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193 Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 20, VERÃO 2013 LUIZ MANOEL LOPES * Recebido em mai. 2013 Aprovado em jul. 2013 RESUMO O presente artigo procura pontos de articulação entre dois pensadores, Salomon Maimon e Gilles Deleuze, a fim de encontrar meios de explicitar o modo como o segundo leva adiante os questionamentos do primeiro em relação ao condicionamento transcendental. O objetivo é apresentar a distinção entre as concepções de gênese nestes dois pensadores a partir da filosofia transcendental de Kant. Considera-se, neste trabalho, que o remanejamento, elaborado por Maimon, em relação à dualidade entre conceito e intuição, leva Deleuze a tecer sua concepção de gênese que culmina na seguinte afirmação: a filosofia é ato de criação de conceitos e de personagens conceituais a partir de um plano de imanência. PALAVRAS-CHAVE Filosofia. Transcendental. Diferença. Imanência. Acontecimento. * Doutor em Filosofia e professor Adjunto da UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA. DELEUZE E A OBSESSÃO PELA GÊNESE

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LUIZ MANOEL LOPES *

Recebido em mai. 2013Aprovado em jul. 2013

RESUMO

O presente artigo procura pontos de articulação entredois pensadores, Salomon Maimon e Gilles Deleuze, afim de encontrar meios de explicitar o modo como osegundo leva adiante os questionamentos do primeiroem relação ao condicionamento transcendental. Oobjetivo é apresentar a distinção entre as concepçõesde gênese nestes dois pensadores a partir da filosofiatranscendental de Kant. Considera-se, neste trabalho,que o remanejamento, elaborado por Maimon, emrelação à dualidade entre conceito e intuição, levaDeleuze a tecer sua concepção de gênese que culminana seguinte afirmação: a filosofia é ato de criação deconceitos e de personagens conceituais a partir de umplano de imanência.

PALAVRAS-CHAVE

Filosofia. Transcendental. Diferença. Imanência.Acontecimento.

* Doutor em Filosofia e professor Adjunto da UNIVERSIDADE FEDERAL

DO CARIRI - UFCA.

DELEUZE E A OBSESSÃO PELA GÊNESE

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38. RÉSUMÉ

Cet article vise points d’articulation entre les deuxpenseurs, Salomon Maimon et Gilles Deleuze, afin detrouver des moyens d’expliquer comment le secondreprend les questions de la première par rapport auconditionnement transcendantale. L’objectif estd’introduire la distinction entre ces deux conceptionsdes penseurs genèse de la philosophie transcendantalede Kant. Il est considéré dans ce travail, ladélocalisation, préparé par Maimon par rapport à ladualité entre le concept et l’intuition, conduit Deleuzeà tisser sa conception de la Genèse, qui culmine dansl’affirmation suivante: la philosophie est l’acte de lacréation de concepts et personnages conceptuels d’unplan d’immanence.

MOTS-CLÉS

Philosophie. Transcendantale. Différence. Immanence.Evénement.

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013Ao entrarmos em contato com a filosofia de Gilles

Deleuze começamos por sublinhar seudescontentamento em relação ao condicionamentotranscendental, visto como o modo do sujeito humanoconhecer impondo formas a priori ao mundo exteriordos fenômenos: o modo de conhecer que, por exemplo,teria garantido o advento da física newtoniana. A partirdeste modo de conhecer, se diz que as condições depossibilidades teriam sido realizadas e uma imagemdo pensamento se efetivou: a Natureza passou a servista como um meio que responde às perguntasimpostas pelo sujeito humano enquanto possuidor dosprincípios da física-matemática. Ora, é a remoção destemodo de pensar ou desta imagem do pensamento queo pensamento de Deleuze, em torno da diferença, vemcontrapor-se e insistindo que a tarefa do filósofo é criarconceitos e personagens conceituais a partir de umcrivo no caos, ou seja, de um plano de imanência.

O DUPLO SENTIDO DE ESTÉTICO E O PROBLEMA DA GÊNESE

Começaremos por tratar a obsessão pela gêneseem Deleuze em relação à sensibilidade, porém com ocuidado de discernir que é a partir da diferença entreos dois modos de sensibilidade, ou melhor, entre osdois significados de estético, que poderemoscompreender sua repulsa ao condicionamentotranscendental. Tratar tal repulsa é adentrar naconcepção de gênese que este pensador possui, e paraque tal proposta se efetive é por demais valioso esignificativo atentar para os dois significados do juízoestético, conforme fora sublinhado acima. O sujeitohumano possui faculdades, disposições e tendências;

