalha no acontecimento. Uma memória emtorno do fabuloso e do heróico. Uma memóriaritualista e comemorativa. Uma memória consti-tuída por relatos e representações, simbólicasou materiais, sedimentadas ou mediatizadas porhistoriais e crônicas de reduzido valor científico.Uma memória, por outro lado, integrada nas prá-ticas do quotidiano. Com efeito, as instituiçõeseducativas, se transmitem uma cultura – a cultu-ra escolar, não deixam de produzir culturas, quelhes conferem uma identidade institucional. (1999,p. 69)

O autor ainda ressalta que para usar o ar-quivo na sua verossimilhança é necessário sa-ber se aproximar dele – ao classificar osdocumentos está se destruindo o arquivo! Ar-rumar o caos é destruir o arquivo e, neste sen-tido, o pesquisador deve assumir outros papéis,principalmente de arquivista, para não se per-der a riqueza do encontrado. Muitas vezes ocaos, a desordem, os maços de documentos es-palhados revelam aspectos que só um olhar cui-dadoso do pesquisador iniciado pode vislumbrar.

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Então, para levantar a história das institui-ções educativas é necessário ter em mente umatarefa árdua, que não se restringe ao arquivo.A construção do sentido, a iluminação da leitu-ra é uma descoberta, é um exercício investiga-tivo, que se realiza não apenas através dadocumentação escrita, produzida nos quadrosnacional, regional e local, mas também da do-cumentação bibliográfica e museológica. “Ar-quivo, biblioteca e museu são os três núcleosde informação fundamental. Mas não apenas adocumentação escrita e preservada com maiorou menor zelo pelas instituições, como tambémtoda a documentação lateral e a memória oral”.(MAGALHÃES, 1999, p. 74). A partir daí, apósos cruzamentos, os topos surgem dessa inter-locução.

Ainda alerta que, muitas vezes, as informa-ções arquivísticas são deficitárias. Vai sublinharque, para o passado recente, a memória oral,construída sob um apurado rigor metodológico,constitui numa fonte de informação singular, “...quer para se aceder às múltiplas interpretaçõesa que estiveram sujeitos os normativos gerais,quer para se conhecerem as característicasbásicas dos diversos intervenientes e se defini-rem os fatores que pesaram nas opções estra-tégicas e nas práticas do quotidiano”. (MAGA-LHÃES, 1999, p. 70).

Lembra ainda que:

... a memória (pessoal ou coletiva) é uma via me-todológica da história. A memória estimula e de-safia a busca historiográfica, seja no plano dahermenêutica, seja no plano da compreensão eda representação da realidade. Mas à memóriatem de ser criteriosamente contraposto o discur-so científico. A memória não se colhe apenas nainformação oral. A memória desafia o historia-dor para uma explicação da ordem, da organiza-ção dos espaços, dos tempos e das coisas. Amemória desafia o historiador para a explicaçãodas relações hierárquicas e valorativas, querentre as coisas, quer entre as pessoas. Nada navida de uma instituição escolar acontece, ouaconteceu por acaso, assim o que se perdeu outransformou, como o que permanece. A memóriade uma instituição é, não raro, um somatório dememórias e de olhares individuais ou grupais. Éneste vai-vém entre a memória e o arquivo que ohistoriador constrói uma hermenêutica e um sen-

tido para o seu trabalho. Um sentido para a his-tória das instituições educativas. (MAGA-LHÃES, 1999, p. 70-71).

Nesse esforço, o pesquisador busca confe-rir um sentido histórico para a instituição edu-cativa, através dos atores e as motivações dassuas ações, numa investigação que leve emconta os pontos de vista políticos e simbólicos.Um desafio hermenêutico no qual o arquivo éamparado pela memória. No qual à história oralvai caber uma palavra fundamental.

Enfim, como o próprio autor define em ou-tro texto:

A história das instituições educativas constituium domínio do conhecimento em que se tem ope-rado uma profunda alteração metodológica, umavez que a uma narrativa de natureza cronística ememorialista, que enforma as representações eos relatos orais dos atores, se procura contraporuma base de informação arquivística, sob umaheurística e uma hermenêutica complexas, pro-blematizantes e centradas na instituição educa-tiva como totalidade em organização e desen-volvimento. Uma história construída da(s)memória(s) para o arquivo e do arquivo para amemória, intentando uma síntese multidimensi-onal que traduza um itinerário pedagógico, umaidentidade histórica, uma realidade em evolução,um projeto pedagógico. (MAGALHÃES, 1998,p. 61).

3. Os desafios da atualidadeLe Goff (1996) coloca que o alargamento

do conteúdo do termo documento, levou, nadécada de 1960, a uma verdadeira revoluçãodocumental. Esta revolução, segundo ele, é tan-to quantitativa, como qualitativa.

Em termos quantitativos, essa revolução sedá a partir do surgimento de novas formas dearquivamento, de conservação e de preserva-ção dos documentos e dos dados, que se inau-gura com a fita magnética e que, atualmente,se amplia para outros meios como os disquetes,CD’s rom, arquivos virtuais, bites e megabites,a memória eletrônica etc. Isso traz mudançasqualitativas na medida em que essa nova formade armazenamento cria um novo documento,que, segundo Le Goff (1996, p. 542)., requer

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uma nova erudição “que balbucia ainda e quedeve responder simultaneamente às exigênciasdo computador e à crítica da sua sempre cres-cente influência sobre a memória coletiva”.

A facilidade de manuseio que os meios aci-ma possuem, somadas com a crescente ânsiade tudo guardar e de produzir arquivos, trazemao nosso tempo e, certamente, ao futuro próxi-mo ou longínquo um grande problema. Comoafirma Pierre Nora:

A materialização da memória está assim, empoucos anos, prodigiosamente dilatada, demul-tiplicada, descentralizada, democratizada... Nãosomente guardar tudo, mas conservar todos ossignos indicativos da memória, mesmo se nãosoubermos exatamente de que memória eles sãoindicadores. Mas produzir arquivos é o impera-tivo de nossa época... Ele não é mais o relicário,mais ou menos intencional de uma memória vi-vida, mas a secreção voluntária e organizadade uma memória perdida. Ele duplica o vivido,que se desenrola diante dele mesmo em funçãode seu próprio registro – as atualidades sãofeitas de outra coisa? – de uma memória segun-da, de uma memória prótese. A produção doarquivo é o efeito agudo de uma consciêncianova, a expressão mais clara do terrorismo damemória historicizada... (Apud DE DECCA, 1992,p. 132).

Essa produção exacerbada, intencional, exa-gerada de novos lugares da memória traz per-das tanto para a memória quanto para a história.Vai constituir a chamada “memória histórica”,que não é nem memória, pois está a margemda experiência do vivido, nem é história poisestá esvaziada da crítica ao passado. (DE DEC-CA, 1992)

Meneses (1999) vai chamar a atenção paraos problemas documentais que a sociedade dainformação anuncia e sua relação com a me-mória. Ainda alerta para o perigo da possibili-dade dos arquivos reproduzirem um duplofragmentado e parcelar do presente empírico,o que Melot denomina de “pulsão documentalalucinatória”.

Em artigo anterior, Meneses (1992) deixaclaro que o problema desta pulsão não está nagenerosidade das iniciativas de conservação dosdocumentos, mas num aproveitamento sobre-

carregado que isto vai impor, pois demandarádo pesquisador um árduo trabalho de codifica-ção desse “simulacro de presente petrificadoem memória”. É justamente a possível falta decritério, de orientação, da construção de umanarrativa consistente e o descompromisso comproblemáticas prévias ao tratar esse materialque podem criar esse duplo fragmentado e par-celado.

O problema está posto. Desafios são lança-dos, propostas de possíveis soluções enuncia-das; no entanto, somente o bom senso dopesquisador ao tratar da memória, do documentoe do arquivo pode trazer à tona uma narrativaque lhe satisfaça e contemple a sua proposta.Tendo em vista essa realidade trago uma pas-sagem de Le Goff e Toubert que, creio, encer-ra, ou abre, a questão:

O medievalista (e, poder-se-ia acrescentar, o his-toriador) que procura uma história total deve re-pensar a própria noção de documento. Aintervenção do historiador que escolhe o docu-mento, extraindo-o do conjunto dos dados dopassado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhesum valor de testemunho que, pelo menos emparte, depende da sua própria posição na socie-dade da sua época e da sua organização mental,insere-se numa situação inicial que é ainda me-nos “neutra” do que a sua intervenção. O docu-mento não é inócuo. É, antes de mais nada, oresultado de uma montagem, consciente ou in-consciente, da história, da época, da sociedadeque o produziram, mas também das épocas su-cessivas durante as quais continuou a viver, tal-vez esquecido, durante as quais continuou a sermanipulado, ainda que pelo silêncio. O docu-mento é uma coisa que fica, que dura, e o teste-munho, o ensinamento (para evocar aetimologia) que ele traz devem ser em primeirolugar analisador desmitificando-lhe o seu sig-nificado aparente. O documento é monumento.Resulta do esforço das sociedades históricaspara impor ao futuro – voluntária ou involunta-riamente – determinada imagem de si próprias.No limite, não existe um documento-verdade.Todo o documento é mentira. Cabe ao historia-dor não fazer o papel de ingênuo. Os medieva-listas, que tanto trabalharam para construir umacrítica –sempre útil, decerto – do falso, devemsuperar esta problemática porque qualquer do-cumento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – in-

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cluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e falso,porque um monumento é em primeiro lugar umaroupagem, uma aparência enganadora, umamontagem. É preciso começar por desmontar,

REFERÊNCIASDE DECCA, Edgar Salvadori. Memória e cidadania. In: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura.Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo:DPH, 1992. p. 129-136.

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MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória nocampo das ciências sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiro. São Paulo, n. 34, p. 9-24, 1992.

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Recebido em 21.02.05Aprovado em 08.08.05

demolir esta montagem, desestruturar estaconstrução e analisar as condições de produ-ção dos documentos-monumentos. (Apud LEGOFF, 1996, p. 547-548).

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Denice Barbara Catani

AS LEITURAS DA PRÓPRIA VIDAE A ESCRITA DE EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO

Denice Barbara Catani*

* Professora titular e livre-docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP. Endereço paracorrespondência: Avenida da Universidade, 308 – 05508-040 São Paulo, SP. E-mail:

RESUMOO texto apresentado investiga formas de apropriação das experiências deformação, principalmente escolar, que são descritas em obras autobiográficaspublicadas no Brasil, entre o final do século XIX e a década de 1970. Parte-sedo reconhecimento de que a escrita das obras autobiográficas que testemunhamas relações pessoais com a escola pode ser útil como fonte para a elaboraçãoda história da educação, uma vez que tais produções, diferentemente de outrosdocumentos, aportam uma dimensão diversa de significações, traduzindo asconfigurações individuais de processos sociais. Trata-se dos sentidos atribuídospelo sujeito que experimenta a vida escolar e/ou reconstrói suas trajetórias deformação. Questões teóricas como as das relações entre memória ou históriaou entre escrita de si e reinterpretação de si ou entre motivações sociais eescrita autobiográfica merecem consideração ao se examinar tais obras, naperspectiva de integrá-las à produção da história da educação.

Palavras-chave: Escrita de experiências de formação – Escrita autobiográfica– História da educação e literatura

ABSTRACTTHE SELF-READINGS OF LIFE AND THE WRITING OFFORMATION EXPERIENCES

This paper investigates paths to the appropriation of formation experiences,mainly related to schooling, which are described in autobiographical workspublished in Brazil, between the end of the XIX Century and the 1970’s decade.We consider that the autobiographical writings express personal relations withthe school and in this sense could be useful as sources to history of education,because they shelter a different dimension of signification, as individualinterpretations of the social process. In other words, it refers to the meaningsthat are built by the person who experiences the school life and/or reconstructshis/her formation path. Theoretical questions as the relations between memoryand history or self-writing and self reinterpretation, and also between socialmotivations and autobiographical writing must be considered when we takesuch texts to integrate the production of the history of education.

Keywords: Autobiographical writing – History of education and literature

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As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação

O texto apresentado1 investiga formas deapropriação das experiências de formação, prin-cipalmente escolar que são descritas em obrasautobiográficas publicadas no Brasil, entre o fi-nal do século XIX e a década de 70 do séculoXX.2 Parte-se do reconhecimento de que aescrita das obras autobiográficas que testemu-nham as relações pessoais com a escola podeser útil como fonte para a elaboração da histó-ria da educação, uma vez que tais produções,diferentemente de outros documentos, aportamuma dimensão diversa de significações, tradu-zindo as configurações individuais de proces-sos sociais. Trata-se dos sentidos atribuídos pelosujeito que experimenta a vida escolar e/ou re-constrói suas trajetórias de formação. Questõesteóricas, como as das relações entre memóriaou história ou, entre escrita de si e reinterpreta-ção de si ou entre motivações sociais e escritaautobiográfica, merecem consideração ao seexaminar tais obras, na perspectiva de integrá-las à própria produção da história da educação.

Se, por um lado, a consideração de tais fon-tes de informação colabora para que se cons-trua uma “história das relações com a escola”,dando a ver processos de interpretação pesso-al das experiências, também sugere questõesrelevantes para os que se interessam pela es-crita em primeira pessoa e pelo próprio caráterformador dessa escrita. Para professores, comopara alunos, a vida no interior da escola, tantoquanto a vida externa que a ela se associa pelopeso das exigências impostas pela mesma ins-tituição, constituem experiências bastante es-pecíficas, cujos sentidos são construídos eapropriados de várias formas. Conhecer me-lhor esses sentidos pode auxiliar no estabeleci-mento de uma compreensão de saberes epráticas ou de uma cultura escolar (JULIA,1995), pontuando a dimensão de informaçõesadvindas da legislação, dos conhecimentos es-pecializados, dos periódicos, manuais e docu-mentos em geral pelo confronto desses comuma fonte que, na origem, buscou expressar aapreensão individual da experiência. Evidente-mente, não se considera o fato de tais fontesterem, por si, força para permitir a elaboraçãode quadros históricos sobre a educação no pe-

ríodo, mas, sim, que constituem uma instânciaprivilegiada para a apreensão dos sentidos cons-truídos e das formas de apropriação da vidaescolar.

No território específico da história da edu-cação, a inclusão dessas fontes participa de ummovimento de renovação de opções teórico-metodológicas e temáticas, característica dasduas últimas décadas, no caso da produção emLíngua Portuguesa. Pode-se facilmente obser-var a presença forte do recurso a fontes me-morialísticas, literárias ou autobiográficas comoelementos significativos para o conhecimentoda educação em períodos diversos.3 Tal recur-so propõe-se a entender tais fontes pelo quepossuem de “caráter indiciário”, sem deixar deproblematizar seu uso no que tange às dificul-dades quanto às generalizações e/ou quanto aoseu estatuto informativo. Exemplo dessa preo-cupação foi expresso por Lucien Bély, em seu“L’élève et le monde – Essai sur l’éducationdes lumières d’aprés les memoires autobiogra-phiques du temps” (1981), no qual discorreusobre a riqueza e os desafios impostos por esseinteresse ao indagar-se sobre se e como asmemórias autobiográficas poderiam contribuirpara o nosso conhecimento da educação (nocaso do seu trabalho, especialmente a educa-ção do século XVIII, na França). O caráterpolêmico dessa contribuição é também subli-nhado por ele:

As lembranças são armadilhas. De uma parteesses casos individuais, ainda que numerosos,não permitem nenhuma generalização, a indu-ção permanece sempre em perigo. De outra par-te, a história dessas consciências é toda feita desubjetividade, isso é o que leva o leitor a reviveresses relatos, mais do que a criticá-los. Mas, ao

1 Trabalho apresentado no VIII Congreso Internacional deHistoria de la Cultura Escrita, realizado na Universidad deAlcalá em julho de 2005.2 Integra-se essa análise ao projeto de pesquisa intituladoPor uma história das relações com a escola: um estudosobre as apropriações das práticas da vida escolar no Bra-sil (1980-1971) (CNPq – Conselho Nacional de Desenvol-vimento Científico e Tecnológico).3 Relativamente a essas fontes cabe lembrar que, dentre asprimeiras análises sistemáticas de escritos memorialísticosde professores no Brasil, destaca-se a contribuição de DislaneZerbinatti Moraes (1996).

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mesmo tempo, é o que faz toda riqueza dessesdocumentos, eles liberam indícios para uma his-tória, senão das mentalidades, pelo menos dossentimentos, aí residem sua atração e seu inte-resse (BÉLY, 1981, p.4).

Decerto, um conjunto de outras e ásperasquestões se impõem e esse mesmo autor é ar-guto ao não se esquecer de sublinhar as espe-cificidades do lugar do narrador do textoautobiográfico – problema abundantemente es-tudado pela teoria e crítica no campo da litera-tura – e o fato do texto memorialísticoreconstruir, a partir de um lugar do presente, asimpressões do passado (LEJEUNE, 1975 e1986, e ALBERT, 1995).

Dentre os textos reunidos por Martine Chau-dron e François de Singly (1995), destaca-se ode Jean-Pierre Albert: “Etre soi: écritures ordi-naires de l’identité” (p.45-58) que chama a aten-ção para a maneira pela qual a escrita é posta aserviço da constituição de uma identidade pes-soal, corporativa ou local. Porém, mais do queisso, o autor assinala que “a escrita supõe umprocesso de expressãoar e de objetivação dopensamento que explica sua aptidão para re-forçar ou constituir a consciência de si do es-critor...” (p.46). Albert lembra J. Goody, paraquem “a escrita permite ao pensamento atingirum grau de elaboração lógica e de reflexivida-de inacessíveis somente pela expressão oral...”(p.46). De fato, e para muitos autores, como oquer Albert, “A escrita aparece como um meioprivilegiado de tomada de consciência e liberanosso pensamento em sua forma mais elabora-da”. Quando nos tomamos como objeto dessaexperiência reflexiva, revelamo-nos em muitossentidos a nós mesmos e fazemo-nos existir sobum aspecto particular. Decerto e magistralmen-te, os textos de Philippe Lejeune dão conta daspeculiaridades e implicações da escrita autobi-ográfica.

Sem dúvida, a questão de saber por que aspessoas escrevem a própria vida já foi objetode interesse de muitos estudos. O colorido es-pecial que a questão ganha no domínio dos es-tudos educacionais deve-se, talvez, ao fato deque as experiências de formação relatadas emobras literárias e/ou memorialísticas sugerem,

ao mesmo tempo, elementos que permitem en-tender os efeitos dos processos de vinculaçãode valores, dos procedimentos e práticas deescolarização e das formas pessoais de incor-poração do mundo social a um universo indivi-dual. Por mais não fosse, já se teria o suficientepara dotar de significação o recurso às tais obraspara a melhor compreensão dos investimentoseducativos. Testemunhos inequívocos da ten-tativa do entendimento de si, os escritos queinstauram “as leituras da própria vida” estrutu-ram-se desde Santo Agostinho e Rousseaucomo textos que ambicionam e conseguem for-necer elementos generalizáveis nos quais osleitores atentam também para si próprios. Umexemplo bem claro do encontro desses elemen-tos numa obra autobiográfica pode ser localiza-do no primeiro volume da autobiografia de Eli-as Canetti (1993) – A língua absolvida – que,reconhecendo o caráter estruturante das expe-riências primeiras da infância, encontra o fiocondutor de sua narrativa (e vida) nesse tempoprimeiro da experiência na Bulgária. “Dificil-mente conseguirei dar uma idéia do coloridodaqueles primeiros anos em Ruschuk, de suaspaixões e de seus terrores. Tudo o que meaconteceu mais tarde já havia acontecido algu-ma vez em Ruschuk.” (p.13) É possível situarno interior da obra de Canetti os ritmos dessaestruturação de si, produzida literariamentecomo rememoração ou como trabalho de com-preensão. E é acerca da vida escolar que che-gam do texto reflexões, sem dúvida, esclarece-doras dos sentidos das relações pedagógicas edas formas de apreensão dessas pelos alunos.Sobre os professores, Canetti escreve trechosque valem ser relidos: Observe-se que, comoconfiguração, por excelência, da unicidade desentido e esforço extremado da tentativa deimposição da forma inequívoca, ordenada e dis-ciplinada, grande parte de seus representan-tes talvez não visse com prazer o fato de quea figura do professor que mais fala ao autorseja a de Witz, o professor de História. Umhomem que:

... sempre procurava e jamais encontrava (...) nãosabia o que fazer, como viver (...) nem sequersabia para onde ia, voltava-se ora para este, ora

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As leituras da própria vida e a escrita de experiências de formação

para aquele; só tinha uma certeza, ele queria serinstável, e, por mais que isto me atraísse, poisera dito com suas próprias palavras, por sua boca,me deixava maravilhosamente confuso – mas paraonde eu o seguiria? (CANETTI, 1993, p.277-278).

Sem dúvida alguma, é o gênio conhecido deCanetti que lhe permite amar também uma al-ternativa que ele considera diametralmenteoposta – a de Karl Beck, o professor de Mate-mática – com sua maneira “tenaz e disciplina-da de ensinar”.

Partindo-se de uma área talvez muito pequena,sobre a qual não se tem dúvidas, segue-se comdeterminação numa única e mesma direção, semperguntar aonde se quer chegar, renunciando aolhar para a direita ou para a esquerda, avançandopara um alvo sem conhecê-lo, e enquanto não sedá um passo em falso e se conserva a correlaçãoentre os passos, nada nos acontece, e chegamosao desconhecido – pois é a única maneira deconquistar gradualmente o desconhecido(CANETTI, 1993, p.273).

Com Witz:

... não se caminhava para a frente, mas estava-seora aqui, ora acolá; não se tinha um alvo em mira,nem sequer uma meta desconhecida; é certo quese recebia muitas informações, mas mais do queser informado, adquiria-se uma sensibilidade paraaquilo que fora descartado ou para o que aindapermanecia oculto. Ele fortalecia sobretudo ogosto pela transformação, quanta coisa existiade que não se tinha idéia, e bastava que a genteouvisse falar naquilo para que se tornasse aquilo(CANETTI, 1993, p.273).

Convém lembrar, não sem certa impaciên-cia, algumas recomendações pedagógicas, emvoga há muito tempo: racionalize-se o trabalhodo professor, estabeleçam-se objetivos claros,é preciso que se saiba onde se quer chegar, épreciso levar os alunos a compreenderem beme responderem claramente às questões, e tan-tas outras providências semelhantes. Não é àtoa que a pedagogia, ou melhor, os pedagogosse comprazem em dizer isto de muitas formas,em muitas linguagens e com várias justificati-vas: o simples senso comum não “convence” eembora “convencione” não delimita um campoprivado de investimentos e produções. Os bons

efeitos de tais providências ordenadoras não seocultam, ao contrário, exibem-se cruelmente nasituação de alunos universitários que só pedemclareza e objetividade, sistematização e uma“visão geral” e que indagam quase solenemen-te: “qual é a solução proposta pelo autor?”, di-ante de qualquer texto que não lhes diga o “quefazer”, de vez que os textos pedagógicos pare-cem dever ser feitos para isso, ou de vez que aexperiência escolar já lhes mostrou o modo“certo” de compreender. Pequena vingançacontra a pedagogia, a novela de Miguel de Una-muno (1967), Amor y pedagogia, ironicamen-te destrói o sonho da “ciência educativa”,contando onde vão dar tais ilusões. Os pedago-gos não o lêem.

Na leitura do primeiro volume da autobio-grafia de Canetti encontram-se elementos que,certamente, permitem pensar a pluralidade desentidos das experiências de formação, refletirsobre a instituição escolar enquanto lugar dehomogeneização dos comportamentos e sobreo espaço aberto para as diferenças nas rela-ções entre os indivíduos. Reconstituir isso, fa-zendo a rememoração de sua história pessoal,leva o autor a tentar o maior número possívelde inclusões: de experiências agradáveis oudesprazerosas, de figuras respeitadas ou nãodos professores; e o que fazem cruzar seguida-mente a história relembrada com a interpreta-ção dos sentidos que atribui a essa história.Sobre a multiplicidade de figuras dos professo-res, que lhe traz a recordação de sua vida es-colar, diz:

... é a primeira diversidade de que se é conscientena vida (...) a alternância dos personagens, umapós outro, no mesmo papel, no mesmo lugar ecom a mesma intenção, portanto eminentementecomparáveis – tudo isso, em seu efeito conjuntoé outra escola, bem diferente da escola formal,uma escola que ensina a diversidade dos sereshumanos; se a tomarmos um pouco a sério,resulta a primeira escola em que conscientementeestudamos o homem” (CANETTI, 1993, p.174).

Não se pode deixar de atentar para o fatode que ler Canetti, na situação d’A língua ab-solvida, permite multiplicar as sugestões sobreo tema da educação, mas, além disso, permite

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justamente acompanhá-lo cruzando a históriado menino – vítima do “método pedagógico” damãe que lhe ensina alemão ou daquele que de-seja exibir seus conhecimentos na escola e, porisso, é repreendido – com a do adulto que pro-cura o lugar que cada um desses acontecimen-tos ganhou na constituição de si próprio.

Walter Benjamin (1985) faz alusões férteissobre o trabalho de recuperar a própria histó-ria, ao falar de Proust: “Nem tudo nessa vida émodelar, mas tudo é exemplar”. E prossegue:

... o importante para o autor que rememora não éo que ele viveu, mas o tecido de sua rememora-ção, o trabalho de Penélope da reminiscência.Ou seria preferível falar do trabalho de Penélopedo esquecimento? (...) Não seria esse trabalhode rememoração espontânea em que a rememo-ração é a trama e o esquecimento a urdidura, ooposto do trabalho de Penélope, mais que suacópia? Pois aqui é o dia que desfaz o trabalho danoite. (BENJAMIN, 1985, p.37)

Para o seu trabalho de rememoração e es-quecimento, Canetti escolhe a via direta da au-tobiografia e para ele também podem valer asobservações de Benjamin: nem tudo é modelar,mas certamente exemplar. Pois não é ele queobriga seu texto a falar simultaneamente a tra-ma e a urdidura de sua história? Seu relato afir-ma e reitera escolhas sem deixar de aludir aossentidos do que foi recusado, mostrando assimcomo se faz sua atenção para o mundo. E étalvez, no modo como se constrói essa atençãoe se a expressa na rememoração da sua ex-periência escolar, que se pode melhor encon-trar os elementos sugestivos para o tema daeducação.

Tal como a obra de Canetti, passíveis deserem incluídas na categoria dos “romances deformação” ou integrarem as obras autobiográ-ficas e memorialísticas, numerosos são os tex-tos da literatura brasileira cuja marca de escritaprincipal é permitir a reflexão do autor sobreseus próprios itinerários. Para a via de compre-ensão aqui sugerida, são a última década doséculo XIX e as primeiras décadas do séculoXX,no Brasil, e a instauração do projeto repu-blicano que assistem à proliferação dessa pro-dução literária. Incluem-se entre tais escritos

os esforços autobiográficos de professores,categoria peculiar em que se mesclam reme-morações da própria vida e formação a consi-derações sobre o sentido da profissão docentee eventualmente acrescem-se justificativas daescrita e da obra como contribuição à forma-ção das novas gerações.

Extremamente variada, a produção dos pro-fessores nesse domínio tem constituído objetode interesse crescente para os que se dedi-cam à história da educação. Mas não apenas.Observe-se igualmente que o interesse por taisescritos acompanha-se hoje, de modo simultâ-neo, por um interesse pelo “testemunho de si”,de modo geral, e pela atenção para com asdimensões pessoais e biográficas de forma-ção como processo escolar. A esse mesmo pro-pósito a idéia de estudar os modos de relaçãocom a escola e as conseqüentes incorporaçõesdessas experiências pode evidenciar elemen-tos esclarecedores acerca do ensino e das ins-tituições por ele responsáveis. De fato, aobuscar depoimentos na literatura, nas autobio-grafias e nos relatos de formação intelectual,de alunos e de professores, pode-se tentarcompreender a diversidade das relações ins-tauradas com a escola e os conhecimentos emdiferentes momentos da vida dos sujeitos.Pode-se mesmo, a partir daí, tentar entendera natureza das articulações entre as experiên-cias escolares iniciais e as formas de exerci-tar o trabalho. Observe-se ainda, antes de nosdetermos nas peculiaridades das produçõesbrasileiras, as observações seguintes.

No livro em que narra suas memórias, inti-tulado O amor dos começos, Jean-BaptistePontalis (1988) descreve, no primeiro capítulo,como se dá sua iniciação na escola e as contur-badas relações que experimenta com a lingua-gem, os professores e o conhecimento. Fala deum turbilhão que arrasta a criança de cincoanos, pela primeira vez levada à escola. As pri-meiras frases de seu livro expressam o signifi-cado dessa experiência: “Tenho que começarpelo curso H. É que vejo nele a origem dos meustormentos, pelo menos do que será aqui meuobjeto: o amor e o ódio pela linguagem” (p.13).Mais adiante, na mesma página: “Assim vou

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começar pelo curso H. Até então tinha sosse-go. Foi lá meu martírio”. O autor evoca a suavontade de não falar, do prazer infantil que ex-perimentava em guardar silêncio e do sonhodaquele tempo, que era escolher uma profissãona qual não fosse preciso quase falar. O psica-nalista, autor de Vocabulário de psicanálise,reflete então:

E hoje, no entanto, toda a minha atividadeprofissional, que eu quis diversificada, dizrespeito unicamente à linguagem: exerço apsicanálise, edito livros e uma revista, leiomanuscritos, escrevo de vez em quando, às vezestraduzo. Eis-me assim, mais que a maioria, umhomem ocupado, em terrenos diferentes, por ummesmo objeto: as palavras” (PONTALIS, 1988,p.13-14).

O primeiro capítulo do livro chama-se “Oamor pelo colégio”. Nele, seu autor menciona-rá também outro início que não o curso H: “Ascoisas mudaram radicalmente com a entradano Lycée Pasteur” (p.20). E, mais adiante, re-fletindo sobre a infância, diz:

Há trechos inteiros que não suscitam em mimnem saudade nem emoção. Ou se nostalgiaexiste, ela é de uma natureza bem particular: é,tratando-se do colégio, a de um mundo fechado,ao mesmo tempo minuciosamente ordenado e,no interior deste fechamento, desta ordem, destaeconomia regulamentada, permeado por umavida extraordinariamente aberta, móvel emúltipla... A diversidade, eu a encontrava tantoem nossos professores quanto em meuscolegas... (PONTALIS, 1988, p.21).

E, por fim, ao comparar o curso H e o colé-gio, ele lembra que “no colégio em vez de sub-meter-me às arbitrárias regras do jogo, eu vianessas regras um jogo” (p.26). Na história dePontalis, a iniciação só se torna feliz quando eleencontra sentido no jogo dos comportamentos,da língua e do conhecimento, enfim, do mundoescolar, e atinge o apogeu quando ele se vêcapaz de compreender a lógica da disciplina edas disciplinas na escola.

Talvez valha a pena lembrar, como o fazBoaventura Souza Santos (1987), o caráter au-tobiográfico dos escritos científicos, que podeser capturado mesmo nas palavras de Descar-

tes, quando afirma no Discurso do método:“gostaria de mostrar, neste Discurso, que ca-minhos segui; e de nele representar a minhavida como num quadro, para que cada qual apossa julgar e para que, sabedor das opiniõesque sobre ele foram expendidas, um novo meiode me instruir se venha juntar àqueles de quecostumo servir-me” (p.53). Para o autor, queretoma Descartes, a dimensão autobiográficacomparece, hoje, na ciência associada a novosmodos de sobrevivência. Ele sinaliza que estase associa “a uma outra forma de conhecimen-to, um conhecimento compreensivo e íntimo quenão nos separe e antes nos una ao que estuda-mos” (p.53). Em algum sentido para ele “todoconhecimento científico é auto-conhecimento”e, por conseqüência, todo desconhecimento éauto-desconhecimento. A consideração de taisidéias aqui deve servir para que uma vez maisse lembre os motivos da escrita autobiográfica.Ao participar da intenção de explicitar-se a sipróprio numa obra de caráter memorialístico ouliterário, freqüentemente aspira-se a produzir umconhecimento da realidade social e das açõeshumanas, de algum modo generalizável.

No quadro das produções literárias brasilei-ras desde o século XIX, principalmente, encon-tram-se obras que, nesse período, afirmam ascaracterísticas da “literatura confessional”, fielàs novas expressões modernas nas quais ossujeitos filiam a compreensão de si às narrati-vas que proporcionam uma espécie de ancora-douro para o entendimento e a justificação deseus atos. Há obras cuja presença é bastanterecorrente quando se pretende procurar rela-ções entre “a escrita de si” e as questões liga-das à formação.

Tal é, por exemplo, o caso do livro de RaulPompéia, O Ateneu, editado pela primeira vezem 1888 e que apresenta as experiências devida escolar de Sérgio, um menino que viviano Rio de Janeiro. Muito já foi dito sobre aobra e o retrato que esta mesma oferece dadinâmica no internato de um colégio, na apre-ensão de um menino de dez anos. Nomeadopor seu autor como “uma amarga crônica desaudades”, o livro permite testemunhar signi-ficativos momentos de uma história de forma-

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ção desde antes da escola, nas experiênciasque nomeia como as do “aconchego placentá-rio da dieta caseira” até os episódios nos quaissão dados a conhecer o melhor e o pior davida no internato. Raros são os temas da for-mação e da escolarização que não se encon-tram mencionadas na obra. Evidentemente, oque se pode apreender da obra refere-se tan-to a informações sobre o funcionamento dasinstituições escolares no período imperial bra-sileiro quanto os indícios dos sentidos que ossujeitos conferem a processos e experiênciasformadores. Nesse aspecto o que está emjogo, é certo, não é uma questão da veracida-de dos relatos ou de seu caráter ficcional.

A este propósito, o estudo de Antonio ViñaoFrago, “Las autobiografias, memorias e diarioscomo fuente histórico-educativa: tipologia yusos” examinou extensivamente as possibilida-des de recurso a tais fontes, as suas caracterís-ticas internas e as relações entre tais textos e aconstrução dos argumentos histórico-educaci-onais. No estudo de Viñao apresenta-se aindauma alternativa de diferenciação dos diversostipos de literatura ligada à memória. De acordocom ele e para os fins de sua análise, emborasejam de grande interesse para os historiado-res “as novelas, obras de teatro ou relatos queversam ou têm por tema central algumas insti-tuições determinadas ou atividades educativas(...) os anos de infância, adolescência e juven-tude”, ele concentra sua atenção nas autobio-grafias, memórias e diários em sentido estrito.Adverte, no entanto, que o “limite entre a nove-la autobiográfica e a autobiografia ‘novelada’é, muitas vezes, impreciso, a não ser que seremeta às intenções ou vontades do autor”(2000, p.83). As observações são importantesquando se atenta para a multiplicidade de obrasque aportam referências às dimensões autobi-ográficas, propõem-se incursões memorialísti-cas ou visam a registrar experiências vinculadasà formação.

No caso brasileiro, embora não se possa ain-da formular uma tipologia dessas obras, vez quesua localização e identificação ainda está emcurso, pode-se reconhecer a abundância de in-formações advindas das obras literárias que

retomam experiências de formação e foramproduzidas por escritores que escreveram ou-tros livros e as autobiografias de intelectuais,escritores, artistas e professores nos quais otema aparece. O interesse trazido por essesescritos está justamente na possibilidade decompreender como são vividas e traduzidas aexperiências ligadas ao aprendizado formal einformal, na escola como em outras instâncias.Mas, o interesse é principalmente pela tradu-ção dos significados e formas de viver a esco-larização, daí a idéia de uma “história dasrelações com a escola”.

Tanto quanto O Ateneu, de Raul Pompéia,em obras como Infância, de Graciliano Ramos,literato bastante reconhecido no país, pode-seencontrar a reconstrução das memórias domenino, que narra desde as suas experiênciasinaugurais com o aprendizado das letras, sob adireção enérgica e quase violenta do pai, pas-sando pelas intervenções mais amenas da mãee de uma das irmãs até chegar o momento deser acolhido na escola. Também aí, segundo seurelato, pleno de referências às ressonânciasemocionais, o aprendizado era sofrido.

A atenção para com a literatura autobiográ-fica produzida, especialmente por professores,aporta uma contribuição da mesma natureza,mas acresce-se pela dimensão ligada ao traba-lho. Não só estão em cena, nessas produções,os sentidos atribuídos às experiências de apren-dizado, formação e escolarização, mas tambémaquelas relacionadas à escolha e experiênciasdo exercício de uma profissão. Desentranha-se da escrita dessas obras modos de seleçãocom o trabalho, representações, valores e deci-sões que impregnam a orientação da vida es-colar, além de elementos úteis para que secompreenda a história da profissão dos profes-sores.4

Da leitura da produção memorialística des-ses profissionais configuram-se linhas narrati-

4 Relativamente à análise e comparação de escritos autobi-ográficos de professores, cabe referir a análise de PaulaPerin Vicentini e Carla Marisa Rodrigues (2004), no qual sebuscou examinar distâncias e proximidades entre os modosde referência à profissão presentes em algumas obras produ-zidas na primeira metade do século XX.

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vas que se integraram progressivamente aosmodos de propor a formação e trabalho no cam-po educacional. Por que os professores escre-vem suas memórias? Pois bem, para além damotivação mais intensa e partilhada pelos vári-os tipos de escrita autobiográfica, aquela quediz respeito à auto-compreensão ou à esperan-ça de uma reinterpretação de si mesmo ou atémesmo às dimensões formadoras dessa escri-ta, talvez essa literatura se ofereça como a pos-sibilidade de expressão artística que se põe aoalcance desses profissionais. Por outro lado, nãodeixa de ser significativa a aproximação entreesses esforços de compreensão de si e o pró-prio trabalho educativo, em vários sentidos otrabalho de formação é também um trabalhode / com memórias e narrativas. E essa aproxi-mação não pode passar despercebida ao se fa-lar da escrita dos professores. Mas, de qualmemória articulada à formação se pode falarnessas condições? Talvez, de uma relação como passado que, como sustenta François Dosse(2001), a propósito das exigências de trabalhosemelhantes demandadas ao psicanalista e aohistoriador, nos levam a considerar, na tarefapedagógica, o lugar sui-generis da intervenção.A propósito das atividades da análise e da his-tória, diz ele:

O historiador, assim como o analista, está dian-te da mesma aporia. Nenhum dos dois pode res-suscitar o passado a não ser por meio da medi-ação de seus vestígios. É tão impossível aoanalista ter acesso ao real quanto é impossívelao historiador ressuscitar a realidade do passa-do. Ambos precisam segurar as duas extremi-dades da cadeia: a realidade externa e seu im-pacto interno, para tentar abordar seu objeto”(p.293).

Entendida a formação, assemelhando-se,aliás, à maioria das intervenções na área dasciências humanas, na ordem das possibilidadesdo sujeito construir narrativas que assegurem aautonomia das suas relações entre “a realidadeexterna e seu impacto interno”, a tarefa peda-gógica percorrerá esse estreito espaço da cons-tituição das memórias coletivas e individuais eda renovação dos relatos capazes de assegura-rem a vida social.

É evidente que, desses investimentos de for-mação participam tanto as iniciativas de elabo-rar uma história da educação atenta às suasrelações com as narrativas memorialísticas ereflexivas sobre a sua própria condição de re-lato, quanto participam as iniciativas que pro-pugnam pela retomada das experiências de vidaou histórias dos sujeitos nos processos pedagó-gicos. Dessa última alternativa fazem parte osesforços de produção das histórias de vida es-colar, narrativas ou relatos de formação, exer-cícios de reflexão sobre itinerários vinculadosaos processos educacionais que, no âmbito dopreparo para a docência têm sido férteis aopotencializar o desenvolvimento de uma aten-ção arguta para com as várias dimensões dasrelações pedagógicas, da vida escolar, do de-senvolvimento da autonomia intelectual e daconstituição de projetos individuais e coletivos.

A idéia central que sustenta as apostas norecurso às narrativas memorialísticas como dis-positivos de formação parece ancorada no re-conhecimento, bem expresso, por algunsautores, a propósito do papel nuclear do relatona constituição do sujeito:

Uma parte relevante da filosofia atual – sob di-versos ângulos – tem fundamentado conceituale epistemologicamente a narratividade, ao en-tender a vida como um relato, sujeito à contínuarevisão. A metáfora básica empregada por essesenfoques narrativos derivada da literatura e dahermenêutica é que as pessoas são “tanto escri-tores como leitores do seu próprio viver” (BOLÍ-VAR, 2001, p.88).

Para tais posições, uma das teses centrais“é entender a vida como um texto (mental, es-crito ou falado) que nos relatamos a nós mes-mos ou aos outros” (BOLÍVAR, 2001, p.89) esubmetemos sucessivamente à exegese, inter-pretação e reformulação. Sem que se partilheextensivamente o pensamento de Paul Ricoeur,sabe-se que subjacente a tais teses sobre a nar-ratividade, permanecem seus argumentos ex-planados de modo exemplar entre outras obrasem Soi-même comme um autre (1990) pela suaAutobiografia intelectual (1997).

Na perspectiva descrita e tendo presente ocaráter das relações entre memória, narrativa

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e escrita autobiográfica, no que tange às pro-duções dos professores, no ensaio “‘Minha vidadaria um romance’”: lembranças e esquecimen-tos, trabalho e profissão nas autobiografias deprofessores” busca-se dar conta de evidenciaras contribuições desses materiais para a análi-se aqui proposta (CATANI; VICENTINI,2003). Observe-se que, do exame de dois li-vros escritos por professores que terminaram asua carreira como inspetores do ensino – Me-mórias de um mestre-escola, de Felício Mar-mo (1974), e Reminiscências de um professoraposentado, de Afonso Sette (1973) – e doisde professoras que passaram a maior parte davida profissional na sala de aula: Memórias deuma mestre-escola, de Felicidade Arroyo Nucci(1985) e Uma vida no magistério, de BotyraCamorim (1962). Coincidentemente, os profes-sores aposentaram-se antes da década de 1940,ao passo que as duas professoras atuaram nosistema educacional paulista durante o mesmoperíodo – entre os anos 30 e 60 do século XX –, presenciando, dessa forma, as mudanças con-cernentes às práticas reivindicatórias dacategoria que, a partir do final dos anos 1950,passou a protestar contra os baixos salários eas péssimas condições de trabalho mediante arealização de passeatas e atos públicos que pro-curavam afirmar a imagem do docente comoum profissional (não mais um sacerdote) quedeveria ser bem remunerado.

Os escritores-professores privilegiam nes-sas obras o início na profissão e constroem qua-dros significativos de suas relações com osalunos e as comunidades onde trabalharam. Semretomar aqui o conjunto das especificidades decada uma das obras, vale assinalar que os rela-tos masculinos, publicados quase no mesmoperíodo (1973 e 1974), caracterizaram-se peladescrição de métodos pioneiros e por um certosilêncio com relação às dificuldades da profis-

são, talvez decorrente dos postos que seus au-tores alcançaram no magistério, contrastandocom as narrativas femininas que, embora te-nham reiterado a importância da profissão emsuas vidas, evidenciaram uma tentativa de in-terferir na realidade de formas distintas.

Enquanto Botyra Camorim, na obra maisantiga analisada aqui (1962), ao privilegiar adescrição dos sacrifícios que marcaram a en-trada na profissão, deixava entrever a sua in-tenção de alterar a atitude dos “maus inspetoresde ensino” e de denunciar as péssimas condi-ções de trabalho existentes nas escolas isola-das, Felicidade Nucci, cuja autobiografia foipublicada em 1985, ao constituir uma narrativarica do ponto de vista da descrição de seu coti-diano em sala de aula, buscava conformar aspráticas das jovens professoras por meio de seuexemplo e da tentativa de produzir um diálogoentre passado e presente e de, assim, conciliaro tempo da escrita com o do exercício da pro-fissão, comentando, por exemplo, a existênciade um programa de educação sexual na televi-são e recordando-se de sua atitude diante deum comportamento abusado de um aluno deoutrora.

A integração das referências a tais obras,nesse momento, busca permitir que se chame aatenção para os modos pelos quais os profes-sores-escritores ordenam suas memórias e pro-duzem assim a compreensão de suas vidas.Produzem-se peças de escrita em que eles,como representantes autorizados da transmis-são das habilidades de escrever, mas confina-dos num espaço social que os define como“servidores remotos do saber”, no dizer de al-guns, operam entre os esforços de dotar de sen-tido pessoal e coletivo o seu trabalho, detestemunhar a relevância da ação educativa ede instaurar para si uma auto-representaçãolegítima e reconhecida (a do escritor).

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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Elizabete Santana

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MOVIMENTOS E TEMAS DOMINANTESNOS PROCESSOS DE AUTOFORMAÇÃO DE A. S. NEILL

Elizabete Santana*

* Mestre em Educação pela UFBA e Doutoranda da Universidade de Barcelona. Professora Adjunta do Departamentode Educação do Campus I – UNEB. Membro do Grupo de Pesquisa Memória da Educação na Bahia. Endereço paracorrespondência: Departamento de Educação I - UNEB, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOO artigo reproduz parte do quarto capítulo da tese Autoformação: caminho,compromisso e luta dos profissionais da educação - uma pesquisa qualitativaque utiliza o método de estudo de caso e adota como fonte de informações ahistória de vida construída a partir de relatos autobiográficos. Relata asestratégias e recursos utilizados por Alexander S. Neill, fundador da escola deSummerhill, em seus processos de autoformação. Aponta os movimentos etemas dominantes na história do “pedagogo” e oferece elementos para umacomparação com a história de formação de outros professores e pedagogos.A análise é parte de um procedimento de triangulação de fontes para identificara existência de pontos de convergência, de similaridades e permanências nosprocessos de formação vivenciados por profissionais da educação, em diferentessituações e em variados contextos culturais.

Palavras chaves: Autoformação – Formação de professores – História daeducação

ABSTRACTMOVEMENTS AND DOMINANT THEMES IN A.S. NEILL’S SELF-DEVELOPMENT PROCESSES

The article reproduces part of the fourth chapter of the thesis Self-development:pathway, commitment and struggle of educational professionals – aqualitative research that uses the method of case study and adopts as sourceof information, the history of life built up from autobiographic testimonials. Itreports the strategies and resources used by Alexander S. Neill, the founder ofSummerhill School, through his process of self-development. It points outmovements and dominant themes in the history of the “pedagogue”, and offerselements for a comparison with the history of development of other teachersand educators. The analysis is part of a triangular procedure of sources whichaims to identify the existence of points of convergence, similarities, andpermanence in the development processes experienced by educationalprofessionals in different situations and varied cultural contexts.

Key words: Self-development – Teacher development – History of education

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Movimentos e temas dominantes nos processos de autoformação de A. S. Neill

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1. IntroduçãoApesar dos avanços observados nas três

últimas décadas (BROCKETT e HIEMSTRA,1991; CARRÉ, 1995; CARRÉ e MOISAN2002) ), ainda há um grande caminho a percor-rer para conhecer e explicar a autoformação.No limiar do século XXI, Brockett (2000) rea-firma a necessidade de continuar os esforçospara integrar os conhecimentos já construídossobre aprendizagem autodirigida, desenvolvernovos caminhos para mensurar autodiretivida-de e realizar estudos em uma perspectiva natu-ralística utilizando uma abordagem qualitativa.

É nesse esforço de ampliação de conheci-mentos que a pesquisa Autoformação: cami-nho, compromisso e luta dos profissionais daeducação se insere. Considerando estudos comoo de Font-Harmant (1995) e Demol (1995) to-mou como ponto de partida a suposição de queas razões declaradas, as estratégias e recursosutilizados e as circunstâncias que cercam o con-texto de vida são elementos para reconstituir aslógicas adotadas pelos professores ao empreen-derem processos de autoformação.

A preocupação com a autoformação em umaperspectiva sociológica, sem excluir as suas di-mensões pedagógica e psicológica, recomenda-va o estudo de mais de um professor. A intençãofoi investigar histórias de vida individuais paradescobrir as pautas que, de modo geral, estãopresentes na autoformação dos professores con-siderados como um grupo profissional.

Em tal propósito estava implícita a idéia deque “uma autobiografia contém, pois, elemen-tos biográficos e coletivos. Ainda que sejamexternos têm uma repercussão sobre a pessoa.São documentos de uma época, de uma situa-ção social, de um grupo ou classe social e deum gênero determinado. É a vida de muitas vi-das. (MIGUEL, 1996, p.26).

Como método, foi adotado o estudo de casodo tipo instrumental de acordo com a definiçãode Stake (1999, p. 16), uma vez que o objetivoprincipal não era a compreensão dos professo-res em si, mas ampliar o conhecimento existen-te sobre os processos de autoformação dessegrupo profissional.

A existência de pontos de convergência, desimilaridades e permanências nos processos deformação vivenciados por diferentes pessoas,em diferentes situações e em variados contex-tos culturais, foi uma preocupação desde o de-lineamento do projeto, o que implicou na adoçãode uma perspectiva de triangulação de fontes,de modo a confrontar as histórias dos profes-sores exemplares com outras histórias.

Considerando o ponto de vista sobre trian-gulação e validação de pesquisas qualitativasde autores como Stake (1999, p.94-101), foraminvestigados três grupos de casos – o das pro-fessoras exemplares, envolvendo quatro profes-soras, o das professoras de uma escolamunicipal da cidade de Salvador e o dos peda-gogos ilustres que consistiu na análise das his-tórias dos pedagogos Célestin Freinet, AlexanderA.S. Neill e Carl Rogers.

O caso dos pedagogos ilustres foi incluídono estudo com a pretensão de verificar se con-textos culturais e períodos históricos diferentesimplicam em diferenças substanciais nos pro-cessos de autoformação dos professores. Paraesse caso, os dados foram levantados em tex-tos autobiográficos ou biográficos.

Assim, a pesquisa adquiriu a característicade um estudo de casos múltiplos.

2. Fontes para a identifica-ção dos temas e movimentos do-minantes nos processos deautoformação de A. S. Neill

A história de Alexander Sutherland Neill, queserviu de base para identificar os movimentose temas dominantes do seu processo de auto-formação, foi construída a partir da sua autobi-ografia, que foi publicada originalmente em 1972,sob o título Neill, Neill, Orange Peel, quemereceu uma explicação do pedagogo.

Em uma nota introdutória redigida em 1972,data da publicação da edição inglesa, Neil conta.

Faz alguns anos, Hetney, um menino de Sum-merhill, caminhava murmurando: “Neill, Neill,Orange Peel” [Neill, Neill, casca de laranja]. Afrase teve êxito e perdurou mais de vinte e cinco

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anos. Atualmente os meninos me seguem can-tando essas palavras, e minha reação habitual éresponder-lhes: “Equivocaram-se de novo, nãoé orange peel e sim banana peel”.Parece-me que essa rima resume bem a minhavida com as crianças. (NEILL, 1976, p.9, grifo doautor).1

Neill republica sua autobiografia, aos 89 anos,cerca de 70 anos depois de ter iniciado,precocemente, a sua vida profissional comoaprendiz de professor, e 51 anos depois de tercriado, na Alemanha, a escola que dá origem aSummerhill.

Além da autobiografia propriamente dita,escrita desde 1939 e não divulgada, foram le-vantadas informações complementares no pri-meiro livro escrito por Neill, O Diário de ummestre, publicado em 1915, e em cartas publi-cadas no Times. Os referidos materiais foramincorporados à obra autobiográfica, mas cons-tituem capítulos independentes.

Trata-se de uma autobiografia marcada pormuitas recordações de infância, através das quaisNeill revela seus medos e inseguranças na idadeinfantil e na adolescência, principalmente em re-lação a seu pai, que também foi seu professoraté a idade de quatorze anos, quando deixa deser aluno para se tornar aprendiz de professorna própria escola onde estudou.

Para complementar o levantamento de in-formações foi utilizada ainda a obra O NovoSummerhill, uma compilação realizada por Al-bert Lamb, um ex-aluno de Neill.2

3. Os movimentos e temasTodos esses materiais permitiram usar a pró-

pria voz do pedagogo para compor a sua histó-ria do nascimento, em 1883, até o ano de 1924,quando se instala em Summerhill. A partir des-sa história, foram identificados três amplosmovimentos que caracterizam o processo deautoformação de Neill.

O primeiro grande movimento é mar-cado pelo cultivo de um sentimento de in-sucesso escolar e nele se destacam os seguintesmovimentos menores:

a) Movimento de fragmentação da for-mação escolar e insucesso na infância e naadolescência. Durante a infância, Neill tevedificuldades em avançar na escola, causandodecepção aos pais que eram professores e va-lorizavam o sucesso escolar.

Aos quatorze anos, em razão dos seus fra-cassos e das finanças da família, que sofriamas conseqüências da manutenção do irmão maisvelho na Universidade de San Andrés, é afas-tado da escola para assumir um emprego longeda casa dos pais, em Edimburgo, cidade distan-te de Kingsmuir, onde vivia.

Aí trabalha em uma fábrica de medidoresde gás e mora com o irmão de dezesseis anos,que também trabalha na cidade. Sofre pelo afas-tamento de casa e de seu grupo de amigos.

Muitos anos depois, declara: “Pela primeiravez em minha vida conheci a nostalgia. Dedi-quei-me a escrever cartas cheias de queixas aminha família, até que finalmente minha mãechegou e permaneceu dois dias”. (NEILL, 1976,p. 58).

Após sete meses, a família permite a suavolta para casa, onde junto com o irmão come-ça a estudar com a orientação do pai para pres-tar exames e ingressar na administração pública.Neill considera que “Comparado com o infernode Edimburgo, estudar todo o dia em Kings-muir me parecia o paraíso (...). Porém a histó-ria se repetiu: Não podemos nos concentrar”.(NEILL, 1976, p.58).

Depois de novo fracasso, é obrigado a as-sumir um segundo emprego no pequeno comér-cio de Forfar, próximo a Kingsmuir.

Eu odiava o negócio da venda de tecidos.Permanecia de pé desde as sete e meia da manhãaté as oito da noite, depois devia percorrer trêsquilômetros de volta para a casa. Como usavabotas pesadas, a articulação dos dedos (...) dopé inflamaram e gradualmente enrijeceram(estado em que se encontram atualmente). Meusdedos pioraram tanto que tive de abandonar o

1 É nossa a tradução das citações retiradas das obras para asquais foram utilizadas edições em língua estrangeira.2 A escola de Summerhill ainda se encontra em funcionamen-to e atualmente é dirigida por Zoe Neill, filha de Neill. Paramais informações ver http://www.summerhillschool.co.uk/

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emprego. Fiz isto com alegria e garanti a meu paique tinha tomado juízo e me escravizaria parapreparar os exames para a administração pública.....O antigo problema surgiu de novo. Minhaconcentração não havia melhorado nada e, pelaterceira vez, meu pai se desesperou. (NEILL, 1976,p. 59-60).

Como uma forma de compensar os seus fra-cassos e a sua falta de inclinação para os estu-dos, a família providenciou a sua aceitação comoaprendiz de professor na escola que seu pai di-rigia, a mesma onde estudou.

Essa decisão significou o afastamento deNeill da escolarização formal e resultou em umamágoa que ele expressa várias vezes em tre-chos como esse:

Com toda franqueza ainda não sei por que envi-aram todos os meus irmãos à Academia. Clunieera sagaz [esperta, perspicaz], porém não rece-bia prêmios na escola, e minhas outras irmãs nãofizeram nada academicamente importante.

Só eu comecei e terminei a escola em Kingsmuir.Isto foi uma desgraça, porque permaneci pordemasiado tempo vinculado a meus antigos ami-gos e me impediu de confrontar [de considerarcomo igual] os rapazes mais refinados de Forfar;(NEILL, 1976, p. 22).

Os constantes fracassos de aprendizagem,o reconhecimento do desagrado que a sua faltade inclinação para os estudos causava aos pais,as discriminações que sofria em relação aos ir-mãos e os castigos físicos produzem sentimen-tos de insegurança, de medo e de falta de afetoem relação ao pai.

Neill cultiva durante a infância, a adolescên-cia e juventude um sentimento de incapacidadede aprender.

Internalizou um sentimento de permanenteinsucesso escolar, que se torna evidente quan-do encerra a reflexão sobre a sua falta de aces-so à academia, dizendo: “porém a academia nãoteria contribuído muito para a minha educação,pois, seguramente, eu ocuparia os últimos luga-res em todas as classes”. (NEILL, 1976, p. 22).

b) Movimento voltado para o exercíciode atividades de ensino, como aprendiz deprofessor, sem um sentimento de implicação

com a profissão docente - Aos quinze anos,Neill começa a sua aprendizagem de profes-sor em uma escola multisseriada, que descre-ve assim:

… a escola de Kingsmuir era um edifício de doiscômodos que se dividia em duas salas de aulas,uma grande e outra pequena. Na sala grande meupai ensinava aos alunos, desde os do quartograu até os que haviam passado ao sexto ano. A‘senhorita’ ensinava aos menores na sala menor.(NEILL, 1976, p. 23).

Como aprendiz do pai, vai trabalhar, portan-to, na sala dos alunos maiores.3 E, pelo quedescreve nesse período, teve sobretudo a vi-vência do manejo de uma classe multigradua-da, da condução de atividades diferenciadas paracada um dos graus e da colaboração dos alu-nos mais adiantados na gestão dos trabalhos nasala de aula (p.13).

Neill mantém-se em contato com a práticapedagógica do pai, como aluno, na infância epré-adolescência e, entre os 15 e os 19 anos,como aprendiz de professor.

Assim, essa foi a única prática que conhe-ceu durante uma boa parte da sua vida. ParaNeill, nesse período, aprender é reproduzir aforma de ser professor a partir da prática deseu pai. Não há referências a contatos indivi-duais ou grupais com colegas e com outros pro-fessores durante a fase de aprendiz de professor.As lembranças da época de aprendiz se perde-ram (Figura 1). O pedagogo escreve:

Não recordo bem minha época de aprendiz deprofessor, porém, nas fotografias dos gruposescolares, apareço de pé, muito rígido e com umcolarinho duro muito alto. Minha posição era

3 De acordo com Neill, segundo as normas vigentes, o apren-diz de professor podia submeter-se a um primeiro exame,junto ao inspetor escolar, depois de dois anos de trabalho.Ao final de quatro anos, o aprendiz podia fazer um examepara ingressar na Escola Normal. Se era aprovado, com umaqualificação de primeira classe, passava automaticamente aser um normalista e estudava dois anos em Glasgow ou emEdimburgo. Quando havia vagas suficientes, o aprendiz queobtinha uma qualificação de segunda classe também podiafreqüentar a Escola Normal. Uma qualificação de terceiraclasse impedia totalmente de ter acesso à Escola Normal eimpossibilitava a ascensão na carreira. Ao final de quatroanos como aprendiz, Neill obteve uma qualificação de ter-ceira classe, causando uma nova decepção ao pai.

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difícil porque devia estar ao lado da autoridadequando ainda não tinha superado meu desejo

Como um fator que interfere na recorda-ção, deve-se considerar o medo do pai, que sen-tia na vida familiar e escolar, e que tambémesteve presente em toda a sua trajetória deaprendiz, como revela o trecho abaixo.

Para mim, é difícil lembrar esta época da escola,porém devia dar aulas para ajudar a papai,porque recordo que ensinava a pequenosgrupos de meninos e meninas a ler mediante ométodo de ‘mirar e dizer o nome’ [sem olharnovamente]. Descobri que a melhor maneira deaprender é ensinar, (...). Creio que aprendi bemminha profissão porque imitei a meu pai e eleera um bom professor: sabia fazer o aluno pensare não só enchê-lo de conhecimento. Eu aindanão conseguia agradar a meu pai, que se sentiainclinado a tratar-me mais como um aluno doque como aprendiz de professor. Embora nãome castigasse fisicamente diante dos meusalunos, eu ainda tinha medo. (NEILL, 1976,p.60).

Além da construção de uma forma de serprofessor pela imitação dos aspectos mais

Figura 1. Neill em sua fase de aprendiz de professor.Fonte: Disponível em: http://www.summerhillschool.co.uk/pages/photo_gallery.htmlAcessado em: 22 jan. 2005

de brincar. Meu papel era de um jovem rapaz quesimulava ser homem. (NEILL, 1976, p.61).

positivos da prática pedagógica do pai, tam-bém vão sendo construídos, pela reprodução,sentimentos e procedimentos que ele só con-segue abandonar ou minimizar muitos anosdepois. Entre esses, estão a prática do casti-go físico e o medo do inspetor constantementerelembrados.

Em geral, pode-se dizer que era uma escola feliz.Às vezes meu pai usava o cinturão, em especialquando se irritava com os tontos [com dificulda-des de aprendizagem], porque seu salário depen-dia do número de estudantes de quinto ano queconseguiam passar de curso (...). À medida quese aproximava o dia da chegada do inspetor, meupai se sentia cada vez mais descontente, os gol-pes [físicos] se tornavam mais freqüentes e maisfortes. Por medo de ser acusado de favoritismo,castigava a seus filhos tão severamente quantoaos outros meninos, e eu recebia mais castigos(...). Por chamar-me Neill, devia manter-me longedos meninos maus. (NEILL, 1976, p. 23).

Mais de cinqüenta anos depois, em uma car-ta ao TIMES, datada de 6 de janeiro de 1967,

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Neill afirma: “Meu pai tinha quatro grupos [alu-nos de diferentes graus] em uma sala. Aprendimeu ofício observando como ensinava. Apren-di o sistema com todos os seus defeitos e virtu-des. Freqüentemente me pergunto se com umtítulo teria sido um professor melhor”. (NEILL,1976, p.358).

Um segundo movimento corresponde àadoção de uma postura de autoformação ain-da distanciada de uma intenção diretamen-te relacionada com o aperfeiçoamento dasatividades de professor. Percebe-se, então:

a) Um movimento de construção de umaforma de ser, envolvendo a aprendizageminformal de conhecimento intelectual e cul-tural e de habilidades de convívio social.Trata-se de um movimento amplo que tem iní-cio no período de aprendiz de professor – entreos quinze e os dezenove anos, ou seja, de 1898a 1902, e continua posteriormente.

Deste movimento fazem parte outros inicia-dos ainda durante a infância e que se mantive-ram ao longo de sua vida ou em uma boa partedela.

b) Internalização de um sentimento deincapacidade de aprender e mágoa por serexcluído da escolarização formal.

Vários trechos da autobiografia demonstramo reconhecimento do próprio fracasso escolare um sentimento de exclusão em relação aosoutros irmãos em vários aspectos da sua vida.A importância que ele mesmo atribuía a essefracasso aumentava diante do valor que seuspais atribuíam à escola como fator de promo-ção social. Segundo Neill, seus pais usaram aescolha da profissão de professor como estra-tégia para fugir da condição social que afetavasuas famílias.

Todos meus tios trabalharam nas minas decarvão, mas meu pai era feito de um barro maisfino. Gostava de estudar e lhe enviaram para quese tornasse aprendiz de professor (...)Minha avó (...) trabalhou como empregadadoméstica (...). Não sei como minha mãe, suaúnica filha, se meteu a professora. Isso deve tersignificado tremendos sacrifícios para a avó.Meu pai e minha mãe ensinavam na mesma

escola em Leith e ficaram noivos. (NEILL, 1976,p. 13).

Tendo usado o estudo como estratégia paramudar a sua condição, desejavam para Neill eseus outros filhos mais do que eles mesmos ti-nham alcançado.

A Academia de Forfar era o degrau para chegarao ensino superior. Para meu pai, progredir navida significava avançar nos estudos.Devíamos ser profissionais e Willie [o irmão maisvelho] nos indicava o caminho. Na Academia foio primeiro em sua classe na maioria das matériase recebeu uma medalha de ouro (...). Quandochegou a minha vez de ir para a Academia, seabstiveram de enviar-me. De toda a família só eunão freqüentei a Academia. A triste verdade éque teria sido inútil enviar-me para lá porquenaquela época eu não poderia aprender nada.(NEILL, 1976, p. 21).

Diante desta e de outras exclusões, Neill vaicultivando um sentimento de inferioridade e defalta de crença em suas possibilidades de apren-der. Também ia articulando essa incapacidadeaos maus tratos que recebia, especialmente, doseu pai.

Sua baixa estima por si mesmo e sua ex-pectativa de reconhecimento dos pais ficamexpressas em frases como esta: “Minha inca-pacidade de aprender latim enojava a meu pai;e minha impossibilidade de memorizar duas li-nhas de um salmo causava a minha mãe maistristeza do que desgosto”. (NEILL, 1976, p. 24).

c) Movimento de desvalorização da pro-fissão docente exercida no meio rural e cul-tivo de um esnobismo, que segundo elemesmo, foi herdado da mãe.

Ser professor em uma pequena cidade oupovoado não era uma profissão valorizada nafamília de Neill. Isso é evidente nas reaçõesdos pais, quando reconhecem a sua impossibili-dade de se preparar para o exame de acesso aum emprego na administração pública:

- Esse menino não tem remédio – afirmoumeu pai com tristeza.

- Poderia ser professor – se aventurou a di-zer minha mãe.

- Só serve para isso – afirmou meu pai tris-temente e sem sorrir. (NEILL, 1976, p. 60).

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Em conseqüência, os quatro anos de apren-dizagem representam um castigo a mais. Nãofuncionam como iniciação profissional. E pare-cem ser considerados como uma experiênciaque deveria ser deixada para trás. Sobre essemomento da sua vida, Neill escreve: “Por en-quanto, minhas ambições pareciam estar laten-tes. O futuro não existia, possivelmente porquenão me atrevia a contemplar o futuro de ummestre sem êxito nem esperanças de melhorar.Esqueci o que sonhava por esta época”. (NEI-LL, 1976, p.65).

No capítulo da sua autobiografia - Em bus-ca da sociedade e da cultura -, ele descreveas estratégias que utilizou para completar a suaformação cultural e para desenvolver as habili-dades requeridas no convívio social. Eram es-tratégias destinadas a permitir sua inserção emum outro grupo social.

Como filhos de professores, nossa posição so-cial era baixa e as boas famílias de Forfar não nos‘conheciam’. Além do mais, não tínhamos dinhei-ro, nem podíamos dar festas ou assistir a atossociais. Compreendíamos que nos consideravamestranhos. Isso não importava a Willie e a Neilie[irmãos], porque não eram esnobes (...). Eu eramais ambicioso. (NEILL, 1976, p.62).

Junto com seu irmão Neilie, entra para umclube de Artes Gráficas:

… o que era conveniente para Neilie, porque re-almente era um artista, e a mim, porque poderiaser útil como possível porta de acesso à socie-dade (...). Uma dama do clube se interessou pormim. Ela e suas irmãs se portaram com muitaamabilidade. Convidaram-me a sua casa (NEILL,1976, p.62).

Assim, aprende as boas maneiras e come-ça a escutar a música clássica: “Chopin e Schu-mann, primeiro porque era sinal de bom gosto,porém, logo depois, porque a música me produ-zia prazer. Não me lembro de ter aprendidomuito de outros temas culturais. Quando semencionavam livros na conversação ficava emsilêncio para não mostrar minha ignorância”.(NEILL, 1976, p. 63).

Tenta aprender piano sozinho para corrigirmais uma exclusão a que fora submetido pelafamília. Quanto a isto, comenta: “Todos os meus

irmãos tinham sido enviados para estudar mú-sica (...). Por que só eu não recebi ensino mu-sical? Não sei”.(NEILL, 1976, p 63).

Aprende matemática com:

Ben Thomson, professor de matemática da Aca-demia [de Forfar] e, depois, seu reitor. Quandome deu lições particulares, me infundiu um ge-nuíno amor à matéria, o que explica porque per-tenço a essa estranha raça que pode resolverproblemas algébricos e geométricos enquantoviaja de trem. Ben era um amigo fiel. Me deugratuitamente a maioria das lições e mais tardeme ajudava pelo Correio quando eu tinha difi-culdades com a matéria. (...). Em sua época, aAcademia de Forfar produziu muitos matemáti-cos brilhantes. (NEILL, 1976, p.64).

Portanto, ao lado das aprendizagens sociaishá também a ampliação do conhecimento emáreas específicas, como é o caso da matemáti-ca. Isso indica um movimento de preparaçãopara os exames a que os aprendizes deveriamsubmeter-se para progredir na carreira de pro-fessor.

d) Continuidade e expansão das apren-dizagens informais, avanço na carreira deprofessor e aspiração por uma formaçãouniversitária, apesar da indefinição profis-sional.

Após os quatro anos como aprendiz de pro-fessor, Neill realiza sucessivos exames e ob-tém o título de professor certificado. Sai daescola de Kingsmuir, vai ensinar em Kinskettle,próximo a Edimburgo onde permanece trêsanos, depois para Newport, um subúrbio deDundee, onde ensina até o ano de 1908.

Durante esse período, continua as aprendi-zagens informais sobre o sistema de ensino nasescolas onde ensina, especialmente sobre a ti-rania dos diretores. Encontra novos mestrespara a aprendizagem de habilidades sociais epara as aprendizagens de disciplinas específi-cas Em Kinskettle aprende grego com o pas-tor local, pensando em preparar-se paraingressar no clero.

Da experiência em Newport diz:

Newport me oferecia a oportunidade de realizarmeus sonhos mais esnobes. Em Forfar e em to-das as partes, meu nível social havia sido fixo;

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porém em Newport percebi que Willsher [Diretorda escola] e os outros professores eram bem re-cebidos pelos cidadãos ricos, e até um ex-apren-diz de professor sem título universitário, comoeu, podia entrar na boa sociedade. Nessa época,eu já tinha me submetido ao exame final e tinhaum certificado de professor. Isto explica porqueganhava 100 libras por ano (...). Em Newport,como disse, me relacionei com a alta sociedade.Aprendi a comportar-me como um cavalheiro etambém a dominar todos os truques inúteis queestão inclusos na expressão boas maneiras. (NEI-LL, 1976, p.72, grifo nosso).

Amplia seus horizontes e se beneficia dasatividades culturais existentes nesses locais maisbem dotados do que o povoado de Kingsmuir,onde vivera até os dezenove anos.

Aprende a dançar, vai ao teatro, à opera, as-siste a concertos. Sobre esse período, afirma:

... e pouco a pouco consegui uma vida socialsatisfatória, graças à família Leng. (...) Por fim,havia alcançado minha desejada ambição: mo-ver-me no círculo da alta sociedade (...). Sentia-me bastante contente com a minha vida social,porém também progredia culturalmente. HenryWillsher, o diretor da escola, se converteu emmeu guia musical. Além de ser inteligente, escre-via crítica de música para um periódico de Dun-dee. (NEILL, 1976, p. 74).

Esse foi um período de expansão de experi-ência, de novos contatos e da decisão de tentaruma carreira universitária.

Estava decidido a ingressar de alguma maneirana Universidade. Durante minha estadia emKettle [Kinskettle], havia estudado muito, e umamanhã fui de bicicleta até San Andrés para fazera primeira parte dos exames que consistiam emduas matérias: inglês e matemática. (...) Depoisestudei latim e física para submeter-me aosegundo exame. (NEILL, 1976, p.72).

Em 1908, foi admitido na Universidade. Estácom 25 anos. Desliga-se do ensino para estu-dar e pretende manter-se, por um tempo, comas economias feitas especificamente para essefim. Entretanto, não tem idéia da carreira quedeve escolher. Por sugestão do pai, decide cur-sar Agronomia.

e) Distanciamento das atividades de ensi-no e experiência profissional em outras áreas.

Um ano depois de ter iniciado o curso deAgronomia, decidiu cursar Língua Inglesa e aípermaneceu. Com dificuldades para se man-ter, apesar da bolsa que conseguiu, Neill con-cluiu o curso universitário, em 1911, aos 28anos.

Não ensina durante todo esse tempo. En-volve-se no jornalismo, passando a ser editordo jornal universitário - The Student. Essa fun-ção facilita a sua participação em eventos cul-turais e sociais, sem custo para ele, quecomenta: “Editar a revista, de certo modo, foiuma educação liberal. Tive que aprender de es-paços entre linhas, ler provas e conhecer ou-tros aspectos técnicos da impressão. Minhaposição me deu certo prestígio entre os estu-dantes, e pude conhecer homens interessantes”.(NEILL, 1976, p.85).

Também escreve seus primeiros ensaios li-terários para o periódico The Glasgow Herald.

Não foi um aluno brilhante: “Durante omeu último ano usei todo o meu tempo e inte-resse para editar The Student (...) Obtiveuma qualificação de segunda, e fiquei muitoagradecido”.(p.86).

Ao fim do curso, permanece a indecisãoquanto à escolha das atividades profissionais eNeill confessa: “Só sabia que não desejavaensinar: pensar que toda minha vida seria pro-fessor de inglês em uma academia ou escolasecundária provinciana me fazia tremer. Setudo o demais falhasse o ensino seria meuúltimo recurso”. (NEILL, 1976, p.87, grifonosso).

Deseja continuar trabalhando na área de jor-nalismo. Então, em 1911, trabalha na edição deuma enciclopédia, em Edimburgo. No ano se-guinte, é transferido para Londres: “Eu tinhavinte e nove anos e não havia cruzado a fron-teira da Escócia. Viver em Londres me pare-ceu maravilhoso e inevitável”.(p. 88). Lácontinua envolvido com a redação de livros deconsulta e revista.

A guerra de 1914 interrompe essas ativida-des, e Neill volta a Kingsmuir, sua terra natal,dizendo-se muito perturbado. Naquela época,tinha uma flebite que lhe causava problemas delocomoção.

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A guerra oportuniza a vivência de um ter-ceiro movimento caracterizado como deconstrução consciente de uma forma de sereducador e, portanto, de adoção de uma pos-tura de autoformação voltada para o aper-feiçoamento da sua atividade docente.

Trata-se de um período aproximado de 10anos que começa quando Neill, ainda em 1914,se torna diretor substituto de uma escola, “natranqüila aldeia de Gretna Green”.Ali ele iniciaum movimento deliberado de reflexão sobre oensino e a educação, que culmina com a insta-lação da Escola de Summerhill, em 1924, naInglaterra.4

Fazem parte desse amplo movimento os se-guintes movimentos menores:

a) Um movimento de observação e refle-xão sobre a prática de sala de aula estimu-lado por desafios à sua própria prática epor condições que cercam o seu local de tra-balho.

Na aldeia de Gretna Green, ele encontra pelomenos quatro condições que o estimulam a re-alizar uma observação sistemática da sua prá-tica e das reações dos seus alunos. A primeiracondição tem a ver com a mudança de residên-cia. Relembrando a experiência, diz: “Hospe-dei-me em uma pequena casa rústica. Quandominha proprietária me levava a vela de parafi-na à noite e fechava as persianas da pequenajanela, eu me sentia isolado de todo o mundo(...) Creio que comecei a escrever livros paranão ficar louco”. (NEILL, 1976, p. 94).

Portanto, ao trocar Londres, onde tem umavida social intensa, por uma escola de aldeiadepara-se com momentos de solidão e quie-tude.

A segunda condição correspondeu à vivên-cia de uma situação de confronto com as práti-cas de trabalho em sala de aula, que tinhareproduzido até aquele momento. Em seu diá-rio, revela:

Meu predecessor tinha sido partidário da disci-plina, e, quando cheguei, a escola se mostravasilenciosa e obediente; porém sabia que os me-ninos maiores me vigiavam cuidadosamente paraver até onde podiam chegar. Eu os mirei o maisseveramente que pude; e, ao segundo dia, quan-

do o maior respondeu com certa insolência, dei-lhe golpes com o meu cinturão. Ainda acredita-va no antigo refrão da profissão: a letra comsangue entra. (NEILL, 1976, p. 94).

Esse incidente provoca a necessidade de vera sua prática com um olhar diferente do quetinha utilizado até então. E em toda a sua traje-tória anterior, nada demonstra que tenha reali-zado esse movimento com tal sistematicidade.Por isso, reconhece: “Sem dúvida, comecei apensar na educação pela primeira vez em Gre-tna”. (NEILL, 1976, p. 94).

A terceira condição está relacionada com aredução do controle sobre o seu trabalho deprofessor pelas autoridades educacionais dolugarejo. Neill ressalta que:

À Junta Escolar não importava muito o que eufazia. Alguns dos seus membros se tornarammeus amigos pessoais; o pastor Stafford, DickMac Dougall, o encarregado da Junta e suasesposas se portaram muito bem comigo. Segundoa opinião geral dos habitantes do povoado, euera um tipo agradável, porém meio louco. (NEILL,1976, p. 95).

Além disso, ainda que temporariamente, é odiretor da escola e dentro dela está livre paratrabalhar.

A quarta condição é, de certo modo, umahipótese extraída da leitura de sua autobiogra-fia e do próprio texto onde descreve as refle-xões relativas à experiência de Gretna Green.E diz respeito ao fato de que, durante o decor-rer dessa experiência, Neill talvez ainda consi-derasse o magistério como sua última opção.Daí porque, não se sentindo definitivamentecomprometido, encontra-se livre para agir comopensava. De fato, no decorrer dos dois textos,a autobiografia e o diário, não há referência afatos significativos que pudessem indicar umaopção definitiva pelo magistério.

4 Em alguns textos o ano de 1921 é indicado como data decriação de Summerhill. Entretanto, Neill registra os fins de1924 como data de instalação da escola em uma casa cha-mada Summerhill. Evidentemente que a escola criada em1921, em Hellerau, um subúrbio de Dresden, na Alemanha,tendo como sócios, nas palavras do próprio Neill, “doctorOtto Neustatter, e sua esposa, Frau Doktor”, é precursorade Summerhill, mas ainda não corresponde exatamente àproposta que Neill defende e coloca em prática, depois (VerNEILL, 1976, p. 115- 122.).

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É preciso não esquecer que a própria reto-mada da atividade de ensino se apresentavacertamente, naquele momento, como algo pas-sageiro, imposto pela emergência da guerra.Não se tratava de uma opção definitiva.

Existe, portanto, na experiência de GretnaGreen, um movimento de articulação das diver-sas experiências e saberes aprendidos ao longode toda sua trajetória para construir e experi-mentar soluções alternativas. No livro que regis-tra suas reflexões, Neill descreve as soluçõesque vai adotando para trabalhar os conteúdos deaprendizagem e para se relacionar com o aluno.É evidente que elas nascem de suas vivênciasdentro e fora da escola, como aluno e como pro-fessor, e também das diversas atividades reali-zadas como jornalista, paralelamente a sua vidauniversitária e, posteriormente, na edição de en-ciclopédias, livros de consulta e revistas.

b) Movimento de registro sistemático daexperiência com ênfase na reação dos alu-nos e nos sentimentos do professor na esco-la de Gretna Green.

Desse registro resulta a obra Diário de umMestre, publicada em 1915, cuja repercussãodeve ter significado para Neill um estímulo paraprosseguir no caminho iniciado em Gretna Gre-en, até chegar à criação da experiência de Sum-merhill (Ver Figura 2).

Nessa obra já se encontram os elementosbásicos relativos à concepção de professor, re-lação entre aluno e mestres, disciplina escolar,conteúdos de aprendizagem, etc. que iriam serlevados em conta na organização do trabalhoescolar em Summerhil.

A experiência de Gretna Green representouuma ruptura com experiências que contribuíampara uma reprodução das práticas tradicionaise para uma não implicação com o ensino. É apartir daí que Neill procura conhecer e partici-par de experiências educacionais que se con-trapõem à sua vivência anterior.

Tudo indica que outros elementos e influên-cias relacionados com os aspectos pedagógi-cos e com a forma de organização da escola deSummerhill vão sendo recolhidos, posteriormen-te, nas experiências vivenciadas junto a Russe-ll, na escola King Alfred, entre 1919 e parte de

1920; na edição da revista New Era, junto aBeatrice Esnor, em 1920; em seus contatos comHomer Lane e na experiência que vive na Ale-manha, quando cria com outros sócios umaEscola Internacional, entre 1921 e 1923.

c) Movimento de aspiração por encon-trar emprego em experiências educacionaisconsideradas por ele como compatíveis comas suas concepções

A reflexão realizada em Gretna Green e a re-percussão do seu primeiro livro acompanham opedagogo e parecem ter despertado ou alimenta-do o desejo de permanecer no ensino. Aprovei-tando contatos realizados em razão do livroDiário de um Mestre, ainda quando se encontra-va no exército, convocado para a guerra de 1914,Neill procura uma possibilidade de emprego pri-meiro junto a Homer Lane que foi Superintenden-te da Little Commonwealth, uma comunidadeonde desenvolvia um trabalho educacional comcrianças delinqüentes, adotando a psicologia e idéi-as de Freud sobre o inconsciente.

Após o desligamento da vida militar, por pro-blemas de saúde, Neill deseja aproximar-se dasexperiências que são compatíveis com as suasconcepções e relata: “Meu primeiro ato, quan-do me senti recuperado, foi escrever a Laneperguntando-lhe se podia ir visitá-lo. Respon-deram-me que a Commowealth estava fecha-da e que Lane estava enfermo em Londres”.(NEILL, 1976, 106).

Neill procura, então, Russell, Diretor da Es-cola King Alfred, sobre a qual escreve:5

Desde o princípio gostei da Stimmung da esco-la; me impressionou sua disciplina livre e fácil,não me agradava a sala dos professores e, (...)Vagamente, comecei a compreender que estavaem uma escola cuja atitude para a vida era fun-

5A escola King Alfred foi criada em 1898, como protestocontra a educação da época. John Russell foi seu segundodiretor. A escola foi organizada com base na ideologiaracionalista e nos ensinamentos de teóricos como Pestalozzi,Herbart, Herbert Spencer, e Louis Compton Miall. Sua pro-posta contemplava, dentre outros, os seguintes princípios:Co-educação; escola laica; cooperação entre pais e profes-sores; não atribuição de prêmios, recompensas e notas nacompreensão de que o aprendiz deve ser encorajado porseus próprios interesses

( h t t p : / / w w w . a i m 2 5 . a c . u k / c g i - b i n / f r a m e s /browse2?inst_id=72&coll_id=7212&expand - Acessado em30 de maio 2005).

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1. Não gosto da disciplina estrita, porque creio que a criança deva ter o máximo de liberdadepossível. Desejo que as crianças sejam humanas, e eu também trato de sê-lo. [...] Se oDepartamento Escocês de Educação desaparecesse, eu me tornaria pior disciplinador doque o que sou agora. [...] Creio na disciplina, porém só na disciplina que o indivíduo se impõea si mesmo. Não aprendi nada que me forçaram a estudar (p.266).

***

2. Sem dúvida, creio firmemente que o ensino da religião não é meu dever. Se os sacerdotesganham bom salário por cuidar de seu rebanho, porque devo cuidar das almas? Não seriacapaz de fazê-lo. Só pretendo ensinar as crianças como viver; é possível que esta seja averdadeira religião (p. 281).

***

3. Se mencionasse o sexo em minha escola, me demitiriam imediatamente; porém se filantropome oferecesse uma escola particular para dirigi-la a meu gosto, poderia incluir o tema sexoem meu plano de estudo (...) Aos nove anos de idade meus alunos se entrevistariam com ummédico. Aprenderiam que o pudor é principalmente um resultado acidental da invenção daroupa. Pouco a pouco começariam a compreender que o sexo é um fato normal da vida. Emresumo, o reconheceriam como algo saudável ( p.286).

***4. Não usei o chicote durante várias semanas. Espero não voltar a empregá-lo. Descobri ummenino fumando. Faz quatro anos eu o teria levado à escola e o teria açoitado. Em troca,hoje lhe falei assim: ‘José, eu também fumo, e em tua idade fumava ocasionalmente umcigarro Woodbine; entretanto isto não é conveniente para um menino. Espero que não adquiraso hábito de comprar cigarros’.Sorriu e me confessou que realmente não gostava de fumar; havia feito só por diversão. Jogouo cigarro por cima de uma parede (p.298).

***5. Muitos pais ficaram incomodados porque renunciei a aplicar castigos (...). Descobri queme encontro do lado dos meninos. Sou contra a lei e a disciplina e estou a favor da liberdadeda ação (p.299).

Fonte: Neill, Alexander S. Diário de un Maestro. In: _____. Autobiografía. Neill! Neill! Oran-ge Peel!. 1. ed. em espanhol. Tradução: Carlos Valdés Vazquez. México/ Madrid: Fondo deCultura Económica, 1976. P.263-337.

6 Livro escrito por Neill, publicado em 1915 e no qual os princípios que adota na experiência de Summerhill já estavamdelineados.

Figura. 2. Trechos do livro Diário de um Mestre 6

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damentalmente aquela que havia arruinado aminha própria vida, na Escócia: inspirada pelasnormas morais do exterior. (...) Comecei a tratarde ‘melhorar’ a escola nas reuniões dos profes-sores. Queixava-me de que a escola não funcio-nava de acordo com a época. Devia ter umautogoverno. O querido J. Russell estendeu suasmãos e me disse com seu sorriso habitual: ‘Avan-te, Neill. Tente, tente’.

Tentei. Os alunos saíam de uma sala para outraquando tocava a campainha. O grupo Beta tinhaaulas de matemática no primeiro período, e logose dirigiam para a minha sala para tomar aula degeografia, quando a campainha tocava. (...). Naprimeira reunião, os professores afirmaram queevidentemente o autogoverno não servia. Issoera verdade. Com certeza ‘funcionava’. Certo dia,J.R. chegou e, muito triste, me disse: ‘Neill um denós dois deve renunciar’.

Uma vez mais fiquei sem emprego. (NEILL, 1976,p 106-108).

d) Participação em movimentos interna-cionais de educação e contato com idéias epropostas educacionais renovadoras e pro-gressistas

Embora Neill em sua autobiografia não façareferências às repercussões sobre o seu pensa-mento e idéias, entre 1919 e 1923 esteve em con-tato com defensores de idéias progressistas erenovadores entre os quais se encontrava Beatri-ce Esnor, que teve participação ativa em várioseventos do movimento da educação nova.7 Asatividades realizadas junto a Beatrice Ensor abrema oportunidade de Neill se lançar no cenário inter-nacional, no período que corresponde aos anos de1921 a 1923.

A senhora Beatrice Ensor me ofereceu um empre-go para que editasse junto com ela The New Era.

Era divertido editar um periódico. A senhora En-sor me dava liberdade para escrever; logo perce-bi que quanto mais atacava aos pedantes e asescolas, mais contente ela ficava (...) era umaorganizadora inata e graças a ela fui à Holandaaquele mesmo ano para receber a umas criançasaustríacas que vinham à Inglaterra depois daguerra. Foi minha primeira viagem ao ContinenteEuropeu e passei dez dias muito interessantesna Holanda (...). O trabalho era agradável, porémThe New Era não parecia estável; sabia que de-

via procurar outro emprego. Por sorte, recebi umconvite para tomar parte em um Congresso Edu-cativo em Calais. [do qual Beatrice participa ati-vamente]. (NEILL, 1976, p.115)

Pouco depois, recebe um convite para pro-ferir uma Conferência no Congresso Internaci-onal de Mulheres em Salzburg, na Áustria. Vaia Alemanha onde funda, com outros sócios, aEscola Internacional, em Hellerau, um subúr-bio de Dresden; na mesma época faz contatocom Stekel com quem realiza sessões de psi-canálise, em Viena.

Neill registra a experiência descrevendo suasimpressões e sentimentos:

A Alemanha me ofereceu muitas coisas que nãopodia obter em minha pátria. Vivi ali quase trêsanos (...). Conheci cidadãos de quase todos ospaíses europeus e diariamente aprendi algo.Minha estadia em Hellerau resultou no períodomais divertido da minha vida. Só o sistema deeducação alemã não me ensinava nada. Parecia-me estéril, vazio, pedanteria disfarçada deprogresso (...). Ajudou-me a ter (...) umacosmovisão e a destruir meu nacionalismo,tornou-me internacional. A experiência me fezhumilde. Eu tinha título de professor de LínguaInglesa, porém devia manter silêncio, enquantooutras pessoas conversavam sobre arte, músicae filosofia. Sentia-me inculto, do mesmo modocomo me sinto hoje em dia, quando se fala destasmatérias. A educação universitária não me serviumuito. (NEILL, A.S., 1976, p. 115 - 120).

O pedagogo reconhece a influência de Ho-mer Lane em sua obra, entretanto não deixaclaro em sua autobiografia o peso que as de-mais experiências teve em sua concepção daescola e do ensino.

7 Pertencia à Sociedade Teosófica Britânica e foi fundadora,com educadores progressistas e pensadores liberais, da NewEducacional Fellowship, organização que se tornou inter-nacional a partir de 1966, com o nome de World EducationFellowship. Participou ativamente, em 1921, do Congres-so de Calais e da criação da Liga Internacional para a Educa-ção Nova, que dirigiu juntamente com Ferrière e ElizabethRotten. Também participou da criação da Revista da Liga,sendo responsável, com Alexandre S. Neill, da edição ingle-sa, The New Era. (CAPITANESCU, [entre 1993 e 2005];VELLAS, 2002). Fundou, em 1925, em Letchworth, naInglaterra, junto com Isabel King, a Escola Frensham Hill,atualmente Frensham Heights, cuja proposta contemplavaa co-educação. (http://www.frensham-heights.org.uk/ethos/history.html . Acessado em 10 fev. 2005).

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Quanto a Lane, Neill registra as seguintesimpressões de sua visita realizada em 1917.

Homer Lane foi a personalidade mais impressionan-te que eu conhecera. Contou-me suas experiênciasenquanto eu o escutava extasiado. Seus jovens de-linqüentes me fascinaram, e obtive a promessa deLane de que me permitiria trabalhar em Little Com-monwealth quando terminasse meu serviço militar.Lane me falou de seus alunos, os adolescentesmais rudes que pôde encontrar nos juizados paramenores. Tudo era incrível! ladrões e ratos cura-dos mediante a liberdade e o autogoverno! Não,seguramente não podia ser assim. Quando final-mente conheci a esses jovens, comprovei queLane não exagerava (...). Lane me mostrou o ca-minho, e isso sempre reconheci. Foi uma revela-ção para mim (NEILL, 1976, 127-129).

4. A criação de Summerhill e oinício de um outro movimento deformação

Em 1923 irrompe a revolução na Saxônia.Há disparos nas ruas de Dresden. A escola deHellerau fica quase vazia. A divisão de dançafoi para perto de Viena. Neill leva a sua divisãopara uma montanha nas encostas do Tirol, dis-tante de Viena, a quatro horas em viagem detrem. Ali não é bem visto pelos habitantes. “Oscampesinos do lugar eram os mais odiosos queconheci (...) A crise ocorreu quando me cita-ram no Ministério de Educação em Viena. (...)Viajei com o meu pequeno grupo para a Ingla-terra” (NEILL, 1976, p. 119-120).

O terceiro momento da história de forma-ção de A.S. Neill se encerra dando lugar a umoutro período: “Ao fim de 1924, quando leveimeus alunos para a Inglaterra, aluguei uma casa,em Lyne Regis, um pequeno povoado de Dor-set. A casa ficava em uma colina e tinha o nomede Summerhill” (NEILL, 1976, p.120).

5. Pontos de convergência e seme-lhanças entre a história de formaçãode Neill e as de outros professores

O termo movimento foi escolhido para de-signar uma ação ou um conjunto de ações con-

cretas, sentimentos, percepções e crenças re-feridos direta ou indiretamente nas falas dossujeitos investigados e que indicam uma deter-minada direção ou uma característica impor-tante no seu modo de enfrentar e satisfazer assuas necessidades de formação. Nesse senti-do, o termo guarda uma correspondência como conceito de “perspectivas” na forma em quefoi empregado por Becker - “um conjunto deidéias e ações coordenadas utilizado por umapessoa para resolver um problema em determi-nada situação” (COULON, 1995, p. 71).

Os movimentos de formação identificadosno conjunto das diversas histórias estudadasrefletem as perspectivas concretas que os su-jeitos adotaram para enfrentar suas necessida-des de formação. Ao aparecer mais de umavez na mesma história ou em histórias diferen-tes, indicam a repetição de situações e circuns-tâncias e, também, a existência de um mesmomodo ou de formas semelhantes de enfrentá-las. Daí que estão indicando a existência depadrões ou temas que atravessam as diversashistórias ou que se repetem em diferentes mo-mentos de uma mesma história.

Entre os casos de professores que não in-vestiram em autoformação profissional se en-contram sujeitos que revelaram, como Neill,indefinição, falta de certeza ou rejeiçãoquanto à profissão escolhida e se mantive-ram distanciados de um processo de busca au-todirigida de conhecimento profissional.

As histórias das professoras K e R apre-sentam semelhanças com a de Neill, principal-mente quanto à aspiração por abraçar outracarreira, o que significa uma não opção defini-tiva pelo ensino como atividade profissional.

Um outro tema que emerge nessas históriasé a culpabilização dos outros e de si mesmo eque está presente em Neill, que culpa os paispor ter abortado suas chances de prosseguir osestudos, e em três professoras da escola muni-cipal, incluída no estudo.

Vários estudos apontam que uma inserçãoprecária na carreira, representada pelo exer-cício de atividades temporárias, pelo ensino si-multâneo em várias escolas e pela grandemobilidade de local de trabalho, ano após ano,

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são condições que impedem o professor inici-ante de experimentar o próprio trabalho comouma oportunidade de rever a decisão de serprofessor e de aperfeiçoar a sua formação.Segundo Mukamurera, citado por Tardiff (2002),a precariedade tem conseqüências psicológicas,afetivas, relacionais e pedagógicas provocadaspelas mudanças profissionais.

Os movimentos para a construção de umaforma de ser professor, anteriormente descri-tos, indicam que Neill também se insere no gru-po de professores que despertam tardiamentepara o uso da autoformação como um instru-mento de aperfeiçoamento profissional.

A frase “Sem embargo, comecei a pensarem educação pela primeira vez em Gretna”(NEILL, 1976, p.94) revela uma atitude ante-rior de não implicação na prática e signifi-ca que só a partir de então o pedagogo começaa refletir sobre a sua prática em sala de aula.Com a experiência de Gretna Green, vivenci-ada entre 1914/15, e com a repercussão daobra Diário de um Mestre Neill passa a serconsiderado como um professor progressista.A partir daí, dezesseis anos depois de ter seiniciado como professor, faz a sua opção defi-nitiva pelo ensino e entra em um novo momentoda carreira.

No seu caso e no de outros professores in-vestigados, a retomada voluntária de situaçõesde formação implicou em adotar uma lógicade legitimação de atividades sócio profissi-onais realizadas que, segundo Font-Harmant(1995), são empreendidas para validar uma po-sição social de origem familiar, para se confir-mar como dominante em um novo espaço detrabalho, para se integrar formalmente em umespaço já freqüentado.

Assim como Neill, a professora C, depoisde vários anos de trabalho, adota uma posturade busca autodirigida de conhecimento para seapropriar de algo que alimenta a sua aspiraçãode, no futuro, assumir a função de coordenado-ra /formadora. Já a professora B empreendeuum novo percurso de formação para se apro-priar dos conhecimentos e competências neces-sários para compreender mais a propostapedagógica da rede com a qual já estava em

contato fazia doze anos e onde ainda encontra-va mistérios. Assume, assim, uma lógica depreservação e de confirmação de sua identida-de profissional.

Do mesmo modo, depois de um longo perío-do de rejeição da atividade de ensino, Neill seinscreve em uma lógica de conversão de iden-tidade profissional.

A partir daí, a atividade de ensino é assumi-da em caráter permanente. Neill começa umnovo estágio em sua autoformação profissionale sua história apresenta novos temas dominan-tes. Entretanto, a inexistência de um esforçode busca autodirigida no início da carreira pre-judica a retomada ou o exercício tardio de umapostura de autoformação. No caso de Neill, abusca difusa que realiza, quando pretende darum outro significado a sua carreira, não tem apedagogia, o ensino e a aprendizagem comoeixos. E quando precisa estruturar e desenvol-ver a escola de Summerhill ele:

• apóia-se nos conhecimentos de psicologiaaprendidos no contato com psicanalistas,através de sessões de terapia, conversas,leituras e da participação em grupos deestudo coordenados por psicanalistasfamosos;

• inclui elementos correspondentes a umavisão crítica da sociedade e da escolaconstruídos certamente em sua vivênciacomo professor, como aluno e no decorrerdo exercício da atividade de jornalismoestudantil e profissional;

• adota princípios sobre a liberdade dacriança, construídos a partir da psicologia,da reflexão sobre o autoritarismo a que foisubmetido na infância e que continuoupresenciando em suas experiências comoprofessor.

Refletindo sobre suas fontes, o pedagogoconfessa:

Em meus primeiros tempos, li What is and WhatMight Be, de Edmond Holmes; Payway, de CaldwellCook, Path to Freedom in the School, de NormanMacMunn. Imagino que não me influenciarammuito, pois se reduziam demasiado a assuntos da

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escola e dos métodos de ensino; pela mesma razão,Montessori também me deixou frio.Encontrei minha inspiração fora da fraternidadedocente, em Freud, Reich, Lane, Wells, Shaw e,por suposto, Cristo. Aceito com reserva estaúltima influência por causa das minhas primeirasaprendizagens ‘religiosas’ que o converteram emum deus em lugar do mais humano dos humanos.(NEILL, 1994, p. 258).

E, mais adiante, ele complementa, fazendoreferências às revistas e a outros veículos depublicação.

Ao mesmo tempo em que considerei enfadonhaa maioria dos escritores de temas educativos,também me enfadaram a maior parte das publica-ções sobre o tema. Um dos meus sonhos foi di-rigir uma revista sobre temas relacionados com aeducação na qual se elimine toda menção de clas-

ses, salários, pensões, inspetores e matérias es-colares (NEILL, 1994, p.259).

Percebe-se, na sua autobiografia e na obraDiário de um Mestre, a ausência dos elementosque teriam contribuído para dar ao eixo norteadorda sua prática uma constituição mais sólida. Sãoelementos que poderiam ter sido incorporados asua concepção de ensino e educação, no início dacarreira, se desde então houvesse a adoção deum processo de autoformação dirigido para a cons-trução de uma forma de ser professor. Essa in-completude dos processos de autoformaçãotraduz-se em incompletude da obra de Neill. Paraos críticos seus argumentos são simplistas e suasobras não transmitem um pensamento acabado.Neill não conseguiu ir além das idéias vagas, dasimpressões genéricas que expressa em suas pri-meiras obras (SAFFANGE, 1995, p. 234).

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 09.08.05

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Paula Perin Vicentini; Rosario S. Genta Lugli

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O MAGISTÉRIO SECUNDÁRIO COMO PROFISSÃO:o associativismo docente e a expansão do sistema educacional brasileiro entre os anos 1940 e 1960

Paula Perin Vicentini*Rosario S. Genta Lugli**

* Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Estudos Pós-graduados emEducação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Faculdade de Educação da USP, Avenida da Universi-dade, 308, Cidade Universitária – 05508-040 São Paulo, SP. E-mail: [email protected]** Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Mestrado em Educação da Univer-sidade São Francisco. Endereço para correspondência: Av. Alexandre Rodrigues Barbosa, 45 – Centro – 13 251-900Itatiba, SP. E-mail: [email protected]

RESUMOO texto analisa as representações sobre a profissão, constituídas pelosprofessores secundários, privilegiando a história da APESNOESP (Associaçãodos Professores do Ensino Secundário e Normal Oficial do Estado de SãoPaulo), desde a sua fundação (em 1945) até o início dos anos 1960, quandoesse segmento da categoria definia um perfil de formação e de atuação,procurando afirmar-se no interior do movimento docente. Trata-se de um períodopouco estudado pela produção nacional na área da História da Educação, umavez que corresponde a formas tradicionais de associativismo e não a modossindicais de reivindicação, cuja disseminação, a partir do final dos anos 1970, éconsiderada pela maioria das pesquisas como o marco inicial do processo deorganização dos professores. No entanto, é justamente no período assinaladoaqui que ocorrem as lutas que definem a identidade profissional no interior docampo educacional e, no caso do magistério secundário, busca-se dar visibilidadeàs especificidades que caracterizavam o exercício da docência neste nível deensino, em processo de expansão, com vistas a melhorar o seu estatutoprofissional no âmbito do serviço público. Utiliza-se como principais referenciaisteóricos a teoria dos campos de Pierre Bourdieu e o conceito deprofissionalização de António Nóvoa e, como fontes, notícias da grande imprensa,entrevistas, documentação da entidade e o seu periódico oficial.

Palavras-chave: Magistério secundário – Profissionalização docente.

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ABSTRACTSECONDARY TEACHING AS A PROFESSION: teachers’ associationsand the growing of the Brazilian school system between 1940 and 1960

This text analyzes the professional representations that were built by high schoolteachers, focusing specially the APESNOESP (Association of High Schooland Normal School Teachers of São Paulo State) history, since its foundation(in 1945) until the beginning of the 60’s, when these teachers were still tryingto define a work and formation profile and also searching for legitimacy insideteachers’ associativism. This period isn’t often selected to study by nationalhistorians of education, because it corresponds to traditional forms ofassociativism rather than unionism. The union model spreaded in teachers’movement since the late seventies, and is considered by most of researches asthe initial point of the teachers’ organization movement. However, we considerthat is in the period we analyze here that the struggles to define professionalidentity in the educational field happen. Particularly for high school teachers,they also worked to make visible the specificities that characterized teachingin that level, which was also growing at that time, trying to improve theirprofessional status in the public service. We use as main theoretical referencesPierre Bourdieu’s field theory and the concept of professionalization by AntónioNóvoa. As sources, we have daily newspapers, interviews, administrativedocuments and the journal of the association.

Keywords: High School Teachers – Teachers’ professionalizationO presente artigo1 propõe-se a examinar como as representações sobre a profissão docente se

constituíram no campo educacional brasileiro,privilegiando o processo de afirmação do ma-gistério secundário que começou nos anos 1940,com o início do crescimento deste nível de en-sino.2 Busca-se aqui analisar os esforços destesegmento da categoria para divulgar as especi-ficidades que caracterizavam o exercício dadocência no ensino secundário, com vistas amelhorar o seu estatuto profissional no âmbitodo serviço público, adotando como núcleo a tra-jetória da APESNOESP (Associação dos Pro-fessores do Ensino Secundário e Normal Oficialdo Estado de São Paulo), desde a sua fundação(em 1945) até o início dos anos 1960.3 Tal aná-lise toma como referência a noção de campo,tal como a define Pierre Bourdieu (1989): umespaço de lutas estruturado em função de obje-tos de disputa, no qual se constituem interessesespecíficos e regras de funcionamento própri-as, ao mesmo tempo em que se estabelece aposição de seus agentes e instituições de acor-

do com o reconhecimento alcançado dentro dopróprio campo mediante as disputas pela legiti-midade. Assim:

... a razão de ser de uma instituição (ou de umamedida administrativa) e dos seus efeitos sociais,não está na ‘vontade’ de um indivíduo ou de umgrupo mas sim no campo de forças antagonistasou complementares no qual, em função dos

1 Este texto integra resultados de pesquisas realizadas emnível de mestrado e de doutorado na Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo e que contaram com o auxíliofinanceiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado deSão Paulo. Ver: Vicentini (1997, 2002) e Lugli (1997, 2002).2 Cabe esclarecer que, embora de acordo com a organizaçãodo sistema educacional brasileiro anterior à Lei de Diretri-zes e Bases da Educação de 1971 a escola secundária consti-tuísse “um dos ramos do ensino médio” (SPOSITO, 1984,p. 80), utilizamos aqui o termo magistério secundário paranos referirmos aos docentes que atuavam em todos os ra-mos deste nível de ensino.3 Esta entidade passou a ser denominada APEOESP (Asso-ciação de Professores do Ensino Oficial do Estado de SãoPaulo) a partir de 1971 e, desde 1988, tornou-se o sindicatoda categoria em São Paulo.