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38. a partir do viés crítico da filosofia transcendental,

poderemos encaminhar tais distinções uma vez que noâmbito do conhecimento, em relação à Natureza, asfaculdades se apresentam coligadas, sendo que a relaçãoentre a sensibilidade e o entendimento é mediada pelaimaginação a qual possui a função de sintetizar eesquematizar os dados advindos das matérias dassensações. A condição a priori de conhecimento daNatureza passa pela dicotomia entre inteligível esensível; tal dicotomia, na filosofia transcendental,aparece ao modo de conceitos e intuições. No decorrerda análise da doutrina das faculdades, relacionada aoconhecimento, teríamos que enfatizar o papel da razãojunto ao entendimento e à sensibilidade; por hora,manteremos somente o foco na distinção entresensibilidade e entendimento, ou seja, entre intuição econceito. A sensibilidade a priori, a sensibilidadetranscendental, possui intuições como espécies deaberturas, de acessos aos dados exteriores, de acessosàquilo que aparece possuindo uma forma espacial edecorre numa sequência temporal. O espaço e temposão intuições puras a priori, são formas puras querecebem grandezas intensivas advindas das matérias dassensações. O entendimento, por sua vez, seria afaculdade detentora dos conceitos a priori. No âmbitodo conhecimento, aparece um juízo compreendido comorelação entre conceitos puros do entendimento. A funçãodo entendimento é a de emitir juízos sobre as intuiçõessensíveis, trata-se de juízos determinantes. Kant, o autordesta maneira de filosofar transcendental, aponta aomodo de dedução que tais juízos são determinantes

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013porque possuem em si toda objetividade, que possibilita

o conhecimento em torno do que ocorre. Kant apresentaum primeiro sentido de estético quando se refere aojuízo-de-sentido-estético; tal sentido é relacionado ànecessidade da forma pura da sensibilidade comocondição de possibilidade para o conhecimento. O juízode sentido estético não quer dizer que seja a intuiçãoque o emite; mas sim, o entendimento. Ora, o segundosignificado de estético remete para outro tipo de relaçãoentre o entendimento e a intuição, tal relação é aquelaque se dá entre o entendimento e a imaginação nãomais no âmbito do conhecimento; mas sim, dosentimento de prazer e desprazer que ocorre no sujeitoquando a imaginação tem por função refletir à formado objeto. Kant denomina a este, segundo tipo, de juízoestético de reflexão. Todavia, o dado peculiar a observaré o significado de forma que aparece na terceira crítica.O que seria a forma? “A forma é o que a imaginaçãoreflete de um objeto em oposição ao elemento materialdas sensações que esse objeto provoca enquanto existe eage sobre nós” (Deleuze, PLK, 66). Deleuze após estaresposta, por demais precisa, assinala que as matériasdas sensações, as grandezas intensivas, não podem serditas belas, somente se “fôssemos capazes, por nossaimaginação, de refletir as vibrações das quais elas secompõem”. O exemplo da cor e do som ilustra muitobem este aspecto, uma vez que a cor e o som não podemser ditos belos, mas somente o efeito que estes provocamna faculdade de sentir. Kant, segundo Deleuze, alegaque a cor e o som são demasiadamente materiais e estãopor demais entranhados nos nossos sentidos para se

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38. refletirem assim na imaginação e são mais auxiliares

do que propriamente elementos da beleza. “O essencialé o desenho, a composição, que são precisamentemanifestações da reflexão formal”. (Kant, CFJ, 14). Aforma, portanto é relacionada ao sentimento de prazer;porém, o que motiva tal sentimento não é apreocupação com a existência do objeto, mas somentea ocorrência de efeitos na faculdade de sentir. Osignificado de estético remete então para o exercícioentre a imaginação e o entendimento. Kant deixa bemexposto que existe um acordo livre entre a imaginaçãoe o entendimento, e nas sequências destas análisesaparece, posteriormente à explicação sobre o juízo degosto concernente ao belo, um detalhamento sobre osentimento do sublime; neste tipo de juízo de gosto aodizermos: algo é sublime, um desacordo entre aimaginação e a razão se instala. A imaginação nãoreflete mais, não há uma forma refletida, após afecçõespor parte dos objetos, não há mais objetos; a ocorrênciade algo na imaginação faz esta se deparar com oincomensurável e com as intensidades da natureza, osublime, então, se apresenta como matemático edinâmico. O desacordo entre imaginação e razão seinstala devido à imaginação não possuir mais a mesmaliberdade que possuía quando do sentimento de prazerem relação ao belo. A imaginação não consegueapreender o imenso e o excesso de potência da naturezatornando-se impotente diante da mesma. Ora, oensinamento de Kant diz que somente a razão,enquanto faculdade, pode lidar com Ideias totalizantes.A Ideia do todo da natureza somente pode pertencer à

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013razão e não a imaginação, portanto esta fica limitada

em seu exercício; mas, este limite leva a imaginação ase deparar com a razão como faculdade que aimpulsiona para o ilimitado. A razão enquanto afaculdade que contém a Ideia do sensível impulsiona aimaginação a ultrapassar seu limite. De início, aimaginação quando se sente ilimitada e impotente emalcançar a imensidão e potencia excessiva da naturezaacaba por “experimentar” o sentimento de desprazerou dor; mas, ao apreender-se impulsionada pela razãoexperimenta o prazer de ser direcionada para osuprassensível. A conclusão preliminar e apenasesboçada, em relação à temática da gênese, indica queo que fica implícito nestas considerações kantianas dobelo e do sublime é o primado da subjetividade; o quedeixa nítido as inquirições de Maimon acerca da gênesedo sensível: não existe dado sensível ou fato dos quaisdevemos buscar as condições de possibilidades, ou seja,o condicionamento transcendental.

A TEORIA DAS DIFERENCIAIS E A GÊNESE TRANSCENDENTAL

A concepção de gênese em Deleuze remetejustamente ao que forçou Kant a escrever sobre aimportância da reflexão muitos anos após ter publicadoa Crítica da Razão Pura. O motivo que o levou a publicara Critica da Faculdade de Julgar derivou doquestionamento filosófico proposto pelo pensadorlituano Salomon Maimon; o núcleo do seuquestionamento consiste em interpelar o mestre deKönnisberg sobre a mediação entre o universal e oparticular. A passagem do inteligível ao sensível é o focode seu distanciamento em relação a Kant. A gênese

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38. ideal do sensível aparece como o modo deste pensador

resistir ao esquematismo transcendental da imaginaçãoassinalado por Kant. Na CFJ, se pode constatar que setrata de explicitar as afecções que ocorrem ao sujeito e,por este viés, se pode adentrar nas observações deMaimon acerca da não existência de um dado sensívelque afetaria o sujeito através de sua receptividade, istoé, a intuição. As considerações de Maimon em tornodeste tema remetem para a seguinte recusa: não existeo dado sensível e nem muito menos a coisa em si. Trata-se de explicitar a regra de produção do dado sensível, enesta tentativa de detalhamento o pensador lituano abreoutras modalidades de se pensar a intuição e o conceito– a sensibilidade e o entendimento – a fim de ultrapassartal posição. Maimon afirma de modo decisivo que aintuição não consegue pensar o processo, isto é, a regrade produção de um objeto. A posição de Deleuze emtorno de uma filosofia da diferença tem sua fonte nasobservações deste pensador, que pela primeira vez sepergunta pelas regras de produção dos objetos, ou seja,de suas relações diferenciais. Neste sentido, se fazimportante discorrer sobre as relações de Maimon com afilosofia transcendental. Kant escreveu três criticas e nãodeixou de receber objeções de seus seguidores, objeçõesestas que deixaram variadas interpretações sobre pontosde sua filosofia. Salomon Maimon, por exemplo,considerava a Crítica da Razão Pura uma obra magnífica,porém insuficiente. As suas objeções incidem sobre aaplicação de condições a priori sobre algo de a posteriorie, se perguntava: como elucidar o trânsito dos dados dasensibilidade às categorias do entendimento através da

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aquilo que Maimon teorizou em torno da filosofiakantiana. O crivo maimoniano se dá em relação ao queKant afirmara sobre as antecipações da percepção. Estetema é de extrema relevância, uma vez que Deleuzerecorre ao conceito de intensidade quando trata depensar a diferença. Kant, ao afirmar que toda sensaçãoé dotada de uma grandeza intensiva, deixa em abertoum campo de investigação que repercute até hoje, nascontendas filosóficas em relação ao domínio dotranscendental. O passo que remete à organização dosdados sensíveis exige obviamente que tais multiplicidadessejam unificadas. O que dá unidade ao diverso, segundoa determinação de Kant, é a forma da subjetividadetranscendental. Maimon se inscreve justamente nesteplano de oposição ao modo kantiano de pensar asmatérias das sensações: as intensidades. No Ensaio deFilosofia Transcendental faz as seguintes observaçõesem relação ao conteúdo da crítica kantiana em tornoda razão pura: 1) Como se explica que um conceito apriori se aplique a uma intuição a priori, dado que sãoheterogêneos? 2) Além dos conceitos puros doentendimento, não deveríamos introduzir algo novo pararesolver a questão quid júris, isto é, para compreender omodo como o entendimento legisla sobre a sensibilidade?Esse algo novo, ele denomina de Ideias do entendimento.Maimon procura corrigir o modo como Kant, nasantecipações das percepções, pensa a matéria dassensações – as grandezas intensivas. A matéria dassensações, pensada por ele, não é recebidapassivamente pelas formas puras da sensibilidade, mas