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interesses associados às diferentes posições edos habitus dos seus ocupantes, se geram as‘vontades’ e no qual se define e se redefinecontinuamente, na luta – e através da luta – arealidade das instituições e dos seus efeitossociais previstos e imprevistos (BOURDIEU,1989, p. 89-90).

No caso do campo educacional, a organiza-ção do sistema de ensino e a delimitação doespaço profissional docente constituíram mar-cos do seu processo de estruturação que en-volveu, também, a criação de instituições paraa formação, a produção e a circulação de co-nhecimentos específicos para a área (CATA-NI, 1989). As entidades representativas domagistério inseriram-se nesse processo dispu-tando a posição de porta-voz da categoria, numatentativa de interferir nos rumos adotados pe-las políticas educacionais, conquistar melhorescondições para o exercício da profissão e mai-or prestígio social. Estas associações foramcriadas à medida que os diferentes níveis deensino expandiam o seu atendimento à popula-ção e representavam diferentemente os profes-sores conforme correspondessem ao primárioou ao secundário, às escolas particulares oupúblicas. Desenvolveu-se, assim, aquilo queBourdieu chamou de lutas de representações,às quais correspondem diferentes princípios declassificação e de divisão do mundo social, tan-to “no sentido de imagens mentais” quanto de“manifestações sociais” para manipulá-las e atémodificá-las e por meio das quais se estabele-ce “o sentido e o consenso sobre o sentido, emparticular sobre a identidade e a unidade do gru-po, que está na raiz da realidade da unidade eda identidade do grupo” (BOURDIEU, 1996,p. 108). Nessa perspectiva, o período analisadoaqui é particularmente rico, pois no que con-cerne à história da profissionalização docente(NÓVOA, 1991, 1998) no Brasil, trata-se deum momento em que ocorreram mudanças ex-tremamente significativas com relação à natu-reza do conhecimento especializado que deveriainstrumentar o trabalho docente e às práticasreivindicativas utilizadas para combater a des-valorização de seus vencimentos devido ao surtoinflacionário desencadeado no governo de Jus-

celino Kubitschek. Além disso, os professoressecundários começaram a se afirmar como umsegmento expressivo da categoria, passando adisputar uma posição no movimento docente einserindo-se nas lutas para definir ou re-definira identidade do grupo que, até então, estavafortemente vinculada ao magistério primário.

O processo mediante o qual os professoressecundários passaram a organizar-se com vis-tas a lutar pela melhoria do seu estatuto profis-sional assumiu uma configuração bastanteespecífica em São Paulo devido à natureza daexpansão deste nível na rede de ensino públicodo estado. Segundo Celso Beisiegel (1974), jános anos 1940 o ensino primário havia se di-fundido para a população urbana do estado, em-bora na zona rural o atendimento ainda fossereduzido e, em 1967, “a quase totalidade dapopulação escolarizável já aparecia matricula-da em escolas primárias” paulistas. Além daconstrução de novos prédios, foram utilizadassoluções de emergência: a redução do númerode anos do ensino primário e a ampliação dosturnos dos grupos escolares, chegando até a trêspor dia. Já o ensino secundário, concebido paraa formação das futuras elites do país, expan-diu-se apenas com a ascensão dos governospopulistas no estado, perdendo o seu caráteraltamente seletivo. No dizer do autor:

... assumindo diante da população o caráter decondição necessária à realização de expectativasde ascensão social e, pelas suas características,aparecendo como uma escola relativamente barata,de fácil multiplicação, a escola secundária teveprogressivamente ampliada a sua capacidade deatendimento da procura. Sua função na formaçãodas futuras elites aos poucos veio sendorelativizada. A expansão das oportunidades dematrícula (...) teve o efeito de reforçar e generalizar,entre os educadores e mesmo nas populaçõesurbanas, em geral, a compreensão dos estudossecundários como uma simples continuidade dosestudos iniciados na escola primária. (BEISIEGEL,1974, p. 23-24)

O crescimento das escolas secundárias ofi-ciais em São Paulo acentuou-se durante as ges-tões de Adhemar de Barros e de Jânio Quadros(os principais representantes do populismo no

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estado) os quais, para ampliar suas bases elei-torais, procuravam atender às pressões da po-pulação que passou a ter “aspiraçõeseducacionais voltadas para a realização de ex-pectativas de mobilidade social vertical compa-tíveis com as mudanças observadas na estruturado mercado de trabalho” (BEISIEGEL, 1974,p. 30-31). Este processo iniciou-se no interiordo estado, reduto eleitoral de Adhemar de Bar-ros (1947-50), que procurou satisfazer as rei-vindicações das cidades onde não haviaestabelecimentos desse nível de ensino, tantoparticulares como públicos. Segundo MaríliaSposito (1984), a demanda pelas escolas secun-dárias na capital foi atendida em parte pela ini-ciativa privada, porém, no governo JânioQuadros (1955-58), a rede oficial ampliou onúmero de vagas oferecidas com a criação de“seções” anexas aos ginásios já existentes, quepassaram a funcionar em diversos horários ecom professores contratados em caráter tem-porário, favorecendo “a rápida proliferação doscursos ginasiais da cidade”, anteriormente soba “égide da iniciativa particular”.

É justamente no âmbito do processo de ex-pansão do sistema educacional paulista que sur-giram entidades representativas de setoresespecíficos do magistério que alcançaram ex-pressão, dentre as quais se destacou a APES-NOESP que passou a disputar a posição deporta-voz da categoria com o Centro do Pro-fessorado Paulista (CPP), fundado em 1930 eque constitui a entidade mais antiga do estadoainda em funcionamento. O CPP, vinculado aosprofessores primários (que era o grupo maisnumeroso na época de sua criação), foi a prin-cipal associação docente do estado até o finaldos anos 1970. Naquele momento, o grupo res-ponsável pelas greves de 1978 e 1979 – reali-zadas durante a ditadura, portanto – assumiu adiretoria da APEOESP, fazendo com que elase posicionasse politicamente à esquerda, apro-ximando-se do movimento operário e opondo-se à pretensa neutralidade política das entidadesrepresentativas da categoria. A partir de então,a imagem dos trabalhadores em educação e areferência ao Estado como patrão passaram aser predominantes no movimento docente, co-

incidindo com a introdução do “sindicalismocombativo” – que, no dizer de Aparecida deSouza, caracterizou-se “pelo enfrentamento dosgovernos através de grandes mobilizações,manifestações de ruas e greves prolongadas”(1996, p. 7). Este momento de transformaçãodas representações sobre a profissão tem con-centrado o interesse da produção da área que,em alguns casos, o consideram como o marcoinicial do processo de organização dos profes-sores, desconsiderando a movimentação ante-rior a esse período.

A proposta de analisar a história da APES-NOESP desde a sua fundação (em 1945) até arealização da primeira greve geral do magisté-rio público de São Paulo, realizada em 1963 –cerca de seis meses antes do Golpe Militar de1964 –, procura contribuir para superar estalacuna dos estudos historiográficos e articula-se aos estudos que desenvolvemos desde 1997,com vistas a mapear o conjunto das represen-tações acerca da profissão, considerando prin-cipalmente as concepções presentes nos mo-mentos anteriores ao final da década de 1970,quando o “novo sindicalismo” fez emergir e tor-nou legítima a imagem do docente como traba-lhador em educação. Esta imagem, que passoua ser predominante, vem sustentando os movi-mentos sindicais da categoria tanto no planoestadual quanto nacional e tem sido privilegia-da nos estudos a esse respeito, silenciando asformas tradicionais de representar a profissão,desqualificadas pela hierarquia de legitimidadesexistente no campo. No entanto, tais represen-tações que, num primeiro momento, exaltavama nobreza e o caráter sacerdotal da missão doprofessor e, a partir do final dos anos 1950, in-corporaram a imagem do profissional que pre-cisava ser condignamente remunerado para obom exercício do magistério fizeram parte daestruturação e delimitação do campo educaci-onal, dando origem a movimentos associativose a práticas reivindicatórias, bem como a proje-tos de formação. Mesmo os modos mais pro-priamente “sindicais” e politizados de mobiliza-ção docente referem-se às representações quese construíram durante os primeiros três quar-tos do século XX, contra as quais reagiram e

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também a partir das quais se formaram. Nessesentido, é importante conhecer as característi-cas concretas da situação de trabalho, que aca-bavam por condicionar as apropriações que osprofessores faziam dos conhecimentos peda-gógicos disponíveis no campo. Para tanto, épreciso ter em conta a “heterogeneidade dacategoria” (ENGUITA, 1991), constituída pordocentes de diferentes níveis de ensino, comtipos de contratos diversos, tanto nas escolaspúblicas como particulares, que implicavam for-mações e modos de atuação específicos.

A fundação da APESNOESP e aprecariedade das condições detrabalho no início dos anos1940

Segundo os seus Estatutos, a APESNOESPfoi fundada em 12 de março de 1945 para lutarcontra os problemas específicos do magistériosecundário e, de certo modo, suprir a deficiênciado CPP, cuja atuação estava direcionada para adefesa do professorado primário. De acordo como depoimento de Raul Schwinden (membro dadiretoria da entidade desde 1958 e seu presiden-te entre 1960 e 1978), “alegava-se que o CPP sócuidava dos professores primários e que os se-cundários estavam sem uma entidade que ospudesse liderar” (JÓIA; KRUPPA, 1993, p. 21).Tal proposta foi lançada pelo Congresso de Pro-fessores Secundários, promovido pelos docen-tes da Escola Normal e Colégio Estadual de SãoCarlos, amplamente divulgado por Elisiário Ro-drigues de Sousa (presidente de honra do Con-gresso e membro da primeira diretoria da enti-dade) na coluna que manteve, diariamente, nojornal Diário de S. Paulo por mais de vinte anos:Educação e Ensino. Segundo o colunista, a reu-nião tinha por objetivo articular os professorespara pensar novas formas educativas em fun-ção do clima social do pós-guerra.4

Na véspera da abertura do Congresso deProfessores Secundários, Elisiário Rodrigues deSousa renovou as suas esperanças no evento,louvando a iniciativa como símbolo de uma“nova fase” para a categoria que, devido à alta

do custo de vida, passou a contar com a organi-zação de um segmento que, até então, se ca-racterizava pelo “comodismo” e pela desunião.O colunista também informou os estabelecimen-tos que enviariam representantes ao evento –em sua maioria, do interior do estado – e ostemas previamente definidos para serem dis-cutidos, dentre os quais ressaltou o objetivo deinterferir na política educacional do estado deSão Paulo mediante a criação do Conselho Es-tadual de Educação que, ao seu ver, juntamen-te com “a união da classe”, deveriam constituiras principais metas do movimento de organiza-ção dos professores secundários. Nesse senti-do, ele defendeu a criação de uma Associaçãode Educação nos moldes das entidades ameri-canas, mediante as quais os docentes poderiamopinar sobre os rumos do ensino paulista e con-tribuir para a “elevação moral e cultural” dacategoria. Dentre os temas discutidos, cabedestacar:

a) equiparação de vencimentos de modo a atendera um padrão de vida compatível com o cargo; b)pagamento com regularidade dos professoresinterinos, contratados e assistentes, seja qualfor a forma de nomeação ou de contrato; c)pagamento com regularidade dos professoresque tomem parte em bancas examinadoras, ouconcursos; d) inclusão em folha (...) depagamento, para recebimento mensal das aulasextraordinárias; e) regularizar o pagamento porsaldos e verba, evitando atrasos constantes; f)efetivação de todos os professores que foramaprovados nos últimos concursos de títulos eprovas; g) abono de faltas por motivo de moléstiaaos professores interinos, contratados ousubstitutos; h) aproveitamento de todos osprofessores secundários que perderam suascadeiras em conseqüência do último concurso;i) cessar a distinção entre professores de aula ede cadeira.5

Os temas estabelecidos para a discussão noCongresso evidenciam a precariedade que ca-

4 SOUSA, E. R. de. Congresso de Professores Secundário.Diário de S. Paulo, 12/12/1944, p. 6.5 SOUSA, E. R. de. O Congresso de S. Carlos. Diário de S.Paulo, 12/01/1945, p. 6. Congresso de Professores Secun-dários, 13/12/1944, p. 6. Mensagem ao Congresso, 13/01/1945, p. 6 (grifos nossos).

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racterizava a vida profissional do magistériosecundário e normal em meados dos anos 1940.Este problema apareceu também no depoimen-to de Alberto Mesquita de Carvalho (um dosorganizadores do Congresso), segundo o qualos professores participantes, apesar do receiode serem punidos, decidiram solicitar o paga-mento, atrasado havia quase um ano, das aulasextraordinárias que, às vezes, ultrapassavam emvalor a parte fixa do salário, paga com regulari-dade (KRUPPA, 1994, p. 142). O contrato dosprofessores secundários previa um número deaulas ordinárias variável, de acordo com a suacategoria: no caso dos lentes dos ginásios, co-légios ou escolas normais, eram 50 por mês ou12 por semana e, no caso dos professores deaula e assistentes, eram 75 por mês ou 18 porsemana. Entretanto, era comum que os profes-sores excedessem este quantum, em razão doaumento das matrículas nas escolas secundári-as; nesses casos, as aulas eram consideradas“extraordinárias”, sendo limitadas ao máximode 30 por semana. O Congresso também regis-trou a insatisfação no que concerne à diferen-ça de pagamento entre lentes e assistentes, poisambos eram sujeitos às mesmas formas de con-curso e, mesmo assim, os assistentes ganha-vam um ordenado fixo menor e tinham maisencargos. A requisição feita aos poderes públi-cos a partir do Congresso obteve a promessade uma melhor remuneração. Segundo Elisiá-rio Rodrigues de Sousa, os professores secun-dários passariam a receber de acordo com o“padrão J” no quadro do funcionalismo, ou seja,vencimentos fixos de Cr$ 1.300,00 – o que, emseu dizer, fez a alegria de “quase 1000 cole-gas” –, sem a extinção das aulas extraordinári-as, apesar das mesmas não serem reajustadasproporcionalmente.6

Em março de 1945, foi convocada uma reu-nião no auditório da Escola Normal Caetano deCampos para fundar a Associação dos Profes-sores do Ensino Secundário e Normal, à qualcompareceram muitos professores da capital edo interior, o que indica a repercussão da inici-ativa à época. Na ocasião, foram discutidos osEstatutos da entidade e eleita a primeira dire-toria. Após ter sido empossada, a nova direto-

ria visitou o Secretário da Educação e o Dire-tor do Departamento de Educação (respecti-vamente Sebastião Nogueira de Lima e SudMennucci) para reiterar a reivindicação de ven-cimentos iniciais de Cr$ 1.300,00 e solicitar aincorporação da gratificação de magistério paraos professores secundários.7

Os momentos iniciais da APESNOESP nãose caracterizaram por iniciativas assistencialis-tas com relação aos professores, embora sereconhecessem as dificuldades de sua vida co-tidiana, num claro movimento de diferenciaçãoda associação dos professores primários, o CPP,que se dedicava essencialmente a atividadesrecreativas e à prestação de serviços aos asso-ciados. Os Estatutos aprovados em 1946 visa-vam a conquistar um “nível de vida compatívelcom a dignidade humana” e a possibilidade deinterferir na política educacional, mediante apromoção de “uma aproximação mais eficien-te, com os responsáveis pelo ensino no Brasil eno Estado de São Paulo, de modo a serem osprofessores ouvidos por intermédio desta As-sociação no estudo da legislação e métodos quevisem a melhor aplicação e difusão das ativida-des pedagógicas”. Além de organizar “depar-tamentos especializados para estudo de todasas questões referentes ao ensino e legislação,de modo a (...) poupar tempo e suavizar a difí-cil tarefa do professor”, a entidade propunha-se a colaborar para o aperfeiçoamento culturaldo magistério secundário por meio de diversasatividades, tais como “o intercâmbio entre osalunos dos Ginásios, Colégios e Escolas Nor-mais de diferentes localidades, facilitando-lhescondução e estadia (...); palestras, conferênci-as, reuniões, comemorações cívicas, congres-

6 SOUSA, E. R. de. Aulas Extraordinárias. Diário de S.Paulo, 02/12/1944, p. 6; Pagamentos atrasados, 12/10/1944, p. 6.7 SOUSA, E. R. de Associação dos Professores Secundários.Diário de S. Paulo, 06/03/1945, p. 6; Associação dos Pro-fessores Secundários, 09/03/1945, p. 6; Vai ser instalada aAssociação dos Professores Secundários,10/03/1945, p. 6.Associação de Professores, 11/03/1945, p. 6; Congregam-se professores do ensino secundário e normal, 11/03/1945,p. 6; Associação dos Professores do Ensino Secundário eNormal, 13/03/1945, p. 6; Foi fundada ontem à tarde aAssociação dos Professores do Ensino Secundário e Nor-mal, 18/03/1945, p. 9.

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sos e tudo quanto possa estimular o maior inte-resse pelo estudo, pelo ensino, e pelos grandesvultos que engrandeceram a nossa Pátria” e acriação de “um centro de reuniões onde os as-sociados possam debater e cultivar os grandesideais de solidariedade humana e profissional”(Estatutos aprovados em 1946, Capítulo I, art.2º, p. 1-2). A APESNOESP previa, também, arealização de “um congresso de ensino secun-dário e normal” anualmente e em diferentescidades do estado – o qual, em 1946, ocorreuna capital.8

A ambigüidade das primeiras lu-tas: a delimitação do espaço pro-fissional e os conflitos entre in-terinos e efetivos

No Brasil, o processo de delimitação do es-paço profissional do magistério secundário teveinício em 1931, com a Reforma Francisco Cam-pos que criou o Registro deste segmento dacategoria junto ao Ministério da Educação, pre-vendo a exigência da formação universitáriaespecífica, fornecida pelas Faculdades de Filo-sofia. Embora o Registro Definitivo se desti-nasse apenas aos licenciados, o Decreto nº8.777 (24/1/1946) abriu a possibilidade de con-cedê-lo mediante a comprovação de três anosde docência, favorecendo, assim, os “velhosmestres” – autodidatas ou oriundos de cursossuperiores diversos (direito, medicina, engenha-ria etc.) e de seminários –, que dispunham so-mente do Registro Provisório (COELHO,1988).9 Particularmente no caso do magistériooficial, a realização de concursos de ingresso eremoção constituía não só um instrumento dedelimitação do espaço profissional, como tam-bém uma garantia contra as interferências polí-ticas na carreira docente. Como foi possívelnotar, essa delimitação e garantia ainda não ti-nha se efetivado em meados dos anos 1940,pois os professores efetivos eram em pequenonúmero, sendo a maioria dos cargos ocupadapor docentes interinos, situação esta muito ins-tável. No dizer de Schwinden, ex-presidente daentidade:

Os professores eram nomeados interinamente,quase sempre por influência política. O professorinterino ficava com a espada na cabeça; qualquervereador analfabeto, quando o professor era umpouco mais exigente ou saía daquelas normas,vinha a São Paulo e, por meio de politicagem,conseguia exonerá-lo. (...) Posteriormente, aAPESNOESP numa batalha que entrou com oCPP, conseguiu a realização de concursos paraingresso e remoção, a partir de 1948 (JÓIA;KRUPPA, 1993, p. 21).

Segundo Schwinden, a proposta de realizarum concurso de ingresso para o magistério se-cundário oficial em 1943 gerou “uma luta naclasse” porque os interinos eram bastante nu-merosos e temiam perder sua cadeira para oslicenciados pela Faculdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras da USP, que levavam vantagemdevido à formação recebida na Universidade.Esse temor devia-se sobretudo ao fato dos con-cursos serem extremamente rigorosos (haviatrês provas: escrita, didática e de erudição) egerarem altos índices de reprovação. De fato,segundo informações publicadas na grande im-prensa, entre 1934 e 1943, o Estado atendeu àdemanda para o magistério secundário e nor-mal por meio da nomeação interina de cerca900 professores. Estes docentes passaram alutar contra o concurso de títulos e provas, exi-gido por lei, reivindicando a sua efetivação semque tivessem que passar pela avaliação. Estemovimento não conseguiu resultados e eles ti-veram que se submeter ao concurso promovi-do em 1943, no qual um número elevado decandidatos foi reprovado e entrou com recur-sos, impedindo os aprovados de assumirem assuas cadeiras, processo que se arrastou até1945. Em seu depoimento (VICENTINI, 1997,vol. II, p. 16-23), Sólon Borges dos Reis (umdos sócios fundadores da APESNOESP e pre-sidente do CPP a partir de 1956) descreveu oprocesso que, em 1948, resultou na realizaçãoanual dos concursos como uma “verdadeira

8 Infelizmente há poucas informações quanto à regularidadedos congressos, pois a entidade parece não ter sido rigorosaao definir as suas edições, promovendo o X Congresso em1953 e em 1961, ambos na capital.9 A esse respeito, também ver NADAI (1991).

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guerra política e administrativa”. Em seu en-tender, enquanto o concurso de ingresso paraos professores primários havia se tornado roti-na na década de 1930, para os professores se-cundários havia ocorrido somente em 1931 e1943 e, quando o Secretário da Educação (Joãode Deus Cardoso de Melo) na gestão de Ade-mar de Barros (1947-50) resolveu instituí-los,enfrentou grande resistência, conseguindo pro-mover em 1948 apenas o concurso de remoçãoe no ano seguinte o de ingresso. Entretanto, “osque não queriam concurso ganharam a eleiçãona APESNOESP que passou a ser presididapor Geraldo Ulhôa Cintra, culto professor deLatim e lutador perseverante. A entidade pas-sou a desempenhar (...) o papel de advogadodo diabo, contra o concurso”, procurando, in-clusive, rebaixar a média de aprovação doconcurso anterior, realizado em 1943, atravésda interferência do poder legislativo e do judici-ário, mas esta tentativa não foi bem sucedida e,em 1949, foi realizado o concurso de ingressoao magistério secundário oficial que passaria aocorrer anualmente. Cerca de cinco anos apósa realização regular de concursos, a reprova-ção de cerca de 73% dos candidatos no ano de1954 permite avaliar o impacto causado por talmedida para este segmento da categoria, so-bretudo se considerarmos a existência de arti-gos (inclusive editoriais) na grande imprensaexigindo a exoneração dos professores repro-vados e que continuavam atuando nas escolasoficiais.10

Identifica-se, neste momento inicial da his-tória da APESNOESP, a existência de interes-ses conflitantes, devido à heterogeneidade dosprofessores secundários (concursados e interi-nos, lentes e assistentes). O presidente da enti-dade, Clemente Segundo Pinho, em relatóriodatado de 1954, assinalou este fato, identifican-do a “alta preparação cultural” como signo co-mum de distinção dos professores secundáriosno quadro do funcionalismo público e critican-do a interferência política na regulamentaçãoda carreira docente. No entanto, entre os pró-prios professores havia o conflito entre duasformas alternativas de legitimidade: ou a expe-riência de longos anos de ensino como interinos

ou a nomeação pelo concurso. Em suas pala-vras,

A grande expansão da rede escolar oficial, do-tando os mais distantes núcleos urbanos deunidades de ensino médio, desde 1930, (...), criouuma grande classe nova, dentro do funcionalis-mo estadual, com características bem distintase nitidamente configuradas, distinguindo-sepela alta preparação cultural geral e especi-alizada de seus membros. (...) A heterogeneida-de de formação, as poucas oportunidades decongraçamento, as solicitações político-partidá-rias e o impulso egoístico de firmar-se e acomo-dar-se, até com prejuízo dos que apresentam ascredenciais indiscutíveis do mérito e tempo deserviço, têm sido empecilhos dificilmente arre-dados da vereda deste órgão de classe. Nem sem-pre venceram as forças centrípetas de união emtorno da APESNOESP. Para tratar contra a en-tidade sempre estiveram ativos os políticos pro-fissionais, os maus burocratas do ensino, osperpétuos apadrinhados do situacionismo, (...)os solitários aristocratas do magistério, entroni-zados numa falsa auto-suficiência, esclerosadosna rotina, impermeabilizados na especialização epor um mórbido narcisismo. A ignorância dosproblemas gerais e a cegueira diante dos siste-máticos esbulhos da classe podem manter, en-clausurados, colegas respeitáveis, ativos nacátedra e na aquisição de cultura. (...) Não pode-mos, entretanto, atribuir as recentes vitórias aum trabalho individual, (...), mas como efeito deuma cristalização ou enrijecimento, de uma to-mada de consciência interna da classe pela pró-pria classe, através das lutas constantes, desdea renovação de métodos pedagógicos, (...) des-de o esforço de criação de uma ambiência decultura em nossas cidades do interior, (...) até àoposição e bloqueio, (...) das leis tumultuáriasdo setor educacional, denúncia e protesto dainterferência político-partidária em nossas esco-las. (PINHO, 1954, p. 3 – grifos originais)

Nos Estatutos aprovados em AssembléiaGeral Extraordinária, realizada em 12/03/1946,a heterogeneidade do magistério secundário sefez presente no capítulo relativo aos sócios, queprevia a inclusão de “todos os professores doensino oficial, secundário e normal, do Estado

10 SOUSA, E. R. de. Mais um capítulo dos concursos. Diáriode S. Paulo, 24/02/1945, p. 6; Reajustamento de professo-res. 0/03/1945, p. 6.

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de São Paulo, catedráticos, assistentes, orien-tadores, preparadores, interinos, contratadossubstitutos, comissionados e os professores deEducação das Escolas Normais Livres Munici-pais, os diretores e vice-diretores dos Colégios-Escolas Normais e Ginásios Oficiais, bem comoinspetores do Ensino Secundário e Normal doEstado de São Paulo” (Capítulo II, Art. 3º, p. 2-3). Ao serem reformulados em 1952, os Esta-tutos da APESNOESP, mantidos até os anos1960, apresentaram algumas modificaçõesquanto a este dispositivo, pois a menção aos“interinos, contratados substitutos, comissiona-dos” foi suprimida em contrapartida à inclusãoda referência genérica a “professores” e aosdocentes “que, com dois anos, pelo menos, deatividade efetiva no magistério, dele se afas-tem ou se dediquem a outras atividades, (...)cuja defesa incumbe à Associação ou a elesnão se mostrem indiferentes ou hostis” (Art.3º, p.4-5). Evidentemente, ao permitir a filiaçãode professores secundários de todos os estatu-tos profissionais, inclusive os que exerceram omagistério temporariamente, a APESNOESPpretendia atrair o maior número de sócios, ga-rantindo maior sustentação para as suas posi-ções e aparentemente abdicando da defesa deum estatuto profissional estrito, baseado no co-nhecimento especializado adquirido pela via daformação em nível superior.

As condições de funcionamentoda entidade e a sua consolidaçãocomo representante dos professo-res secundários

Durante seus anos iniciais, a APESNOESPenfrentou problemas financeiros, pois somenteem 1963 conseguiu o desconto das mensalida-des na folha de pagamento. O fato de a maioriados associados residir no interior do estado difi-cultava a arrecadação das mensalidades. Áu-reo Parolo, que participou da fundação daentidade, em depoimento a Laurita Fassoni(1991), contou que havia um cobrador que nãopodia visitar as escolas todos os meses e que,por isso, precisava cobrar mais de uma mensa-

lidade, gerando muitas vezes constrangimentopara os professores sem dinheiro no momentode sua visita. Em 1954, o presidente da APES-NOESP, Segundo Pinho, lamentou que apenas36% dos 300 “sócios de fato inscritos” houves-sem pago a anuidade, o que constitui um forteindício da escassa representatividade da asso-ciação junto ao magistério secundário oficial.

A precariedade das condições de funciona-mento evidenciava-se pela falta de uma sede -apenas em 1951 a entidade obteve uma sedeem conjunto com a ADEIA (Associação dosDocentes do Ensino Industrial e Agrícola): umasala na Praça da Sé, cedida por um deputadoestadual. Em 1953, as duas associações trans-feriram-se para uma nova sede cedida pelo Sin-dicato dos Professores do Ensino Comercial doEstado de São Paulo, também no centro da ci-dade, onde permaneceram até os anos 1960 commobiliário doado (PINHO, 1954, p. 13-14). Apóster se associado à ADEIA, a APESNOESPparece ter conseguido se reorganizar, pois pro-moveu inúmeras atividades em prol de umamelhor remuneração para o magistério secun-dário, participando da Comissão de Reajusta-mento instituída pelo Governador LucasNogueira Garcez em 1951, bem como organi-zando uma “assembléia permanente do profes-sorado” e concentrações regionais, efetuadasem cidades do interior do estado. Além disso, aentidade comemorou, naquele ano, o Dia doProfessor, com a promoção de um baile de gala.Em 1952, juntamente com a Secretaria da Edu-cação, patrocinaram um “majestoso concertoda Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal deSão Paulo, sob a regência de Zacarias Autuori,no Teatro Colombo” (PINHO, 1954, p. 7 e 14).

Nessa ocasião, ocorreu também a refor-mulação dos Estatutos da APESNOESP, jámencionada, que previa “a formação do espíri-to de solidariedade na classe professora, man-tendo-a prestigiada e em posição condignacom sua ação social e cultural” e “opor-se àinterferência política na vida dos estabelecimen-tos de ensino e repetidas reformas de ensinopreparadas clandestinamente, sem prévia con-sulta ao magistério e à sua associação de clas-se”. No tocante ao desenvolvimento cultural dos

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associados, a entidade pretendia, ainda, obterbolsas para viagens de estudo, no Brasil e noExterior, constituir uma “biblioteca escolhida emuseu especializado” e publicar “um órgão ofi-cial sobre a vida associativa”. Dentre as alte-rações realizadas, sobressaiu-se a preocupaçãocom atividades de caráter assistencial: a cria-ção de serviço médico e dentário gratuito ou“pelo menos com (...) descontos para seus as-sociados”, de “uma seção de procuradoria, quezele pelos interesses de seus associados” e de“um Departamento Especial de AssistênciaMonetária aos Associados, com facilidade deajuda e empréstimo em dinheiro” e ainda de“uma cooperativa para aquisição de casa pró-pria e construir a Casa do Professor” (Estatu-tos aprovados em 1952, Art. 2º, p. 3-4 – grifosoriginais).

Outro indício da reorganização da APES-NOESP refere-se ao seu engajamento na lutacontra o projeto que resultou na Lei nº 1.844,que permitia a acumulação de dois cargos “aoscandidatos aprovados e classificados no con-curso de ingresso no magistério secundário enormal”, assegurando-lhes, ainda, o direito de“inscrever-se no concurso subseqüente com amesma média obtida no concurso anterior” e apossibilidade de “escolha, pela ordem de suaclassificação,” de cadeiras que “porventuravenham a ser criadas até a realização do próxi-mo concurso de remoção”. Embora tivesse sidoaprovado pela Comissão de Constituição eJustiça e de Educação e Cultura, tal projetofoi vetado pelo então governador Lucas No-gueira Garcez, sob a alegação de que prejudi-cava a terceiros, sobretudo aqueles quedesejavam remover-se; além disso, o projetoignorava que a acumulação no quadro do fun-cionalismo era uma possibilidade e não um di-reito. A Assembléia Legislativa aceitou o veto,mas, em 30 de abril de 1952, o projeto reapare-ceu sob o número 240/52 e foi rapidamenteaprovado, a despeito dos protestos da APES-NOESP e do CPP. Segundo o presidente daAPESNOESP, tratava-se de “um atentado fron-tal ao magistério, mais uma desconsideração aoensino, à dignidade do processo democrático daEducação”. (MASCARO, 1953, p. 3)

Em 1958, a entidade ingressou numa novafase com a eleição de Raul Schwinden paravice-presidente. Em 1960, ele assumiu a presi-dência da associação, tendo sido reeleito paraeste cargo até 1979, quando a sua chapa foiderrotada pelo grupo que liderou as greves de1978 e 1979, numa eleição extremamente con-turbada, como já mencionamos. Segundo Cos-ta, Camarini, Álvares e Ugayama, a sua eleiçãomarcou o início do período mais significativo dahistória da APESNOESP anterior aos anos 70,o qual se encerrou em 1968, com a cassaçãodo seu mandato na Assembléia Legislativa. Apartir de então, a entidade tornou-se menosagressiva, sobretudo com relação ao movimen-to reivindicatório da categoria, sobressaindo-sepela atuação de seu Departamento Jurídico, di-rigido por Schwinden (1982, p. 52). Data do seuprimeiro mandato a aquisição da sede própria,localizada no centro da cidade de São Paulo,devido à estabilidade financeira assegurada pelodesconto das mensalidades na folha de paga-mento que havia sido conquistado graças à suaatuação como deputado estadual pelo PartidoSocialista Brasileiro (PSB). Em 1961, foi lan-çada a Revista APESNOESP que circulou até1963, publicando apenas três números. Embo-ra tenha previsto editá-la a cada três meses,isto não se concretizou provavelmente por ra-zões financeiras, pois no X Congresso de Pro-fessores do Ensino Secundário e Normal doEstado de S. Paulo, realizado em 1961, criti-cou-se o alto custo do papel para jornais e li-vros.11

Ao nosso ver, a análise da atuação e do sig-nificado de qualquer associação não se com-pleta sem um olhar para o seu órgão informativo,que contribui para reforçar os vínculos com osassociados, aos quais quase sempre é distribu-ído gratuitamente. Trata-se não só do veículoque expressa a visão “oficial” da entidade, mastambém da instância em que ocorre uma espé-cie de negociação quanto aos valores próprios

11 Convém notar que o periódico contava com um grandenúmero de anúncios publicitários de escolas particulares, degrandes empresas (Nestlé, Sheaffer’s, Chevrolet, Banco Itaúetc.) e de lojas de pequeno porte.

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da profissão e que são reconhecidos como legí-timos pelos seus associados na medida que di-gam respeito às representações partilhadas,evidenciando os temas tidos como mais rele-vantes pelo grupo. No caso da Revista APES-NOESP, é importante considerar, ainda, que elafoi lançada quando o presidente que permane-ceu cerca de duas décadas neste cargo – RaulSchwinden – estava se afirmando como líderdo magistério secundário num período em queas condições de trabalho deste segmento dacategoria passavam por um grande desgaste.

A oposição ao governo de Carvalho Pinto(1959-62) constituiu a principal marca da pro-dução difundida pelo periódico. Já no seu pri-meiro editorial, a APESNOESP acusou ogovernador de indiferença com relação ao se-tor humano, pois se limitava a construir prédiosescolares. A revista pretendia justamente com-bater este tipo de atitude, levando as autorida-des a darem maior atenção aos professores,cuja situação financeira havia piorado devido àinflação, “obrigando-o a trabalhar, muitas ve-zes em três turnos, ou a se dedicar a outrasatividades com prejuízos incalculáveis para aboa formação intelectual e moral de nossos alu-nos”. Em seu dizer,

Surge a Revista APESNOESP! Será ela o instru-mento com que o Magistério Oficial tentará que-brar as muralhas da má vontade, do indiferentis-mo, do comodismo de todos aqueles que,ocupando cargos no ensino, nada fazem em be-nefício do nosso pobre magistério secundário.(...) Deseja ser imparcial.12

No editorial do segundo número, Schwindenrebateu as críticas que parecem ter sido dirigi-das à diretoria da entidade, insinuando que pro-vinham de “bajuladores”, cuja única pretensãoera conquistar cargos políticos. Nesse sentido, opresidente da associação ressaltou que ela nun-ca se negou a colaborar com o Estado, desdeque isso não contrariasse os interesses dos pro-fessores, para os quais reivindicava um tratamen-to de acordo com a importância de sua missão.Em suas palavras, a diretoria da APESNOESP:

.... sempre que solicitada, cooperou com os ór-gãos da administração. (...) Nunca silenciou,

porém, para ser agradável a qualquer autorida-de, se esta não se conduziu de acordo com osjustos interesses dos professores ou do ensino.Querem alguns alcagüetes (...) que a Diretoriaresponda às mentiras, às afrontas e às injustiçascom mesuras, palmas e outras meios de que setêm valido eles para ser tornarem simpáticas aosseus superiores. (...) Aceitamos a direção daAPESNOESP para corresponder à confiança dosProfessores (com letra maiúscula) e não paraacomodar-nos à bem-aventurança dos mansose dos bajuladores. (...) Os políticos ocupam car-gos transitoriamente; o Magistério é perene. 13

A capa da primeira edição da revista tam-bém deu visibilidade às tensões existentes en-tre os dirigentes da APESNOESP e o governodo Estado, publicando a fotografia de RaulSchwinden, no dizer do periódico, “um incansá-vel batalhador pelas reivindicações do profes-sorado”, com a inscrição “Edição em Homena-gem ao Dia do Professor”. Ao transcrever umtrecho do Boletim da Associação dos AntigosAlunos da Faculdade de Filosofia da USP, arevista esclareceu a razão de tal homenagem,dizendo que ele fora dispensado do cargo deDiretor Superintendente do Instituto de Educa-ção “Caetano de Campos” e “suspenso por oitodias da função docente” devido ao “entreveroda luta em prol do padrão universitário para oprofessor secundário.” No mesmo ano, a Fo-lha de S. Paulo noticiou a concentração reali-zada pela entidade diante da estátua de Anchi-eta para homenagear o seu presidente,“dissociando-se da homenagem oficial à Mes-tra do Ano” – Dorina Nowill, deficiente visuale, à época, presidente da Fundação do Livro doCego no Brasil –, sem explicitar a razão do pro-testo.14

Embora o periódico apresentasse textos so-bre temas variados – canto orfeônico, proble-mas de aritmética, ginásio vocacional etc. – eos seus dois últimos números tenham home-nageado as cidades de São Carlos e de Araras,

12 Apresentação. Revista APESNOESP, ano I, n. 1, p. 3.13 SCHWINDEN, Raul. Aos professores (editorial). RevistaAPESNOESP, ano II, n. 2, p. 2.14 A Mestra do Ano receberá o seu título depois de amanhã.Dorina Gouveia Nowill. Folha de S. Paulo, 12/10/1961, p. 8.

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a remuneração e as condições de trabalho doprofessorado secundário constituíam a temáti-ca da maioria dos seus artigos. O texto de An-tônio de Souza Teixeira Jr. sobre a gestão deCarvalho Pinto exemplifica esta tendência. Oautor criticou o Plano de Ação do governadorpara o sistema de ensino secundário e normal,acusando-o de estabelecer como meta a cons-trução de 166 novos prédios, sem se preocuparcom a conservação das instalações das esco-las já existentes, obrigando-as a recorrerem aoauxílio dos alunos para a limpeza e pequenosreparos. Teixeira Jr. também chamou a aten-ção para a baixa remuneração do professoradopaulista, inferior ao do Distrito Federal e do es-tado da Guanabara, e para a diminuição dasverbas destinadas ao setor educacional, utilizan-do o estudo de Carlos Corrêa Mascaro queconsiderou a desvalorização da moeda decor-rente da alta do custo de vida. A Revista APES-NOESP também deu ênfase à cobertura datramitação do projeto 1.048 que, conforme ve-remos a seguir, teve grande importância na lutados professores secundários pela melhoria doseu estatuto profissional.15

Em busca do reconhecimento esob a ameaça da proletarização:a conquista do padrão universi-tário e a luta contra a desvalori-zação salarial

No final da década de 50, a APESNOESPengajou-se em campanhas contra a desvalori-zação salarial da categoria, decorrente da altado custo de vida, que passaram a contar com amobilização dos professores em atos públicos,tais como passeatas e concentrações diante doPalácio do Governo e da Assembléia Legislati-va. Estas campanhas eram lideradas pelo CPPe contavam com a participação de outras enti-dades. Mas o magistério secundário tinha umapauta específica de reivindicações relativas aoseu regime de trabalho, totalmente diferente doque regia o magistério primário, pois se dividiaentre as aulas ordinárias e extraordinárias (pos-teriormente, designadas excedentes), que não

eram pagas nas férias nem incorporadas à apo-sentadoria. O pagamento destas aulas nas féri-as foi obtido com a Lei nº 5.052 (de 23/12/1958),sancionada pelo governador Jânio Quadros, masainda em 1962 a entidade lutava pela sua incor-poração à aposentaria e pela paridade com re-lação ao valor pago pelas aulas ordinárias.16

Contudo, a principal bandeira de luta da enti-dade foi a reivindicação do “padrão universitá-rio” – instituído por Lucas Nogueira Garcez em29 de dezembro de 1952 (Lei nº 2.124) – para osprofessores secundários, que lhes assegurariauma remuneração condizente com o seu nívelde formação na escala de vencimentos do funci-onalismo público. Para tanto, a entidade amea-çou deflagrar greve em 1961, pois o Estadorecusava-se a atender tal reivindicação, alegan-do que os professores de Desenho e TrabalhosManuais não tinham formação superior, o quedeu origem a uma campanha pela criação deseções destinadas a estas disciplinas na Facul-dade de Filosofia. O governo do Estado tambémalegava que o professor secundário tinha umacarga horária reduzida (12 horas semanais) paraobter o padrão universitário. A APESNOESPargumentava que o seu trabalho não se restrin-gia ao período em que ele permanecia em clas-se, pois envolvia o “preparo de aulas, correçãode provas e aprimoramento de sua cultura” e,durante os exames orais, de admissão e vestibu-lares, eles trabalhavam sem horário, de acordocom as necessidades do estabelecimento.17

O governador Carvalho Pinto enviou, então,à Assembléia Legislativa, em 1961, o Projeto nº.1.048, segundo o qual o número de aulas ordiná-rias passaria de 12 para 18 por semana e de 50para 81 por mês. Tal projeto foi extremamentemal recebido pela entidade, pois atribuiu ao ma-

15 TEIXEIRA Jr., Antônio de Souza. Realizações e omissõesdo Governo do Estado no setor do Ensino. RevistaAPESNOESP, ano I, n. 1, p. 25-27.16 Críticas ao Projeto de Lei nº 1048, Revista APESNOESP,ano II, nº 2, p. 35-36. APESNOESP sugere emendas aoprojeto que concede aumento aos professores. RevistaAPESNOESP, s/nº, p. 49-50.17 Empenha-se o professorado na luta em defesa de melho-res vencimentos - Da necessidade da formação universitáriado Professor de Desenho e a defesa da escola pública. Revis-ta APESNOESP, ano I, n. 1, p. 7, e p. 20-21.

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gistério secundário “o padrão 53, sem a especifi-cação de inicial das carreiras de nível uni-versitário”, não garantindo, portanto, “o direitode acompanhar as demais carreiras de nível uni-versitário, quando estas passarem a nova refe-rência.” Além disso, a mudança no número deaulas ordinárias não só implicava um aumentonos encargos do magistério secundário, comotambém representava de fato uma redução novalor pago por hora de trabalho, de modo que oprofessor – cujo salário era de Cr$ 23.465,00por 50 aulas mensais; portanto, Cr$ 469,30 poraula – passaria a perceber Cr$ 33.800,00 por 81aulas mensais, o equivalente a Cr$ 417,20 poraula, acarretando uma redução de Cr$ 52,10.Num artigo publicado pela Revista APESNOESP,Argino da Silva Leite demonstrou que, enquantoo restante do funcionalismo receberia 30% dereajuste em janeiro de 1962, os professores se-cundários teriam um aumento de 14,8% devidoà alteração da carga horária mensal. Noutro ar-tigo, Alberto de Mello mostrou que, em 1935, oprofessor secundário encontrava-se na mesmafaixa salarial dos chefes de seção e dos delega-dos de polícia e que, em 1950, obteve o direito àgratificação de magistério (Cr$ 400,00 por qüin-qüênio) “que elevava seus proventos em relaçãoaos servidores referidos”. Entretanto, na gestãode Carvalho Pinto, com a extinção desta gratifi-cação, o professor secundário recebia Cr$23.050,00, o chefe de seção, Cr$ 24.000,00 e odelegado, Cr$ 33.800,00, uma vez que esta car-reira dispunha do nível universitário.18

O projeto de Carvalho Pinto previa, ainda,um limite de 36 aulas por semana, consideran-do também as que eram ministradas nas esco-las particulares, obrigando o professor a reali-zar atividades sem vínculo com o ensino paraconseguir sustentar a sua família. Além disso,havia a exigência de que os professores lecio-nassem, pelo menos, seis aulas excedentes porsemana, contrariando a Lei nº. 5.053, sancio-nada por Jânio Quadros em 23/12/1958, queisentou os docentes da obrigatoriedade de mi-nistrá-las, por se tratar de um trabalho faculta-tivo que dependia da necessidade econômica ede sua disponibilidade. Para a APESNOESP,ambas as restrições prejudicavam tanto os pro-

fessores cansados, doentes ou que, por ques-tões de família (professoras gestantes ou comfilhos menores), não podiam ministrar aulasexcedentes quanto os mestres que precisavamcompletar seu orçamento atuando em escolasparticulares. No dizer da entidade, “limitar seutrabalho é matá-lo de fome, além de criar pro-blemas para o próprio magistério particular, cujocorpo docente é, em grande parte, constituídode professores do magistério oficial”.19

Em maio de 1962, o Projeto 1.048 foi apro-vado dando origem à Lei nº 6.805. No editorialdo terceiro número da Revista APESNOESP,Raul Schwinden lamentou que, embora a dire-toria tivesse se mantido vigilante durante a suadiscussão na Assembléia Legislativa, as suasreivindicações não haviam sido atendidas. Emcontrapartida, a Lei atendeu boa parte do rea-juste salarial reivindicado pelo magistério pri-mário no decorrer de uma campanha organizadapelo CPP, levando a entidade a comemorar ofato de este segmento ter obtido a referência“36” no quadro do funcionalismo. Nesse senti-do, é preciso considerar que o presidente doCentro entre 1956 e 2000, Sólon Borges dosReis, assumiu o cargo de Secretário da Educa-ção durante a cerimônia em que esta lei foi san-cionada pelo governador Carvalho Pinto e foireeleito deputado estadual logo em seguida, com19.016 votos – segundo o jornal O Professor(ago/1966), a quarta votação da legislatura.20

18 As nossas lutas. Revista APESNOESP, ano I, n. 1, p. 44.“Críticas ao Projeto de Lei nº 1048”. APESNOESP sugereemendas ao projeto que concede aumento aos professores.LEITE, Argino da Silva. Aumento para o professor secun-dário: 14,8%, e MELLO, Alberto. Vencimentos do Profes-sor Secundário. Revista APESNOESP, ano II, n. 2, p. 23-25e p. 63-64.19 Críticas ao Projeto de Lei nº 1048. Revista APESNOESP,ano I, n. 1, p. 44. APESNOESP sugere emendas ao projetoque concede aumento aos professores.20 SCHWINDEN, Raul Prezado Colega (editorial). RevistaAPESNOESP, s/n, p. 2. Vencimentos do magistério primá-rio a partir de abril de 1962, graças à lei de aumentoconseguida pelo Centro do Professorado Paulista. Revistado Professor, Ano XX, n° 67, mar-maio/1962, p. 41. Aesse respeito, cabe mencionar o estudo realizado por ÍrisBarbieri na década de 70 que, tomando por base a remunera-ção obtida no início da carreira, concluiu que, apesar doreajuste de 670,9% entre 1960-64, superior ao restante dofuncionalismo público, o professor primário, de 2,1 saláriosmínimos em 1960, passou a receber 1,9 em 1964(BARBIERI, 1974, p. 54-55).

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O aumento da carga horária do magistériosecundário promovido na gestão de CarvalhoPinto – agravado pela exigência do cumprimen-to de um número mínimo de aulas excedentes –fez com que o padrão universitário, conquistadosem a devida precisão legal, não representasseo reconhecimento esperado por este segmentoda categoria. Numa época em que a inflaçãocorroía, com grande rapidez, o poder de comprados salários e a expansão dos ginásios na redepública de ensino se intensificava de maneiradesordenada e muitas vezes à custa de profissi-onais contratados à título precário, os professo-res secundários viram a possibilidade de melho-ria do seu estatuto profissional e de distinção nointerior da categoria docente ser praticamenteesmagada pela ameaça de proletarização queatingia o magistério como um todo, mas tinha umaconotação específica para este segmento comnível superior e um regime de trabalho comple-tamente diverso do primário. Não foi por acasoque a Revista APESNOESP (ano II, n. 2, 1961,p. 39) a propósito do Projeto 1.048 representouvisualmente o professor secundário como umhomem abatido, vestindo um terno remendado,evocando a imagem do docente como um “men-digo de gravata”, expressão utilizada em 1956pelo então presidente do CPP e deputado esta-dual Joaquim Silvério dos Reis em pronunciamen-to feito na Assembléia Legislativa em que rei-vindicava o envio da mensagem de aumentosalarial.21 Um termo semelhante – “mendigo decolarinho” – foi empregado pelo Áureo Parolo,no depoimento já citado. Este tipo de imagemchama a atenção para o contraste entre as exi-gências relativas ao cargo, precisamente a ne-cessidade de se vestir bem (representada peloterno e pelas alusões ao colarinho e à gravata), eas dificuldades financeiras decorrentes da altado custo de vida.

Embora se referisse à situação do magisté-rio primário em São Paulo no início dos anos1960, a análise de Luiz Pereira que procurousituá-lo na estrutura de classes da sociedadebrasileira é bastante pertinente, pois o autor in-terpretou a constância com que os professoresse definiam como “proletários de gravata” comoum indício de sua insatisfação com o próprio

status social. Para o autor, nesse período, ossegmentos assalariados, pertencentes às “clas-ses médias” (na concepção de Wright Mills),passaram a sofrer a ameaça de proletarizaçãodevido à “melhoria da condição econômico-so-cial dos assalariados manuais” (PEREIRA,1969, p. 137-138). Estes setores caracteriza-vam-se pela tentativa de “superar um critériode estratificação exclusivamente econômico”e pela busca incessante de símbolos de prestí-gio, como roupas e outros sinais distintivos, queos associassem aos estratos mais elevados. Talcomportamento decorria da posição intermedi-ária desses setores na estrutura social, pois,embora fossem assalariados como o proletari-ado, realizavam um trabalho não manual e, porisso, procuravam distanciar-se do operariado pormeio de maiores salários e de um maior prestí-gio social, tentando aproximar-se do tipo de vidadas esferas mais elevadas. Ao caracterizar osprofessores como integrantes desses setores,mais especificamente como “proletários dasprofissões liberais”, Wright Mills definiu os pro-fessores do ensino primário e secundário como“servidores remotos do saber”, observando que,nos Estados Unidos, mesmo a carreira no ensi-no universitário não oferecia um status “com-pensador em relação aos sacrifícios pecuniáriosque exige” (MILLS, 1969, p. 147-151). Segun-do Pereira:

... este processo, por um lado, leva essa catego-ria a colocar-se em baixo estrato de classe médiaassalariada; por outro lado, a luta contra essadegradação ocupacional estimula o fortalecimen-to da profissionalização do magistério primário,solapadora dos moldes artesanal e paternalistaassociados a essa atividade, característicos daetapa pré-urbano-industrial, mas em boa doseainda preservados (1969, p. 177).

Ao mesmo tempo em que chamou a aten-ção para a proletarização desse segmento dacategoria no Brasil, Pereira identificou indíciosde profissionalização a partir da oposição entre

21 Em defesa do professor – discurso pronunciado pelo depu-tado Joaquim S. Gomes dos Reis na Assembléia Legislativado Estado, no dia 14/05/1956 e publicado no Diário Oficialdo dia 15. Revista do Professor, ano XIV, n. 29, ago. 1956,p. 33-36.

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o modelo artesanal e o profissional de trabalho,baseada nos tipos ideais de Max Weber. A esserespeito, cabe esclarecer que o termo “proleta-rização” não é empregado aqui na perspectivamarxista, da qual análises sobre a profissãodocente se apropriaram no início dos anos 1980,mas sim como sinônimo de um processo deempobrecimento. Nesse sentido, convém men-cionar o artigo originalmente escrito em 1988 epublicado no Brasil em 1991 de M. Lawn e J.Ozga, no qual os autores fizeram uma revisãocrítica de um texto elaborado anteriormente noqual eles, com base na oposição entre o traba-lho artesanal e a produção em série, constata-ram a proletarização do magistério devido àseparação entre concepção e execução do tra-balho docente que resultava na sua desqualifi-cação, sem considerar a sua “naturezacambiante”. Ainda nesse sentido, é importantenotar que o próprio presidente do CPP (SólonBorges dos Reis), recorreu a esta expressãoem 1961 para justificar as campanhas salariaisorganizadas pela entidade, expressando a ma-neira pela qual a categoria ou parte dela perce-bia a perda de poder aquisitivo decorrente doprocesso inflacionário em curso no país.22

A deflagração da primeira greve geral domagistério de São Paulo (primário e secundário;público e privado), em outubro de 1963, pode sertomada como um outro indício de proletarizaçãoda categoria como um todo. Com uma amplarepercussão na grande imprensa, a greve obte-ve o apoio de O Estado de São Paulo e daFolha de São Paulo, segundo os quais a recusado governador Adhemar de Barros (no cargoentre 1963-65) em negociar com o magistériolevara uma categoria “tão ordeira” a tomar estadecisão extrema. Ambos os jornais destacarama ordem e a disciplina do movimento. Em seueditorial, O Estado afirmou que os professoresforam “mestres até na greve”. A Folha cobriuamplamente a greve, publicando, todos os dias,manchetes e artigos na primeira página a seurespeito. Mas a grande imprensa deu ênfase àparticipação das professoras primárias na gre-ve, bem como nas passeatas e nas concentra-ções. Após o término da paralisação, que durouuma semana, os professores primários obtive-

ram os 60% reivindicados como reajuste ao pas-so que os secundários não ficaram satisfeitos comos resultados obtidos e pretendiam continuar coma greve, criticando o magistério primário por dei-xá-los “sozinhos na luta”.23

Alguns leitores da Folha de S. Paulo che-garam a se dirigir à sua seção de cartas parareclamar da predileção da grande imprensapaulista pelo professorado primário. Esta dis-cussão iniciou-se com a carta de Agenor Ara-újo Campos, publicada em 17/10/1963, segundoa qual este segmento da categoria usufruía deuma série de privilégios (férias, jornada de tra-balho de 3 horas, 36 faltas permitidas, aposen-tadoria proporcional, isenção de imposto derenda) e era constituído, em sua maioria, pormulheres casadas cujo salário era para auxiliaro marido, evocando um tipo de argumento que,em certas ocasiões, foi utilizado para justificara sua baixa remuneração. Em 26/10/1963, aFolha publicou uma síntese de quatro cartasque comentaram a opinião de Campos, dentreas quais apenas uma – a de Felício JunqueiraFilho – afirmou concordar com este leitor, diri-gindo duras críticas ao professorado primário edeixando entrever sérias diferenças com rela-ção ao secundário. Em seu dizer, “convencidoe pedante, por culpa da imprensa, que vive aelogiá-lo por qualquer motivo, o magistério pri-mário julga-se com direitos iguais ou superioresaos de funcionários de nível cultural mais ele-vado, como os professores de ginásios ou di-plomados pelas Faculdades de Filosofia.” 24

22 REIS, Sólon Borges dos. O que o Centro reivindica (edito-rial). Revista do Professor, ano XIX, n. 64, jul-set/1961, p.3. Defende o deputado Sólon Borges dos Reis o funcionalis-mo e o professorado” (extraído do Diário de S. Paulo).Revista do Professor, ano XIX, n. 61, jan/1961, p. 7 (grifosnossos).23 Terminou a greve: as aulas começam hoje. Diário de S.Paulo, 22/10/1963, Primeiro caderno, p. 2. Professores(Editorial). Folha de S. Paulo, 15/10/1963, p. 4. Greve erevolução (Editorial). O Estado de S. Paulo, 17/10/1963,p. 16. Desvirtuando a greve (Editorial). O Estado de S.Paulo, 19/10/1963, p. 9. A vitória do professorado. O Es-tado de S. Paulo, 22/10/1963, p. 15.24 Vencimentos de professores e funcionários. Folha de S.Paulo, 17/10/1963, Primeiro caderno, p. 4. Servidores, ci-ência, mandamentos. Folha de S. Paulo, 22/10/1963, Pri-meiro Caderno, p. 4. Magistério: defesa e ataque. Folha deS. Paulo, 26/10/1963, Primeiro Caderno, p. 4.

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O magistério secundário como profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional Brasileiro...

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A análise da trajetória da APESNOESP nocampo educacional, tomando particularmente asdimensões do associativismo docente e os seusvínculos com as representações profissionais,permite identificar a heterogeneidade que foise instaurando no interior da categoria em de-corrência das mudanças das condições concre-tas de trabalho e dos padrões de legitimidade.Não se pretende aqui dizer que o processo pau-lista seja exemplar no sentido de representativodas tendências em nível nacional ou em outrosestados, sobre os quais é importante constituirestudos para conhecer como este processoocorreu em diferentes contextos, numa tentati-va de apreender as especificidades locais e defavorecer estudos comparados entre as dife-rentes regiões do país. Em nosso entender, estaanálise identifica aspectos para os quais é pre-ciso atentar quando se fala da profissionaliza-ção da categoria: as condições concretas detrabalho, as representações do profissional e omodo com estas se articulam, influenciam e sãoinfluenciadas pelos movimentos associativos epelo conhecimento específico sobre o trabalho.

Particularmente quanto ao percurso daAPESNOESP, ocorreram dois processos dediferenciação para os quais é preciso atentar: adistinção com relação aos professores primári-os e a tentativa de delimitação do campo edu-cacional como um espaço privilegiado para adecisão técnica, baseada em conhecimentosespecializados, ao invés da ação política. Estasdiferentes perspectivas, ao se entrelaçarem nareconstrução da história profissional dos docen-tes de nível secundário, fizeram emergir mo-mentos característicos: a exigência da licencia-tura e a obrigatoriedade do registro junto aoMinistério da Educação marcaram o início doprimeiro período, quando a legitimidade do co-nhecimento especializado (dado pela licencia-

tura) sobre o ensino, começou a se opor ao con-tingente de professores que, embora profissio-nais de nível universitário (ou autodidatas), nãopossuíam a formação específica para lecionar.Pode-se dizer que na década de 1940 o conflitocentralizou-se na oposição entre licenciados eprofessores cujo valor de legitimidade era aexperiência. Deve-se ressaltar que uma dasconseqüências disso foi o progressivo fecha-mento do campo a profissionais cujas carreirasuniversitárias não admitiam a licenciatura, comoadvogados e engenheiros. O momento seguin-te, nos anos 50, correspondeu à definição deuma imagem profissional característica do se-cundário, que se deu no bojo das disputas pelarealização de concursos. Um duplo movimentode diferenciação ocorreu aí: a certificação es-tatal para lecionar que o concurso estabeleciadelimitava o nível e o tipo de conhecimentosexigidos do docente e ao mesmo tempo permi-tia lutar contra as interferências políticas na áreado ensino, justamente quando elas se faziammuito visíveis a propósito da expansão do ensi-no. O último dos momentos explorados nestetexto refere-se aos anos 60, quando a repre-sentação do professor secundário como “pro-fissional” e funcionário público a exercer uma“nobre missão” começa a ser questionada, ten-do em vista o aumento de sua carga de traba-lho e o empobrecimento da categoria. É preci-so considerar, a partir da análise destes dados,o quanto os modos sindicais de reivindicação ede associativismo próprios dos anos 70 devema uma necessidade de diferenciação com rela-ção ao que existia no momento anterior e, ain-da, como esta identidade profissional apresentaconfigurações cambiantes, relativas não somen-te ao contrato de trabalho, como também aoconhecimento pedagógico disponível e aos pro-cessos de diferenciação e coesão do grupo.

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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A ESCOLA DA ORDEM E DO PROGRESSO(BRASIL: 1889-1930)

Maria Inês Sucupira Stamatto*

* Doutora em História, Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris III. Professora da Universidade Federal do RioGrande do Norte / Departamento de Educação / Programa de Pós-Graduação em Educação. Endereço para correspon-dência: UFRN: Campus Universitário, BR-101, Lagoa Nova, s/n. – 59072-970 Natal/ RN. E-mail: [email protected]

RESUMO

Apresenta características da escola primária instituída no primeiro períodorepublicano no Brasil, através da análise iconográfica do Grupo Escolar Cel.Silvino Bezerra fundado em 1927, em Vila das Flores (atual Florânia), no RioGrande do Norte. Relaciona a construção do prédio escolar ao ideário demodernização das elites locais que controlavam a administração pública naquelemomento. Escreve sobre a passagem do mestre-escola ao professor formadopela Escola Normal, também estabelecida nesse período no estado potiguar.Conclui sobre o mito da escola republicana e a exclusão da maioria da populaçãoà escolarização mesmo levando-se em conta o discurso divulgado e defendidopelos governantes sobre a necessidade da educação como formadora do cidadãorepublicano.

Palavras-chave: Escola – República – Prédio Escolar – Professora

ABSTRACT

THE SCHOOL OF ORDER AND PROGRESS (BRAZIL, 1889-1930)

It shows characteristics of a elementary school established in the first republicanperiod of Brazil, by iconographic analyze of the Grupo Escolar Cel. SilvinoBezerra founded in 1927, in Vila das Flores (today Florânia) in Rio Grande doNorte. It links the construction of the scholar building to the local elites ideologyof modernity in that time. It writes about the change of the mestre-escola tothe teacher formed by Escola Normal also established in this same period, inthe potiguar country. It concludes about the myth of republican school and theexclusion of majority to leaning even considering the divulgated speech of thenecessity of education to form the republican citizen.

Keywords: School – Republic – Scholar Building –Teacher

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Trabalhando com temas sobre instituiçõesescolares, encontramos freqüentemente foto-grafias de professores, alunos e escolas. Certavez, nos deparamos com a foto do Grupo Esco-lar Cel. Silvino Bezerra, construído em 1927,em Vila das Flores, no Rio Grande do Norte.

Esta fotografia, que reproduzimos aqui, nosimpressionou imediatamente. Como uma ima-gem de uma turma à frente da escola podia nosinvocar, numa fração de segundo, tantas ca-

Foto 1: GRUPO ESCOLAR CEL. SILVINO BEZERRAVila das Flores / Rio Grande do Norte

Fotógrafo anônimo, acervo pessoal de Flávio José de Oliveira, prefeito de Florânia(atual nome de Vila das Flores) mandato 2005. Este Grupo Escolar foi criado peloDecreto nº. 341 de 23 de agosto de 1927. Em 1934 foi convertido em Escolas Reunidasda Vila das Flores. Atualmente, neste prédio funciona a prefeitura de Florânia. 2

racterísticas descritas na historiografia da edu-cação e da instituição escolar no período repu-blicano?

Permanecemos, muito tempo, com essaimagem remoendo na memória e, finalmente,resolvemos realizar uma análise iconográfica,no sentido atribuído por Kossoy1 , destacandoos elementos que nos levaram a reconhecerneste retrato atributos marcantes da escola re-publicana.

1. A ORDEM1.1 - A administração

O prédio imponente chama instantaneamentenossa atenção nesta fotografia. O pé-direito alto,ocupando todo o espaço da imagem, de lado alado, faz com que tenhamos a impressão de quea construção transforma as pessoas que posampara a foto em minúsculos e distantes seres,cuja importância é dada apenas pelo fato deestarem na frente do imóvel. Aparentemente, o

que foi considerado importante, para o anôni-mo fotógrafo que preparou esta tomada, foi oprédio da escola.

1 Este autor classifica em dois tipos a operação de análise deuma fotografia: Análise técnica: análise do artefato, a ma-téria, ou seja, o conjunto de informações de ordem técnicaque caracterizam a configuração material do documento; eAnálise iconográfica: análise do registro visual, isto é, oconjunto de informações visuais que compõem o conteúdodo documento (KOSSOY, 2001, p.77). De nossa parte, énossa intenção nos restringirmos a esta última.2 Fotografia publicada com autorização de Flávio José deOliveira, a quem agradecemos a permissão para publicação.

... essas imagens nos levam ao passado numa fração de segundo. (Boris Kossoy)

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A construção de prédios escolares foi umamarca da administração republicana nas pri-meiras décadas do século XX, no Brasil. Ogrupo partidário que assumiu o estado norte-riograndense identificava-se com ideário po-sitivista, especialmente ligado ao discurso damodernidade, urbanização, higienização e pro-gresso. Aliás, nesse período, a maioria dos gru-pos partidários na administração de outrosestados brasileiros encontrava-se alinhadopoliticamente a esta posição ideológica. Emnosso país, este período coincide com mudan-ça de regime, do imperial ao republicano, ca-racterizado na historiografia brasileira comoRepública Velha.

Por conseguinte, o espaço urbano passoua ser percebido como a expressão de uma boaadministração governamental, e o indivíduopassou a ser visto como um cidadão de umarepública, não mais um súdito de uma realeza.Neste sentido, para as elites que estavam or-ganizando, naquele momento, a administraçãopública, tornou-se fundamental a reorganiza-ção espacial da cidade, com a abertura de ruase avenidas calçadas; a criação de parques epraças para passeios públicos; a construçãode prédios que testemunhassem o empenho fi-nanceiro e progressista do governo em bemadministrar o estado.

Ao lado destes aspectos dominantes deve,porém, ser destacada também a presença deoutras características típicas da posição“positiva”: a valorização da educação como“dever” essencial das sociedades modernas ecomo “direito” de cada cidadão e, portanto, comomeio primário para operar uma evolução nosentido laico e racional da vida coletiva; a atençãoaos problemas da escola, sentida como oinstrumento essencial desse crescimentoeducativo das sociedades industriais (CAMBI,1999, p. 467).

Da mesma maneira, para estes governan-tes tornou-se importante o sistema educacionalpúblico como uma instância formadora do ci-dadão republicano, já que o analfabeto, pela le-gislação vigente, estava impedido de votar e sereleito, e, portanto, não tinha condições do exer-cício pleno da cidadania.

A partir deste contexto, é que podemos com-preender a legislação educacional dessa épocaque determinava a construção de prédios esco-lares, as campanhas de alfabetização ocorridasnos vinte anos iniciais do século XX, o discursointensivo e difundido sobre a educação, elabo-rado pelas elites no governo.

Igualmente, podemos entender a profusãode fotografias de edifícios escolares, salas deaula, turmas de alunos e professores, muitasvezes, inclusive, com as autoridades presentes,o que passou a ser comum a partir de então.Borges (2003, p.84) nos informa que isto pas-sou a ocorrer justamente entre fins do séculoXIX e primeiras décadas do século XX, cor-respondendo, portanto, à implementação do re-gime republicano no Brasil, e que “muitosfotógrafos se dedicaram à produção de álbunsde cidade (...) em geral, a seqüência da ima-gem deixava ver uma cidade moderna, evoluí-da e quase sempre higienizada”.

Neste caso, percebemos a função da foto-grafia como um dos meios de produção, divul-gação e afirmação da ideologia dominante.

1.2 - O prédioO prédio escolar retratado na fotografia que

ora analisamos foi construído nos mesmos pa-drões das outras escolas erguidas nesse perío-do (MOREIRA, 2005)3 . Podemos constatarque igualmente seguiu o que estava estipuladona Lei nº. 359,de 22 de dezembro de 1913, aomenos em relação às janelas e amplidão dassalas. Na imagem, o prédio foi colocado no cen-tro do foco, emoldurando o ambiente e as pes-soas, e revelando o papel que se atribuía àconstrução em si, parecendo-nos o principalcomponente da foto.

Borges (2003, p. 84) explica a importânciade se fotografar, nesse momento, justamenteconstruções:

3 Ana Zélia Maria Moreira, a quem agradecemos as infor-mações sobre as construções de prédios escolares, e a doa-ção da foto, pois foi quem gentilmente nos passou umacópia da fotografia.

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Em posição de destaque encontravam-se asfachadas dos estabelecimentos comerciais ebancários; dos hotéis que aguardavam turistase homens de negócios de outras praçascomerciais; a casa, varandas e jardins particularesonde viviam as famílias da elite local; asinovações urbanas atestavam o dinamismo daadministração pública; o movimento das ruas queinformavam e, simultaneamente, produziam umaleitura da “urbe” marcada pela visão positiva doprogresso e da modernidade.

Sendo assim, pensamos que os prédios es-colares fizeram parte da produção da leitura damodernidade e progresso feita pelas elites lo-cais e se transformaram em um dos alvos pre-diletos de fotógrafos e autoridades.

Na perspectiva que estamos colocando, éimportante ressaltar que, no período imperial,quase não foram construídos prédios com o pro-pósito de abrigar escolas. O relatório para oMinistro dos Negócios do Império apontava 57imóveis escolares, existentes em todo o país,em 1876 (DIRETORIA GERAL DE ESTA-TÍSTICA, 1879, p. 36).

Em geral, as aulas eram ministradas em ca-sas comuns, isto é, casas não construídas paraserem escolas. Eram alugadas pelos professo-res, em muitas províncias subsidiadas pelos go-vernos provinciais. Ou seja, os professoresrecebiam uma parte do aluguel nos proventos.Nas últimas décadas do Império, muitos gover-nos provinciais passaram a pagar o aluguel dacasa onde ficava o professor / a escola, inclusi-ve com rubrica específica no orçamento anualda província. Mesmo durante as primeiras dé-cadas da República, no interior, em alguns mu-nicípios, esse costume ainda continuou: “aprimeira escola funcionou na primeira casa dacidade, já desmanchada. Quem pagava era oEstado” (ENTREVISTA, 2002, p.96)4 .

Portanto, no próprio lugar onde habitava oprofessor, com sua família, acontecia a escola.O mestre-escola acolhia seus alunos para asaulas em uma dependência da sua casa, reser-vada ou não para sala de aula. Podia ser qual-quer cômodo: um quarto especialmentepreparado; a sala de estar da casa, transforma-da em escola na hora da aula e, nas demais

horas,usada pelos moradores em outras ativi-dades; e até mesmo a cozinha podia passar aser, de um instante para outro, um lugar de “de-sasnar5 meninos”.

Nos documentos oficiais – Relatórios dePresidentes, de Diretores de Instrução – e mes-mo em diários de viajantes, em obras de litera-tura e em relatos orais de pessoas que tiveramseus pais ou avós professores daquela época,encontramos situações descritas como estas.

Esta casa, onde estamos agora, quando eu tomeiconta dela não tinha nada. Fiz tudo sozinha (...)Muitos meninos estudaram aqui, aqui estudaramminhas netas. Tinha uma escola aqui nesta sala,outra naquela sala ali e outra no quarto doarmazém. Fazia festa, cantava o Hino Nacional.Eu ensinava o 1º, 2ºe 3ºano, tudo na mesmaclasse. (...) A gente copiava o dever nos cadernosdos alunos (ENTREVISTA, 2001, p.87)6

Há mesmo histórias de professores que es-tabeleciam, também, nestas casas alugadas parao funcionamento das aulas, pequenos pontoscomerciais, nas quais atendiam alternadamen-te e até mesmo simultaneamente, algumas ve-zes, seus alunos e seus clientes...

Já no período republicano, os governos es-taduais passaram a construir imóveis – comoos da fotografia – especialmente destinados aofuncionamento das aulas e da administraçãoescolar. Nesses prédios não havia a possibili-dade nem a permissão para os professores seinstalarem para morar.

Todavia, o edifício escolar não seria um pré-dio qualquer, pois a lei impunha também padrõespara as construções de prédios especificamen-te escolares. A legislação posta em vigor deter-minava que cada município erguesse, às suascustas, o prédio onde funcionaria o ensino, sen-do que, na Capital, esta obra ficaria sob a res-

4 Floripes Medeiros, professora nomeada em 1945, no mu-nicípio de Serra Negra, Rio Grande do Norte. Entrevistaconcedida a Grinaura Medeiros de Morais em 2002.5 Expressão que já foi muito comum no Rio Grande doNorte, significando ensinar. Atualmente está em desuso.6 Nathércia Cunha de Morais começou a lecionar em 1912,aos 14 anos, como professora leiga, no município de Jardimdo Seridó, Rio Grande do Norte. Concedeu entrevista aGrinaura Medeiros de Morais em 2003.

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ponsabilidade do governo estadual. Legislaçõescomo esta se espalharam pelo país.

Regulamentados por lei, os edifícios escola-res eram construções sólidas, compactas, sun-tuosas, levantadas em locais nobres e valoriza-dos, de alvenaria, com janelas grandes,permitindo a circulação do ar e da luminosida-de. Muitos destes prédios sobreviveram às in-tempéries do tempo e ainda estão de pé, embo-ra não mais funcionado como escolas – como éo caso do prédio da foto onde, atualmente, é aprefeitura da cidade – outros não resistiram àsintempéries do homem... e foram demolidos.

A planta desses imóveis era contratada aarquitetos e engenheiros e a construção deve-ria situar-se próxima aos demais prédios impor-tantes da cidade, como a Intendência (Prefei-tura), Polícia, Casa Legislativa, Igreja etc. e, depreferência, com a praça principal a sua frenteou lado. O prédio da escola fazia parte, quandoconstruído nesse período, do conjunto de imó-veis a ser visto pela população local, especial-mente aquele grupo que podia freqüentar oslugares de maior prestígio da municipalidade.Por ocasião de comemorações importantes nacidade, como festas, procissões, desfiles, ativi-dades públicas realizadas na praça principal, ainstituição escolar marcava sua presença coma suntuosidade de seu prédio ali erguido.

1.3 - A turmaLembrar daquela professora, do colega que

ficava ao lado, ou daquele dia que saímos darotina do bê-a-bá para irmos à frente da escolae fazermos pose, por minutos intermináveis deespera do flash libertador de movimentos... é oque muitas vezes significa uma foto nossa dostempos idos que não voltam mais.

Fotografar é memória e, com ela se confunde.Fonte inesgotável de informação e emoção.Memória visual do mundo físico e natural, davida individual e social. Registro que cristaliza,enquanto dura, a imagem – escolhida e refletidade uma ínfima porção de espaço do mundoexterior. É também paralisação súbita doincontestável avanço dos ponteiros do relógio:

é, pois, o documento que retém a imagem fugidiade um instante da vida que flui ininterruptamente.(KOSSOY, 2001, p. 156).

Contudo, se olharmos com outros olhos umafoto como esta, perceberemos, talvez, outrosaspectos que a afetividade da lembrança domomento vivido não nos permite invocar. A ves-timenta da professora, por exemplo, sóbria, es-cura, sem enfeites e feminilidade, traços de umaépoca em que a mulher, para ocupar um espa-ço profissional público, deveria vestir-se assim,para não ficar “falada”. Os uniformes diferen-ciados para meninos e meninas. A postura sé-ria, a pose inflexível dos corpos parados, emposição de sentido, em ordem e em silêncio, comrespeito. O lugar de cada um previamente es-tabelecido, por hierarquia e sexo.

Ao conduzirmos nosso olhar desta forma,notaremos que a professora se encontra bemno meio da turma, na parte central do grupo depessoas, e que os alunos estão repartidos emdois grupos nitidamente separados: à esquerdade quem olha, os meninos, e à direita, as meni-nas. Não há o menor contato físico, nem deolhar, entre os dois grupos, com a professorana linha divisória, demarcando e controlandoespaços.

Constatamos, desse modo, que a questão dogênero é construída, entre outros elementos, apartir da organização física do espaço. Heran-ça do Império e da Colônia, as atribuições mas-culinas e femininas na sociedade permanece-ram discriminatórias no novo regime político, epodemos detectar isto naquela imagem, pois“para além de sua dimensão plástica, ela (a fo-tografia) nos põem em contato com os siste-mas de significação das sociedades, com suasformas de representação, com seus imaginári-os” (BORGES, 2003, p.79).

O tipo de construção escolhida organiza oespaço escolar que, por sua vez, é um dos com-ponentes que organiza a ação educativa. Oambiente escolar foi concebido com salas deaulas amplas, situadas nos corredores laterais,salas para administração, geralmente no centrodo prédio, com banheiros masculinos e femini-nos, com pátio para a recreação e a ginástica,murado, e, sobretudo, todos os ambientes sepa-

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rados por sexo e hierarquia, inclusive com por-tas de entrada e saída laterais separadas, umapara meninos, outra para meninas e a principalpara a direção e autoridades (MOREIRA,2005).

Nesta dimensão, o espaço escolar contémuma concepção de ensino e de mundo; por isso,compreendemos sua organização a partir dosexo e da hierarquia, costume de uma socieda-de discriminatória e autoritária. A interioriza-ção dos papéis femininos e masculinos nasociedade é construída na socialização, levadaa termo nos espaços privados e públicos, emque o indivíduo vive. Desta forma, torna-se im-portante reconhecermos a organização espaci-al como um dos elementos da construção socialde gênero.

No primeiro espaço público vivido pelas me-ninas, sem a companhia de alguém da família –a escola – elas aprendem a separar-se dos me-

ninos, a perceber os homens ocupando posiçãosuperior nos postos de trabalho, como a de dire-tores, supervisores, inspetores, Diretor da Ins-trução, enfim, autoridades; e as mulheres, quandotrabalhavam fora, ficavam nos postos subalter-nos como professoras, mesmo “professorinhas”– expressão cunhada no século XX. Isto eraaprendido no silêncio das salas de aula, nos pas-sos percorridos nos corredores da escola, na se-paração física dos muros levantados nos pátiosde recreio repartindo meninas e meninos. Murosque iriam levantando também as demarcaçõesinvisíveis da divisão dos lugares sociais femini-nos e masculinos na sociedade; à mulher-mãe: ocasamento e o lar; à mulher-solteira, a “tia”, se-gunda mãe: o magistério, profissão docente e“decente” permitida; aos homens: donos do pú-blico e do privado. Era um discurso material quese interiorizava todos os dias, não verbalizado,mas vivido cotidianamente.

Foto 2- Turma do Grupo Escolar Cel. Silvino BezerraDestaque ampliado da turma e da professora da foto 1.

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2. O PROGRESSO2.1 - O professor

O governo republicano inovou em termos deeducação instituindo os grupos escolares parao ensino primário e mantendo permanentemen-te a formação do professor, através da EscolaNormal7 . No Rio Grande do Norte, estas duasinstituições praticamente foram estabelecidasjuntas em 1908/1909.

Então, o professor, preparado para sua fun-ção pela Escola Normal, era nomeado para osgrupos escolares que funcionavam com o ensi-no primário seriado e a presença permanentede um diretor responsável pela administraçãoescolar, mas, também, pela supervisão do tra-balho do corpo docente da escola e que, de fato,passou a ser majoritariamente feminino.

A novidade, então, era a reunião, em ummesmo prédio, de várias escolas, isto é, de vá-rios professores – por isso, o nome de grupoescolar – sob fiscalização diária de um únicoadministrador – o diretor homem – que zelavapela ordem e respeito à hierarquia e pelo bomfuncionamento das aulas.

Sob o nosso ponto de vista, esta foi a maiorinvenção em matéria de educação realizada pelaadministração republicana, e isto ficou tão for-temente arraigado na cultura popular, e mesmona literatura de história da educação brasileira,que até hoje, para muitos, “a República inven-tou a escola no Brasil”.

O edifício construído materializava a idéiade educação, como se a instrução – termo usa-do no Império para a educação – tivesse ga-nhado um corpo físico. Acabava-se com omestre-escola, que “carregava” a escola poronde quer que fosse, retirando-lhe igualmenteparte de sua autonomia no exercício da profis-são e toda a função administrativa escolar queantes realizava, como, por exemplo, a matrícu-la dos alunos.

No período anterior, a escola era o profes-sor nomeado e pago pelo erário régio. Se elefosse transferido, transferida era a escola; seele fosse destituído ou morresse, a escola fe-chava. Nos primeiros anos do século XX, nos

lugares em que ainda não havia sido implanta-do o grupo escolar, nem construído o prédio daescola, era possível uma professora fazer umaafirmação como esta: “Eu sou a dona da esco-la, sou quem mando.” (ENTREVISTA, 2003,p.86) A escola era de dona Nathércia. “Quemvai dar escola é Nathércia ...” (ENTREVIS-TA, 2003, p.87), foi o que disseram a ela quan-do passou em seu concurso. Por isso, omestre era a escola: era de fato o mestre-escola.

A partir do prédio estabelecido, no centroda cidade, a escola estava ali. Poderia o pro-fessor ser transferido ou não, a instituição es-colar continuava presente na comunidade, nãopela ação educativa do mestre, mas pela pre-sença suntuosa do edifício onde funcionava aaula que atestava também a presença do Esta-do e marcava na memória das pessoas o lugarfísico organizado – destinado à escolarização.

O mestre, deixando de ser escola, tornava-se o professor que ministraria suas aulas, con-forme os cânones pedagógicos instituídosatravés da Escola Normal e sob a batuta admi-nistrativa de uma outra figura, sempre presenteno seu cotidiano escolar, o diretor do GrupoEscolar, representante direto do Estado na ins-tituição escolar. Até mesmo na legislação omestre vai tornando-se, aos poucos, o profes-sor, pois o vocabulário empregado passa, pau-latinamente, a ser este último, em detrimentodo antigo termo “mestre-escola”.

2.2 - O mitoAinda examinando a foto, nos damos conta

de como um costume que se generalizou no iní-cio do século XX – fotografias de escolas – foicondicionado pela idéia que as elites governan-tes atribuíam à educação a função de agentetransformadora dos súditos brasileiros em ci-dadãos republicanos.

7 Durante o período imperial, foram tentadas algumas expe-riências de Escola Normal no Rio Grande do Norte, entre-tanto, foram efêmeras e fechadas antes do estabelecimentoda República.

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O tipo de prédio escolhido e regulamentadoconcretizava a representação social feita porestas elites do papel da educação que demar-caria o espaço cívico do indivíduo. Desta for-ma, o sistema de educação público, através daconstrução de prédios escolares, junto com osanitarismo e o urbanismo, comporiam o pen-samento de modernidade e progresso dos gru-pos republicanos.

Longe de ser um documento neutro, a fotogra-fia cria novas formas de documentar a vida emsociedade. Mais que a palavra escrita, o dese-nho e a pintura, a pretensa objetividade da ima-gem fotográfica, veiculada nos jornais, nãoapenas informa o leitor sobre datas, localiza-ção, nomes de pessoas envolvidas nos aconte-cimentos – sobre as transformações do tempocurto, como também cria verdades a partir dasfantasias do imaginário, quase sempre produzi-do por frações da classe dominante (BORGES,2003, p. 63).

E, por isso, o professor com sua turma e, àsvezes, também o diretor e outras autoridadesda comunidade ou do estado, que posavam emfrente dos suntuosos prédios dos Grupos Esco-lares, faziam da ação destes instantes imóveisum hábito socialmente difundido; uma lembran-ça de um momento escolar para aqueles da foto;e uma função da imagem escolar para a leiturada modernidade republicana.

O ideário republicano, destacando ao máxi-mo a educação como um dos seus pilares, trans-formando-a em um dos seus símbolos, apro-priou-se da instituição escolar como se fosseuma conquista para o povo brasileiro realizadapela República.

2.3 - O meninoO menino no canto da foto que, humilde,

espremendo-se na parede como querendo tor-nar-se invisível, menor que a janela do porão,espreita a turma esperando, talvez, o momentode poder mexer-se de novo, tem, todavia, a for-ça de questionar, com sua presença ausente daescola, o mito da escola republicana.

Não temos informações a seu respeito, alémde sua participação fortuita na imagem capta-da pelo fotógrafo.

Muitas vezes, enquanto os códigos culturais dofotógrafo definem a composição dos cenáriosfotográficos, a velocidade da câmara pode captarfragmentos do real, não previstos na idealizaçãodas poses, porque a chapa foto-sensível capta aluz emanada do objeto fotografado, sem aintervenção humana – Roland Barthes afirmouque a fotografia, nessa e apenas nessa fração detempo, é uma mensagem sem código. (BORGES,2003, p.83).

Foto 3: Grupo Escolar Cel. Silvino BezerraDestaque ampliado do menino da foto 1.

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Acreditamos que o garoto não foi percebidono instante da fotografia, pois se o tivesse sido,provavelmente teria recebido um ”sai daí, me-nino!” ou o fotógrafo o teria excluído do focoda máquina.

De qualquer maneira, a sua humilde pre-sença nos permite questionar a obra educaci-onal dos republicanos instalados no governo,considerada um dos pilares do ideário de mo-dernidade e progresso deste grupo: todas ascrianças puderam participar desta escola?Quantos tiveram acesso à instituição escolar,para tornarem-se cidadãos? Quem foram osexcluídos?

Ora, sabemos que um prédio construídopara o grupo escolar não possuía um númerogrande de salas de aula e que cada municipa-lidade construía apenas um prédio para o fun-cionamento de um grupo escolar. O Decretonº. 174 de 5 de março de 1908 previa a reu-nião de três cadeiras – a masculina, a femini-na e a mista – e estipulava a matrícula de 20alunos por classe. Já a Lei nº 359 de 22 dedezembro de 1913 preconizava que “a direçãodos Grupos Escolares, até o máximo de cincoescolas” (Art. 22) poderia ser feita por umprofessor indicado pelo governo, mas, que “osGrupos de seis ou mais escolas” (Art. 23) so-mente poderiam ser dirigidos por professoresformados pela Escola Normal, ficando, assim,o número de classes indefinido.

A Lei nº 405 de 29 de novembro de 1916mantinha a matrícula mínima de 20 alunos por“escola” – classe (Art. 4), porém determina-va o mínimo de três e o máximo de dez esco-las que um Grupo poderia comportar (Art.59). Ademais, indicava que o processo de ma-trícula nestes grupos seria feito por edital, equando houvesse maior número de candida-tos às vagas, se procederia por sorteio (Art.82). Assim, podemos imaginar que a quanti-dade de crianças atendida por esses gruposnão contemplava a maioria das crianças dacomunidade.

Embora as escolas isoladas permaneces-sem em atividade enquanto não houvesse a ins-talação do Grupo Escolar na comunidade,estamos convencidos de que este sistema edu-

cacional não atendia a todas as crianças. Bastaverificarmos os índices de alfabetização dessaépoca. Ao final do período imperial, o dado deescolarização fornecido pelo censo de 1890 (por-tanto, os resultados indicados são da adminis-tração anterior à republicana, visto que amudança de sistema havia ocorrido apenas umano antes) aponta para 85,2% da populaçãobrasileira e 84,6% da população norte-riogran-dense analfabetas (SÉRIES ESTATÍSTICASRETROSPECTIVAS, 1986, p.13).

No entanto, os dados do censo de 1920 (SÉ-RIES ESTATÍSTICAS RETROSPECTIVAS,1986, p.13), ou seja, após 31 anos de adminis-tração republicana, demonstram que esta por-centagem não se alterou significativamentepara o estado potiguar, pois 82,1% da popula-ção continuavam analfabeta. Para a popula-ção brasileira, constatamos que a mudança emrelação ao censo anterior foi maior, pois 75,5%foram registrados como analfabetos, haven-do, desse modo, um aumento de 10% no índi-ce de pessoas alfabetizadas. Com isto, nosindagamos se o “nosso” menino da foto nãoteria sido um dos que sobraram do sorteio porocasião da matrícula no Grupo Escolar Cel.Silvino Bezerra.

Longe de pretendermos defender outros re-gimes ou outras épocas, consideramos, porém,nesta imagem, a figura do menino marcante,nos fazendo lembrar de toda esta parte da po-pulação excluída das fotos escolares. Ele, úni-co e pequeno, representaria a multiplicidade daenorme maioria dos excluídos.

Desta forma, o menino representaria tam-bém a expressão do fracasso dos governos re-publicanos, do chamado período República Ve-lha, em estender a escolarização primária atodos, e reservando os grupos escolares, esta-belecidos em prédios suntuosos, que requeriamcertamente gastos enormes das finanças públi-cas, a uma pequena parcela da população. So-mente alguns se formariam cidadãos republi-canos. E somos forçados a concluir que, emrealidade, o objetivo desses governos foi o deaparecer através da instituição escolar, mas nãoefetivar essa educação, de fato, a toda popula-ção sob sua administração.

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A escola e o fotógrafoSerá que o fotógrafo terá notado a presen-

ça do garoto e, mesmo assim, teria permitidoque ele aparecesse na pose feita pela turma daescola? Será que achou que o menino era tãoinsignificante que não teria importância se apa-recesse lá no cantinho, que ninguém iria se darconta? Ou será que percebeu o significado deum menino excluído da turma na frente de umaescola? Não sabemos.

Fotografar é sempre fazer história, seja a de nos-sas pequeninas vidas, da vida dos grandes ho-mens, ou das nações. Mas, em alguns momentos,o fotógrafo tem mais nítida e precisa a certeza deestar “fazendo história” com seu trabalho, usan-do seu engenho e arte para documentar as maisformidáveis realizações de seus contemporâne-os ou as avassaladoras tragédias que se abatemsobre eles (VASQUEZ, 2002, p. 32).

Será que o fotógrafo que fez esta foto, umapessoa que não sabemos quem foi, sabia que

REFERÊNCIAS

BORGES, M. Eliza Linhares. História e fotografia. Belo Horizonte: Autentica, 2003.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Ed.UNESP, 1999.

DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICA. Relatório e trabalhos estatísticos apresentados ao Ilm. e Exm.Sr. Conselheiro Dr. Carlos Leôncio de Carvalho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios doImpério pelo Diretor Geral Conselheiro Manoel Francisco Correia em 20 de novembro de 1878. Rio deJaneiro: Typ. Nacional, 1879.

FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA. Repertório estatístico doBrasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1986. v. 1. (Séries estatísticas retrospectivas).

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

MEDEIROS, Floripes. Entrevista concedida a Grinaura Medeiros de Morais em 2002. In: _____. Abraçosde gerações: memórias de professoras primárias no Seridó: uma viagem pelo século XX. Tese (Doutorado)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2004. Cap. 2, p.94-104.

MORAIS, Nathércia Cunha de. Entrevista concedida a Grinaura Medeiros de Morais em 2003. In: _____.Abraços de gerações: memórias de professoras primárias no Seridó: uma viagem pelo século XX. Tese(Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2004. Cap.2, p.85-93.

MOREIRA, Ana Zélia. Um espaço pioneiro de modernidade educacional: Grupo Escolar Augusto Seve-ro, Natal (1909-1913). Natal: PPGAE .Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,2005. Texto dequalificação para Dissertação de Mestrado.

RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº 174 de 5 de março de 1908. Actos Legislativos e Decretos doGoverno de 1908. Natal: Typ. d’A República, 1909.

estaria fazendo história? Ou será que captou,em seu trabalho costumeiro de fotografar tur-mas à frente da escola, uma fração da reali-dade congelada num instante, sem perceberque estava retratando a escola republicana comtodas as suas principais características?

Por conseguinte, concordamos com os au-tores citados, quando explicam que a fotografianão reflete simplesmente a realidade, ou partedela; que há sempre a subjetividade do fotógra-fo presente na imagem, ao fazer escolhas defoco, de temas, de poses, de ângulos. Há sem-pre uma escolha. Os prédios escolares teriamsido fotografados com tanta recorrência se istonão fosse uma demonstração de progresso?

Ainda assim, pensamos que, às vezes, o fo-tógrafo, sem se dar conta, capta com sua câ-mara instantes, detalhes, ações não intencionais,que revelam e desnudam elementos próprios deuma sociedade, de uma época, que ficam imu-táveis para a posteridade, como testemunhossilenciosos do que foi visto, do que foi vivido.

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RIO GRANDE DO NORTE. Lei nº 359 de 22 de dezembro de 1913. Actos Legislativos e Decretos do Governode 1912 /1913. Natal: Typ. d’A República, 1913.

RIO GRANDE DO NORTE. Lei nº 405 de 29 de novembro de 1916. Actos Legislativos e Decretos doGoverno de 1916. Natal: Typ. d’A República, 1917.

VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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DE ESCOLA NORMAL DE NATAL A INSTITUTODE EDUCAÇÃO PRESIDENTE KENNEDY (1908–1965):

uma referência na formação docenteno Rio Grande do Norte - um lugar generificado

Luciene Chaves de Aquino*

RESUMOEste trabalho pretende construir a trajetória da Escola Normal de Natal e desua transformação no Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965).Apontando os avanços, conquistas e mudanças, considerando as relações degênero implicadas numa instituição constituída de e para moças. Assim, serãoevidenciados momentos significativos da educação norte-rio-grandense, no quese refere à formação do professor. Neste intento, apontaremos as primeirasiniciativas de instituição de uma Escola Normal, em Natal, ainda no séculoXIX, que não prosperaram, bem como a sua institucionalização definitiva noinício do século XX, em 1908, e seu desenvolvimento. Destacaremos momentosde ruptura desta instituição tais como: a transformação de Escola NormalPrimária em Escola Normal Secundária, por meio da reforma de 1938, queintroduziu as disciplinas modernas tais como: Psicologia, Sociologia eAntropologia Educacional. Analisaremos o processo de transição dessainstituição da modalidade Escola Normal de Natal a Instituto de Educação,dando ênfase à ação de Francisca Nolasco Fernandes, a primeira mulher adirigir a Escola Normal de Natal, tradicionalmente administrada por homens.Constatamos aí a configuração de um novo quadro nas relações de poder.Refletiremos sobre os efeitos dessa recolocação de força nas relações sociaisentre os homens e as mulheres que constituíam a Escola Normal de Natal.

Palavras-Chave: Escola Normal – Instituto de Educação – Gênero

ABSTRACTFROM NORMAL SCHOOL OF NATAL TO PRESIDENT KENNEDYEDUCATION INSTITUTE (1908-1965): a reference in professorsprofessional education in the State of Rio Grande do Norte (Brazil) - agendered place

This work intends to build up a trajectory of the Escola Normal de Natal as well asits transformation into Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908 – 1965).Pointing out the progress, the conquests and changes, considering the relations of

* Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação da UFRN. Professora e Orientadora Educacional da RedeMunicipal de Educação de Natal. Endereço para correspondência: UFRN, Centro de Ciências Sociais Aplicadas,Departamento de Educação - Campos Universitário, Avenida Senador Salgado Filho s/n, Lagoa Nova – 59072-970NATAL/RN E-mail: [email protected]

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De escola normal de Natal a Instituto de Educação Presidente Kennedy (1908-1965): uma referência na formação docente ...

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gender implicated in an Institution constituted of girls and for girls. Thus significantmoments of the education in the state of Rio Grande do Norte will be emphasized,referring to the formation of the teacher. With this objective, we will aim at the firstinstitution initatives of a Escola Normal de Natal in the 19th (nineteenth) centurywhich didn’t prosper, as well as its definite institutionalization in the beginning of the20th (twentieth) century, in 1908 and its development. We will stand out rupturemoments of this institution such as: the transformation from Primary Normal Schoolinto Secondary Normal School by means of the 1938 reform which introduced themodern disciplines like: Psychology, Sociology and Educational Antropology. Weanalysed the process of transition of this institution from the characteristic EscolaNormal de Natal to Institute of Education, giving emphasis to the deeds of FranciscaNolasco Fernandes, the first woman to direct the Escola Normal de Natal,traditionally managed by men we verified there the configuration of a new realityamong the relations of power we reflected on the effects of this replacement ofpower inside the social relations among men and women, who established theEscola Normal de Natal.

Keywords: Escola Normal – Institute of Education – Gender

IntroduçãoO objetivo principal deste trabalho é cons-

truir a trajetória da Escola Normal de Natal ede sua transformação no Instituto de Educa-ção Presidente Kennedy (1908-1965), apon-tando seus avanços, conquistas e mudanças,considerando as relações de gênero implica-das numa instituição constituída de e paramoças. Assim serão analisados momentos sig-nificativos da educação norte-rio-grandense,no que se refere à formação de professores eprofessoras.

Neste intento, apontaremos as primeiras ini-ciativas de instituição de uma Escola Normalem Natal, ainda no século XIX, as quais nãoprosperaram, bem como a sua institucionaliza-ção definitiva no início do século XX, em 1908,e seu desenvolvimento na década de 20. Des-tacaremos momentos de ruptura desta institui-ção tais como: a transformação de EscolaNormal Primária à Escola Normal Secundária,por meio da reforma de 1938, os anseios e en-saios na transição da modalidade de EscolaNormal de Natal a Instituto de Educação Pre-sidente Kennedy (instituído em 1965), dandoênfase à luta de Francisca Nolasco Fernandes,a primeira mulher a dirigir a Escola Normal.

As primeiras iniciativas de insti-tuição de uma Escola Normal emNatal

As Escolas Normais surgiram no cenário dahistória da educação brasileira no século XIX,mais precisamente em 1835, quando foi fundadaa Escola Normal de Niterói, pelo poder público,seguida pela Escola Normal da Bahia, em 1836;do Ceará, em 1845; de São Paulo, em 1846; e doRio de Janeiro em 1880 (AQUINO, 2002).

Como em outras regiões, no caso de Sergi-pe, em 1870, e de Goiás em 1882 (FREITAS,2002), somente nas últimas décadas do séculoXIX é que foram experimentadas as tentativasde Escolas Normais no Rio Grande do Norte.

A primeira Escola Normal Primária em Na-tal, criada em 1873 e inaugurada em 1874, comum corpo docente de seis professores do sexomasculino, iniciou suas atividades com vinte alu-nos, mas diplomaram-se apenas três professo-res, também do sexo masculino (LIMA, 1921,p.14). A Escola Normal era anexa ao AtheneuNorte-Riograndense1, não só fisicamente, como

1 O Colégio Atheneu Norte-Riograndense foi criado em1834, sendo a primeira instituição de ensino secundário doBrasil, foi o colégio modelo da terra potiguar, tornou-se,até a primeira metade do século XX, o reduto dos jovensadvindos das elites econômica, política e cultural de Natal.

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também irmanada na formação intelectualistaem decorrência de sua estrutura de ensino.Antes da criação da referida Escola, foi publi-cado o regulamento do Colégio Atheneu Nor-te-Riograndense, em 1872, que apontava asnormas regulamentares para o funcionamentode um Curso Normal. O referido curso era detrês anos e, conforme o Artigo Primeiro do re-gulamento, buscava-se a preparação de “pro-fessores de ambos os sexos para a instruçãoprimária” (REGULAMENTO DO CURSO DEESTUDOS DA ESCOLA NORMAL, 1872,p.184). O currículo, com forte teor de forma-ção intelectual, assemelhava-se ao do Atheneu,ressalvando as disciplinas de formação peda-gógica. Assegurava a formação diferenciadapara os sexos, conforme exposição do Art. quin-to: “O estudo da álgebra e da escripturaçãomercantil será substituído, para o sexo femini-no, pelo de principios theoricos dos trabalhosde agulha, o qual será leccionado pelo profes-sor da 1ª série” (REGULAMENTO DO CUR-SO DE ESTUDOS DA ESCOLA NORMAL,1872, p.185). Supomos que tenha sido este oregulamento da primeira Escola Normal, inau-gurada em 1874. Um espaço com funções de-marcadas pela diferença dos sexos.

A segunda Escola Normal foi criada em1890, já no Brasil República, mas não chegou aser efetivada concretamente; permaneceu nopapel (LIMA, 1921).

A terceira Escola Normal de Natal foi cria-da em 1892 e instalada em 1896, “era exclusi-vamente masculina e o seu curso constava dasmatérias ensinadas no Atheneu Norte-riogran-dense acrescentado das disciplinas de Moral,Sociologia e Pedagogia” (LIMA, 1921, p.15).Até o ano de 1901, diplomou cinco alunos, sen-do extinta após esse período. Os relatórios pes-quisados por Lima (1927) apresentavam comomotivos para a extinção a falta de recursos ede demanda. Entendemos, entretanto, que exis-tem outras questões implicadas2.

Neste contexto, a Escola Normal de Natalse configura, enquanto uma instituição pensadapara o sexo masculino, por seguir o modelo deorganização do ensino secundário ministrado noAtheneu, sendo, em algumas situações, conce-

dido o acesso às mulheres, com a devida adap-tação. Àquela altura dos acontecimentos, já erauma realidade a presença das meninas nas sa-las de aula do ensino primário, mesmo que emnúmero bem inferior ao dos meninos.

A Escola Normal de Natal: suainstitucionalização e desen-volvimento no início do séculoXX (1908)

A Escola Normal de Natal foi instituída de-finitivamente em 1908, através do Decreto 178do mesmo ano, que teve por objetivo restabe-lecer a Diretoria Geral da Instrução Pública,criar a Escola Normal de Natal e os GruposEscolares Mistos (AQUINO, 2002). Foi pio-neira e modelar na formação docente do Es-tado do Rio Grande do Norte, constituiu-setambém no símbolo de uma nova época, noanúncio de uma sociedade que se pretendiainovar.

Entoando o discurso modernizador, na Es-cola Normal de Natal, desde o princípio, a fre-qüência de mulheres foi predominante, aobservar pela primeira turma, na qual se for-maram sete rapazes e vinte moças (AQUINO,2002). Logo, foi pensada e organizada para aformação de moças para atuar no magistérioprimário: o currículo assume contornos femini-nos, incorporando na sua grade curricular dis-ciplinas como Economia e Arte Doméstica(AQUINO, 2002).

A Escola Normal de Natal, assim como asdemais do Brasil e de outros países tornaram-se um lugar generificado. Concebê-la dessaforma significa vê-la como um lugar social queé constituído e constituinte dos gêneros, ou seja,um lugar onde as práticas ali realizadas con-vergem para a construção de significados ba-seados nas diferenças sexuais. Assim seria um

2 Apontamos como alguns dos motivos a falta de interessedo poder público em estruturar uma rede de ensino escolarpública; em conseqüência, negligenciava a formação docen-te. Os incentivos voltavam-se para a agricultura exporta-dora, cuja mão-de-obra prescindia do conhecimento escolar(AQUINO, 2002).

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lugar em que se reproduziram os símbolos cul-turais constituídos e constituintes do significadode ser feminino e de ser masculino em umasociedade.

Utilizar, aqui, o gênero como análise de ca-tegoria história implica necessariamente emconceber o significado de feminino e masculinocomo símbolos construídos socialmente, portan-to, passíveis de serem desconstruídos. Logo,“gênero foi o termo usado para teorizar a ques-tão da diferença sexual” (SCOTT, 1992, p. 86).Seria, dessa forma, o grande desafio da históriacombater a noção de fixidez da oposição entrehomem e mulher.

Na década de 20 a Escola Normal de Natalconstituiu-se num ponto de irradiação e de con-vergência das discussões referentes à educa-ção, atuando não só no âmbito do discurso, mascontribuindo na criação de instituições culturaiscomo: a Associação dos Professores do RioGrande do Norte (APRN), em 1920, a RevistaPedagogium, em 1921, a Escola Normal deMossoró, em 1922 e o Departamento Estadualda ABE-1929 (AQUINO, 2002).