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38. posta pelo Eu como um somatório de relações

diferenciais. A consciência para este pensador éconstituinte e é constituída por relações diferenciais.Maimon é o principal responsável pela passagem dafilosofia transcendental ao idealismo, sendo este oaspecto que nos faz pesquisar o seu ensaio filosóficosobre o pensamento kantiano. Quando Deleuze afirma,em Lógica do Sentido, a noção de campo transcendentalsem sujeito, está sinalizando para as críticas tecidaspor Maimon ao transcendental pensado por Kant. Emseu livro A dobra – Leibniz e o barroco expõe a críticade Maimon em relação a Kant utilizando o exemplodas cores; a cor verde aparece de modo claro, mastrazendo relações diferenciais que são obscuras paranós; justamente por que a cor verde resulta das relaçõesdiferenciais entre o amarelo e o azul e, por sua vez, oamarelo resulta de outras relações diferenciais. Domesmo modo, o espaço e o tempo não são dadosacabados, mas engendrados a partir de relaçõesdiferenciais; o espaço e o tempo aparecem como o nexodessas relações. Tanto o sujeito quanto o objeto passama ser pensados respectivamente como: o conjunto ounexo das relações diferenciais na consciência e oproduto dessas relações na percepção consciente.Deleuze sublinha os pormenores da questão ao afirmar:

Se se objeta, com Kant, que tal concepção reintroduzum entendimento infinito, talvez seja precisoresponder que o infinito é, aqui, apenas como que apresença de um inconsciente no entendimentofinito, a presença de um impensado no pensamentofinito, de um não-eu no finito, presença que opróprio Kant, por sua vez, será forçado a descobrir,

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013quando vier a cavar a diferença entre um eu

determinante e um eu determinável. Para Maimon,como para Leibniz, a determinação recíproca dasdiferenciais remete não a um entendimento divinomas às pequenas percepções como representantes domundo no eu finito (a relação com o entendimentoinfinito decorre daí, e não o inverso). O infinito atualno eu finito é exatamente a posição de equilíbrio oudesequilíbrio barroco. (DELEUZE, 1991, p. 151-152).

Gerard Lebrun em seu texto, O Transcendentale sua imagem, expõe como o pensamento de Deleuze éextremamente devedor daquele elaborado porMaimon; as controvérsias em relação à representaçãokantiana, como retomada ativa do que se apresenta,delineiam a proximidade do autor do Versuch überTranszendentalphilosophie em relação aos temas propostospelo filósofo francês.

“E vale a pena voltar a esse autor, classificado entreos minores pela universidade, mas não por Deleuze,que saúda seu ‘gênio filosófico’ e lhe dedica páginasparticularmente esclarecedoras quanto à suaprópria atitude em relação a Kant.” (LEBRUN,2000, p. 214). As explicações enriquecedoras deLebrun sobre as réplicas de Maimon a Kant,sugerem que o Ensaio sobre a filosofiatranscendental começa pela discussão sobre oconhecimento como síntese do que se apresenta e,sobretudo pela clivagem kantiana entrereceptividade e espontaneidade. “Ora, é ao valordessa divisão que Maimon pretende voltar, e énesse espírito que ele examina os pressupostos daCrítica.” (LEBRUN, idem , idem).

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38. A importância de Maimon para Deleuze, no que

se refere à retomada da herança leibniziana, éprontamente vista nas suas afirmações, onde se destacaa ênfase nas micro-percepções como elementosgenéticos da percepção consciente: “diferenciais daconsciência”.

Mais ainda que Fichte, Salomon Maimon, o primeiropós-kantiano a retornar a Leibniz, extrai todas asconseqüências de um tal automatismo psíquico dapercepção: longe da percepção supor um objetocapaz de nos afetar e condições sob as quaisseríamos afetáveis, a determinação recíproca dasdiferenças (dy/dx) traz consigo a determinaçãocompleta do objeto como percepção e adeterminabilidade do espaço-tempo como condição.Para além do método kantiano de condicionamento,Maimon restitui um método de gênese internasubjetiva: entre o vermelho e o verde há nãosomente uma diferença empírica exterior, mas umconceito de diferença interna tal que “o modo de suadiferencial constitui o objeto particular, e as relaçõesdas diferenciais constituem as relações entre osdiferentes objetos.” (Deleuze, 1991, p. 150-151).

Lebrun assinala como Kant não aceitou a críticade Maimon à representação, a qual consideravatributária da relação sujeito/objeto, e como umpressuposto que conduzia à dificuldades insuperáveis.A elevação ao absoluto de dados que são próprios daconsciência finita, de uma faculdade de conhecer finita,foi inteiramente recusada e, a resposta de Kant ao artigode Maimon, o qual aparece na “Carta a Marcus Herz”de 18/05/1789, sinaliza para tal recusa, ao mesmo

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013tempo em que deixa bem nítida a impossibilidade de

se aceitar que o objeto da percepção – assim como suacondição – seja investigado a partir da sua constituição.

A herança maimonia atravessa por inteiro ascriticas de Deleuze ao campo transcendental advindoda filosofia transcendental de Kant, assim como dafenomenologia de Husserl; e, nessas críticas sempreaparece à indagação pela potência genética de tal campo.

Deleuze quando faz todas essas referências aMaimon está indicando o que aparece no capítulo II doVersuch über die Transzendentalphilosophie (Ensaio sobrea filosofia transcendental). Maimon, nesse capítulo 1,afirma que toda representação sensível, considerada nelamesma, como qualidade, deve ser abstraída de todaquantidade, tanto extensiva quanto intensiva. Arepresentação da cor vermelha, não deve ser pensadacomo um ponto matemático, mas sim como um pontofísico ou como a diferencial de uma extensão. Noentanto, as representações sensíveis, tomadas nelasmesmas, e consideradas como simples diferenciais, nãoconstituem ainda nenhuma consciência. A consciênciaprocede de uma atividade do poder de pensar. Quandoeu digo: Eu tenho consciência de alguma coisa, eu nãoentendo por alguma coisa, algo fora da consciência,mas um modo determinado da consciência, quer dizer,da ação mesma da consciência. Maimon pensa arepresentação através de um novo sentido, para ele,esta consiste não em tornar presente algo que não existemais, pelo contrário, trata-se da presentação, isto é, da

1 Maimon, S. Essai sur la philosophie transcendentale, traduction,presentation e notes par Jean-Baptiste Scherrrer, Paris: Vrin,1989, p. 49ss.

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38. ação de representar como existente algo que ainda

poderá existir. A gênese ideal do sensível, pensada porMaimon, permite que Deleuze teça críticas aocondicionamento transcendental rumando assim paraum empirismo transcendental. O deslocamento efetuadopor ele, em relação ao pensamento de Maimon, vai emdireção ao tema da Ideia do entendimento.

A CONCEPÇÃO DE FILOSOFIA TRANSCENDENTAL EM DELEUZE

A filosofia transcendental, segundo Deleuze,rompeu com a metafísica quando começou a pensar osentido ao invés das essências, como ele mesmo diz: adisjunção essência/aparência foi destituída pelaconjunção aparição e sentido; o que caracteriza afilosofia transcendental é pensar o sentido pelaprodutividade genética. Esta afirmação, sobre aprodutividade genética advinda da filosofiatranscendental, no entanto, não remete à Kant; sendoeste viés que procuraremos sublinhar para que tenhamosum melhor domínio sobre o tema a ser tratado, odistanciamento do condicionamento transcendentalkantiano – e consequentemente a aproximação dagênese do sentido – requer um minucioso estudo daconcepção que Deleuze possui da filosofiatranscendental. Salomon Maimon aparece novamentecomo aquele que questionou como a gênese ideal dosensível deve ser pormenorizada a fim de sair dasdificuldades resultantes do esquematismo transcendentalproposto por Kant. A obra de Gilles Deleuze apresentainúmeras passagens referentes à filosofia transcendental.As suas afirmações de que estaria fazendo empirismotranscendental, não deixam de causar embaraços e,

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013também de confundi-lo com um fenomenólogo. A

redução fenomenológica, ao colocar o mundo fora decircuito, descortina um novo campo de experiência ditatranscendental, pelo menos, é esta afirmação deHusserl, no parágrafo 11 das Meditações cartesianas. Oempirismo transcendental de Deleuze não é o mesmoque aquele que dá tônica à fenomenologia. Asvertentes, crítica e fenomenológica, da filosofiatranscendental não apresentam nada em comum como que Deleuze denomina um campo transcendentalpré-individual e impessoal. No que pese as criticas deSartre à fenomenologia de Husserl, críticas estas citadaspor Deleuze em algumas séries da Lógica do sentido,nada nos confere a certeza de que estaria fazendo umreparo às investigações husserlianas, no que concerneaos modos intencionais de doação de sentido. Estadúvida, quase hiperbólica, chega ao fim ao deparamo-nos com algumas pontuações feitas por Deleuze acercada maneira de Salomon Maimon expor a suacompreensão da filosofia transcendental de Kant. Notexto de Gerard Lebrun, “O Transcendental e a suaimagem”, encontramos a problematização em tornodesta noção, a filosofia transcendental, em Deleuze, éjustamente àquela que remete para uma concepção degênese e, desde aí, acompanhamos as referencias deDeleuze ao que denominou de vice-dicção em Leibniz.

DELEUZE E MAIMON: DO PONTO DE VISTA EM RELAÇÃO AO

KANTISMO

A discussão, ao final do método de dramatização,entre Alex Philonenko e Gilles Deleuze, acerca doestatuto da Ideia nos pós-kantianos, deixa-nos entrever