Identificamos a sintonia da Escola Normalde Natal com alguns dos discursos que circu-lavam no país, através de seu diretor, o pro-fessor Nestor dos Santos Lima, como anacionalização dos diplomas das professoras,inspirada no movimento nacionalista. Enfati-zamos ainda, nessa década, a renovação doregulamento da Escola Normal de Natal em1922, e a introdução da matéria Pedologia, quetinha como objetivo central o estudo do com-portamento do aluno.

À medida que o professor Nestor Lima bus-cava a introdução das disciplinas com os pre-ceitos da nova pedagogia, paradoxalmentedefendia idéias conservadoras como o “celiba-to do magistério feminino”, já combatido poralguns grupos naquela época. O mesmo consi-derava inviável a mulher exercer a função dedona de casa e de professora ao mesmo tem-po, argumentando que:

... por mais diligente e laboriosa que a mulherseja, não poderá dar conta dos encargos da fa-mília, (...) dirigir os empregados, enfim, (...) à re-gularidade da vida doméstica, (...) por outro lado

preparar bem as lições, dispor metódica e previ-amente o seu trabalho, fazer a escrituração daclasse, estudar e ilustrar-se constantemente.(LIMA, 1921, apud DIAS, 2003, p.67-68).

Assim, no entender de Nestor Lima, existiauma incompatibilidade entre o exercício do tra-balho doméstico e o magistério. Por isso, so-mente as mulheres solteiras deveriam assumiro magistério primário, embora a Lei 405 de 29de dezembro de 1916, que organizava o ensinoprimário, secundário e profissional do estadonorte-riograndense, já assegurasse às profes-soras públicas através do Art. 224 o direito auma “licença especial de dois meses” (RIOGRANDE DO NORTE, 1916, p. 101).

No estado potiguar não foi implantado o ce-libato do magistério feminino, mas constatamosem um dos regulamentos da Escola Normal,assim como em outras congêneres do país, asrestrições à presença de alunos e alunas casa-das. Em consulta feita à legislação da EscolaNormal de Natal3, só encontramos um disposi-tivo que impedisse alunos (se referindo a mo-ças e rapazes) casados de freqüentar a EscolaNormal de Natal: o Regulamento de 1950, noArt. 39, que dispõe que “o aluno que contrairmatrimônio terá sua matrícula automaticamen-te cancelada qualquer que seja a série a quepertença, e a época do ano letivo” (RIO GRAN-DE DO NORTE, 1950, p.121).

Supomos, entretanto, que essa prática tenhaacompanhado a Escola Normal de Natal emsua trajetória. Mas, no contexto da década de1950, era uma prática considerada obsoleta erepudiada, a exemplo do que afirma o profes-sor Raimundo Nonato, ao declarar que “fizeraparte da comissão elaboradora do Regulamen-to de 1950, e já, nessa época, combatera essesdispositivos regulamentares, para os quais já nãohavia cabimento nos dias de hoje” (ESCOLANORMAL DE NATAL, 1957, p. 55).

Assim sendo, a Escola Normal de Natalconsolidou-se assumindo a identidade de “es-cola para moças”, como era no Brasil e em

3 Foram consultados os regulamentos da Escola Normal deNatal de 1908, 1917 e 1922; os decretos de reforma de1938 e 1947; o regulamento de 1950; bem como as leis dereformas de 1916 e 1957.

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outras partes do mundo. Os currículos, as nor-mas, os uniformes, a organização do espaço fí-sico e do tempo, à medida que formavamtambém informavam, conforme Louro, “umasérie de rituais e símbolos, doutrinas e normasforam mobilizadas para a produção dessas mu-lheres professoras” (1997b, p. 455).

As Escolas Normais funcionavam sob ocontrole do Estado, que irradiava uma óticamasculinizada da sociedade, que incidia na ela-boração da legislação e das normas regulamen-tares dessas instituições, pois, na sua maioria,eram dirigidas e controladas por diretores –ho-mens-, a exemplo da Escola Normal de Natalque somente na década de 1950 veio a ter umamulher como diretora..

De Escola Normal Primária a Esco-la Normal Secundária: a Reformade 1938

Na década de 30, o Ensino Normal sofreualgumas modificações, visando à sintonizaçãoao projeto de uniformização cultural e de cen-tralização administrativa do governo federal,que incorporou como seu muitos dos elemen-tos dos discursos e das reivindicações das di-ferentes agremiações, encetadas na década de20. Assim, em janeiro de 1938, foi instituído oDecreto nº 411 que reformou o Ensino Nor-mal Norte-Riograndense (AQUINO, 2002):separou o curso de formação geral do cursoprofissional, introduziu as disciplinas ditas mo-dernas, baseadas nas idéias escolanovistas, taiscomo: a Psicologia, a Sociologia e a Antropo-logia Educacional. Essas disciplinas se tradu-ziram num avanço educacional por permitir ummelhor entendimento do comportamento doaluno.

A partir da referida reforma, tornou-se obri-gatória, para o ingresso na Escola Normal, arealização do ciclo fundamental de cinco anosdo curso secundário. Para tanto, foi necessáriocriar uma seção feminina no Colégio AtheneuNorte-Riograndense (regido por leis federais)destinada às meninas que iriam ingressar naEscola Normal.

A seção feminina do Atheneu foi instaladano edifício onde funcionava a Escola Normalde Natal (Grupo Escolar Antônio de Souza), masseguia as orientações do Colégio Atheneu, eraindependente, com direção, professores e ins-petores próprios (AQUINO, 2002). A convi-vência das normalistas com as secundaristasnum mesmo espaço físico não foi tão harmoni-osa, pois o comportamento indisciplinado des-tas chocava-se com as rígidas normasdisciplinares que conduzia a rotina da EscolaNormal e simultaneamente moldava o compor-tamento das normalistas. Inevitavelmente asalunas do Atheneu eram expostas à compara-ção com as normalistas, como podemos perce-ber no relatório do Diretor da Escola Normal,professor Clementino Câmara:

Começaram a funcionar no edifício da Escola asaulas do elemento feminino do Atheneu Norte-Riograndense. Com direção diferente e, sobre-tudo, parece que devido à deficiência deinspetoras enérgicas, falecem-me palavras paralouvar a parte que se relaciona com a disciplinadas meninas, material escolar estragado, pare-des do edifício riscadas e danificadas, peças demáquinas de costuras da Escola Normal subtra-ídas e até, o que é sobremodo para lamentar osgabinetes sanitários com dizeres e pinturas deenvergonhar, tais são os vestígios ali deixados eque, só por força da verdade sou constrangido adizer, em triste confronto com a disciplina daEscola. (ESCOLA NORMAL DE NATAL, 1940c,p. 45).

Podemos aludir essa diferença de compor-tamento à própria formação das alunas doAtheneu, tendo em vista que a Escola Normal,enquanto instituição pensada para formar mu-lheres professoras, sempre teve entre suaspreocupações precípuas, a formação da moral,a contenção dos movimentos, dos desejos, bemcomo a precisão nas ações. Tais qualidades tal-vez não fossem tão cultivadas e perseguidas noensino secundário, já que era uma modalidadede ensino onde ainda predominava o elementomasculino.

A partir de 1938, a Escola Normal de Natalsuspendeu a matrícula para novos alunos, poisestes teriam que antes cursar os cinco primei-ros anos no curso seriado.Enquanto isso não

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acontecia, a escola assistia ao seu progressivoesvaziamento, funcionando somente com as alu-nas remanescentes da matrícula de 1937. Aoperacionalização da reforma que se propunhaa introduzir as ciências da educação, ocorreude forma catastrófica e levou à iminência defechamento da Escola Normal de Natal (AQUI-NO, 2002)4.

O Instituto de Educação: ensaios,anseios e realizações

O modelo de estabelecimento de ensino,denominado Instituto de Educação, já vinhasendo instituído em vários locais do país e eraconsiderado o que se tinha de mais modernoem termos de formação docente; foi regulamen-tado através da Lei Orgânica do Ensino Nor-mal, Decreto nº. 8.530 de janeiro de 1946. ALei Orgânica centralizou as normas e diretrizesdo ensino Normal em âmbito nacional (ROMA-NELLI, 1998, p.163).

Fixadas as diretrizes e finalidades para oEnsino Normal, caberia a cada governo adap-tá-las aos seus Estados. Com este intuito, o in-terventor Federal do Rio Grande do Norte,Orestes da Rocha Lima, baixou o Decreto-Leinº 684 de 11 de fevereiro de 1947, que adaptouà Legislação Federal o sistema de Ensino Nor-mal do Estado, que determinou como finalida-des do Ensino Normal, enquanto nível desegundo grau, prover a formação de professo-res/as primárias; além habilitar administradoresescolares, bem como aplicar, desenvolver epropagar os conhecimentos e técnicas relati-vas à educação da infância.

Para atingir tais finalidades, determinou trêstipos de estabelecimentos diferentes para mi-nistrar o Ensino Normal: o Curso Normal Regi-onal, a Escola Normal e o Instituto de Educação.

Cada uma dessas instituições passaria aministrar cursos normais de modalidades dife-rentes. O Instituto de Educação seria a institui-ção em que eram ministrados o curso ginasial eos cursos próprios das Escolas Normais (Cur-sos Normais de 2º ciclo, o Jardim de Infância ea Escola Primária anexa), além dos cursos de

especialização de professor primário e habilita-ção de administradores escolares e demais cur-sos. Seria a instituição de formação de educadormais completa para aquele momento. Em de-corrência, muitos Estados começaram a mos-trar interesse em transformar as EscolasNormais Oficiais em Institutos de Educação.

Em fins da década de 1940, deu-se a sedi-mentação e reorganização do Ensino Normal,enquanto curso de ensino médio de segundociclo, ou seja, realizado após os quatro anos deprimário e mais quatro do antigo ginásio. Entre-tanto, foi na década de 1950 que se intensifica-ram os anseios e as ações pela instalação doInstituto de Educação de Natal, época em quese ampliava e se psicologizava cada vez mais aprática docente; disseminava-se também o dis-curso da profissionalização docente em que sepropugnava não somente a expansão da for-mação docente, mas também a incrementaçãodos cursos de formação para docência.

Num contexto em que se bradava a exigên-cia da profissionalização docente e que cadavez mais se recorria às teorias em busca derespostas para os problemas educacionais, tor-nou-se uma tendência a instituição de Institutosde Educação onde funcionavam as tradicionaisEscolas Normais Oficiais.

Na Escola Normal de Natal, essa luta foialavancada pela professora Francisca NolascoFernandes, a sua primeira diretora, nomeada emsetembro de 1952. Em seu livro de reminiscên-cia s a professora afirma: “... não pude ser amelhor. Fui apenas a primeira, depois de setedireções masculinas” (FERNANDES, p.151,1973).

A feminização do exercício do magistérioprimário já era uma realidade que se deu emdecorrência da expansão da escola e da instru-ção das meninas. Conforme estudiosas, comoSilva (2002), Louro (1997a) e Almeida (1998),a predominância das mulheres no magistério

4 No ano de 1938 a Escola Normal de Natal contava comuma matrícula de 198 alunos, sendo 15 do sexo masculino e183 do sexo feminino. Em 1939 havia 12 rapazes e 126moças e um total de 138 alunos. Em 1942 a matrícula totalhavia caído para cinco, sendo dois rapazes e três moças(AQUINO, 2002).

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primário público iniciada ainda no século XIX,se efetivou nas primeiras décadas do século XXe está intrinsecamente ligada à expansão doensino primário público e, simultaneamente, àluta das mulheres pela instrução e para estabe-lecer-se profissionalmente e ingressar no mer-cado do trabalho.

Assim como as suas congêneres, a EscolaNormal de Natal se consolidou também como“escola para moças”. Apesar disso, tinha, atéentão, uma direção masculina e a maioria docorpo docente masculino, enraizada nos padrõesde uma sociedade conservadora e de um Esta-do sexista, conforme se confere na exposiçãodo Governador Juvenal Lamartine, em 1930:

O nosso magistério vem sofrendo uma verda-deira crise relativamente ao elemento masculino.Nas Escolas Normais de Natal e Mossoró gran-de é o número de alunas, ao passo que o númerode aluno é sempre diminuto. Turmas há que sediplomam sem que haja um rapaz sequer e, entre-tanto, estamos observando que o ensino públi-co não se pode privar da cooperação do elementomasculino, pois a prática nos tem demonstradoque, nos estabelecimentos dirigidos por homem,a atuação sobre o meio é muito mais intensa doque nos dirigidos por senhoras.

Os rapazes que se diplomam não se demorammuito em procurar um outro meio de vida, quemelhor lhes garanta o conforto seu e de sua fa-mília, e isto porque, sendo o professor um ele-mento de representação no meio em que vive,não pode sustentar-se acompanhado dessa re-presentação, com os vencimentos que atualmen-te recebe. Infelizmente a situação financeira doEstado, atualmente não nos permite falar em qual-quer aumento de despesa. (RIO GRANDE DONORTE, 1930, p.57).

Tradicionalmente, o cenário nas escolas pri-márias e normais configurou no que Demarti-ni e Antunes (2002) denominaram de “profis-são feminina, carreira masculina”, pois, apesarde nessas instituições o trabalho feminino serpredominante, os postos de comando como di-reção, inspeção, cargos técnicos e administra-tivos estavam sempre sob o controle masculi-no. Tal quadro configurou a realidade daEscola Normal de Natal até a metade do sé-culo XX.

O cenário se alterou em 1952, com a nome-ação de Francisca Nolasco Fernandes ou DonaChicuta Nolasco, como era chamada entre osmais próximos, para a direção da Escola Nor-mal de Natal.

Eram outros tempos, um princípio de mu-dança se anunciava em relação ao reconhe-cimento da capacidade da mulher paraexercer cargos de comando. Uma nova con-cepção poderia estar se forjando, diferentedaquele retratado pelo Governador Lamarti-ne. Dona Chicuta Nolasco era conhecida porter “pulso forte” e determinação; por isso,assumiu a direção da Escola Normal, nummomento em que esta enfrentava problemasde indisciplina do corpo docente e discente.Foi designada a uma mulher a direção daEscola Normal e a incumbência para que fos-se “restabelecida a ordem”, conforme a pró-pria Fernandes declara:

Eu vivia num clima de confiança e estima recí-proca entre a Diretoria e todos da Congregação.(...). Os rumores que eu ouvira na Escola nãoeram de molde a me oferecerem a continuaçãodaquele clima ideal. Mas o diretor [do Departa-mento de Educação] não deixou que eu reiteras-se a minha recusa, dizendo que estava precisandode alguém de confiança que não estivesse muitovinculado à Escola, pois os acontecimentos iri-am exigir um pouco de energia para restabelecera ordem. (1973, p. 118).

Foi desafiante em decorrência da tradiçãocultural do Brasil, porque, por muito tempo, asescolas públicas reproduziram e reforçaram ahierarquia doméstica, em que as mulheres fica-vam nas salas de aulas, executando as funçõesmais imediatas do ensino, enquanto os homensdirigiam e controlavam todo o sistema. Então,romper com essa estrutura não foi uma tarefafácil. Assim, endossamos Louro, quando esteafirma que:

Essas primeiras diretoras estavam, de algummodo, rompendo com a representação ou as ex-pectativas mais tradicionais, o que poderia con-tribuir para que fossem admiradas e imitadaspelas professoras e alunas. Dessa forma, algu-mas delas acabaram por imprimir marcas extre-mamente pessoais às instituições que dirigiram,criando escolas. (1997b, p. 460).

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Sendo pioneira, teria que ser também o mo-delo, por ainda não ter um pronto para segui-lo.Chicuta Nolasco, ao assumir a direção da Es-cola Normal, foi instigada a imprimir de imedia-to sua marca: precisão, perseverança, coragemsabedoria, pois o momento assim o exigia.

Àquela altura dos acontecimentos, um gru-po de alunas da Escola Normal de Natal, pelaprimeira vez, mobilizou uma greve, em protestopela renúncia do professor Clementino Câma-ra que dirigia a Escola há dezoito anos.

As alunas não aceitaram (...) abandonaram asaulas e foram para as ruas com cartazes e atémarchinhas (...). Sei que nós, os professores,chegávamos para dar aula e só encontrávamosfuncionários. (...) Reunidas, foram ao Diretor doDepartamento que explicou a situação e a opçãodo Diretor da Escola. Inconformadas foram aoGovernador que manteve o “status quo”. (FER-NANDES, 1973, p.117).

Uma mulher assumindo a direção da EscolaNormal de Natal, tradicionalmente dirigida porhomens, uma instituição reconhecida pelo rigornas normas e pela disciplina, paralisada em de-corrência de uma greve das normalistas, pode-mos dizer que esses fatos eram elementosimportantes na composição de uma nova confi-guração da atuação das mulheres ou das futu-ras professoras na sociedade natalense.Atribuímos, também, à ação das alunas de or-ganizar uma greve, reivindicarem seus interes-ses, um rompimento com os grilhões impostossocialmente, fazendo-se serem reconhecidascomo sujeito social.

Ali, então, se delineou um novo quadro nasrelações de poder; há de se pensar sobre osefeitos dessa recolocação de força nas rela-ções entre os sujeitos envolvidos: ou seja, ho-mens e mulheres no interior da Escola Normal.Seria um desafio, não somente pela especifici-dade do cargo de direção, mas pelo estado deconflito em que a escola se encontrava entreos diferentes grupos que a compunham.

Administrar aquela situação de tensão emrelação às alunas grevistas (que se restringiaàs da terceira série), conquistar o respeito e acredibilidade dos funcionários e professores,retomar a rotina da Escola, eram os objetivos

iniciais de Chicuta Nolasco, pois estava con-victa, e pretendia convencer a todos de que a“Escola permanecia e deveria continuar com asua tradição, o seu conceito impoluto, comoontem” (FERNANDES, 1973, p.123). Para tan-to, ela contava com a experiência adquirida “parasuprir os conhecimentos técnicos que me falta-vam” (FERNANDES, 1973, p.118).

E assim o fez, começando por fazer valeros dispositivos regulamentares, obteve a cola-boração de alguns funcionários, professores ealunas, mas também sofreu resistência de ou-tras, em particular, das normalistas grevistas daterceira série, as reservas de alguns professo-res, mas enfim, depois de muito esforço “resta-beleceu a ordem”. E, mais adiante, avalia essemomento com uma ponta de angústia: “Essaprimeira etapa da minha direção foi um períodopéssimo para a Escola, pois outra coisa não fi-zemos senão adaptar, readaptar, instalar, orga-nizar” (FERNANDES, 1973, p.125).

As migrações da Escola Normal deNatal: antes e durante a direçãode Chicuta Nolasco

Tempos de mudanças, às vezes, implicam de-sacomodação na ordem, poderes sucumbiriam,outros se ergueriam. Mudanças trazem tambémdiferentes dificuldades e transtornos; neste caso,referimo-nos àqueles em que a Escola Normal deNatal teve que passar por não dispor de uma sedeprópria. A isso, na época, Dona Chicuta chamoude “migrações”. Entretanto, as migrações sem-pre fizeram parte da história da Escola Normal deNatal desde sua instituição em 1908.

A Escola Normal de Natal, fundada em 1908,foi instalada como anexo do Colégio AtheneuNorte-Riograndense, onde permaneceu por doisanos. Mudou-se, em 31 de dezembro de 1910,para o prédio do Grupo Escolar Augusto Seve-ro, no Bairro da Ribeira, onde funcionava tam-bém o Jardim de Infância Modelo e seconcentrava, naquela época, o centro comerci-al político e cultural de Natal.

Constatamos algumas tentativas para aconstrução de um edifício próprio para a Esco-

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la Normal de Natal, como em 1919, no governode Joaquim Ferreira Chaves, que foi obrigado asuspender essa e outras obras por causa daseca. A outra iniciativa ocorreu em 1937, porter a escola passado por mais um constrangi-mento, já que não tinha como acomodar o avul-tado número de alunas matriculadas naqueleano. Logo, o Governo do Estado abriu créditopara a construção de um prédio para a EscolaNormal da capital (AQUINO, 2002).

Entretanto, essas iniciativas não lograramsucesso, permaneceram no papel. Em 1937, aEscola saiu do Grupo Escolar Modelo AugustoSevero e instalou-se no prédio do Grupo Esco-lar Antônio de Souza, na R. Jundiaí, 641, nobairro de Tirol. O edifício era propriedade daAssociação de Professores do Rio Grande doNorte (APRN), cedido gratuitamente ao Go-verno do Estado e dispunha de seis salões comdiferentes dimensões.

Na nova sede continuavam os problemas deacomodação da Escola Normal de Natal; o pré-dio não atendia às exigências didático-pedagó-gicas inerentes ao ensino normal, além deencontrar-se em condições precárias, confor-me relatório do Diretor da Escola Normal deNatal, Clementino Câmara:

O edifício da Associação de Professores ondepresentemente se acha funcionando a Escolavem de há muito reclamando não só uma limpezacomo condição higiênica, senão também algunsreparos de certa monta. Pequenos consertos fo-ram feitos no teto por causa das fortes chuvas.Entretanto, há portais bichados, janelas desman-teladas a se estragarem mais ainda pela falta deconservação, ferrolhos enferrujados, bandeirascom vidros partidos, parede e assoalho sujos.Além disso, a [área] exterior ao edifício reclamacaiação. (ESCOLA NORMAL DE NATAL, 1940a,p.35).

A situação se agravou de tal modo que odiretor da Escola Normal expediu um ofícioespecial, solicitando ao Diretor do Departamen-to de Educação providências urgentes.

Com as pesadíssimas chuvas do inverno desteano, o salão desta escola no qual funciona o 4ºano apareceu com o ferro afastado da paredecerca de uns dois centímetros. Imediatamentemandei verificar por um perito mestre-de-obra,

que verificou estarem duas tesouras com as pon-tas roladas, repousando sobre os caibros (...).Sobre o telhado, opinou ele, fosse imediatamen-te retiradas todas as aulas, pois segundo afir-mou, de um momento para outro, pode tudodesabar, mesmo sem chuva forte e ventania. Naiminência de um sério desastre que bem podeser fatal a centenas de crianças e senhoritas, tan-to da Escola Normal como da Seção do Athe-neu, venho reclamar as mais urgentes medidasque o caso exige. (ESCOLA NORMAL DE NA-TAL, 1940b, p. 43).

Mas chegou ao término do ano de 1940 e asituação se agravava sem ser reconhecida pelopoder público, o Diretor Clementino Câmaralamenta novamente:

São más para não dizer péssimas as condiçõesdo prédio da Associação dos Professores, ondepresentemente funciona a Escola Normal de Na-tal. Desde o teto até o piso tudo reclama reparo.Linhas roladas, paredes sujas, vidros das ban-deiras quebradas a cair, como aconteceu certodia ferindo na mão uma quartanista, ferrolhos efechaduras a pedir substituição, portas reclaman-do pintura, gabinetes sanitário sem caixas dedescarga, eis o estado do edifício, pelo que sefazem necessários, urgentes reparos. Uma aber-ração é manter duas cadeiras: Uma de Pedago-gia e outra de Higiene num prédio escolar em talEstado, prestes à ruína. (ESCOLA NORMAL DENATAL, 1940c, p.46).

A narrativa supracitada nos permite aden-trar por entre os salões daquele edifício, deteri-orado, desgastado pelo tempo, marcado peloabandono. Paradoxalmente a esse cenário dedecadência, o ano de 1940 transcorreu num cli-ma festivo, no qual se registrou o maior númerode formandos desde a existência da Escola.Naquele 21 de dezembro ocorreu a solenidadede Colação de Grau de 79 professorandas.(AQUINO, 2002).

Mesmo que a Escola Normal de Natal te-nha sido exaltada desde a sua instituição comouma insígnia do moderno, carregou em sua tra-jetória o peso do atraso: uma escola sem edifí-cio, um corpo sem face.

No início de 1941, a Escola Normal de Na-tal retornou para o Grupo Escolar Modelo Au-gusto Severo, onde permaneceu até 1954. Foino início dessa década que se deu o encontro

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da instituição com a professora Chicuta Nolas-co, a qual depois de assumir sua direção pas-sou a protagonizar a luta por uma sede para aEscola Normal de Natal, ou melhor, neste con-texto, para o Instituto de Educação.

Em outubro de1946, deu-se início à constru-ção do prédio que, desde logo, passaram a cha-mar de Instituto de Educação, hoje ColégioAtheneu Norte-Riograndense, situado na RuaPotengi, no bairro de Petrópolis. Tal construçãose conduziu por pequenas etapas intercaladas porperíodos de paralisação, passando pelos interven-tores e os governos de José Augusto Varela(1947-1951) e Jerônimo Dix-Sept Rosado (1951);foi concluído e inaugurado em 1954, no Mandatode Sílvio Piza Pedroza (1951-1955).

O prédio que passou a denominar-se Insti-tuto de Educação foi construído com recursosdo Governo Estadual, auxiliado pelo GovernoFederal, através do Ministério da Educação. Foiedificado para acomodar os vários cursos se-cundários da capital, atualmente espalhados emvários edifícios.

Seja pela falta de planejamento racional daeducação e da formação docente, seja pelaimponência do prédio, o Governo local procu-rou remediar um problema que se arrastava háquase meio século: a falta de uma sede para oCurso Normal da capital.

Assim, resolveu-se unir num mesmo espa-ço físico algo que estava separado no imaginá-rio das pessoas envolvidas, nos objetivos deensino, nas representações sociais construídassobre as diferenças sexuais, já que o secundá-rio era visto como ensino para os meninos e aEscola Normal para moças.

Naquele ano de 1954 foi inaugurado o tãoesperado Instituto de Educação, onde passa-ram a funcionar os cursos secundários e a Es-cola Normal de Natal, que, até então, seencontrava instalada no Grupo Escolar ModeloAugusto Severo. Rememorando, Dona Chicu-ta Nolasco expressa:

Eu pensava que aquilo era destinado exclusiva-mente à instalação de um Instituto de Educaçãoque nós ainda não tínhamos e, justamente ocu-paria aquela monumental construção em formade X. Uma escola normal, um curso de regentes

ou curso ginasial, um jardim de infância, umaescola para aperfeiçoamento de professores pri-mários e mais cursos de habilitação para admi-nistradores escolares de grau primário, era aconta de encher aquele colosso, que assim nosparecia naquela época. Foi quando nos adverti-ram que o Atheneu também ia para lá. (...) Comoacomodar todas essas coisas com que sonháva-mos e mais 600 alunos do Atheneu? (FERNAN-DES, 1973, p.129).

Aquilo que era uma dúvida transformara-seem certeza quando se deu a mudança, pois oprédio que chamaram de Instituto de Educaçãohavia sido edificado para acomodar o AtheneuNorte-Riograndense. “O Instituto de Educaçãoque era bom nada. O Atheneu absorveu tudo.A escola Normal ocupou uma perninha do X,exatamente uma onde nem sequer havia sani-tários” (FERNANDES, 1973, p.130).

Nessas condições o Curso Normal ficou iso-lado e sem constituir nenhuma das modalida-des exigidas pela Lei Orgânica de Ensino doNormal, pois o Jardim de Infância e o GrupoEscolar Modelo, que serviam à prática pedagó-gica das normalistas, a essa altura já funciona-vam cada um com endereço diferente.

“A Escola era uma hóspede indesejável”,desabafa Dona Chicuta Nolasco (FERNAN-DES, 1973, p.130). Num diálogo com a experi-ente educadora, diríamos, hoje, que aqueleespaço, predominado pelo elemento masculinoe para ele organizado, configurava-se em umlugar social generificado na medida em que eraconstituído e constituinte do que é ser masculi-no e feminino, ou melhor, identidades eramconstruídas socialmente, feitas sobre as dife-renças sexuais. A escola e os curso de forma-ção docente são lugares que necessitam deserem clarificados à luz das relações de gêne-ro, conforme reitera Louro:

Não parece ser possível compreender a históriade como as mulheres ocuparam as salas de aulasem notar que essa foi uma história que se deutambém no terreno das relações de gênero: asrepresentações do masculino e do feminino, oslugares sociais previstos para cada um deles sãointegrantes do processo histórico (1997b, p. 478).

Portanto, constitui-se um equívoco aceitar aconstrução de relações de poder baseadas sim-

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plesmente no inatismo sexual. Ao se investigaras relações de gênero e a história da formaçãodecente, deve-se superar o enfoque da vitima-ção, ou seja, aquele que “postula às mulheresuma posição de vitimação absoluta numa soci-edade centrada na autoridade masculina”(TORNQUIST, 1998, apud SILVA, 2002,p.99). É imprescindível considerar que nem sem-pre essa relação é harmoniosa e que, em al-guns lugares considerados femininos, seestabelecem os conflitos, uma vez que ali estãoinstituídos também, poderes e saberes.

Os conflitos estiveram presentes nas expe-riências vivenciadas na referida Instituição en-tre 1954 a 1956. A esse respeito Dona Chicutareforça que, apesar da rejeição da Escola Nor-mal no referido prédio:

... fazia valer os seus direitos. Organizávamossessões solenes comemorativas das datas es-colares, ciclos de alunos, festivais escolares,ocupando com freqüência o auditório do prédio.(...) E assim chegou o 7 de Setembro e a paradaescolar. Foi a primeira e última briga Atheneu xNormal. (...) O Atheneu, com toda a sua força,naturalmente queria comandar a parada. Eu nãoadmitia que a escola não fosse a primeira, umavez que ali era o Instituto de Educação. Foi umescarcéu. Eu e o professor Roque discutimos,mas a Escola formou na frente, comandando odesfile do Atheneu. Isso me valeu boas antipati-as. (FERNANDES, 1973, p.130-131).

Podemos perceber que as relações homeme mulher estão imbricadas, por sua vez, com asrelações de poder que revelam os conflitos e ascontradições que marcam a sociedade, sendoassim entendidas a partir do estudo das rela-ções de gênero, “que permite (...) desestabili-zar a aparente oposição homem/mulher,levando-nos a considerar as distinções de raça,de classe, de idade, de religião que os divideminternamente” (LOURO, 1995, p.126).

Tais considerações possibilitam a interpre-tação da trama dos acontecimentos no Institutode Educação, quando a diretora da Escola Nor-mal enfrenta a Direção do Atheneu Norte-Rio-grandense, um Colégio de Ensino Secundário,centenário e tradicional na formação dos jovensabastados, vindos de famílias influentes na vidapolítica, econômica e cultural do Estado. Dona

Chicuta Nolasco, por sua vez, era reconhecidapor sua experiência, competência e por ter “pul-so forte”, mas também ocupava uma confortá-vel posição na sociedade natalense, e era bemarticulada com as autoridades políticas do Es-tado Potiguar. Quanto a isso, ela comenta emtom de brincadeira, “entre os meus apelidos (...),um era - Diretora Política. Meu marido era de-putado estadual e líder do Governo na Assem-bléia” (FERNANDES, 1973, p. 130).

Assim, Dona Chicuta Nolasco enfrentou porvárias vezes situações adversas, algumas atépreconceituosas; isto se deveu à sua obstina-ção e por ter “uma quase obsessão de venceros obstáculos” (FERNANDES, 1973, p. 122),mas não podemos deixar de considerar que suacondição social lhe favorecia, abrindo-lhe ca-minhos, tornando-a pioneira de uma trajetória eforjando precedentes para uma reorganizaçãona ação das mulheres professoras, ou melhor,na realidade educacional Norte-Riograndense.

Uma realidade era plausível: o prédio emdisputa não comportava um Instituto de Educa-ção e o Colégio Atheneu. A luta estava por co-meçar. Dona Chicuta Nolasco, usando tambémsua condição de “diretora política”, solicitou aoGovernador Sílvio Pedroza, um novo edifíciopara o Instituto de Educação, o qual assumiu ocompromisso de providenciar. E assim o fez,no final de seu mandato, inaugurou o prédio quepassou a ser chamado de Instituto de Educa-ção5. Embora não contemplasse todos os re-quisitos para tal, ali foi instalada “a EscolaNormal, o Grupo Modelo, agora com o nomede Escola de Aplicação e o Jardim Modelo,anexo, reorganizando, o que se chamava umaEscola Normal, não um Instituto de Educação”(FERNANDES, 1973, p. 131). Seguindo a tra-jetória que Chicuta Nolasco chamou de “mi-grações”, a Escola Normal de Natal iniciara oano letivo de 1956, em um novo endereço.

Nesse estabelecimento permaneceu poruma década (1956-1966). Foi quando se tor-

5 O edifício localizava-se na Praça Pedro Velho nº 400, nobairro de Petrópolis. Após a saída da Escola Normal em1965, passou a sediar a Faculdade de Educação. Neste ende-reço funciona hoje a Escola Estadual Anísio Teixeira.

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nou, oficialmente, um Instituto de Educação atra-vés da Lei 2171 de dezembro de 1957, cujo Art.19 determinava que o Instituto de Educação deNatal, com caráter experimental em seus cur-sos de pesquisas, seria destinado à melhoria doEnsino Normal do Estado, mantendo, na medi-da de suas possibilidades, cursos de especiali-zação e aperfeiçoamento, contando se houvernecessidade, com a cooperação de técnicosnacionais ou estrangeiros. (RIO GRANDE DONORTE, 1957).

A reforma6 pretendia organizar e fixar asbases da educação elementar e da formaçãodo magistério. Criou a Escola de Aplicação (an-tes Grupo Escolar Modelo) e o Centro de Pes-quisa Educacional (CEPE). Teve seu antepro-jeto elaborado na Secretaria de Educação eCultura sob a supervisão do seu titular Dr. Tar-císio de Vasconcelos Maia e do Diretor do De-partamento de Educação, Dr. Carlos BorgesMedeiros (EDUCAÇÃO.., 1958) e com orien-tação político-pedagógica do professor AnísioTeixeira, então diretor do Instituto Nacional deEstudos Pedagógico (INEP).

Assim sendo, o alvo principal era a renova-ção da didática como forma eficiente de atingiros objetivos, portanto “terá de começar (...) docurso primário – e de penetrar, ainda com maisprofundidade, no setor de educação pedagógi-ca, onde se formam os professores, de cuja efi-ciência e capacidade intelectual depende todoo êxito do programa em referência” (EDUCA-ÇÃO..., 1958, p.3).

Entre as metas a serem atingidas foi dadaênfase ao preparo do professor primário, aquem se deve assegurar uma igualdade básicae unidade de formação pedagógica (EDUCA-ÇÃO.., 1958). Logo, o aperfeiçoamento e aformação pedagógica do professor seriam pontoprincipal para que este pudesse planejar, ensi-nar, e educar conforme os procedimentos téc-nico-científico.

As ações se iniciaram no sentido de agili-zar a capacitação do professor. Para tal, o Se-cretário de Educação firmou convênios com opresidente do INEP, que designou a professo-ra Lia Campos para coordenar elaborar e aci-onar os planos de execução da reforma do

ensino primário e normal Norte-Riogranden-se, em virtude de seus conhecimentos sobreos novos pressupostos da pedagogia escola-novista. Pretendia-se dar, assim, uma novafeição ao trabalho pedagógico e ao ato educa-tivo do professor no ensino do Estado (ARA-ÚJO, 2000, p. 6).

Outras intelectuais, também designadas peloMEC, deram sua contribuição para a educaçãonorte riograndense. Destacamos as professo-ras Eny Caldeira, antiga Diretora do Institutode Educação de Curitiba/PR e auxiliar de méri-to do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacio-nais, e a profª Juracy Silveira, ex-Diretora doEnsino Primário da Prefeitura do Distrito Fe-deral. Destacamos também a atuação do profºJúlio César de Melo e Souza, que chegou a re-alizar cerca de quinze conferências em todosos estabelecimentos de ensino superior e insti-tuições culturais, além dos Cursos de Didáticae Metodologia que realizou no Colégio Estadu-al, para professores secundários e professoresem estágio, no Curso de Aperfeiçoamento.

Além das ações pedagógicas realizadas noEstado, foi agilizado o deslocamento de profes-soras, supervisoras e diretoras de escolas paraos centros de especialização do Norte e do Suldo país, através de acordos entre a Secretariade Estado de Educação e Cultura junto ao MEC,para o qual foram destinadas, no ano de 1958,cerca de cinqüenta e três bolsas de estudo dis-tribuídas entre as diversas áreas do ensino (RIOGRANDE DO NORTE, 1959, p.54).

A profª Lia Campos e sua equipe7 se incum-biram de ministrar diversos cursos de aperfei-çoamento, treinamentos e palestras no interiordo Estado, através das Missões Pedagógicas,como também nos Centros de Formação deMagistério Primário do Estado (localizados emNatal, Caicó e Mossoró).

6 A mesma ficou conhecida como reforma “Tarcísio Maia”em homenagem ao Dr.Tarcísio de Vasconcelos Maia, Secre-tário de Estado de Educação e Cultura do Rio Grande doNorte e um dos seus idealizadores.7 Nessa equipe, algumas professoras já tinham realizado cur-sos de especialização nos centros educacionais do sul, adqui-ridos por meio de bolsas de estudos (FERNANDES, 1973,p.133)

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Divulgação, treinamento, qualificação, ade-sões e resistências, euforia e rejeição, dificul-dade de adaptação e envolvimento: manifesta-ções de diferentes formas de ver a reformaeducacional de 1957. Entretanto, era concebi-da pelo Governo estadual como sendo uma dassuas maiores obras, revestida de renovação,pioneirismo e ousadia, pois levou o Rio Grandedo Norte a ser mencionado no relatório daUNESCO, entre os três Estados brasileiros demelhor padrão educativo do país (RIO GRAN-DE DO NORTE, 1960, p.82).

Neste momento considerado revolucionáriopara a educação do Estado, apontamos a pre-sença marcante das mulheres professoras, quese encontraram em torno da causa educacio-nal. Para muitas delas, aquela experiência pes-soal e profissional é que fora revolucionária.Sejam elas as intelectuais que se deslocaramdas regiões Sul e Sudeste do país, para no Es-tado Potiguar multiplicar seus conhecimentos,ou aquelas que daqui saíram em busca de no-vos conhecimentos em terras alheias. Quantosàs professoras que aqui permaneceram, na ca-pital ou interior, elas também participaram des-sa história. Usando as palavras de DonaChicuta, “tivemos que ser envolvidos, nós, daNormal, como de resto de todo o Estado na ondaavassaladora de renovação” (FERNANDES,1973, 133).

Apesar do discurso em torno das ações daracionalização, da renovação didático-pedagó-gica, pesquisa em educação, o Instituto de Edu-cação continuava a funcionar em um edifícioque não atendia às suas exigências, ou seja, nãocomportava todos os componentes que lheseram fundamentais.

O Instituto de Educação Presiden-te Kennedy

O prédio onde finalmente se assentou o Ins-tituto de Educação foi edificado no início dadécada de 1960, no Governo de Aluísio Alves,em decorrência do convênio firmado com aSUDENE, MEC e USAID, obtendo financia-mento da ALIANÇA PARA O PROGRESSO.

No ano de 1963, foi criada a SECERN (Servi-ço Cooperativo do Ensino do Rio Grande doNorte), uma repartição que se encarregava deaplicar as verbas vindas destes convênios, prin-cipalmente aquelas destinadas à construção deprédios escolares.

Dona Chicuta Nolasco, que retornara à di-reção do Instituto de Educação em 1959, acom-panhou o processo de construção do novoedifício, não de perto, porque o pessoal da SE-CERN não costumava ser amistoso, nem davaimportância à opinião de professora conformecomenta sobre a visita feita a este local, pororientação do Secretário de Educação. “O as-sunto que me levava lá era a planta do InstitutoKennedy (...), fui mal recebida [não] me de-ram o cabimento de me mostrarem a planta”(FERNANDES, 1973, p.141).

A experiente diretora já se acostumara aenfrentar obstáculos dessa natureza e não sedeu por vencida; sugeriu ao governador quenomeasse uma comissão de professores expe-rimentados que estivessem na ativa para acom-panharem a construção, dando sugestões naquiloque fosse esquecido, não na parte arquitetôni-ca, mas no que se referisse ao plano didático efuncional. A comissão foi formada e a plantafoi apresentada aos professores do Instituto,“que discutiram e criticaram construtivamente.Mas o engenheirinho (...) nem deu ouvidos aninguém, e as falhas, outras e mais graves, láestão para quem quiser vê-las, apesar das ten-tativas que fizeram para remediá-las” (FER-NANDES, 1973, p141).

Mesmo com inúmeros problemas e constru-ção inacabada, o prédio foi inaugurado em 22de novembro de 1965, por ocasião da visita doSenador Robert Kennedy, com a denominaçãode INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PRESI-DENTE KENNEDY, em homenagem ao Pre-sidente dos Estados Unidos da América, paíscom o qual foram firmados os convênios de fi-nanciamentos.

Associadas a tais acordos adentravam-se,também, as teorias educacionais, que já anun-ciavam o exagero do tecnicismo na educação,bem como a invasão, ou melhor, a imposiçãocultural personificada no imperialismo americano

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que passou a exercer fortes influências sobre oBrasil, em específico, sobre o Estado Potiguar,ficando cravado na denominação de uma insti-tuição de representatividade imensurável paraa história cultural e educacional do Rio Grandedo Norte.

Em 1966, o Instituto já funcionara no novoendereço na Rua Jaguarari no bairro de LagoaNova, “mas as instalações eram precaríssimas(...). Não foram poucos os problemas que tive-mos de enfrentar, alguns de natureza grave,afora a precariedade de instalações e recursosmínimos para melhorá-las” (FERNANDES,1973, p.143).

Os percalços ali enfrentados não eram con-cebidos como se fossem “naturais”; entretan-to, a necessidade de cumprir o dever falavamais alto, logo, apesar das dificuldades, sobres-saíam-se os esforços para dar conta de “pro-gramas, currículo, atividades, como se tudoestivesse funcionando 100% (...), principal-mente a prática pedagógica (...), pois bem sa-bíamos quanto era imprescindível à formaçãodos professores” (FERNANDES, 1973, p.142-143).

Compreendemos que a história de uma ins-tituição extrapola a organização dos decre-tos de criação, data de inauguração, portarias,leis e regulamentos. Consideramos, portanto,todos os elementos que a compõem e cons-troem a identidade de uma instituição educa-cional, ou seja, “daquilo que lhe confere umsentido único no cenário social, do qual fezou ainda faz parte, mesmo que se tenha trans-formado no decorrer dos tempos” (GATTIJÚNIOR, 2002, p.20). Assim sendo, aquiloque constituía a identidade da Escola Normalcontinuou presente na prática do Instituto deEducação, que é a busca do melhoramentopedagógico e da profissionalização do exer-cício da docência.

Considerações finaisNesses termos, buscamos identificar na tra-

jetória dessa instituição a sua identidade, aquiloque a marcou no decorrer de quase seis déca-das pesquisadas (1908-1965), aquilo que a acom-panhou nas várias nuances que esta iriaformando, decorrentes das mudanças ocorridasno contexto social, político e educacional emque foram produzidas. Desse modo, apontamoscomo elementos constitutivos de sua identida-de: o pioneirismo e o empreendimento daquelesque faziam a instituição colocar-se num pata-mar de elevado conceito na sociedade natalen-se. Endossamos, assim, as palavras de ChicutaNolasco ao afirmar que:

Sem eles, os professores, seria impossível reali-zar a tarefa, e não teríamos registrado um índicede freqüência quantitativa e qualitativa jamaisalcançado, elevando, ao lugar que lhe competia,o nome de Instituto, que não era outro senão avelha Escola Normal. É por isso que acrediteinos resultados obtidos e afirmo que eles forammagníficos (FERNANDES, 1973, p.145).

Dona Chicuta está se referindo aos profes-sores do seu tempo de direção, entretanto, afir-mamos que estes deram continuidade a obraeducacional que a tradicional Escola Normal jádesenvolvia desde sua instituição, cujos mes-tres e mestras se caracterizaram pela credibili-dade, seriedade e perseverança. Os quaisfizeram desta uma instituição modelar, que seconsolidou enquanto tal pela preocupação emobservar as mudanças didático-pedagógicaspredominantes em diferentes épocas. Em al-guns momentos as inovações foram assimila-das com maior entusiasmo, em outros, commenos, acatando-os por força dos acontecimen-tos em seu entorno, mas confirmando sempre ocaráter pioneiro no que concerne à formaçãodocente no Estado Potiguar.

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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Maria Luiza Marcílio:HISTÓRIA DA ESCOLA EM SÃO PAULO E NO BRASIL

- um clássico na literatura sobre educação

Jacques Jules Sonneville*

* Mestre em Ciências Sociais pela UFBA. Doutor pela Universidade Católica de Louvain – Bélgica. Professor na linhade pesquisa 2 do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB – PEC/UNEB. Editor executivo da Revistada FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia -UNEB, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected] MARCÍLIO, Maria Luiza. História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado de SãoPaulo / Instituto Fernand Braudel, 2005. 485 p.

RESUMOO presente artigo é um resumo do livro de Maria Luiza Marcílio1 onde serãodestacados os achados mais importantes para o entendimento da evoluçãoescolar paulistana, com extrapolações e projeções para a realidade nacional. Olivro é dividido em três partes: 1) Origens: 1554-1870; 2) O “século” da escola:1870-1990; 3) Educação para todos: 1990-2000. A estreita relação entre osaspectos demográficos da história e o sistema educacional, presente em todo olivro, é um exemplo de estudo multidisciplinar, indispensável para a compreensãoda realidade em toda a sua complexidade. Consideramos o livro um roteiroindispensável para entender a luta por uma educação de qualidade para todosos brasileiros.

Palavras-chave: História da escola – Cidade de São Paulo – Brasil

ABSTRACTMaria Luiza Marcílio: SCHOOL HISTORY IN SAO PAOLO AND INBRAZIL - a classic in education literature

This paper is an abridgment of Maria Luiza Marcílio’s book where we willsketch the main findings for the understanding of the evolution of the Sao Paoloschool system, with extrapolations and projections into the global Brazilian reality.The book is divided in three sections: 1) origin: 1554-1870 2) the school century:1870-1990 3) education for everyone: 1990-2000. The narrow relation betweenthe demographic dimensions of history and the school system, present in thewhole book, constitutes an example of a multidisciplinary study, essential forthe understanding of reality in all its complexity. We consider this book anindispensable tool for the understanding of the struggle for a quality educationfor all the Brazilian people.

Keywords: School History – Sao Paolo - Brazil

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INTRODUÇÃOO livro de Maria Luiza Marcílio é o resulta-

do de quatro décadas de pesquisas sobre a his-tória da cidade de São Paulo e do Brasil. Apósse formar no curso superior de História da en-tão Faculdade de Filosofia da Universidade deSão Paulo (USP), a autora estudou durantequatro anos, em Paris, com bolsa do governoda França, a ciência recém-criada – Demogra-fia Histórica – para elaborar, sob a orientaçãode Louis Henry e Fernand Braudel, sua tese dedoutorado sobre a história da população da ci-dade de São Paulo, publicada na França sob otítulo La ville de São Paulo: peuplement etpopulation. 1750-1850. De volta ao Brasil,criou o Centro de Estudos de Demografia His-tórica da América Latina – CEDHAL, na USP.Foi professora visitante em universidades daEuropa e Estados Unidos e assessora de gabi-nete da Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social, durante o governo de Mário Covas,no Estado de São Paulo.

Convidada, em 2000, pelo Instituto FernandBraudel de Economia Mundial, para resgatar ahistória da escola pública na cidade de São Pau-lo, desde sua fundação até nossos dias, reuniutodas as informações disponíveis em arquivos,bibliotecas e na internet – dados, documentos,manuscritos, biografias, imagens, bibliografia,entrevistas etc. O foco do livro foi a escola pú-blica, o aluno e os vários fatores que constituema educação, tais como legislação, formação deprofessores, gestão escolar, avaliação, recursose condições de trabalho, tendo como meta a re-construção da trajetória secular para alcançar a“Educação para Todos”, ainda não alcançada.

O livro é dividido em três partes: 1) Origens:1554-1870 – foi em 1554 que nasceu a Vila deSão Paulo, em torno de uma casa de ensino dosJesuítas, para evangelizar os índios do planalto(p.1-29). 2) O “Século” da escola: 1870-1990 –é a parte mais extensa do livro, tratando da ex-pansão do sistema escolar na cidade de SãoPaulo e sua relação com o crescimento gigan-tesco da sua população (p.91-333). 3) Educa-ção para todos: 1990-2000 – são analisadas asgrandes polêmicas da década de 1990 e seu

reflexo sobre os novos desafios para a educa-ção (p.335-437). A estreita relação entre osaspectos demográficos da história e o sistemaeducacional, presente em todo o livro, é umexemplo de estudo multidisciplinar, indispensá-vel para a compreensão da realidade em toda asua complexidade.

Cada uma das três partes termina com Con-siderações sobre o período estudado, onde aautora, a partir de uma síntese dos dados pes-quisados, tira as conclusões para o entendimentoda realidade educacional no Brasil. No final dolivro encontram-se os créditos das imagens (56fotos, gravuras e objetos), a lista das tabelas, abibliografia, o índice remissivo e a lista das abre-viaturas. A Apresentação foi escrita por Ru-bens Ricupero e Norman Gall. O Prefácio é deCláudio de Moura Castro.

Neste artigo serão destacados, dentro dosinúmeros dados e análises, os achados maisimportantes para o entendimento da evoluçãoescolar paulistana, com extrapolações e proje-ções para a realidade nacional. É importanteobservar que, devido à amplitude da temática,as teses da autora serão apresentadas, semconfrontá-las com outros autores. No âmbitodeste pequeno texto, não há como iniciar umadiscussão desta natureza sobre um tema tãocomplexo e diversificado. Além disso, a esco-lha dos temas aqui apontados é de exclusivaresponsabilidade do autor do artigo.

I - ORIGENS: 1554-1870Nesta primeira parte, há um primeiro capí-

tulo – O ensino dos Jesuítas na cidade:1554-1759 – (p. 3-16) que descreve e analisaos 210 anos em que os Jesuítas exerceram omonopólio da educação na Colônia. Duranteeste período o Governo português não interveionem se preocupou com o ensino.

Em 1759, ano de expulsão dos Jesuítas, seusalunos atingiam menos que 0,1% da populaçãobrasileira (p. 1).2 O ensino humanista dos Jesu-

2 Em toda a colônia eram três os grandes colégios dos Jesu-ítas: Bahia, Olinda e Rio de Janeiro, onde os jovens colonosestudavam as mesmas coisas que os jovens nobres e burgue-

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ítas era destinado à formação de seus própriosquadros e às elites, mesmo tendo uma partedestinada ao ensino do gentio. É importantedestacar que a cultura humanista, baseada naaprendizagem do latim e grego, perdurou até oséculo XX.3

Enquanto isso, outro modelo de educaçãosurgiu, a “instrução popular”, seja sob o impul-so da Reforma e do Iluminismo, junto com ocapitalismo nascente (na Alemanha, Inglaterrae América do Norte), seja sob inspiração cristã(as escolas lassalistas na França).

O segundo capítulo (p. 17-82) – A trajetó-ria inicial do ensino público: 1759-1870 –descreve e analisa o sistema escolar no final doperíodo colonial e durante quase todo o impé-rio. Com o abandono da caça ao índio e a ex-pulsão das minas (Guerra dos Emboabas -1710), a capitania de São Paulo, criada em 1765,implantou a agricultura de exportação (açúcare café), base de um lento e secular processo deenriquecimento. Mas, em 1836, a cidade aindacontava com uma diminuta população de 21.933habitantes (dos quais 45% eram brancos e73,7% livres), em sua grande maioria dispersaem um vasto território, equivalente ao atual gran-de São Paulo (p. 46; 59)

Este capítulo é dividido em dois períodos,sendo o primeiro (Os primórdios) de 1759 até1834, e o segundo de 1834 a 1870 (Estagna-ção do ensino na cidade: 1834-1870). Foiem 1834 que o ato adicional exonerava o podercentral do ensino primário e secundário, per-manecendo só com o ensino superior, resultan-do em uma pluralidade de sistemas regionais,de acordo com o entendimento de cada presi-dente de província4

A característica básica dos dois períodosé a discrepância entre o discurso e a prática,entre as leis e sua aplicação. Entre os inú-meros dados descritos e analisadas pela au-tora, apontamos dois. Em substituição aoensino seriado dos colégios dos Jesuítas, a

reforma de Pombal introduziu as aulas régi-as de latim, grego e retórica, continuando atradição humanista e elitista. Somente 13 anosdepois, em 1759, foram redigidos os estatu-tos dos estudos menores, para as escolas deprimeiras letras nas comarcas e vilas do Rei-no. O resultado foi trágico. Cada aula régiaconstituía uma unidade autônoma, com pro-fessor único, geralmente de baixo nível, por-que improvisado e mal pago. Os alunos sematriculavam em tantas disciplinas que de-sejassem e podiam entrar e sair durante qual-quer época do ano. Essa prática de ensinofragmentado arraigou-se de tal forma no en-sino das primeiras letras e secundário que per-durou até bem entrado o século XX (p.22).Na ausência de boas escolas difundiu-se aeducação doméstica5 ou, nas famílias maisricas, a contratação de preceptores.

Outro exemplo é o sistema lancasteriano6

de ensino, também chamado ensino mútuo.Com a falta de recursos e de mestres qualifica-dos parecia uma solução genial para resolver aquestão da educação de massa. Em um únicolocal bem grande, centenas de crianças podiamser divididas de acordo com seu aproveitamen-to e confiadas aos monitores, os alunos maisadiantados, sendo necessário apenas um mes-tre. Em 1825, o governo decidiu implantar ométodo do ensino mútuo em todas as provínci-as. De novo, o sistema nunca foi devidamenteimplantado, devido à falta de salas7, de móveise material didático e, sobretudo, de professorese alunos-monitores preparados. Perdurou noséculo XIX, como nos tempos coloniais, o mé-

ses das grandes cidades européias (p. 14). A biblioteca dosjesuítas da Bahia era a mais importante, mas sua coleção seperdeu quase inteiramente. Enquanto isso, a cidade de SãoPaulo ainda não era um centro de cultura, sendo o paulistaum rústico, isolado no interior (p. 16).

3 Na década de 1950, eu estudei, num dos “colégios católi-cos” da Bélgica, o segundo grau denominado Humaniora,conforme este modelo. O último ano chamava-se Retórica.Este modelo permanece até hoje, pelo menos como umadas opções de ensino secundário que tem a duração de seisanos nesse país. (Nota do autor).4 Essa política de descentralização durou até os anos de1930.5 O futuro barão de Mauá teve uma única mestra: sua mãe(p.54).6 Do quacre Joseph Lancaster (1779-1838) que, em Lon-dres, abriu uma escola para crianças pobres, em 1798.7 Cabia ao professor arcar com o aluguel de sua sala de aulaou, então, ministrar as aulas em sua própria casa (p. 66).

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todo individual8, onde o professor atendia umaluno por vez, enquanto os demais ficavam oci-osos, sendo necessária a aplicação de castigosfísicos (a palmatória) para manter a ordem. Osmestres de escola “sempre ganhavam saláriode fome; bastava saber suficientemente ler eescrever, com noções de cálculos, para dar au-las; o professor sabia só um pouco mais que oaluno.” (p.85). Era grande o absenteísmo doprofessorado, prática que perdura até os nos-sos dias (p.86).

Sendo o principal problema a falta de pre-paro dos mestres, várias foram as tentativas decriar “cadeiras de primeiras letras e de gramá-tica latina” (p.27). Como sempre, a propostasequer foi considerada pela metrópole, sendoque Portugal jamais permitiu a existência deuniversidades ou de unidades isoladas de ensi-no superior, ao contrário da Espanha que desde1521 estabeleceu universidades em suas colô-nias americanas (p. 28). No século XIX, a im-plantação de Escolas Normais, em queprofessores das escolas públicas pudessem serpreparadas, seguiu um ritmo muito lento, em con-traste não somente com os países da Europa,mas também com a Argentina, que introduziuuma verdadeira revolução educacional no sé-culo XIX, com a criação de novas universida-des, colégios de formação secundária e EscolasNormais, e a contratação de professores naAmérica do Norte (p.87).

Apesar deste quadro de ensino precário ecaótico, Maria Luiza Marcílio aponta dois fatospositivos. Na primeira metade do século XIX éfreqüente a presença de escravos nas aulaspúblicas. Não somente em São Paulo, mas tam-bém em Belo Horizonte, os arquivos com aslistas de alunos matriculados mostram comofato surpreendente a convivência na mesma salade aula filhos de cidadãos livres, filhos de es-cravos, filhos ilegítimos, expostos (abandona-dos), brancos, pardos e negros, ricos e pobres.A primeira lei que barrava a entrada de escra-vos na escola pública paulista data de 1868 (p.32; 69). 9

A Lei Geral de Ensino de 1827 determinoua criação de escolas de primeiras letras em to-das as cidades, vilas e lugares populosos.10

Mesmo com todas as deficiências acima des-critos (falta de salas, professores preparados ematerial didático), as escolas populares aos pou-cos foram sendo instaladas, emergindo e seentranhando na consciência coletiva e das eli-tes a importância da instrução e da educaçãopara a população. Este processo moroso foiessencial para o “Século da Escola”, tema dasegunda parte do livro.

II - O SÉCULO DA ESCOLA 1870-1990

Esta segunda parte tem três grandes seg-mentos: Contextos (p. 93-126); O século dareforma de ensino (p. 127-157); e A expan-são da escola na cidade de São Paulo: 1870-1990) (p.159-324); encerrando com asConsiderações Gerais (325-333) sobre o pe-ríodo estudado.

“A cidade de São Paulo passou de 31 milhabitantes em 1872 para 10 milhões no ano2000.” (p.93). Assim começa o primeiro seg-mento – Contextos – onde a autora, especia-lista em demografia histórica, descreve As ba-ses demográficas e seus impactos sobre oprocesso da universalização da educaçãode base: 1870-1990. São descritas e analisa-das as diversas causas deste crescimento ver-tiginoso. Em primeiro lugar, a taxa de cresci-mento, aumentando de 1%, nos anos de 1870,

8 A autora dá dois exemplos de relação manuscrita de alunosmatriculados, acompanhada por observações sobre o de-sempenho de cada aluno. Numa relação de meninas numaescola pública feminina do distrito da Sé, na cidade de SãoPaulo, transcrevemos dois relatos: 2. Ana Florinda, naturaldesta Cidade, filha do Capitão Joaquim Ignacio, entrou em 3de Março de 1837. Idade 10 annos. Não freqüenta. 4) AnnaFrancisca Cezar, natural desta Cidade, filha de Affonso Fran-cisco Cezar, entrou em 10 de Novembro de 1837. Acha-secorrente em ler, escrever, contar e finalizando Grammatica.Idade 9 annos.9 Em 1854, a lei 133 que regulamenta a instrução primária esecundária no “Município da Corte”, com reflexo em todo oresto do país, proibia a presença de escravos (p.31-32).10 “Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro ope-rações de aritmética, prática de quebrados, decimais e pro-porções, as noções mais gerais de geometria prática, a gra-mática da língua nacional, os princípios de moral cristã e dedoutrina da religião católica e apostólica romana, proporci-onadas à compreensão dos meninos” (art. 6º) (p. 47).

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para 2,9%, na década de 1950, para depois de-clinar de modo lento até os atuais 1,8%. Nestes130 anos, a população brasileira aumentou 17vezes, o Estado de São Paulo 44 vezes e amunicípio de São Paulo 331 vezes. Outra cau-sa foi a entrada maciça de imigrantes europeus,que se dirigiam sobretudo para São Paulo11. Apartir de 1930 foi a entrada cada vez mais nu-merosa dos migrantes nacionais, sobretudo deMinas Gerais e do Nordeste, que fez da cidadede São Paulo a terceira cidade do planeta nadécada de 1990. Tudo isso teve um impacto noperfil da população, cuja parcela de menos de20 anos dificilmente atingia 50%, na cidade deSão Paulo. Além disso, na mesma cidade, amortalidade infantil, que atingia a taxa de 174,312

em 1926, caiu para 15,8 em 2001.13 Finalmente,a rápida ocupação de amplas áreas urbanas,sobretudo na periferia da cidade e sem planeja-mento, ocasionou o surgimento das favelas que,inexistentes até meados do século XX na cida-de, abrigaram um milhão de habitantes em 1995,e 1,9 milhão em 2000 (p.103).

Mesmo que, em todo o período até 1990, ocrescimento populacional fosse sempre maisrápido que a abertura de mais escolas, São Pauloconseguiu colocar grande proporção de crian-ças e jovens nas suas escolas. A partir de 1990,porém, as novas exigências do mercado de tra-balho e do mundo moderno estimularam os jo-vens a permanecer mais tempo na escola. Emapenas três anos (entre 1992 e 1995), o per-centual de adolescentes fora da escola caiu de64% para 42% (p.103). Em detrimento das ne-cessidades das crianças e jovens mais pobres;para estas novas exigências a escola públicanão estava preparada.

Além das mudanças demográficas, MariaLuiza Marcílio traça um quadro amplo das trans-formações que ocorreram nos mais diversossetores, importantes para entender seu impac-to no sistema educacional. Primeiro, no períodode 1870 a 1930 (A cidade se agiganta – p.105-119). No fim desse período, quando a oli-garquia do café cedeu o poder a uma burguesiaindustrial emergente, a cidade de São Paulo jáatingia quase um milhão de habitantes. Depois,para os sessenta anos seguintes, entre 1930 e

1990, são descritas A emergência e a explo-são da metrópole (p. 121-126). São transfor-mações que ocorreram no país e, em especial,na cidade de São Paulo, nas mais diversas áre-as: na economia (café, desenvolvimento indus-trial acelerado, substituição das importações,penetração do capital externo, inflação, reces-são); nos transportes (ferrovias, bondes, depoissubstituídos por rodovias, asfalto e automóveis);na urbanização (reformas constantes do perfilurbano, ocupação sem controle de áreas peri-féricas); no saneamento e no abastecimento deenergia, água e alimentos; nos meios de comu-nicação (telefone, jornais, TV); na cultura (tea-tros e casas de espetáculo, bibliotecas, livrarias,artes)14; nas universidades (USP, PUC e Ma-ckenzie e multiplicação desenfreada de univer-sidades e faculdades particulares); nas idéias ena política.

O século da reforma de ensino (p. 127-157), o segundo segmento da segunda parte dolivro, é dedicado ao entendimento das reorde-nações sucessivas do sistema educacional.“Uma reforma radical do ensino público é aprimeira de todas as necessidades da pátria”,afirmava Rui Barbosa (p.131)15. Na realidade,o que não faltou na história da educação brasi-leira foram reformas. Somente para o ensinomédio, entre 1759, ano de expulsão dos Jesuí-tas, e 1996, ano da mais nova LDB, houve nadamenos do que 21 reformas, sendo que as doensino fundamental foram muito mais numero-sas (p.128). Transplantando sistemas educaci-onais de países avançados, a fim de superar asituação caótica do ensino, a reforma pela lei

11 “Entre 1882 e 1930, 2.223.000 pessoas foram para oEstado de São Paulo; dessas, 46% eram italianos e 18%portugueses” (p. 95, apud LOVE, Joseph. A locomotiva.São Paulo na federação brasileira 1889-1937. Rio de Janei-ro, RJ: Paz e Terra, 1982, p. 25).12 Taxa de mortes de menores de um ano par cada mil nasci-dos vivos.13 Ainda muito alta, sendo que a ONU considera aceitávelapenas uma taxa menor que 10 (p.101).14 “São Paulo tornou-se um dos mais importantes centrosartísticos do país. (...) Em 2000, o município contava, en-tre museus, centros culturais, espaços culturais, casas decultura e teatros, com 130 unidades.” (p. 125-6)15 Apud BARBOSA, Rui. A reforma do ensino primário.1883. Rio de Janeiro, RJ: MEC, 1947, t. 1, p. 143.

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foi usada como instrumento mágico, capaz demudar por si mesmo as coisas. Deste modo, háuma sucessão de reformas por decreto, semcorrespondência com as reais necessidades doensino.

Um exemplo foi a confrontação secular, noensino secundário, entre os preparatórios (atra-vés de exames “cumulativos”, o aspirante àescola superior podia estudar as matérias numtempo a sua escolha) e o ensino seriado. NaPrimeira República, após uma sucessão de “Re-formas”, somente em 1925 a Reforma RochaVaz preparou a implantação do Ensino Médiocomo curso regular e graduado que, no entan-to, só vem a se tornar realidade a partir de 1930.

No Estado de São Paulo, a Reforma de 1892criou um sistema escolar, “que ia do ensino pri-mário e secundário à Escola Normal e ao supe-rior, incluindo a criação do jardim-de-infância edo Ginásio de Estado” tornando-se o paradig-ma para todo o país. (p.138). Em 1920, porém,Sampaio Dória propõe uma nova reforma doensino paulista, reduzindo tanto o ensino primá-rio quanto o ensino médio a dois anos. Sofreuseveras críticas por parte dos educadores. Odebate teve como resultado o surgimento demovimentos e idéias novas, provocando a cria-ção em 1924 da Associação Brasileira de Edu-cação (ABE). O Brasil já contava com umgrupo mais amplo de educadores preparados,alguns com estágio nos Estados Unidos ou naEuropa, que introduziram novas teorias educa-cionais no país. (p.143)

A partir de 1930, finalmente, com atraso dequatro séculos em relação aos demais paísesda América, iniciou-se a criação de universida-des. Também a reordenação do ensino foi re-colocada no âmbito nacional. A Reforma deFrancisco Campos (1931/1934), que reorgani-zou o ensino secundário, e as várias reformasparciais de Gustavo Capanema (entre 1942-1946), abrangendo o ensino primário e secun-dário, resultaram na Lei Orgânica do EnsinoPrimário (a segunda, depois da Lei de 1827),determinando a duração de quatro anos para ocurso elementar e um ano para o complemen-tar (destinado para o exame de admissão aoginásio), e na Lei Orgânica do Ensino Secun-

dário, que organizou o ginásio de quatro anos,como base para o colegial de três anos, seja nocurso científico (com ênfase nas ciências natu-rais e exatas), seja no clássico (com ênfase nashumanidades) (p.147-8).

A nova grande reforma que foi promulgadaem plena ditadura militar, em 1971, teve um saldoaltamente negativo. Fora da fusão do curso pri-mário e do ginásio em um único curso de oitoanos (o único ponto positivo, segundo a autora,por eliminar os exames de admissão), a profis-sionalização universal do ensino de 2º grau, alémde causar uma desastrosa confusão no ensinocolegial, extinguiu o curso normal, o único queestava dando certo, preparando o professor pri-mário. Antes disso, a Reforma Universitária de1968 desmantelou a Faculdade de Filosofia,desestruturando a formação de professorespara o ensino médio.

A autora analisa, também, a história da pri-meira Lei das Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, de 1961. Depois da nova Constitui-ção de 1946, o então Ministro de Educação eSaúde Clemente Mariani tinha constituído umacomissão de eminentes educadores, não parapropor “uma nova reforma de ensino”, mas “umconjunto de princípios, de bases, de limites e defaculdades flexíveis e criadoras” (p.149)16.Apresentado em 1946, na Câmara Federal, oprojeto demorou 13 anos para ser aprovado,após sofrer profundas modificações, sob pres-são da Igreja Católica, em relação à laicidadedo ensino, à co-educação dos sexos e à escolapública, popular e gratuita.

O terceiro segmento da segunda parte – Aexpansão da escola na cidade de São Paulo1870-1990 – ocupa mais de um terço do livro.Através de uma quantidade impressionante dedados, tabelas e imagens, a autora descreve eanalisa a implantação da vasta rede escolar nacidade de São Paulo, de maneira densa, clara eprecisa, de modo que cada uma de suas 165páginas representa uma fonte rica de informa-

16 Apud MARIANI, Clemente. Exposição de Motivos doProjeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 13,n. 36, maio/ago. 1949. p.64.

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ções. Na primeira fase (1870-1930) são abor-dados o Ensino Primário e o nascimento daEducação Infantil, o Ensino Secundário, emespecial a Escola Normal e o Ginásio. Na se-gunda fase (1930-1990) são tratados sucessi-vamente o processo de universalização daescola na cidade de São Paulo, a Educação In-fantil, o Ensino Primário, o Ensino secundário(Ginásios, Colégios, Ensino Profissional), a For-mação do Professor (descrevendo o fim daEscola Normal, a desagregação da Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras), a Alfabetiza-ção de Adultos e o Ensino Supletivo.

Sob o impulso do ideal republicano, segundoo qual o Estado é o responsável pela manuten-ção e o desenvolvimento da instrução pública,a escola começou a fazer parte da paisagemurbana paulista, com prédios grandes e bemequipados. A fim de preparar os professores,instalaram-se Escolas Normais públicas em pré-dios especiais, com bibliotecas e espaço paraesportes, tendo como modelo a Escola NormalSecundária, da Praça da República, com suaescola primaria “Caetano de Campos”, anexa,como lócus de experimentação dos novos pro-cedimentos pedagógicos. Foram importadosmóveis escolares e material didático, convida-dos professores estrangeiros e traduzidas obrasdos maiores educadores do momento. A Re-forma de 1892, acima citada, serviu de padrãode excelência para outras unidades federais.Além do sistema vertical, desde o pré-primárioaté o superior, surgiram novos setores, como aeducação infantil, o ensino noturno e o ensinoprofissional.

Com a crescente importância atribuída àeducação, o normalista e o professor adquiri-ram dignidade, tomando o lugar do professorleigo, despreparado. Inaugurou-se a carreiraprofissional do professor. A mulher pouco apouco foi conquistando o seu lugar, em todos osníveis, da Escola Normal17 até o ensino superi-or. E por conta da valorização da profissão, asnormalistas provinham, na sua maior parte, dasclasses médias e altas.

Mas na mesma década de 1920, a fim deatender à crescente demanda por escolas, oEstado abriu espaço para o aparecimento de

escolas particulares de todo tipo, sem controlenem fiscalização, embora algumas delas, emgrande parte em mãos de ordens religiosas, te-nham contribuído para a renovação e moderni-zação do ensino. Foi o início do dualismo vigenteno sistema educacional brasileiro, já denuncia-do pelos líderes da Escola Nova: “escolas pri-vadas, caras, de alta qualidade, para as criançasde elite e classe média, e escolas públicas ouprivadas, de baixo custo e baixa qualidade paraas demais.” (p.333).

Deste modo, se a formação do professor parao ensino fundamental e médio sempre foi fracaem todo o período, foi a Reforma de 1971 querebaixou a preparação do professor primário aonível de habilitação de 2º grau, com graves pre-juízos para uma formação adequada do profes-sor de educação infantil e das séries iniciais. Oprofessor alfabetizador, então, teve que ser im-provisado, preparado na prática do magistério.Assim, apesar da notável expansão da escolapública de base e do aumento considerável daescolaridade, o desempenho do Brasil é dos pi-ores em comparações internacionais, mesmocom os países mais pobres.

Ao entrar na década de 1990, a escola públi-ca fundamental da cidade de São Paulo sofre defalta de prédios escolares de qualidade, falta ouprecariedade de bibliotecas bem organizadas,material didático. É uma escola com vários tur-nos, classes superlotadas, taxas de evasão e re-petência elevadas, professores mal preparados,desanimados e com baixos salários.

III - EDUCAÇÃO PARA TODOS NAERA DA GLOBALIZAÇÃO 1990-2000

A terceira parte (p.337-437) do livro deMaria Luiza Marcílio parte do entendimento deque a educação universal de qualidade se tor-nou mais do que nunca vital para enfrentar osnovos desafios no final de século XX e início doséculo XXI. A globalização, junto com a infor-mática e a internet, é a causa da crescente in-

17 Em 1920, 82% dos matriculados nas Escolas Normais doEstado eram do sexo feminino (p.326).

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terdependência econômica das nações, da mu-dança radical no acesso ao conhecimento e datransformação do emprego. Em todos estessetores, a educação se tornou um dos fatoresdecisivos.

Na década de 1990, a autora aponta doistipos de indicadores. De um lado, o acesso àescola em todos os níveis teve um crescimentosignificativo. No ensino fundamental, graças adois programas do governo federal, o FundoNacional de Manutenção de Desenvolvimentodo Ensino Fundamental e Valorização do Ma-gistério – FUNDEF e o Programa Bolsa-Esco-la18, 97% das crianças de 7 a 14 anos de idadeestavam na escola, em 2001. Pela primeira vez,o MEC deixou de planejar a política educacio-nal pelo vértice da pirâmide, passando a fazê-lopela base, chegando, no fim do século XX, aprover escola fundamental para toda criançabrasileira. Também no ensino médio, entre 1991e 2000 o número de matrículas mais que dupli-cou, chegando a 8,2 milhões de alunos, sendoque a escolarização de jovens 15 e 17 anos su-biu de 53,3% para 66,8% em apenas 5 anos,entre 1991 e 1996, apesar de ainda ficar longeda Argentina e do Chile com 75% (p.396). Tam-bém no ensino superior o Brasil, que no iníciodo século contava “com algumas poucas esco-las e nenhuma universidade, chega ao terceiromilênio com 894 instituições de ensino superior,das quais 222 são públicas e 127 universida-des.” (p. 434). Mesmo assim, apenas 10% dosjovens da faixa etária correspondente são aten-didos no ensino superior.

Há, porém, um segundo tipo de indicadores.Além da desigualdade social, na qual o Brasiltem um dos piores índices do mundo, o país écampeão mundial em aluno repetente. MariaLuiza Marcílio escreve: “perdemos a capaci-dade de indignação perante um sistema educa-cional em que os professores não ensinam e ascrianças não aprendem.” De fato, como nãohaver espanto quando apenas 3% dos alunoschegam à oitava série sem nenhuma repetên-cia? (p.356). Por conseguinte, o desempenhomédio dos alunos é extremamente deficiente,como atesta o SAEB – Sistema de Avaliaçãodo Ensino Básico, cujos resultados de 1997 e

1999 mostraram que o concluinte médio de 8ªsérie apenas domina o esperado de um alunode 4ª série, que o concluinte da 4ª série malsabe decodificar as palavras, e que ambos sãoincapazes de ler e compreender uma notícia dejornal (p.359).19

A fim de enfrentar o problema da repetên-cia e do atraso escolar, a partir de 1995 o go-verno de São Paulo implantou o sistema de Ciclosno ensino fundamental (Ciclo I, de 1ª à 4ª série,e o Ciclo II, de 5ª à 8ª série), abolindo a avalia-ção por série. O aluno que não atingir o pata-mar esperado passa para a série seguinte, masrecebe aulas de reforço e recuperação, sendoque, no final de cada ciclo, o aluno que não su-pera as lacunas de aprendizagem fica retido porum ano para recuperação. Neste sentido, a ava-liação deixa de ser seletiva e excludente, parase tornar um processo de acompanhamento doestágio de aprendizagem do aluno. Mudando aavaliação, alteraram-se a prática do ensino e aprópria escola. É evidente que esta nova práti-ca escolar exige uma nova gestão da escola,baseada na autonomia, na competência técni-ca, na liderança pedagógica, na capacitação dosprofessores e no apoio e participação dos pais.Para isso, é preciso mudar as formas de esco-lha dos diretores de escola, combinando a sele-ção via concurso com a participação dacomunidade escolar.

A autora faz uma análise da educação pú-blica na década de 1990 na cidade de São Pau-lo: a Educação Infantil, o Ensino Fundamentale Médio, a Educação de Jovens e Adultos e aEducação a Distância.

Mas queremos destacar o texto dedicado à“Promoção e valorização do professor da es-cola publica: o ponto do estrangulamento”(p.407-421) e as “Considerações sobre a déca-da de 1990” (p.431-437). Há uma consciência

18 “Pesquisas socioeconômicas indicam que para cerca deseis milhões de famílias brasileiras é quase insuportável ocusto de manter um filho na escola, ainda que gratuita.” (p.344, apud MEC. Política e resultados. 1995-2002. Auniversalização do ensino fundamental no Brasil. Brasília,dez. 2002. p.19.)19 Apud OLIVEIRA, João Batista; SCHWARTZMAN, Simon.A escola vista por dentro. Belo Horizonte: Alfa Educativa,2002. p. 25.

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política extremamente baixa em relação à im-portância do professor para o desenvolvimentodo país, especialmente em se tratando do pro-fessor da escola pública de base, resultando emuma formação precária e condições aviltantesde trabalho e de remuneração.

De fato, a profissão de professor tornou-secada vez menos atraente para camadas impor-tantes da juventude do país.20 Os salários dosprofessores do Brasil, em comparação com osdemais países do WEI 21, superam apenas osda Indonésia e do Peru (p.421). Entre 1963 e1996, em São Paulo, o salário do professor de1ª a 4ª série caiu de 1.042,61 (em valores corri-gidos) para 238,55 (dados publicados na Folhade São Paulo, 05.05.1996) (p.420). A conseqü-ência é o êxodo de professores qualificados eexperientes. E muitos formados em cursos delicenciatura buscam empregos com remunera-ção mais atraente. Dos 2,5 milhões de educa-dores da rede pública, 60% estão perto daaposentadoria em 2003, de modo que as proje-ções mostram que a rede pública do país correo risco de ficar sem professores na próximadécada (p.420).

A reforma de 1971, que rebaixou a prepa-ração do professor primário ao nível de habili-tação de 2º grau, criou também as chamadaslicenciaturas curtas de 1º grau (os HEM), comconseqüências catastróficas para a capacita-ção dos professores, em contraste com “os an-tigos Cursos Normais, integralmente voltadospara a profissionalização no magistério nestenível.”22 Anteriormente, a Reforma Universi-tária de 1968 tinha desmantelado as Faculda-des de Filosofia, criando as faculdades deeducação, muito mal aparelhadas, “em funçãoda pesquisa e do trabalho de produção acadê-mica, em que predominam temas de caráterteórico, com constantes modismos importadose pouca pesquisa empírica. A função, ou seja,a formação do professor, tornou-se uma ativi-dade ‘menor’.” (p.409). O professor alfabeti-zador, por exemplo, deve ter um preparo teóricoe prático específico, mas sua formação geral-mente se limita a uma só disciplina, centradanos aspectos teóricos e históricos da escrita eda leitura (p.417).

Diante disso, criou-se o Instituto de Edu-cação Superior, voltado exclusivamente paraa formação de profissionais da educação debase, incluindo a Escola Normal Superior, paraformar o professor da educação infantil e dasséries iniciais. Para estes, foram indicados ex-clusivamente os cursos normais superiores, peloDecreto 3.276, de 6 de dezembro de 1999, pro-vocando forte resistência das associações ci-entíficas (Anfope, Anped e Anpae).

A LDB de 1996 determinou que a forma-ção de docente para atuar na educação básicadeva ser em nível superior. De fato, ficou pro-vado que o desempenho dos alunos de profes-sores com curso superior é nitidamente maiselevado. A única exceção, por um prazo provi-sório até fins de 2006, foi para os professoresde educação infantil e séries iniciais. Para es-tes, o MEC adiou esta obrigatoriedade, em 2003,significando um novo retrocesso.

Ter um curso superior, porém, não garante,por si só, a qualidade do ensino. Por exemplo,as licenciaturas nas universidades são cursosjustapostos aos bacharelados, sem articulaçãocom estes. Elas não asseguram nenhuma ins-trumentação pedagógica para os futuros docen-tes. Existem, também, muitos cursos aligeiradosde pedagogia e faculdades de fim de semana,funcionando em condições precárias, graças àinércia do poder público e sua burocracia.23 Afim de oferecer uma alternativa à fragmenta-ção das licenciaturas e ao aligeiramento na for-mação pedagógica, Bernadete Gatti vê comesperança a criação dos institutos de educaçãosuperior, específicos para a formação de do-

20 Vide: GATTI, Bernadete A. Formação de professores esua carreira. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2000.p.14.21 WEI – World Education Indicators: um programa da OCDEque inclui 19 países (Argentina, Brasil, Chile, China, Egito,Índia, Indonésia, Jamaica, Jordânia, Malásia, Paraguai, Peru,Filipinas, Federação Russa, Sri Lanka, Tailândia, Tunísia,Uruguai e Zimbábue), somando 70% da população mundial.Disponível em <http://www.uis.unesco.orgev.php?URL_ID=5263&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201>, acessado por mim em 20 de ago. 2005.22 GATTI, B. Formação de professores e sua carreira. p. 4923 GATTI, Bernadete A. A formação dos docentes: o con-fronto necessário professor X academia. Cadernos de Pes-quisa, 81, maio 1992.

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centes para o ensino fundamental, desde quesatisfeitas as condições básicas para seu funci-onamento.24

Proclama a declaração de Jontiem25 que osinvestimentos na educação básica são o inves-timento mais importante para o futuro de umpaís, porque asseguram as necessidades bási-cas da aprendizagem, ou seja, os instrumentosbásicos da aprendizagem (leitura, escrita, ex-pressão oral, cálculo, solução de problemas) eos conteúdos básicos da aprendizagem (conhe-cimentos, habilidades, valores e atitudes). In-vestir na qualidade da educação implica avalorização efetiva do professor e a sua forma-ção, vinculada a mecanismos de avaliação. Paraisso, as políticas educacionais devem superar oimediatismo que caracteriza geralmente a ati-vidade dos políticos e dos governos. “Daí por-que a educação deveria ser uma questão deEstado e não de governo.” (p.437).

CONSIDERAÇÕES FINAISOs autores da apresentação afirmam que o

livro de Maria Luiza Marcílio merece tornar-seuma clássico na literatura mundial sobre edu-cação, porque oferece não só uma radiografiacompleta do projeto educacional brasileiro ao

24 GATTI, B. Formação de professores e sua carreira. p. 93.25 Ver o documento da ONU de 1990, dito Declaração deJontiem (Tailândia), artigo 1.

longo do tempo, mas também um exame analí-tico dos problemas atuais que caracterizam aeducação no Brasil. Este texto tocou apenasem uma parcela ínfima dos dados e análises daobra. É um convite ao leitor para percorrer eestudar no próprio livro toda a sua riqueza, ba-seada em arquivos, jornais, pesquisas, bibliogra-fia, entrevistas com alunos e autoridades, visitasa escolas da periferia e repartições, e apresen-tada com precisão, clareza e coragem. Servetambém como roteiro para uma prática siste-mática de pesquisas empíricas sobre a educa-ção de base. Segundo a autora, as pesquisasatuais no geral se restringem ao cumprimentodas etapas da carreira docente, através de dis-sertações e teses, resultando num conhecimentoprecário ou pontual da realidade educacional,ou, em outros casos, na repetição de métodosde pesquisa da moda, teorias e modelos vindosde fora ou de uma visão ideológica dicotômicasimplificada, sem base em pesquisas empíricase fora do contexto real da nossa educação.Conclusão: “A escola ‘vista por dentro’ ainda épraticamente uma incógnita nos estudos de edu-cação.” (p.333).

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Alfredo Eurico Rodríguez Matta

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A EDUCAÇÃO E A ASCENSÃO DA BURGUESIA NA BAHIA

Alfredo Eurico Rodríguez Matta*

* Doutor em Educação. Professor de História da Bahia - UCSal. Professor do Mestrado em Educação eContemporaneidades – UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I,Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOO artigo analisa o processo de emergência da educação formal na sociedadebaiana e sua estreita relação com o desenvolvimento do mercado no estadonos últimos séculos, mostrando como a contradição social e suas superaçõeshistóricas participam e influenciam, dialeticamente sendo influenciadas pelastransformações na educação, e pela dinâmica das classes sociais.

Palavras-chave: História da Educação – História da Educação na Bahia –História da Bahia – Classes Sociais na Bahia

ABSTRACT

EDUCATION AND THE RISING OF THE BOURGEOISIE INBAHIA

The article analyzes the process of emergence of formal education in the Bahiansociety and its close relationship with the state’s market development in thelast centuries, showing how the social contradictions and the way theywere historically overcome, participate and influence, being dialecticallyinfluenced

Key words: History of Education – History of Education in Bahia - History ofBahia – Social classes in Bahia

INTRODUÇÃOEste artigo está dedicado ao estudo da emer-

gência da educação formal e de suas instituiçõesna Bahia. Considera-se que a expansão da edu-cação é uma estratégia para a expansão da pró-pria sociedade burguesa e de sua lógica social.

O trabalho está dividido em quatro partes.Na primeira, analisamos o desenvolvimento

da sociedade de mercado em Salvador, desdeos primeiros passos no século XVIII, até os diasde hoje, procurando entender a lógica do seu

desenvolvimento. A seguir, estudamos o pensa-mento científico e sua chegada ao Brasil, e àBahia, entendendo que este foi um passo im-portante para que a educação formal ganhassesua função social burguesa.

A terceira parte apresenta um estudo sobreo desenvolvimento da educação formal na ci-dade, em meio à contradição existente entre asociedade senhorial tradicional e as propostasburguesas.

A quarta e última parte analisa o desenvol-vimento da educação formal após os anos 30,

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lançando hipóteses interpretativas e possíveiscaminhos de pesquisa, partindo de uma análisedialética da História e da presença da educa-ção, em meio ao contexto de contradição e con-vivência de duas estruturas de sociedade e depoder, a senhorial e a burguesa, procurando in-terpretar o papel do processo de transforma-ção histórica da educação em função destacontradição.

SALVADOR: SOCIEDADE DE MER-CADO

Desde o final do século XVIII podemos iden-tificar a formação de uma estrutura importantede mercado na cidade do Salvador. Já no iníciodo século XX a Bahia orgulhava-se de seusbondes urbanos, do novo porto e muitas modifi-cações em seu traçado, conquistas da ascen-dente classe burguesa comercial da cidade. Onúmero de indústrias já era representativo, em-bora fossem contabilizadas conjuntamente mui-tas oficinas de artesanato, além das verdadeirasindústrias. A sociedade de mercado e a moder-nidade continuaram crescendo, principalmentea partir da descoberta do petróleo em 1939. Fi-nalmente, nos últimos 30 anos de nossa históriarecente, Salvador amadureceu como socieda-de de mercado e moderno centro de consumo.(MATTA, 2000).

O processo de estruturação da sociedadeburguesa e de sua hegemonia foi lento e gradu-al, de maneira que se torna possível estudar oavanço gradativo de suas instituições e práti-cas sociais no tempo.

A existência de oficinas de artesãos e dealgumas indústrias, no início do século XX, mos-trava que a cidade já tinha dinamismo suficien-te para organizar seu mercado interno possibili-tando, tanto aos mestres artesãos como àsprimeiras indústrias, a organização de sua pro-dução na forma disciplinada segundo otimiza-ção de espaço e tempo, como é próprio da so-ciedade capitalista.

Nesse mesmo período, a estruturação de ummercado diversificado, movimentado, baseadoem intensa troca interna e externa de merca-

doria, e na economia monetária, também já es-tava amadurecido, e como os mais antigos indí-cios de sua existência remontam ao séculoXVIII, esta pode ter sido a primeira manifesta-ção concreta da chegada das organizações bur-guesas em Salvador. (MATTOSO, 1978).

Também são antigos na cidade os bancos eas associações de artesãos, como de carpintei-ros e pedreiros. Estas últimas eram organiza-ções parecidas com as corporações de ofícioeuropéia, que já estavam decadentes no antigocontinente. Porém, na Bahia, a sua existênciademonstrava, nesse momento, o crescimento daconsciência profissional, regulamentação deprofissões e preocupação em disciplinar e re-gulamentar o trabalho. Em outras palavras, sur-gia a consciência do profissionalismo, a idéiade organização e de cidadania, em nosso meiourbano.

O capitalismo que surgia na Bahia era, as-sim, voltado para urbanização e padronizaçãode hábitos e consumo. Salvador crescia mer-cado de consumo e capitalismo periférico doscentros produtores do Sudeste, ou de fora dopaís, mas ainda assim, formava-se uma socie-dade de mercado local.

Esse mercado, apesar de pequeno e perifé-rico, incapaz de dinamizar muito mais que a re-gião em torno da capital, foi capaz de dinamizardiversas reformas na cidade, e sua estruturasocial e práxis cotidiana, que passou a transfor-mar-se na direção da urbanidade e organiza-ção necessárias a uma cidade burguesa.

O avanço da hegemonia burguesa não sedá de forma linear, e nem sem resistência. Astradições e estruturas próprias da sociedadesenhorial, dominantes até então, continuam co-existindo e dividindo o espaço das práxis cotidi-anas dos sujeitos históricos, o que nos habilita aobservar as contradições entre as duas formasde vida e organização social.

Nesse contexto, torna-se necessário tentardescobrir como as instituições burguesas, e comelas a hegemonia deste processo social, avan-çaram e adaptaram-se às contradições presen-tes na capital, mercado capitalista em formaçãoe capital centralizadora de uma região estrutu-rada na sociedade senhorial, ao mesmo tempo.

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Alfredo Eurico Rodríguez Matta

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Entre estas instituições, neste artigo, pretende-se destacar o avanço da educação burguesa.

A EMERGÊNCIA DO CIENTIFICISMONO BRASIL

O pensamento científico, e com ele a che-gada de um discurso de verdade da burguesia,estão entre as principais ferramentas para aascensão da nova sociedade. No período pom-balino, o desejo de uma aprendizagem de novastécnicas no aperfeiçoamento da agriculturacriou o primeiro interesse científico no Brasil.Este, no entanto, cresceu somente para o co-nhecimento das técnicas que tinham aplicaçãoprática imediata, enquanto o conhecimento eaprimoramento teórico continuavam desinteres-santes. O empirismo do período pombalino re-presentou um avanço na direção da sociedadeburguesa. Ao contrário da escolástica, formade pensamento clássico jesuíta, ele pregava umaética do enriquecimento produzido pelo traba-lho e pelo acúmulo de bens. Pregava também omérito da riqueza e defendia o conhecimentocomo forma de aprimoramento para a obten-ção deste enriquecimento. O crescimento des-se tipo de pensamento foi paralelo ao daurbanização e importância de Salvador comocentro comercial.

Parte deste contexto, o iluminismo e a as-censão política da burguesia na Europa são ca-racterísticas do início do século XIX. A burguesiaascende e com ela os direitos cíveis, direitoshumanos, a necessidade da existência de leissoberanas e democráticas. Ascende também opensamento liberal.

No Brasil, porém, os únicos com plenos di-reitos de cidadania eram os grandes comerci-antes e senhores de engenho, e a existência daescravidão fazia do liberalismo quase uma iro-nia. A necessidade educacional da sociedadesenhorial não está muito voltada para a produti-vidade e formação profissional.

É certo que os mestres de ofício, os sujeitosmais experientes e velhos, vão, por tradição,passar suas habilidades e trabalhos para os maismoços, provocando, assim, a reprodução do sis-

tema produtivo. A educação formal, por outrolado, era essencialmente ilustrativa, servindomais para reafirmação dos rituais de poder elegitimização da ordem social senhorial, do quepara qualquer tipo de aporte no sistema produ-tivo. (RIBEIRO, 1991).

Mas foi nesse Brasil, ainda pouco familiari-zado com o pensamento burguês, que surgiramas primeiras instituições comuns à burguesia,com a chegada da família real. Foram criadasa Imprensa Régia, bibliotecas, escolas de nívelsuperior, bancos e outras instituições adequa-das ao contexto hegemônico burguês.

A chegada das primeiras instituições bur-guesas e de sua forma de ver o mundo fizeramcom que o pensamento brasileiro sofresse trans-formações. Era necessário introduzir uma filo-sofia urbana, capaz de orientar o mercadoconsumidor das cidades que se formavam, mas,ao mesmo tempo, manter o prestígio do rei, dopoder moderador, a nobreza e a cidadania ple-na limitada a poucos privilegiados.

A Legislação, cada vez mais precisa e ne-cessária, deveria distinguir entre os direitos doshomens e dos cidadãos. Ao mesmo tempo, de-veria abrir espaço ao pensamento científico, àdisciplina urbana e ao reconhecimento dos di-reitos básicos das pessoas.

Era necessário criar uma forma de pensamentocapaz de avançar, sem forçar o rompimento doslaços de dependência e mandonismo, existentesdesde o Brasil colônia, e convenientes para umcentro de consumo e não de produção.

Nesse período acabou predominando a idéiade que a ciência e Deus não eram opostos. Naverdade, a ciência explicava o universo, e, comoo mesmo era criação divina, nada mais lógicoque considerar a ciência divina também. Paraessa forma de pensamento, a ciência era o pen-samento divino, que Deus decidira revelar aoshomens. Abriam-se as portas para harmonizara ciência burguesa emergente, com a religiãotradicional e pilar da sociedade aristocrática.Esse pensamento que dominou os brasileirosdurante o século XIX é hoje conhecido comoEspiritualismo Eclético.

O processo histórico do século XIX tomavacada vez mais obrigatória a adoção do liberalis-

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mo, das idéias iluministas, da sociedade de mer-cado e do cientificismo burgueses; era neces-sário criar ou adotar um ideário que fosse capazde adaptar essas necessidades ao Brasil e asua sociedade conservadora. (PAIM, 1984).

Logo, o Espiritualismo Eclético permitia con-ciliar as conquistas da ciência com as tradiçõesque se desejava conservar, mas, principalmen-te, permitia conservar os interesses da aristo-cracia senhorial e a velha estrutura social e asrelações do Brasil colônia. Foi possível, então,frear as tentativas de superação estrutural po-pular, advindas dos centros urbanos e das emer-gentes classes burguesas e, ao mesmo tempo,criar um ambiente de modernidade e desenvol-vimento urbano, necessário à nova realidadeinternacional.

O ecletismo pode ser considerado o primei-ro pensamento burguês a ganhar espaço noBrasil. Outro pensamento do período, tambémde origem burguesa, foi o do grupo de TobiasBarreto, o Culturalismo, que teve origem emRecife, mas que ganhou adesões importantesna Bahia.

Ao comparar o ecletismo com o culturalis-mo, notamos que o primeiro procurava concili-ar o pensamento burguês e a ciência da épocacom o tradicionalismo aristocrático. Desta for-ma, ele não ameaçaria a estrutura social e depoder vigente, e nem deveria alterar a realida-de dos processos de formação e educação, quecontinuariam adequados à práxis senhorial.

Os senhores procuravam, então, aderir àsinovações, dar algum espaço ao desenvolvimen-to do ambiente urbano, mas preservar antigasrelações e aliados, principalmente no meio rural,então dominante. O culturalismo desejava alte-rar a sociedade e criar um ambiente realmentepropício à burguesia e seu modelo social, semconciliação com a tradição aristocrática. É im-portante constatar que o culturalismo, mais avan-çado como pensamento burguês, surge e sedesenvolve no Nordeste brasileiro, o que demons-tra que era nessa região que as pré-condiçõespara o surgimento de uma sociedade burguesastinham sido atingidas primeiramente.

O culturalismo não conseguiu ultrapassar oslimites das cidades e de seu mercado, pois a

força de quem o defendia era menor que a dosinteressados no Plantation e na preservaçãodas relações de dependência do país com oexterior. Somente um ideário capaz de mantero status quo das relações tradicionais de podere, ainda assim, permitir o avanço do mercadode consumo brasileiro lograria chance de apoiode toda a classe dominante: oligarquia tradicio-nal e burguesia comercial emergente. Vanta-gem para o Ecletismo. O pensamento fortementeliberal do culturalismo só poderia encontrar di-ficuldades no Brasil e na Bahia do século XIX.

O pensamento científico brasileiro surge,como dissemos, no período pombalino, essenci-almente técnico e pragmático, buscando elimi-nar todo o caráter teórico do conhecimento. Aciência no Brasil nascia para copiar o que jáestivesse pronto e fosse imediatamente útil enão para o investimento de tempo e recursosem descobertas e estudos. A evolução destepensamento acabou por fazer surgir a idéia deque existiam técnicas e formas científicas demanipular e organizar a sociedade e que eranecessário aplicar tais técnicas de forma rigo-rosa para conseguirmos uma nova sociedademoderna e urbanizada.

As modificações na organização da socie-dade brasileira eram limitadas pela função pe-riférica desejada tanto pela potência docapitalismo central, como pelas tradicionais eli-tes locais, que sempre se alimentaram da de-pendência. O culturalismo abria uma amplapossibilidade de reformas, grande demais parao interesse das classes dominantes. Seu cres-cimento poderia não ser apropriado a projetosde dependência e mercado periférico. Essa ne-cessidade fez com que a modernização da so-ciedade brasileira passasse, desde o início, porprocessos autoritários, cientificistas, mas qua-se nunca liberais como no capitalismo central.Modernização sob controle. As idéias de Comte,o social visto como cientificamente organizá-vel, a sociedade da moral, da ordem social pla-nejada, as idéias positivistas ganharamrapidamente um grande espaço entre os milita-res e nas escolas politécnicas. Respondiam àsinquietações da época e aos problemas sociaisjá existentes, como vimos anteriormente, desde

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o período pombalino. A modernização sob con-trole, o avanço positivo e ordenado combinadocom regime totalitário. O positivismo ganhaimportância principalmente no Sudeste, e cres-ce à medida que o café e a economia destaregião se fortalecem. O castilhismo de caráterpositivista pregava a ordem política do progres-so, organizava o Estado brasileiro em funçãoda economia do Sudeste e facilitava a organi-zação do mercado brasileiro como dependentedo exterior. As idéias de Estado centralizado eprogresso positivo ainda estariam presentes noEstado Novo e até mesmo o Golpe de 64.

A burguesia só avançou seu projeto no Bra-sil, na medida em que dialogava com o tradicio-nal poder senhorial. Sua expansão era contínua,obrigando a oligarquia a reduzir gradativamenteseus redutos e poder, mas a necessidade de man-ter o país em ordem e sob controle forçava aburguesia a aceitar, ao menos temporariamente,as diretrizes das classes senhoriais. Nessesentido,é necessário perceber que no século XIX,e mesmo em grande parte do XX, uma educa-ção verdadeiramente burguesa não vai realizar-se de forma plena no Brasil, muito menos naBahia, onde as relações senhoriais se tornaramainda mais fortes, na medida em que o processode independência do Brasil logrou abafar e de-sarticular os projetos urbanos e burguesas depoder do mercado emergente de Salvador, bemrepresentado pela Conjuração dos Alfaiates em1798 (TAVARES, 1975). As propostas de edu-cação profissional e eficiente vão sempre en-contrar obstáculo na necessidade prática senhorialde manter a educação ilustrativa e legitimadoradas posições e privilégios, o que era contrário àeducação massiva proposta pela sociedades bur-guesas. Os projetos de educação burguesa serãoquase sempre obstacularizados pelas ações dissi-muladoras dos planos senhoriais.

É importante notar que o sucesso das dou-trinas científicas, jurídicas e políticas burguesasno Brasil somente se dá a partir do autoritaris-mo capaz de organizar cada processo no níveldesejado de controle, centralização e massifi-cação, próprios do avanço burguês, ao mesmotempo em que se cuida da permanência da es-trutura senhorial aonde interessa, ou quando ela

representa uma necessária estabilidade social.Ocorreram então, convenientes, embora tem-porárias, alianças das classes dominantes, asenhorial tradicional e a burguesa em ascen-são, que acabaram por direcionar a História dopaís após a independência.

Destaca-se, também, que nesse tipo de so-ciedade capitalista periférica, a ciência, ferra-menta das maiores conquistas burguesas, deixade ser apenas um instrumento para obtençãode verdade e pesquisa e passa a ser facilitado-ra da aceitação e consumo. A ciência, liberta-dora para Europa e E.U.A., facilitava adependência no Brasil.

No caso da Bahia, como o processo de cres-cimento da sociedade burguesa no Brasil ocor-re a partir do Sudeste, estava facilitado ocaminho para a elite da província. Para essaselites, era conveniente manter as tradições omais que possível, pois preservariam seu sta-tus quo de dominação senhorial local. Eramdesejáveis alianças, primeiramente com a bur-guesia dominante internacional, depois com ado Sudeste, de forma a criar para a elite local afunção de controlar a comunidade a partir daantiga prática senhorial, embora sob o controledos projetos modernizadores burgueses. Con-trolada, a Bahia não seria, a princípio, palco parao desenvolvimento do capitalismo, a não sercomo centro de consumo e periferia, dependen-te de projetos externos.

O cientificismo já dava sinais de sua pre-sença no final do século XVIII, quando manu-ais agrícolas franceses eram consultados naBahia. Desde o final deste século, Salvadorestava sendo invadida por ideais liberais, o queacabou por influenciar várias revoltas e tentati-vas de rebelião e a própria independência. Aprimeira instituição brasileira a fazer pesquisacientífica, a Escola de Medicina, estava na Bahia.Porém, de modo geral, a adesão pela ciênciaera limitada à utilização imediata de técnicas econhecimento absorvidos de livros e produçõescientíficas européias. A ciência era apenas vis-ta como ferramenta para o progresso materialimediato e técnico.

Como conseqüência, o pensamento científi-co e sua influência atingiram primeiramente os

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serviços públicos urbanos. As fábricas e os pro-cessos produtivos burgueses ainda eram inde-sejados na Bahia, que se destinava, como já foidito, à periferia do sistema.

A CHEGADA DA EDUCAÇÃO BUR-GUESA EM SALVADOR

A chegada das instituições e hegemoniaburguesas, certamente influenciou a educaçãobrasileira. Desde os tempos coloniais, muitosmodelos educacionais foram utilizados pelo Bra-sil. Estes modelos procuraram satisfazer asnecessidades de todas as classes sociais, des-de proprietários, trabalhadores, até comercian-tes e escravos, contanto que fossem reproduzi-das as condições e processos da sociedadesenhorial, hegemônica então.

Como já nos referimos, tradicionalmente aformação profissional da sociedade senhorialera feita informalmente. Os artífices e arte-sãos e demais trabalhadores aprendiam seusofícios através do convívio com os mais ve-lhos. Aliás, essa era a forma de educação exis-tente entre os índios antes do descobrimento.Já a educação dos proprietários e negociantesera formal, mas feita principalmente para cri-ar uma demonstração de superioridade paracom as outras classes sociais. Era basicamentereligiosa e filosófica, passando pela obrigato-riedade da alfabetização e aritmética funda-mental, mas sem a preocupação da aplicaçãodos conhecimentos no cotidiano ou nos pro-cessos produtivos. Como conseqüência, o Bra-sil foi vítima de uma monocultura intelectual,de subordinação, alienação, inteligência passi-va e do bacharelismo, características que fa-cilitavam sua posição periférica. Eramcaracterísticas convenientes para o mercanti-lismo que ligava o Brasil aos mercados euro-peus e continuariam interessantes para odesenvolvimento do capitalismo periférico quese instalou no Brasil, e principalmente naBahia, já que São Paulo acabou desenvolven-do um papel importante no capitalismo centralprodutivo mundial, a partir do projeto conser-vador da independência, e mais ainda do pro-

jeto republicano brasileiro, que centralizou noSudeste o capitalismo produtivo pelo menos atéos anos 70 do século XX.

Somente no decorrer do século XIX, o li-beralismo começou a influenciar as escolas einstituições de ensino baianas; até então, o do-mínio da escolástica era absoluto. Mesmo as-sim, o ingresso gradativo e parcial dospensamentos educacionais burgueses ocorreuapenas naquelas escolas destinadas às clas-ses dominantes, ainda vivenciando a hegemo-nia senhorial, mas já se preparando, graças apressões locais e externas para a convivênciaem uma nova ordem. As novas formas de edu-cação, então, trataram de tentar equipar ideo-logicamente e culturalmente, ao menos umaparte das classes senhoriais, para uma novaforma de exercício e organização social, bur-guesa e baseada no mercado. O resto da po-pulação continuaria por muito tempo sendoeducada pela convivência com os mais velhos,pois estaria voltada a viver segundo a ordemtradicional senhorial ou, no máximo, a integraro conjunto dos consumidores urbanos, para osquais a educação massiva e profissionalizanteburguesa não se faziam muito necessárias. Éclaro, porém, que o gradativo desenvolvimen-to das organizações burguesas na cidade, foipressionando cada vez mais para que umaverdadeira educação profissional, massiva eeficiente fosse organizada, mas esta o foi ape-nas na medida em que se tornou inevitável paraa sociedade, o que significa dizer que atingiupequenos grupos de cada vez, embora cadavez maiores e mais representativos. A trans-formação das instituições educacionais, desenhoriais a burguesas, graças a este proces-so lento, pode ser bem percebida.

O enciclopedismo, o positivismo, o libera-lismo são pensamentos burgueses que cres-ceram na Bahia, paralelos a ascensão docientificismo. Ao mesmo tempo crescia naBahia a tendência de união por casamento dasantigas classes proprietárias com os ricos do-nos do grande comércio soteropolitano. Des-sa forma, ocorre a aliança das duas camadasdominantes senhoriais com a ascendente bur-guesia urbana, o que veio dar início à unifor-

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mização de projeto político das elites. No pri-meiro momento desta união, podemos perce-ber o interesse em modernizar a capital, masdeixar organizado de forma tradicional o cam-po. Uma das conseqüências desse processofoi o bacharelismo. O bacharelismo era umavalorização dos que obtinham diploma univer-sitário, que passaram a ser conhecidos pelotítulo de doutores. O valor estava, então, notítulo e não na eficiência ou produtividade.Sendo assim, há uma fase em que a educaçãoformal acaba por reforçar os rituais de legiti-mização do poder senhorial. A educação ba-seada na retórica e teologia, conseqüência dainfluência escolástica, acabava por produzir nosbrasileiros letrados o conceito de que a socie-dade ideal deveria ser como a européia, o queafastava ainda mais da realidade nacional osque mais estudavam e detinham o poder, as-sim como os afastava da possibilidade de apli-car seu conhecimento nas necessidades donosso mercado então nascente. (RIBEIRO,1991; BERGER, 1976).

Salvador cresceu naqueles tempos sempretendo como referência de urbanização cidadeseuropéias. Esse crescimento era estimuladopelo movimento comercial, e eram os comerci-antes os que mais influenciavam na modelaçãodo espaço urbano. A educação profissionalizan-te dos baianos foi continuamente orientada paraadequar-se a esse crescimento sob modelagemcomercial.

A educação era, portanto, privilégio da ci-dade, e é nela que vamos encontrar as maisantigas instituições escolares da Bahia. Em 1808,foi criado um Curso Superior de Medicina. Trêsdécadas depois, o Curso Normal, é, no decor-rer do século, várias escolas, como o GinásioBaiano em 1858, iniciam uma formação regu-lar e acadêmica nos moldes da pedagogia demassa e cientificismo burgueses.

Por outro lado, instituições como a CasaPia de Órfãos de São Joaquim e o Liceu deArtes e Ofícios iniciaram a preparação de tra-balhadores capazes de responder às necessi-dades de mão-de-obra urbana, a primeira em1799, a mais antiga escola regular em funcio-namento no Brasil, que tenho notícia, a segun-

da nos anos 70 do século XIX. Mesmo lenta-mente, a educação massiva, profissional e aca-dêmica própria das sociedades burguesasforam se instalando na cidade durante o sécu-lo XIX. Podemos notar que, no princípio doséculo XX, a escolaridade e alfabetização jáestão no imaginário da população como ne-cessidades para ascensão social e adequaçãoà vida urbana. (MATTA, 1999).

Apesar disso, o alcance desta escolarida-de era limitado não só em número como emqualidade. Não era do interesse do capitalis-mo periférico que se instalava a existênciade operários bem formados e exigentes, bas-tava que pudessem tocar alguns trabalhos sim-ples e participar do coletivo consumidor. Otrabalhador especializado era consideradocaro na formação, caros também por deseja-rem melhores salários, e geralmente desne-cessários, pois tudo o que se desejava erauma padronização de costumes e consumo euma urbanização e estrutura suficientes ape-nas para o funcionamento da nova ordemsocial. O que era mais sofisticado, ou aquiloque não poderia deixar de ser muito especi-alizado, normalmente era suprido com impor-tações diretas de bens, ou com a contrataçãode profissionais forasteiros, caros, mas bemrelacionados e prestigiados devido a sua li-gação com o capitalismo central do sudesteou de outros países.

Quanto às classes dominantes, continuavaminteressadas mais na Europa que no Brasil. Ospais pensavam na escola para os filhos, massua maior preocupação era com o título obtidoe não com os possíveis conteúdos a seremaprendidos.

Esse modelo reforçava a afirmação de quese formava na Bahia um capitalismo periféri-co. De fato, o capitalismo surgia às avessas,ingressava na cidade de fora para dentro, aocontrário do capitalismo central formado decontradições internas, como na Europa ou emSão Paulo.

Ao contrário de uma necessidade da produ-ção, o que provocou o aumento da importânciada educação em Salvador foi um crescimentono consumo e uma alteração nos hábitos urba-

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nos. O proletariado urbano teria seu desenvol-vimento limitado a esses interesses e não pode-ria ser diferente já que os comerciantes dascidades estavam aliados aos interesses dos se-nhores de terra e no campo ainda manteriam,por muito tempo, as organizações tradicionaisde produção e trabalho.

A instrução pública foi municipalizada noséculo XIX, o que permitiu a cada uma das re-giões brasileiras aplicar a educação na formaque necessitava. São Paulo, por exemplo, co-meçou a formar operários e proletários de me-lhor instrução, pois se desenvolvia de outraforma, alterando processos produtivos. O ensi-no superior se desenvolveu também mais rapi-damente e, assim que necessário à nascenteindústria paulista, voltou-se para pesquisa. ABahia e o Nordeste puderam realizar seus pro-jetos educativos em consonância com sua rea-lidade social atendendo à modernização maistímida e as necessidades de manutenção daordem e da dependência, desejada pela socie-dade senhorial. (RIBEIRO, 1991).

O positivismo, que passou a dominar nessaépoca, foi conveniente para a efetivação dessemodelo. O pragmatismo positivista pregava anão existência de universidades e de cursos te-óricos, a formação de proletários voltados parao estritamente necessário, evitava a evoluçãoda pesquisa científica, e incentivava a importa-ção de soluções tecnológicas prontas, o quefacilitava o mergulho do país, principalmentefora de São Paulo, em completa dependênciaexterna. Além disso, a hegemonia do positivis-mo serviu para criar a organização urbana e demercado mínima, propícia ao estabelecimentodo capitalismo periférico que surgia. A educa-ção primária e secundária, bem como a profis-sional, alem de pragmática, poderia ser baseadana rigorosa moral social e científica necessáriaao mesmo modelo.

O crescimento dos índices de alfabetizaçãode Salvador, no século XIX, embora tímidos, fezsurgir um número significativo de livrarias, bi-bliotecas, tipografias, jornais e outros periódi-cos, os quais mostram a penetração do novomodelo social ainda no século passado. (MAT-TA, 1999).

AMADURECIMENTO DA EDUCAÇÃOBURGUESA EM SALVADOR

O primeiro projeto nacional de poder burgu-ês brasileiro foi a Republica. A então agro-bur-guesia cafeeira investiu na derrocada doImpério, que bem representava o poder senho-rial e seus interesses, incapazes de implemen-tar as modificações estruturais já desejadaspelos empresários do café e da nascente indús-tria paulistas. Apesar do sucesso político do pro-jeto e da tentativa de implementar projetosmodernizadores em todo Brasil, a RepúblicaVelha foi incapaz de concretizá-las, exceto noâmbito do próprio sudeste. As oligarquias regi-onais eram então muito fortes e resistiram àstentativas de modernização, inclusive da edu-cação, como a tentativa empreendida por Ma-nuel Vitorino. (NUNES, 2000).

Apesar da mudança na política nacional, naBahia as oligarquias continuaram a ditar as re-gras após a Constituição de 1891, que criou umasituação de acomodação entre a burguesia pau-lista em ascensão, e seus projetos de ordemnacional, e as oligarquias dos estados que, des-ta forma, mantinham seus redutos e processostradicionais de poder. A situação da educaçãoquase não mudou se compararmos com aquelaoferecida na época do Império. É certo que al-gumas novas escolas apareceram, é certo quesurgiu a Escola Técnica Federal em 1909, masa educação formal profissionalizante e voltadapara o mercado continuava bastante reduzida.

Esta situação só começará a mudar nos anos30 com o governo Vargas.

Com o golpe de 30 e a ascensão de Vargas,apoiada pela burguesia fortalecida do Sul-Su-deste, a ordem burguesa passou definitivamen-te a dominar o Brasil. A partir desse momento,os projetos educacionais próprios na sociedadecapitalista recebem uma nova força, empurra-dos por interesses de ordem burguesa nacional,mesmo que ainda sob forte oposição senhoriallocal.

A orientação do poder central, que objetiva-va modernizar o Brasil e afirmar o país comoeconomia burguesa-industrial, criou logo em1930 o Ministério da Educação. Por outro lado,

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várias discussões sobre metodologia, gestão ecurrículo, acabaram por normalizar todos os ní-veis do sistema educacional brasileiro, inclusi-ve as escolas técnicas profissionais. Estanormalização deveria ser seguida e realizadauniformemente em todo o País. Era a chegadadefinitiva da educação massificada e profissio-nal em todo Brasil, pelo menos em projeto, jáque a sociedade senhorial, mesmo submetida,continuava a tentar resistir como podia, em seusredutos de poder. (RIBEIRO, 1991).

Multiplicaram-se as escolas em todo Brasil,inclusive na Bahia.

A Bahia testemunha o avanço das institui-ções de ensino, e a emergência de projetos taiscomo o futuro ICÉIA- Instituto Central de Edu-cação Isaías Alves e a UFBA- UniversidadeFederal da Bahia, a ampliação da Escola Téc-nica Federal, em paralelo à expansão da alfa-betização, da escolarização e da formaçãoprofissional, principalmente em Salvador. Maso modelo escolarizado não era exatamente ade-quado ao poder oligárquico ainda dominante noâmbito regional. Como teriam podido conviveras classes senhoriais baianas com um projetoeducacional desta monta, que de fato estavareeditando muitos dos planos que possibilitarama derrota de Manoel Vitorino no início da Re-pública, cujas propostas foram fortemente re-chaçadas pelas oligarquias da época?

Para responder, é necessário investigar umpouco mais sobre a função estratégica da edu-cação nas sociedades burguesas.

A educação burguesa tem basicamente trêsfunções: 1) em primeiro lugar, a educação é umforte elemento massificador e uniformizador, oque garante a ampliação dos padrões de con-sumo; 2) além disso, ela vai facilitar o controlesocial, já que os comportamentos, desejos, ati-tudes, também são massificados; 3) por fim, eladeve aprimorar as habilidades profissionais dostrabalhadores, ampliando sua eficiência e pro-dutividade, o que servirá para alimentar as má-quinas produtivas da burguesia.

A expansão da escolaridade está, portanto,associada ao crescimento da sociedade de mas-sas, e isso significa que os projetos de educa-ção da burguesia vão dificultar as relações de

dependência e de favorecimentos necessáriasà estruturação do poder senhorial, já que a nor-malização e controle impostos pela educaçãoburguesa provocam o desligamento gradual dasrelações de dependência que sustentam a legi-timidade do poder senhorial. Na medida em quea Bahia era forçada a aceitar os modelos lega-lizados e formalizados de educação advindosdos projetos centralizados, republicanos e bur-gueses do Sudeste, criavam-se formas de re-sistência senhorial aos padrões invasores. Asociedade senhorial, ainda no poder, simples-mente não podia permitir que a situação de de-pendência que a sustentava fosse substituídapor outra baseada na profissionalização e pa-dronização.

Embora ainda seja necessário realizar umlevantamento sistemático das fontes, capaz derevelar os dados exatos, conhecemos, por tes-temunho, ao menos a forma geral de duas for-mas principais de resistência da lógica senhorialà invasão burguesa.

1) A primeira delas foi a desvalorização dadocência, tanto pelos baixos salários, quanto pelaimagem pouco reverenciada e respeitada queos professores foram adquirindo na Bahia des-de aquele momento. Na medida em que os sa-lários e a imagem dos professores eramdiminuídos, a própria educação também o era.Assim, era reforçada a idéia de que educaçãoformal não levava ninguém a melhorar de vida,já que nem os professores conseguiam estarbem. A formação dos professores também foinegligenciada.

2) Por outro lado, e em reforço ao primeiroaspecto, existiu um processo de elaboração decurrículos e conteúdos escolares cada vez maisafastados das necessidades práticas dos sujei-tos e do mercado de trabalho, de maneira queficou evidente que uma profissão só era apren-dida na prática dos trabalhos e não nas escolas.Reforçava-se não a competência e o profissio-nalismo como fator de seleção profissional, massim o tradicional apadrinhamento senhorial, ago-ra capaz de direcionar os sujeitos para ocupa-ções mais ou menos importantes no mercadode trabalho. Esta prática era uma distorção deorigem senhorial, que atingia e prejudicava o

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desenvolvimento do mercado em Salvador. Comraras exceções, como a tentativa da EscolaParque, estes procedimentos lograram desva-lorizar a educação em massa, de moldes bur-gueses, que chegava à Bahia até muito poucotempo atrás.

O conhecimento deste quadro é muito co-mum aos baianos. Quantas vezes não testemu-nhamos o diálogo de jovens, estudantes, e deoutros sujeitos sociais, que defendem a inope-rância escolar, a inutilidade do que se estuda,ou o pouco valor de ser professor, algo quemuitos pais revelam não desejar de forma algu-ma para seus filhos. Quantas vezes não ouvi-mos alguém comentar algo sobre o pouco valorde estudar e/ou de aperfeiçoar-se, já que o es-paço na sociedade deve ser conquistado na prá-tica e no dia- a- dia, a partir do apoio e favor dealgum conhecido bem situado e conhecedor dealgum contexto ou situação profissional. De fato,estes comentários revelam a sobrevivência dasantigas formas de educação informal e basea-das nos exemplos de mestres e pessoas expe-rientes ou influentes, que afirmamos anterior-mente ser o modo de formação profissional dasociedade senhorial. De fato, a coexistência,ainda hoje, dos dois modelos e do conjunto deseus significados para o cotidiano revelam queestarmos ainda vivendo em pleno processo detransformação, embora seja evidente que atu-almente este tipo de comentário e de testemu-nhos estejam ficando mais raros e sejam me-nos considerados.

Esta realidade parece ter acompanhado aeducação baiana por toda a República Nova,foi reforçada e continuou acontecendo após ogolpe de 1964. Entre 1950 a 1979, foi se tor-nando cada vez mais importante a escolariza-ção e o profissionalismo, mas a estratégia dedesvalorização da ação da escola permaneciamais ou menos ativa, a depender do controle doEstado pelas classes senhoriais ainda hegemô-nicas. Vale destacar, porém, a transformaçãoda educação formal, até então mais preocupa-da com as necessidades da burguesia comerci-al, mas que após 50, em decorrência do petróleoe da industrialização do estado, passou a darmais atenção à educação operária e industrial.

Somente na década de 1980, quando a soci-edade baiana, após longo processo de industri-alização e desenvolvimento de mercado,experimentou a hegemonia de uma estruturasocial e de poder burguesas, foi que o perfil eas demandas educacionais massivas e profissi-onais lograram inverter a situação, iniciando umlento processo de valorização do ensino e daformação profissional. (MATTA, 2000)

A partir dos anos 80 do século passado, maisainda depois dos 90, e ainda mais intensamentenesse início de século XXI, temos assistido àmudança gradativa da situação. Os salários dosprofessores, tanto nas escolas públicas comonas particulares, assim também no nível superi-or, ainda é baixo, mas tem crescido considera-velmente e de forma perceptível, a ponto depoder-se verificar uma alteração na imagem dosprofessores como profissionais e cidadãos. Poroutro lado, novas legislações, exigências doMEC, mas também das secretarias estaduais emunicipais de educação, criação de fundaçõese centros de pesquisa, maior valorização deestudos e análises teóricas, maior entrosamen-to entre escolas e empresas, maior número deescolas e escolaridade que se aproxima de100% dos que deveriam escolarizar-se, maiorinteresse da população, dos jornais, das mídiasem geral, todo o contexto nos revela o novomomento atualmente vivido pela educação bai-ana, que sabemos estar distante de deixar deter problemas, mas não podemos negar temassumido novo papel e importância nessa novafase da Bahia sob a hegemonia de uma socie-dade burguesa e de mercado.

CONCLUSÃOFoi discutido neste artigo que a educação se

desenvolveu de forma paralela à sociedade demercado em Salvador. Na medida em que acidade crescia, e seu mercado se diversificava,desde o século XVIII, via-se surgir a educaçãoformal profissionalizante, ainda que no início nãoatendesse a grandes contingentes, mas cami-nhava no sentido de tornar-se cada vez maispopular e de levar a escolaridade a uma posi-

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ção de necessidade social. A primeira necessi-dade desta educação foi quanto ao atendimen-to do comércio da cidade.

Pudemos também observar como o cresci-mento da educação formal está associado àpopularização do discurso científico e do cienti-ficismo, que vai galgando o espaço de discursode verdade da burguesia. A escola ganhou opapel de divulgação destas verdades, o que aautorizou a massificar, determinando assim no-vos e úteis padrões de consumo e controle so-cial, além de preparar a competência profissionalde que o mercado necessitava.

Apesar dos avanços, a escola formal não vaise tornar dominante senão após o golpe de 30,acompanhado que foi pelo fortalecimento dasrelações e poder burguês no Brasil. A partir desteponto, a escolaridade passou a crescer em todoBrasil, não sem resistência, pois a oligarquia, aindano poder do Estado até a década de 80 do séculopassado, não poderia permitir a profissionaliza-ção e eficácia das escolas, o que iria pôr sob

ameaça seu próprio poder advindo do mandonis-mo, jogo de prestígios e conchavos.

Somente a partir daquela década de 80 aconjuntura mudou para um apoio explícito àpolítica de expansão da escolaridade e educa-ção do estado, na medida em que a Bahia setornava indubitavelmente dominada pela socie-dade de mercado e sua lógica de poder basea-da nos projetos sociais, demandante daeducação massiva e profissional burguesa comoparte de sua política de acúmulo e poder.

Parte deste artigo, mais especificamenteaquela dedicada ao exame da expansão e re-sistências à educação burguesa a partir da dé-cada de 1930, necessita ser levantada comdetalhamento, nas fontes cabíveis, para que osresultados possam ser mais bem organizados eprovoquem mais e melhores conclusões. Noentanto, pensamos que, de forma geral, pode-mos interpretar desta maneira dialética, o pro-cesso de transformação da educação nasociedade baiana e soteropolitana.

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TAVARES, Luis. História da sedição intentada na Bahia em 1798. Salvador: Pioneira, 1975.

Recebido em 30.05.05Aprovado em 09.08.05

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Maria Alba Guedes Machado Mello

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ISAÍAS ALVES DE ALMEIDA E A EDUCAÇÃO NA BAHIA

Maria Alba Guedes Machado Mello*

* Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidade de Barcelona - Espanha. Professora Adjunto do Departa-mento de Educação - Campus 1, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Pesquisadora associada ao Grupo dePesquisa Memória da Educação vinculado ao Mestrado em Educação e Contemporaneidade – Departamento deEducação I, da UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Mestrado emEducação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: [email protected] Este artigo é uma versão resumida de um dos capítulos da minha tese de doutoramento: Isaías Alves de Almeida e aformação de professores: Bahia, 1938-1942, em processo final de elaboração, com o apoio da FAPESB - Fundação deAmparo à Pesquisa do Estado da Bahia.

RESUMO

Este artigo1 apresenta o pensamento e a proposta pedagógica de Isaías Alvesde Almeida, bacharel em Direito, pós-graduado em Psicologia Experimental,que se dedicou à Educação e, mais particularmente, à formação de professores.Enquanto Secretário da Educação na Bahia, entre 1938 e 1942, realizoureformas significativas na estrutura do ensino que perduraram até a década de1960. Foi um dos pensadores que, durante o Estado Novo, contribuiu para aconsolidação da Educação como um mecanismo de legitimação do Estado,articulando o ideário cristão à nova ordem ditatorial.

Palavras-chave: Educação no Estado Novo – Bahia – Isaías Alves.

ABSTRACT

ISAÍAS ALVES DE ALMEIDA AND THE EDUCATION IN BAHIA

This article presents the thought and the pedagogical proposing of Isaías Alvesde Almeida, law’s bachelor, post-graduate en experimental Psychology, whohad been dedicated to education, particularly to teachers formation. As long asbeen the sate secretary of Education in Bahia, between 1938 and 1942,accomplished significants reforms on education structures that last long untilthe 1960-decade. The was on of thinkers that during the New State, contributedto consolidate the education as a mechanisms of the State legitimation,articulating the Christian’s devising to the new dictatorial order.

Keywords: Education in the New State – Bahia – Isaías Alves.

Educador, que foi durante toda a sua vida, aprodução teórica de Isaías Alves de Almeidaestá inteiramente voltada para a Educação. Éno bojo da discussão sobre a função social daEducação que apresenta suas concepções de

vida, de mundo e seu projeto político para oBrasil. Desenvolve uma idéia de nacionalidade,ou mais especificamente de brasilidade, queconsidera o eixo para a Reconstrução Nacio-nal; e, em um contexto internacional de tendên-

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cias a governos ditatoriais, Isaías Alves incor-pora às suas concepções teóricas e à sua práti-ca educacional, a doutrina do Estado Novo.

Enquanto pesquisador, dedicou-se à Psicolo-gia Experimental e, mais particularmente, à adap-tação e tradução de testes voltados para medidasde inteligência, desenvolvimento da personalida-de e avaliação do aproveitamento do aluno. Ostestes são, para Isaías Alves, um instrumento degestão que tanto incidem na organização das clas-ses como no atendimento individual às crianças.Essa medida tem por base a compreensão deque as classes homogêneas facilitam o trabalhodo professor e melhoram o rendimento do aluno,pois a adequação do nível de inteligência ao pro-cesso de aprendizagem, proporcionaria maiorinteresse pelo estudo, evitando a indisciplina ediminuindo o fracasso escolar.

Mas a temática central da sua produção te-órica está concentrada em política educacionale intimamente ligada à sua militância políticacomo defensor do Estado Novo. Seus estudoselaboram muito mais uma crítica à situação bra-sileira, que teorizações; entretanto, sua críticavai além da defesa de posições políticas, man-tendo-se sempre propositiva. No conjunto desua produção teórica, destacam-se como temasrecorrentes o combate ao analfabetismo, o en-sino profissionalizante e a valorização do pro-fessor, inclusive com a formação em nívelsuperior.

Como o espírito da produção teórica de Isa-ías Alves (conforme sua própria apresentação)é muito mais técnico que teórico, preocupando-se mais em propor e estabelecer diretrizes polí-ticas para a educação do que formular teoriaspedagógicas, utilizando como referência expe-riências de diferentes países como os EstadosUnidos, Alemanha, França, Japão, Rússia eArgentina. Por isso, seus trabalhos assumemum estilo de debate entre as diferentes corren-tes de pensamento pedagógico e, particularmen-te, com a Escola Nova.

Dentre os trabalhos publicados por IsaíasAlves, a maioria constitui-se em artigos de jor-nais ou periódicos, conferências pronunciadasem eventos solenes e em cursos que ministroupara o professorado, alguns organizados em

coletâneas. Em suas publicações coloca comoobjetivo apontar os erros, tanto da filosofia comoda prática da educação nacional que, para ele,estava ‘contaminada pelas doutrinas bolchevi-zantes e métodos excessivamente individualis-tas’, e também tornar pública a atuação daSecretaria de Educação e Saúde da Bahia, di-vulgando e difundindo os valores do EstadoNovo.

O ideárioIsaías Alves de Almeida é um dos represen-

tantes mais exemplares do pensamento conser-vador na história da educação brasileira. Fazparte de uma geração que trabalhou de formareflexiva e entusiástica pela constituição de umanacionalidade, propondo valores básicos para aformação de uma identidade nacional, na Se-gunda República Brasileira (1930 a 1945).

O sentido da vida, para ele, estava em ser-vir. A vida é uma dádiva de Deus e seu sentidoontológico é servi-Lo. Pensa a si mesmo comoum ‘evangelizador cívico’, um pregador da edu-cação cívica e moral. A doutrina cristã e cató-lica é a base das suas concepções filosóficas,mas também percorre as idéias positivistas, semser propriamente um comteano; respeita e de-fende o humanismo clássico e define-se comoantiliberal.

Noções de objetividade, fundamentada naexperimentação, de homogeneidade e ainda deprogressão evolutiva ou mesmo o exemplar“Ordem e Progresso” do catecismo positivistasão pilares das suas formulações tanto políticascomo pedagógicas.

Para ele, é através da inserção social que oser humano se realiza; quando está socialmen-te integrado (via educação, trabalho e profis-são) se transforma em servo de Deus e cidadãocom direitos e deveres, e a educação, por ex-celência, é o mecanismo de socialização, quedeve adequar-se não só às condições sociopo-líticas do país, como às condições peculiares decada indivíduo.

Acredita que a lei da vida é a lei da diferen-ça e não da igualdade, tendo em vista que todo

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ser humano tem talentos e vocações singularese nasce com determinado potencial intelectual.O mérito pessoal, substanciado na inteligência,no talento e na força moral, fundamenta a dife-renciação entre os indivíduos. A inteligência eo talento, como características inatas ao indiví-duo, podem apenas ser exercitadas ao longo davida; não se cria inteligência nem talentos; osindivíduos já as trazem desde o nascimento, masprecisam de oportunidades para expressá-las.A força moral, ao contrário, deve ser construí-da através da educação em valores, pela famí-lia e pela escola, e constitui-se, principalmente,na formação de hábitos virtuosos. O méritopessoal, assim constituído, é o único fundamen-to justo para a diferenciação social, portanto,as demais desigualdades (econômicas, sociaise raciais) devem ser superadas e essa é umaatribuição do governo.

Com esse pressuposto, propõe um novomodelo democrático “verdadeiramente justo”baseado na ordem e na preservação de forçasmorais que conduzam ao progresso. Assim to-dos os cidadãos trabalharão pela Nação, con-forme suas possibilidades de mérito e talento;não se deve exigir demasiado daqueles de me-nor capacidade, nem desperdiçar talentos emfunção das condições sociais ou preconceitosraciais.

A elite dirigente da Nação deve ser forma-da, sobretudo, por homens de talentos e de altacapacidade intelectual, além de grande forçamoral. A família é a base da Nação que estáacima do indivíduo. A ordem e a disciplina fun-damentam a vida social e são funções coleti-vas, não só do governo.

Da mesma forma que a maior parte dosdefensores do Estado Novo, Isaías Alves criti-ca com veemência o regime democrático-libe-ral. Compreende a democracia vigente comoum sistema político ineficiente, incapaz de fa-zer progredir a humanidade e mesmo injusto.Aponta a emergência dos movimentos nazi-fas-cistas e dos movimentos comunistas como umaameaça aos regimes democráticos e, por isso,compreende a necessidade de defesa da De-mocracia que só poderia ser feita por um go-verno forte. Para Isaías Alves:

A Democracia é um sistema político de extraor-dinária sensibilidade e extrema facilidade de des-moralização. (...) A democracia é o regimen maissensível a esses movimentos inesperados, poisestá na sua própria natureza não dirigir e contro-lar as atividades dos cidadãos. Póde-se falar epensar como aprouver a cada um; aceitar ou nãoa idéia de pátria; ter ou não a veneração a umabandeira.

Mas é esse o erro, porque a democracia só sub-siste quando os símbolos da nacionalidade têmsido para todos, e quando o povo é uma unida-de de sentimento ainda que não seja uma unida-de de pensamento. (ALVES, 1941, p.82).

A crítica à democracia liberal, como um re-gime fracassado na história da humanidade, estáapoiada na interpretação das experiências de-mocráticas no mundo e principalmente no Bra-sil. Alves vê o liberalismo como o regime daescravidão dos fracos pelos fortes, dos pobrespelos ricos e, no Brasil, por ter sido baseado napolítica coronelista no interior dos estados e apolítica profissional na capital, considera que foi,em verdade, uma fraude.

Desde as eleições ‘a bico de pena’ nos cur-rais eleitorais do interior, até as urnas raptadase adulteradas na cidade, aprofundando a práti-ca do clientelismo e da corrupção, o Brasil vi-veu, até então, uma farsa democrática. OParlamento Nacional, historicamente, espoliouao invés de contribuir para a Pátria; os políticosprofissionais (como denomina os parlamenta-res) atuam apenas em função dos seus interes-ses e ambições pessoais de poder. Conclui,então, que as gerações educadas no liberalis-mo não são capazes de realizar uma obra decoesão nacional.

Além dessa herança histórica, Isaías Alvescritica o momento político em que vive, apon-tando “os prejuízos” que os debates políticosentre integralistas e comunistas causam à mo-ral, pois ambos não admitem a religião e des-qualificam o “sagrado respeito” à família.

Ante tal análise, defende abertamente umregime forte dirigido por uma elite intelectuali-zada, que torne a Democracia voltada para oque ele considera o bem comum, que não impli-ca igualdades, mas um tratamento diferenciadodos indivíduos, conforme capacidades e mérito

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de cada qual, secundado pelo sentido de en-grandecimento à Pátria. Este pressuposto, em-bora comum para toda a humanidade, éparticularmente adequado às peculiaridadesbrasileiras.

Segundo Isaías Alves, o Brasil tem uma con-formação muito especial e que, portanto, devecriar um modelo próprio de sociedade e Nação,sem copiar exemplos e/ou modelos estrangei-ros, que não se adequam nem às nossas tradi-ções, nem ao momento histórico em que vive.É esse, então, o propósito da ReconstruçãoNacional: o Brasil precisa de progresso econô-mico, ordem social e sentimento de Nação. Urgea construção de uma brasilidade.

O núcleo do seu ideário é a aspiração defazer a passagem entre a Pátria romântica daquadra liberal e a Pátria robusta e organizada,com uma nova alma política, para torná-la umapotência e apontar, ao Brasil, o rumo dos seusgrandes destinos, cuja base fundamental é aTradição.

Na análise da conjuntura brasileira, consta-ta um total atraso político, econômico, social eantropológico, e a República, por construir-se.Segundo Isaías Alves, a República brasileiranasceu de um caos em 1891, que foi agravadopelos erros e vacilação de 1934, mas com oEstado Novo, estabelecendo liberdade, ordeme disciplina surgem novas esperanças.

Do ponto de vista econômico, Isaías Alvesvê um Brasil atrasado com uma industrializa-ção incipiente e as iniciativas existentes de pro-gresso em mãos de imigrantes estrangeiros queameaçavam a brasilidade. O Brasil, possuin-do muitas riquezas naturais e imensos terrenosdevolutos, teria como principal missão a ocupa-ção do território que poderia ser feita atravésde distribuição de terras a colonos nacionais,inclusive a universidades, pois os imigrantesestrangeiros que se adiantavam nas suas colô-nias no trabalho e na educação dos seus, semsentido algum de nacionalidade, buscavam ape-nas o proveito próprio.

Do ponto de vista social, para Isaías Alves,o Brasil estava marcado por desigualdades ori-ginadas do atraso econômico, por injustiças e,particularmente, pela desordem atribuída a certo

tipo de laissez-faire proveniente do desejo da-queles que queriam importar para o Brasil mo-delos estrangeiros. Há, nos escritos de IsaíasAlves, uma queixa contra as elites brasileirasque, ao contrário das elites de outros países,nos quais exploraram as classes inferiores, mascultivaram as artes e as letras, aqui abandona-ram a educação popular, cuja conseqüência éum país de ignorantes que, nesse momento,deprimem a Nação.

Do ponto de vista antropológico, o Brasil évisto como um país formado por três raças quenão puderam dar uma identidade ao país, poisnão tiveram um sentido nacional para a suaexistência. O índio e o negro não possuíam no-ção de ordem social; o branco, particularmen-te o português, também não soube construiruma Nação aqui no Brasil, apesar de na Euro-pa já ter estabelecido, há séculos, a ordem tra-dicional de família e sociedade; o mestiço nãose impôs culturalmente. Disso resultam as mar-cas da escravidão, manifestadas na discrimi-nação, no preconceito e na excessiva valori-zação do que é estrangeiro em detrimento doque é nacional. Entretanto, considera possívela conquista de certo grau de uma homogenei-dade social, pois o preto e o mulato adapta-ram-se à cultura européia e o Brasil já forma-va uma nova raça,

Raça, sem dúvida, no sentido lato. Somos umanação. Das origens luso-indio-africanas estánascendo um grande povo, cujas forças é misterdesenvolver, pela escola, que lhe levará as téc-nicas da vida, os ensinamentos da defesa orgâ-nica e as vias intelectuais de aquisição doorgulho nacional, baseado na fé, nas tradições ena consciência de nosso valor econômico. (AL-VES, 1941, p. IV).

Segundo Isaías Alves, havia no Brasil da suaépoca o consenso sobre a multiplicidade de ra-ças que formam o país, mas também uma gran-de diferenciação de níveis culturais, pelasnotórias influências indígenas e africanas na ci-vilização brasileira, que o português criou. As-sim, diante de tanta diversidade de culturas, nãoteria sentido se falar em pureza de raça, mes-mo porque não crê em superioridade racial.Para ele, a “pureza” brasileira é a mestiçagem

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do conjunto índio-afro-português ao qual, nessemomento histórico do Estado Novo, se associ-am outras etnias de imigrantes que devem serassimiladas.

Este diagnóstico do Brasil é a referência paraa construção da brasilidade, que requer umesforço de mobilização nacional e, para isso,existiam dois instrumentos básicos: a Educaçãoe o Exército. A Educação como estratégia e oExército como única força política capaz derealizar a mobilização nacional.

Isaías Alves propõe a construção de umBrasil de classe média, sem diferenciações so-ciais gritantes – que ele considera perturbado-ras –, onde o pobre possa viver com o mínimoconforto necessário à pessoa humana. Um paísagroindustrial capaz de projetar-se no cenáriomundial, liderando economicamente a AméricaLatina, e governado por uma meritocracia.

A sociedade ideal é, para ele, a compostapor trabalhadores conscientes dos seus direitose deveres como cidadãos, na qual todos serãorespeitados e sua elite dirigente será, sobretu-do, altruísta. Dever-se-ia dar oportunidade atodos, independente da condição social ou deraça, para que cada indivíduo pudesse assumira sua verdadeira vocação. Dever-se-ia procu-rar corrigir as desigualdades sociais, buscandodignificar todo tipo de trabalho, sobretudo o tra-balho manual, à época, tão depreciado.

Segundo Isaías Alves, a multidão não teria amesma capacidade de critério que os homensiniciados na filosofia; portanto, seria indispensá-vel a formação de uma elite esclarecida. Paraisso, deveriam ser abertas, aos jovens de talento,as oportunidades de ascensão, evitando-se criaros revoltados pelas injustiças sociais, que propa-gam a dissolução da Nação, como recurso dopróprio reajustamento. Diz Isaías Alves que:

Não é possível governar sem o talento, sem altacapacidade de perceber as necessidades sociaisdo povo e de conceber as resoluções dos gra-ves problemas de sua satisfação. Por isso, a so-ciedade, por seu governo, quando não por suasinstituições filantrópicas, está no dever de pro-curar e descobrir os espíritos superiores da in-fância e da juventude a fim de abrir-lhes maisvantajosas oportunidades, tornando-lhe o am-biente mais propício. (ALVES, 1937, p.52).

O clima social necessário ao desenvolvimen-to dos princípios políticos de um regime quegaranta a liberdade pela organização moral, peladisciplina e pelo império da lei, numa atmosferade confiança e de respeito aos direitos e aosinteresses econômicos do povo, só poderia sercriado pelo Estado Novo.

Defende o Estado Novo como uma neces-sidade para o Brasil equiparar-se às naçõesdesenvolvidas, o que significa firmar valorescomo a hierarquia, que se traduz na obediênciaà autoridade; a religiosidade, base da moral, cujaresponsabilidade é da família; e o legalismo queé a referência de respeitabilidade do Estado.

O Estado deve ser um coordenador das or-ganizações sociais para melhorar a disciplinados grupos humanos e sua responsabilidade, coma educação, é a do controle dos serviços edu-cacionais. A família, detentora da tradição dasociedade, é uma das bases dessa nova ordeme estreita colaboradora do Estado – que nãoquererá substitui-la – principalmente no queconcerne às suas funções educativas, com pre-ponderância na educação religiosa. Tal Estadoconstitui-se em um:

... regimen de autoridade, de ordem, de respon-sabilidade e pundonor, em que os homens nãoapelam somente para os direitos e regalias, masadquirem a noção profunda do dever, e cumprem,conscientemente, as suas obrigações para coma sociedade, para com a Pátria, para com as cri-anças, para com os operários, para com os po-bres e impaludados lavradores, que constituema fonte primeira das nossas riquezas econômi-cas e que viveram sempre abandonados às mar-gens dos nossos rios, sem conforto material, semesclarecimento para a inteligência, e até sem alí-vio para as dores da alma, por falta de padressuficientes que lhes levem a palavra da caridadecristã. (ALVES, 1939, p.117-118).

A principal missão do Estado Novo é firmara unidade nacional e garantir a integridade ter-ritorial do Brasil, tornando-o uma nação forte erespeitada pelas outras nações, em vez de umconjunto de retalhos estaduais; propugna, por-tanto, por uma centralização do poder político,em detrimento das regionalidades.

Isaías Alves considera o Estado Novo umasegunda etapa do Estado brasileiro constituído

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em 1930, momento em que se estabeleceu aunidade nacional, ou seja, a centralização. Combase na ordem e na disciplina, o Estado Novoinstalaria uma nova democracia voltada para obem comum, traduzido no sentimento de Pá-tria, que deve ser infundindo na população, afir-mando a fé e os valores cristãos, re-dignificandoa família.

Dentre as medidas que o Estado Novo jáhavia tomado, Alves salienta as econômicas quepossibilitaram reduzir as diferenças entre ricose pobres, buscando acabar com a “luta de clas-ses” no Brasil. O cooperativismo é um exem-plo do que se estimulava em todo o país,proporcionado um grande impulso na economiarural, como também o disciplinamento das es-tradas de ferro, permitindo o aumento e a cir-culação da produção agrícola. Afirma tambémque o sucesso de tais medidas deveu-se à tra-dição brasileira da cultura de solidariedade eespírito associativo que poderiam ser percebi-dos nas relações de vizinhança, das comunida-des tanto de bairros urbanos como rurais, pelaprática do ‘adjutório’.

Isaías Alves aponta ainda que, conjuntamen-te a essas medidas, o Estado Novo estava cri-ando o espírito de empreendimento e diminuindoa tendência ao emprego público, reeducando opovo brasileiro no sentido do dever e do sacrifí-cio para com o progresso da Pátria.

E, nessa ordem social, são bandeiras para aformação da cidadania: primeiro, o conhecimen-to das condições sociais e econômicas do país,seus problemas e respectivas soluções, no sen-tido de sensibilizar a população para a mobiliza-ção nacional; segundo, o fortalecimento da idéiade serviço e do esforço pelo bem coletivo. Taisbandeiras a educação deveria assumir comoobjetivo maior da sua função social.

O Estado Novo, um governo forte, capaz delimitar a expansão do materialismo ateu e al-cançar, na paz, a cristianização do pavilhão re-publicano, tem:

O sentido disciplinador do Estado Novo, criadopara reerguer o Brasil e torná-lo uma potênciamundial pelo aproveitamento de todas as suasenergias econômicas, sociais, morais e espiritu-ais, deve ser reiteradamente apresentado à cons-

ciência coletiva, para que as fôrças do mal, queirradiam seu pensamento dissolvente na obscu-ridade da propaganda clandestina, encontrem nainfatigável campanha do bem, no ininterruptochamamento da alma à defesa das mais purastradições e ao serviço da construção nacional, aneutralização de sua obra demolidora. (ALVES,1939, p.195).

A Reconstrução Nacional tem a Tradiçãocomo princípio básico para a nacionalidade quesignifica: o respeito aos mais velhos, o culto aosantepassados, às origens da raça, ao solo pá-trio, às lendas e à cultura nacional. Essa é umareação salvadora contra o internacionalismopregado pelas ideologias de direita e de esquer-da que, então, se alastravam no Brasil.

Outro recurso para o progresso da Nação,do qual o Estado Novo vinha lançando mão, foia modernização técnica. Isaías Alves crê que atécnica, a grande arma do homem civilizado, éindispensável à vida do homem moderno pois,através dela, a energia individual seria multipli-cada tornando milhares de vezes mais benéficaa capacidade e a eficiência do trabalho. Comofilha dileta da Ciência, a técnica consegue re-ger todos os campos da vida, embora existamdificuldades para intervir na política, particular-mente no Brasil onde os interesses e as ambi-ções pessoais ainda não se dobram aos ditamesda experiência científica. Para Isaías Alves,essa é uma conquista lenta que seria processa-da à medida que a vida coletiva fosse sofrendoa influência organizadora dos técnicos.

Entretanto, apesar da técnica (as condiçõestécnicas, os dispositivos científicos, os elemen-tos materiais, os produtos da atividade intelec-tual) ser um elemento indispensável à formaçãode um novo Brasil, a questão moral e a espiritu-al estão em primeiro lugar. E tal afirmativa estáacompanhada de uma crítica subliminar ao nazi-fascismo:

... os povos que cultivam apenas o egoísmo e oconforto material, e os que se adoram no mito dasuperioridade do indivíduo e da raça, segundosua eficiência no campo intelectual e no indus-trial e econômico, acabam sempre em fanatismosperigosos (...) a preparação intelectual e material[só] será uma força eficiente quando dirigida pelaenergia moral. (ALVES, 1937, p.129).

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A superioridade de uma Nação, segundoIsaías Alves, se faz através da educação, dacultura, do progresso econômico, do idealismoe devoção à Pátria; essa superioridade qual-quer raça poderá construir.

Neste particular, sugere que o nordestinotenha uma missão especial: será o elementofundamental da “liga resistente” da brasilida-de, pois é o mais perfeito representante damestiçagem, descendente direto do caboclo, sím-bolo nacional. Por isso, Isaías propõe que, aoinvés de buscar a fixação do nordestino no seulugar de origem, o Estado deve prepará-lo paramigrar para o sul, suficientemente educados,homens e mulheres, tendo em vista superar oestrangeiro que vem tentar a vida no Brasil. Abrasilidade, mais que uma idéia, é um senti-mento: a certeza da eficiência da “amalgaçãomística” das três raças; e isso deve alimentar atodos os patriotas.

A construção da nacionalidade também pas-sa pelo tratamento da questão do imigrante, oumelhor, da assimilação do imigrante, que é co-locada como uma questão de defesa nacional,tendo em vista a negativa de incorporação danossa língua nas suas escolas e a manutençãode seus usos e seus costumes. Isso, para IsaíasAlves, ameaça a integridade da cultura nacio-nal. Diferentemente dos Estados Unidos, ondeos imigrantes assumiram a cultura americana,tipo ‘Deus salve a América’, no Brasil, os imi-grantes estão assumindo uma aberta superiori-dade em todos os níveis da vida (urbano,industrial, educacional, sanitário etc), o que hu-milha e deixa um complexo de inferioridade naspopulações nacionais, persistindo cada vez maisa cultura de que ‘o que é estrangeiro é sempreo melhor’.

Nesse âmbito, Isaías Alves indica como so-lução a melhoria da qualificação das escolasrurais nacionais, de modo que possam concor-rer com as escolas de imigrantes, assim comoo preparo do próprio camponês. Diz que não sepode impor o uso da língua nacional (mesmoporque não se obedece a isso) nem esperar queo imigrante aceite uma forma de vida inferior àque tinha no seu país de origem. Propõe, então,que o governo federal intervenha nessa ques-

tão, vencendo a resistência dos poderes locais.Isaías Alves aponta a urgência do governo

em firmar a estabilidade democrática e, paraisso, um dos caminhos é a salvação dos talen-tos. Identificar jovens talentosos que pudessemdesenvolver seus talentos, abrir novos horizon-tes à sua vida, saciar sua sede de cultura, seriauma forma de aplacar ódios e desejos de mu-danças da ordem social.

A juventude é eleita como a grande forçamoral da pátria e merecerá uma formação es-pecial, seja no Exército, seja nas escolas, cujo“primeiro passo é ensinar-lhes o trabalho ma-nual, habituá-los a alimentos sadios e a exercí-cios activos e hygienicos”. (ALVES, 1931,p.79). A educação torna-se, assim, uma estra-tégia para a Reconstrução Nacional, à medidaque identifica e forma talentos.

Transformar um Brasil pobre, vilipendiado,enfraquecido pela invasão de idéias, gentes eideologias estrangeiras, em uma Nação cristã,de classe média, liderando economicamente aAmérica Latina e governada por uma merito-cracia é o ideal cívico de Isaías Alves, ao qualcoloca a serviço sua proposta educacional.

A política educacionalIsaías Alves situa o debate político em torno

da educação, naquele momento histórico, entredois modelos: o democrático e o tecnocrático.No modelo democrático, a educação seria uni-versal, igual para todos (escola única) e as re-formas ou mudanças emergindo do povo semobedecer aos ditames das autoridades. No mo-delo tecnocrático, a educação seria essencial-mente profissionalizante, com oportunidadesespeciais reservadas a poucos (sistema dual) eos tecnocratas como agentes organizadores dosplanos que o povo deve seguir.

Num esforço de síntese entre essas ten-dências, e coerente com seu conceito de de-mocracia, ele propõe uma educação democrá-tica voltada para o bem comum – materializadono amor e no serviço à Pátria – e fundamen-tada no conhecimento técnico, resultante depesquisas, de bases experimentais, que, à sua

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época, eram, enfaticamente, associadas àsteorias da Psicologia Experimental. Uma edu-cação que propicie oportunidades a todos, con-forme seus talentos, e, portanto, uma educa-ção diferenciada.

Não há nas obras de Isaías Alves uma teo-ria da educação propriamente dita; suas con-cepções vão sendo formuladas no bojo dadiscussão com os escolanovistas e também nodebate internacional entre as diferentes corren-tes de pensamento pedagógico. Assume, comoatribuição pessoal, a crítica à Escola Nova noBrasil – mesmo com o risco de ser punido como ostracismo –, pois se inquieta ao ver a educa-ção brasileira entregue ao que chama de ‘pre-conceitos doutrinários’.

O combate à Escola Nova está focado nasquestões políticas sobre a função social da Edu-cação. Para Isaías Alves, a educação propostapela Escola Nova era uma força de desnacio-nalização, pois não cultuava os heróis e os sím-bolos pátrios, como a bandeira e o hino nacional;abandonava a educação religiosa – alegandoproteção contra os interesses eclesiásticos –,além de enfraquecer a tradição, entendida maisparticularmente como respeito aos mais velhos,no sentido da obediência reverente aos pais.

O rompimento da Escola Nova com a tradi-ção teria como evidência, por exemplo, a prega-ção escolanovista da superioridade do pensamen-to juvenil, fincada apenas na sua própriaexperiência de vida. Aponta também o que seri-am equívocos nos dogmas da Escola Nova: ofato de os escolanovistas afirmarem, por exem-plo, a necessidade de dar liberdade à criança é,para Isaías Alves, um preceito superado, poisestava provado que crianças normais precisa-vam de direção e controle, mesmo porque a li-berdade não é um dom natural, como a queriaRousseau; ao contrário, na história da humani-dade, a liberdade sempre foi uma conquista.

Considera que a doutrina da Escola Nova éuma conseqüência e não um elemento propul-sor da riqueza econômica e artística, e da pros-peridade material e moral das Nações que aadotaram; portanto, tal doutrina só se aplicariaa países ricos. Identifica, na falta de uma filo-sofia da educação brasileira, a razão da difusão

da Escola Nova no Brasil, tornando-o susceptí-vel ao que chama de “reformadores temerári-os”; temerários também porque a Escola Nova,já superada no mundo, queria implantar-se noBrasil.

A educação brasileira deveria adotar comofilosofia o sentido do dever e do esforço, aocontrário do que querem os escolanovistas, pre-gando apenas o direito e o conforto pessoal, queterminam por desagregar as forças morais quedeveriam unir-se para a construção da discipli-na social. Na nova ordem social, a educaçãonão poderia ter a função de servir às individua-lidades, como a queriam os escolanovistas; de-veria, ao contrário, assumir um papel dedestaque como força de homogeneização detoda sociedade, como estratégia mobilizadorada Reconstrução Nacional ou da própria nacio-nalidade.

Segundo Isaías Alves, a chave do sucessoestava em propor uma educação adequada àstradições; afirma que uma organização educa-cional não obedece a princípios filosóficos alhei-os ao modo de ser de uma Nação. Somente asditaduras violentas podem, transitoriamente,impor a um povo modos de viver artificiais. Sea educação não vier ao encontro dos ideais deum povo, se seus métodos e organização nãoestiverem adequados às condições sociais dopaís e se sua pedagogia for estranha às tradi-ções culturais da Nação, a educação será umprojeto falido.

A educação é uma função do organismo queé a Nação. Portanto, no Brasil:

Será profundamente brasileira; pacífica peranteas nações amigas; corajosa e heróica perante asambições agressivas à nossa soberania; prag-mática perante as riquezas adormecidas no vas-to solo e idealista perante os valores espirituaisde nossa gente, que vive da poesia mística detrês raças profundamente sentimentais, genero-sa no desenvolvimento dos valores de hospita-lidade, prudente e reservada na defesa de nossoscostumes, perante a sugestão dissolvente deforasteiro que nos pretendam enfraquecer na lutade nossa própria conservação. (ALVES, 1941,p.10).

O Brasil necessita não só de uma filosofiada educação, como também de uma política

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educacional clara, objetiva e pragmática quesolucione seus problemas educacionais. Osgrandes problemas da educação e “que a Na-ção brasileira está tardando de levar a serio”,são: a alfabetização das massas (principalmen-te as das zonas rurais), educação profissional(sobretudo para a qualificação do operariado)e a assimilação dos imigrantes. Estes aspectosdevem ser os eixos da Política EducacionalBrasileira.

Diz Isaías Alves que o analfabetismo é ogrande mal do Brasil. A situação de atraso epobreza, em que se encontrava o país foi, in-sistentemente, criticada por ele. Apontada, in-clusive como causa do que entende como “lutade classes”, no Brasil. O combate ao analfa-betismo deveria ser em todas as frentes: decrianças, de jovens e de adultos, pois 75% dapopulação brasileira estavam, à época, anal-fabeta.

O principal argumento de Isaías Alves é ode que um povo sem instrução não pode ala-vancar o desenvolvimento econômico, sobretu-do porque, se o povo não sabe ler, o governonão pode formar uma opinião pública favorávela si, através da imprensa. Por isso, a principaldiretriz da política educacional é a expansão daoferta de escolas. Sem isso “a multidão perma-necerá uma presa da exploração dos ambicio-sos, para os quais o aumento dos brasileirosalfabetizados é um grande perigo, porque im-portará no crescimento do eleitorado, difícil deser comodamente manobrado”. (ALVES, 1941,p.13).

A educação profissional, tanto urbana comorural, tem em vista a formação para a indústriae para a agropecuária, setores vitais da econo-mia do país, naquele momento. Articular a edu-cação com a indústria e formar operáriosconforme as suas demandas, poderia, por exem-plo, na visão de Isaías Alves, amenizar o de-semprego, um dos problemas do capitalismo, jáà época.

A educação rural tem um destaque nas di-retrizes políticas da educação propostas por Isa-ías Alves, não só por sua importância para odesenvolvimento econômico do país, mas prin-cipalmente pela questão da assimilação do imi-

grante, que, para ele, se constitui em um traba-lho muito mais pedagógico que burocrático e/ou policial. Afirma que as escolas alemãs eramsubsidiadas pelo Reich ou por colonos alemães;os japoneses chegavam ao Brasil garantidos porcompanhias subvencionadas pelo governo deTóquio, daí a superioridade da organização dassuas fazendas, estradas, pontes e escolas. Jun-ta-se a isso o ‘pouco caso’ que os japoneses ealemães fazem das escolas públicas, além denão admitirem crianças brasileiras nas suas. Oproblema se agrava quando é constatado que,nas fronteiras, todos estudam no outro país enão no Brasil.

Ante tal quadro, Isaías Alves propõe insta-lação de escolas públicas nas colônias – princi-palmente nas alemãs – contrapondo-se àsescolas dos colonos, indicando que a única for-ma de concorrer com as escolas dos colonos econstruir a brasilianização é tornar a escolabrasileira bem organizada, bem dirigida, comprofessores de elite e com ensino bilíngüe.

Além dos imigrantes, outras minorias étni-cas preocupam Isaías Alves: o negro e o índio.Para o negro, propõe a inclusão na rede públi-ca, sem diferenciação, nem discriminação. Cri-tica o modelo americano que discrimina o negro,dando-lhe uma educação inferior em escolasnas quais o custo-aluno e o salário dos profes-sores são mais baixos que nas escolas dos bran-cos; considera isso um grave erro, porque assimse desperdiçam os gênios que há entre os ne-gros norte-americanos. Para o índio, defende ainstalação de escolas públicas nas reservas in-dígenas, sob a responsabilidade federal.

Na realidade brasileira, em que o poder pú-blico ainda é incapaz de dar escolas aos que apedem, o dever precípuo do Estado é a instru-ção primária. Portanto, não se poderia colocarem plano secundário a cooperação das funda-ções civis ou religiosas, que educam dezenasde jovens. A educação é um direito e um deverprimordial dos pais. Ao governo compete orga-nizar e dirigir a educação de modo que se obte-nham os mais excelentes resultados dosimpostos empregados no ensino.

No caso da alfabetização rural, Isaías Al-ves defende a parceria com o Exército que al-

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fabetiza e socializa “o homem rústico” e já temuma obra iniciada, particularmente nas escolasrurais de fronteiras. O Exército – credenciadopela salvação das instituições na hora amargada sublevação – deve ser o coordenador desseambiente em que a escola agirá no preparo dasnovas gerações, inclusive requerendo verbaspúblicas para essa função.

A educação é estratégica e conta com dife-rentes mecanismos e agentes, mas é a escola oespaço privilegiado para sua consecução. Aescola é, sobretudo, o “laboratório da nacionali-dade”, um centro irradiador de cultura, com umaclara predominância do processo formativo emdetrimento da transmissão de conhecimentos.Deve-se tornar um centro social, onde se unamdiretoras e trabalhadoras proporcionando ao fi-lho do operário as mesmas vantagens que têmfilhos de milionários.

Segundo Isaías Alves, o Brasil não poderápensar em escola única antes do ano 2000. Aescola única seria muito cara para os cofrespúblicos, haja vista o contingente de criançassem acesso à escola, além do que as famíliaspobres não poderiam dispensar o trabalho dacriança, principalmente nas zonas rurais que têma tradição do trabalho familiar. Por isso, defen-de a diferenciação da escola tanto pela sua lo-calização (urbana ou rural) como pela suafinalidade (formação das elites ou formação dasmassas).

Como veículo de uma educação diferencia-da, a escola deveria preparar o homem paraajustar-se ao ambiente; assim, nem todas asescolas deveriam ter pretensões literárias; nasescolas mais humildes de zonas mais pobres,por exemplo, as escolas estariam mais ligadasà vida doméstica e às atividades econômicasdas cidades e dos campos, para orientar as cri-anças a colaborarem na economia familiar.Entretanto, Isaías Alves sabe que é preciso tercoragem para implantar e levar adiante este tipode escola, pois implica romper com o precon-ceito de que adaptar a escola às condições lo-cais significa assumir que somos um paísatrasado. Esse modelo de escola, voltada paraos interesses locais, mas que tem por finalidadeo serviço à Nação foi, segundo ele, uma expe-

riência de sucesso na Dinamarca que, à época,já havia universalizado até o ensino secundário.

A escola é apontada ainda como um espaçoonde os talentos se revelam. Esse é um traba-lho de base para a educação nacional: desco-brir talentos, formá-los e constituir a elitedirigente do país. O Brasil tem urgência empossuir uma elite bem formada, tanto técnicacomo moralmente. As elites brasileiras, até en-tão, não foram suficientemente altruístas parafazer do Brasil a grande nação correspondenteao seu potencial.

Uma das questões mais combatidas por Isa-ías Alves é a localização das escolas. Denun-cia que o prestígio político – sobretudo dosfazendeiros – tem sido o critério para localiza-ção de escolas, tanto urbanas como rurais. Issotem levado ao desperdício de verbas públicas,ao favorecimento dos que podem prescindir daajuda do governo, tem deixado as populaçõespobres no seu eterno atraso.

Na nova ordem social, as escolas deveriamser localizadas de acordo com as necessidadesda população, não só no sentido de sua instru-ção, mas para que a escola pudesse cumprirseu papel de centro irradiador de cultura, disse-minando a propaganda patriótica, organizandoas populações para combates a endemias etc.Um plano de construção de escolas precisariaser orientado por critérios científicos, resultan-tes de pesquisas demográficas (inclusive comprojeções) e inquéritos sociais.

Entretanto, todas essas diretrizes só teriamsentido se o governo federal tomasse a si o Ensi-no Normal que é o centro do problema da edu-cação brasileira2. O Ensino Normal deve ser umafunção orgânica e realizada diretamente peloEstado. Como o ensino militar e o religioso, oensino normal exige qualidades especiais e apti-dões claramente favoráveis ao exercício de de-veres árduos, de funções delicadas e patrióticas.Para ele, o professor deve ser selecionado, pe-los métodos da orientação profissional, entre osmelhores e mais vantajosos elementos, entre as

2 O ensino normal foi o objeto privilegiado das proposiçõesmais dedicadas de Isaías Alves, no período de sua atuaçãocomo secretário de Educação e Saúde na Bahia, durante oEstado Novo.

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inteligências mais robustas e os caracteres maisfortes das várias camadas sociais.

A Escola Normal, mais que qualquer outra,é uma prioridade educacional. Isaías Alves la-menta que a Escola Normal na Bahia, tendosido fundada em 1836, e a cinco anos de com-pletar um século, esteja oferecendo apenas onível secundário. Os professores formados poressa Escola saíam ainda muito jovens para as-sumirem a grande responsabilidade atribuída aoprofessor e, ainda mais, na nova ordem social.Propõe que a formação de professores seja emnível superior e que o/a normalista tenha maisanos de estudo e amadurecimento para as suasfunções.

Na sua obra educacional, o professoradoocupa o lugar central, pois o Brasil pobre preci-sa desenvolver-se. A educação é um mecanis-mo fundamental para o desenvolvimento; oprofessor é peça-chave na Educação. É a lide-rança no âmbito educativo, que somará forçaspara a mobilização nacional. É um descobridordos talentos, que formará a elite dirigente dopaís. É o exército da cultura, o Estado Maior daformação moral do povo brasileiro e o exemploa seguir por seus educandos. Mais que qual-quer outro profissional, deve formar uma cate-goria uníssona e tem, principalmente, um papelhistórico a cumprir:

... de reeducação dos hábitos morais, transfor-mação dos princípios políticos, rejuvenescimen-to da sociedade, fortalecimento da família,engrandecimento da Pátria; por isso deve seruma elite bem aparelhada espiritual, física e inte-lectualmente, homens de palavras claras, bata-lhadores da honra, da honestidade e do brionacional (ALVES, 1937, p.124)

Juntamente com os militares e os religiosos,o professorado compõe o apostolado da Recons-trução Nacional: da ordem e disciplina, da fécristã e da formação cívica e moral. Se, por umlado, é a principal solução para erguer a educa-ção nacional ao nível da de um país civilizado,por outro, é o principal problema da situação daeducação no Brasil. Acredita Isaías Alves queo professorado só poderia cumprir seu papelhistórico se lhe fossem dadas condições e tra-tamento equivalentes.

Diz que, para realizar o trabalho de constru-ção moral da Nação, é preciso que tenha o va-lor moral à altura de sua função; e isso deveser adquirido por uma formação de alto nível etambém através do tratamento dispensado aoprofessorado pelas autoridades. Defende aber-tamente a necessidade de aumento salarial, deprestígio político e social, e ainda o rompimentocom a prática de tratar o professor como umhumilde auxiliar de governos ou fazendeiros.Tais medidas, segundo ele, engrandeceriam aprofissão e dariam ao professorado o entusias-mo necessário para cumprir sua missão. Osprofessores devem ser vistos como “verdadei-ros oficiais de um exercito da paz e do futuro”e não como “simples funcionários subalternos”.(ALVES, 1936, p.99).

Em termos de gestão, Isaías Alves espelha-se nos Estados Unidos e propõe um sistemadescentralizado e compartilhado com outrosagentes sociais. Admite a autonomia dos Esta-dos e dos Municípios, mas com os princípiosgerais e os objetivos a atingir ditados pelo po-der federal. À União cabe disseminar a educa-ção primária, com ação supletiva, e buscar acooperação de fundações civis ou religiosas. AUnião deve intervir particularmente no ensinorural como um auxílio para resolver o problemada alfabetização, criando um clima de colabo-ração dos cidadãos, que, entre outras coisas,poderão expandir o ensino primário (particular),subsidiados pelo governo e com a devida fisca-lização federal.

Critica a desarticulação e a grande quanti-dade de organismos administrativos, propondouma estrutura enxuta com vinculação entre osDepartamentos de Educação e os Conselhosfederal e estaduais que, para ele, parecem, na-quele momento, sem função.

A pesquisa educacional deveria ser o únicocritério para as decisões de política educacio-nal e para subsidiar a administração tambémnas questões de financiamento da educação(como estudos tributários, por exemplo), de ade-quação de mobiliário escolar, de materiais pe-dagógicos etc. Para Isaías Alves, só se podeeconomizar o dinheiro público, investindo empesquisa.

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Quanto ao financiamento da educação, Isa-ías Alves resume-se a propor uma otimizaçãodos recursos públicos e uma associação aossetores privados. Para financiamento das es-colas rurais, defende o sistema de Caixas Es-colares, então já vigente no Rio de Janeiro,chamando a atenção de que a Constituição de1937 determina que o ensino primário seja obri-gatório e gratuito; entretanto, isso não deveriaimpedir que os que têm recursos contribuampara os que não os têm. E, por conta da incapa-cidade de fiscalização por parte do governo,sobretudo pela imensidão do Brasil, o encargoda fiscalização dessas Caixas Escolares deve-ria ser atribuído à população.

Com o eixo da Reconstrução Nacional, apolítica educacional proposta por Isaías Alvestem em vista a formação moral dos cidadãos,cujo elemento central é o professorado asse-melhado em sua vocação aos religiosos e aosmilitares. Assume como finalidades a forma-ção das elites e o preparo profissional, tendocomo medidas emergenciais a alfabetização emmassa e a assimilação do imigrante.

Para sua consecução, o Estado coloca-secomo organizador e articulador das iniciativaspúblicas e privadas, incorporando, inclusive, apopulação como agente de fiscalização. E, comocritério ideal para tomada de decisões, a pes-quisa científica.

A proposta pedagógicaPara Isaías Alves, o grande problema das

sociedades civilizadas é como conciliar a edu-cação das elites e a educação das massas. Ademocratização da escola na Alemanha, nosEstados Unidos, na Polônia, no Japão, na Fran-ça e no Canadá, onde a educação se generali-zou, trouxe também um rebaixamento dospadrões de qualidade do ensino.

Estudando as experiências internacionais, eleverifica que a universalização da escola secun-dária nos Estados Unidos levou à desilusão:geração de desempregados que não conseguemingressar nas universidades, que são bastanteseletivas. A Europa não caiu neste erro e fez

uma escola secundária seletiva ao lado de umaescola média ou da escola primária superior.Isso significa que não se deve abandonar a edu-cação das elites, pois elas sustentam a Nação;entretanto, também não se podem desprezar ospobres de talento que pertencem às grandesmassas.

Ante a necessidade de uma educação práti-ca e utilitária – sobretudo, de orientação agrí-cola – tanto para desenvolver o campo, comopara qualificar os menos inteligentes, o sistemade ensino deve ser dual, pois assim poderia aten-der, ao mesmo tempo, à formação profissionaldas amplas massas e à preparação de uma eli-te intelectual, capaz de servir não só à vida pro-fissional como garantir a construção de umacultura nacional.

Em verdade, Isaías Alves considera o ensi-no dual como uma medida emergencial; paraele deveria ser generalizado um sistema únicode ensino secundário, conforme o modelo ame-ricano: cursos comerciais, técnicos, industriaisetc. Contudo, entende que a mentalidade doBrasil, ainda fortemente aferrada aos ensina-mentos clássicos e literários, não permitiria taltransformação; assim, se torna preferível o cri-tério de separação e distinção.

O ensino está estruturado, na proposta deIsaías Alves, em três níveis (primário, secun-dário e superior) com uma função comum –essencialmente formadora – e objetivos peda-gógicos específicos: alfabetizar, profissionalizar,formar a elite. A prioridade é o nível elementarque o Estado deve assumir como sua atribui-ção, pois, “uma Nação não pode prescindir dosalicerces de uma infância educada no sentidomoral de respeito à Pátria”. (ALVES, 1937,p.34).

Isaías Alves concebe a alfabetização comoum meio e não um fim: serve para formar cida-dãos trabalhadores. As crianças alfabetizadasentre os sete e doze anos terão mais probabili-dade de evidenciar sua capacidade intelectuale vocacional, elevando-se acima do nível socialem que nasceram e concorrendo para o traba-lho industrial e cultural do país.

Alfabetizando as massas, o governo terámais facilidades na propaganda dos princípios

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políticos, morais, religiosos e higiênicos, trans-mitidos por livros e jornais ou periódicos. Alémdisso, alfabetizar é uma forma de descobrir asinteligências brilhantes que também existem nascamadas sociais consideradas inferiores. Osprofessores, no trato diário com o aluno, sãocapazes de descobrir líderes; mas, para umaseleção de talentos bastante justa, devem-seutilizar testes que identifiquem a personalidadetotal do aluno. É notória a preocupação de Isa-ías Alves com os talentos escondidos nas clas-ses pobres: “E quantas dessas crianças dotadasde valor intelectual, que a Pátria não aproveitaporque não tem organização escolar para sele-cionar os talentos que nascem e fenecem nascamadas inferiores da sociedade?” (ALVES,1939, p.37).

Este nível de ensino, segundo ele, deve es-tar provido de museus e bibliotecas, programasde rádio e de cinema, discotecas, educação téc-nica, estética e musical para os filhos dos ope-rários e mesmo para os adultos.

A dualidade do sistema de ensino se con-centra no ensino secundário. Alves propõe umcurso secundário bastante seletivo, propedêuti-co (cultura geral e clássica) com sete a oitoanos de duração para formar uma elite intelec-tual; ao lado de cursos médios especializados,destinados ao preparo direto para a vida: co-merciais, técnicos, industriais etc, formando doissistemas estanques.

Porém, em ambos os sistemas não se pode-ria perder de vista que a escola é essencial-mente formadora. O ensino secundário, períodoque atende aos adolescentes, além de transmi-tir conhecimentos superiores ao nível elemen-tar, imprimir hábitos de raciocínio, atitudes sociaise experiência científica e literária, tem comofinalidade preparar o futuro cidadão para resol-ver os problemas econômicos, familiares e po-líticos, e, sobretudo, o caráter moral. “Aintegração de hábitos de trabalho intelectual emanual é o fundamento do êxito desse períodode educação”. (ALVES, 1941, p.44).

A proposta de Isaías Alves prevê uma es-cola de ensino extensivo, com os dias escola-res mais curtos e o ano letivo mais longo, poisconsidera que o ensino intensivo esgota as ener-

gias e o extensivo é mais adaptado ao nossoclima. A escola deve ser ampliada aos mais lon-gínquos rincões do país e o ensino adaptado aoambiente. A maior ênfase é para o ensino pro-fissional em todos os níveis: elementar, médio esuperior, particularmente voltado para profissõesda agricultura, pecuária, indústria, comércio emagistério. Denuncia o preconceito existentena mentalidade brasileira, que desqualifica o tra-balho manual, como uma herança colonialistada sociedade escravista, e elabora todo um dis-curso no sentido de nobilitar o trabalho manual.

A expansão do ensino secundário, além dainiciativa federal, poderá contar com instituiçõesprivadas, desde que o governo exerça fiscali-zação criteriosa do funcionamento dos cursos.Afirma Alves que, para tornar esse nível deensino eficiente, não são necessárias grandesreformas; bastam pequenas mudanças no âm-bito pedagógico como distribuição das matéri-as, redução de programas, período escolar maislongo e incentivo à expansão de instituições pri-vadas, através de um sistema de bolsas paraalunos necessitados e de capacidade superior.

A Escola Normal deve preparar professo-res primários e secundários e nesse nível deensino, procurará articular os professores demodo que ministrem um ensino integrado e nãoisolado por cátedras, como se faz no momen-to. Propõe uma preparação de professores pri-mários para populações urbanas e rurais e paraas escolas de artífices; de professores secun-dários para o ensino ginasial e técnico indus-trial; e de professores para o ensino superior.É preciso, também, criar uma filosofia da edu-cação para ser ensinada na Escola Normal eintroduzir a Psicologia como a mais importan-te das matérias.

Isaías Alves considera também a Universi-dade indispensável ao progresso da Nação, poisé a única instituição que não tem interesseseconômicos e pode opinar tecnicamente sobreas necessidades do desenvolvimento. É funçãoda Universidade, além da transmissão, a pes-quisa e a produção do conhecimento. Pensa onível universitário segundo o modelo de Cida-des Universitárias, inspirado no Columbia Uni-versity, onde a vida universitária cria vida social,

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científica, literária e até religiosa, de onde saemos líderes da Nação. Para ele:

O Brasil, pela má influência positivista, tardoumuito em criar sua Universidade e agora carecede quadros estruturais para conduzir o desen-volvimento das várias atividades cívicas, indus-triais, comerciais, militares, e políticas, no sentidoda formação do grande todo que é o tecido daPátria. (ALVES, 1937, p.170)

Também no nível universitário o ensino se-ria diferenciado e Alves idealiza uma Universi-dade do Trabalho, voltada para a formaçãoprofissional, inclusive no meio rural, além dastradicionalmente existentes.

Em termos de conteúdos curriculares, o eixopara todos os níveis de ensino é a EducaçãoMoral e Cívica. A Educação Moral é, em últi-ma instância, uma educação religiosa. Defen-de a obrigatoriedade do ensino religioso nasescolas, pois entende que os ensinamentos éti-cos laicos não convertem a alma e o coração: aadoção de uma filosofia de vida só se daria pelavia da crença, da religiosidade e da fé. Apenasa educação religiosa é capaz de formar inte-gralmente o ser humano porque, além de propi-ciar uma compreensão abrangente da vida,conduz a uma postura ética alicerçada no raci-ocínio e em princípios de conduta pelo coração.Assim, as crianças estariam formadas no seuraciocínio e na sua emocionalidade.

Embora católico fervoroso, Isaías Alvesadmite a liberdade religiosa nas escolas, masno âmbito das religiões monoteístas e ociden-tais. Apesar de não expressar claramente quereligião as escolas devem adotar, as referênci-as constantes a um só Deus e a Cristo único,permitem inferir que a liberdade religiosa esta-ria restrita às religiões cristãs. A educação re-ligiosa tem na catequese seu padrão dereferência e, muitas vezes, as catequistas sãoadmitidas como colaboradoras das escolas.

A educação cívica é espelhada na educa-ção militar, pois Isaías Alves considera impos-sível manter qualquer que seja a estruturasocial sem o apoio da ordem militar, o que nãosignifica ser militarista. Vê a instrução militarcom grande valor pedagógico, se desenvolvi-da em cursos sistemáticos, teóricos e práticos,

que devem ser intensificados nos dois últimosanos do secundário. A parte teórica da edu-cação cívica inclui o conhecimento da realida-de brasileira (pobreza da população, o precárioestado sanitário, atraso cultural etc), o que jus-tifica a mobilização para a Reconstrução Na-cional – conforme propunha o Estado Novo –e o conhecimento dos deveres e dos direitosdos cidadãos; além disso, é importante ensi-nar noções de nutrição e de cuidados com asaúde. A parte prática da educação cívicaabrange o culto à bandeira, a manifestação dafé patriótica – através da entoação cotidianados hinos – e exercícios físicos, para o que ogoverno deve instalar campos e quadras es-portivas nas cidades e em suas proximidades.A educação cívica espelha-se no modelo mili-tar e, também, recruta entre os militares seusprofessores.

A arte é introduzida no currículo como ummecanismo de formação da criança, no sentidode despertar (ou formar) sua sensibilidade, par-ticularmente no que diz respeito à espiritualida-de; tem, portanto, um objetivo pedagógico clarode formação do desenvolvimento humano epermeia todo o trabalho do professor, desde asua apresentação pessoal até a linguagem emsala de aula. A arte deve, inclusive, estar pre-sente na construção das escolas, no cuidado coma estética dos edifícios.

Para a formação da normalista, o aspectotécnico de maior ênfase é a Psicologia. IsaíasAlves acredita que todo trabalho pedagógicosofre o influxo de resultados de investigaçõescientíficas. Ressalta a importância da Psicolo-gia, ciência que, segundo ele, ocupa lugar privi-legiado nos currículos de Escolas Normais dospovos “civilizados”, servindo de fundamentopara as demais matérias. Isaías Alves preten-de que a Psicologia Educacional se articule aoutras cadeiras do currículo e vá proporcionan-do subsídio às demais, o que indica que a Psi-cologia é uma disciplina transversal e do núcleoda formação do professorado.

A melhor pedagogia é a que se opõe aosexcessos, tanto os do rigor disciplinar do pas-sado, como aos extremismos de liberdade dopresente. A disciplina esclarecida é a do equi-

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líbrio entre a espontaneidade do aluno e o dis-ciplinamento do professor. O professor deveter um espírito científico, buscar aprender einvestigar seu trabalho, observando, por exem-plo, que métodos de leituras são os mais efi-cazes; que ambiente (espaço físico, horárioetc.) melhor favorece a assimilação pelo alu-no; qual a melhor distribuição de alunos emclasse; qual o efeito dos castigos; que atitudesdo professor influem nos resultados da apren-dizagem etc. Esse conhecimento é dado pelaPsicologia que estuda as leis da aprendizagem,do trabalho mental, das relações corpo-men-te, “das condições físico-psíquicas da vonta-de”, do caráter, das habilidades manuais, dacapacidade artística, enfim, a importância doestudo da Psicologia reside, sobretudo, em ver,cientificamente, as condições que tem a cri-ança para aprender.

O aluno é o foco do ensino e deve ser con-siderado de forma ampla: QI; conhecimentosadquiridos no lar; disponibilidade de bibliotecas;acesso a revistas; conversa com amigos; rela-ções familiares; acesso à música (ALVES,1937, p.101); além das próprias condições so-ciais da circunscrição da escola, da nacionali-dade e da etnia do aluno. A motivação é a basedo trabalho escolar – seja qual for a escola psi-cológica adotada – e o centro dessa questão éo professor, a liderança da classe.

No âmbito pedagógico, a proposta de ges-tão tem como ponto chave a homogeneizaçãode classes. A organização escolar perfeita, vi-ável, eficiente e produtiva das classes é a ho-mogeneização e, para isso, o único critériodemocraticamente aceitável é o psicológico: in-teligência, vontade, emocionalidade, conformeo padrão americano, cuja referência teórica éTerman. A atuação dos técnicos deve ser rigo-rosamente baseada em pesquisas educacionais,cujo escopo abrange desde os inquéritos paradiagnósticos até as investigações psicopedagó-gica, através de testes. Os testes de inteligên-cia devem ser aplicados individualmente e requermuito cuidado na tradução e na administração.Os testes de aproveitamento servem para ava-liação coletiva, de grupo ou classe. Nesse as-pecto, cabe destaque a promoção do aluno.

A progressão do aluno deve ser avaliada peloconjunto do seu trabalho durante o curso e nãosó pelo exame final.

Um que fez suficiente esforço é inferiormentedotado ou teve contra si condições negativasde saúde pessoal ou da família, deverá ser pro-movido, contanto que no ano imediato haja cui-dado da consolidação de sua aprendizagem.Outro que demonstrou desinteresse pelo estu-do, a despeito de boas condições intelectuais,físicas e sociais, deve se compelido a repetir amatéria, a fim de adquirir hábitos de trabalho efi-ciente. (ALVES, 19336, p.179).

A atuação dos técnicos deve ser rigorosa-mente baseada em pesquisas educacionais, cujoescopo abrange desde os inquéritos para diag-nósticos até as investigações psicopedagógica,através de testes.

Em síntese, a proposta pedagógica de Isaí-as Alves prevê como eixo curricular a Educa-ção Moral e Cívica, num sistema de ensinodiferenciado conforme objetivos pedagógicosespecíficos, adaptados ao ambiente da escola,tendo como mecanismo de gestão da organiza-ção escolar os instrumentos da Psicologia Ex-perimental.

Considerações finaisÉ importante identificar em Isaías Alves,

como representante do pensamento conserva-dor, os elementos constitutivos da brasilidade:a formação étnica brasileira como o marco sim-bólico para a nacionalidade que, apesar de as-sumir uma nova identidade representada pelocaboclo, legitima-se pela Tradição. O progres-so econômico, integrador e nivelador das regi-ões, que tem como agentes (leia-se, mão-de-obra) tanto os imigrantes europeus, como osnordestinos que devem ser educados para tal.E, enfim, uma ordem social que, em síntese, é a“meritocracia”, cujo mérito é constituído peloconjunto dos talentos inatos e a formação mo-ral adquirida via educação.

A distinção pelo mérito pessoal, o altruísmopelo bem-comum (resumido na idéia de Pátria)e o apostolado cívico são os valores que cre-denciam os indivíduos para compor a elite diri-

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gente. E tanto os agentes econômicos como aselites dirigentes são resultantes da missão edu-cativa.

A Educação, único mecanismo capaz deformar uma nova alma para a Nação, além deideologizante, está a serviço do Estado forte eé estratégica para a Reconstrução Nacional.Apesar desse papel fundamental, Isaías Alvesnão tem uma concepção salvacionista nem daeducação, nem da escola. A nova Nação far-se-á pela triangulação entre Estado, Exército eIgreja e, por isso, a vocação militar, a religiosae a docente estão no mesmo patamar de im-portância para a nova ordem social.

Se, por um lado, as proposições elitistas econservadoras de Isaías Alves são, hoje em dia,indefensáveis, ante os ideais democráticos dasociedade contemporânea, por outro, as gran-des questões educacionais postas por ele, comoa erradicação do analfabetismo, o falso para-

doxo entre expansão e qualidade de ensino e avalorização do magistério ainda estão longe deuma resolução satisfatória.

Se, ainda, for levado em conta que a “me-ritocracia” é, para muitos, um ideal desejávelpara a Educação (como, por exemplo, paraaqueles que, nos debates sobre a cota de va-gas para os afros-descendentes se posiciona-vam contra as cotas, alegando o perigo dorebaixamento do nível de ensino), e que o atu-al sistema de avaliação escolar está fortementemarcado pelo critério de mérito (agora equi-valente a desempenho), pode-se dizer que opensamento conservador tem heranças bas-tante presentes, apesar do consenso democrá-tico nos discursos políticos. Ao contrário, aimportância social e o respeito das autorida-des para com o professorado, sonhado por Isa-ías Alves, está completamente esquecido...Que pena!

REFERÊNCIAS

ALVES, Isaías. Problemas de educação. Salvador: A Nova Graphica, 1931.

_____. Os testes e a reorganização escolar. 2. ed. aumentada. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,1934.

_____. Técnica e Política Educacional. Rio de Janeiro: Revista Infância e Juventude Editora, 1937.

_____. Educação e brasilidade: idéias forças do Estado Novo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1939.

_____. Estudos objetivos de educação. 2.ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941. (1.ed.,1936).

Recebido em 27.04.05Aprovado em 08.08.05

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Célia Rosângela Dantas Dórea

ESCOLA PLAYGROUND NO RIO DE JANEIRO, DF (1931-1935):A GÊNESE DA ESCOLA PARQUE DA BAHIA

Célia Rosângela Dantas Dórea*

* Doutora em Educação: História, Política, Sociedade - PUC/SP. Professora Titular da Universidade do Estado daBahia – UNEB, Campus de Teixeira de Freitas. Endereço para correspondência: UNEB, Departamento de Educação -Campus X, Avenida SS, s/n, Jardim Caraípe – 45995.000 Teixeira de Freitas/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOEste artigo tem como objetivo demonstrar que o modelo Escola Playground,construída no Rio de Janeiro - DF, à praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana,no início da década de 1930, foi o embrião do modelo Escola Parque, construídoem Salvador – Bahia, no período de 1947 a 1951, quando Anísio Teixeira foisecretário de Educação e Saúde daquele estado. Texto que se originou da pesquisadesenvolvida durante o curso de doutorado, que tinha como foco a organizaçãodo espaço nos modelos de escolas idealizados por Anísio Teixeira durante a suagestão à frente da Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal (1931-1935), à época o Rio de Janeiro. Apesar de surgir como proposta circunstancial,que visava conciliar dificuldades técnicas e econômicas, esse tipo de escola sefirmaria como a solução ideal para o problema da educação integral e serviria debase para a concepção de novos modelos de escola a partir de então.

Palavras-chave: Anísio Teixeira – Edificações Escolares – Escola Parque –Escola Playground

ABSTRACTPLAYGROUND SCHOOL IN RIO DE JANEIRO, DF (1931-1935):GENESIS OF BAHIA PARK SCHOOL

This essay has the objective demonstrating that the model Playground School,built in Rio de Janeiro – DF, at Cardeal Arcoverde Square, in Copacabana, inthe beginning of the 1930’s, was the source of Park School model, built inSalvador – Bahia, from 1947 to 1951, when Anísio Teixeira was secretary ofEducation and Health State from there. It began with the research developedin doctorate’s course, whose focus was in organization of space at schoolmodels idealized by Anísio Teixeira during his administration at Director’s Officeof Public Education at Federal District (1931-1935), that time Rio de Janeiro.Although arising as circunstantial purpose, which aimed at conciliating technicaland economical difficulties, this type of school would be settled as ideal solutionfor the problem of entire education and it would serve as basis for conceivingnew school models ever since.

Keywords: Anísio Teixeira – Scholar Buildings – Park School –PlaygroundSchool

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

IntroduçãoEste artigo tem como objetivo demonstrar

que o modelo Escola Playground, criado no Riode Janeiro, no início da década de 1930, foi oembrião do modelo Escola Parque, construídana Bahia durante a década de 1950, pelo me-nos no que diz respeito à concepção pedagógi-ca e à organização de espaço presentes nasduas propostas. Foi elaborado a partir da pes-quisa de doutorado, intitulada “Anísio Teixeirae a arquitetura escolar: planejando esco-las, construindo sonhos” 1 , cujo foco foi aorganização do espaço nos modelos de esco-las idealizados por Anísio Teixeira durante asua gestão à frente da Diretoria de InstruçãoPública do Distrito Federal (1931-1935), à épo-ca o Rio de Janeiro.

A concepção de uma proposta arquitetôni-ca específica para a escola, no início dos anos30, implicava numa nova conformação do es-paço escolar e possibilitava um novo modo deordenação das práticas e dos hábitos escolaresali desenvolvidos. Os prédios escolares implan-tados eram constituídos de programas arquite-tônicos distintos (tipos Mínimo, Nuclear,Platoon de 12, de 16 e de 25 classes ePlayground ou “escola-parque”) e foram ide-alizados de modo a atender às exigências dasmodernas conquistas pedagógicas e dos novoshábitos de higiene que a escola passava a exi-gir a partir de então.

Dessa forma, modificada a função da esco-la, alterava-se também a demanda por um novotipo de edifício especialmente adaptado aos finsdessa nova educação. A organização do espa-ço escolar alterava-se, assim, conforme a mo-dificação dos objetivos dessa nova escolapública. E para uma nova educação, uma novaescola. O prédio tinha de se transformar: já nãose tratava da simples sala de aula, mas da com-binação de todo um conjunto de ambientes. Daarquitetura escolar esperava-se, agora, que pu-desse refletir um projeto educacional que semostrava novo, moderno. Uma arquitetura que,pela sua forma, pudesse refletir a sua função:educar.

O plano de edificações escolarespara o Rio de Janeiro, DF (1931-1935).

Em 15 de outubro de 1931, quando assumiua Diretoria da Instrução Pública do DistritoFederal, o nome de Anísio Teixeira ainda nãodespertava ressonância nacional, mas, segun-do Lima (1978), já se tornara bem conhecidonos círculos dos educadores.

Após a Revolução de 30, Anísio chegara aoRio de Janeiro “sem trabalho nem emprego”,conforme suas próprias palavras em entrevistaa Odorico Tavares (1992), 2 mas levava consi-go a convicção de poder realizar “um progra-ma de luta pela educação no Brasil” e foi “logochamado para servir à educação no campo fe-deral, primeiro, e depois no Distrito Federal”(ROCHA, 1992, p.193).

Naquele mesmo ano, Anísio foi convidadopelo prefeito Pedro Ernesto a assumir a Dire-toria da Instrução Pública do Distrito Federal,onde “teve a oportunidade de conduzir impor-tante reforma educacional (...) que atingiu des-de a escola primária à escola secundária e aoensino de adultos, culminando com a criaçãode uma universidade municipal, a Universidadedo Distrito Federal” (NUNES, 1999, p.56).

Por essa época, havia escolas de toda or-dem no Rio de Janeiro, e a transformação ime-diata desse quadro era uma tarefa impossível.Urgia, portanto, a implementação de “progra-mas desiguais para situações desiguais”. O ad-ministrador escolar devia se colocar diante dasituação real da comunidade, “levando tanto emconta a sua geografia, quanto a sua humanida-

1 Vale ressaltar que o contato inicial com a obra de AnísioTeixeira e a opção por estudar, preliminarmente, aorganização espacial da Escola Parque, deu-se em função daminha participação no projeto Memória da Educação naBahia , implementado por um grupo de professores daUniversidade do Estado da Bahia, que conta com oenvolvimento do Campus de Salvador (Mestrado emEducação e Contemporaneidade) e de diversos campi dointerior.2 Odorico Tavares era, então, diretor dos Diários Associadosda Bahia. A entrevista foi publicada no Diário de Notíciasda Bahia, em 06/01/1952. Segundo Rocha (1992), trata-sede uma das poucas oportunidades em que Anísio Teixeirafala tanto e tão profundamente de si mesmo.

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de”, e efetivar apenas os planos que estives-sem de acordo com as condições materiais eespirituais do meio sobre os quais teria de agir.(TEIXEIRA, 1935, p. 106).

Naquele ano, para uma população escolarmínima (crianças de 6 a 12 anos) de 196 milindivíduos, só existiam escolas para 85 mil cri-anças, isto é, para menos de 45%. Esse fatoera agravado pelas condições em que recebi-am instrução as crianças que freqüentavam asescolas. E ainda pior, dadas as dificuldades en-contradas no acesso à educação escolar, era aidéia amplamente disseminada de que qualquereducação ou qualquer escola serviria, desde queensinassem a ler, escrever e contar. (TEIXEI-RA, 1932).

Em novembro de 1932, em sua coluna“Commentario”, no Diário de Notícias, Cecí-lia Meireles (1932) afirmava que as escolas doDistrito Federal representavam, ainda, “um tristeíndice” e, numa grande parte, eram “um ates-tado doloroso da nossa pobreza, e, conseqüen-temente, do retardamento a que estaremoscondenados se esse estado de coisas não evo-luir de modo a permitir a eficiência de ação ain-da não conseguida” (MEIRELES, 1932, p. 6).

Naquele momento, Anísio Teixeira encon-trava-se empenhado em resolver o problemadas edificações escolares no Distrito Federal eacreditava que para a realização de sua obraeducacional, necessariamente precisava dotara escola de condições materiais, pois, segundosuas convicções, “sem instalações adequadas,não poderia haver trabalho educativo”, por isso,o prédio, base física e preliminar para qualquerprograma educacional, tornava-se indispensá-vel para a realização de todos os demais planosde ensino (TEIXEIRA, 1935, p.202).

Para ele, enquanto as demais instituiçõesexerciam “ação educativa sem plano definido esem controle de resultados”, a escola era, tão-somente, “a instituição conscientemente plane-jada para educar” (TEIXEIRA, 1997, p. 255).Ele considerava que, numa sociedade em cons-tante transformação, onde a educação passa aser uma exigência de todos, e o sistema de en-sino passa a ser um ensaio planejado e organi-zado de “educação em massa”, “a necessidade

de plano, de organização e de métodos” torna-va-se indispensável. Dentre essas necessida-des:

... ocupa lugar predominante, porque é indispen-sável a todos os demais planos de ensino pro-priamente dito, o plano de edificações escola-res. Plano de distribuição, para que se possaconvenientemente servir a toda a população es-colar; e plano do edifício, para que este compor-te a execução dos planos de ensino e permita omáximo de eficiência, com o mínimo de dispên-dio. (TEIXEIRA, 1935, p.194 e 1997, p.239).

Assim, além da preocupação com a forma-ção do professor, as edificações escolares – asinstalações físicas da escola – passaram a cons-tituir, nas reformas educacionais implementa-das por Anísio Teixeira, o marco fundamentalque caracterizaria todas as suas gestões admi-nistrativas. Em suas três administrações públi-cas, na área educacional, seja como inspetorgeral do Ensino da Bahia (1924-1928), sejacomo diretor da Instrução Pública do DistritoFederal-RJ (1931-1935), seja ainda como se-cretário de Educação e Saúde do Estado daBahia (1947-1951), Anísio Teixeira sempre en-frentou o problema da escassez da educaçãopública oferecida à população. Talvez por issotenha privilegiado, em todos esses momentos, oplanejamento e a organização das edificaçõesescolares, principalmente em relação à escolaprimária.

No caso do Rio de Janeiro, considerando aextensão do problema e a impossibilidade deresolvê-lo em um só período administrativo,adotou-se uma solução progressiva e gradual:a construção de um plano geral diretor das edi-ficações escolares e um programa anual deconstruções, a ser desenvolvido no período de10 anos. Traçado o plano geral, que deveriaservir de parâmetro para a localização de qual-quer edifício escolar da cidade, passou-se aoprograma anual de construções, dividido em doisperíodos de cinco anos: o primeiro, o plano mí-nimo de construção, deveria ser realizado até1938; o segundo, dando continuidade ao pro-grama de construções, iria até 1942, dentro dasprevisões do plano regulador. O plano mínimo,que visava atender de forma mais imediata à

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

população escolar atual, em suas linhas gerais,compreendia as seguintes etapas: 16 ampliaçõesde próprios municipais existentes, que ficariamcom 306 salas de aula; 74 edificações novas,com o tipo médio de 25 classes, que ficariamcom 1.431 salas; e 25 prédios que poderiam seraproveitados, com 219 salas de aula. Assim,dentro de cinco anos, executado esse plano deconstrução, haveria 1.956 novas salas de aulaque, funcionando em dois turnos, comportari-am 156.480 alunos matriculados nas escolas pú-blicas do Distrito Federal – ou seja, aproxima-damente 80% das crianças que, estimava-se,estavam em idade escolar em 1932 (TEIXEI-RA, 1935, p.198).

Os modelos de escolas projetadose construídos no Rio de Janeiro

Para a viabilização do plano mínimo, algu-mas alterações tiveram que ser realizadas, prin-cipalmente quanto às grandes concentraçõesescolares. Em decorrência de “dificuldades deterreno, de localização, de condições do prédio,de economia e de programa educacional”, oplano de construções escolares foi adaptado àsáreas disponíveis. “Conseguir-se o terreno bome bastante, a localização adequada, o prédioperfeito e o programa educacional rico e vasto– tudo, em um conjunto ideal – é nada menosque impossível”. Cumpria encontrar soluçõesem que se contrabalançassem as deficiênciasde cada um desses elementos, sem diminuir,“quanto ao alcance e eficiência”, as condiçõesrecomendáveis para a escola, de modo a “apro-veitar os maus terrenos, as localizações medío-cres, a pobreza das construções, a reduçãoforçada do programa educativo” (TEIXEIRA,1935, p.199).

Nessas circunstâncias, em sua administra-ção no Rio de Janeiro (1931-1935), Anísio Tei-xeira concebe “um plano que permite essa felizcombinação”, um “sistema escolar” que conci-lia essas dificuldades e prevê edificações deduas naturezas: “escolas nucleares e parquesescolares, obrigada a criança a freqüentar re-gularmente as duas instalações”. Nessa pro-

posta inovadora, o sistema escolar deveria fun-cionar em dois turnos, para cada criança: noprimeiro turno, esta receberia, “em prédio ade-quado e econômico” (escolas nucleares ou es-colas-classe), “o ensino propriamente dito”; nosegundo, “em um parque escolar aparelhado edesenvolvido” (escola-parque),3 “sua educaçãopropriamente social, a educação física, a edu-cação musical, a educação sanitária e a assis-tência alimentar”. Dessa forma, as duasnaturezas das edificações escolares se comple-tariam e harmonizariam, “integrando-se em umtodo equivalente ao das melhores escolas mo-dernas do mundo” (TEIXEIRA, 1935, p.199).

Assim, em atendimento às recomendaçõesdo plano, “os prédios foram construídos em con-dições de material e de projeto, tão modernos eeconômicos quanto possível”, e obedeciam acinco tipos principais, de acordo com seus pro-gramas arquitetônicos, projetados pelo arquite-to-chefe Enéas Silva, da Divisão de Prédios eAparelhamentos Escolares (TEIXEIRA, 1935,p.201-202 e 1997, p.245-246).4

A escola tipo Mínimo, com duas salas deaula e uma sala de ateliê e oficina, destinava-sea regiões de reduzida população escolar.

A escola tipo Nuclear ou “escola-classe”dispunha de 12 salas de aula, além de locaisapropriados para administração, secretaria ebiblioteca de professores. As escolas deste tipo,constituídas exclusivamente de salas de aulacomuns, devido à sua finalidade de ensino, de-veriam ser complementadas com as atividadessociais, oferecidas no parque escolar, em umoutro prédio e horário.

Os outros três tipos de prédios escolaresobedeciam, em termos de organização, ao sis-tema administrativo Platoon, constituído desalas de aula comuns e salas especiais paraauditório, música, recreação e jogos, leitura e

3 Embora não se explicite o termo “escola-parque”, percebe-se que esta proposta é a mesma que Anísio vai realizar naBahia, de 1947 a 1951, quando secretário de Educação eSaúde daquele estado.4 Enéas teve a colaboração de outros profissionais, comoWladimir Alves de Souza, Attilio Corrêa Lima, Paulo deCamargo Almeida e Raul Penna Firme (cf. SISSON, 1990,p.75 e OLIVEIRA, 1991, p.180).

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literatura, ciências, desenho e artes industriais.Seu funcionamento dava-se pelo deslocamentodos alunos, em “pelotões” (daí o nome “Plato-on”), pelas diversas salas, que eram cativas dasdisciplinas, conforme horários preestabelecidos,o que, para Oliveira (1991, p.153), permitia “amaximização do rendimento dos espaços de tra-balho”. Convém lembrar que Anísio tomou co-nhecimento desse sistema nas visitas que fez adiversas escolas nos Estados Unidos, quandoficou impressionado com o funcionamento e ograu de eficiência dessas escolas.

A escola Platoon de 12 classes era consti-tuída de seis salas comuns de classe e de seissalas especiais (para leitura e literatura, ciênci-as sociais, desenho e artes industriais, auditó-rio, música e recreação e jogos e ciências). Foiprojetada para atender a esse tipo de organiza-ção escolar, “com o mínimo de facilidades parao seu programa respectivo” e, juntamente como tipo “nuclear”, deveria ter por centro o par-que escolar na complementação de suas ativi-dades (TEIXEIRA, 1935, p. 201).

A escola tipo Platoon de 16 classes com-punha-se de 12 salas comuns de classe e dequatro salas especiais para auditório, música,recreação e jogos, ciência e ciências sociais.Este modelo de prédio permitia o desenvolvi-mento de um programa de educação elemen-tar, enriquecido com o ensino especial deciências, artes e recreação. Segundo Teixeira(1935, p. 201), bastava-se a si mesmo, “possu-indo todas as demais dependências para o fun-cionamento de um verdadeiro instituto deeducação”, mas ganharia sobremodo com o usodo parque escolar.

A escola Platoon de 25 classes reunia 12salas comuns de classe, 12 salas especiais, dis-tribuídas em pares para cada especialidade, am-plo ginásio e todas as demais dependências deuma escola de grandes proporções. Era umprédio completo, “com todas as instalaçõespara o funcionamento regular”, e perfeitamenteadequado ao sistema Platoon (TEIXEIRA,1935, p. 201).

O relatório Educação pública: administra-ção e desenvolvimento (TEIXEIRA, 1935)

apresenta as plantas baixas e fotografias des-ses modelos de escolas. São plantas padroniza-das, “plantas tipo”, repetidas em várias escolas,com algumas modificações internas e mantidasas mesmas características externas. Dão umaidéia da distribuição das salas e dos seus res-pectivos fins. Todos os tipos de prédios escola-res tinham ambientes projetados para abrigaras atividades administrativas, o gabinete médi-co-dentário e as instalações sanitárias paraambos os sexos, além das salas de aula comuns.O que os diferenciava era a existência ou nãode salas especiais, bibliotecas e auditório (cf.DÓREA, 2003).

Observa-se, nessas plantas esquemáticas,que não foram previstas instalações apropria-das para refeitório e anexos (copa, cozinha eserviços). Imagina-se que esses serviços seri-am oferecidos nas instalações dos parques es-colares, uma vez que esse tipo de escola tinha,entre outras funções, a assistência alimentar.Esses parques não se concretizaram, e sabe-seque, nos diversos tipos de prédios construídos,foram adaptados ambientes para alojar aquelasinstalações, com a utilização, em alguns casos,da área dos terraços.

É importante ressaltar que, apesar das inú-meras referências ao parque escolar (ou esco-la-parque) como complemento aos demais tiposde escola, no relatório de 1935 não existe regis-tro de sua planta baixa nem indicação de quetenha sido construído – fato que, na prática,impossibilitou a permanência da criança na es-cola durante os dois turnos, como fora previstoinicialmente pelo plano. Entretanto, alguns indí-cios apontam para uma escola construída naPraça Cardeal Arcoverde, em Copacabana,hoje Escola Dom Aquino Corrêa, como exem-plar de parque escolar construído no Rio deJaneiro, durante a gestão de Anísio Teixeira.

Ao final de 1935, época da exoneração deAnísio Teixeira da então Secretaria de Educa-ção, o Rio de Janeiro contava com 28 novosprédios escolares, construídos no curto períodode 1934 a 1935. A seguir, a relação completadessas escolas, com a devida atualização, combase na atual rede física escolar municipal e

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

estadual.5 Essas escolas, de acordo com o pro-grama arquitetônico adotado, ficaram assim dis-tribuídas: 12 escolas do Tipo Nuclear de 12classes (Ceará, Chile, Cócio Barcellos, EscolaEstadual Infante Dom Henrique – antiga Gene-ral Trompowsky, Honduras, Nicarágua, Pará,Paraguai, Paraná, Pernambuco, Santa Catarinae Venezuela); uma escola do Tipo Nuclear de 8classes (Portugal); cinco escolas do Tipo Plato-on de 12 classes (Bahia, Mato Grosso, México,Paraíba e Pedro Ernesto); duas escolas do TipoPlatoon de 16 classes (Escola Técnica Estadu-al Visconde de Mauá e São Paulo); três escolasdo Tipo Platoon de 25 classes (Argentina, Ge-túlio Vargas e Rio Grande do Sul); duas escolasdo Tipo Mínimo de três classes (Estácio de Sá eHumberto de Campos); uma escola do Tipo Es-pecial de seis classes (Machado de Assis); umacréscimo de 12 classes (Conde de Agrolongo)e uma escola-parque do Tipo Playground (DomAquino Corrêa).

Escola Playground: a gênese da Es-cola-Parque da Bahia

O tipo de escola Playground, ou “parque-escolar”, teve um único exemplar construído nacidade do Rio de Janeiro. A primeira indicaçãoa que tive acesso sobre a construção desse tipode escola no Distrito Federal foi o trabalho deBeatriz de Oliveira, que apresenta “plantasmodificadas”, na realidade croquis ilegíveis, doprimeiro e do segundo pavimentos e da cober-tura dessa edificação (OLIVEIRA, 1991,p.160). Esses croquis, identificados como per-tencentes ao Arquivo DMP/SME-RJ, hoje es-tão localizados no arquivo da Diretoria dePlanejamento e Projeto (DPP) da EmpresaMunicipal de Urbanização (Riourbe).

Enéas Silva, em artigo publicado em janei-ro de 1936, faz referência à escola tipoPlayground que se encontrava em constru-ção à praça Cardeal Arcoverde, em Copaca-bana, destinada a atender às crianças dessebairro e do Leme, como a primeira de umasérie de cinco que deveriam ser erguidas emSão Cristóvão, no Centro da cidade, na Tijuca

e em Vila Isabel (SILVA, 1936). O arquitetoexibe um desenho da fachada do edifício prin-cipal desse estabelecimento e define o queseriam os “parques-escolares”:

São tipos especiais de PLAYGROUNDS instala-dos fora do limite de ação de cada prédio escolarem condições, porém, de acesso e capacidadesuficiente para atender, em dois turnos, aos alu-nos de três ou quatro escolas primárias situadasem zonas circunvizinhas. Esses parques-escola-res, localizados em terrenos ou grandes praçasde área superior a 10.000 mqs. [m²], com adminis-tração e direção própria, destinam-se exclusiva-mente às finalidades especializadas de educa-ção física, recreação e jogos, educação social eartística e jardim de infância, dispondo para talfim das seguintes instalações: estádio para con-centração e pista de corrida; 14 pequenos cam-pos para voleyball; suítes completas de apare-lhos, deslizadores, jinglegim [sic], balanços,gangorras, etc.; campos para jardim de infânciacom wading pool [piscina para crianças peque-nas] e caixas de areia, assim como arborização epavimentação adequada a cada finalidade; umedifício principal dentro do ambiente doplayground com instalações apropriadas paradireção geral, serviço médico e fichamento paracontrole de educação física, auditório e palco,ginásio, banheiros, vestiários e instalações sa-nitárias para ambos os sexos, sala de música,jardim de infância e biblioteca, salas para clubesescolares e sala de projeção; terrasses-jardins(SILVA, 1936, p.15).