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38. a influência do pensamento de Salomon Maimon na

obra do pensador francês. A ênfase dada por Deleuze àintensidade decorre das criticas de Maimon aoesquematismo transcendental da imaginação. O filósofolituano esboça uma teoria das diferenciais em que sepergunta sobre um modo de sair do condicionamentotranscendental e, por esta via, começa por adentrar nocapítulo da analítica transcendental denominado deantecipações da percepção. O tema da gênese ideal dosensível aparece em Maimon de modo exemplar, sendoque suas investidas em torno das relações diferenciaisincidem sobre o que determina o real sensível. Maimon,em suas críticas ao esquematismo da imaginaçãotranscendental, se pergunta como a heterogeneidadeentre a intuição e o conceito pode ser explicada, levando-se em conta que os conceitos são a priori. A sua réplicase dá em relação ao aspecto demasiadamente formal dacrítica kantiana, ele se pergunta pela matéria dassensações. O tema da antecipação das percepçõesconcerne diretamente às grandezas intensivas, sendo poreste viés que Deleuze levará adiante a concepção dediferença como intensidade. Maimon elabora um novomodo de pensar a Ideia como relações diferenciais; a suacrítica ao kantismo se constitui em não aceitar que asmatérias das sensações sejam recebidas passivamente pelasensibilidade. Deleuze, em Diferença e repetição, nocapítulo “Síntese Ideal do Sensível”, expõe o modo comoMaimon pensa a determinação. Vejamos a citação:

Quando digo: o vermelho é diferente do verde, oconceito da diferença, enquanto puro conceito doentendimento, não é considerado como a relação

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013das qualidades sensíveis (senão a questão kantiana

quid juris permaneceria não resolvida). Mas, ou deacordo com a teoria de Kant, como a relação de seusespaços enquanto formas a priori, ou de acordo comminha teoria, como a relação de suas diferenciais quesão Idéias a priori [...] A regra particular da produçãode um objeto, ou o modo de sua diferencial, eis oque faz um objeto particular, e as relações entre osdiferentes objetos nascem das relações de suasdiferenciais. (DELEUZE, 2006, p. 249).

Deleuze ao partir da afirmação que somente háontologia do sentido, não deixa de seguir os passos deseu professor Hypollite, sobretudo em seu livro “Lógicae existência em Hegel”. No comentário a este texto, oqual aparece em “A ilha deserta”, vemos como Deleuzeprocura fazer uma ontologia da diferença pura, semrestituir o segundo mundo das essências puras e,também sem fixar-se na filosofia transcendentalkantiana que substituiu a essência pelo sentido. Noentanto, o que mais chama atenção nas consideraçõesde Deleuze sobre a intensidade é a proximidade com oque Maimon observara em suas recusas aoposicionamento kantiano em relação às matérias dassensações. O formalismo kantiano é questionado porapenas antecipar o conteúdo das percepções dizendoque os mesmos variam de zero a zero grau. Asgrandezas intensivas se apresentam como um instante,um todo sem partes, e que variam de modo repentino.

Deleuze, ao apresentar o Método de dramatização,para a Sociedade Francesa de Filosofia, se reporta aosdinamismos espaço-temporais e ao estatuto da Ideia.Nestas remissões, ficam notórias as controvérsias com

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38. a filosofia transcendental, sobretudo no que concerne

à sua terminologia, uma vez que os conceitosassinalados derivam desta maneira de filosofar. Aofinal, deste artigo, retornaremos ao estatuto da Ideia eao método de dramatização em Deleuze comparando-o à teoria das diferenciais em Maimon e aoesquematismo transcendental da imaginação em Kant.

A CONCEPÇÃO DE GÊNESE EM DELEUZE

Tratar da postura de Deleuze, em torno da noçãode gênese é, antes de tudo, sublinhar que sua filosofiavisa ultrapassar a dualidade entre conceito e intuição,portanto ao pensarmos a sua concepção de gênese é omesmo do que sinalizar para esta ultrapassagem. Ora,mas esta ultrapassagem requer que aspectos do kantismosejam suprimidos, isto é, que sejam submetidos a examescríticos a fim de depurar aquilo que consiste deinconcebível como liame entre o conceito e a intuição.A conclusão a que se chega é que a obsessão pela gêneseé nada mais nada menos do que um deslocamento noâmbito da filosofia transcendental. A relaçãoincisivamente apontada entre Deleuze e Maimon podeser entrevista nesta citação do primeiro: “SalomonMaimon é quem propõe um remanejamento fundamentalda Crítica, ultrapassando a dualidade do conceito e daintuição”. (DR, p. 248). No decorrer de suas análisesnos deparamos com observações muito valiosas em tornodaquilo que se denomina harmonia pré-estabelecida, qualseja: a dualidade entre conceito e intuição restaura estamodalidade de harmonia, uma vez que um sendoexterior ao outro, somente podem entrar em relaçãoatravés do esquema transcendental da imaginação.

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013Deleuze não hesita em afirmar que tal relação entre o

que se deixa determinar e o que impõe a determinação,não é outra do que aquela que remete ao condicionamentotranscendental. Mas, vejamos este condicionamento nãoé algo simples, mas o que traz embutido é a conservaçãodo princípio de identidade; e dado que a observação dadiferença entre conceito e intuição é negligenciada,decorre desta inobservância um detalhe que remete aaspectos fundamentais da doutrina kantiana como, porexemplo, a dedução transcendental da passagem àscategorias. A diferença entre conceito e intuição exigeum princípio de diferença e não um princípio deidentidade entre as mesmas. O posicionamento deDeleuze é afirmar que a diferença jamais deve ser pensadacomo alguma coisa que deriva da identidade. Nestemomento extremamente oportuno, assistimos asconsiderações de Deleuze em torno de Maimon.