A escolha de Copacabana para a localiza-ção desse primeiro parque escolar podia serjustificada só pela grave deficiência de escolasnaquele distrito – isto, se não se quisesse consi-

5 Silva (1935) refere-se a 28 prédios construídos e emconstrução. A lista aqui apresentada compreende as 25escolas relacionadas no relatório de 1935, todas identificadasna rede atual, e mais três escolas ausentes dessa primeirarelação e posteriormente indicadas na pesquisa de Oliveira(1991, p. 330): a “Dom Aquino Corrêa”, do tipoPlayground, a “Portugal”, do tipo Nuclear de 8 classes, e a“Doutor Cócio Barcellos”, do tipo Nuclear de 12 classes.Atualmente, 26 escolas pertencem à rede municipal, e apenasduas à rede estadual: a Escola Estadual Infante Dom Henrique,que funciona no prédio da antiga Escola MarechalTrompowsky, em Copacabana, e a Escola Técnica EstadualVisconde de Mauá, em Marechal Hermes. As pastas/arquivosreferentes às escolas municipais encontram-se no Arquivoda Diretoria de Planejamento e Projetos (DPP), da EmpresaMunicipal de Urbanização (Riourbe).

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derar a tendência de crescimento de sua popu-lação escolar e a facilidade de transportes. Deacordo com Sampaio (1935, p. 253-255), quan-do da elaboração do plano de edificações esco-lares, a situação de Copacabana era “angustio-sa”, pois, com uma população em idade escolarde aproximadamente 8.500 crianças, contavaapenas com duas escolas que ocupavam imó-veis alugados. Vale lembrar que, no momentoem que a Playground estava sendo implanta-da, Copacabana já contava com duas novasescolas do tipo Nuclear, a “Dr. Cócio Barce-llos” e a “Marechal Trompovsky”, construídasem conformidade com o plano.

Sabe-se, pelo relato de Anísio Teixeira(1935, p.199), que esse tipo de escola surgiucomo alternativa para a viabilização de um pla-no mínimo de construções escolares. Em de-corrência das dificuldades encontradas emrelação ao terreno, à localização, às condiçõesdo prédio e ao programa educacional, foramnecessárias algumas alterações, principalmen-te quanto às grandes concentrações escola-res, que tiveram de ser adaptadas às áreaslivres cada vez mais reduzidas da cidade, che-gando-se a uma solução que conciliava edifi-cações escolares de duas naturezas, as“escolas nucleares” e os “parques-escolares”;devendo a criança freqüentar regularmente asduas instalações, em dois turnos diários. Damesma forma, em Silva (1936, p.15), justifica-se a criação dos “parques-escolares”:

Decorrentes da valorização extraordinária dosterrenos em determinados bairros do DistritoFederal, surgiram, na execução do programa deconstruções escolares da atual administração,dificuldades de ordem técnica e econômica parase dotarem todos os prédios escolares recém-construídos de campos de recreação e educa-ção física em proporções adequadas às respec-tivas capacidades. Daí a criação dos Parques-Escolares (SILVA, 1936, p.15).

Também no relatório de 1935, Anísio expli-cava o funcionamento desse novo sistema:

No primeiro turno, a criança receberá, em prédioadequado e econômico, o ensino propriamentedito; no segundo, receberá, em um parque esco-lar aparelhado e desenvolvido, a sua educação

propriamente social, a educação física, a educa-ção musical, a educação sanitária e a assistênciaalimentar (TEIXEIRA, 1935, p.199).

Nesse relatório, são descritos os cinco ti-pos de escolas previstos no plano de edifica-ções escolares (Mínimo, Nuclear e Platoonde 12, 16 e 25 classes), com a indicação do“parque-escolar” como seu complemento,mas não existe referência ao tipoPlayground. Essa omissão, de certa forma,é ilógica, uma vez que foram construídas vá-rias escolas do tipo Nuclear, às quais, na con-dição de escolas-classe, era imprescindível ouso do parque escolar. A própria relação dasescolas construídas no Distrito Federal apre-sentada por Anísio não incluía esta de Copa-cabana, do tipo Playground.

Nas pastas/arquivos da Escola Dom Aqui-no Corrêa, atual designação do referido pré-dio, encontra-se a “Escritura de contratoparcial para construção de um prédio tipo‘Play-Ground’, em terreno situado à PraçaArcoverde, em Copacabana”. O contrato foifirmado, em 17 de junho de 1935, pela Pre-feitura do Distrito Federal, representada peloDr. Anísio Spínola Teixeira, diretor geral doDepartamento de Educação, e pela Socieda-de Anônima Construtora Comercial e Indus-trial do Brasil. Seu valor era de 533:988$521.O prédio seria construído de acordo com asplantas e especificações aprovadas pelo pre-feito, em despacho de 12 de junho de 1935, eas obras estariam concluídas em 10 meses acontar da data da entrega do terreno. A pas-ta/arquivo contém ainda um orçamento da Ins-petoria de Águas e Esgotos, de 3 de outubrode 1935, “para o esgotamento do ‘playground’em construção à Praça Cardeal Arcoverde”,e plantas baixas, cortes e fachadas do edifí-cio principal da escola Playground, em cu-jas legendas pode-se identificar “Projeto‘Playground’/Parque Escolar”, de responsa-bilidade do engenheiro-arquiteto Enéas Silva.Embora sem data, percebe-se que correspon-dem ao mesmo edifício cuja perspectiva dafachada foi apresentada em Silva (1936, p.15)(Figuras 1 e 2).

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

O prédio construído à praça Cardeal Arco-verde correspondeu, de fato, à parte do “con-junto” Playground, ou seja, ao seu edifícioprincipal, que, segundo Silva (1935, p.15), de-veria abrigar dependências apropriadas para aadministração geral do parque escolar, salas parao serviço médico, auditório e palco, vestiários einstalações sanitárias para ambos os sexos, salade música, jardim de infância, biblioteca, salaspara clubes escolares e sala de projeção. Coma exoneração de Anísio no final de 1935, o pro-jeto do parque-escolar – cuja finalidade eraatender às atividades especializadas de educa-ção física, recreação e jogos, educação sociale artística e jardim de infância – foi interrompi-do, e as instalações específicas para estádio,pista de corrida, campos de esportes, etc., quecomplementariam o conjunto, não foram cons-truídas.

Nessas condições, o edifício principal, con-cluído provavelmente em meados de 1936, pas-sou a ter outra finalidade. Nesse prédio, ondehoje funciona a Escola Dom Aquino Corrêa,existiu antes (não se sabe a partir de quando)um centro de recreação e cultura. A EscolaDom Aquino foi criada em 1962 e, de acordocom nota do jornal O Globo, foi instalada “nolocal onde funcionava o antigo Centro de Re-creação e Cultura (Praça Cardeal Arcover-de)”.6 A nota informava ainda: “Ali serámantido, inteiramente separado da escola, oTeatro da Praça, subordinado ao Serviço de

Teatros e Diversões da Secretaria de Educa-ção”.7 Na pasta/arquivo, com data de 1958,existem duas plantas relativas à reforma docentro de recreação (agora já identificado como“Aquino Corrêa”): uma prevê “reparações einstalações”; a outra, “gradil de fechamento dotérreo e portão”.

Atualmente, o prédio da “Dom Aquino”, pro-jetado para abrigar outro tipo de instalação es-colar, não dispõe das condições mais adequadaspara o funcionamento de uma escola, mesmotendo se submetido a diversas reformas e adap-tações de uso. As próprias salas de aula têmdimensões impróprias (com área em torno de30 m²). O espaço físico da Escola desenvolve-se adjacente ao Teatro Gláucio Gil, cujas insta-lações foram previstas no projeto original, masque agora funciona de forma independente, ten-do-se, portanto, duas instalações em um mes-mo edifício.

Observe-se que, embora essa escola de tipoPlayground tenha sido parcialmente edificada,dado que apenas o prédio principal foi constru-ído, e com todas as descaracterizações que so-freu posteriormente, o centro de recreação que

Figura 1 - Perspectiva de escola tipo Playground, atual DomAquino Corrêa, no Rio de Janeiro.

(Extraído de SILVA, 1936, p. 15)

6 Pequena nota incluída na edição de 4/9/62. Cópia no arquivoda Escola, divulgada em jornal interno comemorativo dos35 anos de criação da Escola Dom Aquino (setembro de1997). A Escola não dispõe de nenhuma outra informaçãoa respeito do prédio.7 Hoje é o Teatro Gláucio Gil, pertencente ao Estado eindependente da escola, embora ocupem mesmo edifício.

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aí se instalou, de alguma forma, exerceu fun-ção semelhante a que havia sido idealizada naproposta de Anísio, uma vez que proporcionava

às crianças das regiões circunvizinhas partici-pação em atividades de arte, teatro e dança,em horários diferentes dos da Escola.

Figura 2 - Planta baixa do 3º pavimento de escola tipoPlayground, atual Dom Aquino Corrêa. (Extraído de arquivo

da Diretoria de Planejamento e Projetos da Riourbe)

A Escola-Parque da BahiaApós sua demissão da então Secretaria de

Educação do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira afas-tou-se da vida pública por um período de 12 anos.Acusado e perseguido politicamente, refugiou-se no sertão da Bahia, na região de Caetité, onde,no período de 1935 a 1945, dedicou-se a diver-sas atividades, como exploração de minério demanganês, comercialização de automóveis, tra-dução de livros para a Companhia Editora Naci-onal e correspondência com os amigos. Em 1946,aceitou o convite de Julian Huxley, secretárioexecutivo da Organização Educacional, Científi-ca e Cultural das Nações Unidas (Unesco), para

participar desta instituição como conselheiro deensino superior. Em 1947, a convite do governa-dor Otávio Mangabeira, assumiu a Secretaria deEducação e Saúde do Estado da Bahia (1947-1951) e retomou a luta pela causa da educaçãopública em sua terra natal (cf. www.prossiga.br/anisioteixeira).

No relatório de 1949 (TEIXEIRA, 1949), oeducador apresenta ao governador da Bahia umbalanço da situação em que se encontravam osserviços educacionais no estado e traça um pla-no de atuação específico para o interior e paraa capital.

Para o interior, além do sistema de educa-ção elementar, com atendimento também para

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

a zona rural, planejou um sistema de ensinomédio ou secundário, que previa a constru-ção de centros regionais de educação, lo-calizados em 10 regiões administrativas, quecompreendiam jardim de infância, escola ele-mentar modelo, escola normal, escola secun-dária, parque escolar, centro social e decultura e internatos. Na capital, o plano es-colar envolvia um sistema de escolas elemen-tares, seguido de um conjunto de escolassecundárias de cultura geral e técnica e daescola de formação de professores em nívelde ensino superior. Mas, segundo Anísio, asescolas elementares teriam uma organizaçãoespecial, constituindo os centros de educa-ção popular que, localizados na periferia dacidade, funcionariam como núcleos de arti-culação de bairro, onde as funções tradicio-nais da escola seriam preenchidas emdeterminados prédios e as de educação físi-ca, social, artística e industrial, em outros. Oconjunto compreenderia, assim, escolas-classee escolas-parque (TEIXEIRA, 1949).

Dos dez centros de educação popular pla-nejados inicialmente, só foi possível a constru-ção de um deles, o Centro EducacionalCarneiro Ribeiro (CECR), localizado no bair-ro da Liberdade, em Salvador. Popularmenteconhecido como “Escola Parque”, transfor-mou-se na obra máxima de seu idealizador econstituiu-se numa “tentativa de se produzirum modelo para a nossa escola primária”(TEIXEIRA, 1967).

O discurso de Anísio Teixeira, proferido em21 de setembro de 1950,8 por ocasião da inau-guração de três escolas-classe que integrariamo conjunto do CECR, é esclarecedor sobre aconcepção do Centro, que, segundo ele, era “ocomeço de um esforço pela recuperação, entrenós, da escola pública primária” (TEIXEIRA,1959, p. 78-84).

A construção desses grupos obedece a um pla-no de educação para a cidade da Bahia, em quese visa restaurar a escola primária, cuja estru-tura e cujos objetivos se perderam nas idas evindas de nossa evolução nacional. (...) Dese-jamos dar, de novo, à escola primária, o seu dialetivo completo. Desejamos dar-lhe os seus cin-

co anos de curso. E desejamos dar-lhe seu pro-grama completo de leitura, aritmética e escrita,e mais ciências físicas e sociais, e mais artesindustriais, desenho, música, dança e educa-ção física. Além disso, desejamos que a escolaeduque, forme hábitos, forme atitudes, cultiveaspirações, prepare, realmente, a criança para asua civilização (...). E, além disso, desejamosque a escola dê saúde e alimento à criança, vis-to não ser possível educá-la no grau de desnu-trição e abandono em que vive. Tudo isso soacomo algo de estapafúrdio e de visionário. Narealidade, estapafúrdios e visionários são osque julgam que se pode hoje formar uma naçãopelo modo por que estamos destruindo a nos-sa. (...) Por isso é que este Centro de EducaçãoPopular tem as pretensões que sublinhei. É cus-toso e caro porque são custosos e caros osobjetivos a que visa. Não se pode fazer educa-ção barata – como não se pode fazer guerrabarata. Se é a nossa defesa que estamos cons-truindo, o seu preço nunca será demasiado caro,pois não há preço para a sobrevivência. (...) Daíesta escola, este centro aparentemente visio-nário. Não é visionário, é modesto. O começoque hoje inauguramos é modestíssimo: repre-senta apenas um terço do que virá a ser o Cen-tro completo. Custará, não apenas os sete milcontos que custaram estes três grupos escola-res, mas alguns quinze mil mais. Além disto,será um centro apenas para 4.000 das 40.000crianças que teremos, no mínimo, de abrigar nasescolas públicas desta nossa cidade(TEIXEIRA, 1959, p.78-84).

Anísio esclarece, também, sobre a organi-zação do que ele estava a chamar de “centrode educação popular”:

A escola primária seria dividida em dois seto-res, o da instrução, propriamente dita, ou seja,da antiga escola de letras, e o da educação,propriamente dita, ou seja, da escola ativa. Nosetor instrução, manter-se-ia o trabalho con-vencional da classe, o ensino de leitura, escri-ta e aritmética e mais ciências físicas e sociais,e no setor educação – as atividadessocializantes, a educação artística, o trabalhomanual e as artes industriais e a educação físi-ca. A escola seria construída em pavilhões,num conjunto de edifícios que melhor se ajus-

8 Esse discurso é reproduzido em Teixeira (1959, p.78-84 e1994, p.172-180) e Eboli (2000, p.4-12), entre outraspublicações.

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tassem às suas diversas funções. Para econo-mia tornava-se indispensável que se fixasseum número máximo para a matrícula de cadacentro. Pareceu-nos que 4.000 seria esse nú-mero, acima do qual não seria possível a mani-pulação administrativa. Fixada, assim, a popu-lação escolar a ser atendida em cada centro,localizamos quatro pavilhões, como este, paraas escolas que chamamos de escolas-classe,isto é, escolas de ensino de letras e ciências, eum conjunto de edifícios centrais que desig-namos de escola-parque, onde se distribuiri-am as outras funções do centro, isto é, as ati-vidades sociais e artísticas, as atividades detrabalho e as atividades de educação física. Aescola-classe aqui está: é um conjunto de 12salas de aula, planejadas para o funcionamen-to melhor que for possível do ensino de letrase ciências, com disposições para administra-ção e áreas de estar. É uma escola parcial epara funcionar em turnos. Mas virá integrá-laa escola-parque. A criança fará um turno naescola-classe e um segundo turno na escola-parque. Nesta escola, além de locais para suasfunções específicas, temos mais a bibliotecainfantil, os dormitórios para 200 das 4.000 cri-anças atendidas pelo Centro e os serviços ge-rais e de alimentação. Além da reforma da es-cola, temos o acréscimo desse serviço de as-sistência, que se impõe, dadas as condiçõessociais (TEIXEIRA, 1959, p.78-84).

Esse Centro, cujo projeto arquitetônico fi-cou a cargo dos arquitetos Diógenes Rebou-ças, da Bahia, e Hélio Duarte, de São Paulo,9

foi planejado para atender a um grupo de 4 milalunos, em sua capacidade máxima. O conjun-to foi constituído de quatro “escolas-classe”,compostas tão-somente de salas de aula e de-pendências para o professor, para atender a1.000 alunos cada uma, em dois turnos, e uma“escola-parque” para 2 mil alunos em cada tur-no, com salas de música, dança, teatro, educa-ção artística e social, salas de desenho e artesindustriais, ginásio de educação física, bibliote-ca, restaurante, serviços gerais e residência ouinternato para as chamadas “crianças abando-nadas”. O funcionamento se daria em turnosalternados: enquanto metade dos alunos estavana escola-parque, a outra metade distribuía-sepor quatro escolas-classe; ao meio-dia, os doisgrupos revezavam-se. (Figura 3)

Com esse tipo de organização, a escola dariaao aluno a oportunidade de participar, comomembro da comunidade escolar, de um con-junto rico e diversificado de experiências, demodo que ele se sentisse “o estudante na es-cola-classe, o trabalhador, nas oficinas de ati-vidades industriais, o cidadão, nas atividadessociais, o esportista, no ginásio, o artista, noteatro e nas demais atividades de arte”. Des-sa forma, “se a escola-classe se mantinha, emessência, a antiga escola convencional, as con-dições de trabalho na escola-parque iriam fa-cilitar sobremodo a aplicação dos melhoresprincípios da educação moderna” (TEIXEIRA,1967, p.246-253).

A conclusão desse Centro só foi possívelgraças ao empenho do próprio Anísio Teixeira.Em 1952, ao ser nomeado diretor do InstitutoNacional de Estudos Pedagógicos (INEP), via-bilizou um convênio de colaboração e assistên-cia técnica com a Secretaria de Educação daBahia para o prosseguimento e a conclusão daobra da “Escola Parque”. Em 1964, com o tér-mino da construção da escola-classe número 4,o Centro foi dado por concluído, todavia, sem oorfanato.

Embora Anísio soubesse que não se podiacontestar a necessidade de construir e operarum modelo de escola desse tipo, sabia tambémque o Centro de Educação Primária de Salva-dor não era algo já definitivamente aceito e emprocesso de generalização. Era um programa,uma aspiração em vias de experiência e con-cretização. Segundo ele, para que essa idéia serealizasse, seria necessário:

... amadurecer o sentimento de que a justiça so-cial somente será efetiva, num regime livre, coma igualdade de oportunidade educativa, e queesta somente se há de concretizar com uma es-cola que ofereça ao pobre ou ao rico uma educa-ção que os ponha no mesmo nível ante as pers-pectivas da vida (TEIXEIRA, 1962, p.21-23).

9 Ver, a esse respeito, o depoimento de Diógenes Rebouças,em Rocha (1992, p.147-154), Duarte (1973) e Teixeira(1967).

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Escola Playground no Rio de Janeiro, DF (1931-1935): a gênese da Escola Parque da Bahia

Concluindo...A escola é que sempre nos dirá o que

somos e o que seremos. Ela é o índice daformação dos povos: por elas se tem a

medida das suas inquietudes, dos seusprojetos, das suas conquistas e dos

seus ideais (Cecília Meireles, 1932, p. 6).

Pelo exposto, e diante dos detalhes apresen-tados no texto de Enéas Silva (1936, p.15), dandoconta do funcionamento e da concepção des-ses parques-escolares dentro da proposta deedificações idealizada para o Rio de Janeiro,Distrito Federal, pode-se admitir que a escola detipo Playground construída à praça Cardeal

Figura 3 - Esquema de funcionamento do Centro EducacionalCarneiro Ribeiro, em Salvador, BA (extraído de EBOLI, 2000) 10

10 Disponível também em Teixeira, 1962.

Arcoverde, em Copacabana, seja, realmente, agênese do modelo “escola-classe – escola par-que” que se concretizou na Bahia, no períodode 1947 a 1951, quando Anísio Teixeira foi se-cretário de Educação e Saúde do estado.

Apesar de surgir como proposta circunstan-cial, que visava a conciliar as dificuldades téc-nicas e econômicas às novas exigências doprograma pedagógico, esse tipo de escola sefirmaria como a solução ideal para o problemada educação integral e serviria de base para aconcepção de novos modelos de escola a partirde então.

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Célia Rosângela Dantas Dórea

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 09.08.05

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Edivaldo M. Boaventura

ORIGEM E FORMAÇÃO DO SISTEMA ESTADUALDE EDUCAÇÃO SUPERIOR DA BAHIA – 1968-1991

Edivaldo M. Boaventura*

*Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), professor da Universidade Salvador (Unifacs) e daFundação Visconde de Cairu; Mestre e Ph.D. em Administração Educacional pela The Pennsylvania State University(Penn State), Doutor e Docente Livre em Direito pela Ufba. Entre suas publicações encontram-se UFBA: trajetória deuma universidade 1946-1996 (1999); Metodologia da Pesquisa: monografia, dissertação e tese. (2004) Endereço paracorrespondência: Rua Dr. José Carlos, 99 Apto. 801. Ed. Parque das Mangueiras, Acupe de Brotas. 40290-040Salvador-BA. Vide site: www.edivaldo.pro.br. E-mails: [email protected] /[email protected] /[email protected]

RESUMODesde o Século XIX que a administração estadual mantém um ensino superiorvoltado, inicialmente, para o setor primário da economia, tendência que persistiuaté 1967. De 1968 a 1971, foram instituídas as faculdades de formação deprofessores, respondendo à demanda dos sistemas de ensino em plena expansãocom o aumento dos efetivos escolares. Objetivando a interiorização da educaçãosuperior, o Estado da Bahia instituiu quatro universidades que possibilitaram aautonomia da educação superior baiana, na sua função de formadoras deprofissionais para o ensino e qualificação de recursos humanos para outrossetores produtivos, cooperando para o desenvolvimento sócio-econômico ecultural das regiões interioranas onde estão inseridas.

Palavras-chave: Educação superior – Evolução da educação superior na Bahia– Universidades estaduais

ABSTRACTORIGIN AND FORMATION OF THE BAHIA STATE HIGHEREDUCATION SYSTEM - 1968-1991

Since the 19th century, the state administration maintains a higher educationinitially directed to the primary sector of the economy, a trend that persisted upto 1967. From 1968 to 1971, the schools for teaching formation were instituted,acting in response to the demand of the education systems in full expansionbecause of the increase in the school effectives. Aiming at the expansion ofthe higher education to the interior, the State of Bahia instituted four universitieswhich make possible the autonomy of the Bahian higher education, in its functionof forming professionals for the education and the human resources qualificationto the profit of other productive sectors, cooperating to the socioeconomic andcultural development of the hinterland regions where they are inserted.

Keywords: Higher education – Evolution of the higher education in Bahia –State universities.

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

1. INTRODUÇÃOA discussão de temas e problemas da educa-

ção superior estadual projeta a idéia de uma in-vestigação que engloba, principalmente, surgimen-to, lideranças locais, gestão e atendimento àdemanda, não somente pelas universidades, comotambém por meio das instituições de ensino supe-rior (IES). A análise da criação da UniversidadeFederal da Bahia (Ufba) (BOAVENTURA, 1999)e de suas etapas de crescimento, fundação em1946 e reestruturação em 1968, serve de referen-cial para a expansão da educação superior noEstado da Bahia. As instituições universitárias seintensificaram a partir da década de sessenta doséculo XX, como a Universidade Católica do Sal-vador (Ucsal), precisamente, em 1961, seguindo-se das quatro faculdades de formação de profes-sores de Feira de Santana, Conquista, Alagoinhase Jequié, no final dessa década, e das universida-des estaduais nas décadas seguintes.

A educação superior pública estadual foi acom-panhada, ainda na década de cinqüenta do séculoXX, do surgimento das faculdades particulares, aexemplo da Escola de Serviço Social da Bahia(1952), Faculdade Católica de Filosofia e EscolaBaiana de Medicina e Saúde Pública, integradasou agregadas depois à Ucsal quando de sua cria-ção, concentradas todas na capital. O surgimentodo maior número de instituições de educação su-perior, isoladas e particulares, é relativamente re-cente, conforme demonstrou Mônica Araújo (2003).Algumas ainda apareceram nos anos sessenta, comoa Faculdade de Educação da Bahia (Feba), inicia-tiva da professora Olga Pereira Mettig, uma daspioneiras no gênero no país, após a primeira Lei deDiretrizes e Bases da educação nacional, de 1961,antecedida pela Escola Superior de Estatística daBahia, de 1966. A Escola de Administração de Em-presas da Bahia, de 1972, é a origem da Universi-dade Salvador (Unifacs).

1.1 Questionamentos e perspecti-vas

Em face dessas constatações, procurou-seindagar sobre uma série de questões que pas-

saram a nortear esta explanação, levando sem-pre em consideração a demanda e a oferta deeducação, em termos de formação de pessoalde nível superior. Atente-se, por exemplo, paraa Ufba, criada em 1946 que, embora formadapelo tradicional processo de reunião de facul-dades, diversificou a sua oferta para atender àdemanda de geólogos, requerida pela explora-ção e refino do petróleo na Bahia, o que induziuà criação da Escola de Geologia, integrada aoInstituto de Geociências com a reestruturaçãoe reforma da Ufba, de 1967 a 1971. Outro casode pleno sucesso foi o surgimento da Escola deAdministração, formando pessoal de nível su-perior para os quadros burocráticos do setorpúblico e para a gestão de empresas emergen-tes no período, estimuladas especialmente pe-los incentivos da Superintendência do Desen-volvimento do Nordeste (Sudene) e dofinanciamento do Banco do Nordeste, em apoioàs iniciativas do Centro Industrial de Aratu edo Pólo Petroquímico.

Pergunta-se então: quais foram os fatoresque determinaram o surgimento e o crescimen-to relativos às universidades estaduais daBahia? Por que a administração estadual en-trou na oferta de educação superior nos anossessenta, primeiramente com as Faculdades deFormação de Professores e depois com as uni-versidades estaduais? Tem-se como um dosmotivos a carência de professores com forma-ção superior para os sistemas de educação quese expandiam, fato que desempenhou e conti-nua cada vez mais a desempenhar expressivapressão e estímulo. O Plano Nacional de Edu-cação, logo após a Lei de Diretrizes e Bases de1961, e o Salário-Educação aportaram novosrecursos financeiros que fizeram crescer osefetivos escolares do ensino fundamental emédio, impulsionando a demanda pela educa-ção superior.

Há, ainda, outras questões, tais como: Quecondições que impulsionaram o crescimento daeducação superior nos municípios sedes de re-gião como Feira de Santana, Ilhéus, Itabuna,Conquista, Alagoinhas, Jequié, Juazeiro e ou-tros? Essas e muitas outras questões deverãoser encaminhadas, enfatizando-se, sobretudo, o

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atendimento às necessidades de educação su-perior em todo o Estado da Bahia e não somen-te na capital, onde se concentra boa parte dasunidades acadêmicas. A documentação utiliza-da parte das disposições das políticas expres-sas na legislação federal, combinadas com aspolíticas estaduais manifestadas em planos, pro-gramas, na legislação do ensino estadual, e naexperiência do autor como secretário da Edu-cação e Cultura da Bahia, nos governos de LuizViana Filho (1970-1971) e João Durval Carnei-ro (1983-1987). Delineia-se o sistema de edu-cação superior estadual da Bahia, cuja estruturavai se desenvolvendo entre o final dos anos ses-senta e o começo dos anos noventa, ressaltan-do-se que o referido sistema encontra-se empleno funcionamento com quatro universidadesque se expandem por todo o território baiano.(BAHIA, 1998).

1.2 Dois momentos da educaçãosuperior na Bahia

A administração estadual da Bahia, primei-ramente, criou as faculdades de formação deprofessores e depois as universidades estadu-ais, dando-se ênfase no presente a esses doismomentos significativos. No primeiro, antece-dentes e propostas de educação superior; nosegundo, o surgimento das universidades esta-duais da Bahia.

2. ANTECEDENTES E PROPOSTASDE EDUCAÇÃO SUPERIOR2.1 Educação superior estadualvoltada para a agricultura: Agro-nomia e Medicina Veterinária

Ainda no tempo do Império, a educação su-perior na Bahia já contava, além da tradicio-nal Faculdade de Medicina, com o ImperialInstituto Bahiano de Agricultura, que depoisde sucessivas mudanças passou a ser a Esco-la de Agronomia de Cruz das Almas, integra-da à Secretaria de Agricultura. Vinculado à

lavoura da cana, aquele instituto proporcionouinstrução agrícola, tendo os seus reflexos nacrise da economia açucareira na segunda me-tade do século XIX, conforme a dissertaçãode Maria Antonietta de Campos Tourinho(1982).

Depois de fundada a Universidade da Bahia,em 1946, a administração estadual continuoumantendo a Escola de Agronomia de Cruz dasAlmas e criou a de Medicina Veterinária, pelaLei Estadual n. 423, de 20 de outubro de 1951,no governo Regis Pacheco (1951-1955), sendosecretário de Agricultura Nonato Marques. Em1967, as Escolas de Agronomia e MedicinaVeterinária passaram a integrar a Universida-de Federal. Porém, o Estado da Bahia já man-tinha a Faculdade de Agronomia do Médio SãoFrancisco (Famesf) desde o governo LomantoJúnior (1963-1967). Segundo Joston Simão deAssis (1985), a Famesf foi fundada em 1960,por um grupo de líderes de Juazeiro, tendo àfrente Edson Ribeiro, com a denominação deEscola de Agronomia de Juazeiro, sendo o seuprimeiro diretor o engenheiro agrônomo JoãoMarcelino da Silva Neto.

Até março de 1967, a administração esta-dual contava apenas com a Famesf, a qual, pas-sa mais tarde a ser gerida pela Secretaria deEducação e Cultura que “empreende esforçosno sentido de fornecer à Escola de Agronomiado Médio São Francisco os recursos necessá-rios à sua ampliação e reaparelhamento, paraque passe a operar nos moldes recomendados...” (BAHIA, 1969, p. 72, v.2). Registre-se, ain-da, que a Famesf, após sua absorção pela ad-ministração estadual da educação, em 1983,integra-se às unidades formadoras da Univer-sidade do Estado da Bahia (Uneb).

É importante observar que essas unidadesvoltadas para o setor primário da economia nãoestavam vinculadas à Secretaria de Educaçãodo Estado da Bahia, criada em 1935; eram in-tegradas à Secretaria de Agricultura. É com oPlanto Integral de Educação e Cultura daBahia (1969, v. 2) que se pode fixar o momen-to de mudança da área da agricultura para aeducação.

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

2.2 Educação superior estadual voltada para oensino: Faculdades de Formação de Professores

Em 1968, o governo Luiz Viana Filho (1967-1971), gestão dos secretários Luiz Navarro deBrito (1967-1999) e Edivaldo M. Boaventura(1970-1971), deu início a uma nova estratégiade educação superior com a implantação dasFaculdades de Formação de Licenciados de 1ºCiclo no Interior com os três cursos de licenci-aturas curtas em Letras, Estudos Sociais e Ci-ências e Matemática. O Plano Integral deEducação e Cultura optou por essas Faculda-des de Formação de Licenciados, que já existi-am em Pernambuco, pela criação de umaUniversidade Estadual no Sul do Estado e pelaEscola Superior de Educação Física da Bahia:

A solução teoricamente justificável de aumen-tar na Capital os núcleos existentes de formaçãopedagógica teriam, na prática, o inconvenientede deslocar pessoas da região (os desejáveiscandidatos ao exercício de magistério no interi-or) que talvez não regressassem. Em decorrên-cia dos fatores sumariamente analisados, adotouo Governo do Estado a solução de organizar einstalar Faculdade de Licenciados de primeirociclo no interior. A implantação progressiva emdiversas cidades prevê para o triênio quatro es-colas. (BAHIA, 1969, v. 2, p. 65-66)

E acerca da universidade, o mesmo PlanoTrienal previu: “Sendo a zona cacaueira aquelaque oferece as melhores condições de receptivi-dade para um empreendimento dessa categoria,optou o Governo pela implantação da Universi-dade Estadual em Uruçuca”. (v. 2, p. 69 e 72)

O Plano Trienal estabeleceu, dentre outrasmetas:

- Instalação, no interior do Estado, de quatroFaculdades de Educação para formação de pro-fessores de 1º Ciclo do ensino médio (ginásio).

- Criação da Universidade Estadual situadano Sul do Estado (Uruçuca).

- Implantação de uma Escola Superior de Edu-cação Física no Estado, sediada em Salvador.

- Equipamento e ampliação da Faculdade deAgronomia do Médio São Francisco (Famesf).(BAHIA, v. 2, 1969, p. 65-66)

Em atos posteriores, implantaram-se as Fa-culdades em Feira de Santana, Alagoinhas eVitória da Conquista, criando-se a de Jequié. Aeducação superior, que então surgia vinculadaàs necessidades de formação de professorespara o ensino médio, integrava-se ao Departa-mento de Educação Superior e Cultura (Desc),dirigido pelos professores Luís Henrique DiasTavares e Remy de Souza.

A primeira das faculdades a ser instalada,em 1968, foi em Feira de Santana. Começoupelo Curso de Letras, com a participação daprofessora Joselice Macedo de Barreiro, segui-do do Curso de Estudos Sociais, assessoradopela professora Zahidé Machado Neto, em1969, e o Curso de Ciências e Matemática, em1970, coordenado pela professora Maria Cris-tina de Oliveira Menezes. Instala-se a Facul-dade de Educação de Feira de Santana, assimchamada embora não possuísse o curso de Pe-dagogia. Em 1969, foi ministrada a sua primei-ra aula inaugural. (BOAVENTURA, 1971, p.105-122).

A Escola Superior de Educação Física daBahia, apesar dos esforços, não foi instaladapor falta de apoio para as disciplinas da área deSaúde. Do mesmo modo, a projetada Universi-dade do Sul da Bahia, que agregaria as unida-des universitárias já existentes na região, nãofoi implantada, embora fosse tentada a criaçãodo seu Conselho Diretor. Todavia as quatroFaculdades de Formação de Professores tive-ram pleno êxito e expansão. Contando com pro-blemas de carências de corpo docente,encarregou-se o Programa de Pós-Graduaçãoe Pesquisa em Educação, Mestrado, da Ufba,de ministrar um Curso de Especialização deConteúdos e Métodos de Ensino Superior, cur-so coordenado pelos professores Giselda San-tana Moraes e Hermes Teixeira de Melo. Aespecialização abrangeu as áreas de Letras,Estudos Sociais, Ciências e Matemática, e Edu-cação. Para tanto, contou-se com a participa-ção dos Institutos básicos recém-criados pelareforma da Ufba.

É importante observar a mudança de estra-tégia do governo estadual, em matéria de edu-

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cação superior, localizando em municípios ca-pitais regionais entidades deste nível de ensinopara atender, primeiramente, à demanda edu-cacional e, em segundo lugar, responder às ne-cessidades sociais e econômicas pela formaçãode quadros profissionais. Os governos seguin-tes, no período abrangido por este estudo, se-guiram a mesma política: Antônio CarlosMagalhães (1971-1975; 1979-1983; 1991-1995);Roberto Santos, (1975-1979); João Durval Car-neiro, (1983-1987); Waldir Pires – Nilo Coelho,(1987-1991). Completando o número de cur-

sos, aumentaram-se novas unidades de educa-ção superior nos municípios, construindo e con-solidando a Universidade Estadual de Feira deSantana e ajudando o crescimento desta cor-poração na fase de fundação (1970-1980). AUefs foi durante dez anos a única universidadeestadual.

As tabelas 1 e 2 registram os efetivos dealunos universitários, na Ufba e na Ucsal, an-tes das universidades estaduais. Os percentu-ais de aprovação no vestibular da Ufbaexpressam a demanda de educação superior.

Tabela 1 - Crescimento da matrícula na Universidade Federal da Bahia (1963-1967)

Fonte: Plano Integral de Educação e Cultura. V. 2. p. 57

Tabela 2 - Universidade Católica de Salvador — Alunos matriculados

Fonte: Plano Integral de Educação e Cultura. V. 2. 1969

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

Do exposto, pode-se deduzir que o sentidoda política estadual foi a implementação de nú-cleos de educação superior nas principais capi-tais regionais do Estado. Por volta dos anosoitenta, pelo menos oito sedes de Regiões Ad-ministrativas possuíam faculdades mantidas pelaadministração estadual, tais como Feira de San-tana, Alagoinhas, Santo Antônio de Jesus, Je-quié, Juazeiro, Jacobina, Vitória da Conquista eCaetité. Indagou-se, então, como organizarmelhor e mais produtivamente o sistema esta-dual de educação superior a fim de que pudes-se responder às exigências da população –jovem, adolescente e adulta – que necessitavade professores para o sistema estadual de edu-cação? No particular, é preciso que se atentepara a escolarização no ensino superior, que naBahia era da ordem de 4,1% (DISTRITO FE-DERAL, Secretaria da Educação e Cultura,DEPLAN, 1982, Apud, BAHIA, 1984, p. 37).

Por dependência administrativa, a Uniãomantinha todos os seus cursos de graduaçãoem Salvador, capital do Estado da Bahia, comexceção da Escola de Agronomia, no interior,em Cruz das Almas. Inversamente, a adminis-tração estadual administrava quase todos os seuscursos, nos centros urbanos do interior, excetu-ando o Centro de Educação Técnica da Bahia(Ceteba), em Salvador, onde se concentravamos estabelecimentos isolados de ensino superi-or particular.

2.3 Interiorização pela universi-dade multicampi

Assim, em 1º de março de 1983, já se anun-ciava a concepção de uma universidade multi-campi para a Bahia. (BOAVENTURA, 1983a,p. 97-106; BOAVENTURA, 1983b, p. 29-40).Em síntese, três fatores a considerar:

1 - um sistema estadual de educação para sercompleto há de possuir todos os níveis e tiposde ensino, indo do infantil às instâncias superi-ores da pós-graduação;

2 - uma educação superior estadual há de se or-ganizar regionalmente, confirmando a identida-de cultural, em unicampus e multicampi;

3 - uma faculdade ou universidade, pelas exigên-cias próprias à condição mesma da educaçãosuperior, concentra laboratórios, bibliotecas eequipamentos, que mudam e enriquecem a vidacultural de uma comunidade urbana do interiorcomo fator do progresso. (BOAVENTURA, 1987,p. 82)

Para efetivação daquele projeto de univer-sidade multicampi, o Plano de Educação e Cul-tura da Bahia (1984-1987), no governo JoãoDurval Carneiro, priorizou a interiorização daeducação superior:

A expansão e consolidação da educação superi-or na esfera estadual se processará, por um lado,num movimento de interiorização, desconcen-trando suas unidades de ensino, adequando-oàs variações e especificidades da relação oferta/aluno de cada região. Por outro lado, num senti-do mais quantitativo, pretende-se uma reorien-tação da oferta de modo a se privilegiar a forma-ção de professores de 1º grau, em especial paraaquelas áreas mais carentes como pré-escolar,alfabetização de crianças e adultos e educaçãocontinuada. (BAHIA, Plano de Educação e Cul-tura 1984-1987, 1984, p. 92)

Para o conhecimento das estruturas acadê-micas, muito serviu a experiência de reforma daUniversidade Federal da Bahia, nos reitoradosMiguel Calmon e Roberto Santos, especialmen-te quanto ao planejamento e à departamentaliza-ção (BOAVENTURA, 1971a; BOAVENTURA,1971b). O conhecimento da organização multi-campi da Universidade da Califórnia e da Uni-versidade do Estado de New York, (State Uni-versity of New York, SUNY) em Albany, eramexperiências conhecidas. Mas foi decisiva a ob-servação do funcionamento da Universidade doEstado da Pennsylvania (Penn State), como umauniversidade multicampi, que cobre todo o terri-tório desta Commonwealth, com o campus prin-cipal, em University Park, (State College, Cen-tral Country) cabeça dos diversos campi.(BOAVENTURA, 1984, p. 21-24; BOAVEN-TURA, 1994, p. 10)

Aprofundando com Cugene C. Lee e FrankM. Bowen (1971) a problemática da universi-dade multicampi, a continuidade do sistema edu-cacional com base regional levou ao estabele-cimento de um sistema de educação superior

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Edivaldo M. Boaventura

estendendo-se a todo o estado-membro comdiversidade de campi autônomos.

Aos poucos, a forma multicampi, além deapresentar-se como a melhor para atendimentoaos objetivos propostos pelo governo, coaduna-se com as circunstâncias estaduais, permitindo aeconomia de meios. Sem o modelo multicampi,tem-se uma duplicação de serviços com váriasreitorias ou a não aconselhável faculdade isola-da. Quando da implantação da Uneb, a concep-ção da universidade multicampi foi discutidasucessivamente em seminários promovidos peloInstituto de Gestão Universitária (Iglu), progra-ma da Associação Universitária Interamericana(AUI), em Salvador. (BOAVENTURA, 1985,p. 02-04; BOAVENTURA, 1987a, p. 93-94; BO-AVENTURA, 1987b, p. 31-33)

A educação superior, como um segmentodo sistema estadual, enfatizava a proposta de1983, apresentada à Federação das Escolas Su-periores de Ilhéus e Itabuna (Fespi). Para a ex-pansão deste segmento, o esforço estadual emestabelecer cursos e faculdades e mesmo emcriar universidades, só fará retro-alimentar osdemais níveis do sistema educacional. Numavisão sistêmica, parte dos produtos do sistemaeducacional a ele retorna, através da atuaçãode professores e especialistas. Tendo em vistaa melhoria da qualidade da educação para oscontingentes de alunos no interior, os objetivosda educação superior só serão vislumbrados ealcançados com a oferta de professores licen-ciados, cuja formação é proporcionada pelosprincipais pólos de crescimento regional.

Para a Coordenação de Informática da Se-cretaria da Educação Superior do Ministério deEducação e Cultura, em 1980, existiam na Bahia20 (vinte) entidades de educação superior, sen-do 3 (três) universidades: Federal da Bahia,Católica do Salvador e Estadual de Feira deSantana; 1 (uma) federação de escolas, a Fe-deração das Escolas Superiores de Ilhéus e Ita-buna (Fespi); e 16 (dezesseis) estabelecimentosisolados de ensino superior, a saber: Centro deEducação Técnica da Bahia (Ceteba), Centrode Educação Tecnológica da Bahia (Centec),Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública,Escola Bahiana de Processamento de Dados,

Escola de Administração de Empresas da Bahia,Escola de Administração de Vitória da Conquis-ta, Escola de Engenharia Eletro-Mecânica daBahia com o Curso Superior de Agrimensura,Escola Superior de Estatística, Faculdade Ca-tólica de Ciências Econômicas da Bahia, Fa-culdade de Agronomia do Médio São Francisco,Faculdade de Ciências Contábeis da FundaçãoVisconde de Cairu, Faculdade de Educação daBahia, Faculdades de Formação de Professo-res de Alagoinhas, Jacobina, Jequié e Conquis-ta. Mesmo sem incluir os cursos do Ceteba edo Centec, as vinte entidades forneciam 93 cur-sos de graduação, concentrando 67 na capital e26 no interior do Estado. (BOAVENTURA,1984, p. 128)

2.4 A universidade e o desenvol-vimento local

No caminho para o status de instituição uni-versitária, num processo que demanda tempo erecursos, a faculdade instalada na comunidadeinteriorana deverá passar, como unidade deci-sória, a centro universitário e, finalmente, comconsistência e maturidade, à condição de uni-versidade. Assim, pelos recursos que concen-tra, pelos sentimentos, atividades e interaçõesque vão criando a faculdade e a universidadetransformam-se em fatores de desenvolvimen-to local. Para ministrar o segmento mais avan-çado do processo educacional, exigem-se con-dições e requisitos que normalmente nãoexistiriam numa comunidade municipal. A im-plantação de laboratórios de ciências, de com-putação e de bibliotecas atesta a presença deequipamentos que mudam a vida cultural de umacomunidade urbana.

O desenvolvimento do segmento educaçãosuperior do sistema estadual, com base regional,tem conduzido às universidades estaduais, inte-gradas em colegiados e departamentos, a ofere-cem: educação pelas habilidades avançadas emaprendizagens, formação profissional, serviços àcomunidade, educação continuada, capacitação,especialização, bem assim, cursos de nível tec-nológico, comercial ou agrícola, carreiras longas

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

e, como não poderia deixar de cogitar, variadasformas de valorização da cultura local e regio-nal, complementadas pela intervenção das múl-tiplas manifestações culturais eruditas.

3. A EMERGÊNCIA DAS UNIVERSI-DADES ESTADUAIS DA BAHIA

A criação das universidades estaduais efe-tivou-se pelo critério tradicional de reunião defaculdades isoladas, num processo que vai per-durar por muito tempo, antes e depois das leisde diretrizes e bases da educação referentes àeducação superior (Leis 4.024/61 e 5.540/1968).A Universidade Estadual de Feira de Santana(Uefs) foi uma exceção a esse procedimento.Nasceu estruturada em departamentos, absor-vendo a Faculdade de Educação, existente des-de 1968. Em 1970, o governador Luiz VianaFilho instituiu a primeira universidade estadual,sob a forma de Fundação Universidade Feirade Santana.

Em 1980, o secretário Eraldo Tinoco deu umpasso decisivo no sentido da integração acadê-mica pela Lei Delegada Estadual nº 12, de 30de dezembro, grupando entidades e cursos su-periores de graduação em três conjuntos: (1) aUniversidade Estadual de Feira de Santana, jáexistente desde 1970 e autorizada a funcionar,em 1976, pelo Conselho Federal de Educação;(2) Universidade do Sudoeste, integrada pelaFaculdade de Formação de Professores e Es-cola de Administração de Vitória da Conquista,bem assim, pela Faculdade de Formação de Pro-fessores de Jequié e Escola de Zootecnia deItapetinga; e (3) a Superintendência de EnsinoSuperior do Estado da Bahia (Seseb), compos-ta pelo Centro de Educação Técnica da Bahiae pelas faculdades dos municípios, em númerode seis. A Seseb é a antecedente próxima daUneb. (CUNHA, 2002). Com a criação daUniversidade do Sudoeste, em 1980, a Bahiapassou a contar com a segunda universidade.Em 1983, surgiu a terceira Universidade: aUniversidade do Estado da Bahia (Uneb). Atabela 3 mostra os efetivos de alunos nas trêsuniversidades estaduais.

As políticas estabelecidas pela Secretaria deEducação em expandir o ensino superior, aoestabelecerem como objetivo maior a interiori-zação da educação superior, levou em conside-ração as circunstâncias que caracterizam ohomem interiorano e as heterogeneidades dasregiões, para que nenhuma delas pudesse per-der a sua identidade cultural, (BAHIA, 1984, p.92). Assim, somente, em 1991, foi instituída aquarta universidade: Universidade Estadual deSanta Cruz (Uesc).

3.1 A criação da Universidade Es-tadual de Feira de Santana (Uefs)em 1970

Os antecedentes da universidade feirenseremontam, pelo menos, a 1955, quando se reu-niu a Primeira Jornada da Universidade do in-terior baiano com a presença do reitor EdgardSantos da Ufba (reitorado 1946-1961). Em1963, criou-se a Fundação Simões Filho, com afinalidade de implantar uma universidade rural.Ainda no mesmo ano, constituiu-se a Associa-ção Educacional Desembargador Filinto Bas-tos. Concretamente, somente em 1968, nogoverno Luiz Viana Filho, foi instalada a Facul-dade de Educação, efetivamente, a primeiraunidade universitária de Feira.

No ano seguinte, pelo Decreto 21.583, de 28de novembro, foi criada uma comissão encarre-gada de elaborar o anteprojeto da Universidade.Documento da maior importância histórica foi aLei Estadual nº 2.784 de 24 de janeiro de 1970,que autorizou o Poder Executivo a instituir, sob aforma de Fundação, a Universidade de Feira deSantana, iniciativa do governador Luiz Viana Fi-lho, atendendo às lideranças políticas locais deFeira de Santana. Dessa forma, em 1970, a As-sembléia Legislativa aprovou o anteprojeto daUniversidade de Feira de Santana. Com esse ato,atendia-se às justas aspirações da comunidadefeirense e demais municípios circunvizinhos, cu-jas populações se somaram na luta pela criaçãodesta instituição de ensino.

As justificativas que levaram o Governo doEstado a criar esta Universidade são diversas.

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Edivaldo M. Boaventura

Podem-se enumerar e recordar algumas: Fei-ra de Santana era, como ainda é, o segundopólo de desenvolvimento do Estado; um dosmaiores centros rodoviários do Nordeste doBrasil; o maior centro comercial e industrialdo interior do Estado; e, sem dúvida, a maiorpraça bancária do interior, tendo como áreade influência 94 municípios, situados no valedo rio Paraguaçu com destaque para o seuafluente o rio Jacuipe.

Durante todo o ano de 1970, continuandopelo início de 1971, a secretaria de Educação e

Cultura tomou a iniciativa de editar vários atosem apoio à Fundação Universidade de Feira deSantana: 1) Decreto Estadual nº 21.812, de 16de abril de 1970, que aprovou os Estatutos daFundação; 2) Lei Estadual nº 2.817, de 24 dejunho de 1970, que autorizou o Poder Executi-vo a doar área de terra para o campus; 3) LeiEstadual nº 22.147, de 20 de novembro de 1970,que incorporou bens móveis e imóveis; 4) De-creto Estadual nº 22.073, de 16 de outubro de1970, que aprovou o primeiro plano de aplica-ção de recursos. (BOAVENTURA, 1985)

Tabela 3 - Matrícula de Educação Superior na Rede Pública Estadual – 1983-1985

Fonte: BAHIA, Secretaria da Educação e Cultura. Três anos de Educação e Cultura: relatório de atividades 1983/1985. Salvador, 1986. p. 107.

3.1.1 Instalação do Conselho Di-retor da Fundação

Muitos outros atos administrativos estadu-ais foram editados, dentre os quais destaca-seo Decreto Estadual de 27 de abril de 1970, que

instituiu o Conselho Diretor da Fundação Uni-versitária de Feira de Santana. Conselho esteque teve importância fundamental na estrutu-ração da Universidade sempre se reunindo, emFeira, ouvindo e discutindo com as suas lide-ranças e representações sociais e políticas. As

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

lideranças feirenses que propuseram a criaçãoda Universidade compuseram o primeiro Con-selho: Wilson Falcão, médico e deputado fede-ral; Áureo de Oliveira Filho, educador, fundadordo Colégio Santanópolis e deputado estadual;Yeda Barradas Carneiro, professora e secretá-ria municipal de Educação; José Maria NunesMarque, diretor da Faculdade de Educação;Fernando Pinto de Queiroz, advogado e reda-tor do estatuto e do regimento interno da uni-versidade; Geraldo Leite, médico, pesquisadore coordenador da proposta da universidade eEdivaldo M. Boaventura, secretário de Educa-ção e Cultura da Bahia; como suplentes, Au-gusto Mathias da Silva, monsenhor RenatoAndrade Galvão, Maria Cristina Oliveira Me-nezes, Faustino Dias Lima, Joaquim Pondé Fi-lho, Jorge Bastos Leal e Maria da Hora Oliveira.O governador Luiz Viana Filho, que verdadei-ramente tomou a decisão política de criar aUniversidade de Feira, deu posse, em 1970, aoprimeiro Conselho Curador, que passou a Con-selho Administrativo, com a transformação dafundação em autarquia, pela Lei Delegada nº12, de 30 de dezembro de 1980.

3.1.2 Apoio municipal à universi-dade que emergia

Se tantos foram os atos estaduais, não demenor significado contribuíram os municipais,do prefeito João Durval Carneiro. Criada aUniversidade pelo governo estadual, como ex-pressão maior da comunidade feirense e de suaslideranças políticas, o governo municipal, emconcerto com o estadual, expediu atos em apoioao projeto universitário. Leis e decretos do go-verno local valem ser lembrados: Lei Municipalnº 669, de 8 de janeiro de 1970, que autorizou oPoder Executivo a doar uma área de terra àFundação. Completava-se, assim, o terreno parao campus, origem de uma antiga gleba do Insti-tuto de Fumo da Bahia; e Decreto Municipal nº3.589, de 30 de setembro de 1970, que declara-va de utilidade pública, para fins de desapropri-ação, aquela área de terra. São leis, decretos eofícios de relevância, como aquele documento

de 16 de dezembro de 1970, que colocou aBiblioteca Municipal Arnold Silva à disposiçãoda Fundação recém-criada. Fatos que eviden-ciam a ação conjunta dos poderes públicos soba liderança do governador Luiz Viana Filho edo prefeito João Durval Carneiro, portanto, Es-tado-membro e Município concertam-se paradar a Feira de Santana a sua universidade. Édeste acordo de lideranças, unânime e direci-onado, que surgiu a força política para a cria-ção da Uefs.

3.1.3 Autorização de funciona-mento e instalação da universi-dade

No primeiro governo Antônio Carlos Ma-galhães (1971-1975), o Conselho Diretor daFundação foi confirmando e continuou traba-lhando pela implantação da entidade. Passodecisivo foi a elaboração do Plano Diretor docampus e a construção dos primeiros pavilhões.Com o governo Roberto Santos (1975-1979),intensificaram-se os trabalhos para a autori-zação de funcionamento, na dependência doConselho Federal de Educação (CFE). Paratanto, o Instituto de Serviço Público (ISP/Ufba)encarregou-se do projeto acadêmico e admi-nistrativo para envio ao CFE sempre com aparticipação do Conselho Diretor. A autoriza-ção de funcionamento, conforme parecer doconselheiro Newton Sucupira, foi manifestaexpressão do prestígio pessoal do governadorRoberto Santos, que antes tinha sido membroe presidente daquele colegiado, de 1964 a1974. Conseguida a autorização para funcio-nar, em 1976, o governador instalou solene-mente a Universidade. O professor GeraldoLeite, presidente do Conselho e líder do proje-to da universidade, foi escolhido o seu primei-ro reitor. A sua liderança idiográfica foidecisiva para a implantação da nova institui-ção. A construção e a expansão continuarampelos sucessivos governos estaduais.

Essas e outras razões justificaram a uni-versidade pelos cursos consolidados após aautorização tais como: Engenharia Civil, En-

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Edivaldo M. Boaventura

fermagem, Ciências Contábeis, Economia,Letras, Licenciatura em Ciências e Matemá-tica, Estudos Sociais e Administração, con-tando com uma população estudantil de 3.221alunos. A Universidade projetou em 1983,novos cursos como: Odontologia, Geografia,História e Pedagogia. E, numa segunda ins-tância, a criação dos cursos de Matemática,Física, Música e Biologia. (BOAVENTURA,1987, p. 81-92)

3.1.4 Consolidação e reconheci-mento

O governo João Durval Carneiro (1983-1987), segunda gestão do secretário de Edu-cação Edivaldo M. Boaventura, procuroucontribuir de todas as maneiras para a con-solidação da Uefs, tais como: construção deUnidades de Ensino, Pesquisa e Extensão,ampliação do Biotério, construção da praçade desportes, instalação da comissão para oreconhecimento, apoio a novos cursos, comoo de Odontologia, construindo e equipando abiblioteca central, uma das condições para oreconhecimento. No particular, muito contri-buiu a conselheira Yeda Barradas Carneiro.Um dos passos significativos para a informa-tização foi a criação do Centro de Processa-mento de Dados, de que tanto carecia ainstituição. A Secretaria de Educação e Cul-tura, percebendo a necessidade de informa-tização, integrou a Uefs no Programa deAutomação Administrativa e Informática(Proadin). Essa reivindicação foi atendidaprontamente, em 1984. (BAHIA, 1986, p.104-105)

Constituiu-se a Uefs, como a Universidadeque poderia, a curto prazo, desenvolver proje-tos de pesquisa. Coube ao professor José Ma-ria Nunes Marques, seu segundo reitor(1979-1983, no governo Antônio Carlos Maga-lhães; 1983-1987, governo João Durval Carnei-ro), dirigí-la e liderá-la, nomoteticamente, no seuprocesso de reconhecimento, obtido no final de1986.

3.1.5 Autonomia da educação es-tadual

Com a obtenção do reconhecimento daUefs, o Estado da Bahia se juntou a São Paulo,Rio de Janeiro e Paraná, na obtenção das prer-rogativas do artigo 15 da Lei nº 4.024/61, deDiretrizes e Bases da Educação Nacional, dan-do plena autonomia à sua educação superior.Com esse reconhecimento da Uefs, completa-dos cinco anos, em 1991, foi solicitado ao entãoConselho Federal de Educação a delegação decompetências, possibilitando autonomia ao sis-tema de educação superior da Bahia conformeprevia este dispositivo da primeira LDB. Se-guem-se os reitorados Iara Cunha Pires, JosuéMelo, que deu uma nova dimensão cultural àUniversidade com a criação do Centro de Cul-tura e Arte (Cuca), e Anaci Bispo Paim.

Não pôde ser rápido o processo de instituci-onalização da Universidade Feirense. Da cria-ção, em 1970, ao reconhecimento, em 1986, teveque responder às exigências do Ministério daEducação duramente impostas às universida-des públicas estaduais.

3.2 O surgimento da Universida-de Estadual do Sudoeste da Bahia(Uesb), em 1980.

A autarquia Universidade do Sudoeste foicriada pelo secretário de Educação Eraldo Ti-noco, no segundo governo Antônio Carlos Ma-galhães (1979-1983), conforme a Lei Delegadanº 12, de 30 de dezembro de 1980. Merece des-taque, a partir de 1983, o funcionamento do seuConselho de Administração. A sinergia das suasreuniões pôde-se considerar relevante para le-var avante o projeto da Universidade.

3.2.1 Conselho Administrativo daAutarquia Universidade do Sudo-este

Repetiu-se o mesmo processo de reuniões lo-cais que gestou em boa parte a Uefs, com a par-ticipação de representantes dos organismos

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estaduais sediados em Salvador. Trabalhando-seconjuntamente com a direção da autarquia, enca-minhavam-se as gestões e preparava-se o pro-cesso de autorização de funcionamento(CONSELHO, 1986, p. 15). Procurou-se, comopreocupação primeira, a regularização dos cursose faculdades existentes, o que se concretizou, emparte, pelos seguintes atos do governo federal:

1. Decreto nº 90.587, de 29 de novembro de 1984autoriza o funcionamento da Faculdade de Enfer-magem de Jequié, com o Curso de Enfermagem daAutarquia Universidade do Sudoeste da Bahia;

2. Decreto nº 90.588, de 29 de novembro de 1984autoriza o funcionamento do Curso de Históriada Autarquia Universidade do Sudoeste daBahia;

3. Decreto nº 90.589, de 29 de novembro de 1984autoriza o funcionamento do Curso de Geogra-fia da Autarquia Universidade do Sudoeste daBahia;

4. Decreto nº 90.841, de 23 de janeiro de 1985autoriza o funcionamento da Escola de Zootecniada Autarquia Universidade do Sudoeste daBahia, com o curso de zootecnia;

5. Decreto nº 90.842, de 23 de janeiro de 1985autoriza o funcionamento da Escola de Agrono-mia de Vitória da Conquista, com o curso deAgronomia da Autarquia Universidade do Su-doeste da Bahia;

6. Decreto nº 90.973, de 22 de fevereiro de 1985autoriza o funcionamento do Curso de Letras daAutarquia Universidade do Sudoeste da Bahia.(BOAVENTURA, 1987a, p. 88-89)

Estes atos foram conseguidos da ministrade Educação, Esther de Figueiredo Ferraz, quemuito ajudou a educação baiana na sua gestão.Ressalte-se a cooperação do Conselho Esta-dual de Educação, em especial do seu presi-dente, Raimundo José da Matta, no relaciona-mento com as autoridades do MEC e nosprocessos da competência do colegiado esta-dual.

3.2.2 Construção do campus eautorização de funcionamento

Além do funcionamento regular na sededa instituição, em Vitória da Conquista, com

a participação, em todo o processo, do se-cretário de Educação e Cultura e de outrasautoridades estaduais, e da regularização decursos e faculdades, realizações outras sãolevadas em consideração como: acesso as-fáltico ao campus de Conquista; planejamen-to dos três campi, com a elaboração dos pla-nos diretores de Conquista e Itapetinga;carta-consulta ao CFE sobre a autorizaçãoda Uesb; convênio com a Escola Fazendáriada Secretaria da Fazenda; projeto de cursosmodulados da rede para Brumado e Itapetin-ga; capacitação docente para professores comcurso de especialização e de mestrado, emconvênio com a Capes; acrescente-se, ain-da, para experimento e estudo a criação derebanho bovino e suíno, plantação experimen-tal de maracujá e projeto de apicultura. Cons-trução e conclusão de várias obras, desen-volvimento de recursos humanos e decondições para a pesquisa. (BAHIA, 1986,p. 105-106).

Na implantação da base administrativa eacadêmica, nos anos oitenta, levou a adminis-tração da superintendente Walquíria Albuquer-que (1983-1987) a priorizar a autorização defuncionamento junto ao Conselho Federal deEducação, só obtida no começo de 1987, já nogoverno Waldir Pires.

A expansão do ensino superior chegou,portanto, à região, com o funcionamento daautarquia Universidade Estadual do Sudoes-te da Bahia (Uesb). Em fase de implantação,a Universidade contava com os cursos de Es-tudos Sociais, Letras Vernáculas, Matemáti-ca, Física, Química, Biologia, Enfermagem,Zootecnia, Agronomia e Administração, dis-tribuídos pelos três campi: Conquista, sede,Jequié e Itapetinga. Em 1987, a clientela quefreqüenta os diversos cursos era cerca de1.576 estudantes. No reitorado Pedro Gus-mão, procedeu-se ao levantamento das ne-cessidades regionais a serem atendidas pelaUesb. A expansão planejada do ensino e aparticipação da comunidade universitária lo-cal muito engrandeceram o sistema educaci-onal na região.

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3.3 A institucionalização da Uni-versidade do Estado da Bahia(Uneb), em 19833.3.1 Cooperação do Quebec econtribuição paulista

Em abril de 1983, reuniu-se, em Salvador, aIII Conferência da Organização UniversitáriaInteramericana (OUI), presidido por Gilles Bou-let, Reitor da Universidade de Québec, e se-cretariado por François Loriot. Para esseconclave, foi apresentada uma comunicaçãoacerca da educação superior e cooperação in-teramericana, com insistência na interiorização,racional e organizada, da universidade. (BOA-VENTURA, 1983)

Com esse evento internacional, iniciava-sea cooperação com o governo do Quebec. Fir-mou-se convênio que permitiu a realização pos-terior de um Mestrado em Educação daUniversidade do Quebec, na Uneb, com a co-ordenação do professor Marcel Lavallée. Des-de os seus primeiros anos, a Uneb abriu-se paraa cooperação internacional, em especial, com oCanadá. Seguia-se o exemplo da Universidadede São Paulo e da Universidade do DistritoFederal, a UDF de Anísio Teixeira, que pude-ram contar com a colaboração de conhecidosmestres estrangeiros, no início do seu funcio-namento.

De todo esse conjunto de fatores, pôde-sedestacar as marcantes contribuições para oprojeto da Uneb. São agentes principais dessafase do projeto o professor Alírio FernandoBarbosa de Souza, doutor em educação supe-rior pela The Pennsylvania State University eprofessor da Universidade Federal da Bahia(Ufba), o reitor Armando Otávio Ramos, daUnesp, e o reitor Gilles Boulet, da Universida-de do Quebec.

Ao organizar a universidade multipolar, noinício de 1983, integraram-se unidades univer-sitárias existentes principalmente nos municípi-os e mais o Ceteba, em Salvador. A Unebcompôs o conjunto de leis delegadas, promul-gadas em junho de 1983, a saber: 1) organiza-ção do Conselho Estadual de Educação (Lei

N. 46/83); 2) organização do Conselho Estadu-al de Cultura (Lei N. 51/83); 3) proteção aosarquivos públicos e privados (Lei N. 52/83); 4)transformação do Irdeb em fundação (Lei N.65/83); 5) criação da Universidade do Estadoda Bahia - Uneb (Lei N. 66, de 1 de junho de1983); e 6) reorganização da Secretaria da Edu-cação e Cultura da Bahia (Lei N. 67, de 1 dejunho de 1983). De todo esse conjunto, a cria-ção da Uneb foi a de maior alcance para a edu-cação superior.

Tinha-se o exemplo próximo, brasileiro epaulista da Unesp. Acreditava-se em um pontode vista, que cada vez mais se consolidou como tempo, que o modelo multicampi é o que me-lhor se ajusta ao território de um Estado-mem-bro. Essa era a experiência brasileira e tambéminternacional, do Canadá e dos Estados Uni-dos. A Universidade Estadual da Pennsylvania(Penn State) é uma universidade multicampi.A concepção de uma universidade multicampiconcretizou-se em face do exemplo das univer-sidades paulistas: Universidade de São Paulo(USP), Universidade de Campinas (Unicamp)e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mes-quita Filho (Unesp). Todas com pluralidade decampi, como demonstrou Irany Novah Mora-es. (1986, p. 17-24)

Em realidade, um conjunto universitário jápré-existia com as unidades integradas pelaSuperintendência de Ensino Superior do Esta-do da Bahia (Seseb), instituída pelo secretárioEraldo Tinôco e administrada pela professoraClélia Silveira Andrade. Pois bem, tomou-seesse conjunto e deu-se forma e espírito de umauniversidade com a Lei Delegada n° 66, de 1°de junho de 1983.

Nessa trajetória da Uneb, a sua criação poresta lei foi um ato singular. A Lei foi bastanteclara quando disse logo no caput:

Fica criada, nos termos da Lei Federal N°. 5.540,de 28 de novembro de 1968, a Universidade doEstado da Bahia - UNEB, sob a forma deautarquia em regime especial vinculada à Se-cretaria da Educação e Cultura, com personali-dade jurídica de direito público, autonomia aca-dêmica, administrativa, financeira e patrimôniopróprio.

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Era a etapa da criação jurídico-administra-tiva da autarquia mantenedora, que congregouas Faculdades de Agronomia do Médio SãoFrancisco, de Formação de Professores deAlagoinhas, Jacobina e Santo Antônio de Je-sus, além do Centro de Educação Técnica daBahia (Ceteba), núcleo inicial da Uneb, emSalvador, a Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras de Juazeiro, velha e acalentada aspira-ção daquela comunidade, iniciativa do arqui-teto Pedro Raimundo Rego, Jorge Duarte eoutros. A Uneb se expandiu nos anos iniciaisde sua criação com os Centros de EducaçãoSuperior em Paulo Afonso e outro em Barrei-ras, de Ciências da Saúde e dos Alimentos,em Salvador, das Faculdades de Educação doEstado da Bahia (Faeeba), em Salvador e emSenhor do Bonfim, Serrinha e Euclides daCunha com funcionamento de 31 cursos su-periores e mais de 2.400 alunos.

Com a experiência da reforma universitáriada Ufba, colocou-se estrategicamente a Faculda-de de Educação do Estado da Bahia (Faeeba), naUneb. Não era possível uma Universidade funci-onar e mesmo existir sem um núcleo de conheci-mentos pedagógicos. Era a lição de Anísio Tei-xeira quando criou a Universidade do DistritoFederal (UDF) e a mesma quando ele e DarcyRibeiro planejaram a Universidade de Brasília.

Desse conjunto integrado, a Uneb evoluiucom os seus próprios quadros, com os seus pro-fessores, alunos e servidores. O Secretário deEducação e Cultura, como autoridade, tinhapoderes para criar e criou, dando-lhe melhorconcepção e estrutura. O desenvolvimento e ocrescimento alcançados devem ser tributadosaos seus componentes e às lideranças dos rei-tores José Edelzuito Soares, e dos primeiros pró-reitores Antônio Amorim, Edson TranzilloFrança, Hetty Loreti Rossi, Joaquim de Almei-da Mendes e Luiz Jorge da Silva Teles, e pro-fessor Antônio Fábio Dantas seguem-se osreitores, monsenhor José Raimundo dos Anjose mais recentemente Ivete Sacramento. (PI-MENTA, 2002)

Ressaltem-se algumas inovações como a li-cenciatura em Pedagogia, com habilitações na

Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensi-no Fundamental, Educação de Adultos, criaçãodo bacharelado em Nutrição e instalação decursos superiores pioneiros na região Além SãoFrancisco, especificamente, em Barreiras. OParque Estadual de Canudos e o Centro deEstudos Euclides da Cunha vincularam-se cons-cientemente à Uneb e mais ainda aos sertõesda Bahia.

No tempo em que se trabalhou na imple-mentação da Uneb, o secretário de Educaçãoacumulou as funções de reitor, facilitando asua implantação conforme a lei delegada quea criou. Procurou-se estruturá-la dentro dosprincípios que a política da União e do Gover-no do Estado estabeleciam. Assim, saiu o Re-gulamento da Uneb, pelo Decreto 3.299, de30 de novembro de 1984, peça importante paraimplantação da nova autarquia acadêmica, quepermitiu a criação dos cargos e preenchimen-to de alguns postos. Seguiram-se depois os de-mais atos, como o Estatuto aprovado peloparecer CEE 128/85, do Conselho Estadual deEducação.

Segundo a política de educação, do quatriê-nio 1983-1987, cada capital regional da Bahiadevia ter a sua Faculdade, formando professo-res para o sistema de educação e para os de-mais setores da sociedade. A Uneb nascia coma cor da Bahia, comprometida com as suas re-giões, com a negritude, com os sertões, com apobreza, com os problemas de educação, dealimentação e de saúde. Era mais uma educa-ção superior voltada para o ensino, para a for-mação de pessoal docente, enfim, para aconstrução do conhecimento. A isso o modelointerdisciplinar e multicampi muito favoreceu.A circunstância muito especial de ter sua sedeno Cabula, mais precisamente no bairro da En-gomadeira, criou compromissos sociais e urba-nos com a instituição. A Uneb está presenteem todo o Estado, identificando-se com as re-giões, especialmente, com o Nordeste da Bahia.A lei que a criou estabeleceu a sua competên-cia para todo território baiano. Diploma legalque contou com a colaboração de Pierre Casa-lis, pró-reitor de Planejamento da Universidade

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de Quebec, Armando Otávio Ramos, reitor daUnesp, Luiz Navarro de Britto, pró-reitor deplanejamento da Ufba, Clovis Spínola, procura-dor geral do Estado da Bahia, Waldeck Orne-las, secretário de Planejamento, Ciência eTecnologia da Bahia, e Alírio Fernando Barbo-sa de Souza, assessor e coordenador do projetoda Uneb.

3.3.2 Autorização de funciona-mento pelo governo federal

A autorização de funcionamento não foi fá-cil, entendendo o problema no conjunto das re-lações dialéticas e assimétricas federais eestaduais. Exigiu muito esforço do secretáriode Educação, responsável pela criação daUneb, além de muita energia e persistência.Houve, no período, a mudança de três minis-tros da Educação, Esther de Figueiredo Ferraz,que muito ajudou a Bahia em vários processosde autorização de cursos, Marco Maciel e Jor-ge Bornhausen. O problema ligava-se ao en-tendimento da burocracia do Ministério daEducação. Tinha-se o parecer favorável doConselho Estadual de Educação da Bahia, deautoria do conselheiro padre José Hamilton deAlmeida Barros, mas faltava o ato federal deautorização. O processo peregrinava entre ogabinete do ministro e o Conselho Federal deEducação, que não tinha competência específi-ca no caso.

Deve-se ao ministro da Educação JorgeBornhausen a autorização de funcionamento daUneb. Para tanto, colaborou o ministro das Co-municações, Antônio Carlos Magalhães, queacolheu a solicitação do reitor José EdelzuitoSoares.

Enfim, a autorização saiu em 17 de julho de1986 e, dias depois, o ministro Bornhausen visi-tou o campus da Uneb, em Narandiba. Para acomunidade acadêmica e para os dirigentes daSecretaria de Educação foi um dia solar de ple-na realização. Foi uma vitória alcançada depoisde três anos de lutas junto ao MEC, o que com-prova, como são polêmicas as relações de po-

der entre o governo central e os governos esta-duais, no conjunto de uma federação.

Há uma particularidade no decreto autori-zador. Talvez pela primeira vez tenha-se usadoa expressão “sistema multicampi” em um do-cumento legal. A Universidade do Estado daBahia (Uneb) foi autorizada pelo governo fe-deral, conforme Decreto N° 92.937, de 17 dejulho de 1986, publicado no Diário Oficial daUnião, de 18 de julho de 1986. A autorizaçãofoi uma etapa no processo de oficialização doensino, que é sucedida pelo reconhecimento.Etapa que foi da maior importância para a edu-cação da Bahia, pois veio consagrar o esforçode um Estado nordestino que mantinha atéàquela época três autarquias universitárias (BO-AVENTURA, 1987, p. 19-21), compensado, emparte, a ausência de universidades federais noterritório baiano.

Pelo decreto de autorização de funciona-mento do Presidente José Sarney, explicitou-sesua condição de “sistema multicampi”, servin-do a todo o Estado da Bahia. Para que fosseautorizada por decreto presidencial, foi oportu-na a doutrina do parecer n° 647/84, do Conse-lho Federal de Educação, de autoria do juristaManoel Gonçalves Ferreira Filho, que deu inte-ligente interpretação ao artigo 47, da Lei Fede-ral 5.540/68. O sistema multicampi serve a todoEstado da Bahia, confirmando a lei que criou aUneb:

A Uneb tem por finalidade desenvolver, de for-ma harmônica e planejada, a educação superior,promovendo a formação, o aperfeiçoamento (...)bem como estimulando a implantação de cursose campi universitários nas regiões do Estado,observando as suas peculiaridades.

A forma multicampi foi definitivamente con-sagrada no decreto presidencial, sendo realmen-te a que melhor convém a uma universidadeestadual. É a lição da Penn State que tanto temfertilizado e enriquecido a educação superiorbaiana. O Estado-membro é, de qualquer for-ma, um espaço a ser ocupado pela educaçãosuperior. Como se dizia, na década de oitenta:“educação superior rima com interior, enquan-to educação federal com capital e litoral”.

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Origem e formação do sistema estadual de educação superior na Bahia - 1968-1991

3.3.3 Reconhecimento pelo Con-selho Estadual de Educação daBahia

Do ponto de vista normativo, trabalhou-seno seu processo de reconhecimento, tarefa co-metida ao Conselho Estadual de Educação daBahia com a delegação de competência doConselho Federal. Com os serviços prestadosà comunidade acadêmica, a declaração de re-conhecimento foi uma etapa importante no pro-cesso de consolidação da instituição, que lhepermitiu criar cursos de graduação e pós-gra-duação, celebrar convênios nacionais e inter-nacionais, registrar os diplomas dos seus alunos.

Da criação, em 1983, passando pela auto-rização de funcionamento, de 1986, chegou-se pela Portaria nº 909, de 31 de julho de 1995,do Ministro de Educação e Desporto, PauloRenato de Souza, ao reconhecimento, comsede e foro na cidade do Salvador e jurisdiçãoem todo o Estado da Bahia, conforme o Pare-cer do Conselho Estadual de Educação daBahia, nº 133/1995 (BRASIL, 1995). Foramdoze anos para o processo de oficialização daUneb. A Uneb foi reestruturada pela Lei n°7.176, de 10 de setembro de 1997, tendo comobase de sua estrutura acadêmica os vinte equatro departamentos.

3.4 O começo da UniversidadeEstadual de Santa Cruz (Uesc), em19913.4.1 Federação das Escolas Su-periores de Ilhéus e Itabuna(Fespi) e a Ceplac

Antecedida pela Federação das EscolasSuperiores de Ilhéus e Itabuna (Fespi), foi de-finida como Universidade Estadual de SantaCruz (Uesc), pela Lei nº 6.344, de 05 de de-zembro de 1991 e reorganizada pela Lei nº6.898, de 18 de agosto de 1995, no terceirogoverno Antônio Carlos Magalhães (1991-1995), gestão da secretária Dirlene Mendon-ça. (BAHIA, 1998, p. 77)

A Uesc originou-se de três unidades acadê-micas da região do cacau. A Faculdade de Di-reito de Ilhéus, autorizada pelo Ministério deEducação, em 1960, começou a funcionar noano letivo de 1961. Criada pelas lideranças lo-cais, tendo à frente Soane Nazaré Andrade,Amilton Ignácio de Castro, Jorge Fialho, RuiCajueiro, Ramagem Badaró e Francelino Neto.Já a Faculdade de Filosofia de Itabuna foi insti-tuída pela Ação Fraternal, entidade mantida porAmélia Tavares Amado, começou a funcionarpela mesma época da Faculdade de Direito deIlhéus. A terceira unidade acadêmica, Facul-dade de Ciências Econômicas de Itabuna, ma-nifesta a liderança do bacharel Érito Machado,juiz do trabalho.

As três entidades foram reunidas na Fede-ração das Escolas Superiores de Ilhéus e Ita-buna (Fespi), em 1974, com a construção docampus na estrada Ilhéus e Itabuna, passandoa contar com apoio financeiro e da ComissãoExecutiva do Plano de Recuperação da LavouraCacaueira (Ceplac). (UNIVERSIDADE E.SANTA CRUZ, 2003. p. 43-50).

As instalações construídas pela Ceplac e opagamento dos professores com as taxas esco-lares resultaram do acordo estabelecido entre odiretor da Fespi, professor Soane Nazaré An-drade, e o secretário geral da Ceplac, José Arol-do Castro Vieira. Esse esquema funcionou porcerto tempo. Quando da mudança na taxa deretenção do cacau, a Ceplac passou para a juris-dição do Ministério da Agricultura, começaramas dificuldades financeiras da Fespi.

3.4.2 Federalização e estaduali-zação

Já no início de 1987 começou a crise econô-mica. Apresentaram-se como alternativa solu-cionadora a federalização ou a estadualização.Em face das dificuldades para a federalização,foi trabalhada a estadualização que só se efeti-vou em 1991. Para Ubaldo Dantas, prefeito deItabuna, patrono da turma de formandos de 1988,“só resta à Fespi a hipótese de estadualização,já que o presidente Sarney foi muito enfático(...), ao afirmar que existem pedidos mais anti-

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gos e influentes” (A TARDE, 5 fev. 1988).Nesse sentido houve gestões no governo Wal-dir Pires (1987-1989) para encaminhar a solu-ção para greve e mudança na direção da Fespi.

O governo estadual assumiu os ônus finan-ceiros da manutenção da Fespi, conforme com-promisso político e dispositivo da Constituiçãoda Bahia de 1989. Posteriormente veio a esta-dualização da Fespi e sua transformação emuniversidade, quando reitor Altamirando Mar-ques. O governador Antônio Carlos Magalhães,em 1991, enviou projeto de lei à AssembléiaLegislativa propondo a estadualização. A Fespioferecia àquela época os cursos de Direito, Li-cenciaturas em Ciências, Filosofia, Letras, Pe-dagogia, Estudos Sociais, Administração,Ciências Econômicas e Enfermagem (A TAR-DE, 31 out. 1991). A Uesc obteve o credenci-amento pelo Conselho Estadual de Educação,conforme parecer nº 089/99, relator conselhei-ro José Rogério da Costa Vargens.

Embora a Uesc incorpore a primeira e a maisantiga faculdade fora da capital, a Faculdadede Direito de Ilhéus e tenha funcionado antesda estadualização como Federação das Esco-las Superiores, a quarta e última universidadeda administração estadual instituiu-se apenas em1991. Dirigida pela reitora Renée Abagli No-gueira que soube exercer reconhecida lideran-ça. Completou-se, assim, o quadro das quatrouniversidades estaduais.

4. CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕESNo desenvolvimento científico e tecnológico

da Bahia, Uefs, Uesb, Uneb e Uesc têm tarefasa cumprir. Presentes em todo território baiano,formam professores para os sistemas de educa-ção estadual e municipal, e recursos humanospara a sociedade. As suas unidades estão locali-zadas em municípios, centros regionais que con-centram recursos humanos e materiais, bibliote-cas, laboratórios, professores e especialistas.Desenvolvem assim o ensino superior, a pesqui-sa, as mais variadas atividades comunitárias e agestão. As universidades representam ilhas dacultura moderna e funcional, no interior, capazes

de desencadear a gestão do conhecimento nasdiversas comunidades baianas. São núcleos im-portantes no presente e projetam para o futuronovas alternativas de formação como os progra-mas de mestrado e doutorado.

As quatro faculdades de formação de profes-sores, implantadas de 1968-1970, efetivaram amudança da política de educação superior do Es-tado da Bahia. Antes, as Escolas de Agronomia eMedicina Veterinária expressaram as necessida-des de formação do setor primário da economia.Com as Faculdades de Formação de Professo-res, voltou-se o Estado da Bahia para objetivoseducacionais com a implantação das licenciatu-ras curtas em Letras, Estudos Sociais, Ciências eMatemática. Em seguida, vieram as Universida-des que surgiram nas cidades sedes dessas facul-dades, como Feira de Santana (Uefs), Vitória daConquista e Jequié (Uesb), Alagoinhas (Uneb).

A administração estadual, por determinaçãodas forças locais, teve e terá de ocupar lugarde significativa importância, desde quando nãoconta a Bahia com recursos do governo fede-ral para a educação superior, como acontececom outros estados, a exemplo de Minas Ge-rais e Rio Grande do Sul, onde é bem mais ex-pressiva a presença do sistema federal de ensinosuperior.

A partir da década de sessenta, precisamen-te, com as Faculdades de Formação de Profes-sores, em 1968, até os anos noventa, com aUniversidade Estadual de Santa Cruz, em 1991,formou-se um sistema estadual de educaçãosuperior para responder às demandas do ensi-no, contando com recursos financeiros e orça-mentários do Estado da Bahia.

Em todo esse processo de construção daeducação superior, houve não somente a parti-cipação decisiva dos governos estaduais mastambém a contribuição pessoal dos governado-res. Antecedendo ou concomitantemente aosatos do poder público, destacam-se as lideran-ças locais, motivadoras e gestoras das imana-ções da coletividade que expressaram asnecessidades da educação superior como ma-triz formadora de profissionais para os siste-mas de ensino. Não pode haver educação eeducação de qualidade sem universidade.

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

DO CASTIGO AO PRÊMIO:CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E EDUCAÇÃO

NUMA COMUNIDADE DO INTERIOR (1940-1970)

Tânia Mara Pereira Vasconcelos*

RESUMO

Esse artigo se propõe a discutir concepções de infância e educação emSerrolândia, uma comunidade do interior da Bahia, dos anos quarenta aossessenta. Faz um histórico da relação entre as visões a respeito da criança eeducação, levando em conta ser a infância um conceito construídohistoricamente. Analisa discursos e práticas que refletem a mentalidade emrelação à criança, a partir da análise histórica da educação formal emSerrolândia. A escola aparece como uma das principais instituições que visamao adestramento da criança, sendo identificados três tipos: a escola particularrural, a escola paroquial e a escola pública. Apesar de serem organizadas deformas diferentes, em todas elas aparece o objetivo de moldar a criança,variando, no entanto, as formas utilizadas para alcançar este fim, sendo asprincipais delas: a repressão, através do uso dos castigos físicos, a religião e adisciplina moderna. As fontes utilizadas se constituem centralmente deentrevistas com pessoas que vivenciaram experiências como alunos (as) eprofessores (as) no período estudado, além de documentos escolares, comolivros de matrícula e assiduidade.

Palavras-chave: Infância – Escola – Repressão – Disciplina

ABSTRACTFROM PUNISHMENT TO REWARD: CONCEPTIONS OFCHILDHOOD AND EDUCATION IN AN INLAND BRAZILIANCOMMUNITY (1940-1970)

This paper aims to discuss conceptions of childhood and education in Serrolândia,an inland community in the state of Bahia (Brazil), from 1940 to 1970. Sincethe concept of childhood is historically constructed, the relationships betweenthe views of childhood and education are first put into historical perspective.An analysis of the formal education system in Serrolândia is then carried outthrough the speeches and practices reflecting the mental attitudes concerning

* Mestranda em História Social - USP. Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB - Campus V. Endereçopara correspondência: UNEB - Campus V - Loteamento Jardim Bahia, s/n, Centro – 44570-001 Santo Antonio deJesus/BA. E-mail: [email protected]

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

the child. Former students and teachers in the local school system during thetime span under study were interviewed, and school enrollment and attendancedocuments were examined. The school system was found to be one of themain institutions designed to child training in the community and three schooltypes were identified: the rural private school, the parochial school and thepublic (government-owned) school. Despite their different organizationalstructures, all of them were shown to shape the children’s behavior with varyingmethods, such as repression by means of physical punishment, religion andmodern discipline.

Keywords: Childhood – School – Repression – Discipline

CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E EDU-CAÇÃO: UM BREVE HISTÓRICO

No mundo ocidental, a infância vista peloolhar adulto, aparece como a fase das paixões,do predomínio do corpo sobre o espírito, do ins-tintivo sobre o racional. Daí a caracterizaçãopejorativa das coisas consideradas infantis. Ainferioridade da criança é parte de um pensa-mento fundado em hierarquias, no qual todosos seres são definidos a partir de valores dico-tômicos, associados ao bem e ao mal.1

Até meados do século XVII, a filosofia e ateologia manifestam um verdadeiro horror à in-fância. A associação da criança com o mal estápresente nos discursos de vários teólogos cris-tãos, sendo Santo Agostinho o principal repre-sentante desse pensamento que, segundoElizabeth Badinter (1985, p.55), teria inspiradooutros pensadores, exercendo uma forte influ-ência na pedagogia. Segundo essa concepção,“a criança é símbolo da força do mal, um serimperfeito esmagado pelo peso do pecado ori-ginal”. A Redenção passaria, necessariamen-te, pela luta contra a infância, vista como umestado negativo. A educação teria, nesse senti-do, o papel primordial de reprimir o que se con-siderava a natureza corrompida da criança.

Philippe Áries2 discute como o progresso dosentimento da infância está relacionado à trans-formação da escola e do colégio, “que na IdadeMédia eram reservados a um pequeno númerode clérigos e misturavam as diferentes idadesdentro de um espírito de liberdade dos costu-mes”, se tornando, no início dos tempos moder-

nos, instituições fechadas, nas quais as crian-ças passam a ser rigidamente disciplinadas eenclausuradas, com o propósito de afastá-lasdo mundo adulto. A escola passa a ter a preo-cupação de educar, tanto quanto instruir. Essastransformações, que se iniciaram por volta doséculo XIV, na Europa, se baseiam em duasnovas idéias: a noção de fraqueza da infância eo sentimento de responsabilidade moral dosmestres, que passam a ter também a função deinculcar virtudes, formar os espíritos (ÀRIES,1981, p.165-166). A vigilância constante e oscastigos corporais se constituem parte indispen-sável desse sistema disciplinar. Badinter (1985,p.56) observa que a palavra educação – quevem do latim educare e significa endireitar oque é torto ou mal formado – nunca foi tão jus-tamente utilizada.

No Brasil, o modelo de escola trazido peloscolonizadores refletia os princípios da Contra-Reforma. Todo o ensino estava sob a respon-sabilidade da Igreja e se destinava a um limita-

1 Com base nesse pensamento, desenvolvido a partir do séc.XVI, a criança é colocada no mesmo patamar de valoraçãoda mulher, do índio e do louco, que seriam opostos e inferi-ores ao homem branco adulto e cristão, considerado comoo sujeito humano universal na concepção da própria ciênciamoderna. (TODOROV, 1993).2 Esse autor foi pioneiro nos estudos históricos sobre acriança. Ao publicar A criança e a família no Antigo Regi-me, em 1960, discute a infância - considerada uma faseespecífica - como uma invenção moderna. Na Idade Média,o “sentimento da infância” era desconhecido, já que as cri-anças não viviam em um mundo à parte, separadas dosadultos, vestiam-se da mesma forma, participavam dosmesmos jogos, trabalhos e festas, mas eram excluídas desuas conversas. No mundo moderno a criança se torna ocentro da família.

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

do número de pessoas da elite dominante. Seuconteúdo caracterizava-se por um apego às for-mas dogmáticas de pensamento, pela revalori-zação da Escolástica, pela reafirmação da au-toridade e pela valorização da memória(ROMANELLI, 1999, p.33-34). No momentoem que esse modelo é transplantado para cá,muitos dos seus valores estavam sendo questi-onados na Europa. No entanto, podemos per-ceber sua permanência, em parte, até recente-mente em nosso país.

No século XIX, um novo ideal de criançacomeça a se configurar no Brasil. As políticassociais filantrópicas surgem aqui com base nosmoldes europeus. Desenvolve-se nesse momen-to um discurso em relação à assistência às cri-anças abandonadas, que se multiplicavam pe-las ruas dos grandes centros do país.3 MariaLuiza Marcílio (1998) analisa a passagem daassistência caritativa para a assistência filan-trópica, que trazia todo um ideal científico-bur-guês, responsabilizando o Estado pela assistên-cia caritativa às crianças. Em 1855, é criadoum Programa Nacional de Políticas Públicas vol-tado para a criança desvalida, que representoua primeira etapa da construção de uma assis-tência filantrópico-científica no Brasil. No finaldo século XIX, a Medicina e o Direito passama ocupar o centro das questões sociais, interfe-rindo como um poder legitimado nas questõesrelativas às crianças pobres. Surge o termo“menor”, como forma pejorativa de classificara criança desvalida4. “A infância se torna casode polícia”. Fundam-se, assim, grandes estabe-lecimentos totais de internamento e de segre-gação da sociedade para crianças e adolescen-tes carentes, com o objetivo de preparar ohomem higiênico, bom trabalhador, estruturar ocidadão normatizado e disciplinado. As causasapontadas pela autora para essas mudanças sãoprincipalmente a preocupação das elites com ofim da mão-de-obra escrava. “A filantropiaatraía as elites, pois acreditava-se que ela per-mitiria exercer um melhor controle sobre a so-ciedade.” (MARCÍLIO, 1998, p.206).

A Proclamação da República vem acompa-nhada de um discurso idealizador, opondo a ci-vilização – representada no imaginário republi-

cano pelo novo poder político que se instala – àbarbárie, associado ao velho, representado pelaMonarquia. Nesse contexto, é elaborada umanova imagem de criança, valorizada e repre-sentada como herdeira da República recém-ins-talada. Carlos Monarcha discute a construçãodesta imagem de criança pelos republicanospaulistas a partir da análise da arquitetura daescola normal da praça, em São Paulo:

Nesse momento histórico, representado como oAno 1 da nova era, o discurso republicano, ple-no de messianismo político, promove uma súbi-ta valorização da criança representando-a comoa herdeira da República (...). Para este ponto devista, cabe ao Estado exercer o papel de precep-tor dos novos, subtraindo-os no âmbito do pri-vado, familiar e afetivo e conduzindo-os para oâmbito do público, social e político. (MONAR-CHA, 1997. p. 119).

Apesar desse discurso que exaltava a cri-ança e o povo, o advento da República não trou-xe mudanças efetivas com relação à responsa-bilidade do Estado pela educação, que continuouconstituindo um privilégio das elites. Somentena década de trinta, com o incipiente desenvol-vimento industrial, a educação começa a fazerparte das preocupações governamentais.

Segundo Romanelli (1999, p.61), a nova re-alidade social surgida a partir dos anos trinta,levou a população, especialmente nas áreasatingidas pela industrialização, a exigir cada vezmais a democratização do ensino. No entanto,essa expansão ocorre de forma contraditória,uma vez que o sistema escolar passa a sofrer,de um lado, a pressão social da população e, deoutro, o controle das elites, que buscavam “con-ter a pressão popular pela distribuição limitadade escolas, e, através da legislação do ensino,manter o seu caráter elitizante.”

3 Walter Fraga Filho analisa o crescente papel do Estado, noséculo XIX, no controle sobre os meninos que viviam nasruas de Salvador, o qual se baseava num discurso que coloca-va a infância como uma fase propensa à vadiagem (1996, p.127).4 Fernando Torres Londoño analisa a história do termo“menor” no Brasil. Inicialmente utilizado apenas para sereferir aos limites etários, este termo adquire um carátermoral a partir do século XIX, passando a ser associado àfigura do delinqüente (1996, p. 129-145).

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

O movimento escolanovista5, que se colocoucomo crítico da escola tradicional, surgiu no Bra-sil na década de 1920, tendo influenciado algumasreformas do ensino público, contribuindo para asua expansão. Suas idéias expressaram-se demaneira clara em 1932, no Manifesto dos Pionei-ros da Educação, que teve como principais signa-tários: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira eLourenço Filho. As principais propostas contidasno documento foram: ênfase para a educaçãopública, a escola única e a co-educação, a gratui-dade e a obrigatoriedade do ensino elementar, alaicidade, a descentralização do sistema escolar,renovação na metodologia a partir do uso da psi-cologia na educação. (ROMANELLI, 1999).

Esse movimento teve uma grande influência naexpansão do ensino. No entanto, as transforma-ções pedagógicas propostas por ele não chegarama se concretizar no sistema escolar brasileiro comoum todo. A maioria das escolas permaneceu comum ensino tradicional, distante da realidade da po-pulação que passou a freqüentá-las.

A ESCOLA EM SERROLÂNDIASerrolândia é um pequeno município do in-

terior da Bahia6, localizado no Piemonte daChapada Diamantina, a 319,9 Km de Salvador,no sertão da região Nordeste brasileira.

Levando em conta ser a infância um con-ceito construído historicamente, procuraremosanalisar, nessa sociedade, discursos e práticasque refletem visões a respeito da criança, re-presentadas na escola.

A partir da análise dos depoimentos grava-dos, classificamos a instituição escolar em Ser-rolândia, no período estudado (1940 a 1970), emtrês tipos: a escola rural particular, a escola pa-roquial e a escola pública. A diferença entre elasse encontra principalmente na sua forma de or-ganização e não na essência da sua pedagogia.

1. A Escola Rural ParticularA escola rural particular surgiu. provavel-

mente, com a finalidade de atender às necessi-

dades de aprender a “ler, escrever e contar”daquela comunidade, numa época em que oEstado não assumia nenhuma responsabilidadecom a educação. Não nos foi possível precisara data do seu surgimento, sendo provável quetenha ocorrido logo após a chegada dos primei-ros habitantes.7 Funcionava em casas de famí-lia, a partir da união de vizinhos, que contratavamum professor para dar instruções elementaresaos filhos, geralmente por um curto período quefosse suficiente, na visão do professor, para queos alunos se “alfabetizassem” e aprendessema fazer “alguns tipos de contas”. O professor,na maioria das vezes, era leigo e tinha sido ins-truído por esse mesmo sistema.

Seu José dos Santos Filho, agricultor apo-sentado, que nasceu em 1924, freqüentou a es-cola na adolescência, por um período deaproximadamente cinco meses. Como era con-siderado um aluno inteligente, depois dessa for-mação, já pôde se tornar professor, passando areproduzir o mesmo ensino:

Quando eu também passei a ser professor parti-cular (...) Da maneira que eu aprendi, que eu viaos professor ensinar, dessa maneira também euensinava...

Parece-nos que a reprodução desse modelode escola em Serrolândia perpassou muitas déca-das, não desaparecendo com a chegada da esco-la pública. Exemplo dessa permanência, é o casode Seu Edivaldo da Cunha, pequeno proprietáriorural, que por volta de 1961, aos dezessete anos,freqüentou uma escola rural, com uma metodolo-gia semelhante à descrita por Seu José Filho:

5 Este movimento surgiu no século XIX, na Europa, combase nos princípios liberais, propondo novos caminhos paraa educação que se encontrava em descompasso com o mun-do no qual se achava inserida. Sua pedagogia colocava acriança como o eixo do processo pedagógico, vista nãomais como um “adulto incompleto”, mas como alguém quenecessitava ser atendida nas suas especificidades. Rousseaué considerado o seu principal precursor (ROMANELLI,1999).6 Serrolândia foi fundada no início dos anos quarenta comopovoado de Serrote, pertencente ao município de Jacobina.Tendo sido emancipada em 1962 (REIS, 1994), a sua popu-lação, segundo dados do Censo Demográfico do IBGE, erade 12.616 habitantes em 2000, sendo que 52% residia nazona rural. IBGE.7 De acordo com Diomedes Reis o povoado começou a seformar em 1929 (1994. p. 16).

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Tânia Mara Pereira Vasconcelos

... aí quando eu fui pra outra escola eu tinhadezessete anos, era uma légua (...) Aí Nivaldomeu irmão, botava a farofinha na sacolinha. Depés, e era o dia todinho, estudando o dia todo, aífoi mais ou menos cinco meses e terminou a es-cola. Agora num tinha esse negócio... nunca fizprova, era só aqueles livros velhos. O livro quemeu pai aprendeu, meu irmão mais velho apren-deu, eu aprendi, era o mesmo livro. Aquele livroantigo. (...) Os livros ensinava a ler, escrever efazer conta. Nesses cinco meses eu aprendi qual-quer coisa e saí sabendo fazer três tipo de conta,só nesses cinco meses, porque estudava mes-mo e tinha que ler e fazer conta e num era essenegócio... fazia mesmo.

A falta de acesso a uma escola mais próxi-ma, obrigava grande parte dos alunos a percor-reram longas distâncias, na maioria das vezes apé. Como a principal finalidade dessa escolaparece-nos ser a de ensinar o aluno a “ler, es-crever e fazer contas”, diante das dificuldadesencontradas, ela deveria ser abreviada ao má-ximo, daí o seu caráter intensivo, funcionando odia inteiro por um período de cinco meses ape-nas. A idéia de seriação era ignorada, uma vezque a forma de organização do ensino era ba-seada na seqüência dos livros e não em séries,não havendo nenhuma preocupação com a se-paração das idades, como aparece no depoi-mento de Seu Edivaldo: “Quem tava no ABCera tudo junto com quem já tava no segundo eterceiro (...) tinha moça, tinha rapaz, tinha pe-queno...”

A indiferença em relação à idade dos alu-nos nos indica uma certa ausência, por partedessa escola, do sentimento moderno de in-fância, ou seja, a falta de noções de psicologiainfantil, que distinguem as várias fases da cri-ança, segundo às quais a sua aprendizagemdepende do nível de desenvolvimento em quese encontra.

Philippe Áries (1981, p.173) destaca a rari-dade, nos textos medievais, de referências àidade dos alunos, o que indica uma indiferençaà idéia de idade na Europa nesse período. So-mente no século XVI, se inicia lentamente noscolégios a separação das idades, com a criaçãodas classes escolares. “Esse processo corres-pondeu a uma necessidade ainda nova de adap-

tar o ensino do mestre ao nível do aluno.” Essadistinção das classes, segundo o autor, indicauma conscientização da particularidade da in-fância.

Na escola rural que estamos analisando, aausência da distinção de idades se reflete tam-bém na pedagogia utilizada, que tinha como basea repetição do conteúdo dos livros que eramestudados em seqüência. A progressão do alu-no se baseava na seqüência dos livros e nãodas séries. Vejamos os depoimentos de Seu JoséFilho e Seu Edivaldo a respeito disso:

Primeiro ia estudar o ABC, depois vinha a cartilha,depois da cartilha era o primeiro livro (...) aí noterceiro livro eles achava que a pessoa já tavapronta...

Tinha lição, agora tinha o seguinte: se você qui-sesse estudar um livro todinho numa semana,você deixava aquele. Agora tinha que ler aqueletodinho e recordar, se você quisesse dar duas,três ou quatro lição por dia cê dava (...) vocêestudava de acordo sua inteligência.

A lição talvez fosse o parâmetro utilizadopara medir o nível de “inteligência” dos alunos.Como, segundo o depoente, não se faziam pro-vas, o critério de avaliação, para que o alunopudesse alcançar um outro estágio, era conse-guir fazer a leitura seqüenciada das “lições” deum determinado livro, e assim, poder “passar”para outro. O que se chamava de “estudar alição” consistia em conseguir memorizar o tex-to indicado pelo professor. Nesse sentido, a in-teligência é confundida com capacidade dememorização. Vejamos o depoimento de SeuAlexandre Argemiro dos Santos, pequeno pro-prietário rural, outro ex-aluno e ex-professor daescola rural sobre a “lição de cór”:

Porque a gente tem a lição e depois da lição temum questionário, né? O questionário. Então vaiquestionar a... algumas palavras da lição anteri-or pra ver se o aluno meditou aquela historinha,se ele estudou. Se ele estudou a historinha dopassarinho, chamava o canarinho, lá adianteperguntava: “Como chamava o passarinho?” Aíele vai dizer que é o canarinho fulano de tal (...)eu gostava muito de lição de cór. Sempre eu gos-tava nisso, porque a gente meditava e desafia-va, porque depois vinha a sabatina né?

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

Parece-nos que não havia nenhuma preo-cupação com o tipo de conteúdo transmitido,sendo importante apenas a capacidade de me-morização do aluno. A sabatina era o principalmétodo utilizado para verificar a assimilação dosconteúdos, durante quase todo o período estu-dado e em todos os tipos de escola, o que refle-te a permanência de uma pedagogia tradicionaltrazida pelos Jesuítas no período colonial e quese manteve até o século XX. O incentivo à com-petitividade entre os alunos devido ao “desa-fio” que ela representava é defendido pelodepoente que, por ser considerado um aluno “in-teligente” batia mais que apanhava. As “vanta-gens” da sabatina como um bom método deensino, são ressaltadas pelo depoente, que pro-cura demonstrar também a utilidade da misturade alunos de séries diferentes numa mesmaclasse:

E sabatina é boa porque quando você chamavao aluno pra fazer, os outro já... já aprendia algu-ma pergunta ali aquele que respondia. Quando omenino chegava na segunda série, você acredi-ta que o aluno já tava muito inteligente porquevia os outro ali estudar, responder de cór. Elesaprendia, tá entendendo? Isso era muito impor-tante. Como eu aprendi, muitos aprenderam.

É interessante notar a naturalidade com queos entrevistados tratam a sabatina. Embora al-guns alunos falem do medo que ela lhes trazia,nenhum deles questiona esse método. Fenôme-no semelhante acontece com a naturalizaçãodo uso dos castigos corporais na escola, consti-tuindo-se parte de uma mentalidade a respeitoda infância que vê a criança como um ser im-perfeito, que necessita de um penoso trabalhode adequação ao mundo adulto.8 O uso doscastigos era parte essencial de uma pedagogiaque impunha a “aprendizagem” e o “bom com-portamento” através do medo. De todos os en-trevistados, Seu Alexandre, ex-professor daescola rural particular e da escola municipal, éo maior defensor desse sistema.

Aí o povo sabia que eu era um... um professormuito rígido, tá entendendo? Porque meus alu-no tinha que estudar mesmo, e então tinha réguae tinha palmatória sim! Precisando a palmatória ea régua... mas eu não executava muito, mas só o

medo que eu fazia: “Ói, quem num dá a lição hojeaqui ó, Maria Chiquinha!” Que era o nome dapalmatória, tá entendendo? E a régua Maria docabo comprido: “Ó qui Maria do cabo comprido,cuidado!”(...) E os alunos... é com aquele tipo demedo que eu fazia eles aprendia e dava lição.

Seu Alexandre se orgulha do seu método deensino extremamente rígido, defendendo vee-mentemente a “pedagogia do medo”. A impor-tância dos castigos físicos, segundo a suaconcepção, não está apenas em punir o alunoque erra, mas na internalização do medo porparte da classe. Não era necessário “execu-tar” muito, uma vez que os alunos já tinhamconsciência da possibilidade de serem punidosa qualquer momento.

Percebemos em seu depoimento uma espé-cie de ideal civilizador, uma vez que coloca seupapel de professor como um destino, uma es-pécie de “missão redentora”. Vejamos algunstrechos que expressam esse ideal:

...eu sempre dizia: não vou ficar neste trabalho.Eu vou estudar e vou ser um professor. Isso erameu destino (...) mas eu nunca quis ir pro Esta-do, eu dava valor muito à escola particular, queeu botei na cabeça que eu ia estudar pr’eu serum professor, procurando onde não tinha alu-nos... aonde não tinha escola, aonde não tinhaescola. Ah! O meu desafio era este (...) porqueeu saía daqui, as fazenda nunca tinha escola, aíeu mudava.

Sua preferência pela escola particular, es-pecialmente em lugares onde não houvesse es-cola, provavelmente se deve ao fato de não terque se submeter a nenhuma regra de caráterinstitucional, tendo a aprovação dos pais para“executar” os castigos que considerava indis-pensáveis à uma boa “aprendizagem”. Outromotivo dessa preferência, é que nesse tipo deescola o professor Alexandre se consideravamais valorizado pelos pais dos alunos, inclusivefinanceiramente.

Nessa sociedade rural a relação entre o pro-fessor e os pais dos alunos era muito importan-

8 Em artigo publicado anteriormente faço uma discussãomais aprofundada sobre o valor da criança, analisando re-presentações da infância ao longo da história. (VASCON-CELOS, 2001, p. 54-75).

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te e ia além do âmbito escolar, uma vez que aspróprias aulas aconteciam na casa de uma dasfamílias, o professor fazia suas refeições tam-bém em uma das casas, o que pressupõe o es-tabelecimento de certos laços.

Parece-nos que a relação do professor particu-lar com os pais se baseava numa certa cumplicida-de, uma vez que os dois tinham a função de “educar”a criança, para que esta pudesse se tornar um adul-to socialmente adequado. Para o professor Ale-xandre, era imprescindível uma conversa com umdos pais do aluno no momento da “matrícula”, paraque ficassem estabelecidas as regras da relaçãoentre o professor e os alunos:

...pra eu tomar o nome do aluno tinha que vim acom-panhado com o pai, ou com o pai ou com a mãe. (...)Aí eu conversando mais ele: “Seu Antuzo, eu gos-to que o pai ou a mãe venha porque se o alunodesobedecer e eu passar um bolo nele ou dar umcastigo ele pode chegar em casa chorando (...). Equalquer coisa que o senhor não achar bom, aí osenhor diz: ‘Oh, Alexandre, meu aluno vai estudar,agora se merecer o senhor não vai bater’. Eu nãoaceito, porque vai dar mal exemplo aos outro”.

Parece-nos que os pais não tinham muitaescolha, mas provavelmente havia os que seposicionavam ao lado do filho, não admitindo oscastigos do professor, já que o depoente levan-ta essa hipótese. No entanto, nos parece que amaioria deles era a favor do uso dos castigosfísicos como o “melhor remédio” para a crian-ça ser “educada”, uma vez que a própria rela-ção entre pais e filhos geralmente se baseavatambém no autoritarismo. A figura do profes-sor é, dessa forma, comparada à figura do pai:

Eu mais o pai combinava assim: estando na casado pai era o pai, estando na minha casa o pai eraeu. Então... eu nunca bati um menino de chegar eo pai vim contra mim, dizer: “Alexandre, porquevocê bateu meu filho?” Não, eles dizia assim:“Você bateu pouco (...) que o professor é umpai” (...) Porque eu conversava e ficava bem ex-plicado e ele ia pagar o dinheiro, como pagava, epagava era pra estudar e não pra brincar.

A cumplicidade entre pais e professor na“educação” da criança se baseia numa concep-ção tradicional, segundo a qual para o seu bemé necessário exigir-lhe sacrifícios, corrigi-la nos

mínimos erros. Mary Del Priore (1999, p.97)comenta a naturalidade dos castigos físicoscomo forma de educar as crianças, no períodocolonial. “A correção era vista como uma for-ma de amor.” Nos sermões dos padres jesuítaso mimo dos pais, e principalmente das mães paracom os filhos, era combatido e considerado comoo responsável pelos desvios de conduta. A par-tir da segunda metade do século XVIII, com ainstituição das Aulas Régias, a palmatória pas-sa a ser o principal instrumento de correção.

A permissão dos pais para que o professorpudesse bater em seus filhos se baseava nessemesmo pensamento. A questão financeira re-forçava essa cumplicidade, já que os pais nãopoderiam se sacrificar para pagar a escola dofilho se todo o tempo não fosse aproveitado deforma séria: “estudar e não brincar”. O profes-sor deveria prestar conta do seu trabalho, mos-trando os resultados, ou seja, o adestramentoda criança. Para isso, o professor Alexandrevisitava todos os meses os pais dos alunos:

Como eu fazia visita aos pais (...) o professor iadormir na casa de fulano, pra saber a obediênciado aluno, se melhorou lá com os pais, se ele tavasendo obediente, se ele tava achando diferençada escola. Se depois que ele colocou na escola,se o aluno tava adiantado (...) ele tinha que leruma historinha e papai tinha que escutar, prasaber se o dinheiro que ele estava pagando seera bem pago.

Mais uma vez aparece o “ideal civilizador”da escola. A função de disciplinar a criança eraconsiderada talvez mais importante que a deinstruir, daí a necessidade da vigilância cons-tante do professor, que não se restringia ape-nas ao momento das aulas. O controle disciplinarestabelecido sobre os alunos se estendia tam-bém à hora do recreio, na qual estes não podi-am sequer escolher as suas brincadeiraspreferidas, sendo controlados pelo professortodo o tempo:

A brincadeira da gente não era a brincadeira derecreio, de pular. Tinha o campinho de bola. (...)Eu achei que era bonito demais os aluno tudopra fazer gol, tá entendendo? As mulheres ia fa-zer rodinha de verso, mas eu num aceitava... elastinha que saber qual é a brincadeira, já me dizer:

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

“professor eu vou... a nossa brincadeira hoje éessa.” Aí eu já escrevia: brincadeira fulana detá... da série fulana, sicrana, sicrana e se numbrincasse eu mandava sentar no fundo lá da sala.E se fosse brincar tudo, aí eu ficava corrigindoas brincadeiras, quem brincava certo, quem não.(...) Eu estava corrigindo o recreio.

A vigilância também se estendia ao “re-creio”. É provável que a preferência do pro-fessor pelo jogo de futebol se deva à possibili-dade de exercer uma maior disciplina sobre oscorpos, mesmo fora da sala de aula. No casodas meninas era necessário que o professorestivesse informado sobre o tipo de brincadei-ra, que deveria ser apenas uma para cada sé-rie, para que assim ele pudesse controlar me-lhor os passos dos alunos. Se cada pequenogrupo escolhesse uma brincadeira diferente,poderia se dispersar, fugindo do olhar vigilantedo professor.

Segundo Michel Foucault (1979, p.218), avigilância constante se constitui uma das for-mas principais de exercer o poder disciplinar.“Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-opesar sobre si, acabará por interiorizar, a pontode observar a si mesmo.” Esse poder age dire-tamente sobre os corpos procurando tirar deleso máximo de produtividade, através do ades-tramento.

A escola que estamos analisando se distan-cia do que Foucault define como um aparelhodisciplinar moderno, uma vez que o poder disci-plinar, diferente da simples repressão, se impõede forma sutil, quase imperceptível, o que nãocorresponde à realidade de uma escola em queos castigos físicos são a base da pedagogia. Noentanto, ao compararmos as descrições conti-das nos depoimentos sobre a escola rural parti-cular, percebemos que a escola do professorAlexandre se diferenciava das anteriores porse aproximar mais do caráter institucional daescola moderna, fazendo parte do seu métodode ensino alguns dispositivos disciplinares. Éprovável que essa diferença seja devido à in-fluência da formação recebida por ele comoprofessor também da escola pública.

Em sua escola, apesar de funcionar tambémo sistema de classes multisseriadas, havia certa

preocupação com a separação das idades e dasséries. Ele afirma que classificava os alunos,separando os mais jovens dos mais velhos, emdiferentes turnos. Além da tradicional “lição decór” e do uso da sabatina, havia também a ava-liação em forma de provas, inexistentes no estu-do intensivo dos outros depoentes. A média detempo que o aluno freqüentava a escola era dequatro anos, sendo o primeiro ano destinado aoABC e cartilha (fase considerada no ensino tra-dicional como alfabetização) e os três seguintescondensavam da primeira à quarta série. O ob-jetivo do ensino, dessa forma, não se limitavaapenas a levar o aluno a ler, escrever e contar.Havia também uma grande preocupação com aformação moral do educando. A escola aparececomo responsável pela formação do caráter.Nesse sentido, a necessidade do conhecimentoindividual do aluno se fazia necessária, daí a im-portância das visitas aos pais. A preocupaçãocom a vigilância constituía-se, assim, imprescin-dível para a disciplinarização do educando.

A chegada de mudanças pedagógicas naescola pública, que, segundo o depoente, ocor-reu por volta de 1970, determinando o fim doscastigos físicos, levou-o a deixar a instituição:

Tem grande diferença. Quando veio a reformado ensino, que a gente pegou o treinamento (...)Esse período de reforma do ensino, que mudou.Aí eu digo: oh pró, com Dolores, eu não vouensinar escola mais pública. Eu vou ensinar ondeos pais queira que tenha execução nos aluno...

A citada reforma do ensino, era provavel-mente baseada no ideal escolanovista, que ana-lisaremos adiante.

2. A Escola ParoquialA escola paroquial foi fundada no povoado

de Serrote, em 1941, trazida pelo Padre alemãoAlfredo Hasller, que ficou muito conhecido naregião de Jacobina como um “grande catequi-zador,” tendo fundado escolas em toda a mi-cro-região. O ensino era gratuito. As professo-ras eram formadas e vinham de fora, ficandohospedadas em casas de pais de alunos. Essaescola permaneceu no Povoado até 1951.

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Alguns depoentes nos informaram que, du-rante o período em que funcionou, a escola pa-roquial era a única existente no povoado,funcionando com uma única sala de aula, nosturnos matutino e vespertino. Dessa forma, aca-bava substituindo o Estado, numa época em quese propagava no Brasil a idéia de uma “educa-ção para todos”. Provavelmente, nos pequenospovoados como Serrote, o ideal dos reforma-dores escolanovistas estava muito longe de seconcretizar. Por conta disso, o Pe. Alfredo,como fundador das escolas paroquiais, que ofe-reciam ensino gratuito, se tornou quase um mito.A importância da escola paroquial no Povoadode Serrote é ressaltada por um ex-aluno, Flori-valdo Magalhães Souza, comerciante aposen-tado, que afirma: “Se não fosse Padre Alfredo,isso aqui só tinha analfabeto”.

O fato de a escola paroquial oferecer umensino gratuito poderia ser um motivo para atraira população mais pobre, como nos afirmou D.Elisa de A. Moreira, professora aposentada eex-aluna: “Era a única escola que tinha, vinhamenino da roça (...) estudava todo mundo, po-bres e ricos”.

No entanto, a extrema organização e rigi-dez da escola, comentada por todos os depoen-tes, talvez trouxesse exigências impossíveis deserem cumpridas por famílias mais pobres. Po-demos comparar os depoimentos de D. Elisa,ex-aluna e Seu Alexandre, que afirmou não tertido condições de freqüentá-la:

Farda branca com gola marinheiro, gravata. Afarda era alinhada e todo mundo tinha que ir praescola de farda e sapato... (D. Elisa)

...quando eu peguei a estudar eu não tinha con-dições de ir para a escola paroquial porque eunão tinha condições de comprar fardinha e Pa-dre Alfredo tinha a fardinha. (Seu Alexandre)

O livro era comprado, uma dificuldade! Tinhaque mandar buscar em Jacobina, em Senhor doBonfim (...) Todo mundo tinha livro. Livro, ca-derno, lápis de cor. (D. Elisa)

O caráter institucional dessa escola, distan-te da realidade de uma população rural caren-te, talvez fizesse com que alguns pais preferis-

sem a escola rural particular, mesmo sendo paga,com professores conhecidos, próximos da suarealidade, como no caso dos pais de Seu Ale-xandre.

Como parte das exigências da escola pa-roquial, a pontualidade e a higiene eram requi-sitos indispensáveis aos alunos: “Tinhadisciplina mesmo e o horário, era horário bri-tânico, tinha que chegar na hora e sair na hora(...) todo mundo de unha cortada e cabelo pen-teado...” (Seu Florisvaldo)

A preocupação com a pontualidade e a higi-ene é parte de um ideal moderno civilizador quevisa a disciplinar a população, interferindo noseu cotidiano, procurando, assim, modificar há-bitos e costumes. A disciplina da escola paro-quial, enfatizada pelo depoente, era bastanterígida, fundamentando-se numa moral religio-sa. Os castigos, como na escola rural particu-lar, eram muito freqüentes, se constituindo abase da pedagogia. A sabatina era o principalmeio de verificação da assimilação dos conteú-dos. A ex-aluna Elisa destaca a freqüência doscastigos físicos e a importância da memoriza-ção nessa escola:

Por qualquer coisa apanhava, era uma coisa im-pressionante, as professoras batiam mesmo (...)Botava de castigo se num desse a lição. Tinhaque aprender a lição de cór (...) tinha que apren-der de cór e salteado, e a professora perguntavae tinha que responder ali, sem faltar uma vírgula.

A prova era a principal forma de “medir” aaprendizagem do aluno. Nessa escola, ela erafeita de duas maneiras: escrita e oral, uma ser-via para atestar a validade da outra: “pra ver seo aluno pescou”.

A desconfiança na validade da prova escri-ta, por parte das professoras, indica a existên-cia de formas, encontradas pelos alunos, deburlar a vigilância e conseguir “pescar”. A ên-fase na memorização dos conteúdos, sem a pro-mover a reflexão, é característica dos dois tiposde prova. D. Elisa consegue se lembrar aindahoje, de conteúdos que teve que decorar naépoca da escola:

Aí a professora perguntou o que era civilidade.Mas menino! Eu não soube responder na prova

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

escrita (...) Aí minha mãe disse: “Quero ver se tunum vai aprender pra responder na prova oral,que ela vai perguntar, você vai ver.” Pois foi ditoe certo! Ela perguntou, aí eu respondi certinho:“Civilidade é o conjunto de formalidades usadana sociedade pelas pessoas bem educadas, tam-bém tem o nome de cortesia e boas maneiras,consiste em tratar com amabilidade as pessoasmais humildes e com... (...) esqueci... as mais exal-tadas.” (...) Marcou! Oh menina, ficou... e eu sa-bia. Mas era uma pressão tão grande que os pro-fessores faziam. Dava a prova e marcava tantosminutos...

Diferente da “historinha do canarinho” daescola de Seu Alexandre, exigir do aluno quesoubesse “de cór e salteado” o que é civilidade,talvez tivesse muita importância dentro dos ob-jetivos da escola paroquial. A idéia de formarum “cidadão civilizado”, católico, cumpridor dosseus deveres, enfim, normatizado e disciplina-do, certamente fazia parte dos objetivos dessaescola. O conceito de civilidade, que ficou gra-vado na memória de D. Elisa, reflete o caráterelitista do ensino católico tradicional. A distin-ção entre o tratamento que deve ser dispensa-do às pessoas mais humildes e às mais exaltadasindica, de certa forma, a justificação e a natu-ralização das diferenças econômicas.

Podemos perceber também, nesse depoi-mento, a pressão psicológica a que estavamsubmetidos os alunos sujeitos a esse tipo deavaliação. Segundo Foucault (1999, p. 154), “oexame combina as técnicas da hierarquia quevigia e as da sanção que normaliza.” Ele exer-ce o seu poder ao estabelecer sobre os indiví-duos uma visibilidade que permite diferenciá-los.Na escola moderna, o exame tornou-se umaforma privilegiada de impor a disciplina, porpermitir ao mestre levantar um campo de co-nhecimento sobre os alunos, podendo, assim,classificá-los hierarquicamente. A escola exa-minatória marca o início de uma pedagogia quefunciona como ciência.

A disciplina da escola paroquial era calcadaem princípios religiosos. Além de haver o ensi-no religioso nas aulas, os alunos deveriam sernecessariamente católicos, freqüentando todasas missas e participando da catequese. Haviaum grupo denominado Cruzada, do qual D. Eli-

sa fazia parte. No depoimento abaixo, ela falada sua importância:

Tinha oração (na escola), iniciava com oração eencerrava com oração (...). Tinha catequese, ti-nha missa e tinha um grupo, eu mesmo era dogrupo (...). A Cruzada era um grupo de alunosque tinham responsabilidade de distribuir folhe-to. (...) se tinha o pai de um aluno doente, qual-quer coisa a gente dava notícia à professora...Era como um grupo de evangelização.

Parece-nos que esse grupo tinha uma fun-ção disciplinar, que funcionava como uma es-pécie de vigilância, atuando, de certa forma,como intermediário da relação escola-comuni-dade, mantendo as professoras sempre infor-madas sobre a vida das famílias dos alunos. Ahierarquia era fundamental nesse sistema dis-ciplinar. D. Elisa comenta os critérios de esco-lha desses alunos:

Através do comportamento... mais comportado(...) era oração, um ajudava o outro... É uma ir-mandade, entendeu? Depois disso, quando agente saía da Cruzada, que passava... que lá éaté a adolescência, né? No final da adolescênciaas meninas iam ser filhas de Maria, aí já mudavaa cor da fita, a fita já era vermelha...

A Cruzada provavelmente se constituíacomo uma elite dentro da escola. O distintivoutilizado por esse grupo, a fita azul com a me-dalha, se modificava à medida que o grupo atin-gia uma outra faixa etária. É provável que oque diferenciasse esse grupo do restante dosalunos fosse sua maior adequação à disciplinadesejada pela escola.

Os alunos da escola paroquial, eles eram prepa-rados (...) A gente na época da Semana Santa,jejuava os três dias. (...) a turma que era da Cru-zada não tomava café, ia pra escola, lá pra o sa-lão e depois os pais mandavam o café, a gentetomava café já era tarde... (D. Elisa)

O sacrifício religioso aparece como maisuma forma de diferenciação dos alunos da Cru-zada. A dimensão religiosa dessa escola estárelacionada a uma visão de infância que ideali-za a criança como um ser puro e inocente. Esseideal nos remete ao mito da criança-santa, dis-cutido por Mary Del Priore (1996, p.11-15).Segundo a autora, no Brasil, os jesuítas foram

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responsáveis pela elaboração dos primeirosmodelos ideológicos sobre a criança. Na Euro-pa, ao longo do século XVI, fabricou-se a de-voção ao menino Jesus. O sentimento devalorização da criança, a partir daí, esteve pre-sente nos discursos dos jesuítas que, na inten-ção de evangelizar os habitantes do “Novomundo” davam preferências às crianças, con-sideradas como “o papel branco”, a “cera vir-gem”, mais propensos a aceitar os ensinamentosreligiosos católicos do que os adultos. Nessesentido, a infância é percebida como um mo-mento oportuno para a catequese. Com basenesse ideal, se formaram os primeiros colégiosdo Brasil colonial.

Municiados por um regime de normas a subme-ter a criança, os jesuítas ajudaram a fazer a pas-sagem entre a escola da Idade Média e o colégiodos tempos modernos, substituindo a instruçãotécnica atabalhoadamente dirigida a jovens evelhos, por uma formação social e moral rigida-mente hierarquizada. (PRIORE, 1996, p. 14).

A disciplina escolar teve origem na discipli-na eclesiástica, sendo os jesuítas os primeiros achamar a atenção para a especificidade infan-til. Segundo Áries (1981, p.191), “ela era me-nos um instrumento de coerção do que deaperfeiçoamento moral e espiritual e foi adota-da por sua eficácia por que era a condição ne-cessária do trabalho em comum”.

A partir das análises de Michel Foucault(1979, p.187), foi possível pensar a disciplinacomo um novo tipo de poder, uma das grandesinvenções da sociedade burguesa. “É um tipode poder que se exerce continuamente atravésda vigilância”. As disciplinas têm como princi-pal objetivo a normatização, através do ades-tramento dos corpos. A punição no sistemadisciplinar funciona através do mecanismo gra-tificação-sanção.

A divisão segundo as classificações ou os graustem um duplo papel: marcar os desvios, hierarqui-zar as qualidades, as competências e as aptidões;mas também castigar e recompensar. (...) A disci-plina recompensa unicamente pelo jogo das pro-moções que permitem hierarquias e lugares. (...) Opróprio sistema de classificação vale como recom-pensa ou punição. (FOUCAULT, 1999, p.151).

Podemos identificar na escola paroquial deSerrote um sistema disciplinar baseado na hie-rarquização, através de promoções e brindes:

Final do ano assim, Pe. Alfredo trazia, fazia brin-de, alunos que mais destacavam ganhavam (...)Tinha primeiro lugar, segundo lugar (...) Era pe-las notas, somava comportamento também, viu?Mais quase... o comportamento dos alunos naescola era bom, porque a escola paroquialcatequizava mesmo. Era difícil ter um aluno insu-bordinado na sala de aula, num tinha.(...) Todomundo entrava ali, era o mesmo comportamento,como se estivesse na Igreja... (D. Elisa)

Para a depoente, o “bom comportamento”era conseqüência da catequização, que atingiaa todos. Apesar dos dois ex-alunos que entre-vistamos não se lembrarem de haver “insubor-dinação” por parte dos alunos, através dadocumentação escrita foi possível perceber queessa disciplinarização não era assim tão hege-mônica, nem pacífica.

Nos livros de matrícula a que tivemos aces-so, correspondentes a nove anos, foram encon-trados o registro de dez casos de expulsão dealunos por “desobediência” ou “insubordina-ção”, o que indica ser este um fato muito pre-sente nesta escola, especialmente entre os anosde 1944 a 1947. É significativo um caso de 1944sobre a expulsão de um aluno por desobediên-cia. Em seguida seus três irmãos deixaram aescola em protesto à essa expulsão. Este fatonos indica uma certa revolta por parte dos alu-nos e talvez dos próprios pais, contra a excessi-va rigidez da escola. A partir de 1948 estes casosnão aparecem nos registros, o que nos leva apensar em duas hipóteses: teria havido a partirdesse momento um maior afrouxamento da dis-ciplina, ou os alunos se adequaram a ela, tendosido realmente “catequizados”, como supõe adepoente Elisa. A segunda hipótese nos parecemenos provável, pois não acreditamos na pos-sibilidade da disciplina se impor de tal forma aponto de não haver resistências.

A escola paroquial tinha uma interferênciadireta na vida da comunidade. A figura do Pe.Alfredo, diretor das escolas paroquiais e líderdo catolicismo na região, era extremamenterespeitada, exercendo talvez uma influência

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Do castigo ao prêmio: concepções de infância e educação numa comunidade do interior (1940-1970)

maior que a do Estado. Suas funções ultrapas-savam muito as sacerdotais:

Ele trabalhava em prol da comunidade. No lugarque tinha escola paroquial ele era de parteiro ajuiz. Freqüentava, visitava, conhecia todo pai...conhecia todo mundo, num é? E ajudava a to-dos... e ele receitava, ele trazia remédios, medica-mentos... (D. Elisa)

Mais uma vez podemos perceber a vigilân-cia hierárquica, que ultrapassava os limites daescola, atingindo toda a comunidade. As múlti-plas funções exercidas pelo Pe. Alfredo – ecle-siástica, médica, caritativa e pedagógica –provavelmente lhe conferiam o poder de maiorautoridade dentro da comunidade. A Igreja,como um poder legitimado, procurava exercero controle social, facilitado pela penetração quea instituição escolar conseguia ter na comuni-dade. Em relação às professoras, seu papel tam-bém ultrapassava muito a simples relaçãoinstitucional, era parte das exigências da escolaque estas também estabelecessem uma rela-ção de proximidade com as famílias:

... o cuidado que os professores tinham com osalunos, eram verdadeiros pais, tinham cuidadomesmo, e o Pe. Alfredo cobrava isso. Quando oaluno adoecia o professor dava assistência. (...)todos os problemas elas tavam por dentro, princi-palmente dos alunos, num é? (...) Professores eramcomo se fossem pais e mães. A comunidade, todomundo gostava dos professores. (D. Elisa)

Podemos perceber nessa escola o ideal do“professor-pai ou professora-mãe”, presente tam-bém na escola particular rural de Seu Alexandre,analisada anteriormente. A relação de cumplici-dade dos professores com os pais na educaçãodas crianças era essencial numa comunidade ru-ral, em que a distinção entre o público e o privadoera quase inexistente. D. Elisa relata a história deuma professora que, por não se enquadrar nessasexigências, foi excluída da escola:

... muitos pais falaram a respeito de uma profes-sora que teve aqui, que num era amiga (...) erametida a importante (...) num dava muita impor-tância às pessoas, num visitava, num conheciaas pessoas, né? E eles já tavam naquele costumedos professores ser amigo. O professor na cida-de era um amigo da cidade, era amigo de todo

mundo e principalmente dos pais dos alunos daescola paroquial. Aí falaram que essa professo-ra num era assim, amiga, que num procurava a seaproximar dos pais dos alunos. Eu sei que elademorou bem pouco, Pe. Alfredo trocou (...) Opovo se ligava muito às pessoas.

Nessa sociedade, as relações pessoais so-brepunham-se às profissionais, por isso a ex-clusão da professora da escola provavelmentenão estivesse relacionada à sua competênciaprofissional. O professor, mesmo vindo de fora,para ser aceito, deveria se integrar à comuni-dade, se tornando “amigo da cidade”.

Esse ideal nos remete à discussão feita porSérgio Buarque de Holanda, em sua importan-tíssima obra Raízes do Brasil (1987), na qualprocura traçar o perfil do homem brasileiro, queseria “o homem cordial”. Formado na estruturapatriarcal da família brasileira, onde prevalecemo autoritarismo e a super-proteção, este homemé avesso às relações impessoais típicas do Es-tado moderno. Resultando daí um “Estado Pa-trimonial”, onde as relações pessoais e afetivassobrepõem-se à capacidade técnica. Fugindoda lógica da sociedade moderna capitalista, quepressupõe valores racionais, no “homem cordi-al” predomina o comportamento emotivo, ex-tremamente intimista, onde o personalismo seconfigura como principal elemento das relaçõesentre as pessoas.

Apesar das generalizações, as relações ana-lisadas por Sérgio Buarque nos ajudam a pensardeterminados comportamentos, presentes aindahoje em nossa sociedade, principalmente no in-terior do Nordeste. Na escola paroquial, apesarde seu caráter institucional disciplinar, percebe-mos o mesmo caráter intimista nas relações en-tre pais e professores, analisados na escolaparticular. Essas características estão presentesnos três tipos de escola, se constituindo, dessemodo, o principal elemento comum entre elas.

3. A Escola PúblicaA escola pública chegou ao povoado de Ser-

rote na década de cinqüenta. Entrevistamosduas professoras estaduais, uma que lecionou

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numa escola na “roça” e a outra em uma esco-la no Povoado. A primeira delas, D. Alaíde La-ges Rocha Vieira, foi professora da EscolaRural Pau Ferro durante onze anos e oito me-ses, de 1952 a 1963, período em que morou como esposo e os filhos nessa fazenda. A outra pro-fessora, D. Arionete Guimarães Souza, come-çou a lecionar no Povoado de Serrote, em 1958,permanecendo como professora durante todoo período estudado. As duas eram de Jacobina,tendo sido formadas em escolas de normalis-tas. Nos depoimentos dessas professoras, per-cebemos algumas diferenças relativas àconcepção de educação, que procuraremosanalisar comparativamente.

Como foi discutido anteriormente, nessa so-ciedade rural a relação do professor com a co-munidade extrapolava o âmbito institucional.Durante todo o período estudado e nos três ti-pos de escola, a relação de proximidade entrepais e professores aparece de forma marcan-te. D. Alaíde em seu depoimento demonstra,como nenhum outro professor, a importânciaque a escola tinha em sua vida cotidiana, aoponto de dedicar a esta um tempo muito maiorque o obrigatório:

Quando eu dava aula extra à tarde (...) ensinavaas meninas costura, ensinava os meninos a fazercadeirinha, fazer mesa, trabalhos manuais (...)quando eu marcava o dia eles vinham com asacolinha de comida, aí passava o dia, eles pas-savam o dia. Eu almoçava e ia pra lá. (...) toda acostura que eu sabia fazer eu ensinava as meni-nas. (...) Elas adoravam, elas gostavam muito.

Em seu depoimento, sua dedicação à escolanão aparece como um sacrifício mas como umprazer. Ela demonstra uma satisfação em ensi-nar aquilo que sabia fazer e considerava útil paraos alunos. Além das aulas extras, ela ainda de-dicava suas férias a produzir material, já que amaioria dos alunos não podia comprar livros:

...a maioria era pobrezinhos, eles não podiamcomprar livros. O que eu fazia? Nas férias, eutrabalhava as férias todas. Eu comprava cader-no, aí ia pros livro, ia resumindo os pontos (...)Era minha distração. Eu trabalhava as férias to-das fazendo esse trabalho, fazendo os cadernospra cada um. Quando terminava, já era tempo de

começar as aulas, eu distribuía os cadernos...

Diferente da professora que foi demitida daescola paroquial, porque “não era amiga da ci-dade”, D. Alaíde parece ter se integrado total-mente àquela comunidade, ao ponto de abrir suacasa para os vizinhos, realizando trabalhos queiam muito além da função de professora:

Eu não descansava lá, minha filha. Eu era pro-fessora, eu era cabeleireira, eu era enfermeira.(...) Quando era dia de domingo eu não tinhatempo pra nada, quando eu estava almoçando aíchegava as alunas, as mães de alunas, primas,cunhadas, tudo pra eu cortar cabelo... Eu passa-va a tarde de domingo toda no alpendre da mi-nha casa, cortando o cabelo das moças. Quandoadoeciam... minha casa virou um posto de saú-de...

As múltiplas funções assumidas pela Pro-fessora Alaíde, de certa forma, parecem próxi-mas da atuação do Pe. Alfredo, num períodoanterior, embora sem a dimensão religiosa.Numa comunidade rural sem nenhum tipo deserviço público, com exceção da escola, a rela-ção da comunidade com a professora, vinda defora, com outra condição econômica e outrossaberes, acabava por se tornar uma relaçãopaternalista ou “maternalista”.

No depoimento da professora Arionete apa-rece também essa relação de proximidade coma comunidade, embora de forma um pouco di-ferente:

Eu recebi muito apoio e assim... convite pra al-moçar, quase todo domingo (...) e faziam bande-jas de coisa, mandavam me levar, mandavam melevar presentes. Eu também quando ia praJacobina às vezes (...) eu também levava um, doisalunos comigo, quer dizer, tudo isso facilitava aamizade, né?

Nesse caso, como a professora morava fora,parece-nos que a comunidade era quem abriaas portas para ela, que procurava retribuir le-vando alguns alunos para passar o fim de se-mana em sua cidade, fortalecendo assim oslaços de amizade. Mais uma vez aparece a“amizade” entre pais e professores, caracterís-tica do “homem cordial” de Sérgio Buarque. Opaternalismo, muito comum nas comunidadesdo interior, se torna importante nessas relações,

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na medida em que sustenta interesses mútuos. Deum lado a “consideração” e o “apoio” da comuni-dade em troca da “amizade” da professora.

A escola da professora Alaíde, em algunsmomentos, conseguia movimentar a comunida-de através de eventos que promovia em datascomemorativas, sendo o Sete de Setembro aprincipal delas. Mais que um ato cívico, essedia se transformava numa verdadeira festa,envolvendo toda a comunidade:

Dia de 07 de setembro, eles todos fardados, cadaqual com sua mochilazinha de comida, aí saímosmarchando... tinha tambor, comprei tambor, com-prei bandeira. Aí saía marchando na estrada, atéa casa de João Cafundó. De lá então eu inventa-va brinquedo, de pular de saco (...) fazia quebra-pote, fazia toda espécie de brincadeira, aí elespassavam o dia brincando. De noite eles arranja-vam sanfona, violão, aí tocavam a noite toda eos pais, os irmãos, os amigos, dançavam a noitetoda até amanhecer o dia (risos).

A forma como a depoente se refere a essafesta reflete a importância que esta possuíapara aquela comunidade. Edite VasconcelosMota, uma das nossas entrevistadas, foi alu-na da professora Alaíde, e também se refereà mesma festa, demonstrando um certo sau-dosismo:

... e tinha o desfile do dia sete também... tinhagente do Tanquinho, de Várzea do Poço... Era defarda, os menino era fardado como soldado (...) eagora todo mundo levava uma sacolinha, era prafazer uma amarela e uma verde (...) pra levar co-mida pra almoçar meio dia, era depois que acaba-va o desfile. Tinha pau de sebo, tinha a brinca-deira do saco, de pular no saco, tinha quebra-pote... pulava corda...

Nessa forma de comemoração de uma datacívica, percebemos a mistura de elementosmodernos, urbanos, disciplinares - representa-dos no desfile, em que os meninos se vestiamde soldado - com elementos lúdicos, típicos deuma festa na “roça”, os jogos e brincadeiras, afesta embalada pela sanfona, envolvendo todaa comunidade.

O ideal do professor-pai, ou professora-mãe,aqui se reflete na preocupação e cuidado comos alunos:

Tempo de inverno lá, há trinta anos atrás era umsacrifício, era um horror. Os pobres dos meninosvinham de jegue, montado de jegue pra escola.Tinha dia que eles chegavam bem molhados,ensopados, tremendo de frio (...) Eu então pega-va roupa de minha filha, de meu filho e vestiaaqueles mais molhados (...) e eu deixava a em-pregada arrodear o fogão (...) botava as roupados menino pra ir enxugando. Quando termina-va as aulas eles iam, trocavam de roupa e iam pracasa. (D. Alaíde)

Nos três tipos de escola percebemos esseideal, que de certa forma, associa a imagemdos professores à dos pais. No entanto, ela apa-rece de forma diferenciada referindo-se ao pro-fessor ou à professora, refletindo a diferenciaçãona definição dos papéis sociais do homem e damulher, presentes nessa sociedade. Na escolade Seu Alexandre, o professor é associado aopai, pelo seu poder autoritário, ao passo que,tanto na escola que estamos analisando, quantona escola paroquial, por se tratar de mulheres,professoras, estas são associadas à figura damãe, aquela que cuida e protege.

As dificuldades enfrentadas por esses alu-nos para chegar até a escola, indica a impor-tância que ela representa nesse mundo rural.Segundo as professoras entrevistadas, a mai-oria dos seus alunos era pobre, o que implica-va em dividir o tempo entre a escola e otrabalho. A respeito disso, vejamos os depoi-mentos das professoras Alaíde e Arionete, res-pectivamente:

Eu tinha uma base de quarenta e tantos alunos.Agora, na época da colheita faltavam muito. Nahora da plantação eles faltavam também. Tinhavez de faltar dez, vinte. (...) Quando eles podiameles vinham. (D. Alaíde)Havia evasão na época de colheita, porque naépoca do plantio sempre era... acontecia na épo-ca de férias, né? (...) Havia evasão, mas elesretornavam, né? (D. Arionete)

Tudo leva a crer, que nesse sistema, em queas relações pessoais se sobrepunham às insti-tucionais, a escola acabava abrindo mão decertas exigências, sendo sensível às dificulda-des pessoais dos alunos. Permitindo, por exem-plo, que todos tivessem retorno garantido às

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aulas, caso precisassem se afastar por causade trabalho.

Analisando comparativamente o depoimen-to das duas professoras, podemos perceber al-gumas diferenças na abordagem que elas dãoà questão da educação, sendo o discurso daprofessora Alaíde mais espontâneo, permeadopor questões afetivas e emocionais, enquanto odiscurso da professora Arionete parece maisideológico, carregado de elaborações teóricas,próprios da pedagogia moderna, exemplo disso,é a utilização do termo evasão. A questão dadisciplina também é tratada de uma forma dife-rente pelas duas professoras, embora ambas sediferenciem dos outros professores entrevista-dos, por não defenderem o uso dos castigos.

Na escola da professora Alaíde, havia a per-manência de práticas tradicionais como o usoda palmatória, embora ela não admita que cas-tigava seus alunos:

Eu não dava castigo, eu botava em pé. Quandoum tava sendo impossível eu botava no canto,na parede... dez, quinze minutos. Quando eraMatemática eles não gostavam. Tinha deles quenão gostava de Matemática, então eu fazia sa-batina, eu fazia a volta, aí eu ia perguntando.Aqueles que num soubesse, o que respondessecerto: dois, três bolo. Eu não sabia bater não, seeu fosse bater, quem apanhava era eu (risos).Então eu fazia sabatina pra eles mesmo, né?...Fazer a consciência deles.

A sabatina acabava sendo uma maneira depromover a disciplina, sem que fosse necessárioa professora aplicar pessoalmente o castigo.Como ela “não sabia bater” encarregava os pró-prios alunos “de fazer a consciência deles”. Edi-te, uma de suas alunas, comenta essa prática:

Ela não batia não, só batia na hora de perguntar(...) porque antigamente a gente lia tabuada e aíia perguntar, né?... Fazia uma fila assim, aí ficavaperguntano tanto mais tanto?... Aí tinha um me-nino lá, que era tão rude, tadinho, que ele ficavatodo se espremendo assim, perguntava dois maisdois, ele só falava errado.

Mais uma vez, podemos perceber a natura-lidade com que a sabatina era vista. Contradi-toriamente a professora “não batia”, talvez comouma forma de castigo, mas apenas “na hora de

perguntar”, o que devia ser considerado a me-lhor forma de testar o conhecimento dos alu-nos. Apesar de tratar esse método comnaturalidade, Edite relata o drama do colega,que não conseguia acertar nem as questõesmais fáceis, provavelmente devido à pressãopsicológica sofrida nesse momento.

A professora Arionete se coloca contra ouso da palmatória, utilizando outros métodos paramanter a disciplina da classe:

...quando pintava demais eu num dava recreio,né? E outras vezes também eu fazia o seguinte: oquadro era muito grande, né? Então eu fazia...mandava fazer frases no quadro, ou escrevernúmeros no quadro (...) era uma maneira de acal-mar. Também eu fazia o seguinte: aqueles alunosmelhores, assim, de comportamento melhor, queestudavam muito, às vezes eu levava lá pra casapra almoçar (...) às vezes eu levava ele pra fazer odever lá em casa comigo, pra explicar direitinho,aconteceu muito isso (...) mas eu nunca usei pal-matória, eu tinha horror...

Percebemos uma mudança na forma depunir os desvios, típica da escola moderna. Nãomais o castigo físico, mas sim a punição sutilcomo forma de corrigir os erros. Segundo Fou-cault (1999, p.150), “os sistemas disciplinaresprivilegiam as punições que são da ordem doexercício - aprendizado intensificado, multipli-cado, muitas vezes repetido”, tendo a funçãode reduzir os desvios, sendo essencialmentecorretivo. A concessão do privilégio aos “me-lhores alunos” de uma proximidade maior coma professora, faz parte desse mesmo sistemanormatizador, através do mecanismo gratifica-ção-sanção, que hierarquiza os indivíduos e di-vide-os entre os bons e os maus.

É provável que o ideal escolanovista tenhachegado à Serrolândia, através dessas escolasestaduais, com professores concursados, queparticipavam de cursos de atualização em Sal-vador, conforme nos informou a depoente, quena década de sessenta passou a ser Coordena-dora Municipal de Educação, sendo portanto,responsável por repassar os novos valores paraos outros professores.

...num era aquela escola mais tão tradicional comoera antigamente (...) a minha época já estava co-

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meçando a mudar (...) As aulas já eram mais aber-tas, o ensino já era melhor (...) nós tínhamos trei-namento em Salvador final do ano, mês de janei-ro nós íamos, só retornávamos em março. Osprofessores né? Todo mundo quentinho, todomundo preparado por professores de faculdade.(D. Arionete)

É evidente o discurso da mudança, carrega-do de um ideal progressista. A formação pro-fissional, para a depoente, seria a responsávelpela transformação da educação. Com basenum ideal cientificista essa escola prima pelaeficiência. Ao ser questionada a respeito da dis-ciplina aplicada aos seus alunos, a depoenteresponde com base na legalidade:

Tinha o estatuto, num é? (...) O estatuto vocêsabe que a lei que rege todo o estabelecimento,num é? Então a disciplina dos alunos era o se-guinte: primeiro a exigência de fardamento, né?Naquela época, a farda bem cuidada, exigia a far-da bem cuidada e... a disciplina era muito boa (...)os alunos eram bem disciplinados, não é? (...)eram muito conscientizados, nós não tínhamosproblemas com disciplina não, e também erammuito estudiosos, cada um queria estudar maisque o outro. Era uma beleza! (D. Arionete)

Podemos perceber o otimismo pedagógicocaracterístico do escolanovismo. A idéia deconscientização dos alunos tem por base umideal de eficiência escolar que atingiria a todos,conseguindo a normatização. O estatuto era agarantia de neutralidade. Não mais a escola quecastiga de forma arbitrária, mas sim a escolaeficiente e harmônica, que segue “direitinho” anorma.

À luz do pensamento foucaultiano, Carva-lho (1979. p.286) analisa o discurso produzidono Brasil, nas quatro primeiras décadas do sé-

culo XX, a respeito da infância e da escola. Opensamento escolanovista representava o idealcientífico-burguês que visava à normatização.Os novos métodos empregados pela pedagogiacientífica se baseavam na análise meticulosade cada aluno, para através do conhecimentoindividual, ser possível classificar, mensurar,excluir e finalmente normatizar. O otimismopedagógico característico desse movimentoconta com a natureza. “Nas representações queo articulam a natureza infantil é matéria plásti-ca e plasmável, desde que respeitada no seuvir-a-ser natural.”

O papel da ciência pedagógica seria, então,o de guiar a “liberdade” do aluno, coibindo aspaixões, de modo a conseguir o máximo de fru-tos com o mínimo de tempo e esforços perdi-dos. A infância, a partir desse pensamento, seriaa fase da formação do futuro adulto, através doajustamento da natureza infantil aos fins postospela sociedade.

Podemos concluir que a idéia de moldar acriança está presente nos três tipos de escola,embora os métodos e o discurso utilizados paraconseguir esse fim sejam diferentes. A idéia daespecificidade infantil aparece de alguma for-ma em todas elas. No entanto, a idéia do querepresentaria essa especificidade se diferencia,sendo três, as representações da infância per-cebidas por nós através dos discursos: 1. a cri-ança associada ao mal que precisa ser reprimidaatravés da educação; 2. a criança como um serpuro e inocente, que necessita ser preservadodo mundo adulto, através da religião; 3. a crian-ça como um ser dotado de liberdade, emboraprecise ser guiada de forma racional, atravésda disciplina.

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 09.08.05

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Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

A HISTÓRIA DO NEGRO NA EDUCAÇÃO:ENTRE FATOS, AÇÕES E DESAFIOS

Ana Rita Santiago da Silva*

Rosângela Souza da Silva**

* Mestre em Educação e Contemporaneidade, pelo Programa em Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, noDepartamento de Educação Campus I – Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Desenvolveu sua pesquisa sob aorientação da Profª Narcimária Correia do Patrocínio Luz. Professora das Faculdades Jorge Amado. Endereço paracorrespondência: Faculdades Jorge Amado, Av. Luis Vianna Filho, n.6775, Paralela – 41745-130 Salvador-BA. E-mail:[email protected]** Mestre em Educação pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Desenvolveu sua pesquisa sob a orientação daProfª Ana Célia da Silva. O projeto dessa pesquisa foi premiado no III Concurso de Dotação de Pesquisa Negro eEducação, organizado pela Fundação Ford, Ação Educativa e a Anped. Professora da rede pública estadual de ensino.Endereço para correspondência: Colégio Estadual Imaculada Conceição, Rua Calamar s/nº, Conceição I – 44100-000Feira de Santana/BA. E-mail: [email protected]

RESUMOO texto resulta de pesquisas no Curso de Mestrado em Educação eContemporaneidade, da UNEB, discute as desigualdades educacionais vividaspelos afrodescendentes, como uma das conseqüências do projeto de educaçãoelaborado no processo de abolição da escravatura no Brasil. Apresenta tambéminiciativas em torno da educação, organizadas pelo povo negro brasileiro e asimplicações das questões étnico-raciais e sociais no desenvolvimento de açõespara se contrapor às desigualdades educacionais existentes na atualidade.

Palavras-chave: Resistência – Exclusão – Educação – Negro

ABSTRACTBLACK HISTORY IN EDUCATION: BETWEEN FACTS, ACTIONS,AND CHALLENGE

The text results of searches course of Master in Education. It discusses unlikeeducations lived out descents of Africans, how one of consequences of projectof education colony. Presents also initiatives, into of educations organizationsin black Brazilian people.

Keywords: Resistance – Exclusion – Education – Black

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de fato.Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento deum perigo. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privi-légio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarãoem segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (...).Existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa.

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A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

IntroduçãoAo retomarmos a História da Educação no

Brasil, perceberemos como as especificidadesétnico-raciais e sociais delineiam trajetórias di-ferenciadas para grupos que compuseram essepaís. O déficit educacional, vivido pelo povonegro brasileiro, desde o sistema escravocrata,ainda perdura, de forma perversa, na configu-ração atual da sociedade brasileira. Revela-nosainda como os veios excludentes, sobre os quaisse estruturou a sociedade brasileira, determi-nam o quadro atual das desigualdades educaci-onais1 da maioria da população negra. Masdiscute também ações educativas, forjadas emfavor da promoção da dignidade e dos direitossociais dessa população.

Este texto trata de uma História do Negrona Educação, perfilada por estratégias e modode resistências que rompem fronteiras estabe-lecidas pelo regime escravista, inicialmente, eexcludente, até aos nossos dias. Permite com-preender, por exemplo, que para os egressosdo sistema escravocrata tal trajetória e realida-de, mesmo frente aos impedimentos conjuntu-rais e estruturais, são marcadas por desafios eações que se contrapõem, de modo veementee incisivo, aos lugares sociais que lhes são des-tinados e/ou predeterminados dentro das estru-turas sociais. Discute também ações educativas,forjadas em favor da promoção da dignidade edos direitos sociais dessa população.

Ao propor o aguçamento e a ampliação dosolhares sobre parte dessa história, o presenteartigo apresenta como, desde as origens, as ini-ciativas postuladas pelas classes dirigentes daépoca elaboraram uma educação para os ex-escravizados, regida por uma lógica moral, reli-giosa e social que os conservassem no mundoda produção e da submissão. Contrapondo-sea essa lógica, apresentamos também as ações,desenvolvidas pelas organizações negras. Tra-zemos também à tona o processo de emanci-pação dos cidadãos negros, através de

construções alternativas educacionais e edifi-cações de outras comunalidades, frente às ad-versidades colocadas naquele contexto histórico.

Há ainda uma discussão sobre a exclusãode temas relativos à história e à cultura negranos currículos; referindo-nos à maneira estere-otipada e preconceituosa com que o negro vê asua história sendo tratada nos livros didáticos eno cotidiano escolar. Por fim, este estudo abor-da a falta de políticas que assegurem o acessoe a permanência da população de baixa rendanas escolas e apresenta algumas iniciativas con-temporâneas, desenvolvidas pelas organizaçõesnegras em torno da educação.

1. O negro e a educação no Brasil:uma história de exclusão

Ao conhecermos a história da educação noBrasil, e, sobretudo, o processo e o período deinserção dos negros na educação brasileira,percebemos que se constituem em uma traje-tória permeada por conflitos, contradições eexclusão. Embora haja registros históricos, naprimeira metade do século XIX, que indicam apresença de africanos escravizados nas esco-las públicas paulistas e mineiras, ainda nessemesmo século fora decretada a Lei nº. 133 doMunicípio da Corte, que proibira a entrada deafricano escravizado na escola oficial (MAR-CÍLIO, 2005, p.32; 69). A crise do escravismo,ao final do século XIX, repercute de váriasmaneiras na dinâmica social da época. Um dosseus impactos se configura com a permissãoaos africanos escravizados a terem acesso aoensino. Só nesse período de transição do Impé-rio para a República, com o advento das leis

1 Ver em Gomes (2004) dados da pesquisa realizada peloInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): Desi-gualdade racial no Brasil: Evolução das Condições de Vida nadécada de 90. Dados do DIEESE, Rio de Janeiro: EdiçãoEspecial, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, 2003,p. 13.

Alguém na Terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nosconcedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esseapelo não pode ser rejeitado impunemente. (Valter Benjamim).

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Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

abolicionistas, sobretudo da Lei do Ventre Li-vre, em 1871, e, em seguida, a Lei Áurea, em1888, a elite brasileira passou a se preocuparcom o contingente de escravizados. Onde co-locá-los? Como abrigá-los? Como ocupá-lospara que sejam evitadas as desordens nas ruas?

A educação, então, fora uma alternativa desuperação desse impasse, embora as preocu-pações de diversos segmentos sociais, naquelemomento, fossem tão somente o estabelecimen-to e a manutenção da ordem. Essa seria umapreocupação recente, visto que, até então, nomodelo escravagista, a ordem era mantida atra-vés dos castigos e da violência. O discurso ofi-cial, através da Constituição de 1824, da Lei doVentre Livre, de 1871, e dos decretos nº 7.031,de 1878, é um exemplo contundente, segundoCunha, que “... demonstram que os governan-tes queriam fazer reformas sem mudar as es-truturas internas e garantir a ordem e oprogresso, adequando a esta sociedade essanova camada social de ex-escravos ...” (CU-NHA, 1999, p. 71-72).

Ao referir-nos à educação no Brasil, sob aótica étnico-racial, somos levados a tratar dadesigualdade e da exclusão, no que tange aoacesso aos bancos escolares, vividas pela po-pulação não-branca. Por mais de duzentos anos,os africanos escravizados não tiveram nenhumtipo de oportunidade de estudo formal. Inicial-mente, o processo de alfabetização dos negrosse deu em base de atos de caridade e, quandomuito, de filantropia. Até a metade do séculoXX, o Brasil era destituído de política educaci-onal, conforme já afirmara Siss (1999, p. 63):

A existência de uma efetiva política educacionalestatal no Brasil, porém, data de pouco mais demeio século. Até então e sob o pulso escravocratae oligarca rural, “O Brasil reservou a aprendiza-gem letrada para a classe dirigente, tanto que aténa década de 20 apenas 25% da população brasi-leira era alfabetizada” (Linhares, 1995, p. 09). Cons-tata-se que uma imensa maioria do contingentepopulacional brasileiro estava excluída do pro-cesso educacional ...

A escolarização, até esse período, foi de res-ponsabilidade particular e privilégio dos senho-res e de seus filhos homens. À outra parcela da

população, bem mais numerosa, constituída pormulheres, nativos e africanos, não cabia essedireito. Ao se considerar a história da educa-ção, denota-se que o acesso dos negros à edu-cação, além de tardia, não lhes garantiradevidamente a inclusão. Durante o escravismoe o predomínio da oligarquia rural, não se con-cebia sequer a alfabetização dos africanos, hajavista que prevalecia, por um lado, a concepçãode que eram destituídos de inteligência e dealma. Por outro, a eles cabia apenas o trabalhodoméstico e braçal, logo não havia necessidadede adquirir outros saberes e conhecimentos.Além disso, a escolarização para os africanose seus descendentes significaria possibilidadede insurgência e de tomada de consciência. Issoé reiterado por Fonseca (2001, p. 14):

A educação tornava-se, assim, um ponto de dis-córdia, pois dividiria as práticas que regiam omundo do trabalho à medida que conferia um novostatus às crianças nascidas livres de escravas.Significaria também, de acordo com Rodrigo A.Silva, que essas crianças poderiam ser retiradasdo trabalho produtivo para receberam instrução,o que não só afetaria os lucros dos senhores,como despertaria o descontentamento entre osescravos que não possuíssem esse benefício.

O período de abolição da escravatura provocaum debate sobre o negro e o seu acesso à educa-ção. Só o processo de elaboração e de execuçãoda Lei do Ventre Livre, por exemplo, torna-se ummomento em que há um conjunto de discussões ede experiências educacionais envolvendo negros(MALHEIROS, [1867]1976, v. I, p.156). As im-plicações do cumprimento da Lei do Ventre Livree do projeto educacional, propício para as crian-ças livres nascidas de escravas, provocam deba-tes entre intelectuais, parlamentares e proprietáriosdiretamente interessados com a preparação dosnegros para a liberdade, sendo a educação o focoprincipal. Em relação a isso, Fonseca, citandoMalheiros, afirma:

Mas pergunta-se: que educação deve receberestas crias, que aos 21 anos2, por exemplo, têm

2 No item 1 do parágrafo 1º da Lei do Ventre Livre, o senhortinha o direito de explorar as crianças até 21 anos de idade,caso quisesse. Senão poderia entregá-las ao Estado median-te indenização. (FONSECA, 2002).

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que entrar no gozo pleno dos seus direitos? Res-pondo que aquela que for compatível com suashabilitações e disposições naturais, com as fa-culdades dos senhores, com as circunstânciaslocais. O essencial é que além da educação mo-ral e religiosa, tomem uma profissão, ainda queseja de lavradores ou trabalhador agrícola; elecontinuará aí se lhe convier, ou irá servir a ou-trem, ou se estabelecerá sobre si; em todo caso,aprenda um ofício mecânico, uma profissão, quepossa tirar recursos para se manter e a família, setiver. Alguns poderão mesmo ser aproveitadosnas letras ou em outras profissões, as escolaslhes são francas, como livres que serão por nas-cimento. Obrigar os senhores a mandá-los a elasé ainda problema a resolver; a instrução obriga-tória ou forçada não está admitida entre nós, nemmesmo para os demais cidadãos livres. Os se-nhores devem ter para isto um prudente arbítrio,como aos pais é dado em relação aos filhos.(MALHEIROS, [1867]1976, v. I, p.156, apud FON-SECA, 2002, p. 43-44).

Conjeturando sobre a educação para os ne-gros, Malheiros (1867), citado por Fonseca,acentua uma certa imprevisibilidade quanto àresolução desse problema, quando evidencia arelação do escravizado com o tipo de educaçãoque a ele seria destinado e quando evoca aspossibilidades dos senhores e os limites locaiscomo situações que delineariam essa educação.Ainda enfatiza a importância de se manter aeducação “moral e religiosa”, que atuaria comomecanismo de sujeição e abnegação daquelessujeitos aos moldes da época. O paradigmaeducacional do século XIX postulava caminhosque provavelmente (re)conduziriam os negrosa continuarem sendo produtores de riquezas dosgrupos dominantes, sendo “lavradores, mecâ-nicos, servindo a quem lhe convier” e manten-do a ordem social vigente. Certamente, ocumprimento desses postulados permitiria queeles continuassem a compor os estratos sociaismais baixos da sociedade. O seu ingresso naescola se deu graças aos interesses com a pro-dução e não com a sua integração na socieda-de. Romão nos assegura mais incisivamentequal o papel da educação para o negro:

A educação para o negro se torna necessáriacomo adestradora e garantia da manutenção daforça de trabalho. Importante ressaltar que a pre-

ocupação para com a educação do escravocentrava-se sobre as conseqüências para comas relações de produção e não necessariamentecom a integração do negro na sociedade brasi-leira. Em outras palavras, a preocupação não erapara com o futuro dos africanos a serem libertos,mas, com a manutenção da ordem produtiva.(ROMÃO, 2001, p. 341-342).

No que se refere às discussões, relativas àscrianças protegidas pela da Lei do Ventre Li-vre, Fonseca declara:

... a articulação entre abolição e educação – talcomo se deu nos debates relativos à libertaçãodo ventre – não foi colocada em destaque paraproteger as crianças que nasceriam livres. Nofundo, o que ela verdadeiramente expressa é atentativa de minimizar o impacto que o fim dotrabalho escravo poderia gerar no perfil da soci-edade brasileira, que receberia um número signi-ficativo de indivíduos originários do cativeirona condição de cidadãos livres. (FONSECA,2002, p. 13).

Quem teria o dever de assegurar o acessodas crianças livres à educação? Seria o gover-no do Império ou os senhores? Se esses assu-missem tal compromisso, seriam indenizados?Diante do impasse, surgiram, com o auxílio dogoverno, a partir de 1879, as associações pararecolhimento e para educação de crianças fi-lhas de escravas, porém nascidas livres. Poste-riormente a 1879, o Ministério da Agricultura,responsável pela política educacional do BrasilColônia, recua em relação ao fomento ao sur-gimento de associações de amparo àquelas cri-anças. Esse refluxo traz à tona, como tão bemdeclara Fonseca (2001, p. 18), mais uma vez odebate sobre a responsabilidade com os filhosde africanas escravizadas e com a sua educa-ção. Toda essa discussão trouxe, em seu bojo,a preocupação, não com o futuro e a realizaçãodos indivíduos, mas com a preparação dos fu-turos trabalhadores – por conseguinte, com aprodução e a riqueza – e com o combate aosvícios e às más inclinações que esse grupotraria das senzalas ou da sua condição de es-cravizado.

Em 1879, vigorava uma preocupação: o Im-pério deveria indenizar os senhores por cadacriança livre que a ele fosse entregue. Naquele

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ano, as crianças livres nascidas de escravascompletariam oito anos de idade. Caso os se-nhores as entregassem ao Estado causaria um“... colapso na organização financeira do Im-pério, pois não só acarretaria a mobilização deenormes recursos para a indenização dos se-nhores, como não havia um número de associ-ações que pudessem receber tal quantidade decrianças”. (FONSECA, 2002, p. 73).

Mas contrapondo-se a essas expectativas,o relatório do Ministério da Agricultura de 1885,apresenta:

... do total de 403.827 de crianças apenas 113foram entregues ao Estado mediante a indeniza-ção insignificante de 600$000. Uma quantia in-significante, não chega a responder a 1% donúmero total de crianças nascidas livres de mãeescrava em todo o País. O que representa queessas crianças estiveram durante todo o perío-do em que esteve em vigor a Lei 2040 pratica-mente nas mesmas condições que os trabalha-dores escravos, sendo educadas sob os mes-mos moldes. Ou seja, uma educação que trans-corria no espaço privado, onde a atribuição dossenhores era de criar3 os menores sem nenhumaobrigação de prestar conta a respeito dessa cri-ação. (FONSECA, 2002, p. 96-97).

Tomada como instrumento que possibilita-ria a integração dos negros àquela sociedadeem transformação, a educação dos ingênu-os4 e dos libertos foi negligenciada e minimi-zada pelo Estado nas suas intenções e ações.Isso oportunizou aos que se serviam das prer-rogativas da lei, durante o processo da Aboli-ção da escravatura, manter os negroscircunscritos ao mundo da produção (os futu-ros trabalhadores livres) e hierarquicamenteno lugar e com as condições estabelecidaspelo regime escravocrata.

Não são poucos os procedimentos utiliza-dos pelo Estado, que indicam o descaso com aeducação dessa população: facultou aos inte-resses dos senhores, ao deixar brechas na lei5;fomentou a criação de asilos agrícolas paracuidar das crianças; equiparou os problemas dascrianças livres nascidas de escravas aos dascrianças desamparadas. Isso marca, de formaindelével, a história sócio-educacional da popu-lação negra, comprometendo, de modo tenaz, o

futuro das próximas gerações, excluindo-a as-sim da participação dos estratos ocupacionaise sociais mais elevados. Destarte, a omissãodo Estado, no sentido de promover efetivamen-te a educação das crianças livres, nascidas deescravas, possibilitou, eficazmente, que o défi-cit educacional se consolidasse para os descen-dentes de africanos escravizados.

Tal procedimento demonstra a inexistênciade propostas políticas orientadas no sentido degarantir efetivamente uma educação que pre-parasse os ingênuos e os libertos a gozaremda sua liberdade, quiçá da cidadania. O poucointeresse para se pensar e operacionalizar asquestões de cunho educacional e social obstruiubem como fragilizara as tentativas de mudançaque viessem a “beneficiar” os ex-escravizadosdentro daquela sociedade.

2. Os negros e a educação: tran-sitando entre sentidos e signifi-cados

A transição do século XIX para o XX de-marca profundas mudanças nas relações de tra-balho e de produção, no que se refere aosvalores sociais e as outras formas organizacio-nais da sociedade brasileira. Essa, naquele pe-ríodo, estava bastante motivada pelos anseiospor modernização e, ao mesmo tempo, atreladaàs estruturas sociais, políticas e econômicasarcaicas. No que tange aos os ex-escraviza-dos, vítimas de um processo histórico de exclu-são e abandono e compelidos a adequar-se auma nova ordem social, continuaram a opera-

3 Ao criar os menores, os senhores não tinham obrigação deeducá-los, isto é, uma educação no espaço público com ainstrução elementar, preparando-os para a vida como pes-soas livres. (FONSECA, 2002).4 Terminologia herdada do direito romano; é a denomina-ção atribuída às crianças livres nascidas de escravas. Parauma análise da aplicação dessa terminologia, ver Fonseca(2002).5 No artigo 7º, parágrafo 1º da Lei do Ventre Livre, reza queos libertos ficariam “... sob a autoridade dos senhores desuas mãis, que exercerão sobre elles o direito de patronos, eterão a obrigação de crea-los e trata-los, proporcionando-lhes sempre que for possível a instrucção elementar”. (grifosnossos). (FONSECA, 2002, p. 49).

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A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

cionalizar mecanismos de enfrentamento e deresistência para subsistir aos degredos da novaconfiguração social.

Neste contexto, a questão educacional cons-titui-se em um leitmotiv para a comunidadenegra. Ampliam-se a ação e o fortalecimentodas organizações de protesto negro em váriasregiões do país. Desencadeia-se um processode mobilização política e educacional entre osnegros, pois, como afirmam Cunha Júnior eGomes (2003, p. 5): “As ações dos movimen-tos negros do início do século XX foram todasno sentido do incentivo à população afrodes-cendente para a educação. Os jornais da co-munidade negra retratam estas campanhas.”Dessa forma, a preocupação com a questãoeducacional era propalada em jornais da impren-sa negra paulista. Antunes Cunha, citado porGonçalves e Silva, declara que: “... o jornalis-mo negro, real instrumento de luta dos afrodes-cendentes na primeira metade do século XX,tenha se constituído em fator importante naeducação e desenvolvimento do povo negro ...”(CUNHA, 2000, apud GONÇALVES; SILVA,2000, p.140).

Imbuídos por demonstrar aos negros o ca-ráter emancipatório que a educação teria nassuas vidas, os militantes das organizações ne-gras utilizavam a imprensa escrita para divul-gar a relevância da educação formal econscientizá-los sobre a importância da partici-pação efetiva nos cursos e de aprender a ler eescrever. Para eles, esses seriam procedimen-tos e estratégias que possibilitariam a integra-ção dos negros na sociedade de classes. Naimprensa negra, os apelos cotidianos eram inci-sivos, no sentido de mobilizar e sensibilizar osnegros para se educarem, evidenciando bem afirmeza com que se acreditava no valor da edu-cação. Gonçalves e Silva sobre isso afirmam:

Em 1936, o jornal Alvorada apresenta matériaveemente quanto à necessidade de crianças eadultos saberem ler, escrever e contar. Ensinacomo proceder para se matricular em cursos. Dáconselhos no sentido de que se abra mão dehoras de lazer ou descanso do trabalho, paraadquirir ‘tão valioso instrumento’. (GONÇAL-VES; SILVA, 2000, p.142).

Outro aspecto a ser destacado também naimprensa negra da época é a sinonímia que sefaz de “educação e cultura”. Os propugnado-res da importância do acesso à educação apre-sentam locais e atividades, consideradasimportantes para serem freqüentados e reali-zadas pelos negros, tais como: bibliotecas, con-ferências, teatros, representações teatrais,concertos musicais e outros. Segundo essa óti-ca, todo esse arsenal sociocultural contribuiriapara a formação política e intelectual da comu-nidade negra.

É salutar destacar que tais preocupações eações referentes à educação, naquela época,em que a maioria da população adulta negraera analfabeta, serviram de incentivo ao domí-nio das letras pelas entidades do movimentonegro. Isso foi fundamental, porque fortaleceuo processo de reivindicações políticas, de com-bate ao preconceito e à discriminação racial eainda potencializou o caráter emancipatório doponto de vista da formação pessoal e político-social da comunidade negra. Além disso, nota-bilizou o compromisso que instituições negrasassumiram naquele contexto histórico.

Vale a pena ainda salientarmos as críticasda imprensa negra em relação à forma com queos grupos escolares oficiais recebiam os negros.O artigo do militante Olímpio Moreira, publica-do no jornal a Voz da Raça, em 17/02/1934,citado por Gonçalves e Silva, denuncia:

Ainda há grupos escolares que recebem negrosporque é obrigatório, porém os professores me-nosprezam a dignidade da criança negra, deixan-do-os de lado para que não aprendam, e os paispobres e desacorçoados pelo pouco desenvol-vimento dos filhos resolvem tirá-los da escola eentregar-lhes serviços pesados (GONÇALVES;SILVA, 2000, p.143).

Historicamente foram implementadas medi-das pelos diversos segmentos do movimento ne-gro brasileiro para incentivar e proporcionar aeducação do povo negro. Também é histórica apreocupação com o descaso com o qual a crian-ça negra foi/é tratada na escola, delineando oveio racista e excludente, através do qual vai seestruturando essa instituição. Em verdade, a edu-cação sempre foi uma das bandeiras de luta do

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movimento negro. A ela foram e são atribuídossentidos e utilidades diferenciadas. O movimen-to negro brasileiro, em momentos diversos, nãotem dispensado da sua agenda política o signifi-cado crucial da educação. Essa, segundo Gon-çalves, mencionado por Gonçalves e Silva, temsido utilizada pelos segmentos das organizaçõesnegras, com plurais finalidades:

Ora vista como estratégia capaz de equipararos negros aos brancos, dando-lhe oportunida-des iguais no mercado de trabalho; ora comoveículo de ascensão social e, por conseguintede integração; ora como instrumento deconscientização por meio da qual os negrosaprenderiam a história de seus ancestrais, osvalores e a cultura de seu povo, podendo a par-tir deles reivindicar direitos sociais e políticos,direito à diferença e respeito humano. (GON-ÇALVES, 2000, apud GONÇALVES; SILVA, 2000,p. 139).

Para bem compreendermos os sentidos daeducação para as organizações negras, faz-senecessário enfrentar o lugar a que se submeteo povo negro nas ações educativas da escolaoficial. A educação formal proporcionada pelaescola tem uma centralidade na vida dos indiví-duos e, às vezes, é a partir dela que aqueles defamílias pobres e, em sua maioria negra, depo-sitam a “esperança” de garantir um lugar nomercado de trabalho. Para Oliveira:

Um dos resultados concretos da passagem doindivíduo pela escola é a formação para o traba-lho; neste sentido, as exigências do mercado seconcentram na avaliação de dois tópicos: a qua-lidade da escola e o tempo de estudo. Destasvariáveis surgem as diferenças básicas entre oscurrículos das pessoas que fracassam ou obtêmsucesso no mercado de trabalho (OLIVEIRA,2001, p.12).

No entanto, se nos ativermos a avaliar astrajetórias escolares de crianças, jovens e adul-tos negros, perceberemos que a qualidade doensino, o tempo passado na escola, a dinâmicae a organização escolar, dentre outras circuns-tâncias, não possibilitam que tais trajetórias se-jam marcadas por uma adequação às demandasdo mercado de trabalho. Além disso, depara-mo-nos com uma escola, inserida num sistemaeducacional, que desvaloriza, denega e recalca

os valores, os conhecimentos, as manifestaçõessócio-culturais e religiosas da maioria dos su-jeitos que nela estão presentes, determinando,às vezes, a evasão, a repetência e o “fracasso”desses sujeitos.

Por conta disso, na década 30, os militantesdos movimentos negros assumiram a respon-sabilidade pelo incremento de ações educacio-nais em prol da comunidade negra – porestarem atentos ao descaso do Estado para coma educação dos negros –, implementando vári-as iniciativas educacionais e tomando para sium problema que era nacional, mas ainda ne-gligenciado pelo Estado. Souza (2003) demons-tra, no seu trabalho de mestrado, IdeologiaRacial Brasileira, Movimento Negro no Riode Janeiro e Educação Escolar, que:

... dez organizações do movimento negro anali-sadas concordaram que a educação escolar temum papel significativo na luta contra a discrimi-nação e o preconceito racial em relação à popu-lação negra e/ou afrodescendente, e atuaram, dealguma forma, em prol de uma educação formalmenos discriminatória”. (SOUZA, 2003, p.2).

Já na década de 40 e início dos anos 50, ummomento marcado por mudanças sociais e po-líticas na sociedade brasileira6, as organizaçõesnegras ampliam as demandas do ponto de vistasócio educacional e político da comunidade ne-gra. Daquele momento, destacamos a atuaçãodo Teatro Experimental do Negro - TEN, lide-rado por Abdias Nascimento, que continua apromover dentro da comunidade negra açõesem que a questão da educação é primordial,haja vista ainda se ter um grande número denegros com baixa escolarização.

Ampliando as suas reivindicações, quantoaos níveis de ensino para a comunidade negra,o empenho das iniciativas centra-se no acessoaos níveis médio e superior. No projeto políticodo TEN havia uma cobrança ao Estado, quantoao direito à educação. Cunha Júnior, Gomes eSantos ( 2003, p. 09) apontam: “A educação éindiscutivelmente dever do Estado. É direito dos

6 É um momento que diferentes forças políticas irão se unirpara interferir na Constituição de 1946, quando temos ummovimento em prol da democratização do país.

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cidadãos”. Cientes da importância da implemen-tação de ações, no campo educacional, foramelaborados outros encaminhamentos para aconstrução de subsídios políticos para a incre-mentação de políticas educacionais no âmbitodo Estado voltadas para comunidade negra. Aslideranças negras daquele contexto ampliam suaatuação política e “opõem-se” às iniciativaseducacionais afastadas do Estado que deveriao seu promotor.

As décadas de 1960, 1970 e 1980 forammarcadas pelo surgimento de diversos grupose associações do movimento negro (notadamen-te nos anos 70 e 80). Nesse contexto, o desen-volvimento de ações políticas, em torno dasquestões educacionais, compôs, de forma inci-siva, as suas agenda políticas. Naquele momento,foi imprescindível notar que as práticas racis-tas e discriminatórias, operadas nos espaçosescolares, continuaram a ser combatidas. Osmilitantes do movimento negro ampliaram, na-quele período, atividades como seminários, de-bates, núcleos de estudo, cursos, palestras econferências. Produziram materiais como jor-nais, cartilhas, cartazes, manifestos, livros para-didáticos e intervieram junto ao poder públicopara aprovação e implementação de componen-tes curriculares sobre estudos africanos7.

Na década de 90, as organizações fortalece-ram suas iniciativas em prol da escolarização,nos níveis fundamental e médio. Contudo, o em-penho se concentra em forjar políticas públicase ações governamentais que facilitem não só oacesso do povo negro à educação, mas assegu-rem inclusive a sua permanência e a divulgaçãode valores culturais das culturas negras atravésde práticas pedagógicas e de recursos didáticos.Com o novo milênio, estabelece-se mais umapauta de busca de ações e políticas públicas paraorganizações negras e sociais: o acesso do povonegro ao nível superior e, por conseguinte, às ins-tâncias profissionais que exigem esse nível deescolaridade. Esse segmento provoca um efeti-vo debate com outros segmentos da sociedadebrasileira, sobretudo com o governo, a fim de quesejam forjadas ações e leis que favoreçam e fa-cilitem o ingresso e a permanência do povo ne-gro ao nível superior.

Diante disso, consideramos que demonstraras trajetórias percorridas pela comunidade ne-gra, no que se refere a sua inserção no campoeducacional, significa compreendê-las sob aótica da resistência, sob seus limites e suas es-pecificidades, sob abnegação dos/as militantes.Esses, a partir dos arremedos conjunturais eestruturais, educaram e politizaram o seu povo,construindo referências que operacionalizam asações das novas gerações.

3. Educação pluricultural e anti-discriminatória é uma outra his-tória

Integrantes de movimentos sociais e negros,pesquisadores, professores negros e indígenase de outros segmentos sociais, unidos às reali-dades e ações dos sujeitos sócio-culturais, têmtraçado uma outra história da educação. Comoformas de resistência, vêm criando possibilida-des de uma educação pluricultural. Têm, inclu-sive, se posicionado em favor de mecanismosde superação do racismo, do sexismo e da dis-criminação no cotidiano escolar e nos outrossegmentos da sociedade. Forjar políticas públi-cas, tão discutidas por Silva (2001), que favo-reçam uma educação pluricultural e antidiscri-minatória, caracterizada por Cavalleiro (2001),também tem sido pauta das diversas organiza-ções negras e sociais.

Pesquisadores e experiências pedagógicas,também, em educação, apontam outros cami-nhos de elaboração de saberes e de superaçãodessa postura homogeneizante e discriminató-ria da escola. Mais ainda, salientam e fazememergir a totalidade das várias dimensões hu-manas que compõem os sujeitos sócio-culturaisenvolvidos na prática escolar – alunos, profes-sores e funcionários. Provocam também umapedagogia que prime pela pluralidade que per-meia a escola.

7 Na Bahia, em 8 agosto de 1983, o Conselho Estadual deEducação (CEE/BA), devido às pressões de segmentos doMovimento Negro, aprova a inclusão da disciplina Introdu-ção aos Estudos Africanos nos currículos do Ensino Funda-mental e Médio. (BOAVENTURA, 2003).

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Permitem, inclusive, compreender a produ-ção de saberes e os sujeitos sócio-culturais paraalém da escola. Nesse sentido, os diversos pa-trimônios culturais que circulam no ambienteescolar devem compor o currículo e todo o pro-cesso de ensino-aprendizagem. Reconhecemque os Quilombos Educacionais e a EducaçãoQuilombola8 são pertinentes propostas de cons-trução de conhecimento e de afirmação do le-gado cultural africano-brasileiro. Justificam,inclusive, a importância do resgate e da ressig-nificação das organizações negras, tais comoirmandades, quilombos, terreiros, sociedadesnegras, grupos, fóruns, como expressão de re-sistência e de afirmação da identidade e do le-gado cultural afro-brasileiro e de superação doracismo.

Possibilitam, ainda, reconhecer outras ins-tâncias, que extrapolam o ambiente escolar, osEgbés9, por exemplo, como espaços legítimosde construção e de partilha de conhecimentose vivências, como expressão de preservação,de sustentação e de dinamização do legado afri-cano-brasileiro. Todas essas vivências, pois, si-nalizam aos outros segmentos sociais, culturaise políticos que é possível elaborar, não tão so-mente um projeto educacional, mas também umprojeto social em que coexistam a igualdade ea diferença.

Nesse sentido, são elaboradas, em váriasregiões do Brasil, inúmeras oportunidades deprocessos educacionais pluriculturais, pautadasna valorização da construção da identidade ne-gra, apresentados por Silva. Na Bahia não fal-tam também experiências e projetos pedagógi-cos, embora insuficientes para atender aocontingente ainda alijado do direito à educação,que facilitem a afirmação da afrodescendênciae o acesso à educação10.

Com o intuito de assegurar os valores afri-canos, foi criada a escola Mini Iyá Oba Biyi, doIlê Axé Opô Afonjá, na década de 1970. Luznarra o surgimento desse projeto educacional:

... instaurou-se, no Brasil e, particularmente, naBahia, a primeira experiência de educaçãopluricultural, inaugurando uma rica e complexalinguagem pedagógica, ancorada nos princípiose valores do patrimônio milenar africano, repos-

to e recriado no Brasil: o projeto piloto de educa-ção pluricultural Mini Comunidade Oba Biyi, quese desenvolveu de 1976 a 1986.

Iyá Oba Biyi nos indica o grande desafio que seapresenta para nós educadores. De um lado, o“anel no dedo”, que significa as possibilidadesde mobilidade social da população infanto-juve-nil de descendência africana na sociedade ofici-al, e, de outro, Xangô, Orixá do fogo, que asse-gura a vida no àiyè, a expansão de linhagens,da existência concreta ininterrupta, filhos, des-cendência, ancestralidade, continuidade dacomunalidade africano-brasileira, presença tran-satlântica dos valores culturais.

A proposição de uma educação no contexto des-se desafio é promover uma linguagem pedagó-gica que estabeleça uma relação dinâmica entreos valores sócio-comunitários da tradição e oscódigos da sociedade oficial, exigindo e assegu-rando nesta relação o direito à identidade pró-pria. (LUZ, 2000, p. 161).

Hoje funciona, no Ilê Axé Opô Afonjá, aEscola Municipal Eugênia Anna dos Santos.Essas duas experiências constituem, em Salva-dor, exemplos históricos relevantes de uma edu-cação pluricultural. Indicam também outrasiniciativas que têm um currículo que prima peladiversidade, mas também reforça e valoriza olegado africano-brasileiro já no nível fundamen-tal. Outros Egbés criam, continuamente, opor-tunidades para assegurar a manutenção dassuas tradições e dos valores africano-brasilei-ros e que forjem iniciativas que facilitem o aces-so à educação dos membros da comunidade.

As escolas das associações culturais, comoaquelas criadas pelos blocos afros, tais como

8 Quilombos Educacionais são as diversas entidades negras,surgidas desde a década de 80, que se espalham por todo oBrasil. Organizam Cursos Pré-vestibulares, Reforço Esco-lar, Preparação para concursos, destinados à comunidadenegra brasileira. Educação Quilombola é um projeto peda-gógico que se realiza em comunidades remanescentes dequilombos, com experiências em várias partes do Brasil.9 Egbés – em iorubá significa comunidades de asè, referindo-se aos terreiros de candomblé.10 O Fórum de Quilombos Educacionais de Estado da Bahia,por exemplo, é constituído por 15 instituições que têmCursos Pré-vestibulares para Jovens e Adultos Negros. Eainda há escolas e atividades culturais e educacionais emTerreiros e Blocos Afros.

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A história do negro na educação: entre fatos, ações e desafios

Escola criativa do Olodum, Escola Mãe Hilda eo Projeto Pedagógico do Ilê Aiyê, o CEAFRO,criado pela UFBA, através do CEAO – Centrode Estudos Afro-Orientais, são alguns exem-plos de projetos educacionais que visam a cola-borar efetivamente com a educação do negroem Salvador. Os Quilombos Educacionais, sur-gidos, desde a década de 80, também se inse-rem em possibilidades educacionais pertinentes,que não visam apenas à transmissão de con-teúdos, o acúmulo de formação e a capacita-ção profissional da comunidade negra, mastambém a construção da sua identidade negra,a preservação e a divulgação do acervo cultu-ral e religioso africano-brasileiro. A pesquisa-dora Silva, ao analisar as iniciativas educativasque foram implementadas em Salvador, nas dé-cadas de 1980 e 1990, afirma:

Paralelo às denúncias da existência de desigual-dades raciais na educação, ao longo das déca-das de 80 e 90, começaram a surgir iniciativas dedesenvolvimento de projetos educativos bus-cando adotar perspectivas pluriculturais e anti-racistas. Em Salvador, assim como em outras ci-dades brasileiras, existem projetos educativosem andamento e estes são significativos da pres-são que tem sido exercida, pelos MovimentosNegros e por outros segmentos da sociedade,para que haja, dentro do sistema educacionalbrasileiro, reconhecimento e respeito às diferen-ças étnicas e raciais existentes no interior dapopulação. A reivindicação feita por tais proje-tos é que seja dado um outro tratamento à pro-blemática racial na escola, pois, apesar de o Bra-sil ser uma sociedade multicultural e multirracial,o sistema de ensino ainda não adotou princípiospedagógicos coerentes com tal diversidade.

A presença de iniciativas da própria sociedadee, especificamente, dos Movimentos Negros, derealizar projetos educativos voltados para aten-der às reivindicações desse segmento é muitoimportante, e anuncia um fato novo no Brasil,que é a transformação das denúncias em açõesde caráter autônomo e que se apóiam em organi-zações de caráter local. Embora seja recente osurgimento de demandas dos Movimentos Ne-gros relacionadas à educação, tem aumentadomuito o número de experiências desse tipo emtodo Brasil, nas últimas décadas ... (SILVA, 1997,p. 135-136).

As experiências educacionais pluriculturais,estudos e pesquisas também têm apontado al-guns desafios, decorrentes da visão estereoti-pada e homogeneizante, presentes na escola,que devem ser enfrentados, tais como: a inclu-são de temáticas como cultura, raça/etnia, re-lações de gênero em sala de aula; estudos so-bre os processos civilizatórios africanos e sobreas africanidades na sociedade brasileira; com-preensão dos alunos como portadores e produ-tores de cultura e não apenas como sujeitos deaprendizagem; articulação da educação cida-dania e raça em suas ações pedagógicas; de-bates sobre diversidade sócio-cultural; visibili-zação da construção da identidade étnico-racialdo povo negro; elaboração de material didáti-co; continuidade de análise do livro didáticoquanto à representação do negro e de gênero erevisão bibliográfica e de conceitos.

As experiências de educação pluriculturalsuscitam, pois, mudanças de currículos, de pa-radigmas e de procedimentos que contribuampara desconstruir a história da educação donegro no Brasil, pautada no recalque, na homo-geneização, em abordagens, metodologias, pro-jetos e práticas pedagógicas excludentes eracistas. Essa concepção pedagógica vem, cer-tamente, elaborando uma outra história da es-colarização e de educação do negro no Brasil,na qual não apenas o acesso seja o objeto danarrativa, mas também a permanência e a suainclusão com todas as vicissitudes do que signi-fica ser negro no Brasil, bem como do legadocultural africano-brasileiro.

Considerações FinaisConstatamos, com este trabalho, que, de

fato, a nação brasileira tem uma dívida socialefetiva com o povo negro, em relação aos di-reitos sociais, sobretudo no que se refere à edu-cação. Como vimos, por um lado, a história donegro na educação é formada por capítulos deexclusão, desigualdade, preconceito e racismo.

Por outro, as organizações negras têm en-frentado esse déficit, por meio de diversos pro-jetos pedagógicos e de estratégias, que forjampolíticas públicas, as quais favoreçam uma re-

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Ana Rita Santiago da Silva; Rosângela Souza da Silva

paração, através da implementação do Proje-to de Políticas de Ações Afirmativas, que sãoas políticas compensatórias de caráter repa-ratório para proteger minorias e grupos quetenham sido discriminados no passado, queoportunizem uma real, eficaz e efetiva demo-cratização do sistema educacional (SILVÉRIO,2002). Evidentemente, já há uma trajetória delutas, resistências e conquistas de reconheci-mento do direito à educação que compõe umaoutra história da educação do negro no Brasil.As ações educativas, elaboradas pelas orga-nizações negras, ainda denunciam a perversae negativa realidade educacional do povo ne-gro brasileiro e todo processo de legitimaçãoda pedagogia excludente.

Certamente, há um outro capítulo que es-tamos construindo com pesquisas afins à ques-tão educacional e outras áreas do conhecimento,

11 Estamos nos remetendo à Associação Nacional de Pesquisadores, que já realizou três Congressos Brasileiros de PesquisadoresNegros, que objetivam fazer um balanço e difundir a produção desses pesquisadores. O primeiro foi realizado em Recife/Pe, noperíodo de 22 a 25 de novembro de 2000; o segundo, no período de 25 a 29 de agosto de 2002, na cidade de São Carlos/SP; eo terceiro, de 06 a 10 de setembro, em São Luís/MA. O próximo congresso acontecerá na Bahia, em 2006, conformedeliberação do último congresso.12 Conforme Parecer, expresso na Indicação CNE/CP 06/2002, bem como o regulamento da alteração trazida à Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 10639/2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino de História eCultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na Constituição Federalnos seus Art. 5, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26A e 79B na Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assimcomo garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentesfontes da cultura nacional a todos brasileiros. (Ministério da Educação – Conselho Nacional de Educação – CNE/CP 003/2004, aprovado em 10/03/2004).

realizadas por pesquisadores(as) negros(as)11.Já não somos tão somente objeto de pesquisa.Sempre soubemos falar, através das formas deresistências. Mas agora já temos tradição ci-entífica, ou seja, já temos uma história legiti-mada no âmbito das ciências.

Possivelmente, enquanto sociedade, construi-remos um capítulo, em meio às tensões e con-flitos, sobre o Projeto de Políticas de AçõesAfirmativas, elaborado pelo governo brasileiro,e a Lei 10.63912, em fase de implantação. Maisconvictas ainda estamos de que as organiza-ções negras continuarão a fazer uma outra his-tória da educação do povo negro, apontando etraçando, para/com outros segmentos da soci-edade brasileira, caminhos de superação do ra-cismo na educação e para implementação deações educativas que considerem a nossa his-tória e nossos saberes.

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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Tahís Cristina Rodrigues Tezani

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* Pedagoga. Especialista em Psicopedagogia. Mestra e doutoranda em Educação, área de concentração: Fundamentos daEducação, na PPGE/CECH - UFSCar - Universidade Federal de São Carlos, SP. Professora da rede municipal e daFaculdade Fênix de Bauru, SP. Endereço para correspondência: Faculdade Fênix de Bauru, Rua Anhanguera 9-19, VilaSilva Pinto – 17013-190 Bauru-SP. E-mail: [email protected]

RESUMOEste texto tem como objetivo divulgar os resultados de um estudo que buscouconhecer um pouco da história e dos paradigmas vividos pelo homem para secompreender a dinâmica desenvolvida pela sociedade no atendimento às pessoascom necessidades especiais. São acrescentados os fatos marcantes da educaçãoe da educação especial nacional, fazendo uma revisão dos movimentos edocumentos internacionais e nacionais que influenciaram o movimento inclusivono Brasil, segundo o paradigma correspondente. O Paradigma da Exclusãoque prevaleceu durante vários séculos se caracteriza por excluir totalmente doconvívio social e educacional a pessoa com algum tipo de deficiência. OParadigma da Institucionalização é marcado pelo confinamento da pessoadeficiente em asilos, conventos e hospitais psiquiátricos para o seu tratamento.O foco do Paradigma de Serviços está na modificação da pessoa especial paraque esta se assemelhe aos demais cidadãos e, assim, possa ser integrada/inserida no convívio social. O Paradigma de Suportes estabelece que a sociedadenecessita se reorganizar, visando à garantia do acesso ao convívio social detodos. O Paradigma da Inclusão pressupõe o atendimento educacionalespecializado na rede regular de ensino para alunos com necessidadeseducacionais especiais, com base nas devidas adaptações que são necessárias.

Palavras-chave: Paradigmas educacionais – Educação inclusiva – Históriada educação especial brasileira

ABSTRACTCONSIDERATIONS ON THE HISTORY OF EDUCATIONESPECIAL IN BRAZIL: ACTIONS AND DOCUMENTS

This text has as objective to divulge the results of a study that sought to knowa little of the history and of the paradigms lived by the man for if it comprehendsthe dynamics developed by the society in the assistance to people with specialneeds. To be added the education striking facts and of the national special

CONSIDERAÇÕES SOBREA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL:

MOVIMENTOS E DOCUMENTOS

Thaís Cristina Rodrigues Tezani*

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education, doing a actions and international and national documents revisionthat influenced the inclusive action in Brazil, according to correspondingparadigm. The Exclusion Paradigm that prevailed during several centuriescharacterizes for excluding totally of the social and educational conviviality theperson with some deficiency kind. The Institutionalization Paradigm is markedby the person’s deficient confinement in asylums, convents and psychiatrichospitals for your treatment. The Services Paradigm focus is in the person’sspecial modification so that this resembles to the too much citizens and, thus,can be integrate/insured in the social conviviality. The Supports Paradigmestablishes that the society needs if it reorganizes, aiming at the access warrantyto the social conviviality of all. The Inclusion Paradigm presupposes thespecialized educational assistance in the teaching regular net for students withspecial educational needs, with base in the owed adaptations that are necessary.

Key words: Educational paradigms – Inclusive education – Brazilian specialeducation history

Os processos para construção deum sistema educacional inclu-s ivo

Ao longo da história foram sendo elabora-das formas de lidar com a pessoa diferente combase em concepções, crenças e valores, parti-lhados pelos membros da sociedade em cadaperíodo. Aplica-se o conceito de paradigma1 aessas questões relativas ao tratamento do indi-víduo diferente. Quando a sociedade passa aenfatizar outro paradigma não significa que oanterior deixou de existir; ele ainda existe, mascom menor intensidade.

O pensar e o agir do homem em sociedadealteram-se de acordo com as condições sócio-históricas, que acompanham a trajetória de cadaperíodo na história mundial (COSTA, 1997),variando, então, a concepção de pessoa comnecessidade educacional especial e o tratamentodado a ela. No Ocidente, predominou por vári-os séculos a segregação, a discriminação, a in-diferença, em diferentes condições e momentos,tema este discutido por Mazzotta (1996), Jan-nuzzi (1992), Bueno (1993), Mendes (2000;2001a/b; 2002), Aranha (1994; 2000; 2001),Brasil (2000), Akashi e Dakuzaku (2001).

O estudo tem como uma das referênciasbásicas o conjunto de documentos produzidospelo Ministério da Educação, Secretaria de

Educação Especial, sob o título geral: “ProjetoEscola Viva: garantindo o acesso e permanên-cia de todos os alunos na escola – Alunos comnecessidades educacionais especiais” (BRA-SIL, 2000), o qual confirma a relevância deconhecer a perspectiva histórica para entendero momento atual, pois “para compreender maisamplamente esse processo histórico há que seconhecer os muitos caminhos já trilhados pelohomem ocidental em sua relação com a parce-la da população constituída pelas pessoas comnecessidades educacionais especiais” (BRA-SIL, 2000, p. 7).

Para Akashi e Dakuzaku (2001, p. 46), ahistória da pessoa especial no Brasil é marcadapela exclusão, que se apresenta de diferentesformas e varia conforme “o lugar, o tempo e omomento histórico: desde o infanticídio, o aban-dono, o exílio, o esmolar, o assistencialismo, opaternalismo, a internação e o asilamento até asolicitação da participação social, porém semas reais condições que permitem a integração.”

Ao realizar uma abordagem tão ampla, en-volvendo povos e séculos tão diversos, tem-seconsciência da fragilidade das concepções as-

1 Considera-se paradigma o conjunto de crenças, técnicas,valores e opiniões utilizados pelos seres de uma determina-da sociedade, em uma determinada época. “Um paradigma éaquilo que os membros de uma comunidade partilham”(KUHN, 1992, p. 219).

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sumidas. No entanto, algumas concepções pre-dominam, o que permite para o objetivo do es-tudo agrupá-las.

O Paradigma da ExclusãoO Paradigma da Exclusão se caracteriza por

excluir totalmente do convívio social e educaci-onal a pessoa com algum tipo de deficiência.

Na Antigüidade (dos primórdios ao séculoIV), segundo Aranha (1989), Cambi (1999),Brasil (2000) e Manacorda (2002), os grupossociais estavam divididos em aristocracias; quedetinham o poder e a população, que se carac-terizava por péssimas condições de vida. A eco-nomia estava baseada na agricultura, napecuária, no artesanato e no comércio, visandoao enriquecimento da aristocracia, havendo lu-tas pela propriedade de terra e a exploração dosistema escravista.

Os processos educativos, de acordo comManacorda (2002), eram divididos segundo asclasses sociais. Havia a escola do pensar/falare a escola do agir: a primeira encarregava-sede preparar para a política através da oralida-de, e a segunda para a guerra, usando habilida-des corporais e a força física. A educação “seorganizava em torno dos valores da força e dapersuasão, da excelência física e espiritual, dasarmas e das palavras” (CAMBI, 1999, p. 50),excluindo totalmente as pessoas com algum tipode deficiência, fossem estas físicas, motoras ouintelectuais, dos processos educacionais.

Werner Jaeger analisa em sua obra, Pai-déia, toda a educação grega, afirmando quehavia a valorização do corpo. Para ele, a valo-rização do corpo era percebida nas estátuas dosvencedores olímpicos e a “criação dos meni-nos” englobava o conjunto de exigências ide-ais, físicas e espirituais para realizar a formaçãoespiritual consciente do homem apto ao conví-vio em sociedade, havendo “exaltada valoriza-ção do indivíduo” (JAEGER, 1936, p. 436).

Não há registro de nenhuma atenção edu-cacional à pessoa especial, pois em uma épocana qual a força física era necessária e valoriza-da, essas pessoas eram abandonadas para não

prejudicarem o grupo, devendo ser evitado oconvívio, servindo apenas como diversão e/oupodendo ser até executadas.2

Na Idade Média européia (século V a XV),a economia caracteriza-se pelo comércio ba-seado na agricultura, na pecuária e no artesa-nato. Na organização social e política, há novossegmentos: o senhor, o servo e o clero católico.A sociedade se caracterizava por ser essenci-almente agrária, auto-suficiente na atividadeagrícola, no artesanato caseiro e o comérciolocal era considerado restrito (BRASIL, 2000).

Nessa época, era muito comum a hansenía-se e, para banir a pessoa com esta doença doconvívio social, foram criados leprosários, ondeviviam confinadas (AKASHI; DAKUZAKU,2001).

“A educação surge como instrumento paraum fim considerado maior, a salvação da almae a vida eterna” (ARANHA, 1989, p. 97). Deusé considerado o fundamento da ação e finalida-de pedagógica. As pessoas diferentes não po-deriam ser exterminadas, pois eram considera-das criaturas de Deus, mas continuavamexcluídas do convívio social. Serviam como di-versão para as camadas abastadas da socieda-de da época, trabalhavam de bobo da corte, emcircos, tabernas ou bordéis (AKASHI; DAKU-ZAKU, 2001).

O processo de declínio da Idade Média einício da Idade Moderna é caracterizado pelosurgimento da burguesia, evolução do comér-cio e das grandes navegações. A burguesia é a“classe que faz amadurecer princípios novos,novos valores e novos ideais: o individualismo,a liberdade, a produtividade” (CAMBI, 1999,p. 172).

Nesse momento histórico, a educação esta-va dividida em religiosa, para a formação doclero, e outra voltada para as necessidades lo-cais (artesanato, guerra). A exclusão do pro-cesso educacional não era apenas da pessoadiferente, mas também das camadas popula-res, pois a educação formal era, na época, umprivilégio para poucos. Para Manacorda (2002),

2 Observa-se essa situação em algumas tribos indígenas bra-sileiras.

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a educação tinha como método a intensa me-morização e repetição em voz alta, dando pou-ca ênfase à escrita.

De acordo com Akashi e Dakuzaku (2001,p. 31), quem se opunha às normas estabeleci-das pela aristocracia e pelo clero recebia puni-ções, como o vazamento dos olhos e mutilaçõespelo corpo. De forma semelhante, a pessoa di-ferente era considerada “castigada”, pagandopecado por algum crime e separada do conví-vio social. Em outros casos, era consideradadiabólica, pois acreditava-se que “corpo defor-mado significava ter a mente também defor-mada”. Viviam da compaixão das pessoas,recebendo esmolas, doações de alimentos evestimentas. Separar do convívio social era umbem para a aristocracia e não para a pessoadiferente.

Com a Inquisição Católica, a pessoa dife-rente, aquele que discordasse das idéias e or-dens da Igreja, sofria perseguições, torturas e,como última conseqüência, a morte. A pessoadiferente passa por um momento delicado, poispodia ser considerada herege ou endemoniada,fugindo da imagem e semelhança de Deus e,assim, sofrer com a perseguição, caça e exter-mínio (BRASIL, 2000).

Percebe-se, nesses momentos da históriada humanidade, que o paradigma da exclusãosofre uma evolução; num primeiro momento,a pessoa diferente não é considerada ser hu-mano, apenas criatura de Deus como um ani-mal; num segundo momento, a concepçãopassa a ser metafísica, considerada como pos-suída pelo demônio.

No século XVII, com as novas descobertasno campo da Biologia, Medicina e Saúde, colo-ca-se a deficiência como origem orgânica, o quefomentou ações para o tratamento médico,como: remédios e medicamentos, o que foi clas-sificado como tese da organicidade. No séculoXVIII, tal perspectiva proporcionou, mesmo quelentamente, a tese do desenvolvimento por meioda estimulação, na qual o conceito de deficiên-cia estava relacionado a causas naturais (BRA-SIL, 2000).

Para Mazzotta (1996, p. 16), até o séculoXVIII, “as noções a respeito da deficiência eram

basicamente ligadas a misticismo e ocultismo,não havendo base científica para o desenvolvi-mento de noções realísticas. O conceito de di-ferenças individuais não era compreendido ouavaliado.”

Portanto, conclui-se que o Paradigma daExclusão é caracterizado por impedir o conví-vio social e educacional da pessoa com neces-sidade especial, prevalecendo durante váriosséculos. Com a perda de sua hegemonia, o Pa-radigma da Institucionalização se fortalece.

O Paradigma da Institucionaliza-ção

O Paradigma da Institucionalização se ca-racteriza por ser o primeiro paradigma formal aestabelecer uma relação entre a sociedade e apessoa diferente. É marcado pelo confinamen-to da pessoa deficiente em asilos, conventos ehospitais psiquiátricos para o seu tratamento.

Para Aranha (2000), esse paradigma se ca-racteriza pelo princípio de que a pessoa comnecessidade especial será melhor cuidada, sepermanecer isolada e confinada em ambientessegregados, longe do convívio social, apenas emcontato com seus semelhantes.

Jannuzzi (1992, p. 9), em seu levantamentohistórico sobre a Educação Especial no Brasil,concluiu que esta foi “sendo o centro de aten-ção e preocupação apenas nos momentos e namedida exata em que dela sentira necessidadeos segmentos da sociedade.” Para a autora, em1600, em São Paulo, ainda no Brasil Colônia,surgiram instituições de atendimento à pessoadiferente, apontando que, no século XIX, “aeducação popular, e muito menos a dos ‘defici-entes mentais’, não era motivo de preocupa-ção”, havendo registros de algumas iniciativasisoladas. (1992, p. 23)

Como exceção, há, entre os anos de 1835 e1869, no Brasil, a preocupação do Império comos surdos, os mudos e os cegos. Assim, é cria-do o cargo de professor específico para essesalunos em 1835. Em 1854, cria-se o ImperialInstituto dos Meninos Cegos e, em 1857, o Ins-tituto dos Surdos-Mudos. Em 1869, Benjamin

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Constant assume a direção do Imperial Institu-to dos Meninos Cegos, que, posteriormente,recebe seu nome. A educação brasileira na épo-ca é acessível para poucos, mas as camadaspopulares começam a galgar seus espaços eque os alunos com necessidades especiais tam-bém buscam seu lugar no campo educacional(BRASIL, 2000). Para Mazzotta (1996, p. 28),esse momento, que abrange de 1854 a 1956, éclassificado por “iniciativas oficiais e particula-res isoladas”.

Cabe destacar os estudos feitos por MariaMontessori3, na Itália, que se interessou, inici-almente, pela educação de crianças especiais,ao realizar observações sobre psicologia infan-til. A partir disso, escreveu uma obra extensa eespalhou seu método por todo o mundo, marca-do pelo respeito às diferenças individuais e pelaatividade do aluno, sendo este responsável tam-bém pela higiene e limpeza das salas de aula. Émarcado pelo ensino individualizado, centradona auto-educação.

Entre 1915 e 1943, há diversas inauguraçõesem várias partes do País: Instituto Nacional dosSurdos, em Laranjeiras-RJ, Instituto Rafael paraCegos, em Belo Horizonte, Sociedade Pestalo-zzi, em Canoas-RS. Na Santa Casa de Miseri-córdia de São Paulo é criado o PavilhãoFernadinho Simonsens, com classe de alfabeti-zação para alunos hospitalizados; o InstitutoPestalozzi é fundado em Minas Gerais e há ainauguração de vários Institutos para Cegos:São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará(BRASIL, 2000).

Para Mendes (2000), a sociedade começaa admitir que as pessoas especiais poderiam serprodutivas, se recebessem cuidados especiais(educação e treinamento); assim, surgiram, nocontexto do século XX, algumas escolas espe-ciais e centros de reabilitação.

O contexto da nova crise do modelo agrá-rio-comercial exportador dependente e do iní-cio de estruturação do modelo nacional-desen-volvimentista, com base na industrialização(1920–1937) caracterizam a fase anterior eposterior à Revolução de 30.

No Período Vargas (1930-1945), o Brasil foimarcado pela relação entre educação e desen-

volvimento, pois já havia grande expansão donúmero de escolas para suprir a demanda po-pulacional; porém, o crescimento quantitativonão garantiu a qualidade do ensino. Com o au-mento do número de pessoas nas cidades, ogoverno tenta fixar o homem no campo, mas,para isso, seria necessária a reformulação daeducação, visando ao ensino técnico rural. Essecontexto é caracterizado também pelo modelonacional-desenvolvimentista, com base na in-dustrialização (1937-1955).

Para Romanelli (1978), entre 1946 e 1961,há a votação da Constituição e da Lei 4.024/61,que fixam as Diretrizes e as Bases da Educa-ção Nacional, que é marcada por conflitos ide-ológicos de esquerda e de direita e a oposiçãoentre escola pública e privada. Com a Lei acen-tua-se a discussão em relação à educação po-pular, métodos pedagógicos, alfabetização(BUFFA, 1989; PAIVA, 1984; CURY, 1985).

A referida Lei (BRASIL, 1961) estabele-ce, no Título X, o princípio de integração, noqual a educação dos excepcionais se enqua-dra no sistema geral de educação, garantindoa integração em comunidade e prevendo oapoio financeiro. A educação dos alunos comnecessidades especiais deveria ser articuladaao sistema comum de ensino, visando ao prin-cípio da integração dos alunos com a comuni-dade. Em 1962, surge o Primeiro PlanoNacional de Educação.

Sobre a Educação Especial na época desta-ca-se que, em 1942, há a edição da primeiraRevista Brasileira para Cegos e, como conse-qüência, em 1946, é criada a Fundação para oLivro do Cego, objetivando a divulgação de li-vros em Braile no País. Com isso, em 1949,através da Portaria Ministerial no 504, o Gover-no garante a distribuição gratuita de livros emBraile. E, em 1954, é fundada, no Rio de Janei-ro, a Associação de Pais e Amigos dos Excep-cionais (APAE).

3 Maria Montessori (1870-1952), médica italiana, católicafervorosa, iniciou seus estudos misturando o espírito cientí-fico com misticismo. Estuda, inicialmente, crianças comnecessidades educacionais especiais; depois, desenvolve ummétodo de ensino para todas as crianças. Em 1907, abre, naItália, um espaço para atender aos filhos de operários, co-nhecida como a Casa de Bambini (ARANHA, 1989).