O gênio de Maimon consiste em mostrar quanto oponto de vista do condicionamento é insuficiente parauma filosofia transcendental: os dois termos dadiferença devem ser igualmente pensados – isto é, adeterminabilidade deve ela própria ser pensada comoultrapassando-se na direção de um princípio dedeterminação recíproca. (DELEUZE, 2006, p. 248).

Neste ponto do percurso, que busca a concepçãode gênese em Deleuze, deparamo-nos com a relaçãoentre as condições da experiência possível e os objetosenquanto fenômenos. A passagem à deduçãotranscendental das categorias é uma peça essencial dadoutrina kantiana, nesta fica exposto que as condiçõesda experiência possível são as mesmas do que aquelas

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38. que fundamentam à existência dos objetos. O princípio

de identidade mantém a semelhança entre condição econdicionado. Kant deixa muito bem exposto que aexperiência somente é possível devido ao a priori queantecipa tal possibilidade. “A dedução provará que todasas percepções possíveis são estruturadas de tal modo quenossos juízos empíricos que pretendem a objetividadepreenchem exatamente as condições, as quais, no caso,são estipuladas por essas regras de sínteses que são ascategorias.” (LEBRUN, p. 210). A recusa da fundaçãokantiana do conhecimento é ao mesmo tempo aformulação de uma filosofia da diferença que sesustenta a partir de um método genético, ou seja, peloqual o ponto de vista do condicionamento équestionado e ultrapassado. Maimon quando afirma asua teoria das diferenciais a relaciona à regra particularda produção de um objeto. Portanto, trata-se de buscarnão as condições de identidade entre os conceitos purosdo entendimento e os objetos existentes; mas sim, dese debruçar sobre a diferença enquanto conceito, dadoque a fundação do conhecimento é legitimada por Kantatravés da negligência em relação ao dado peculiar dadiferença entre conceito e intuição. Maimon, ao lançarà alternativa, para melhor pensar a diferença, indica oseguinte: nós ou concordamos com Kant e a sua teoriados espaços a priori; ou com a minha teoria, como arelação de suas diferenciais que são Ideias a priori, ouseja, com as relações que constituem tanto o objetoparticular como o espaço e tempo e, sobretudo asrelações diferenciais que constituem a consciência quepode apreender, antes de tudo, o sensível. Se, fizermos

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013considerações mais contundentes poder-se-ia dizer que

o sensível não é apreendido como algo fora daconsciência; na verdade, trata-se de indicar a gênese dosensível; mas, sobretudo encontrar os traçosmaimonianos que indicam o modo pelo qual aconsciência é constituída como limiar sensível, podendoeste ser compreendido como o modo constitutivo daconsciência, ou seja, o limite de inteligibilidade queenvolve o sentido de experiência. Neste aspecto, se podedizer que não existe, em Maimon, um mundo sensívelinteiramente separado do inteligível. A contestação deMaimon em relação à filosofia transcendental é esta:não há de modo nenhum dado sensível, seja ele objetoou fenômeno, nem muito menos coisa em si. Aconcepção de gênese em Deleuze é o prolongamentodas objeções de Maimon, porém com o cuidado deapresentar a Ideia com um estatuto inteiramente outrodo que proposto pelo pensador lituano.

A DISTINÇÃO ENTRE MAIMON E DELEUZE NO QUE DIZ

RESPEITO À CONCEPÇÃO DE GÊNESE

É notório, em Diferença e Repetição, o apreço deDeleuze pela noção de Ideia em Maimon, mas é emrelação à concepção de gênese, entre estes doispensadores, que devemos atentar para fazermosdistinções mais precisas entre as maneiras dos mesmosconceberem tal noção. A Ideia remete justamente àsrelações diferenciais que constituem não somente o“dado sensível”, como o espaço-tempo, como já foraafirmado, mas também a consciência. Neste ponto, maisuma vez devemos sublinhar o aspecto importantíssimoda passagem da filosofia transcendental ao idealismo;

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38. mas, sobretudo a passagem para uma filosofia da

diferença em que a Ideia ganha um novo estatuto. Nãose pode deixar escapar esta preciosa passagem em quea filosofia ganha um novo desdobramento. Maimon,não somente põe em xeque o esquematismotranscendental kantiano, mas o modo em que ascondições da experiência são as mesmas que regem aexistência dos objetos, isto é, a dedução transcendentaldas categorias a priori. O que está em jogo é a pretensãode legitimar o conhecimento sem levar em conta talconsideração. Tomemos, a título de exemplo, umacitação do próprio Kant:

O leitor deverá, pois, persuadir-se da imprescindívelnecessidade dessa dedução transcendental, antes dedar um único passo no campo da razão pura; deoutro modo procede às cegas e, após diversosextravios, tem de novamente regressar à incertezade onde partiu. (KANT, 1994, p. 122).