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O século XX acentua o declínio do Paradig-ma da Exclusão, fortalecendo o Paradigma daInstitucionalização.

Por volta de 1960, em vários países e noBrasil, o Paradigma da Institucionalização co-meça a ser repensado: a crítica que se faz éque esse modelo não proporciona nem favore-ce a preparação da pessoa com necessidadeespecial para o convívio em sociedade, enquantoo custo de uma pessoa institucionalizada é cadavez mais alto.

Outro aspecto que favoreceu a perda dahegemonia deste Paradigma são os movimen-tos em prol dos direitos humanos que se forta-lecem. Para Bobbio (1992, p. 5), a luta pelagarantia dos direitos humanos tem provocadoinúmeros debates e constantes indagações, pois“os direitos humanos são direitos históricos queemergem gradualmente das lutas que o homemtrava por sua própria emancipação e as trans-formações das condições de vida que essas lu-tas produzem.”

A década de 1960 foi decisiva e marcantepara o declínio do Paradigma da Institucionali-zação, iniciando as propostas de desinstitucio-nalização e normalização.4 Nessa perspectiva,pensa-se na introdução da pessoa com neces-sidade especial na sociedade, “procurando aju-dá-la a adquirir as condições e os padrões davida cotidiana, no nível mais próximo possíveldo normal” (BRASIL, 2000, p. 16).

Segundo Mendes (2001b), a década de 1960é relevante por apresentar avanço científico nacomprovação das potencialidades dos alunoscom necessidades educacionais especiais.

Com a economia mundial abalada, manterprogramas de segregação tinha um custo alto,se tornando inviável. Passou-se a analisar quea pessoa com necessidade especial poderia re-alizar serviços à comunidade, fortalecendo suaintegração e contribuindo para a economia ca-pitalista (ARANHA, 1994).

Como conseqüência das propostas de supe-ração do Paradigma da Institucionalização, ini-ciam-se as idéias de Normalização, fomentandoo conceito de integração, ou seja, a pessoa comnecessidade especial deve estar inserida ou in-tegrada no convívio social. “Na década de 60 e

70, houve um grande movimento para retirarpessoas com deficiências das grandes institui-ções e reinseri-las na comunidade, que se con-figurou no movimento de desinstitucionalização”(MENDES, 2001b, p. 6).

O Paradigma da Institucionalização perdesua hegemonia, proporcionando o surgimentodo Paradigma de Serviços, pois, para que a pes-soa especial pudesse se adequar/modificar paraviver em sociedade, é necessário que se ofere-çam serviços e recursos favoráveis ao princí-pio da integração.

O Paradigma de ServiçosCom a perda da hegemonia do Paradigma

da Institucionalização, o Paradigma de Servi-ços emerge devido às idéias de normalização eao conceito de integração. O foco deste para-digma está em modificar a pessoa especial paraque esta se assemelhe aos demais cidadãos e,assim, possa ser integrada/inserida no convíviosocial. A mudança deveria ocorrer na pessoadiferente e para isso cabe à sociedade ofere-cer os serviços e os recursos necessários(BRASIL, 2000).

O Paradigma de Serviços se caracteriza portrês etapas: primeira – avaliação feita por umaequipe de profissionais que especifiquem o quedeve ser modificado na vida do sujeito, paratorná-lo o mais próximo da normalidade; segun-da – a equipe passa a intervir e oferecer aten-dimento, de acordo com os resultados daavaliação realizada; e terceira – encaminha-mento da pessoa com necessidade especial paraa vida na comunidade (BRASIL, 2000).

Para Aranha (2000), o Paradigma de Servi-ços se baseia no pressuposto de que a pessoacom necessidade especial tem o direito de con-vívio em sociedade, mas desde que esteja pre-parada para tal. Esse Paradigma se ajusta paraos que conseguiam se adaptar, deixando muitosexcluídos.

4 Percebe-se esse movimento também na luta contra osmanicômios.

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Alguns movimentos marcaram o Paradig-ma de Serviços, como, no final dos anos 1960,a Campanha Nacional de Educação e Reabili-tação de Deficientes Mentais, a Campanha Na-cional de Educação de Cegos; são criados:Centro de Reabilitação de Cegos no Brasil,Federação Nacional das APAEs, Secretaria deEducação Especial e Associação Brasileira deEducadores de Deficientes Visuais.

No período, em que o Paradigma de Servi-ços é emergente, há, no Brasil, o contexto dacrise do modelo nacional-desenvolvimentista,iniciado em 1930 e falido no final da década de70, da industrialização e da implantação domodelo “associado” de desenvolvimento eco-nômico, que pode ser dividido em dois períodos:o período anterior ao golpe de 1964 (democra-cia restrita, 1945-1964) e o período posterior aogolpe (período militar, 1964-1985).

A política educacional dos governos milita-res resultou em alguns avanços em nível denormas para o campo da educação especial.Por outro lado, houve falta de recursos huma-nos e materiais para manter com qualidade osoito anos de obrigatoriedade de ensino, forma-ção de um exército de reserva com mão-de-obra barata, preparação das elites para ovestibular, afirmação do sistema dual de ensi-no, privatização do ensino nos moldes empre-sariais e não-pedagógicos, aumento na criaçãode cursos superiores. Essas políticas educacio-nais enfatizaram o aspecto administrativo daeducação, promovendo avanços quantitativos etécnicos, esquecendo-se da qualidade do ensi-no e da formação integral do aluno (ARANHA,1989, MENDES, 2000; 2001b).

As associações Sociedade Pestalozzi,AACD (Associação de Assistência à CriançaDefeituosa), APAE (Associação de Pais eAmigos do Excepcional) passaram a enfatizara questão educacional da pessoa diferente.

No Parecer no 252, de 1969, fica estabele-cido que o Curso de Pedagogia poderá ter, den-tre suas habilitações, a Educação Especial. ALei 5.692/715 estabeleceu a obrigatoriedade deoito anos de escolarização, “resultante da fu-são do ensino primário com o ginasial” (OLI-VEIRA; ADRIÃO, 2002, p. 35), e acabou com

o exame de admissão. A escola profissionalpassa a ser o resultado da soma da escola se-cundária e técnica, ficando estabelecido o prin-cípio da continuidade e terminalidade.Estabelece-se, no seu Artigo 9, o tratamentoespecial aos excepcionais (física, mental, su-perdotados), sendo que a educação oferecida aeles deveria ser especial.

Até aquele momento, a legislação nacionalgarantia o princípio da integração social, masnão estabelecia os princípios da inclusão edu-cacional.

Na década de 1970 é criada a FederaçãoNacional das Sociedades Pestalozzi. O Oficiono 93/71 extingue as Campanhas de EducaçãoEspecial e sugere que se realize um programaintegrado de assistência a todos os excepcio-nais e é estudado um currículo para formaçãode profissionais em nível universitário. Em 1973,é criado o Centro Nacional de Educação Espe-cial e, no ano seguinte, o Parecer no 3.763/74dispõe sobre o tratamento especial para o alu-no cego no exame vestibular. Em 1977, a Por-taria Interministerial no 477 (MEC) estabeleceas diretrizes de ensino para o atendimento inte-grado dos excepcionais no sistema regular deensino e em instituições especializadas comassistência médico-psicossocial. Em 1979, oPlano Nacional de Educação Especial estabe-lece diretrizes para ação na área (BRASIL,2000).

O processo de normalização foi amplamen-te criticado, pois não é possível que a pessoacom necessidade especial seja igual aos outros;seria descaracterizá-la como pessoa. Esse pa-radigma propõe a substituição da expressão“alunos excepcionais” por “alunos portadoresde necessidades especiais” (BUENO, 1993).

O Paradigma de Serviços que, desde o iní-cio da sua implementação, foi amplamente cri-ticado pela comunidade científica, pelasassociações e pelos órgãos de representaçãodas pessoas com necessidades especiais, por

5 Em 1971, foi aprovada a Lei 5.692/71, que estabeleceapenas as diretrizes e bases para os ensinos de 1o e 2o grause não para a educação nacional; assim, é considerada apenasLei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1o e 2o graus.

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acreditarem que não seja possível modificar apessoa especial para que esta seja consideradanormal; desta forma perde sua hegemonia parao Paradigma de Suportes.

O Paradigma de SuportesCom o declínio do Paradigma de Serviços,

emerge o Paradigma de Suportes: ao constatarque os serviços de avaliação e de capacitaçãonão garantiram o convívio da pessoa com ne-cessidade especial na sociedade; percebeu-seque a sociedade necessita se reorganizar, vi-sando à garantia do acesso ao convívio socialde todos.

Ao comparar o Paradigma de Serviços como Paradigma de Suportes, analisa-se que, noprimeiro, o foco é a pessoa com deficiência e odesenvolvimento de serviços junto a ele, paraque desenvolva suas competências e habilida-des; no segundo, o foco é a sociedade e o de-senvolvimento de ações para o acolhimento e aconstrução de uma sociedade inclusiva, acolhe-dora.

Para garantir essa convivência, “se desen-volveu o processo de disponibilização de supor-tes, instrumentos que garantam à pessoa comnecessidades educacionais especiais o acessoimediato a todo e qualquer recurso da comuni-dade” (BRASIL, 2000, p. 18).

Aranha (2001) afirma que a hegemonia doParadigma de Suportes proporcionou o movi-mento de inclusão social, necessário por garan-tir uma estrutura de base para que o processode inclusão ocorra como apoio físico, pessoal,material, técnico e social.

Inclusão e integração partem do mesmopressuposto: a pessoa com necessidade espe-cial tem direito de acesso aos espaços da vidaem sociedade, com igualdade e respeito. OParadigma de Serviços norteia a idéia de inte-gração, ou seja, investe-se na promoção demudanças no sentido de normalizar a pessoacom necessidade especial, atuando na família,na escola e na comunidade. Já a inclusão re-quer muito mais que suportes e serviços; ne-cessita de mudança de postura e ações.

Em 1981, a Resolução no 2 do ConselhoFederal de Educação aumenta os prazos paraconclusão dos cursos de graduação aos alunoscom deficiências e a Secretaria de EducaçãoEspecial passa a ser um órgão que visa à cria-ção e à coordenação de políticas voltadas paraas pessoas com deficiências. Há, nessa déca-da, o lançamento, em todo o País, da RevistaIntegração, que oferece artigos sobre educa-ção especial.

Para Mazzotta (1996), esses paradigmas(serviços e suportes) abrangem o período de1957 a 1993, no qual há iniciativas oficiais deâmbito nacional.

O Paradigma de Suportes está presente naatualidade, mas o Paradigma da Inclusão sefortalece. A educação inclusiva está baseadaem práticas educacionais resultantes do movi-mento de inclusão social, tendo, como pressu-posto, a democracia, a diversidade, a aceitaçãoe a cidadania (MENDES, 2002).

O Paradigma da InclusãoEntende-se como Paradigma da Inclusão o

atendimento educacional especializado na rederegular de ensino para alunos com necessida-des educacionais especiais, com base nas adap-tações que se fizerem necessárias.

Há, na história da educação brasileira, al-guns fatos isolados, exceções, que indicam oParadigma da Inclusão (BRASIL, 2000):

- em 1910, três cegos que estudaram noInstituto Benjamin Constant ingressam naFaculdade de Direito de São Paulo e, em1915, se formam.

- em 1933, a Comissão do Ensino Secundáriodo Conselho Nacional de Educação autorizaa matrícula de um aluno cego no ensinoregular, na cidade de Curitiba. Dez anosdepois, a mesma Comissão autoriza umaluno cego a se matricular na Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras.

- no início da década de 50, surge, a títuloexperimental, a primeira classe integradacom alunos cegos no ensino regular, que

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haviam concluído o curso ginasial noInstituto Benjamim Constant. Os cegos,mediante Portaria Ministerial no 12,ganharam o direito de acesso aos cursosuniversitários.

- em São Paulo, em 1957, é realizada aintegração de alunos com deficiênciasfísicas no ensino regular.

- a partir de 1958, há investimentos técnico-financeiros nas secretarias de educação einstituições especializadas, advindos doMinistério da Educação, estimulandocampanhas nacionais para a educação daspessoas especiais (JANNUZZI, 1992).

A educação inclusiva, no Brasil, está em-basada nos seguintes documentos oficiais:

• Constituição de 1988 (BRASIL, 1988).

• Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA, Lei no 8.069/90).

• Declaração Mundial de Educação paraTodos (UNESCO, 1990).

• Declaração de Salamanca e Linha de Açãosobre necessidades educativas especiais(BRASIL, 1997a).

• Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional no. 9394/96 (BRASIL, 1996, art.58 e 59).

• Parâmetros Curriculares Nacionais doEnsino (BRASIL, 1997).

• Adaptações Curriculares para Alunos comNecessidades Educacionais Especiais,conhecido como os “Parâmetros CurricularesNacionais da Educação Especial”(BRASIL,1998).

• Plano Nacional de Educação (BRASIL,2001b).

• Diretrizes Nacionais da Educação Especial,na Educação Básica (Resolução no. 02/2001, da Câmara de Educação Básica doConselho Nacional de Educação).

Vários autores, como Cury (2002), Demo(1997), Ferreira (1998), Mantoan (2003), Sou-za e Prieto (2002) discutem sobre a inclusão a

partir da legislação vigente. Para Cury (2002,p. 5), a legislação insiste em dois pontos: a igual-dade e a diversidade, favorecendo, assim, a “in-clusão democrática.”

Para Minto (2002, p. 36), a legislação edu-cacional tem avançado no que se refere à edu-cação do aluno especial, ao considerar aeducação especial como “uma modalidade deeducação escolar a ser oferecida, preferenci-almente, na rede regular de ensino para as pes-soas com necessidades educativas especiais.”

Interpretando o paradigma emer-gente: a educação inclusiva

Percebe-se, com os movimentos e documen-tos na área educacional, que há uma mudançade paradigma. O paradigma emergente é o dainclusão, da igualdade de direitos na busca poruma sociedade e uma escola mais justa.

Entendemos que ora a lei é resultado da lutapelos direitos, ora discrimina, ora necessita deajustes. Acreditamos, portanto, que os movi-mentos sociais, as leis, os programas, as co-missões e os conselhos fazem parte de um pro-cesso de construção e exercício da cidadaniana garantia dos direitos humanos. Sabemosque, para assegurar a integração da pessoacom deficiência na sociedade, mais do que sim-ples legislação são importantes mudanças con-cretas de atitudes (AKASHI; DAKUZAKU,2001, p. 48).

Para Demo (1993, p. 33), a educação develevar ao aprender a aprender6, na qual a habili-dade de ler, interpretar sua realidade e a capa-cidade de atualização são constantes. Propõe apesquisa como princípio educativo, pois “temcomo finalidade principal dotar a pessoa da ca-pacidade de pensar crítica e criativamente, ede manter-se em estado de ininterrupto de atu-alização.”

É necessária a formação de competênciascognitivas e sociais da população; sendo esta

6 De acordo com o Relatório para a UNESCO, da ComissãoInternacional para o século XXI (DÉLORS, 2000, p. 49) aeducação brasileira tem como alicerces: aprender a conhecer,aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

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capaz de compreender e pensar de forma abs-trata e analítica, com “flexibilidade de raciocíniopara entender situações novas e solucionar pro-blemas, bem como formação de competênciassociais como liderança, iniciativa, capacidade detomar decisões, autonomia no trabalho, habilida-de de comunicação” (DEMO, 1993, p. 24).

A inclusão não é apenas um processo esco-lar, mas o reflexo de algo mais amplo: a inclu-são social. Vive-se na “era dos direitos”, comolembra Bobbio (1992), e esta proporciona ummovimento contínuo de aceitação do outro en-quanto pessoa. “O respeito ganha um significa-do mais amplo quando se realiza como respeitomútuo: ao dever de respeitar o outro, articular-se o direito de ser respeitado. O respeito mútuotem sua significação ampliada no conceito desolidariedade” (BRASIL, 2001, p. 26a).

Incluir alunos com necessidades educacionaisespeciais no ensino regular não é apenas garan-tir que estes freqüentem a escola, mas proporci-onar-lhes o desenvolvimento de potencialidades,quebra de antigos paradigmas, superação de obs-táculos, buscando construir um ambiente esco-lar adaptado para as suas necessidades,formando uma comunidade escolar inclusiva.

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Segundo Cury (2002, p. 12), é importante res-saltar que a defesa da igualdade de direitos éprincípio para a busca da cidadania, pois “os alu-nos com necessidades especiais têm cidadaniaplena na escola comum e nas salas comuns.” Oaparato legal fornecido atualmente no País estáem consonância com a situação mundial e socialna busca por igualdades de direitos. Cabe res-saltar que a garantia legal da educação inclusivaé necessária, mas dependerá, entre outros fato-res, da mudança de paradigma.

Em síntese, a tendência atual do ensino doaluno com necessidade educacional especial é,então, conforme todos os movimentos e docu-mentos mencionados, sua inclusão no ensinoregular, de acordo com as suas necessidades ehavendo possibilidades de adaptações.

A trajetória histórica da pessoa com deficiênciamostra-nos que o caminho percorrido na con-quista dos direitos humanos é um processo emconstante construção. E sabemos que em umasociedade como a brasileira, com desigualda-des sociais e econômicas, a promoção dos di-reitos humanos será mais viável se a soluçãodos problemas estruturais forem objetos depolíticas governamentais (AKASHI; DAKU-ZAKU, 2001, p. 44).

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Recebido em 08.11.04Aprovado em 08.08.05

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Cristina d’Ávila

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A MEDIAÇÃO DIDÁTICANA HISTÓRIA DAS PEDAGOGIAS BRASILEIRAS

Cristina d’Ávila *

Minha mãe achava o estudoA coisa mais fina do mundo.

Não é.A coisa mais fina do mundo

É o sentimento.

(Adélia Prado)

RESUMOCom este artigo pretendemos discutir a natureza da mediação didática no seiodas pedagogias que compuseram o cenário educacional brasileiro desde achegada da Companhia de Jesus no séc. XVI até os dias atuais. Trazemos àbaila as características da pedagogia jesuítica, da pedagogia nova, tecnicista,freireana, histórico-crítica e construtivista, enfatizando em cada uma dastendências pedagógicas apresentadas o tipo de mediação didática maismarcante, seja através do mestre (como na pedagogia jesuítica), dos meios(como na tecnopedagogia), dentre outros. A compreensão dessas tendênciasse dá par e passo à análise do quadro didático-pedagógico que se descortinaatualmente no contexto escolar. Concluímos pela possibilidade de construçãode uma síntese superadora das tendências apresentadas, tendo em vista umaprática pedagógica mais criativa, prazerosa e construtiva, sem que para issoprecisemos abrir mão do conteúdo sistematizado e da autoria docente.

Palavras-chave: Mediação didática – Teorias pedagógicas – Trabalho docente

ABSTRACTDIDACTIC MEDIATION IN THE HISTORY OF BRAZILIANPEDAGOGIES

This paper aims at discussing the nature of didactic mediation within thepedagogical tendencies which have composed the Brazilian educational scenefrom the Jesuits arrival on the sixteenth century up to our days. We make clearthe characteristics of all: the Jesuits’ pedagogy, the new pedagogy, the technicalone, as well as those inspired from Paulo Freire, and from the historic-criticaland constructivist epistemologies. We stress in each of the pedagogical

* Doutora em Educação pela UFBA, com estágio doutoral na Université de Montréal, Canadá. Professora adjunta daFaculdade de Educação – FACED/UFBA. Professora adjunta do Departamento de Educação Campus I e do Mestradoem Educação e Contemporaneidade – UNEB. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia -UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

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tendencies the most important type of didactic mediation, through the teacher(in the Jesuits’ pedagogy), through means (technical pedagogy) and so on. Wepresent these pedagogical tendencies at the light of the present didactic andpedagogic context within Brazilian schools. We conclude to the possibility of aunifying synthesis of all presented tendencies, aiming at a more creative,pleasurable and constructive pedagogical practice, without denying systematizedcontent and authorship.

Keywords: Didactic mediation – Pedagogical theories – Teacher’s practices

IntroduçãoO olhar sobre a mediação didática docente

sob ângulos distintos, consubstanciado em prá-ticas pedagógicas que vigoraram na história daeducação brasileira, levou-me a desenvolver opresente artigo. A análise histórica do fenôme-no educativo e, no seu seio, da mediação didá-tica docente, permitiu articulações necessáriasà compreensão deste olhar múltiplo e, ao mes-mo tempo, integrado, do que vivenciamos comoprocesso educacional no Brasil, mormente apartir dos estudos das teorias de maior expres-são na nossa história.

A opção por iniciar este artigo com a Peda-gogia Tradicional Jesuítica está em ter sido estapedagogia a que primeiro se estabeleceu, noBrasil, como modelo formal de ensino, ofere-cendo, assim, as balizas fundamentais que fari-am evocar, posteriormente, suas própriascríticas e o nascedouro de outras teorias peda-gógicas. A concepção de mediação didáticadocente que temos hoje é, sem dúvida e tam-bém, resultado do que se viveu e se herdou des-ta pedagogia.

A pedagogia da Escola Nova se colocoucomo eixo importante na compreensão desteprocesso, tendo representado influência signifi-cativa nos rumos da educação nacional. Nesta,a mediação didática docente, como se poderáverificar do capítulo que se segue, se dialetizana relação com o educando, onde o professordeixa de ser o detentor absoluto do saber – comona pedagogia tradicional – e passa a constituir-se em orientador da aprendizagem.

A Tecnopedagogia também se insere nomovimento histórico da educação no Brasil, num

difícil momento de silêncio político e obscuran-tismo educacional. Nesta, a mediação didáticadocente é eclipsada em nome dos meios tec-nológicos, que davam o tom desta pedagogia.

Era preciso, em pleno regime militar, respi-rar um pouco da esperança perdida, incluindo,na compreensão do fenômeno educativo e naeclosão de um pensamento pedagógico coeso,o componente social e político, banido desteprocesso desde o início dos anos de 1960. As-sim, as pedagogias de cunho sociopolítico seimiscuíram no processo educacional brasileiro,como possibilidade de luta e transformação con-tra o que se instituía como poder. Paulo Freireconcede a abertura da porta com a elaboraçãodo seu ideário pedagógico que, por força doexílio a que se submetera, havia de se tornarrealidade fora do país. O professor haveria deser um mediador político que, além de ensinar,a partir da vivência concreta dos educandos,proporcionaria a elaboração do pensamentocrítico e da conscientização política, necessári-os à transformação social.

A pedagogia histórico-crítica surge comooposição às vertentes tradicionais e da EscolaNova, bem como crítica ao ideário freireano.Nesta, o professor é responsável por uma me-diação de natureza também sociopolítica, como acento muito mais evidente na transmissãode conteúdos de caráter universal — expedi-ente este que deveria constituir-se em ferra-menta necessária às lutas pela transformaçãodas estruturas sociais do país.

Com a teoria construtivista e a sociocons-trutivista, veremos como a mediação didáticavolta o eixo para a compreensão dos processosde aprendizagem e desenvolvimento cognitivo

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do educando – como se fazia no período emque vicejou a Escola Nova. O professor, nestatendência, volta os olhos, efetivamente, à apren-dizagem significativa do conhecimento e à ca-pacidade de construção e reconstrução desaberes pelo educando. O professor é um me-diador de saberes ressignificados e reconstruí-dos pelos educandos. A mediação didática nãose resume à transmissão do conhecimento ela-borado, mas às possibilidades de reelaboraçãodeste pelos educandos, que haverão de impri-mir-lhe significação pessoal.

É este o panorama que se pretende descor-tinar no corpo deste artigo.

1. A pedagogia Jesuítica e a medi-ação do mestre

A volta entusiasta à antigüidade clássicamarcava a Renascença. Após o período dastrevas da Idade Média, Grécia e Roma reto-maram seus postos como fontes de beleza hu-mana imortal. Ao seu lado renascia também apedagogia dos seus mais célebres educadores.As citações dos grandes clássicos fervilhavam:ao lado da retórica de Aristóteles se afiguravao De oratore de Cícero. Plutarco e Sêneca fi-guravam como moralistas preconizadores de umideal humano quase cristão. Finalmente, Quin-tiliano encarnava, no século XVI, a pedagogiaromana.

A Companhia de Jesus imprimia, nesse pe-ríodo, uma pedagogia de cunho tradicionalista eclássico. Sobretudo no que se refere ao ensinodas humanidades, a força da antiguidade clás-sica suplantou a tradição escolar da Idade Mé-dia, que conservara a filosofia e a teologia comoprimados. Os séculos XIV e XV assistiam àdecadência visível da escolástica que atingiraseu apogeu no século XIII. Entretanto, nos pri-meiros anos do século XVI, a restauração dasíntese clássica do pensamento medieval co-meçava a se configurar.

É na Ratio Studiorium (plano curricular je-suítico, publicado em 1599) que iremos visuali-zar com clareza a mediação do mestre. Em que

pese a importância conferida aos conteúdosclássicos, o preciosismo da Ratio estava nametodologia de ensino.

A mediação didática não se resumia à trans-missão dos conhecimentos. Os jesuítas toma-vam esse processo como ponto de partida numaprática pedagógica onde a exercitação e a trans-ferência de conhecimentos estavam perfeita-mente associadas. A aula se iniciava pelapreleção, ou prelectio, que consistia numa li-ção antecipada, ou seja, numa explicação doque o aluno deveria estudar.

Nas classes elementares de gramática, oprocesso de ensino constituía-se de explicaçõessobre o texto, esclarecimentos sobre o vocabu-lário quanto à propriedade dos termos, ao senti-do das metáforas, à gramática, à ordem econexão das palavras.

Chamava-se eruditio o estudo mais apro-fundado e complexo do conteúdo ministradomediante o conhecimento das realia indispen-sáveis, ou conhecimentos positivos, em outraspalavras, subliminares. O eruditio, então,compreendia as noções de história, geografia,mitologia, etnologia e arqueologia, que pudes-sem elucidar o sentido do texto estudado. As-sim, às noções de gramática elementarsucederiam os estudos da sintaxe, estilo e artede composição. O mestre aí estava mais ocu-pado com as idéias e sua expressão.

A função do professor era mais a de possi-bilitar a análise e, menos, a de propiciar o acú-mulo de conhecimentos. Que se permita umaassociação à prática pedagógica de hoje... Emque pese o academismo, como marca registra-da da pedagogia jesuítica, aprender significavamais que acumular conhecimentos.

A prática pedagógica jesuítica, por outrolado, esteve sempre associada à disciplina. Ocolégio deveria funcionar como um pequeno Es-tado escolar tendente à autonomia, onde os ci-dadãos seriam recrutados com prudência. Nesseponto, a relação com as famílias era de estrei-teza ímpar: constituía-se numa relação de dele-gação de poderes, onde um pai aceitaria osprincípios e a disciplina do colégio. Os jesuítasrecriariam a atmosfera familial e alegre nos in-

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ternatos e exerceriam sobre a criança a autori-dade do pai ausente.

Mas não se pode falar em método sem con-teúdo, assim como não se pode compreender oprocesso de mediação do mestre sem a maté-ria prima do seu trabalho: o saber. O saber e osaber fazer pedagógico se encontram, assim,imbricados no processo ensino-aprendizagem,o que explica, vez por outra, nesse texto um ir-e-vir do conteúdo ao método.

O conteúdo marcadamente clássico dava otônus dessa pedagogia e era exatamente atra-vés deste que a mediação desenvolvida pelosmestres se fazia sentir. Escolheram os jesuítas,como plano de estudos, a formação exclusiva-mente literária, baseada nas humanidades clás-sicas.

Inicialmente, a Ratio Studiorum previa en-sino puramente formal e gramatical, mas, pou-co a pouco, diversas disciplinas foram introdu-zidas (auxiliares do humanismo), constituindo oeruditio, que tornaria mais forte a eloqüênciados adolescentes. Com a arte de discorrer (artde conférer), os estudantes estariam prepara-dos para sustentar, na sociedade, discussõesbrilhantes sobre todos os assuntos referentes àcondição humana e à defesa da religião cristã.

Logo à entrada no colégio, as crianças eramconvidadas ao aprendizado do latim e do grego.E, como língua de conversação, o latim eraprescrito até no recreio. A fixação era facilita-da através de exercícios que desenvolviam amemória.

A classe era dividida em decúrias e o estu-dante de confiança do mestre fazia, cada ma-nhã, os colegas repetirem a lição, enquanto oprofessor procedia à correção dos exercícios.A aula estava resumida a um exercício metódi-co, onde a preleção da véspera era repetida pelosalunos, a começar dos melhores. Sem dúvida, ométodo quase sempre resvalava para a mono-tonia, e a luta contra esta fazia consagrar umdia na semana (o sábado) para exercícios maisinteressantes e opção por variedade de autoresestudados.

O sistema de exames prévios, no segundociclo, partia de um exercício fundamental: pra-

electio. Nas classes de gramática a finalidadeera lembrar ao aluno o funcionamento das re-gras, sem deixar de incentivar a sua sensibili-dade. A praelectio atingia o seu ápice nasclasses de retórica.

O método jesuítico de avaliação se restrin-gia a exames e revelava objetivos pedagógicosfundados na capacidade analítica dos estudan-tes. Aliás, a metodologia de ensino jesuítica de-monstrava atenção, para além da memorização,para com a capacidade criadora dos alunos. Aexemplo, nas classes superiores, os sábadoseram destinados a uma verdadeira parada lite-rária, caracterizada por uma brilhante preleção,um discurso latino ou grego, ou mesmo um po-ema clássico criado pelos alunos. Logo, a me-diação didática capitaneada pelo mestre jesuíta,permitia o exercício da criação (ainda que comos limites de um conteúdo impregnado da ideo-logia cristã).

O virtuosismo da pedagogia jesuítica esta-va, pois, no método aliado a um conteúdo denatureza abstrata.

A técnica da emulação compunha-se deencenação inspirada nas próprias humanidades.A classe era dividida em duas frações, Roma-nos ou Cartagineses. Os melhores alunos tra-vestiam-se da magistratura soberana, e oscargos menos importantes constituíam, em cadaum dos grupos, um estado-maior valoroso queparticipava da disciplina da classe. Colocadosem ordem decrescente, em cada coluna um alu-no tinha diante de si um homólogo da mesmaforça, seu êmulo – adversário regular, de quemdevia assinalar os erros e as inexatidões. Deacordo com a vantagem de um aluno sobre seuêmulo, o campo estava aberto às honras ou àsdesonras. Esse método mantinha a emulaçãonão só entre os melhores alunos, mas tambémaos últimos da classe, no qual a vitória sobre oêmulo oposto (que poderia ser o melhor colo-cado na classe) era seguida da redistribuiçãodos cargos que se realizava a cada dois meses.

Quanto ao ensino da língua materna, con-vém ressaltar que a ausência desta como con-teúdo obrigatório não se constituía em faltagrave, uma vez que, para os jesuítas, o conhe-

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cimento do vernáculo era uma prescrição. AsConstituições e as regras comuns lembravam atodos o dever de estudar a língua falada pelopovo. Ocasionalmente, as traduções, versões,ditado e exposições de argumento, garantiam atodos um estudo eficiente do vernáculo. Inclu-sive, com o desenvolvimento progressivo dasliteraturas modernas, a Ratio Studiorium abriaespaço para o estudo direto das línguas vivas.Além disso, o aluno podia praticar, no estudo dagramática, o manejo da língua pátria medianteo comentário dos autores clássicos e a compo-sição literária. Ademais, os jesuítas imprimiramgrande importância aos estudos práticos do ver-náculo, configurados em composições, constru-ções variadas de análises e argumentos sobreos clássicos. O rigor dos exercícios, inclusivede caráter prático, era uma constante.

O conteúdo de filosofia era a matéria pri-ma da pedagogia jesuítica. Na Ratio, o aristo-telismo era a substância do ensino. Nãoobstante, as lutas travadas entre defensores daReforma e da Contra-Reforma fizeram eclodircerto estreitamento no ensino de filosofia, a qual,intimamente ligada à teologia, fez transmudar,muitas vezes, em sabedoria cristã os conheci-mento teóricos ou práticos adquiridos no longocontato com a Antigüidade Clássica.

Era Aristóteles o autor de base, mas os li-vros oferecidos aos alunos permitiam a cons-trução de um curso inteiro de filosofia. Nosprimeiros anos, a Lógica e a Física iluminadaspelos comentários de S. Tomás de Aquino per-faziam a filosofia natural. O professor de Filo-sofia Moral se incumbia de ensinar a Ética, queeditava os valores eternos da sabedoria antiga,e o professor principal culminava com perspec-tivas elevadas da Metafísica e do tratado daalma. Aristóteles era considerado o mestre dafísica e a Ratio de 1586 ordenara sua leituracomo obrigatória. O ensino de Física, a essaépoca, versava primordialmente sobre os doistratados: Do céu e os meteoros.

O humanismo italiano concedia lugar de des-taque às matemáticas e, posteriormente, Ináciode Loyola não hesitou em declarar-se partidá-rio manifesto. A utilidade das matemáticas, en-

tão, e suas aplicações práticas começavam aser percebidas.

Finalmente, podemos dizer que a mediaçãodo mestre na pedagogia jesuítica, do ponto devista didático, estava marcada por três elemen-tos fundamentais: o conteúdo clássico com oacento na ideologia cristã, o rigor da disciplinae o preciosismo do método.

Ao contrário do que diziam as variadas crí-ticas sobre essa pedagogia, descobri na RatioStudiorium um estudo didático profundo, o querevela a preocupação desses mestres para como método pedagógico e, por conseguinte, paracom a aprendizagem dos alunos. Sem dúvida,era o mestre o centro do processo ensino-apren-dizagem. Não há dúvidas também que o aluno,nessa perspectiva, assumia forçosamente umaatitude passiva diante das verdades sacrossan-tas que caracterizavam o conteúdo transmiti-do. Entretanto, havia espaço para que o espíritoanalítico fosse exercitado, o que prova o surgi-mento de pensadores revolucionários formadospela Companhia de Jesus.

2. Mediação docente na peda-gogia da Escola Nova: o pro-fessor como parceiro de jor-nada

Para explicitar a mediação didática docentena Escola Nova (tendência pedagógica forte-mente vivenciada no Brasil a partir dos anos1930), é preciso entender o pensamento peda-gógico de Anísio Teixeira, seu idealizador, apartir das influências que ele recebeu àquelaépoca, especialmente de John Dewey, pedago-go norte-americano, que viveu entre o final doséculo XIX e a primeira metade do século XX.

O movimento pela educação ativa que ha-veria de influenciar Anísio Teixeira e seus se-guidores no Brasil da primeira metade do séculoXX, nascera na Europa, em fins do século XIX,com as idéias de Seidel, na Alemanha e Suíça,com a constituição do Bureau Internationalpour l’École Nouvelle, organizado por Adol-phe Ferrière, com a obra de Kerschensteiner

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em Munique, Ligthart, na Holanda, Ovide De-croly, na Bélgica, que, no ano de 1907, fundaraa renomada École de l’Ermitage em Bruxe-las, mesmo ano da fundação da Casa dei Bam-bini, na Itália, por Maria Montessori.

O movimento em prol da educação ativa,àquela época, se insurgia contra o que era es-sencial na escola tradicional: a preparação paraa vida adulta, segundo Dewey a “preparaçãopara uma vida após a morte”. Preocupava-semuito mais em preparar a criança para uma fasefutura da vida do que para a vida no presente.O desenvolvimento das capacidades das crian-ças repousava, principalmente, sobre a razão ea memória. O método de instrução autoritário,a disciplina cultivada e o estudo, uma desagra-dável tarefa. O mestre era a autoridade inques-tionável e a submissão à ordem, a palavra defé. O aluno, enfim, era visto como um adultoinfeliz miniaturizado.

A Escola Nova voltava as costas contra tudoisso, almejando um espaço escolar e tambémpedagógico verdadeiramente construído pelosalunos.

Um dos maiores inspiradores dessa tendên-cia foi, sem dúvida alguma, John Dewey (1859- 1952). O educador norte-americano tinhagrande interesse em fazer florescer suas idéi-as pedagógicas num meio e numa época emque o ideário tradicionalista de ensino fazia eco.Acreditava que os métodos das escolas ele-mentares não se afinavam com as concepçõespsicológicas da hora. Fora, então, convidado adirigir a seção de Filosofia e Psicologia na Uni-versidade Chicago (1894) e viu, neste empre-endimento, uma oportunidade valiosa paraassociar a Pedagogia à Filosofia e, sobretudo,à Psicologia.

Erguia, então, a sua célebre escola-labora-tório, mais conhecida como Escola Dewey, cujoponto de partida se apoiava nas atividades co-muns nas quais as crianças estavam imediata-mente envolvidas. Os propósitos da educaçãoteriam matriz na vida da criança, razão pela qualela passaria a assumir com total interesse o pró-prio aprendizado. Os fins estariam aceitos. Asatividades manuais como a marcenaria, a cozi-

nha, a costura ou a tecelagem, tinham lugar dedestaque e ligação estreita com as necessida-des cotidianas da criança. Assim, estaria asse-gurada a sua base de interesse.

Em Democracia e Educação (1959),Dewey torna bastante clara a diferença exis-tente entre a atmosfera social criada na escolatradicional e a que ele argüia como necessáriaà vida. Seu programa refletia a vida em comu-nidade e aproveitava as situações para promo-ver na criança o sentimento de cooperaçãomútua e o de trabalhar positivamente para acomunidade. A ordem e a disciplina não se pau-tavam, pois, em atitudes coercitivas, mas a par-tir do respeito que a criança obtinha pelotrabalho que realizava e da consciência dos di-reitos dos outros, empenhados em outras par-tes da tarefa comum.

A educação nova estava baseada em prin-cípios científicos e deveria valer-se de méto-dos ativos. Assim, Anísio Teixeira acreditavaque o método científico deveria reger a EscolaNova:

Com o método científico, vamos submeter as«tradições» ou as chamadas «escolas» ao cri-vo do estudo objetivo, os acidentes às inves-tigações e verificações confirmadoras e o po-der criador do artista às análises reveladorasdos seus segredos, para a multiplicação desuas descobertas; ou seja, vamos examinarrotinas e variações progressivas, ordená-las,sistematizá-las e promover, deliberadamente,o desenvolvimento contínuo e cumulativo daarte de educar. (TEIXEIRA, 1957, in: ROCHA,1992, p. 257).

Lourenço Filho (1978), um dos integrantesdo movimento da Escola Nova no Brasil da pri-meira metade do século XX, descreve no seulivro Introdução ao Estudo da Escola Nova,os princípios fundamentais que regem essa pe-dagogia. São eles:• o respeito à personalidade do educando ouo reconhecimento que este deverá desfrutar deliberdade, desenvolvendo suas própriascapacidades por ação e esforço individual;• a compreensão funcional do processoeducativo, tanto sob o aspecto individual, quantosocial;

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• a compreensão da aprendizagem simbólicaem situações da vida social. Isto significa levarem conta a cooperação social, a necessidadeque tem o homem de interagir com seu própriomeio;• as características de cada indivíduo sãovariáveis segundo a sua própria cultura. Esteprincípio evoca o aspecto do naturalismopresente na tendência da escola nova. AfirmaLourenço Filho que:

Ninguém poderá negar que há diferenças indivi-duais de natureza biológica que se refletem naexpressão de cada pessoa. “Tais diferenças, noentanto, são mais de possibilidade de desenvol-vimento que mesmo de qualificação essencialquanto às aquisições possíveis, de ordem inte-lectual e moral” (1978, p. 248).

O autor afirma que nenhum sistema educa-cional poderá se furtar de observar certas con-dições para desenvolvimento do processoeducativo, dentre as quais destaca o desenvol-vimento biológico do educando, a socialização,a preparação para o trabalho, a afirmação pes-soal e o relacionamento “com os mais altos finsde expressão humana” (LOURENÇO FILHO,1978, p. 249).

Os pressupostos da Escola Nova apresen-tados por Lourenço Filho expressam com cla-reza a essência desta pedagogia a partir dainfluência sofrida pelos educadores apontadosno início. A influência de Montessori e Decro-ly, por exemplo, se faz sentir no que tange àobservância do aluno, enquanto ser individualbiológico, em condições para desenvolver-se emtoda sua plenitude, a partir de esforços e açãopessoais.

Em Dewey, o conceito de experiência re-sume o espírito da filosofia educacional escola-novista. Para ele, a experiência se constitui deduas partes: uma, ensaiar, e a outra, provar. Aexperiência compreendia a prova como conhe-cimento, uma vez que, para ele, a realidade pri-mitiva, anterior, é essencialmente diferente daexperiência comum de cada dia.

No famoso método da descoberta, o meca-nismo de elaboração de hipóteses para a solu-ção de determinado problema e as conseqüên-

cias, advindas da testagem destas, resume opercurso do aprendiz. Se a criança antecipaatravés da imaginação as possíveis conseqüên-cias daquilo que está em vias de realizar, obteráa liberdade de escolher e controlar o desenvol-vimento dos acontecimentos. E, ainda, após tersido feita a escolha do fim, poderá apreciar seas circunstâncias lhe serão favoráveis ou não.Logo, a escolha do fim sugere a ordem do pró-prio método de aprendizagem.

Na pedagogia da Escola Nova, então, a prá-tica pedagógica passa a ser regulada por ativi-dades reais, ou melhor, cotidianas, e quase in-teiramente conduzida pela capacidade que oaluno tenha em auto-desenvolver-se. O méto-do de ensino se resume à pesquisa, às possibili-dades de elaboração de hipóteses que normali-zam o caminho que o aluno deve percorrer parafazer descobertas. A mediação do professor éexercitada aqui mediante orientação das ativi-dades didáticas. O seu papel é de orientaçãode estudos e não de imposição de conteúdosabstratos.

A mediação didática entre aluno e conheci-mento é responsabilidade dos métodos ativosde ensino, o que inclui a capacidade de experi-mentar que cada criança desenvolve ao longodo seu processo de formação. Experimentar é,pois, a palavra chave nesse processo de medi-ação.

A escolha dos estudos depende do valor queapresentam como instrumentos para atingir finsespecíficos. Não há hierarquia fundamental deestudos dispostos em ordem dos menores paraos mais elevados, evocável em qualquer ocasião.

O método da descoberta significa tanto ométodo de ensino, quanto o método de aprendi-zagem. Constitui-se, numa só palavra, em pes-quisa. São cinco os passos necessários àaprendizagem:

A primeira fase, então, do método do pro-blema se inicia com alguma experiência atualda criança e isso não deve ser presumido. Oponto de partida, portanto, será alguma situa-ção empírica específica e atual.

Em segundo lugar, como as conseqüênciasdo que havia sido tentado fazer são incomple-

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tas, sugere-se um problema, o qual pede pes-quisa, ou investigação do melhor meio para serestaurar a continuidade da experiência.

A análise dos dados disponíveis pode forne-cer a solução. Nesse ponto os alunos necessi-tarão do capital da experiência passada. Essa éa terceira fase, e representa o conteúdo queconstituirá o programa.

Na quarta fase, os alunos formulam hipóte-ses com o fim de restaurar a continuidade daexperiência.

A restauração da continuidade quebrada daexperiência é obtida mediante a escolha da hi-pótese mais apta à solução do problema, o queconstitui a última fase do método.

A atividade intelectual puramente abstratae verbal seria insuficiente à aprendizagem. ParaAnísio Teixeira, pensar vai além e implica emagir sobre as coisas, alterar as condições domeio, a fim de verificar se as conseqüênciaadvindas daí corroboram as previsões hipotéti-cas. O método do problema asseguraria, segun-do essa tendência pedagógica, o interesse dacriança. As atividades intelectuais, abstratas,não cumpririam tal objetivo.

O ideário escolanovista no Brasil não este-ve imune às críticas de educadores brasileiros.Dermeval Saviani (1984) faz uma crítica con-tundente à Escola Nova, na sua obra Escola eDemocracia. Segundo a sua compreensão, oensino se diluiria em atividades de pesquisa,sendo o professor substituído pelos chamadosmétodos ativos e pela aprendizagem auto-re-gulável. Para Saviani, a Escola Nova privile-giou a pesquisa em detrimento do ensino deconteúdos. Segundo ele, os conteúdos eramrarefeitos nesta tendência pedagógica, em ra-zão de certo espontaneísmo reinante no pro-cesso ensino/aprendizagem, vez que o professorteria papel secundarizado. Segundo Saviani, adinâmica do processo didático de ensinar eaprender, na perspectiva da Escola Nova, ex-clui o ensinar. A construção e validação de hi-póteses construídas pelas crianças a partir doseu universo particular, sedimentam-se numaúnica visão (a da criança), e se dissipariam pornão se consubstanciarem no saber já elabora-

do. A remissão à própria criança da escolha dosseus fins pedagógicos excluiria do professor aresponsabilidade em conduzir a prática peda-gógica, tornando-se o aluno professor de simesmo.

Todavia, por mais que os métodos ativos e,dentre estes, o método da descoberta tenhamtido papel significativo na Escola Nova, não sepode afirmar que Dewey ou Anísio Teixeiratenham defendido a rarefação dos conteúdos ea instituição de práticas espontaneístas na salade aula. O que esses educadores advogavam éque os estudantes deveriam apropriar-se sig-nificativamente dos conteúdos, participandoativamente do seu processo de ressignificaçãoe produção. Aliás, eles não negavam a trans-missão do conhecimento, mas a colocavam den-tro de pré-requisitos fundamentais à aprendiza-gem significativa. Dewey se perguntava no livroComo pensamos (1959), a propósito da instru-ção baseada na palavra e na experiência dosoutros: “Como tratar a matéria apresentada pelocompêndio e pelo professor, para que ela se ins-titua em material de investigação reflexiva e nãopermaneça um mero alimento intelectual, já pre-parado para ser recebido e ingerido, como secomprado numa mercearia?” (DEWEY, 1959,p. 254).

Em resposta, Dewey sugeria que a trans-missão do conhecimento deveria ser, antes detudo, necessária, ou seja, tratar de um objetoimpossível de ser apreendido pela observação,justificando que “o professor, ou o compêndio,que atulha os alunos com noções que, com poucomais de trabalho, eles próprios poderiam des-cobrir por investigação direta, ofende-lhes a in-tegridade intelectual, leva-os a cultivar aservidão mental” (p. 254).

Talvez tenha havido exagero na prática mal-versada do ideário pedagógico de Anísio emterritório brasileiro nos poucos anos em quetal tendência vigorou (principalmente nos anos1950 e início dos anos 1960). O certo é que,depois do advento do governo militar, em 1964,as escolas públicas que começavam a remo-delar sua prática, a investir na criatividade pe-dagógica e apostar na curiosidade e no respeito

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ao saber das crianças, foram obrigadas a aqui-escer em nome de uma ideologia absolutamentecontrária a toda e qualquer investida demo-crática. Mesmo antes, logo no início da ideali-zação deste novo modelo educacional epedagógico no País, Anísio e seus companhei-ros de jornada já sofriam uma primeira derro-ta: com a ditadura do Estado Novo de GetúlioVargas (entre 1937 e 1945) foram obrigados acalar-se.

Assim, entre uma ditadura e outra, o Brasilnão chegou a ver florescer os primeiros frutosda Escola Nova (o trabalho pedagógico é umprocesso que envolve gerações). Antes queisso pudesse acontecer, o modelo tecnocráti-co que se impunha no poder político instituíatambém na esfera educacional a sua ideolo-gia, dando lugar, assim, ao que se convencio-nou chamar de tecnicismo pedagógico, ou aindae para melhor corresponder a esse ideário, àTecnopedagogia.

3. A mediação didática docentena Tecnopedagogia

A perspectiva tecnológica na educação bra-sileira surgiu, na década de 1960, mais especi-almente depois de instalado o governo militarde 1964, como uma alternativa para a educa-ção popular. No seio do desenvolvimento capi-talista que lhe deu origem – o norte-americano– a racionalização do sistema de ensino, tendoem vista sua eficiência e eficácia, deveria ga-rantir um produto que atendesse às necessida-des do modelo econômico e político vigentes: aideologia empresarial.

Depois da Teoria Geral de Administraçãocomo primeira sistematização sobre a organi-zação do trabalho e seu controle, é no âmbitoda Teoria Geral dos Sistemas que a racionali-zação e o controle referidos chegam aos limi-tes da perfeição. No Brasil, tal ideologia seconcretiza na política administrativa do Estadoautoritário e, no campo educacional, através deuma pedagogia capaz de responder à ineficá-cia do sistema de ensino em todos os seus ní-

veis: a Tecnopedagogia. Ao lado dessas con-cepções, o comportamentalismo e o positivis-mo lógico foram tendências incorporadas aoideário tecnopedagógico, tendo em vista o aten-dimento de níveis cada vez mais altos de efici-ência e eficácia exigidos pelo modelo dedesenvolvimento.

Esta abordagem, somada à teoria behavio-rista de Skinner, deu o tom da tecnopedagogia.Presentes na letra da Lei 5692/71, a mistura doenfoque sistêmico e da teoria comportamenta-lista de Skinner integram o texto da lei e os inú-meros pareceres daí decorrentes. O conteúdodos livros didáticos se fragmenta em nome dasuposta eficiência. O conceito básico da teoriade Skinner é o de comportamento operante,caracterizado pelas relações que estabelece como meio ambiente, ao receber deste influênciasdeterminantes.

Das prerrogativas teóricas mencionadas,podemos depreender o sentido pedagógico e,mais especificamente, didático desta tendên-cia, tentando recortar desse contexto as me-diações didáticas decorrentes: a mediação doprofessor (quando existiu) e a mediação esta-belecida pelos recursos tecnológicos inerenteà essa pedagogia.

Do ponto de vista didático, essa tendênciavisa ao ajustamento dos objetivos de ensino (ago-ra, objetivos instrucionais, daí a redução do en-sino à instrução), às exigências do sistema social,sem fugir aos critérios de maximização de ren-dimentos e minimização de custos. O detalha-mento dos objetivos deveria ser classificado detal ordem, a fim de tornar possível a sua imple-mentação e a mensuração dos resultados a partirde uma prática diagnóstica de avaliação. Por-tanto, eram discriminados em terminais e par-ciais, intermediários, mediatos e imediatos.

Os meios são o cerne da tecnopedagogia,determinando, assim, os próprios objetivos deensino-aprendizagem e as finalidades da edu-cação escolar. Isto porque a relevância do mo-delo estava na quantificação dos resultados;daí a inversão: os meios justificam os fins. Amediação didática docente nesta pedagogia éeclipsada em nome da técnica, passando, as-

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sim, o meio técnico a ser o mediador principale o professor, seu administrador. Na EscolaNova a mediação docente não é diluída ou se-cundarizada. Ao contrário, ela é dialetizadana relação de orientação pedagógica; ela nãoé ausente, é diversa da mediação da pedago-gia tradicional.

Na tecnopedagogia diminui-se a importân-cia das relações interpessoais (importante gan-ho da anterior Escola Nova), e mantêm-se oindividualismo, agora sobre outras bases: o re-curso tecnológico coloca-se na linha de frente,com o qual o aluno irá se relacionar, supondo,portanto, uma outra forma de relação entre alunoe conhecimento. Se antes, na Escola Nova, erao aluno quem escolhia o meio mais adequadopara aprender e/ou descobrir, com a padroniza-ção dos meios de ensino, essa escolha passa aser estranha para ele.

A mediação didática aqui se faz pelos re-cursos tecnológicos, dentre os quais ganhamdestaque os manuais didáticos, mais do quenunca fragmentados em instruções sobre comofazer, responder aos exercícios e avaliar-se.Esse recurso de ensino, mais as máquinas deensinar, o método Keller, a instrução progra-mada e outros métodos acéfalos substituem afigura do professor e o ensino, enquanto pro-cesso de criação. Com efeito, mesmo com acriação da Comissão Nacional do Livro Didáti-co (CNLD), em 1938, é com a instituição daFundação Nacional do Material Didático (FE-NAME), em 1968, que esse recurso de ensinoganha fôlego e assume a posição de comandona mediação entre o saber escolar e o aluno.

Por isso, quando se fala em mediação didá-tica na tecnopedagogia é preciso, praticamen-te, deixar de citar o professor. Numa posiçãosecundária, o seu papel passa a ser o de admi-nistrador de um saber fragmentário, pré-mol-dado e da ideologia do sistema. Não queroparecer fatalista. Em verdade, muitos profes-sores lutaram contra esse estado de coisas, maso que se depreende, como efeitos dessa época,é uma prática pedagógica que corrói a funçãodo professor como sujeito mediador entre soci-edade e alunos que se formam e entre estes

sujeitos-alunos e conhecimento crítico.A mediação didática docente repousava,

pois, sobre a organização das condições deaprendizagem (o conceito de aprendizagemestava restrito às mudanças de comportamen-to). Mas, que tipo de organização se requeria?A tarefa do professor consistia em modelar asrespostas que fossem apropriadas aos objeti-vos instrucionais, buscando, como conseqüên-cia, o comportamento adequado pelo controledo ensino. O sistema instrucional estava apoia-do em três componentes básicos, como descre-veu Libâneo:

As etapas básicas do processo ensino-aprendi-zagem são: a) estabelecimento de comportamen-tos terminais, através de objetivos instrucionais;b) análise da tarefa de aprendizagem, a fim deordenar seqüencialmente os passos da instru-ção; c) executar o programa, reforçando gradu-almente as respostas corretas correspondentesaos objetivos. (LIBÂNEO, 1986, p. 30).

Ao professor restava seguir os passos esta-belecidos pelo programa de ensino, programaque não era idealizado por ele, mas por técni-cos, especialistas, alheios ao processo de ensi-no em curso, ou pelo livro didático. Era oprofessor um administrador das condições detransmissão da matéria, reduzindo-se a um elotênue de ligação entre verdade científica e alu-no. Este último, um elemento responsivo, es-pectador frente à verdade objetiva.

Essa prática mudou nos últimos tempos, prin-cipalmente dos anos 1980 para cá, mas os res-quícios da tecnocracia continuam vivos nainsistência do autoritarismo, muitas vezes vistoe vivido na escola, nos ditames de um plano deensino fabricado por autoridades exógenas aeste processo (como o manual escolar, coorde-nadores pedagógicos, diretores de escola etc.),funcionando como camisa de força para aque-les que almejam mudar alguma coisa no espa-ço da sala de aula. O fato é que, desde essaépoca, o manual didático ainda reina como ba-luarte, num contexto onde a criatividade teimaem adormecer.

Todavia, como o processo histórico e, comele, a história da educação brasileira, é um pro-

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cesso contraditório e dinâmico por natureza,outras tendências pedagógicas lutaram por sematerializar em práticas mais humanas, mes-mo nas épocas mais difíceis. Não poderíamos,pois, deixar de falar da mediação didática sobas lentes críticas de Paulo Freire.

4. A mediação docente na peda-gogia de Paulo Freire

Não se pode falar em mediação didática semse falar em mediação também sociopolítica,quando se trata das idéias pedagógicas desteeducador que revolucionou práticas educacio-nais em várias partes no mundo. A mediaçãodidática na pedagogia de Paulo Freire pode serconceituada como uma atividade crítica, cujoobjetivo maior reside na transformação cotidia-na e permanente do mundo sociocultural quecircunda os sujeitos envolvidos no processoeducativo. A mediação didática nessa pedago-gia é também de natureza política.

Com efeito, a atividade crítica de educar/alfabetizar derivaria de um método dialético deinvestigação e inserção política concreta na re-alidade social. Para Paulo Freire, essa ativida-de crítica, essencialmente política, teria porfinalidade última a conscientização e, por con-seqüência, a inserção das classes oprimidas noprocesso político do seu meio, país. A educa-ção, portanto, possibilitaria uma passagem in-dispensável para a humanização do homem,oferecendo ao povo a reflexão sobre si mesmo,seu tempo e seu papel na cultura. A educaçãoseria um instrumento capaz de lograr a passa-gem do estado de consciência ingênua do povoà uma consciência de si, enquanto sujeitos polí-ticos, e de sua realidade sociocultural. A edu-cação, na pedagogia de Freire, é uma atividademediadora. No limite, uma atividade de media-ção política.

Tentar recortar os aspectos didáticos (rela-tivamente ao processo ensino-aprendizagem)que viabilizariam a mediação política na peda-gogia de Freire é uma tarefa arbitrária, pois quenão há disjunção possível entre o ato de educar

e o ato de agir politicamente no mundo. Edu-car é um ato eminentemente político, já diziao próprio Freire. Entretanto, e no que toca opresente estudo, importa conhecer os elemen-tos que instrumentalizariam a prática política naproposta pedagógica freireana.

O método psicossocial de alfabetização deadultos, na pedagogia freireana, almeja tornarpossível o postulado da unidade conhecimento-práxis-conhecimento, desenvolvido numa ativi-dade concreta. A filosofia da alfabetizaçãoproblematizadora objetiva mostrar, como indis-solúvel, a unidade entre investigação e educa-ção, o que geraria um produto não menosindissociável: alfabetização-conscientização.

O primeiro passo metodológico nessa peda-gogia é a investigação temática. O objetivo des-sa etapa reside em encontrar os temas gerado-res – expressões da palavra do povo – paraque, atendendo a uma programação educativa,possa se desenvolver uma ação cultural pro-blematizadora. A trajetória da investigação te-mática passa por três etapas ou fases: a pri-meira fase seria investigadora, a segunda,eminentemente pragmática e a terceira, emi-nentemente pedagógica. Nessa fase pedagógi-ca se incluem as técnicas: brevemente, redu-ção, codificação e decodificação. E é tambémjusto nessa fase que podemos perceber commaior precisão a mediação do professor-coor-denador.

Para explicar a mediação didática (suben-tenda-se a dimensão política sempre contida naação didática) do coordenador, é necessárioconhecer as técnicas pedagógicas inseridas nométodo dialético da pedagogia de Freire, muitobem deslindado no seu livro Conscientização(1980).

Redução: consiste em um processo de te-matização-elaboração dos temas que, numaseqüência pedagógica, serão devolvidos à co-munidade alfabetizanda, de onde foram desco-bertos. Os temas são, pois, reduzidos emunidades de aprendizagem. A seleção da pala-vra geradora supõe dois momentos essenciais:o da crítica interna, onde a equipe de investiga-ção temática submete o conjunto de temas (as

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esperanças, dúvidas, sonhos, problemas, lutase conflitos da comunidade) a uma crítica cientí-fica e disciplinada, até detectar o valor funcio-nal e lingüístico dos temas saídos do contextoinvestigado (NÓVOA, 1977); e o da críticaexterna, quando se conferem os primeiros re-sultados com voluntários do grupo de alfabeti-zandos que atuam aí num duplo papel: o deinformantes e o de representantes da constru-ção popular. A informação selecionada é dis-cutida em sucessivas reuniões até se delimitaros pontos centrais do programa pedagógico.

Codificação: é a simbolização gráfica decada situação existencial estratégica, reduzidaem unidades de aprendizagem.

Decodificação: discussão da codificaçãoexistencial. Pode dar-se no momento da críticaexterior, onde a etapa descritiva se integra àanalítica, para se chegar a uma síntese que pro-jete a temática significativa detectada.

Tomemos como referência ao processo demediação didática, a palavra diálogo. Com efei-to, a mediação didática, na pedagogia de Freire,se realiza através do diálogo, aspecto este sem-pre recorrente nos seus escritos. Para ele, “o diá-logo é o encontro entre os homens, mediatizadospelo mundo, para designá-lo”. O diálogo, então,seria o encontro dos que se orientam para o mun-do que é preciso transformar, não podendo existirsem profundo amor pelos homens e pelo mundo.“O amor é ao mesmo tempo o fundamento dodiálogo e o próprio diálogo. Este deve necessaria-mente unir sujeitos responsáveis e não pode exis-tir numa relação de dominação” (FREIRE, 1980,p. 83). Em Pedagogia da Autonomia (2000), seuúltimo livro, Freire enfatiza o diálogo pedagógicono processo de mediação didática, esclarecendoque ensinar exige disponibilidade para o diá-logo. Não existe, pois, uma ação isolada por par-te do educador. Os sujeitos do ato educativoconvivem numa relação horizontal, onde quem en-sina, aprende e quem aprende também ensina. Aquestão das relações pedagógicas, na proposta dePaulo Freire, assume, assim, dimensões importan-tíssimas que vale aqui ressaltar.

Resumida na frase “ensinar exige querer bemaos educandos”, Freire afirma a necessidade de

o professor abrir-se à afetividade na relação queestabelece com seus alunos (2000, p. 150). “Estaabertura ao querer bem não significa na verda-de, que, porque professor, me obrigo a quererbem a todo os alunos de maneira igual”, mas nãodescarta a união entre “seriedade docente e afe-tividade” (2000, p. 150). A afetividade está nabase da cognoscibilidade, para Freire e não podeinterferir no cumprimento ético do dever de serprofessor. Assim, afirma ainda na Pedagogiada Esperança: “Enquanto relação democráti-ca, o diálogo é a possibilidade de que disponhode, abrindo-me ao pensar dos outros, não fene-cer no isolamento” (1999, p. 120).

Para Freire, a educação problematizadoradeveria romper com os esquemas verticais ca-racterísticos da educação bancária, aspecto quesó seria possível com a superação da contradi-ção entre educador e educandos. Assim, nãoexistiria educador do educando, nem educandodo educador, mas educador-educando e edu-cando - educador, uma clara expressão do diá-logo pedagógico defendido por Freire.

Se na pedagogia tradicional jesuítica, o ele-mento marcante na mediação didática capita-neada pelo mestre jesuíta, eram os conteúdosclássicos, despidos do caráter sociocultural eda reflexão crítica por parte dos discípulos, in-versamente se situava Paulo Freire contra acultura pedagógica verbalista, a qual ele deno-minou de bancária.

O maior objetivo da pedagogia de Freire re-sidia na conscientização política. O elementoforte na mediação didática não era a transmis-são de conteúdos abstratos, mas o saber quedela resultava, a partir de metodologias ativas,do savoir-faire da comunidade alfabetizanda.A ação educativa seria um processo onde oponto de partida estava na prática social, e oretorno, sempre provisório, na leitura críticadessa prática social, com conseqüente retornoà prática social.

Portanto, a leitura da palavra escrita possi-bilitaria o acesso a um conhecimento mais pro-fundo e crítico da realidade que circundaria ossujeitos do ato educativo. A palavra geradoracriaria uma compreensão dessa realidade e se

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alongaria na compreensão do mundo. Muitoseducadores brasileiros, autores de livros sobrea educação no país, centralizaram suas críticassobre o suposto regionalismo em que incorre-ria a pedagogia de Freire, vez que os alfabeti-zandos teriam acesso somente aos conhecimen-tos da sua realidade mais próxima, o que seriaum aspecto limitante à sua formação. Entre-tanto e em que pesem suas críticas ao sistemaeducacional escolar que tem no conteúdo siste-matizado seu aporte mais seguro, ele jamaisnegou a necessidade de se estender os hori-zontes da população alfabetizanda para alémdas cercanias de sua realidade imediata.

A aplicação e implementação do método dealfabetização de adultos, previa uma interven-ção do tipo não-diretiva pelo coordenador euma ação coletiva, interativa, entre os sujeitosenvolvidos no processo educativo (educando -educador e o educador-educando):1) o coordenador deveria evitar dirigir o grupo

e, enquanto líder, evitar a imposição de seuspontos de vista. Deveria ir, isto sim, paulati-namente desafiando e problematizando ogrupo de alfabetizandos. O coordenador era,pois, o mediador entre as experiências indi-viduais (sobretudo nas primeiras fases), e aformação de uma consciência crítica sobreessas experiências, redefinidas numa práti-ca social concreta;

2) além do coordenador, outro elemento do gru-po de investigação temática (um observa-dor não-participante) deveria registrar (se ogrupo não permitisse o registro das sessõesem gravadores) toda a produção do círculode cultura;

3) as perguntas formulados pelo coordenadorao grupo de alfabetizandos deveriam sercolocadas sempre em termos comunitáriose não individuais;

4) os trabalhos de alfabetização-conscientiza-ção só poderiam ter início num grupo ondeas reflexões sobre os possíveis caminhos atrilhar em parceria, fossem exaustivas. Aexpressão inédito viável resume, então, olimite a ser alcançado, não entre o ser e onão-ser, mas entre o ser e o ser mais;

5) havia uma indicação importante para os gru-pos que implementariam o método: a parti-cipação em segmentos políticos, comomovimentos, organizações, partidos, etc.,para garantir, assim, a continuidade e a co-bertura política, em momentos de repres-são política;

6) uma vez terminada a etapa de lecto-escrita,dar-se-ia início à etapa de pós-alfabetiza-ção. Além de iniciados na aprendizagem deoperações matemáticas básicas, os gruposde alfabetizandos deveriam responder aodesafio de realizar um livro-texto para pos-teriores grupos de alfabetização. Essa eta-pa, extremamente criativa, possibilitaria arevisão das dificuldades da etapa desenvol-vida anteriormente pelo grupo, desvendan-do-o para a busca de soluções possíveis. Oespírito criativo do grupo seria estimuladoatravés da criação de um novo livro, plenode suas peculiaridades, com palavras gera-doras específicas e que serviria como ma-terial didático para outros grupos.Freire não entendia a pós-alfabetização jus-

taposta ao processo de alfabetização. E esta,por sua vez, não significaria um momento deaprendizagem formal de escrita e de leitura. Aalfabetização conteria o processo de pós-alfa-betização:

Tal como a entendo, a alfabetização de adultosjá contém em si a pós-alfabetização. Esta conti-nua, alonga e diversifica o ato de conhecimentoque se inicia naquela. Não se trata, pois, de doisprocessos separados – um antes e outro depois–, senão de dois momentos de um mesmo pro-cesso social de formação. E este, não importa onome que se lhe dê - educação, ação cultural,animação -, implica sempre, assim na alfabetiza-ção como na pós-alfabetização, uma determina-da teoria do conhecimento posta em prática.(FREIRE, 1978, p. 121).

A crítica contundente às cartilhas tradicio-nais e a ênfase que dava ao saber provindo davivência dos educandos lhe renderam críticaspor parte de educadores conteudistas; críticas,muitas vezes, injustas, diga-se de passagem, vezque, embora crítico, Paulo Freire jamais negoua importância do saber sistematizado na edu-

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cação dos homens. Nos seus últimos livros revêo espaço do conhecimento sistematizado e,mesmo, da transmissão deste conhecimento,como se pode conferir no seu Pedagogia daEsperança (1999): “Não há, nunca houve, nempode haver educação sem conteúdo, a não serque os seres humanos se transformem de talmodo que os processos que hoje conhecemoscomo processos de conhecer e de formar per-cam seu sentido atual” (p. 110) .

Assim, Freire jamais acreditou que o ato deensinar e de aprender pudesse descartar o con-teúdo sistematizado: “Não há educação semensino, sistemático ou não, de certo conteúdo.E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quemensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a al-guém – aluno” (p. 110). Conclui, como bomprofessor de Lingüística que fora por longo tem-po no Recife.

Paulo Freire não deixou de rever suas posi-ções pedagógicas nos últimos anos de sua exis-tência. Inclusive quanto ao papel do educadore do saber sistematizado, como se pode atestarde seus últimos livros: Pedagogia da Esperan-ça (1ª edição em 1992), e Pedagogia da Au-tonomia (1996). A compreensão da evoluçãohistórica do pensamento freireano sobre edu-cação e, em particular, sobre a mediação didá-tica, é uma questão de justiça.

O pensamento pedagógico de Paulo Freirejamais deixou de ser atual e preciso, A um sótempo contundente e amoroso. Educar, paraeste homem, além ser uma ato político se cons-tituía em ato de amor. Acima de tudo.

5. A mediação docente na Peda-gogia Histórico-Crítica

O grito sufocado, premido pelo desejo deviver numa sociedade livre e justa, que vigoroudurante a ditadura militar (1964-1981) no Bra-sil, ecoou veemente nos anos que se seguiramimediatamente a este período, inaugurando umnovo momento chamado de abertura política.Vem de lá a célebre canção de João Bosco eAldir Blanc – “O bêbado e a equilibrista” –

sintetizando o sentimento brasileiro num mistode irreverência e saudade.

No campo educacional, não passamos incó-lumes. Além do irmão do Henfil (Herbert, maisconhecido como Betinho, um renomado soció-logo atuante e sensível) descrito na canção, inú-meros foram os professores, estudantes eintelectuais, em geral, desaparecidos e exiladosdurante este longo e tenebroso inverno.

Nas universidades, para além do clima deterror, gestavam-se idéias de análise e compre-ensão da sociedade injusta em que estávamosinseridos, à luz de estudos marxistas, com es-peranças de varrer do solo brasileiro as durasinjustiças sociais.

A pedagogia histórico-crítica surge no Bra-sil, nessa época, com a esperança dos anos 1980e na esteira do movimento crítico marxista queinvadira a Europa e se explicitara no manifestodos estudantes universitários franceses, em maiode 1968. Com efeito, esse movimento marcouprofundamente uma época e retumbou em vá-rios países, inclusive no Brasil. Os revolucioná-rios pretendiam fazer eclodir a revolução sociala partir de uma revolução cultural, abrangendotoda a superestrutura cultural da sociedade, oque incluía a escola. Foi um movimento ambici-oso que não conseguiu, de fato, mudar a ordeminstituída, mas abalou as suas bases.

A partir do movimento, surge um pensamentonovo e dominante na França que, por força doseu determinismo, ficara conhecido, aqui noBrasil, como movimento crítico-reprodutivista.(Os teóricos como Bourdieu e Passeron (1970,apud SAVIANI, 1984), Baudelot e Establet(1971, apud SAVIANI, 1984)) e, principalmen-te, Louis Althusser (1969) pretendiam provar aimpossibilidade de transformação social pelarevolução cultural, onde se incluía a ação esco-lar. Para Althusser, por exemplo, as instituiçõessociais e políticas, dentre as quais a escola,funcionariam como aparelhos ideológicos de Es-tado. A função precípua desses aparelhos eraa difusão e inculcação da ideologia dominanteburguesa, manifesta através do discurso e prá-tica dos sacerdotes e seus seguidores, no casoda Igreja, do discurso e prática dos professo-res, no caso da escola.

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A teoria crítico-reprodutivista foi importan-te, pois conseguiu articular uma contra-ideo-logia que, no caso dos brasileiros, serviu deargumento e estímulo às lutas contra a ditadu-ra militar. Todavia, era uma corrente teóricacontraditoriamente inflexível, pois não via ou-tra função para a escola (e demais aparelhosideológicos de estado) senão a reprodução daideologia da sociedade de classes. Vale res-saltar que o estudo desses sociólogos france-ses não objetivava a construção de umapedagogia; contudo, concedeu elementos im-portantes à análise da sociedade e do papelsocial da educação.

Foi preciso a organização de um contra-modelo para que se pudesse, no meio acadêmi-co, voltar a ver a escola como instituição sociale palco efervescente de contradições sociais:como espaço onde a luta contra o modelo só-cio-político e econômico estabelecido pudessese constituir; mesmo o aspecto reprodutor daeducação escolar é contraditório, portanto ca-paz de fazer engendrar mudanças.

Saviani engendrou sua teoria pedagógica,para além das análises sociológicas, na buscade modos de intervenção que pudesse, de algu-ma maneira e mesmo que indiretamente, incidirsobre o modelo social instituído. Ao professor,como mediador político de uma pedagogia re-volucionária, estava reservada a tarefa de mu-nir os alunos de classes desfavorecidas, dasmesmas armas que possuía a classe burguesa– o saber sistematizado – para, assim, fazeravançar as lutas sociais por transformações.

O ideário pedagógico progressista surge pri-meiramente através dos escritos de GeorgeSnyders na França, em 1979. Dermeval Savia-ni, um pouco mais tarde, publica, em 1983, olivro Escola e Democracia, onde anuncia suasonze teses em favor de uma pedagogia progres-sista. A sua idéia era buscar uma síntese supe-radora entre as tendências tradicional (que tinhano professor o detentor e transmissor exclusivode um saber abstrato) e a escolanovista (que,segundo o próprio Saviani, colocava no alunoas responsabilidades do processo ensino-apren-dizagem, desde as escolhas dos conteúdos e

programas até a sua atualização na sala de aula).Saviani propunha uma pedagogia onde o alunopudesse ser respeitado como sujeito, mas quenão fosse ele o principal artífice do processoensino-aprendizagem. Propunha uma relaçãohorizontal entre estes sujeitos do ato educativo(professor e alunos), mas não destituía o pro-fessor de sua autoridade pedagógica. Foi deno-minada de pedagogia histórico-crítica.

Não se pode dizer que essa pedagogia te-nha se firmado nas práticas escolares de modogeneralizado; não se tem notícia da institucio-nalização dessa tendência pedagógica. Arriscomesmo a dizer que ela se restringiu aos meiosacadêmicos, à universidade, pois foi concebidanestes centros e sua divulgação não tocou se-não os professores universitários, com exceções.

O objetivo maior dessa pedagogia está natransmissão/assimilação do saber universal so-cialmente produzido. Nesta tendência, Savianiprocurou objetivar historicamente a questão daescola e da importância do trabalho pedagógi-co escolar no processo de desenvolvimentocultural e social.

É aí que se insere a idéia de mediação; umamediação de natureza político-social, pois quese pretendia, através da ação educativa (umaatividade mediadora), prover as classes desfa-vorecidas de um saber e de uma consciênciapolítica capaz de levá-las à compreensão do seumeio social para nele poder intervir. Saviani,àquela época, não tinha ainda bem esclarecidoa si mesmo o que queria dizer com a idéia demediação nesta pedagogia. A idéia, posterior-mente desenvolvida por Cury, Guiomar Mello,Betty Oliveira, Luckesi, dentre outros educa-dores, reunia o objetivo político de transforma-ção das estruturas sociais, mediante (a mediaçãodidática deveria favorecer a isso) a ação políti-ca do educador que instrumentalizaria seus alu-nos através da transmissão e domínio do saberescolar.

Assim, a mediação propriamente didática,que incide sobre o processo de objetivação cog-nitiva dos educandos, se revela como uma ação,prioritariamente, política. Betty Oliveira (1985)decodificou com clareza a idéia de mediação

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na pedagogia histórico-crítica, entendendo aescola como locus privilegiado para a instru-mentalização dos educandos (apropriação dosaber sistematizado) e conseqüente atuação nomeio social.

A transformação das estruturas sociais é oobjetivo último da pedagogia histórico-crítica.O princípio básico se sustenta sobre a idéia detransmissão do saber, chamado pelos autoreshistórico-críticos, de universal, o saber sistema-tizado, como direito de todos os cidadãos. Aeducação escolar, enquanto atividade mediadorano seio da prática social mais ampla, não deixa-ria de propiciar uma passagem na vida do indi-víduo que deveria assimilar criticamente o sabersistematizado e atuar no seio meio social, emprol das transformações das estruturas.

A prática educativa realizada intencional-mente é, então, vista como uma modalidade daprática social e, como atividade mediadora, tempossibilidades de influir sobre a prática social econtribuir positivamente no rumo das proclama-das mudanças sociais.

Dentro do próprio espaço da sala de aula,os teóricos histórico-críticos já acreditam serpossível engendrar transformações. “Essastransformações, embora específicas da práticaeducativa (escolar), constituem-se partes im-portantes de transformações que se dão nasdemais modalidades da prática social global”.(OLIVEIRA, 1985, p. 99).

Creio que esta citação resume bem o quequero dizer com a mediação de caráter políticoda pedagogia histórico-crítica. Este é o objetivoe o meio pelo qual esta teoria pedagógica secorporifica em prática. Assim, a ação pedagó-gica “cumpre já na sua própria produção umadimensão política, que lhe é, portanto, intrínse-ca”. (OLIVEIRA, 1985, p. 99).

É preciso salientar, no entanto, que os teóricosdesta tendência nunca foram ingênuos ou postu-laram a transformação das estruturas sociais eeconômicas na sociedade capitalista, mediante aação pedagógica escolar. Acreditavam, isto sim,que a educação escolar poderia contribuir indire-tamente para tal fim. E este seria o seu sentidomediador enquanto atividade política.

Talvez o equívoco desta pedagogia tenha sidoo de enfatizar, por demais, a importância datransmissão do conteúdo sistematizado em de-trimento da compreensão dos processos cogni-tivos que nos esclarecem sobre a aprendizageme, portanto, sobre os mecanismos de aquisição,construção e reconstrução do saber.

José Carlos Libâneo (1986) foi outro edu-cador que sistematizou os pressupostos da ten-dência histórico-crítica, explicitando-a do pontode vista didático. Emprestou-lhe o codinome depedagogia crítico-social dos conteúdos edescreveu a sua manifestação na prática peda-gógica escolar.

Libâneo avança bastante no que toca à com-preensão da didática na pedagogia dos conteú-dos. Segundo o autor, o trabalho docenteconsiste em buscar transmitir os conteúdos cul-turais universais, compreendendo os meios pe-los quais os alunos se apropriam dessesconteúdos. Nesse particular, parte do conheci-mento didático se refere às mediações que pro-moverão o encontro entre o aluno – e seucurrículo oculto – e o saber escolar. Desta for-ma é o professor também “portador das media-ções que tornarão viáveis o trabalho docenteque garanta o acesso do aluno ao saber esco-lar” (1986, p. 140) .

A atividade nuclear do trabalho docente se-ria exatamente o encontro entre o aluno e oobjeto de conhecimento:

... cujos resultados formativos passam por inú-meras mediações que contextualizam a situaçãopedagógica (contexto sociopolítico-cultural, con-texto sociopsicológico, processos mentais im-plicados na aquisição e apropriação dos conhe-cimentos, processos de seleção de conteúdosbásicos das matérias e organização da sua se-qüência lógica, especificidade metodológica decada matéria etc.). (Libâneo, 1986, p. 141).

Essas mediações constituiriam, segundo Li-bâneo, a base da prática pedagógica.

Todavia, seria ainda preciso uma outra cor-rente pedagógica que avançasse ainda maisneste terreno, dando conta do ato de conhecercomo processo construtivo. E, nesse contexto,a ação do professor deverá passar a incidir, não

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na transmissão do saber, mas na problematiza-ção do conhecimento, no levantamento de sus-peitas, no aguçamento das curiosidades e nodesejo de aprender. Jean Piaget e Vygotskyforneceram as bases para a compreensão des-se processo. Outros autores, na atualidade, seincumbiram de gerar, a partir dos estudos dosprimeiros, uma tendência pedagógica, entãoconhecida como construtivista.

Assim é que a pedagogia histórico-crítica,embora proponha uma síntese superadora en-tre a corrente tradicional e a pedagogia da Es-cola Nova, deixa uma lacuna do ponto de vistada compreensão dos modos de aprender dascrianças, não apresentando subsídios suficien-tes para a elaboração de um pensamento peda-gógico também construtivo. Talvez essaslacunas tenham concorrido para a exacerba-ção, dos anos 1990 para cá, do construtivismopedagógico que assola as escolas da rede ofici-al de ensino, praticamente, em todo o país –pedagogia esta que conclui o presente artigo,logo em seguida.

6. A mediação didática do-cente no construtivismo pedagó-gico

O amálgama pedagógico em que se consti-tuía a prática pedagógica de professores, noperíodo pós-regime militar, evocava a necessi-dade de elaboração de um pensamento peda-gógico que pudesse dar conta da compreensãodo ato de aprender e de ensinar, e, assim, dabusca de modos de intervenção pedagógica maisinstigantes e prazerosos. O ingrediente do pra-zer e da ludicidade tinham partido, de há muito.

Como que desesperançados, os professores,mormente os de nível fundamental e médio,desenvolviam, nesses tempos taciturnos, umaprática um tanto quanto amorfa, inodora e ino-perante nas escolas da rede pública estadual.Este amálgama, constituído de resquícios davertente tradicional, escolanovista e tecnicista,se imprimiam nas mais variadas manifestaçõesde prática pedagógica, por falta, a meu ver – e

afora todas as questões de ordem política, soci-al ou econômica que estão na base desses pro-blemas – de conhecimento profundo e críticode alguma teoria pedagógica que pudesse fa-zer alavancar um trabalho mais consistente ecriativo na escola.

O clima de desesperança e desestímulo ain-da não partiu, de todo; hoje, o sentimento nega-tivo pode ser atribuído muito mais às precáriascondições de trabalho docente que ao desco-nhecimento de um pensamento pedagógico ra-zoavelmente ordenado. Não quero dizer, comisso, que os professores das escolas brasileiras,em geral, dominam o que se convencionou cha-mar de tendência pedagógica construtivistae desenvolvem uma prática absolutamente co-erente com os princípios desta teoria. Não sus-tento, tampouco, que o construtivismo tenhasurgido como panacéia para resolver todos osmales do ensino público brasileiro, bem ao con-trário disso. Seu desenvolvimento, ou melhor,seu mau desenvolvimento, nestas escolas, sedeve, em muito, à política estadual, e tambémfederal, de esvaziamento ainda maior da quali-dade desse ensino. Falta formação adequada eboas condições de trabalho para que os nossosprofessores saibam e possam desempenhar bemsuas funções. Todavia, já se pode apreciar, hojeem dia, práticas pedagógicas, no ensino públi-co, bem diferentes das de outrora e mesmo ali-nhadas ao ideário construtivista, que aportambons resultados e satisfação, tanto para quemensina quanto para quem aprende.

Antes de tudo, é preciso esclarecer o quese entende por construtivismo e também porsocioconstrutivismo ou socio-interacionismo ou,ainda, construtivismo sócio-histórico – uma ver-tente, digamos, sócio-histórica do construtivis-mo piagetiano que tem, em Vygotsky, seuprecursor.

O construtivismo pedagógico pode ser com-preendido como conjunto de pensamentos psi-copedagógicos organizados empiricamente e fun-damentados em inúmeras pesquisas: desde JeanPiaget (1965a, 1970b, 1970c) e Vygotsky (1984a,1987b) a Emília Ferreiro (1985), seus maioresexpoentes. Os estudos mais atuais que empres-

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taram uma releitura à teoria construtivista apli-cada ao âmbito pedagógico, que considerarei aquicomo referência, provém de Teberosky (1993),Deheinzelin (1986), e Coll e Solé (2001).

O elemento cultural na teoria construtivista,por vezes mal interpretado por críticos ao cons-trutivismo piagetiano, é um ponto fundamentalno estudo de Deheinzelin (1986), pois que per-mite a união daquilo que antes poderia ser vistocomo oposição entre o pensamento de Piaget ede Vygotsky. Mas, retornarei a este ponto, aofinal, quando da síntese das teorias e conclusãodeste artigo.

A questão da mediação didática, na tendên-cia pedagógica construtivista, é um dos pontosmais importantes nos trabalhos de Coll e Solé(2001) e a sua exposição auxiliará, sobrema-neira, a compreensão deste processo aqui.

Segundo Coll e Solé, o construtivismo não é,no sentido estrito, uma teoria, mas um referen-cial explicativo que “integra contribuições di-versas cujo denominador comum é constituídopor um acordo em torno dos princípios constru-tivistas” (COLL; SOLÉ, 2001, p. 10). A pre-missa básica desta tendência está em queaprender é construir. E se aprende quando se écapaz de elaborar uma representação socialsobre um dado objeto da realidade ou de umconteúdo que se deseja aprender. Essa elabo-ração não é vazia, mas mediada por múltiplasexperiências, interesses, conhecimentos prévi-os que darão conta de uma nova ressignifica-ção. Assim é que, de posse dos nossossignificados, nos aproximamos de um novo as-pecto do real que, na verdade, será interpreta-do com os significados que já possuíamos, e que,assim parecerá novo. Porém, de outras vezes,“colocará para nós um desafio ao qual tenta-mos responder modificando os significados dosquais já estávamos providos, a fim de poder-mos dar conta do novo conteúdo, fenômeno ousituação” (COLL; SOLÉ, 2001, p. 20). É as-sim que, além de podermos transformar o quejá possuíamos como saber, também podemosinterpretar o novo, de forma singular.

Então, aprender significativamente quer di-zer construir um significado próprio, pessoal para

um objeto de conhecimento objetivamente exis-tente. Este aspecto da aprendizagem resume atarefa do ensino no construtivismo.

A mediação didática, nesta tendência, é umprocesso compartilhado, em que “o aluno, gra-ças à ajuda que recebe do professor, pode mos-trar-se progressivamente competente eautônomo na resolução de tarefas, na utiliza-ção de conceitos, na prática de determinadasatitudes e em numerosas questões” (COLL;SOLÉ, 2001, p. 22).

Tal como apregoa Lenoir (1999), a media-ção didática deverá incidir na capacidade cons-trutiva do educando (em que pesem outrasdimensões aí presentes: sociais, afetivas, políti-cas e outras), desafiando-o, instigando-o. Umaajuda, segundo Coll e Solé, que vai do desafio àdemonstração mais minuciosa, da demonstra-ção de afeto à correção, ajustando-se sempreàs necessidades dos educandos.

Esta ajuda do professor deve incidir, para osautores, na zona de desenvolvimento proxi-mal (ZDP), entre o nível de desenvolvimentoefetivo e o nível de desenvolvimento potencialque pode atingir o educando.

A versão construtivista atualizada de César Colle Isabel Solé não se coaduna com a idéia espon-taneísta de ensino. O construtivismo, na versãode Coll e Solé, não enjeita os conteúdos escolares,ressignifica-os. A ação do professor, este media-dor de saberes, deve, pois, incidir na capacidadeconstrutiva do aluno para que também ele sejaum autor na sua trajetória como aprendiz.

Não poderia falar em construtivismo semmencionar o nome daquela que revolucionou osmeios educacionais, principalmente, na Améri-ca Latina, com suas pesquisas científicas emtorno dos processos que envolvem a aquisiçãoda lecto-escrita: Emília Ferreiro. Psicóloga epesquisadora argentina, radicada no México, fezseu doutorado na Universidade de Genebra, soba orientação de Jean Piaget. A partir de 1974,iniciou seus trabalhos experimentais, na Univer-sidade de Buenos Aires, que derivaram na teo-ria sobre a Psicogênese do Sistema de Escrita.

A criança, para Emília Ferreiro, longe de serum ser passivo, é um sujeito que pensa e intera-

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ge com o mundo ao seu redor. Um sujeito queconstrói, ativamente, suas próprias hipóteses eteorias; põe à prova suas antecipações. Comrelação à linguagem não poderia ser diferente: acriança concebe também suas hipóteses, buscaregularidades e forja assim sua própria gramáti-ca. A criança é capaz de reconstruir sua lingua-gem, abordando seletivamente as informaçõesque lhe provêm do meio. Os erros que cometenessa busca complexa da própria linguagem nãosão erros, mas ocasiões extremamente bem ela-boradas e situadas numa trajetória sempre in-conclusa. Estes erros construtivos, longe deconstituir-se em empecilhos, são provas de queos sucessos futuros, no processo construtivo daaprendizagem, serão perfeitamente possíveis.

Segundo Ferreiro, a literatura em torno daaprendizagem da língua escrita se restringe atipos de metodologias capazes de solucionartodos os problemas concernentes a tal proces-so. São estudos que, de modo geral, buscamestabelecer um rol de habilidades e capacida-des necessárias a esta aprendizagem em parti-cular: lateralização espacial, discriminação visuale auditiva, coordenação psicomotriz, etc. Essesfatores podem, de fato, concorrer positivamen-te para o progresso na aprendizagem da lecto-escrita, mas esta relação não é causal, comoestes trabalhos fazem supor.

Emília Ferreiro busca na teoria de Piaget umpapel ativo para o sujeito aprendiz ou o sujeitocognoscente – um sujeito que busca seu pró-prio conhecimento e trata ativamente de com-preender o mundo que o cerca, construindo suaspróprias categorias de pensamento. Este sujei-to cognoscente está também presente na apren-dizagem da língua escrita.

Seguindo a referência piagetiana, não exis-te um ponto de partida inteiramente novo nomomento em que se aprende. Um conteúdonovo, mesmo que ainda desconhecido, deveráser assimilado pelo sujeito segundo seus esque-mas de assimilação disponíveis. A dependerdesses esquemas, a assimilação será mais oumenos deformante. O ponto de partida de todaaprendizagem é o próprio sujeito e não o con-teúdo a ser abordado.

A diferença conceitual entre as teorias con-teudistas e a teoria de Piaget sobre o sujeito daaprendizagem reside no fato de que, para as pri-meiras, o conhecimento é exterior ao sujeito érecebido de fora. Para a teoria piagetiana, o su-jeito é o construtor de seu conhecimento. Destaforma, o conhecimento objetivo não aparece demodo linear; é um caminho que se faz por rees-truturações progressivas e simultâneas, algumasdas quais errôneas, mas construtivas. Tais er-ros podem ser entendidos como pré-requisitosnecessários à obtenção da resposta correta.

Um outro aspecto fundamental da teoria dePiaget, resgatado por Emília Ferreiro, é o dapossibilidade de reconstrução do conhecimentopelo sujeito cognoscente a partir das leis decomposição do objeto de conhecimento. O co-nhecimento progredirá através de conflitoscognitivos, isto é, através da presença de umobjeto que force o sujeito a modificar seus es-quemas de assimilação, realizando assim umesforço de acomodação para incorporar o queanteriormente resultava em inassimilável.

Não se trata de colocar o indivíduo diantede situações irrealizáveis. Do ponto de vistaprático, significa gerar situações conflitivas emmomentos específicos, diante das quais o sujei-to esteja preparado para transpô-las. Resolven-do suas próprias contradições, o sujeitocognoscente estará em condições de avançarno sentido de novas reestruturações.

O estudo de Emília Ferreiro demonstra a per-tinência da teoria psicogenética de Piaget, bemcomo os conceitos advindos da psicolingüísticacontemporânea, aplicados à natureza dos proces-sos de aquisição do conhecimento em lecto-escri-ta. Não se trata de um método de alfabetização.Não se pode cair no mesmo erro tão alardeadopela autora em passagens diversas no seu livro,confundindo-se método com teoria sobre o pro-cesso de conhecimento. A teoria tratada pela au-tora visa a iluminar os problemas de natureza epis-temológica no campo da lecto-escrita para, assim,ajudar a solucionar os problemas de aprendiza-gem nesta área na América Latina, evitando, des-se modo, o processo de formação de analfabetosainda em curso no sistema escolar.

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Considerações finais: em busca deuma síntese possível

Podemos afirmar que, ao invés de oposição,há complementaridade entre as obras de Vygotskye seus seguidores da Escola sócio-histórica deMoscou e a obra de Jean Piaget e de seus cola-boradores na Escola de Genebra. O elemento dacultura, tão criticado e tido como alheio na obrade Piaget, deve ser então, incorporado ao que sepode chamar de socioconstrutivismo. A compre-ensão de uma e de outra teoria, certamente, serámuito útil a todo e qualquer processo de ensinoque se deseje crítico e construtivo.

É preciso romper com o ensino verbalísticoda pedagogia tradicional sem, entretanto, rom-per com as tradições, pois que elas têm suaimportância. As estruturas internas do conhe-cimento são elementos da cultura e são, inicial-mente, compreendidos, segundo Piaget, pormeio da imitação, gerando, assim, a função sim-bólica, as imagens mentais, as linguagens e osesquemas operatórios que abrem possibilidadese necessidades ad infinitum para o pensamen-to e para a cultura (PIAGET, 1996, p. 84). Logo,a versão atualizada do construtivismo não negaa importância do conteúdo escolar, mas redi-mensiona-o, em função do que as crianças tra-zem como saber e das suas condições paraaprender. Cabe ao professor decifrar, interpre-tar, traduzir estes elementos e então criar con-dições adequadas de ensino/aprendizagem.

Muitos dos projetos pedagógicos atuais es-tão colocados diante de um falso dilema: de umlado, a cultura verbalística do ensino tradicionale, de outro, a ênfase no desenvolvimento cog-nitivo e na livre expressão das crianças, carac-terísticas típicas das chamadas escolasalternativas. Os resultados dessa dicotomia sãonegativos, pois contribuem ainda mais paraagravar o fosso existente entre as classes soci-ais no Brasil, muito embora as camadas popu-lares não freqüentem escolas com uma ou outradessas características tão bem definidas. O queparece estar acontecendo na atualidade é umafalta de concepção pedagógica clara e bemassimilada pelos professores para que estes

possam trabalhar com maior segurança.O espaço da mediação didática está justa-

mente em descobrir o que os alunos sabem ecomo o sabem. O professor, parafraseandoMacedo (2000), como mediador de saberes étambém um tradutor. Assim, o professor é ummediador entre as idéias dos educandos e osobjetos de conhecimento. Este é o sujeito quesabe quando e como deve ressaltar este ou aque-le ponto, introduzir esta ou aquela demonstra-ção, detalhar uma explicação, ilustrar comexemplos, iluminar. O que importa, para o de-senvolvimento adequado da mediação didáticadocente, é considerar o que o aluno traz comobagagem cultural e, então, ensinar/mediar deacordo. O trabalho pedagógico é um trabalhode delicada tradução.

Fechar este artigo supõe abri-lo à compre-ensão do que se passa atualmente, no âmbitoda mediação que pratica o professor. Significa,ainda, a busca pela elaboração de outros sabe-res que poderão nos conduzir a outras possibili-dades didáticas numa engrenagem educativamais prazerosa, desafiadora e criativa. Cadatendência pedagógica apresentada aqui podeoferecer-se como ingrediente interessante paraa reconstelação de práticas pedagógicas queapontem para outras direções menos indiges-tas do que aquelas com as quais se afirmaramas práticas autoritárias de ensino.

O conhecimento das pedagogias (ao menosaquelas de maior expressão) que deram formaàs mediações didáticas empreendidas pelos pro-fessores, ao longo da história, nos garante acompreensão das práticas pedagógicas na atu-alidade. Finalmente, devo concluir, acreditandoque a mediação didática docente é um proces-so que se constrói significativamente, como açãocriadora que deve nascer das necessidades maisprofundas dos educandos como seres humanosaprendizes e cidadãos que são. E que o mestreseja, como afirmou Anísio, sempre de formatão atual: “...o sal da terra, capaz de ensinar-nos, a despeito da complexidade e confusão mo-dernas, a arte da vida pessoal em umasociedade extremamente impessoal” (TEIXEI-RA, 1963, in: ROCHA, 1992, p. 8).

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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ESTUDOSESTUDOSESTUDOSESTUDOSESTUDOS

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DA DIFERENÇA E DA IGUALDADECarlos Roberto Jamil Cury*

* Doutor em Filosofia da Educação. Professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMG.Endereço para correspondência: PUCMG, Mestrado em Educação, Av. Itaú, 505, Coração Eucarístico – 30730-280Belo Horizonte/MG. E-mail: [email protected]

RESUMOA diferença chegou ao terreno da educação: são as pessoas com deficiências,são os afro-descendentes, são os povos indígenas. Com ela surge a necessidadede administrar essas realidades. Aceder aos conceitos é um modo de sistematizaressa administração. Este artigo pretende explicitar termos bastante utilizadosna área como: igualdade, eqüidade e diferença. Além disso, busca analisá-los,referindo-os à educação.

Palavras-chave: Educação – Eqüidade – Diferença – Igualdade

ABSTRACTON DIFFERENCE, ON EQUALITY

Difference reached the realm of education: physically challenged people, afro-descendents, native communities. Along with it arises the need to managethose realities. Developing concepts is a way to work out this managementsystematically. This article aims to bring into light terms largely used in the fieldsuch as: equality, equity and difference. Moreover, it endeavors to analyzethem in an educational perspective.

Keywords: Education – Equality – Equity – Difference

INTRODUÇÃOEste texto tem por objetivo refletir sobre a

problemática da igualdade e da diferença en-tre as pessoas e os grupos humanos, expres-são que é da tão nova quão antiga questão douno e do múltiplo.

A realidade mundial vem revelando umaconsciência cada vez maior da relação igualda-de/diferença nos direitos humanos por meio deuma proteção que expressa uma maior consci-

ência ética partilhada por Estados, seja em tra-tados e acordos de dimensão internacional, sejanos de feitio regional. Simultaneamente avulta,a cada dia, um estado de violação profundadesses direitos, indicando uma verdadeira situ-ação esquizofrênica. Prolonga-se a vida, a ci-ência avança, as vozes humanitárias se sucedeme, concomitantemente, a fome, a miséria nãosão debeladas, e a realidade das invasões eocupações de nações suscita cada vez maismorte e terrorismo.

... temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direitode ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de umaigualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente oureproduza as desigualdades. (Boaventura Santos).

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Se a humanidade possui um estoque de ri-quezas acumuladas que permitiria uma vida dig-na para todos os humanos, a concentração delasem uma ponta do mundo implica a campeaçãodas doenças e do sofrimento na outra e da po-larização social no interior dos países.

A igualdade é um conceito controverso,evolutivo e dependente de variações sócio-contextuais. Ela expressa relações entre clas-ses ou grupos sociais distintos face a um hori-zonte comum. E, no seu processo histórico,vem revelando, enquanto direito proclamado,um caminho de mais desigualdade para me-nos desigualdade, manifestando uma supera-ção lenta e difícil, na sua efetivação, dessassituações.(BOBBIO, 1992)

A diferença, por sua vez, – do latim differ-ro, differre = dispersar, espalhar, semear –, é acaracterística de algo que distingue uma coisada outra. Seu antônimo não é igualdade, masidentidade.1 Diferença é sempre diferença deuma identidade com relação a outra identidade,geralmente entre pessoas. E por serem identi-dades próprias, elas são relacionais, já que pos-tas uma diante da outra, marcam, assim, adiferença. Ser igual não quer dizer ser idêntico.Como afirma Galluppo (2002, p. 215):

Enquanto etimologicamente o termo identidadese refere mais propriamente à substância dosentes, o termo igualdade se refere mais propria-mente à relação que estabelecem entre si. Doisseres idênticos são necessariamente iguais, masnem todos os seres iguais são necessariamenteidênticos. Daí ser possível que dois seres iguaispossam ter diferenças entre si.

Analogamente à igualdade, a diferença é umconceito polissêmico e variável em contextoshistóricos específicos.

Um exemplo atual é a situação dos imigran-tes presentes em nações, geralmente ex-me-trópoles coloniais. Esses indivíduos, em buscade vida melhor, carregam lastros culturais nati-vos, os quais acabam por gerar um enfrenta-mento de culturas. Assim, do ponto de vistacultural, etnias sufocadas, minorias segregadasconvivem com realidades discriminatórias can-dentes, na medida em que o pólo cultural domi-nante, referencial para o delineamento da

diferença, custa a aceitar como legítima essapresença cultural diferenciada em matéria, porexemplo, de hábitos, linguagem e costumes.

Não se trata de uma problemática simples.Muito pelo contrário. Ela se revela complexa e,por isso mesmo, tensa e, por vezes, polarizada.A literatura, inclusive a que comparece nestetexto, manifesta essa complexidade e tensão.Mas trata-se de uma problemática que instigaa busca de uma resposta condizente com a suaimportância, especialmente no espaço da edu-cação.

Essa tensão entre conceitos que expressamrealidades complexas tornou-se mais explícitaquando formas clássicas de desigualdade soci-al se mostraram ainda mais agudas perante orecuo do Estado Social, a crise das esquerdas ea presença do desemprego estrutural. O vácuodeixado por esse recuo carece de políticas uni-versalistas e é ocupado por projetos de focali-zação calcados na diferença ou em interpreta-ções peculiares da eqüidade.

Este texto não foge dessas dificuldades; nãotem respostas aos problemas postos, nem pre-tende esgotar o assunto. Ele pretende repassar,rapidamente, por momentos históricos que re-fletiram essa problemática, expressar essa re-alidade no Brasil, e tentar uma reflexão sobrepontos que tensionam os pólos dessa relação.

Em um livro estimulante, o prof. Alain Tou-raine (2002) repõe, em termos sociais e atuais,o eterno problema filosófico – que subjaz a es-sas questões – do Uno e do Múltiplo. Ele sepergunta se “podemos viver todos juntos”, sen-do ao mesmo tempo “iguais e diferentes”. Tra-ta-se de uma pergunta crucial para países,grupos e pessoas. Se não pudermos viver jun-tos, iguais e diferentes, talvez se possa respon-der que é possível vivermos como iguais ediferentes, porém separados, ou então vivermosjuntos como diferentes porque desiguais. Noprimeiro caso, trata-se de um regime de apar-theid já condenado; no segundo, voltaríamos aoregime de estamentos. Na verdade, a pergunta

1 Idêntico tem a ver com idem (do latim = o mesmo). Tema ver com o idiós, do grego, que significa o próprio, osingular.

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de Touraine supõe uma resposta que corres-ponda à dignidade igualitária de todos, enrique-cida pelos matizes culturais de uma humanidadeuna, indivisível e múltipla e diferenciada. Essecaminho de uma utopia concreta é aquele doqual não se pode abrir mão, mas cuja trajetóriase vê obstaculizada por inúmeras barreiras quese cruzam ora com o nacional, ora com o soci-al, ora com o cultural.

Um momento importante e ainda atual dadefesa da igualdade, como elo essencial entreos homens, é a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos de 10/12/1948, seguida do Pac-to Internacional sobre os Direitos Civis ePolíticos e do Pacto Internacional sobre Direi-tos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de16/12/1966. Apesar da solenidade de sua pro-clamação, eles não conseguiram se impor àsnações signatárias com a força jurídica, vincu-lante e assecuratória, correspondente à contun-dência dos termos em que igualdade e diferençaforam exaradas.2

Não é de hoje que a busca de maior igual-dade entre os homens põe ênfase no que é co-mum à espécie humana em que a superioridadeaxiológica da humanidade vista ut genus sesobreponha a uma visada dos grupos e dos pa-íses vistos ut singuli.

Kant (1939), no século XVIII, à cata da“Idéia de uma história universal em sentido cos-mopolita” (1784), assinala que o uso da razãosó se desenvolve plenamente na espécie e nãonos indivíduos. É da espécie humana que o foroprivilegiado da razão, apanágio da hominidade,se desenvolve, e sua plenitude em humanidadesó se realiza pela “paz perpétua”.

Também autoridades morais entenderam queessa “paz perpétua” supõe uma autoridademundial. É o caso do papa João XXIII, na encí-clica Pacem in Terris (1963):

O bem comum universal levanta hoje problemasde dimensão mundial que não podem ser enfren-tados e resolvidos adequadamente senão porpoderes públicos que possuam autoridade, es-truturas e meios de idênticas proporções, isto é,de poderes públicos que estejam em condiçõesde agir de modo eficiente no plano mundial. Por-tanto, é a própria ordem moral que exige a insti-

tuição de alguma autoridade pública universal.(p. 66).

E, na realidade atual, especialistas em eco-nomia internacional, como Celso Furtado (1999),não se esquivam em postular uma idêntica au-toridade para regular a possessividade desen-freada dos mercados internacionais, cujaprocura por lucros fáceis vem impondo custossociais desastrosos. Na busca de uma Autori-dade Financeira Mundial, ele esclarece:

A consciência de que as estruturas atuais ex-põem povos ricos e pobres a crises de custosocial crescente está na origem de múltiplas ini-ciativas para que se realize um esforço comumde reconstrução institucional. Para avançar nes-se terreno se requerem espírito de cooperação,visando conciliar interesses divergentes, e espí-rito de luta a fim de que os que ocupam posiçãode poder e têm mais amplo acesso às fontes es-tratégicas de informação não obriguem os fra-cos a aceitar mais um desses Diktats responsá-veis por tantas tragédias históricas.

O Fundo Monetário Internacional continuaenfeudado ao Tesouro dos Estados Unidos eaos interesses financeiros internacionais paradesempenhar adequadamente esse papel. Recen-temente deu-se um passo adiante com a institui-ção de força-tarefa no Comitê Consultivo dasNações Unidas para Assuntos Econômicos eSociais. Esse órgão recomendou a instituição deuma Autoridade Financeira Mundial com pode-res para definir padrões de regulação financeira.(p. 25-26).

É do reconhecimento da igualdade essenci-al de todas as pessoas do gênero humano quese nutriram todas as teses dos direitos univer-sais da pessoa humana e, por decorrência, asteorias da cidadania, da democracia e da pos-tulação de uma autoridade internacional. É des-se reconhecimento de uma igualdade substan-

2 O Brasil é signatário, na Organização das Nações Unidas(ONU), da Declaração Universal dos Direitos do Homem de1948, é ratificante da Convenção para a Prevenção e aRepressão do Crime de Genocídio, também de 1948, éaprovante da Convenção Internacional sobre a Eliminaçãode todas as formas de Discriminação Racial de 1968, é par-ceiro na Convenção da UNESCO para Eliminação da Dis-criminação na Educação de 1960, e é signatário do PactoInternacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, entreoutros.

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cial da categoria humana onde quer que elase apresente, em quaisquer dos espaços nacio-nais, que se pode ter como horizonte uma outranatureza nas relações entre nações, no interiordelas e nas relações entre grupos sociais e pes-soas, todas sempre marcadas por diferençasnacionais, grupais, culturais e individuais.

IGUALDADE E DIFERENÇAA presença entre os homens de situações

indicadoras e reveladoras de guerra e violên-cia, de fratura social, dos desastres ecológicose as formas de desigualdade, discriminação eopressão, entre muitas outras, sempre se cho-cou com a consideração básica do outro comoum igual. O relato bíblico de Caim e Abel éemblemático. À fraternidade originária se se-gue o fratricídio. Algo semelhante pode-se de-preender do relato mítico grego de Chronos quechegava mesmo a devorar seus filhos.

Essa tensão entre a igualdade entre os se-res humanos e a manifestação de suas diferen-ças perpassa a real história das sociedadeshumanas.

A Grécia Clássica, na ordem social e políti-ca, defrontava-se com as dificuldades de seentender o escravo, o bárbaro ou o meteco. Naordem filosófica, o problema não passou des-percebido. Antifonte (480-411 A.C}, ilustre so-fista, punha claramente a questão:

... os que descendem de ancestrais ilustres, nósos honramos e veneramos; Mas os que não des-cendem de uma família ilustre, não honramos enem veneramos. Nisto, somos bárbaros, tal comoos outros, uma vez que, pela natureza, bárbarose gregos somos todos iguais. (Apud Comparato,2003, p. 14).

Também a Protágoras deve-se o famosoprincípio humanista de que “O homem é a me-dida de todas as coisas; das que são, que elassão, e das que não são, que elas não são”.3

Para Aristóteles, o ser humano é um ani-mal político cuja vida em ato só se resolvenecessariamente na comunidade da pólis. Forada cidade, isto é, da vida política ou da vida in-telectual, o homem não está em sua plenitude.

Trata-se de um ser potencial marcado pelo ca-ráter passivo oposto à atividade dos “melhores”.E como não são todos os homens que podemter acesso à plenitude da vida política na ágo-ra, dada a sua visão organicista da comunida-de, só os cidadãos (andér) são ativos.(BOBBIO; BOVERO, 1986).

A justiça segundo ele, em Ética a Nicôma-co, se define pelo que é conforme à lei e res-peita a eqüidade; o injusto é o que viola a lei e afalta à eqüidade. As leis devem buscar a justi-ça pela sua finalidade que é a de serem veícu-los da felicidade de todos os membros dacomunidade. Segundo Aristóteles, a comunida-de é composta por três estamentos básicos: osescravos, os metecos e os cidadãos atenien-ses. Cada estamento, em seu próprio interior,reconhece em seus membros uma igualdade,mas essa não se aplica aos outros estamentos.Iguais entre si no interior de cada estamento,cada qual deve se estabelecer e se reger porsua função específica. Nesse sentido, há umaordem hierárquica entre os estamentos e daspessoas que os compõem, o que pressupõe umadesigualdade entre eles. Essa igualdade internae desigualdade externa, para serem harmôni-cas, só se realizam quando cada estamento re-aliza sua função. Ao fazê-lo, eles cooperam paraa finalidade comum que é a harmonia e o bemde todos.

Mas como isso se dá? Em primeiro lugar,pelo suum cuique própria da igualdade distri-butiva. A justiça distributiva ou geométrica4 éa partilha proporcional dos bens e das honrari-as segundo o que cada um, no interior do seuestamento e de sua posição na hierarquia, podedar para a comunidade. Essa, ao presidir a des-tinação das honrarias e bens entre as pessoasde um estamento de uma comunidade, baseia-se no mérito e deve ser proporcional a esse.

3 Explica CHAUÍ (2002): “O homem é medida da realidadenão significa, portanto, que o homem tem o poder totalpara fazer as coisas ser ou não ser, mas tem o poder plenopara decidir o que ela são ou podem ou devem ser e quais nãodeverão passar à existência” (p. 171-172).4 É geométrica porque coloca uma ordem e harmonia esté-ticas na pluralidade que compõe a comunidade. Pode-se veraqui a influência pitagórica.

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Nesse caso, igualam-se os desiguais por um tra-tamento desigual em relação à distribuição. Tor-na-se, pois, justo tratar igualmente os iguais edesigualmente os desiguais.5 E torna-se injustoquando os iguais ganhem desigualmente ouquando os desiguais ganhem igualmente. Porisso, o que é justo para um estamento, não o épara outro, podendo até mesmo ser um desvioou crime.

Ao mesmo tempo, diz Chauí (2002, p. 470):

A justiça distributiva deve impedir o crescimen-to das desigualdades...pois estas são as causasda corrupção de uma Cidade, isto é, as causasdas sedições e revoltas que destroem a Cidade elhe dão uma Constituição pior do que a que pos-suía. A justiça fundante é aquela que define aregra da proporcionalidade entre os cidadãos,criando os iguais pelo tratamento desigual dosdesiguais.

Os cidadãos ativos e os devotados à inteli-gência das coisas tinham, nas finalidades dosoutros estamentos, um suporte de realização dasua finalidade. Trata-se, pois, de uma justiça queexclui os outros estamentos da participação nasmais altas funções da pólis.

A justiça distributiva é aquela que implica dar acada um conforme o seu valor (arethê) ou seja,proporcionalmente àquilo que cada um agregouà comunidade política. Essa justiça é a mais im-portante de todas, pois é responsável pela cria-ção da ordem e da harmonia da comunidade.(GALUPPO, p. 39-40)

Nesse sentido, os indivíduos também não sãoiguais entre si, a não ser no interior de cadaestamento. Estamos, pois, no interior de umaigualdade excludente.6

Já a justiça retificadora busca corrigir asfalhas ou os erros da justiça distributiva especi-almente no que se refere às transações doshomens entre si de bens e de relações entre sicomo a violência física ou simbólica. Ela aplicaas regras e as leis do momento anterior da jus-tiça. Chama-se também justiça comutativa.7 Elase baseia na igualdade aritmética. É essa igual-dade que há se tornar referência dominante naModernidade.

Como diz Aristóteles (1973, p. 336): “... oeqüitativo é justo, porém não legalmente justo,

e sim uma correção da justiça legal. (...) e éessa a natureza do eqüitativo: uma correção dalei quando ela é deficiente em razão de sua uni-versalidade.” A eqüidade é, pois, a adequaçãocontextuada e prudente dos fenômenos não re-gulados pelo caráter amplo da lei universal.

Para Aristóteles, é a natureza complexa doobjeto ou da situação a ser confrontada com ocaráter absoluto da lei que, frente à necessida-de de se fazer justiça, postula o princípio daeqüidade. Nesse sentido, sua posição é magis-tral, na medida em que, para ele, em certascircunstâncias, a eqüidade traduz melhor a exi-gência da justiça do que a igualdade tomadacomo igualitarismo.8

A sociedade ocidental continuou a conhe-cer formas hierarquizadas de vida social. NaIdade Média, apesar do significado nuclear damensagem cristã que torna os homens iguaisentre si na sua filiação divina, na sua dignidadetranscendente, a organização hierárquico-comu-nitária medieval impedirá o desenvolvimentodessa abertura9 que, doutrinariamente, se con-trasta com a oposição medieval entre “senho-res superiores e vassalos inferiores”.

5 Nas condições do desenvolvimento atual em face dasmarginalizações sociais, Bobbio (1996) diz: “...não é supér-fluo chamar a atenção para o fato de que, precisamente afim de colocar indivíduos desiguais por nascimento nasmesmas condições de partida, pode ser necessário favoreceros mais pobres e desfavorecer os mais ricos, isto é, introdu-zir artificialmente ou imperativamente, discriminações que,de outro modo não existiriam...” (p. 32).6 Hoje dir-se-ia que os não cidadãos, sujeitos à justiçadistributiva e comutativa, gozam de direitos individuais eprivados. Isso remete à posterior divisão entre cidadaniaativa e passiva.7 No direito, diz-se comutativo de um contrato cujas presta-ções a que se obrigam os contratantes são perfeita e reci-procamente equivalentes. Comutar é trocar ou mudar algoentre si. Seu antônimo é conservar.8 De acordo com Jean-Pierre Vernant, em “Les origines dela pensée grecque” (1995), há que se distinguir duas corren-tes em torno da noção de eqüidade. A corrente aristocráticarecorre à eqüidade para justificar uma arquitetura jurídicahierárquica fundada na desigualdade de direitos, e, com isto,o estatuto jurídico de “inferiores” não se altera. Neste caso,ela é uma disposição moral pela qual os bem aquinhoadosajudam os pobres. A outra corrente, a eqüidade democráti-ca, funda-se na igualdade de direitos e na realização da justi-ça.9 A igualdade sobrenatural dos filhos de Deus atingia umcaráter universal do qual São Paulo, na epístola aos Gálatas,afirmava: “já não há nem judeu nem grego, nem escravonem livre, nem homem, nem mulher”. (Gal. 3, 28).

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Do ponto de vista doutrinário, não se podedeixar de considerar que essa igualdade detodos em Cristo prenuncia a valorização decada um, de cada indivíduo, agraciado que épor Deus e chamado à salvação. Esse deslo-camento para o indivíduo, ainda que tênue, eo caráter transcendente da fundamentaçãoexterna da lei positiva e da lei natural na leidivina determinarão que, ao menos nesse sen-tido, a igualdade aritmética se rivalize com ageométrica.

O jusnaturalismo, na Modernidade, vai seocupar da igualdade aritmética. Na versão deHobbes, a idéia de um homem naturalmentesocial como queriam os clássicos, os medievose até, em certo sentido ex-ante, Rousseau, écolocada em questão. Cada um é cada um e abase de qualquer relação é o indivíduo. Só queele advoga o indivíduo em face do outro comohomo homini lupus. Nesse estado primacial,estado de natureza, todos se põem na situaçãode guerra mútua: bellum omnium contra om-nes. Será pelo pacto de sujeição a um poderforte e comum, no Estado, que se buscará umestado de segurança capaz de assegurar o di-reito à vida, direito inalienável de todos e princí-pio de propriedade de cada um.

A modernidade ocidental, especialmenteno Iluminismo, defendeu enfaticamente a afir-mação da igualdade de cada um enquanto in-divíduo e, por extensão, de todos. Kantafirmará que todos os homens e cada um sãofins em si mesmos, pois que todos dotados darazão. A natureza universal da razão é co-mum a todos os homens. E por serem assimdotados, eles não podem ser transformadosem meios. Aqui, a igualdade aritmética co-meça a se esclarecer:

... a igualdade em uma sociedade em que todossão tidos como fins, ou seja, que não dissolve afinalidade da existência moral em um comunita-rismo, tem de considerar a igualdade entre oshomens como igualdade aritmética.Ora, a igualdade aritmética, estendida pelauniversalização a todos os homens, é um con-ceito inclusivo de igualdade. Ela exige que omaior número possível de pessoas (idealmente,a humanidade) seja incluída pelo direito. (...) A

partir de Kant, quer dizer, com a sociedade con-temporânea, torna-se impossível pensar umaigualdade geométrica na organização social mo-derna e contemporânea. (GALLUPPO, 2002, p.99).

Com essa defesa da igualdade, diga-se igual-dade includente, a sociedade moderna comba-te diferenças discriminatórias em favor daafirmação da igualdade básica de todos e decada um. Ela impede que as diferenças obsta-culizem o gozo dos direitos, pois todos são iguaise iguais no jogo processual da lei.

Rouanet (1992) sintetiza princípios do Ilu-minismo:

... a idéia de que a moral podia ter um fundamen-to secular; a idéia de que o indivíduo, considera-do como célula elementar da sociedade, tinhadireito à auto-realização e à felicidade e podiadescentrar-se com relação à vida comunitária,criticando-a de fora; e a idéia de que existe umanatureza humana universal, de que existem prin-cípios universais de validação ética, e de queexiste um pequeno núcleo de normas materiaisuniversais. (p. 153).

As diferenças apontavam o aristocrata, o altoclero, o colonizador, que se julgavam detento-res de privilégios de sangue, de religião ou decor. Ao privilégio “natural” da diferença hie-rárquica – agora tornada intolerável – sucede-se o direito de igualdade básica de todos aonascer e a igualdade na lei, ou seja, a igualdadejurídica.

Isso não significou uma conquista efetiva eimediata desses princípios.10 Quando a moder-nidade ocidental segregou mais para os homens(sexo masculino) a presença dessa razão uni-versal, quando incorporou a noção de um pro-gresso evolucionista frente aos povos não-eu-ropeus, ela estabeleceu uma escala de valoresna qual a alteridade diferente, estranha ou “es-trangeira” foi posta em pontos “atrasados” ou“inferiores” dessa escala, medidos pela distân-cia em relação aos valores “superiores e uni-

10 Comentando esse momento da Modernidade, Bobbio(1986) afirma que a interpretação corrente, ao contrastarentre o modelo aristotélico e o jusnaturalista, faz desseúltimo o “reflexo teórico e, ao mesmo tempo, o projetopolítico da burguesia em formação” (p. 45).

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versais” já comungados pelos povos eurocên-tricos.11

Sabemos também que, no interior mesmo des-ses povos, as elites (as quais se auto-atribuíamserem dotadas dos “universais”) buscavam dis-tinguir-se dos outros, diferentes e estranhos a elasou exóticos, e submeter esses grupos ou pessoas“atrasados” a um processo “civilizatório”.12

Trata-se de uma concepção que pode adaptar-se ao colonialismo e ao racismo, que muitas ve-zes justificou o desprezo e a exploração exerci-dos sobre as populações consideradas inferio-res; (o colonialismo e o racismo)assentam entãona idéia de que estas poderão, sem dúvida, vir aingressar na modernidade, mas de baixo paracima e porque aqueles que a dominam lhes co-municam uma cultura que não tinham ainda. Foiassim que, na França de finais do século XIX, odiscurso republicano e o colonialismo puderamentender-se bem. (WIEVIORKA, 2002, p. 28).

Ou nos termos de Bobbio (1986):

À medida que o jusnaturalismo desemboca noleito da filosofia das Luzes, da qual se torna oaspecto jurídico-político, a antítese paixão/razãoé substituída (ou melhor complementada) pelaantítese costume/lei, onde o primeiro termo re-presenta o depósito cada vez melhor documen-tado e não ulteriormente ampliável de tudo o quehomem produziu na história sem o concurso darazão. (p. 93).

Tomando um ponto de vista semelhante,Touraine (2001) afirma:

Le principe d’égalité, quel qu’il soit, repose surla référence a un principe métasocial dereprésentation, alors que la logique du socialexclut l’égalité et même ne peut pas la concevoir.Il est en conflit avec toutes les formes du pouvoir.Des théologiens espagnols défendirent – contreles autres – que les Indiens étaient des créaturesde Dieu comme les espagnols, mais leur voixn’empêcha pas les conquérants de massacrer leshabitants de vastes régions. C’est même au nomde la civilisation et des libertes que se sont créésdes empires coloniaux. (p. 86-87)13

Ainda que no interior mesmo das elites domi-nantes, não deixou de haver grupos considera-dos “incompletos”, “imaturos” ou “dependentes”e que eram vistos pelo prisma da sexualidade(mulher), da idade (criança) ou da percepção de

recursos financeiros (assalariados). É daí quesurgirá a distinção entre cidadãos ativos e cida-dãos passivos. Os primeiros, por serem indepen-dentes, e os outros, pela sua (suposta) depen-dência a outrem.

Isso revela não só a conquista progressiva(mas não inevitável) de maior igualdade e denovos direitos, como os de natureza social, comoo caráter contraditório desses direitos. A eman-cipação que esses direitos contém se choca, porvezes, com o sentido possessivo da proprieda-de e com a ocupação do Estado por forças con-servadoras.

Entretanto, a negação de toda e qualquercategoria geral, universal, especialmente a quefaz do reconhecimento da igualdade básica detodos os seres humanos, fundamento da digni-dade de toda e qualquer pessoa humana, acabapor abrir portas e janelas para a entrada de to-das as formas de discriminação e correlatas deque o século XX deu trágicas provas.

Sem o reconhecimento e respeito por essaigualdade una e universal, seu lugar fica ocupa-do pela multiplicidade do micro, pela capilarida-de do privado e pela dispersão das subjetivida-des, cujo diferencialismo arbitrário, excessivo eexacerbado, pode levar a toda sorte de intole-rância como, por exemplo, a idéia de um “povoeleito” e uma “raça superior” ou mesmo, emoutro limite, à equalização de toda e qualquerdiferença.

Ao analisar a relação entre o Eu público e oEu privado, na assim chamada pós-modernida-de, assim se expressa Khosrokavar (2001):

...la dualité public/privé est frontalement remiseen cause et le soi multiple peut voguer entre les

11 Os filósofos da Ilustração faziam uma diferença entrenatureza e costume. Como diz Rouanet (1994): “O reino docostume é o da diversidade empírica. É na ótica do costumeque o que é válido na França não é válido no Brasil. Mas essavariedade é limitada por um pequeno número de normasinvariáveis, que constituem a esfera da natureza” (p. 153).12 A lembrança, aqui, da teoria dos Estados progressivos emAugusto Comte, é quase imediata.13 Aqui, o autor se refere ao debate em Valladolid, em 1550-1551, no qual a Igreja proclamou a plena humanidade dosíndios, portadores da razão natural, de alma humana e osconsiderou dignos, como quaisquer outros, de receber amensagem cristã. Os índios tiveram como seu grande defen-sor o frei Bartolomeu de las Casas. (ROULAND, 2004).

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diverses composantes de l’ego selon un ordrecette fois non hiérarchique; dans l’univers men-tal du sujet, le politique n’est plus alors lacatégorie dominante, les modes de gestion desens se fragmentent, sont de plus en plusdécontextualisés, et non obéissent qu’‘a lalogique de l’autonomie individuelle. (p. 19)

As causas diferencialistas, por si só, quandonão têm como base o direito à igualdade, cau-sam problemas sérios. Como afirma Tabboni(2001), “La référence à la différence commenouveau point de vue cognitif et opératoire, ex-pression des besoins d’un sujet libérateur, por-teur de nouvelles formes de vie, se heurte à laprolifération sans limite des differénces.” (p. 76).E continua:

L’appel à la différence peut devenir purement dé-fensif et conduire au rejet de tout universalisme,identifié à une domination. Parallèlement, l’appelà l‘égalité peut devenir um instrument de domina-tion, en nivelant les différences et en faisant rég-ner en son nom les intérêts du plus fort. (p. 83)

Comentando movimentos culturais dos anos80, diz Wieviorka (2002): “A segunda vaga dosanos 80 desperta uma inquietação crescente.A percepção dominante concentra-se em suaface de sombra, nas suas tendências comunita-ristas, sectárias e isolacionistas. São vividos so-bretudo como uma ameaça em razão de seucaráter radical...” (p. 45).

Só quando articulada à igualdade, a defesadas diferenças não-arbitrárias ganha seu realvalor e pode se situar no âmago de uma teoriademocrática da sociedade.

Por outro lado, não se pode ignorar que aidéia de um progresso evolutivo e necessário,presente em teses da modernidade, tidas todasde caráter universal, conduziu à violência cul-tural tal como se viu no colonialismo ou no im-perialismo.

Na própria formulação da Declaração dosDireitos do Homem se lê no Art. 5º:

Todos os direitos humanos são universais, indi-visíveis, interdependentes e interrelacionados(...) Embora particularidades nacionais e regio-nais devam ser levadas em consideração, assimcomo os diversos contextos históricos, cultu-rais e religiosos, é dever dos Estados promover

e proteger todos os direitos humanos e liberda-des fundamentais, sejam quais forem seus siste-mas políticos, econômicos e culturais.

Ou seja, ao afirmar a universalidade dos di-reitos humanos rejeita-se, nessa matéria, o re-lativismo cultural. E, ao reconhecer asparticularidades nacionais e regionais e osdiferentes contextos, a ONU aponta um méto-do de tornar mais efetivos os meios de efetivaros direitos humanos.14

Como assevera Piovesan (2004):

... se uma primeira vertente de instrumentos in-ternacionais nasce com a vocação de proporcio-nar uma proteção geral, genérica e abstrata, re-fletindo o próprio temor da diferença (que na eraHitler foi justificativa para o extermínio e a des-truição), percebe-se, posteriormente, a necessi-dade de conferir a determinados grupos uma pro-teção especial e particularizada em face de suaprópria vulnerabilidade. Isto significa que a di-ferença não mais seria utilizada para a aniquila-ção de direitos, mas, ao revés, para a promoçãode direitos. (p. 65)

Só quando articulada à igualdade, a defesadas diferenças não-arbitrárias ganha seu realvalor e pode se situar no âmago de uma teoriademocrática da sociedade.

Ao mesmo tempo, na passagem do EstadoLiberal para o Estado Social, conquistam-sevários direitos sociais e o Estado assume o de-ver de propiciar condições para o gozo dessesdireitos desobstaculizar as barreiras que impe-dem o exercício dos direitos.15 Em outros ter-mos, é preciso que ele interfira na liberdade paradestruir barreiras que impedem a promoção daigualdade de modo efetivo e, com isto, amplieos espaços de liberdade.16

14 Cf. a Declaração e Programa de Ação de Viena, de junhode 1993.15 Os direitos sociais não só não nascem da matriz liberal,como também interferem na propriedade por serem de na-tureza coletiva ao invés de privada. E, por representaremum meio de (re)distribuir bens partilháveis, o investimentoneles é alto. Uma questão é negá-los ou fazê-los recuar,outra questão é a boa administração desses direitos.16 A Constituição Brasileira de 1988 não só se posicionapela não-discriminação, como aponta direitos assecuratóriosda igualdade. Cf. no primeiro caso o Art. 3º, III e o Art. 23,X; no outro caso, cf. Art. 3º. IV e o mesmo Art. 23, X. AConstituição aceita, mas não sem reservas, o princípio libe-ral da meritocracia.

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A recusa a um dualismo maniqueísta entreo universal e o diferencial pode ser considera-da um avanço. Mas, só um Estado Democráti-co de Direito, em um clima de diálogo, respeitoe, no mínimo, de tolerância17 , pode conduzir umasíntese axiológica que assegure, tanto o nossopertencimento igualitário ao gênero humano,quanto o multipertencimento às nossas inser-ções diferenciais em matéria de sexualidade,etnia, nacionalidade, religião, idade e outros com-ponentes culturais.

De um lado, é preciso fazer a defesa daigualdade como princípio da democracia e, porele, dos direitos humanos, da cidadania e damodernidade. De outro lado, a igualdade é umprincípio, na lei, pelo qual se abolem os privilé-gios e as formas discriminatórias de tratamentodo outro como “estranho”. Por esse eixo, a igual-dade é o foco pelo qual homens lutaram paraeliminar os privilégios de nascença, sangue, deetnia ou de crença. A igualdade aqui tem umconteúdo negativo, na medida em que nega adiscriminação trazida por privilégios. A igual-dade ainda é o norte pelo qual as pessoas lutampara ir reduzindo as desigualdades em favor demaior igualdade. Como ensina Bobbio (1996),“... uma desigualdade torna-se um instrumentode igualdade, pelo simples motivo de que corri-ge uma desigualdade anterior: a nova igualdadeé o resultado da equiparação de duas desigual-dades (p.32)18

Aqui se situam tanto as políticas de reco-nhecimento – que possuem um horizonte e umconteúdo positivos –, quanto as políticas de dis-tribuição como as dos direitos sociais e as rela-tivas à renda.

As primeiras (políticas) captam as injusti-ças do ponto de vista dos direitos culturais. Taisinjustiças concernem à falta de respeito paracom o outro em sua alteridade para além dosócio-econômico.

As segundas partem da existência de umaexploração sócio-econômica, de uma margina-lização social, enfim, de algo a que hoje se dá onome genérico de exclusão. Nesse caso, a eqüi-dade se impõe como forma de redistribuição derenda e de garantia de direitos sociais, para quetodos tenham oportunidades iguais de acesso

aos bens sociais mais fundamentais para umavida digna.

Contudo, distribuir bens sociais por meio depolíticas públicas não significa, a fortiori, o re-conhecimento de valores culturais específicos.Pode ser até o contrário. E, inversamente, re-conhecer valores culturais específicos não querdizer, ipso facto, a distribuição de bens sociais.

Retomando, junto a Tabboni (2001), o pen-samento de Fraser (2001) a respeito da(in)compatibilidade entre esses dois paradigmas,diz ela:

Le but de Fraser est de mettre en communicati-on les deux paradigmes, de résoudre le dilemmequi se presente quand on essaie de lutter emmême temps pour la redistribution et pour lareconnaissance. Elle note qu’il este difficile deconcilier ces deux paradigmes dans un mêmeprojet politique car les politiques de distributi-on ont pour but de’abolir les inégalités qui sontla base des différences, tandis que les politi-ques de reconnaissance ont pour but de lessouligner et d’assurer leur survie, qui serait éli-minée par des politiques vraiment efficaces...(TABBONI, 2001, p. 80).

Contudo, em muitos casos, ambas as injus-tiças coexistem e a distribuição torna-se con-dição de reconhecimento e vice-versa(TELLES, 2003; FRASER, 2001). Daí que, empolíticas de igualdade, deve evitar a dicotomiaentre ambos os paradigmas ou o simplismo do“contra ou a favor”, buscando, em cada caso,caminhos cruzados e contextualizados, própri-os de superação como vias de se fazerjustiça.(SILVA; SILVÉRIO, 2004).

O concreto é concreto, dirá Marx, porque ésíntese de múltiplas determinações. Estamos,assim, diante do homem concreto, ele tambémsíntese de múltiplas determinações, em quemo princípio de igualdade se aplica ante uma pes-soa humana, cuja concretude se vê em situa-ção de multipertencimentos grupais ou culturais.

Nesse momento, faz-se necessário o recur-so ao conceito de eqüidade. A eqüidade, se-gundo Aristóteles (1973, p. 336), é “a retificação

17 Vide, a respeito da tolerância, Claudio Zangui. (In:SYMONIDES, 2003).18 Vide também a esse respeito Bobbio (2000, p. 308-314).

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da lei onde esta se revela insuficiente pelo seucaráter universal”. A lei, por seu caráter uni-versal e generalizante, revela-se de difícil apli-cação em casos particulares ou específicos.Desse modo, a eqüidade, espécie da justiça, julgaum fato concreto buscando um equilíbrio pro-porcional entre o texto da lei e o que manda ajustiça.

A igualdade também é um princípio dianteda lei pelo qual as normas gerais são aplicadasem conformidade com o que elas estabelecem.A eqüidade considera uma particularidade emvista de uma solução justa que contenha a lei ea especificação das circunstâncias.19

A eqüidade (democrática) define critériosobjetivos de escolha de natureza científica ousituacional que permitem tornar mais preciso ouniversalismo próprio da igualdade. A igualda-de de direitos, proclamada em documentos ofi-ciais, não gera por si só nem a igualdade deoportunidades e nem a igualdade de condições.Se – como diz Aristóteles – o justo é o que éconforme a lei e a igualdade, então, a lei e aigualdade perante a lei (isonomia = a lei é igualpara todos) representam uma proteção funda-mental contra o arbítrio do governo dos ho-mens.

Contudo, é preciso que a própria lei definaos objetivos da justiça, de modo a permitir, emsituações específicas, a flexibilidade com rela-ção à universalidade da lei. A eqüidade, pois,postula o concurso da lei igualitária (regras pro-cedimentais da democracia), do objetivo maiorda justiça e de uma alteridade em situação es-pecífica própria, por exemplo, das graves con-dições de desigualdade e/ou de discriminaçãode largas camadas sociais.

Casassus (2002) explica essa dialética:

Os termos igualdade/desigualdade pertencem aoâmbito jurídico, e fazem referência ao direito.Portanto, quando se fala de igualdade, deveriaentender-se “o princípio que reconhece a todosos cidadãos o mesmo direito”20 à educação.Igualdade também se refere à “equivalência deduas quantidades ou, expresso de outra forma, àequivalência de resultados”. Portanto, igualda-de/desigualdade é ao mesmo tempo um direito eum resultado objetivo.

Por sua vez, o termo eqüidade localiza-se no pla-no da ética, faz referência à “justiça natural poroposição à lei positiva. É guiar-se pelo senti-mento do dever ou da consciência mais do quepelas prescrições da lei (...) que leva a dar a cadaum o que ele merece”. As oportunidades sãoregidas pela eqüidade. Por último,homogeneidade/diversidade refere-se “à varie-dade, semelhança e diferença” que pode ter umaorigem cultural. (p. 46).

Numa época de múltiplos particularismos detoda a espécie, é preciso atentar para não con-fundir uma diferença justificada com diferençaarbitrária.

Ao tratar da convivência entre o princípioda igualdade e um discrímen legal que rompe aigualdade de direitos a fim de restabelecer umaigualdade de oportunidades não ocorrida, Mello(2001) entende que há justificativa para tal, des-de que preencha algumas condições:

a) que a desequiparação não atinja de modo atu-al e absoluto, um só indivíduo;

b) que as situações ou pessoas desequiparadaspela regra do direito sejam efetivamente distin-tas entre si, vale dizer, possuam características,traços, nela residentes, diferenciados;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógicaentre os fatores diferenciais existentes e a dis-tinção de regime jurídico em função deles,estabelecida pela norma jurídica;

d) que, in concreto, o vínculo de correlação su-pra-referido seja pertinente em função dos inte-resses constitucionalmente protegidos, isto é,resulte em diferenciação do tratamento jurídicofundada em razão valiosa – ao lume do texto cons-titucional – para o bem público. (p. 41).

Mais do que como positividade jurídica, adiscriminação deve ser justificada em vista daredução de uma desigualdade. Como asseveraGalluppo (2002):

19 O antônimo próprio da eqüidade é iniqüidade, que signifi-ca um ato contrário à justiça, embora o significado maiscomum seja o de um ato perverso.20 Nota do próprio autor citado: “Todas as definições cita-das e frases entre aspas foram tiradas do Diccionario de lalengua española, da Real Academia Española, 2001.”

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Exatamente porque o termo identidade e igual-dade não são sinônimos, a discriminação não énecessariamente atentória da igualdade. Discri-minar significa diferenciar, e diferença é termoque se liga, como antônimo, à identidade (não àigualdade). A discriminação é compatível com aigualdade se não for, ela também, fator de desi-gualdade injustificável. E, mais do que isso, adiscriminação é fator que pode contribuir para aprodução da igualdade. (...) toda vez que ela im-plicar maior inclusão dos cidadãos... (p. 216)

Nesse sentido, a relação entre uma dis-criminação justificada e a afirmação de di-reitos foi posta em evidência por Bobbio(1987). Para ele, a valorização justificada deuma concepção eqüitativa da igualdade ga-nha substância cada vez que ela serve parapôr abaixo uma discriminação baseada emqualquer modalidade de preconceito. Nessesentido, ele aponta para uma dialética entreliberdade e igualdade:

Considero liberdade socialista por excelênciaaquela que, liberando, iguala e iguala quandoelimina uma discriminação; uma liberdade quenão somente é compatível com a igualdade, masque é condição dela. Voltemos aos nossos exem-plos: os loucos que se livraram das instituiçõesde internação não só ficaram livres, mas ao mes-mo tempo tornaram-se mais iguais em relaçãoaos outros do que eram antes; uma reforma dodireito de família que elimina o poder maritaltorna a mulher mais livre e, liberando-a, torna-aigual ao marido; a liberalização do acesso à uni-versidade para os jovens que concluíram o se-gundo grau eliminou uma limitação (liberou-os)e uma discriminação (igualou-os). Permitam-meainda um outro pequeno exemplo, muito signi-ficativo, que me foi sugerido por um amigo hápouco tempo: os avisos que são colocados emcertos acessos para facilitar o deslocamento dosdeficientes físicos também não são um meio deliberá-los de uma barreira e simultaneamentetorná-los iguais ou quem sabe um pouco me-nos diferentes das pessoas normais? (BOBBIO,1987, p. 23)

Essa síntese axiológica, equilibrada, justifi-cada e prudente, terá que enfrentar, por vezes,uma espécie de ambivalência ou de conflitobaseada na distinção, já posta, entre o paradig-ma da distribuição e o do reconhecimento. Se ajustiça é a síntese entre igualdade e eqüidade,

há que se distinguir esses paradigmas para bus-car uma harmonização entre eles e que sejapossível.

O fato é que nossas sociedades, desiguais eassimétricas, mediadas por Estados, não con-seguiram aqueles patamares básicos de acessoa bens sociais para todos. A superação da de-sigualdade e das discriminações implica a bus-ca de uma religação virtuosa em que o outro évisto como igual, o que significa, por sua vez,uma negação do status quo existente. Mas édo reconhecimento realista desse status quoque se deve partir, não para ficar nele e simpara buscar superá-lo. Ora, esse status quo,na sua desigualdade e assimetria, impôs umarelação entre dominantes e dominados, de talmodo que o pólo dos dominantes passou a ser areferência hegemônica da existência social.Essa referência sobre os dominados tem sidoenvolvida sempre por alguma forma de injusti-ça social, seja dentro dos espaços nacionais, sejaentre os espaços nacionais.

Por isso, os Estados Democráticos de Di-reito devem garantir os direitos sociais e assi-nalar aquelas discriminações que devem sersempre proibidas: origem, raça, sexo, religião,cor, crença. Um tratamento diferenciado, queinclua discriminações justificadas, somente selegitima perante uma situação objetiva e racio-nal, em cujo diagnóstico e aplicação se consi-dere o contexto mais amplo. A diferença detratamento deve estar relacionada com o obje-to e com a sua finalidade e ser suficientementeclara e lógica para a justificar.21 Ao mesmo tem-po, tendo em vista o princípio da eqüidade, se-ria absurdo pensar um igualitarismo, umaigualdade absoluta, de modo a impor, de modouniforme, as leis sobre todos os sujeitos e emtodas as situações.

21 O caminho da igualdade pode permitir que a lei venha emajuda de pessoas de vulnerabilidade congênita ou adquirida,tal como no caso dos portadores de necessidades especiaisou de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Emvista de equalização de condições para atenuar profundasdesigualdades, pode-se ter uma desigualdade jurídica paramaior igualdade social. O problema maior se instaura quan-do essas pessoas passam a reivindicar sua pertença a umgrupo cuja especificidade seria a comunhão de uma identida-de coletiva.

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BRASILNosso país, calcado em um processo colo-

nial e escravista, exibe uma desigualdade en-dêmica ao lado de discriminações manifestas.Essa face “anacrônica” convive contraditoria-mente com uma legislação avançada que, naConstituição de 1988, houve por bem tanto coi-bir situações injustas promotoras de mais desi-gualdade e de maiores discriminações, quantopromover direitos universais em vista de maiorigualdade.22

O caráter multirracial, multiétnico, multirre-ligioso de nosso país obriga-nos a encarar a di-ferença como elemento cultural constituinte denossas relações histórico-sociais, reconhecê-lae dentro do respeito à diferença, caminhar embusca de uma igualdade já proclamada e de umreconhecimento formalizado.

A Constituição Federal de 1988 vai incor-porar em seu Preâmbulo, entre outros princípi-os, o de assegurar no Brasil uma “sociedadefraterna e pluralista”.23

O Art. 1º da Constituição assinala como umdos fundamentos do “Estado Democrático deDireito” a “dignidade da pessoa humana” e o“pluralismo político”. O Art. 3º afirma ser “ob-jetivo fundamental” da República “promover obem de todos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminação”.24 Trata-se da igualdade na Lei.O Art. 4º estabelece, como princípio de nossopaís, o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”.

O Art. 5º é uma longa e saudável lista de 77incisos cujo teor expressa a igualdade perantea lei na defesa dos direitos e deveres individu-ais e coletivos. Cumpre destacar o caput doartigo e alguns de seus incisos:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção dequalquer natureza, garantindo-se aos brasileirose aos estrangeiros residentes no País a inviola-bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-de, à segurança e à propriedade... (...)

I – homens e mulheres são iguais em direitos eobrigações, nos termos desta Constituição; (...)

III – ninguém será submetido à tortura nem a tra-tamento desumano ou degradante; (...)

XLI – a lei punirá qualquer discriminaçãoatentatória dos direitos e liberdades fundamen-tais;

XLII – a prática do racismo constitui crimeinafiançável e imprescritível, sujeito à pena dereclusão, nos termos da lei;25

As normas definidas nesse artigo têm apli-cação imediata.26 Esses direitos, segundo o Art.60 da Constituição, não podem ser objeto deemenda constitucional e a própria Constituiçãoprevê, entre as funções do Ministério Público,“a defesa da ordem jurídica, do regime demo-crático e dos interesses sociais e individuais in-disponíveis” (Art. 127).

Ao lado da defesa contra os atentados à dig-nidade da pessoa humana, há outros direitosespecificados no capítulo dos Direitos Sociais elistados no Art. 6º que acolhe discriminaçõesnão-proibidas. O inciso XX deste artigo reco-nhece direitos específicos das mulheres nomercado de trabalho; o inciso XXX proíbe dife-rença de salários por “motivos de sexo, idade,cor ou estado civil”; e o inciso XXXI proíbe adiscriminação de salário e de critérios de ad-missão por alguém que seja “portador de defi-ciência”. Este último inciso reserva “percentual

22 Em Durban, África do Sul, na Conferência da ONU contrao racismo, ano de 2001, o Brasil, por meio de documentooficial, propôs ações afirmativas para a etnia negra emvista de maior igualdade no mercado de trabalho e da educa-ção.23 O princípio da fraternidade simboliza a igualdade univer-sal dos “irmãos” (frater). Já o pluralismo (plus = mais queum) sinaliza a diferença e a diversidade. Pode-se ler aquiuma relação dialética entre “o todo e as partes” no interiorde uma sociedade democrática.24 Ver a este respeito o Programa Nacional dos DireitosHumanos, no Decreto n. 1904 de 1996.25 As leis n. 7.716 de 05/01/1989 e a lei n. 9.459 de 13/05/1997 regulam os crimes resultantes de preconceitos de raçaou de cor. Já a lei n. 8.081 de 21/09/1990 estabelece oscrimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou depreconceitos de raça, cor, religião, etnia ou procedêncianacional praticados pelos meios de comunicação ou porpublicação de qualquer natureza. O Decreto n. 40 de 15/02/1991 reforça a condenação à tortura e o Decreto Legislativon. 26 de 22/06/1994 visa à eliminação de todas as formas dediscriminação das mulheres. A lei n. 7.853/89 é relativa àspessoas portadoras de deficiência.26 Pelo inciso LXXI, concede-se o mandado de injunçãoquando a efetivação de um destes direitos se torne inviávelpor falta de norma reguladora. Isto coloca na mão dos sujei-tos um instrumento jurídico importante na defesa de seusdireitos individuais e coletivos.

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dos cargos e dos empregos públicos” para por-tadores de deficiência.

Comentando o Art. 5º da Constituição Fe-deral, Silva Jr. (2002) esclarece que o incisoXLI desse artigo diz que a lei deve punir “qual-quer discriminação atentatória dos direitos e li-berdades fundamentais”. E conclui:

Temos, pois, que o critério que diferencia discri-minação vedada de discriminação não-vedada écritério de natureza constitucional – são veda-das as discriminações atentatórias dos direitose liberdades fundamentais –, é dizer, nem toda adiscriminação será sancionada: apenas e tãosomente aquela que resultar em violação de di-reitos, em desigualação. (p. 111)

O trabalho de menores é proibido antes dos16 anos, a fim de que possam cumprir a escola-ridade obrigatória.27

O Art. 34 possibilita a intervenção da Uniãonos estados e municípios que não assegurarema observância dos “direitos da pessoa huma-na”. De mais a mais, eles não excluem outrosdireitos e garantias fundamentais assinados peloBrasil em tratados internacionais.

A realidade brasileira atual se impôs essaproblemática dos direitos humanos em relaçãoà discriminação que sofrem grupos sócio-cul-turais marcados, por exemplo, pelas seqüelasda escravidão e de outras formas de segrega-ção. (HASENBALG; SILVA; LIMA, 1999).

A Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de1996 (LDBEN), para incluir no currículo oficialda Rede de Ensino a obrigatoriedade da temá-tica “História e Cultura Afro-Brasileira”.

Em 23 de maio de 2003, mediante a Lei n.10.678, o Congresso aprova a criação de umaSecretaria Especial de Políticas de Promo-ção da Igualdade Racial, da Presidência daRepública.

O Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de2003, institui a Política Nacional de Promoçãoda Igualdade Racial. Em um dos Consideran-dos desse Decreto, antes de definir ações dereconhecimento, de proibição de ações discri-minatórias e incentivo à adoção de políticas decotas nas universidades e no mercado de tra-balho, pode-se ler :

Considerando, por derradeiro, que para se rom-per com os limites da retórica e das declaraçõessolenes é necessária a implementação de açõesafirmativas, de igualdade de oportunidades,traduzidas por medidas tangíveis, concretas earticuladas...

Recentemente, o Conselho Nacional de Edu-cação (CNE), em articulação com o Ministérioda Educação (MEC), aprovou, em seu Conse-lho Pleno (CP), o Parecer CNE/CP 03/04 e tam-bém a Res. CNE/CP 01/04, que institui asDiretrizes Curriculares para a Educação dasRelações Étnico-Raciais e para o ensino deHistória e Cultura Afro-Brasileira e Africana.Homologado o Parecer pelo Ministro da Edu-cação, a Resolução CNE/CP 01/04 passou ater força de lei e o assunto despertou polêmicana imprensa.

Na verdade, o CNE apenas buscou inter-pretar uma série de dispositivos constitucionaise legais já existentes sobre o assunto, fartamentecitados no Parecer CNE/CP 03/04. (CURY,1999).28

O mesmo colegiado já havia aprovado oParecer CNE/CEB n. 14/99, a propósito daEducação Indígena de cuja homologação mi-nisterial resultou a Resolução CNE/CEBn. 03/99. Ambos os instrumentos normativos apóiam-se em injunções do ordenamento jurídico naci-onal, como é o caso do Art. 231 da ConstituiçãoFederal de 1988 e o Art. 78 da LDB, entre ou-tros.29

No mesmo sentido vão as Diretrizes Curri-culares Nacionais da Educação Especial, con-seqüentes aos Pareceres CNE/CEB 17/01 e 04/02 acompanhados da Resolução CNE/CEB 02/01, e que despertaram também muita polêmicadesde o âmbito de associações beneficentes atéo Ministério Público.

Deve-se apontar, também, como modalida-de pedagógica própria, as Diretrizes Curricula-

27 O artigo abre exceção para aprendizes que tenham com-pletado 14 anos.28 Entre outros, podem-se apontar os Artigos 3º, 4º, 5º, 215e 216 da Constituição Federal, o Artigo 26 da LDB e, emespecial, a Lei n. 10.639/03.29 Para uma visão mais ampla desse segmento grupal, videRouland (2004), especialmente a parte III.

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res Nacionais da Educação de Jovens e Adul-tos dadas pelo Parecer CNE/CEB 11/00 e pelaRes. CNE/CEB 01/00.

Na medida em que o ordenamento jurídiconacional reconhece explicitamente o direito àdiferença, ancorando-o no direito à igualdade,vê-se que o órgão normativo encarregado denormatizar a legislação educacional, desincum-biu-se de suas funções, cabendo às instituiçõesde pesquisa, aos sistemas de ensino e outrosórgãos implicados, tanto a aplicação dessasnormas quanto a sua análise crítica.

A maior dificuldade reside, certamente, naefetivação dos direitos sociais como patamare base de uma igualdade de direitos da cida-dania e de uma eqüidade justificada que en-contre na educação para os direitos humanoso momento de reconhecimento do outro dis-criminado como igual.

CONCLUSÃOEssas realidades filosóficas expressam e

contêm, ao mesmo tempo, as formas pelas quaiso ser humano e as sociedades humanas busca-ram compreender e responder ao quadro múlti-plo das manifestações próprias da manutençãoe reprodução das condições da existência soci-al em sua pluralidade.

A Justiça é essa dialética contextualizadaentre igualdade, equidade, universalidade e di-ferença e que se sintetizam em políticas de dis-tribuição e de reconhecimento.

Todas as formas impeditivas da igualdade,tomadas pelo ângulo da uniformidade, ignoramo valor das diferenças ou as condenam aos es-treitos espaços do privado, terminam em regi-mes autoritários, ditatoriais ou mesmo totalitá-rios. Por outro lado, a excessiva e a desmedidaconsideração das diferenças pode redundar nooposto de sua valorização, isto é, como o não-enriquecimento da ontologia do ser social dohomem. Algo que se pode verificar em socie-dades tomadas por fundamentalismos ou cris-pações identitárias de qualquer espécie ou empolíticas de caráter demagógico que nem redu-zem as desigualdades nem exorcizam as discri-

minações nas quais, como diz Rouanet (1994),domina a ontologização da diferença. É do mes-mo autor a defesa do que ele chama de “uni-versalismo concreto”.

A utopia iluminista é a de uma ética fundada narazão, voltada para a felicidade, capaz de julgar ecriticar o existente, e tendo como telos uma co-munidade argumentativa sem fronteiras, em quea igualdade não signifique nivelamento e em quea universalidade não leve à dissolução do parti-cular. (ROUANET, 1994, p. 162).

A democracia supõe tanto a igualdade parao que é igual ou que deve ser igual, quanto aconsideração positiva da identidade diferencialcomo reveladora da profunda riqueza de quese revestem todos os seres humanos, desde quetal diferença se expresse na matriz igualitáriado ser humano e postule algo mais do que aproibição da discriminação e do que a crítica àsdesigualdades.

Esta tomada axiológica se justifica porque,através dela, se reconhece a complexidade doreal e seu caráter matizado. A igualdade, paraser virtuosa e justa, como queria Aristóteles,deve conter o igual, o relativo e o proporcional.Em sociedades em que a igualdade aritméticaé proclamada, tal relação é profundamente ten-sa e de difícil solução, pois não há passagemautomática da proibição da discriminação e dacrítica às desigualdades para patamares maisequânimes de vida social. Daí a necessidadede políticas que superem as diferenças discri-minatórias negativas e que propiciem a igual-dade de oportunidades.

A identificação histórica de várias culturaspresentes no país não significa um amálgamaentre elas ou o esquecimento no modo comoelas se encontraram em distintas circunstânci-as históricas, ou mesmo tomar partido de umadelas em detrimento de outras. E também nãopode significar o esquecimento do universalis-mo da igualdade. Mais do que nunca é precisouma virtude proclamada por Aristóteles: a phrô-nesis, ou seja, a virtude do discernimento.

No fundo, está em questão a alteridade e aexistência do(s) outro(s) como iguais, em suasubstância fundamental, e como pares de umatrajetória sócio-histórica (igualdade aritmética)

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para o que se torna fundamental a existênciade políticas de distribuição dos bens sociais.Mas a alteridade também se compõe de paresiguais em que cada qual é idêntico a si mesmoe diferente com relação ao outro para o que, na

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Recebido em 20.05.05Aprovado em 08.08.05

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A PESQUISA EM EDUCAÇÃO NO BRASIL:OSCILAÇÕES NO TEMPO

Bernardete A. Gatti*

* Doutora em Psicologia Social pela Universidade de Paris; Pós-Doutorado na Université de Montréal e na PennsylvaniaUniversity; docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUC-SP; coordenadora do Depar-tamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas. Endereço para correspondência: Av. Prof. FranciscoMorato, 1565, Jardim Guedala – 05513.900 São Paulo/SP. E-mail: [email protected]

RESUMOConsiderando que o campo de estudos em educação abrange um variadoconjunto de subáreas, analisa-se a produção da pesquisa nesse campo, no Brasil,tratando do papel das instituições, as temáticas, os procedimentos, aconsolidação de grupos de pesquisa. Discute-se o confronto das abordagensqualitativas x quantitativas e os problemas do emprego de procedimentos, emambas as abordagens. Colocam-se questões quanto à existência de umparadigma nesse campo, lembrando a diversidade de teorizações nele presentes.

Palavras-chave: Pesquisa – Paradigma – Métodos Qualitativos – Métodosquantitativos

ABSTRACTEDUCATIONAL RESEARCH IN BRAZIL: FLOW ALONG THETIME

Considering that the study field of Education involves a varied set of sub-areas, the research production in this field and in Brazil is analysed, dealingwith the role of institutions, the issues, the procedures, and the consolidation ofresearch groups. It is also discussed qualitative X quantitative approaches aswell as the problems related to the use of procedures in both of them. Also,questions related to the existence of a paradigm in this field are presented,remembering the diversity of theorizations present in it.

Keywords: Research – Paradigm – Qualitative and Quantitative Methods

A educação tem se caracterizado em suahistória constitutiva pela grande diversidade detentativas de teorizações e, um pouco mais tar-diamente, de procedimentos de pesquisa, o quetem gerado áreas de oposição e confronto nasformas de compreensão de seus problemas. Aconstituição do espaço da educação, enquanto

campo com conotações de ciência, não fugiuao dominante contexto das preocupações coma produção do conhecimento no mundo ociden-tal, preocupações vinculadas à validade e ade-quação de seus pressupostos teóricos e métodosde investigação, em relação aos fatos a seremcompreendidos.

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Lembremos ainda que o campo de estudosem educação abrange um grande conjunto desub-áreas com características distintivas e ob-jetos de estudo diferentes (por exemplo, histó-ria da educação, gestão escolar, políticaseducacionais, sociologia da educação, currícu-lo, ensino, etc.). Por isso, discutir pesquisa nocampo da educação em geral não é trivial. Lem-bremos também que o campo da educação sub-sistiu muito tempo, e ainda hoje subsiste, pelaapropriação de estudos produzidos em áreasafins, como a psicologia, a antropologia, a soci-ologia, a economia, sem colocar estes estudos,na maioria das vezes, sob o crivo de uma pers-pectiva própria.

Nesse quadro cabe a pergunta: tratando-se de pesquisa em educação, podemos falarem paradigmas? Thomas Kuhn (1996) foi oautor que trouxe o termo para dentro do dis-curso e dos debates da comunidade científicanos anos sessenta, colocando uma nova pers-pectiva no fazer filosofia da ciência olhandopara a história da ciência. Embora o termoparadigma tenha assumido os mais variadossentidos no discurso acadêmico, o autor lem-bra a necessidade de existência de um con-senso em relação a referentes analíticosbásicos, historicamente constituídos e institu-cionalizados organicamente, após um movi-mento pré-paradigmático, ou, após crisesdentro de um paradigma já instalado. A crisese instala em certo paradigma pelo acúmulode problemas não resolvíveis dentro de seuscânones. Nesses termos, a trajetória de umaciência já constituída teria uma seqüência: ci-ência normal – crise – revolução – nova ciên-cia normal. A ciência normal seria a atividadede estudo e pesquisa de problemas segundo anormatização instituída e aceita por uma co-munidade científica, não se questionando nes-sa atividade os fundamentos da ciência talcomo está normatizada. Então, “... não há ci-ência sem o consenso paradigmático e a con-cordância dos membros da comunidadecientífica a respeito de problemas, métodos,formas de resolução de problemas e finalmen-te, um léxico ou vocabulário básico de comu-nicação.” (CARONE, 2003, p.109).

Nesta perspectiva, torna-se muito difícil co-locar os estudos e pesquisas em educação comociência, estando ainda na condição de conheci-mentos pré-paradigmáticos. Não há consensoparadigmático no campo das pesquisas em edu-cação. Isto não quer dizer, no entanto, que nãose possa ter nos estudos no campo da educa-ção uma preocupação com questões de teoriae método, e quanto ao sentido mais geral e acerta consistência dos conhecimentos a seremconstruídos. Não quer dizer que não se cuidede uma atitude científica no trato com os fatosque constituem as bases de tratamento e com-preensão de problemas do campo educacional.Por outro lado, pode-se também questionar arelação necessária proposta por Kuhn entre ci-ência e paradigma. Com este questionamentoa questão paradigmática perde em importância(CARONE, 2003, p.109).

A educação, enquanto campo de pesquisa,foi alvo de debates acirrados em meados doséculo XX, com grupos defendendo a experi-mentação científica como possível de ser con-duzida nesse campo e grupos se opondo a isso,debatendo a impossibilidade dos objetos dessecampo serem sujeitados a processos experimen-tais. Estudos empíricos, como base para a dis-cussão educacional, ou são rejeitados ou sãodefendidos sob várias óticas por diferentes au-tores nesse período, consolidando-se, no entan-to, no tempo, o uso de investigações com basena empiria para subsidiar a compreensão dosproblemas educacionais. A ampliação do usode investigações empíricas para estudos de te-mas em educação – fenômeno relativamenterecente em nosso país – trouxe um conjunto detrabalhos um tanto heterogêneos quanto a seuescopo teórico e à sua qualidade metodológica(WARDE, 1990; GATTI, 1992; 2001 ALVES-MAZZOTTI, 2001; ANDRÉ, 2001).

1. No tempo: instituições,temáticas, convergências, di-v e r s i f i c a ç ã o

Nos primórdios do século XX encontramospoucos trabalhos que são reveladores de certa

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preocupação científica com questões da áreaeducacional no Brasil. Apenas com a criação,no final dos anos 30, do Instituto Nacional dePesquisas Educacionais é que estudos mais sis-temáticos em educação, no país, começam ase desenvolver. Mais tarde, com o desdobra-mento do INEP no Centro Brasileiro de Pes-quisas Educacionais e nos Centros Regionaisdo Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia e Mi-nas Gerais, a construção do pensamento edu-cacional brasileiro, através da pesquisa siste-mática, encontrou um espaço específico deprodução e formação, e de estimulação. A im-portância desses centros no desenvolvimentode bases metodológicas, sobretudo quanto àpesquisa com fundamento empírico, no Brasil,pode ser dada pelo contraponto com as insti-tuições de ensino superior e universidades daépoca nas quais a produção de pesquisa emeducação ou era rarefeita, ou inexistente. OINEP e seus Centros constituíram-se em fo-cos produtores e irradiadores de pesquisas ede formação em métodos e técnicas de inves-tigação científica em educação, inclusive asde natureza experimental. Pesquisadores des-ses centros passaram a atuar também no en-sino superior e professores de cursos superio-res também vieram atuar nos centros, criandouma fecunda interface, especialmente comalgumas universidades nas décadas de 40 e50 dos anos novecentos.

Com o desenvolvimento de pesquisas combase em equipes fixas, com uma série de publi-cações regulares e o oferecimento de cursospara formação de pesquisadores com a partici-pação de docentes de diversas nacionalidades,especialmente latino-americanos, esses centroscontribuíram para certa institucionalização dapesquisa, com a formação de fontes de dados ecom a implantação de grupos voltados à pes-quisa educacional em universidades. Mas, foisomente com a implementação de programassistemáticos de pós-graduação, mestrados edoutorados, no final da década de 60, e combase na intensificação dos programas de for-mação no exterior e a reabsorção desse pesso-al, que se acelerou o desenvolvimento dessaárea de pesquisa no país, transferindo seu foco

de produção e de formação de quadros para asuniversidades. Paralelamente os centros regio-nais de pesquisa do INEP são fechados e co-meçam investimentos dirigidos aos programasde pós-graduação – mestrados e doutorados –nas instituições de ensino superior.

No contexto dessa trajetória, e tendo durantealgumas décadas uma produção bem pequenaem grupos localizados, a pesquisa em educaçãono Brasil passou por algumas convergências te-máticas e metodológicas. As pesquisas, nas pri-meiras décadas do século vinte, tiveraminicialmente um enfoque predominantementepsicopedagógico, em que a temática abrangiaestudos do desenvolvimento psicológico das cri-anças e adolescentes, processos de ensino e ins-trumentos de medida de aprendizagem. Emmeados da década de 50, esse foco se deslocapara as condições culturais e tendências de de-senvolvimento da sociedade brasileira. Nesseperíodo, o país vinha saindo de um ciclo ditatoriale tentava integrar processos democráticos naspráticas políticas. Vive-se um momento de certaefervescência social e cultural, inclusive comgrande expansão da escolarização da populaçãonas primeiras séries do nível fundamental, com aluta pela ampliação de oportunidades em esco-las públicas, comparativamente ao período ante-rior. O objeto de atenção mais comum naspesquisas educacionais passou a ser, nesse mo-mento, a relação entre o sistema escolar e cer-tos aspectos da sociedade.

A partir de meados da década de 60 come-çaram a ganhar fôlego e destaque os estudosde natureza econômica, com trabalhos sobre aeducação como investimento, demanda profis-sional, formação de recursos humanos, técni-cas programadas de ensino etc. É o período emque se instalou o governo militar, redirecionan-do as perspectivas sócio-políticas do país. Pas-sa-se a privilegiar os enfoques de planejamento,dos custos, da eficiência e das técnicas e tec-nologias no ensino e ensino profissionalizante.A política científica passa a ser definida numcontexto de macroplanejamento, direcionandoos esforços e financiamentos no conjunto dapolítica desenvolvimentista, não fugindo a pes-quisa educacional em sua maior parte deste

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cenário e interesses.Embora a tônica nas pesquisas seja esta

durante alguns anos, especialmente as financi-adas por órgãos públicos, as instituições de en-sino superior, ou outras ligadas à produção dapesquisa em educação, mantêm uma formaçãodiversificada de quadros. Com a necessáriaexpansão do ensino superior e o trabalho emalguns cursos de mestrado e doutorado, quecomeçam a se consolidar, em meados da déca-da de 70, deparamo-nos não só com uma am-pliação das temáticas de estudo, mas tambémcom um aprimoramento metodológico, especi-almente em algumas subáreas. Levantamentosdisponíveis nos mostram que os estudos come-çam a se distribuir mais eqüitativamente entrediferentes problemáticas: currículos, caracteri-zações de redes e recursos educativos, avalia-ção de programas, relações entre educação eprofissionalização, características de alunos,famílias e ambiente de que provêm, nutrição eaprendizagem, validação e crítica de instrumen-tos de diagnóstico e avaliação, estratégias deensino, entre outros. Não houve apenas aumentode trabalhos em temas diversificados, comotambém quanto aos modos de enfocá-los. Pas-sou-se a utilizar tanto métodos quantitativos maissofisticados de análise, como também, qualita-tivos e, no final da década, um referencial teó-rico mais crítico, cuja utilização se estende amuitos estudos. Mas, predominaram ainda nes-se período os enfoques tecnicistas, o apego ataxonomias e à operacionalização de variáveise sua mensuração.

Com as críticas aos limites desse tipo de in-vestigação, com a propagação do emprego dasmetodologias da pesquisa-ação e das teorias doconflito nos anos 80, ao lado de certo descréditode que soluções técnicas resolveriam problemasde base na educação brasileira, o perfil da pes-quisa educacional se enriquece com novas pers-pectivas, abrindo espaço a abordagens críticas.

Todo esse processo da década de setenta edos anos oitenta se faz num contexto político esocial em que, num primeiro momento, a socie-dade é cerceada em sua liberdade de manifes-tação, na vigência da censura, em que se impõeuma política econômica de acúmulo de capital

para uma elite, e em que as tecnologias de dife-rentes naturezas passam a ser valorizadas comprioridade. Em um segundo momento, depara-mo-nos com movimentos sociais diversos quecomeçam a emergir, vêm num crescendo, cri-ando espaços mais abertos para manifestaçõessócio-culturais e a crítica social, inaugurando-se um período de transição, de lutas sociais epolíticas, que constroem a lenta volta à demo-cracia. A pesquisa educacional, em boa parte,vai estar integrada a essa crítica social, e, nadécada de oitenta, encontramos nas produçõesinstitucionais, especialmente nas dissertações demestrado e teses de doutorado – as quais pas-sam a ser a grande fonte da produção da pes-quisa educacional – a hegemonia do tratamentodas questões educacionais com base em teori-as de inspiração marxista, ou estudos chama-dos genericamente de qualitativos. Do ponto devista metodológico, no entanto, encontramosalguns problemas de base na construção dosestudos e das pesquisas. Questão que não seacha ainda hoje suficientemente trabalhada pe-los pesquisadores é a tendência à não discus-são em profundidade das implicações do usode certas formas de coleta de dados e modali-dades de análise, e mesmo da adequação deseus usos e de sua apropriação de forma con-sistente, além de sua relação com o enquadra-mento teórico pretendido.

A formação de quadros no exterior tambémé grandemente expandida na segunda metadedos anos oitenta e inícios dos noventa. O retor-no desses quadros traz para as universidades,no final da década de oitenta e durante a déca-da de 90, contribuições que começam a produ-zir grandes diversificações nos trabalhos, tantoem relação às temáticas como às formas deabordagem. Ao lado disso, alguns pesquisado-res experientes alimentam a comunidade aca-dêmica com análises contundentes quanto àconsistência e significado do que vem sendoproduzido sob o rótulo de “pesquisa educacio-nal”. É também nesses anos que se consolidamgrupos de pesquisa em algumas subáreas, querpor necessidades institucionais à luz das avalia-ções de órgãos de fomento à pesquisa, querpela maturação própria de grupos que durante

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as duas décadas anteriores vinham desenvol-vendo trabalhos integrados. Descortinam-se, nofinal desse período, grupos sólidos de investiga-ção, por exemplo, em alfabetização e lingua-gem, aprendizagem escolar, formação deprofessores, ensino e currículos, educação in-fantil, fundamental e média, educação de jovense adultos, ensino superior, gestão escolar, avali-ação educacional, história da educação, políti-cas educacionais, trabalho e educação.

As novas perspectivas com que se traba-lhou na pesquisa educacional na década dosnoventa, assentaram-se em críticas relativas aquestões de teoria e método, que, como já dis-semos, não estão resolvidas, mas deram novoimpulso aos trabalhos e alimentaram alguns gru-pos de ponta na pesquisa. Assim, a qualidadeda produção vai se revelar muito desigual quantoao seu embasamento ou elaboração teórica equanto à utilização de certos procedimentos decoleta de dados e de análise. Estudos dão con-ta da dificuldade de se construir na área cate-gorias teóricas mais consistentes, que não sejama aplicação ingênua de categorias usadas emoutras áreas de estudo, e que abarquem a com-plexidade das questões educacionais em seuinstituído e contexto social.

Adentrando os anos 2000, uma tendência in-teressante começa a perpassar a produção napesquisa em educação: alguns grupos consoli-dados, em várias partes do país, passam a tra-balhar em pesquisa a partir, não de problemasde porte muito limitado, com enfoque restrito,mas sim, em torno de temas de natureza maiscomplexa e que demandam abordagens multiou interdisciplinares, centrados em processoseducacionais, sob diferentes ângulos e níveis deabrangência. O tema do letramento é um des-tes, o tema da educação no e pelo trabalho éoutro, a questão da profissionalidade e identi-dade social dos docentes é outro etc.

Com isso, há sinalizações de uma matura-ção salutar no desenvolvimento da pesquisa emeducação, com desprendimentos de estritoscampos disciplinares e avanços na procura deinterfaces e diálogos pertinentes com váriasáreas, diferentes abordagens e diferentes mo-dos de teorização.

2. Quantitativo ou qualitativo?Esta questão é relevante de ser considera-

da. A expansão na pesquisa educacional dachamada pesquisa qualitativa veio no bojo deuma busca de métodos alternativos aos mode-los experimentais, às mensurações, aos estu-dos empiricistas, aos estudos chamados dequantitativos, cujo poder explicativo sobre osfenômenos educacionais veio sendo posto emquestão, como se pôs em questão os conceitosde objetividade e neutralidade embutidos nes-ses modelos.

As alternativas apresentadas pelas análiseschamadas qualitativas compõem um universoheterogêneo de perspectivas, métodos e técni-cas, que vão desde a análise de conteúdo comtoda sua diversidade de propostas, passandopelos estudos de caso, pesquisa participante,estudos etnográficos, antropológicos, etc.

É preciso considerar que os conceitos dequantidade e qualidade não são totalmente dis-sociados, na medida em que de um lado a quan-tidade é uma interpretação, uma tradução, umsignificado que é atribuído à grandeza com queum fenômeno se manifesta (portanto é umaqualificação dessa grandeza), e de outro, elaprecisa ser interpretada qualitativamente, pois,sem relação a algum referencial, não tem signi-ficação em si.

De qualquer forma, o conjunto de procedi-mentos de pesquisa que envolve tratamentosnuméricos, e sua análise, está atrelado às pro-priedades do tipo de conjunto numérico associ-ado às variáveis em estudo, portanto, à definiçãodestas e à garantia de que gozam de certascaracterísticas. Isto impõe um tipo de lógica notratamento do problema em exame e o uso dedelineamentos específicos para a coleta e aná-lise dos dados, que nem sempre os pesquisado-res dominaram, nem dominam, para umautilização adequada, enriquecedora e crítica. Noentanto, restrições de diferentes naturezas fo-ram feitas entre nós a esses modelos quantifi-cadores, sem uma análise mais profunda dassuas implicações e as análises com dados quan-titativos foram praticamente banidas dos estu-dos em educação, com poucas exceções.

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Por outro lado, o uso de técnicas não quanti-tativas de obtenção de dados, tipo observaçãocursiva ou participante, análise de conteúdo, aná-lise documental, histórias de vida, depoimentosetc., se colocaram como alternativas para o tra-to de problemas e processos escolares. As abor-dagens qualitativas trazem um grau de exigênciaalto para o trato com a realidade e a sua recons-trução, justamente por postularem o envolvimentodo pesquisador. O que se encontra em muitostrabalhos são observações casuísticas, sem pa-râmetros teóricos, a descrição do óbvio, a elabo-ração pobre de observações de campo conduzi-das com precariedade, análises de conteúdorealizadas sem metodologia clara, incapacidadede reconstrução do dado e de percepção críticade vieses situacionais, desconhecimento no tratoda história e de estórias, precariedade na docu-mentação e na análise documental. Os proble-mas não são poucos, tanto no trato de dados qua-litativos, como nos quantitativos, o que nos levaa pensar na precária formação que tivemos etemos, para uso e crítica tanto dos métodos ditosquantitativos como dos qualitativos.

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Precisa-se considerar o alto grau de ma-turidade e refinamento subjetivo exigido pe-las chamadas metodologias qualitativas(ANDRÉ; LÜDKE, 1986), e podemos con-cluir que elas não estejam sendo, em muitassituações, adequada e oportunamente utiliza-das. Isto, não só, como em geral se quer fa-zer crer, pelas condições adversas em que serealizam as pesquisas, mas porque a forma-ção que vem sendo dada não é adequada nemsuficiente.

É preciso reconhecer que não temos nosomitido no enfrentamento desses problemas,mas que, por outro lado, nem tudo o que sefaz sob o rótulo de pesquisa educacional podeser realmente considerado como fundado emprincípios de uma investigação científica, tra-duzindo com suficiente clareza suas condi-ções de generalidade e, simultaneamente, deespecialização, de capacidade de teorização,de crítica e de geração de uma problemáti-ca própria, transcendendo pelo método nãosó o senso comum, como as racionalizaçõesprimárias.

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Recebido em 30.05.05Aprovado em 08.08.05

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RESENHAS

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ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: jogos eletrônicos e violência.São Paulo: Futura, 2005. 255 p.

Camila Santana*

Janaína Rosado**

ALVES, Lynn Rosalina G. Game Over: Electronic Games and Violence. São Paulo:Futura, 2005. 255 p.

* Licenciada em Pedagogia pela UNEB; aluna do curso de Especialização em Educação e Tecnologias da Comunicação eInformação; mestranda em Educação e Contemporaneidade da UNEB; professora da Rede Municipal de Ensino deSalvador. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educa-ção e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA.E-mail: [email protected]** Licenciada em Pedagogia pela UNEB; aluna do curso de Especialização em Educação e Tecnologias da Comunicaçãoe Informação; mestranda em Educação e Contemporaneidade da UNEB; professora da Rede Municipal de Ensino deSalvador. Endereço para correspondência: Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educa-ção e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA.E-mail: [email protected]

Lynn Alves, doutora e mestra em Educaçãoe Comunicação pela Universidade Federal daBahia, pedagoga e psicopedagoga, é professo-ra assistente dos Departamentos de Educaçãoe de Comunicação da Universidade do Estadoda Bahia – Campus I, onde orienta projetos depesquisa na área de Educação a Distância,Educação e Tecnologia e coordena o projetode pesquisa Ensino On-line: trilhando novaspossibilidades pedagógicas mediadas pelos jo-gos eletrônicos. É também professora do Mes-trado em Educação e Contemporaneidade daUNEB e coordenadora dos núcleos de Educa-ção e Tecnologia e Educação a Distância dasFaculdades Jorge Amado e co-autora de diver-sos livros, entre eles Educação e Tecnologia:trilhando caminhos; Educação e Cibercul-tura e Educação à distância: uma nova con-cepção de aprendizado e interatividade.

Em Game Over: jogos eletrônicos e vio-lência, a autora levanta a discussão sobre arelação entre estas categorias, discutindo a su-posta influência de jogos eletrônicos, que exi-bem cenas agressivas, no comportamento dosindivíduos. Discussão esta que é contemporâ-

nea, visto que o tema inquieta a sociedade, jáque os jovens cada vez mais mostram interessee desejo por estes elementos tecnológicos, emespecial os jogos com cenas de violência. Alémda divulgação pela mídia de informações sobrejovens que ao interagir com games violentostornam-se violentos.

A autora, além de realizar pesquisa biblio-gráfica de teóricos que abordam a articulaçãoentre as categorias games e violência, partici-pou da rotina de cinco jovens que vivem imer-sos em atmosferas tecnológicas, visitando osambientes de convivência dos jogadores comolhar atento aos fatos e situações partindo deuma perspectiva qualitativa de pesquisa.

Para familiarizar o leitor, Alves caracteri-za o jogo sobre diversos aspectos: cultural,social, afetivo, psicológico, cognitivo, tecendoum diálogo interessante entre autores comoHuizinga, Vygotsky, Piaget, Wallon, Freud,Winicott, Benjamin, entre outros. Articulandoo jogo com o prisma teórico destes autores, aautora compreende-o enquanto tecnologia in-telectual, reafirmando a posição de Lèvy, queacredita que os jogos transformam a ecologia

Frente ao novo, devemos imergir, distanciar-se e apropriar-se.(Babin e Kouloumdjian)

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cognitiva proporcionando a elaboração de fun-ções cognitivas.

Entendendo a cultura como um sistema se-miótico, a autora pede atenção especial à infor-mática, que emerge na metade do século XX,como um elemento que traz novas implicaçõesculturais e faz surgir uma “cultura da simula-ção”. No livro, o conceito de cultura da simula-ção é vislumbrado sob a ótica de Turkle que acaracteriza por maneira de pensamentos nãolineares, que criam novas lógicas, envolvemnegociações e abrem caminhos para diferentesestilos cognitivos.

Diante do fascínio que os jogos eletrônicosdespertam na geração net, a escritora faz umimportante levantamento histórico sobre os vi-deogames, desde o jogo de tênis criado em 1958,passando pelos jogos eletrônicos de salão, porvideogames conectados à televisão domésticaaté os jogos para PC (Personal Computer).Com a inovação tecnológica, ou seja, desenvol-vimento de novos gráficos, avatares, consolese principalmente de maiores possibilidades deinteratividade, o desejo pelos jogos eletrônicosfoi intensificado. Assim, os jogos emergem nestecontexto como representantes de uma geraçãoque não se contenta em ser mero espectador,mas anseia interagir, participar com autonomiana escolha dos caminhos a percorrer.

Nesta perspectiva, os jogos de RPGs, navisão da autora, são os que possuem maior ní-vel de interatividade. Esse alto grau de interati-vidade pode ser um dos motivos de os pais teremmais “medo” do videogame do que da televi-são, por exemplo, afinal, “o telespectador pulaentre os canais, o jogador age”. (p. 77).

Em seu livro, Lynn Alves pede que repen-semos a adoção de posturas maniqueístas noque se refere aos jogos eletrônicos, enfatizan-do que na sociedade contemporânea não háespaço para tais atitudes. Esse clamor deve-seao fato de a própria comunidade acadêmica e aopinião pública dividirem opiniões em relaçãoaos indivíduos que interatuam com as tecnolo-gias, alegando muitas vezes que estes se tor-nam anti-sociais, egoístas, violentos, dando aossuportes tecnológicos uma função funesta ecalamitosa. Os jogos eletrônicos transfiguram-

se, desta forma, em artifícios idolatrados e exe-crados pela sociedade.

O olhar apocalíptico em torno dos jogos ele-trônicos instiga a pesquisadora a questionar-sesobre a análise simples que é feita sobre a vio-lência – ao negligenciar-se seu caráter com-plexo – e o reflexo que cenas violentas dos jogostêm no cotidiano dos sujeitos. A autora afirmaque a categoria violência deve ser abordada sobdistintas ciências, ressaltando que o tema nãopode ser tratado superficialmente.

Em Faces da Violência, no quarto capítu-lo, a autora traz a visão inatista de Freud sobrea agressividade e também como fator impor-tante para garantir a paz, a ordem e a lei. Tem-pos depois, Freud diferencia agressividade deviolência, entendendo a primeira como elemen-to instintivo e a segunda como acontecimentosócio-histórico-cultural que surge diante da de-manda do indivíduo. Outra concepção de vio-lência levantada no livro é a violência comolinguagem. Sobre esse aspecto, Alves cita oautor russo Vygotsky, que compreende a lin-guagem como o mais importante instrumentodo pensamento que intercede as relações cog-nitivas, afetivas, sociais e culturais. A lingua-gem é uma maneira de perceber e decifrar omundo. Deste modo, a violência é uma lingua-gem que o indivíduo usa para marcar que algu-ma coisa não está bem.

E, para expressar o que não é falado, os jo-vens utilizam os jogos como ambiente de catar-se, expurgando seus medos, perdas e reelabo-rando sua realidade, já que a aprendizagem queacontece nestas comunidades não é simplesrepetição automática da realidade como tal.Diante deste entendimento, a subjetividade doindivíduo estabelecida na estrutura familiar épreponderante para explicar atos violentos, oque não tem relação direta com jogos eletrôni-cos que exibem cenas de violências. Sendo as-sim, Lynn Alves acredita que a violência pre-sente nos jogos eletrônicos por promover “umefeito terapêutico”, contribuindo para catarse,passa a ser entendida de maneira “construti-va”. Não sendo responsável pelo comportamen-to violento dos jovens, permitindo-lhes ressigni-ficar seus sentimentos, conceitos, agindo na

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Zona de Desenvolvimento Proximal, podendo,dessa forma, ser utilizado em contextos escola-res. A autora compreende que não existe rela-ção de causa-efeito entre jogos eletrônicos eviolência, assim como a compulsividade de al-guns jogadores pode estar relacionada com ou-tros aspectos que circundam a vida do jogador.Os jogadores, entrevistados durante a pesqui-sa, exercem outras atividades em que o jogonão está presente, sinalizando, assim, que a in-teração com os games é apenas mais um ele-mento na sua rotina diária.

Game Over: jogos eletrônicos e violên-cia apresenta metodologia cuidadosa que ex-plora e conclui sobre o problema que pretendepesquisar. É uma obra de suma importânciaporque aborda um tema recorrente na socieda-de atual, citado sempre pela mídia com um olhar

apocalíptico e cheio de preconceitos sobre osjogos eletrônicos.

Resultado de uma investigação feita ao longode oito anos na área de Educação e Tecnologia,esta obra é interessante para pais, educadores,pesquisadores em geral que, diante das situaçõesenvolvendo jogos eletrônicos e violência, dese-jam refletir e entender esta relação para além davisão simplista, atuando na sociedade a fim dedesmistificar esta falsa interpretação para nãodesviar o olhar da real causa de atos violentos:questões afetivas (falta de estrutura famíliar,ausência de limites etc) e socioeconômicos (fal-ta de dinheiro, desemprego etc).

A obra apresenta discurso simples e claro,nos convidando a pensar, sem preconceitos –no sentido etimológico da palavra –, sobre otema em questão.

Recebido em 20.05.05Aprovado em 20.05.05

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GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Riode Janeiro, RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asi-áticos, 2001. 432 p.

Isabele Pires Santos*

* Mestranda em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia. Professora do Departamento deSaúde da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Campus Jequié. Endereço para correspondência:Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua SilveiraMartins, 2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. Email: [email protected]; [email protected] BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

GILROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness.Rio de Janeiro, RJ: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. 432 p.

O livro de Paul Gilroy - O Atlântico Negro:modernidade e dupla consciência – tem comocontribuição fundamental à produção do conhe-cimento sobre a modernidade o fato de inserirno âmbito dessa discussão a intervenção quetem a diáspora negra e seus desdobramentosna construção desse ‘movimento’ que Berman(1986, p.15)1 chamaria de - “uma experiênciade tempo e espaço, de si mesmo e dos outros,das possibilidades e perigos da vida – que écompartilhada por homens e mulheres de todoo mundo, hoje”. Parece-nos que, contraditoria-mente a este compartilhar de homens e mulhe-res de todo o mundo, a literatura e os pensadoresda modernidade têm esquecido do peso dos pro-cessos de escravidão estabelecidos na Améri-ca e que se tornaram elementos estruturais naconstrução da modernidade.

Como pensar a modernidade sem a forçade trabalho escrava que na base do processoprodutivo moveu suas relações sócio-políticas,interligando África, Europa e América? Comoentender os processos culturais modernos de-sencadeados nesses três continentes, negligen-ciando a interferência negra na dinâmica daprodução de uma ‘cultura moderna’? Gilroy trazà tona a possibilidade de se sistematizar umpensamento sobre a modernidade que inclua asrelações e dinâmicas estabelecidas a partir de

uma reflexão sobre a diáspora negra e seus sig-nificados. O Atlântico Negro constitui-se, en-tão, num “conjunto cultural irredutivelmentemoderno, excêntrico, instável e assimétrico, queescapa à lógica estreita das simplificações ét-nicas, e se manifesta tanto nos escritos deW.E.B Du Bois como nas letras dos rappers doséculo XXI”.

A idéia fundamental do livro é de que nasrelações produzidas entre Europa, África eAmérica no contexto advindo da escravidãosedimentaram-se os processos de racializaçãoe os ideais anti-racistas. Além de formas deprodução/apreensão da cultura e de resistênciapolítico-cultural manifestas não apenas emações políticas no sentido estrito, mas em for-mas artísticas como a literatura e a música.

O Atlântico Negro de Gilroy significa nãosó uma dimensão geográfica e histórica, massobretudo um transitar numa tríade que com-preende os loci de origem, de dominação e ne-gação da identidade e de construção deprocessos de sobrevivência/resistência. Estesdeslocamentos configuram-se em elementosque não mais podem ser negados na estruturae nos processos da modernidade.

É verdade que o autor fala do ponto de vis-ta de um europeu, ou mais precisamente, doponto de vista de um indivíduo negro e inglês.

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Isso significa que seu esforço intelectual, pormais que se dirija a um “atlântico”, parte deum modo europeu de ver e pensar o mundo,distante, conseqüentemente, da realidade ime-diata a nós, brasileiros, baianos, viventes nes-te cadinho de atlântico. Entretanto, essaressalva não diminui em nada o significadodessa obra, apenas serve como provocaçãoaos leitores do livro, convidando-os a refletirquestões sobre o significado da diáspora ne-gra e seus desdobramentos, por exemplo, nadinâmica histórica de Salvador, cidade quenasce moderna e se constrói – econômica,política e culturalmente – nas ondas desseoceano que Gilroy nos fala.

Em sua construção, Paul Gilroy distribui seusargumentos em seis capítulos. O primeiro con-fronta as formas nacionalistas de produção dopensamento cultural com a possibilidade deabordagem transnacional e intercultural. Nestecapítulo o autor lança a tese que será desdo-brada e aprofundada nos capítulos seguintes.

O capítulo dois trata da ausência dos temasligados às questões étnicas na produção teóri-ca sobre a modernidade. O autor constrói suacrítica a esta negação e desenvolve os argu-mentos que sustentam a tese de que todo o pro-cesso de escravidão constitui-se como funda-mental na sedimentação da sociedade moderna.Aqui ele discorre sobre a relação senhor-es-cravo que tem estado na base das discussõesdesenvolvidas por intelectuais negros sobre amodernidade.

O terceiro capítulo ocupa-se da música ne-gra na perspectiva de construir argumentosantimaniqueístas na fundamentação das teori-as da identidade negra.

O quarto capítulo fala de resistência. A partirda análise da obra de W.E.B. Du Bois2 , Gilroyfala de apropriações e reelaborações culturais e

políticas forjadas com base na experiência deopressão e subordinação num contexto racista.Há uma mudança na percepção da condição deoprimido que vai do sentimento de dominação àprodução de formas de resistência e de novospapéis no processo de escravidão.

Fazendo uma incursão pela literatura, nocapítulo cinco o autor Richard Wright3 é foca-lizado. Considerando que a obra desse autor foiapenas suficientemente analisada do ponto devista literário, mas ainda não do ponto de vistapolítico, Gilroy evidencia o papel de Wright (eas conseqüentes críticas por ele recebidas) naelaboração de um pensamento sobre a identi-dade negra, inicialmente pela sua penetraçãonos meios editoriais e pelo seu sucesso comoescritor negro, mas fundamentalmente pela for-ça de suas idéias e de suas posições políticasnum contexto político mundial bastante desfa-vorável ao conteúdo de suas posturas.

Encerrando, o livro Paul Gilroy critica a idéiade invariabilidade da tradição presente muitasvezes nas tendências africentristas. Refletindosobre o conceito de diáspora e pontuando as-pectos culturais e artísticos produzidos no pro-cesso da diáspora negra, ele conclui com aindicação dialética da permanência e da mu-dança na construção/abordagem da tradição nadiáspora negra.

2 DU BOIS, W.E.B. The Souls of Black Folk. Nova York:Bantam, 1989.

DU BOIS, W.E.B. Black Reconstruction in America (1938).Nova York: Atheneum, 1977.3 WRIGHT, Richard. White Man Listen! Nova York: AnchorBooks, 1964.

WRIGHT, Richard. Twelve Million Black Voices. Londres:Lindsay Drummond Ltd., 1947.

Recebido em 30.05.05Aprovado em 25.06.05

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COLE, Michael & COLE, Sheyla. O desenvolvimento da criança e do adolescente. 4.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.

CULTURALISMO:UMA ABORDAGEM MULTIREFERENCIAL AO

DESENVOLVIMENTO HUMANO

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu*

* Doutor em Educação (Psicologia e Educação) e mestre em Artes (Artes Cênicas/Teatro) pela USP. Professor adjuntodo DEDC Campus XV da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Valença/Ba. Endereço para correspondência:Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Departamento de Educação/Campus XV, Rua do Arame, s/n, Tento –45400.000 Valença/BA. E-mail: [email protected]; [email protected]

COLE, Michael & COLE, Sheyla. The Development of Children. 4. ed. Por-to Alegre: Artes Médicas, 2004. 800 p.

O desenvolvimento de cada ser humano ocorreintimamente ligado à sua cultura. Mesmo antesdo nascimento, a cultura contribui para o desen-volvimento das crianças através de fatores comoa alimentação à qual a mãe teve acesso e aospadrões de fala que ela [a criança] filtrou atravésdo seu corpo. Depois do nascimento a culturaocupa um papel fundamental na experiência dascrianças porque elas são extremamente depen-dentes de outras pessoas para apoiar seu de-senvolvimento continuado. (p. 715).

O desenvolvimento da criança e do ado-lescente é o primeiro livro, publicado no Brasil,da autoria do Prof. Dr. Michael Cole – docentee pesquisador da Universidade da Califórnia emSan Diego (EUA). Trata-se de um compêndioescrito em parceria com a jornalista Sheyla Cole– sua mulher – destinado a introduzir os alunosde Pedagogia e Psicologia na problemática dodesenvolvimento humano. O volume é ricamen-te ilustrado e apresenta-se diagramado de ma-neira original, oferecendo ao leitor uma espéciede escrita hipertextual, apesar dos limites à li-nearidade do texto veiculado em meio não-digi-tal. Os autores optam por uma linguagemsimples, sem eruditismo, bem ao estilo nortea-

mericano do “ir direto ao ponto”. Isso faz dolivro um material acessível a qualquer pessoaque tenha interesse pela psicologia do desen-volvimento humano.

O volume encontra-se organizado em cincograndes partes subdivididas em dezesseis capí-tulos. O primeiro capítulo apresenta a psicolo-gia do desenvolvimento como “o estudo dasmudanças físicas, cognitivas e psicossociaisque as crianças sofrem a partir do momentoda concepção” (p. 24) e identifica suas origensno final do século XVIII, na França, quando oentão jovem médico Jean-Marc Itard passou aobservar, de modo sistemático, Victor – o meni-no selvagem que apareceu procurando por co-mida em uma aldeia da província de Aveyron noinverno de 1800. Para Cole & Cole, o fato deItard ter criado um conjunto elaborado de proce-dimentos experimentais para ensinar Victor acategorizar objetos, raciocinar e se comunicarverbalmente faz dele o legítimo precursor da ci-ência da psicologia do desenvolvimento porque,agindo desse modo, Itard movia-se para além daespeculação, buscando conduzir experiências quepudessem testar suas idéias (p. 25).

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Após o primeiro capítulo, inicia-se a primei-ra parte do livro intitulada O Início, compostapelos capítulos dois e três. O capítulo segun-do focaliza a reprodução sexual humana. Ali,as leis da herança genética são apresentadasde modo a problematizar sua complexa intera-ção com os fatores ambientais a partir do con-ceito de co-evolução de Futuyma (p. 95). Noterceiro capítulo os autores apresentam umaexcelente descrição do desenvolvimento pré-natal até o nascimento do sujeito, destacandoos períodos germinal, embrionário e fetal.Este capítulo focaliza sobretudo a aprendiza-gem fetal e os efeitos teratogênicos do uso dedrogas como álcool, maconha, cocaína e deri-vados do ópio em crianças a elas expostas quan-do ainda no útero materno.

A segunda parte do livro recebe o título deO Bebê e compõe-se dos capítulos quarto, quin-to, sexto e sétimo. Estes quatro capítulos des-crevem as habilidades iniciais da criança e ocurso de seu desenvolvimento desde o primeiroano de vida até o término da fase de bebê, ouseja, até quando o sujeito se locomove sozinho,faz uso da fala e demonstra maior autonomianas suas interações com o meio físico e social.Os capítulos oitavo, nono, décimo e décimo-pri-meiro configuram a terceira parte do livro inti-tulada Primeira Infância. Esta parte é dedicadaaos saberes contemporâneos a respeito dos pro-cessos de aquisição da linguagem e da consti-tuição do pensamento verbal dos dois aos quatroanos de idade. Com os capítulos décimo-segun-do, décimo-terceiro e décimo-quarto apresen-ta-se a quarta parte do volume sob o títuloSegunda Infância. Estes capítulos buscamcompreender as aquisições cognitivas, sociaise biológicas dos cinco aos doze anos, focalizan-do, de modo privilegiado, o importante papel daescolarização e do grupo de pares no modo depensar e de agir da criança. A quinta parte dolivro denomina-se Adolescência e compõe-sedos capítulos décimo-quinto e décimo-sexto.Nesta última parte os autores procuram apre-sentar as bases biológicas e sociais da adoles-cência, destacando o processo de constituiçãodas singularidades humanas na perspectiva re-

lacional de formação das identidades heteros-sexual, não-heterossexual e étnica. O livro trazainda um epílogo sob o título Juntando tudo,em que Cole & Cole propõem ao leitor umaarticulação entre teoria e prática com base emseis conceitos considerados “indispensáveispara o entendimento do desenvolvimentohumano” (p. 713): (1) seqüência; (2) momen-to; (3) diferenciação e integração; (4) padroni-zação; (5) fontes múltiplas e (6) mediaçãocultural. Além do epílogo, a publicação ofere-ce um apêndice-guia para discussões de dife-rentes aspectos do desenvolvimento; umglossário de termos técnico-científicos e umíndice onomástico.

A grande novidade deste compêndio (4. edi-ção revista e ampliada da obra originalmentepublicada nos Estados Unidos sob o título Thedevelopment of Children, em 1989) é apre-sentar, numa perspectiva crítica, um panoramacontemporâneo dos saberes em construção arespeito da psicologia do desenvolvimento.

Embora Michael Cole seja uma das princi-pais lideranças da escola de psicologia nortea-mericana denominada socioculturalismo ouculturalismo, isso não o impede, no livro, deexpor com clareza, respeito e honestidade ou-tras abordagens ao desenvolvimento humanodivergentes do culturalismo – como é o caso,por exemplo, das teorias do processamento dainformação, da ciência cognitiva e da episte-mologia genética.

Um aspecto polêmico do livro é que os au-tores agrupam as perspectivas teóricas do cam-po da psicologia do desenvolvimento emquatro grandes abordagens: (1) maturaçãobiológica; (2) aprendizagem; (3) construti-vismo e (4) contexto cultural. Cole & Cole“separam” construtivismo e culturalismo, ain-da que ambas abordagens possam ser reuni-das, confortavelmente, sob a consigna dointeracionismo: “os psicólogos que atuam den-tro da abordagem culturalista também concor-dam que os fatores biológicos e experiênciastêm papéis recíprocos a desempenhar no de-senvolvimento e, como os construtivistas, acre-ditam que as crianças constroem seu próprio

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desenvolvimento através de um engajamentoativo com o mundo.” (p. 58-59).

Evidentemente não se pode negar a exis-tência de uma diferença fundamental entre oconstrutivismo individualista de orientaçãopiagetiana e o co-construtivismo ou constru-tivismo socialista de orientação vygotskia-na.1 Sem dúvida, existe um “divisor de águas”entre ambas as abordagens: o conceito de me-diação cultural. Todavia, “os pontos de vista daabordagem culturalista e construtivista são si-milares em vários aspectos. Ambas declaramque o indivíduo sofre mudanças qualitativas nocurso do seu desenvolvimento e ambas enfati-zam que o desenvolvimento é impossível sema participação ativa do indivíduo.” (p. 59 -grifos meus).

A polêmica gerada por Cole & Cole temorigem em uma “ação afirmativa” do cultura-lismo. Porém, admitamos, seria mais didáticoagrupar as perspectivas teóricas do campo dapsicologia do desenvolvimento em apenas trêsgrandes blocos: (1) abordagens inatistas oumaturacionistas; (2) abordagens ambientalis-tas ou da aprendizagem e (3) abordagens in-teracionistas.2 Estas últimas subdividindo-seem (3.1) abordagens interacionistas univer-salistas (o construtivismo de orientação piage-tiana) e (3.2) abordagens interacionistasculturalistas (o co-construtivismo de orienta-ção vygotskiana). As razões para Cole & Coledestacarem o culturalismo do conjunto dasabordagens interacionistas devem ser a neces-sidade identitária de sua “diferença” em rela-ção ao construtivismo universalista de orientaçãopiagetiana.

Uma outra questão que vem à tona no com-pêndio é a universalização da periodização dodesenvolvimento humano porque, como expli-cam Oliveira & Teixeira, “em virtude de o psi-quismo se desenvolver por referência adeterminado contexto histórico e cultural, a uni-

versalização das etapas do desenvolvimento tor-na-se um obstáculo teórico-metodológico dedifícil, senão impossível, ultrapassagem.” (p.27).3 Ainda Oliveira é quem traduz a preocu-pação de muitos culturalistas com esta ques-tão: “O que precisa ser explicado por meio dacultura não são as características de diferentesindivíduos e grupos que divergem das normaseuropéias e americanas de funcionamento men-tal, mas a própria mente humana e seu funcio-namento. A cultura tem que ser o princípioexplicativo da mente especificamente hu-mana.” (p. 216) (Grifos meus).4

Evidentemente não é possível, no âmbitorestrito desta resenha, verticalizar a discussãodessas e outras polêmicas suscitadas pela lei-tura das oitocentas páginas de O desenvolvi-mento da criança e do adolescente. O livro,entretanto, apresenta-se como leitura indispen-sável à formação de profissionais da educaçãoe da psicologia, constituindo importante materi-al de consulta para pais, tios, tias, avôs e avósde todas as etnias, idades e classes sociais.

Resta-nos parabenizar a Editora Artes Mé-dicas por disponibilizar pioneiramente, em lín-gua portuguesa, o pensamento de Michael Cole.

1 VALSINER, Jaan & VASCONCELOS, Vera M. R. de. Pers-pectiva co-construtivista na psicologia e na educação.Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.2 PALANGANA, Isilda Campaner. Desenvolvimento eaprendizagem em Piaget e Vygotsky: a relevância do social.São Paulo: Summus, 2001.3 OLIVEIRA, Marta Kohl de; TEIXEIRA, Edival. A ques-tão da periodização do desenvolvimento psicológico. In:OLIVEIRA, Marta Kohl de e outros (Orgs.). Psicologia,educação e as temáticas da vida cotidiana. São Paulo:Moderna, 2002. p. 23-46.4 OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas ques-tões sobre a psicologia do adulto. Educação e Pesquisa,São Paulo, v. 30, n. 2, p. 211-229, maio/ago. 2004.

Recebido em 15.02.05Aprovado em 18.02.05

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OROFINO, Maria Isabel. Mídia e educação: contribuição dos estudosda mídia e comunicação para uma pedagogia dos meios na escola. In:FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Educação intercultural: mediações necessári-as. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003. p. 109-124.

Leonardo de Oliveira Palmeira *

* Leonardo de Oliveira Palmeira é médico, graduado pela Universidade Federal da Bahia – UFBa, em 2003, músicoinstrumentista e poeta, pós-graduando em Metodologia do Ensino Superior pela Unyahna. Endereço para correspon-dência: Instituto de Educação Superior UNYAHNA de Salvador, Rua Bicuíba, s/n, Alameda Patamares – Patamares –41680-440 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

OROFINO, Maria Isabel. Mass Media and Education: the Contribution ofMass Media and Communication Studies for a Pedagogy of Mass Media atSchool. In: FLEURI, Reinaldo Matias (org.). Intercultural Education:Necessaries Mediations. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003. p.109-124.

Maria Isabel Rodrigues Orofino graduou-seem Comunicação Social com Habilitação emJornalismo pela UFSC, em 1986, onde perse-guiu seus estudos de Mestrado em Educaçãoobtendo este título no ano de 1997 com a tese:A Mediação Escolar na Recepção Televisi-va. Realizou estudos de doutorado-sanduícheem Teoria da Comunicação na University ofLondon e tornou-se Doutora em Ciências daComunicação pela USP no ano de 2002. Auto-ra e co-autora de livros sobre mediação na co-municação como O Fantástico na Ilha deSanta Catarina (1992), Vozes da Lagoa(2000), e do capítulo A mediação Videotecno-lógica na Telenovela, do livro Vivendo com aTelenovela (2002). Atualmente, desenvolvepesquisas nos grupos Educação Intercultural eMovimentos Sociais; e Infância, Comunicação,Cultura e Arte; e é professora do Departamen-to de Comunicações e Artes da USP.

No texto Mídia e Educação: contribui-ções dos estudos da mídia e comunicaçãopara uma pedagogia dos meios na escola,Orofino sugere um papel para a escola na inte-ração com a cultura de massa – em constanteprodução – e estabelece a relação entre con-sumo cultural e educação, defendendo que a

escola deve ser um espaço de crítica ao consu-mo social das mídias, para construção de umavisão reflexiva sobre elas que lhes propicie umaresposta social.

Entendendo que a experiência cultural dehoje é permeada pela oferta de símbolos origi-nados nos meios de comunicação de massa(M.C.M.), sendo o meio televisivo o mais usa-do pelas crianças brasileiras, apesar do adven-to do computador e da internet, chama a atençãopara a falsa idéia de integração universal pro-pagada pela presença ubíqua das empresascontroladoras dos M.C.M., em descompassocom a realidade de uma profunda exclusão so-cial gerada pela diferença de oportunidade noacesso a esses meios, principalmente ao com-putador e à internet.

Diante dessa diferença, a autora aborda anecessidade de se compreender o contexto so-cial em que o consumo cultural se processa,vinculando o significado atribuído à mensagemao contexto de recepção e consumo desta.Contexto que é definido pelos diferentes cená-rios sócio-históricos e suas mediações.

Para tal abordagem, a autora utiliza as teo-rias latino-americanas que definem mediaçõescomo “a circulação de significados no cenário

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social e os diferentes modos de apropriaçãodesses” (p. 113). Nesse momento, apresenta aescola como o cenário social que atua em nívellocal, e ressalta a importância da “mediaçãoescolar” (p. 113) na crítica ao consumo cotidia-no das mídias e suas mensagens dirigidas a umpúblico global.

Orofino cita Martin-Barbero e Orozco, prin-cipais teóricos dos estudos da teoria latino-ame-ricana das mediações, ao levantar outroscontextos de mediação importantes, a seremconsiderados pelos educadores, com a finalida-de de compreender “os modos pelos quais seprocessam uma ‘produção social do significa-do’ a partir de uma ‘analise integral do consu-mo’ entendido como ‘o conjunto dos processossociais de apropriação dos produtos’” (MAR-TÍN-BARBERO, 1997, p.290)1 . Ao fazê-lo,desmistifica a noção de que toda assimilaçãoda cultura hegemônica da mídia constitui sub-missão, pois salienta o papel do consumidorcomo ator nos processos de mediação onde o“político se revela a partir do cultural” (p. 118)transformando a cultura de massa, de um meroproduto de alienação, em uma produção socialdo sentido através da interação entre audiênciae MCM. Esses outros contextos de mediaçãosão: a) a mediação individual, b) a mediaçãosituacional, c) a mediação institucional – na qualestá incluída a mediação escolar, e d) a media-ção tecnológica.

O texto de Orofino traz as tendências inci-pientes dos estudos contemporâneos da comu-

nicação social para o contexto escolar, alertan-do para o fato de que é inevitável convivermoscom a participação dos MCM na educação, eque esse fenômeno demanda novas habilida-des dos educadores.

Todavia, assim como o arcabouço teóricoda comunicação social está ganhando novasperspectivas, sua aplicação prática dentro oufora da escola não passa de uma experimenta-ção e não pode, ainda, ser bem definida. A aná-lise apresentada pela autora de forma simplese direta tem, portanto, o mérito de fornecer aoseducadores uma nova visão dos processos im-bricados na atuação da mídia, na formação dacultura pelas crianças e adolescentes, e, porconseguinte, presente na escola. O movimentodo pensamento de Orofino nesse texto consti-tui, portanto, leitura indispensável para os edu-cadores que pretendam desenvolver a visãocrítica dos seus educandos sobre os símbolosgerados pelos MCM, e assim contribuir para aconstrução reflexiva dos seus significados epara a produção de mensagens no âmbito es-colar, mediando ativamente a formação de umanova cultura de massa.

1 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações:comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: EditoraUFRJ, 1997.

Recebido em 23.05.05Aprovado em 23.05.05

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277Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, jul./dez., 2005

INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade é uma publicação semestral eaceita trabalhos originais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:- resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;- entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.

Os trabalhos devem ser enviados via Internet para Jacques Jules Sonneville – e-mail:[email protected] - segundo as normas definidas a seguir:

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereçosprofissional e residencial, telefone, e-mail para contato; c) titulação; d) instituição a que pertence(m)e cargo que ocupa(m).

2. Resumo e Abstract, cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado,conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, nomínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo. Atenção: cabe aos autoresentregar traduções de boa qualidade, indispensável para a aceitação do texto.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, devemter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de suaautoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida peloConselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.

4. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dosautores e das publicações, conforme a NBR 6023 de setembro de 2003, da ABNT (AssociaçãoBrasileira de Normas Técnicas). Vide os seguintes exemplos:

a) Livro de um só autor:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.

b) Livro até três autores:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Traduçãode Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.

c) Livro de mais de três autores:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

d) Capítulo de livro:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA, Joaquim (Org.).Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.

e) Artigo de periódico:MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Umabreve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.

f) Artigo de jornais:SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. OGlobo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.

g) Artigo de periódico (formato eletrônico):TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileirade História, São Paulo, SP, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acessado em: 14ago. 2000.

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h) Livro em formato eletrônico:SÂO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm >. Acessado: em 19 out. 2003.

i) Decreto, Leis:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos paradespacho de aeronave em serviço internacional. Lex: Coletânea de legislação e Jurisprudência, SãoPaulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar., 1. trim. 1984. Legislação Federal e marginalia.

j) Dissertações e teses:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado)– Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.

k) Trabalho publicado em Congresso:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridadesbrasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE:HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 13., 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego dapontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme. Por exemplo: após cada ponto, deixardois espaços antes de iniciar a parte seguinte da referência.

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entreaspas ou em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte dotexto, este deve aparecer em letra cursiva, observando e respeitando a língua portuguesa. Exemplo:De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deveaparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir:A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídasde sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data deacesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo,no rodapé das páginas do texto, devem constar apenas as notas explicativas estritamentenecessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2003.

6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como osagradecimentos, apêndices e informes complementares.

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos deteses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e conter título, número de folhas, autor (eseus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição e data da defesa pública.Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:

• letra: Times New Roman 12;• tamanho da folha: A4;• margens: 2,5 cm;• espaçamento entre as linhas: 1,5;• parágrafo justificado.

8. As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho Editorial,atendendo a critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificaçãoda autoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação. A aceitação da matéria parapublicação implica na transferência de direitos autorais para a revista.

A Comissão de Editoração