Deleuze, em seu livro A Filosofia crítica de Kant,sublinha o aspecto da gênese relacionado àproblemática das faculdades quando do sublime. Nodecorrer desta digressão encontramos o que promovee direciona a imaginação, isto é, a Ideia. O estatuto daIdeia em Deleuze remete às considerações tecidas porKant na Crítica da Faculdade de Julgar, justamentequando não está preocupado com a existência dosobjetos e nem muito menos da coisa em si. Kant, aoprocurar o que somente afeta o sujeito e denomina aeste efeito de forma, como aquilo que é refletido pelaimaginação, está justamente sinalizando que tal buscaderiva do questionamento de Maimon de que não há dado

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013sensível, o que o interessa é a gênese ideal do sensível.

Deleuze, por seu lado, expõe esta busca de Kant emlinhas preciosas: “À primeira vista, atribuímos ao objetonatural, isto é, à Natureza sensível, essa imensidão quereduz nossa imaginação à impotência”. (DELEUZE, 1976,p. 70). Não obstante, nota-se que o dado sensível estásendo deixado de lado; e aquele aspecto que aparecena CRP, relativo à refutação do idealismo, mostrandoque o idealismo transcendental tem estreita relação coma realidade empírica, já não preocupa Kant. Trata-se,com todas as letras, de buscar o que Maimon indicaraem no “Versuch”; e, Kant não tarda em afirmar quesomente a Razão nos faz buscar a totalidade da Naturezasensível, ou seja, a Ideia se encontra misturada quasede modo imperceptível na Natureza.

Lebrun assinala como o posicionamento deMaimon, em relação à coisa em si, exigirá certosprocedimentos que Kant recusa admitir; mas, logo sedobrará a tais exigências a partir das considerações sobreo sublime: “Como se poderia mostrar, por exemplo, que acoisa em si resulta de uma ilusão? Para tanto seria precisoadotar, em relação à natureza de nosso conhecimento,um distanciamento que nada autoriza”. (LEBRUN, 2000,p. 218). O distanciamento em apreço, afirma Lebrun,aparecerá nos extraordinários, § 76 e § 77, da Crítica daFaculdade de Julgar; e, indica a apresentação de J. B.Scherer que aparece na tradução francesa do Versuch:

A Auseinandersetzung [discussão] de Maimon coma Crítica da razão pura não pode realmente seformular senão nos termos da meditação de Kantinicia na Crítica da Faculdade de Julgar. Maimon se

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38. antecipa, por assim dizer, ao pensamento de Kant,

percebendo de saída e com uma segurançaadmirável o próprio nó da filosofia [...] o problemada mediação do universal e do particular. 2

(MAIMON, 1989, p. 20).

Deleuze, por sua vez, no artigo A Ideia de gênesena estética de Kant, sinaliza para a objeção dos pós-kantianos, notadamente Maimon, em relação aocondicionamento transcendental. Ora, se os objetospossuem os mesmos princípios que as condições queasseguram a experiência, restam então observar que omodo de apreendê-los, isto é, a intuição é limitada paradiscernir sobre a sua diferença para com o conceito. Aquestão em jogo é esta diferença transcendental entreconceito e intuição. O questionamento de Maimon éprecioso por adicionar elementos que o filósofo deKönnisberg deixou passar despercebido. A intuiçãosomente lida com os objetos já constituídos, e por serela também constituída, não consegue apreender a regrada produção dos objetos e nem muito menos de simesmo. A Ideia do entendimento tem esta função deregra da produção de um objeto, por isto somente oentendimento consegue apreender a linha reta sendotraçada, enquanto a intuição somente a apreendeenquanto já traçada.

A distinção entre as concepções de gênese emMaimon e Deleuze, a nosso ver, é a seguinte: o primeiroestá atento em mostrar a regra de produção de umobjeto a partir das suas diferenciais, tanto é que sinaliza

2 S. Maimon, Essai sur la philosophie transcendentale, trad. J. B.Scherer, Paris, Vrin, 1989, p. 20.

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013para a impotência da intuição em aprender tal regra;

o segundo parte destas pontuações: 1) O campotranscendental sem sujeito; 2) O problema da individuaçãoa partir de um campo transcendental problemático providode singularidades pré-individuais; 3) A Ideia, como virtual,apresentando dois princípios de determinação completa ede determinação recíproca: uma coisa antes ser atual,inteira, já é completa, justamente por ser envolvida porrelações diferenciais – o método de dramatização; 4) Afilosofia enquanto criação de conceitos e personagensconceituais a partir de um plano de imanência. A distinçãobásica a fazer, entre Maimon e Deleuze, é a seguinte: osegundo retira a Ideia de pertencimento a qualquerfaculdade, no caso o entendimento, porém deve serassinalado que mantém a importância da Ideia quandose reporta ao método de dramatização. Vejamos umacitação de Maimon que ressalta proximidade:

A construção nos mostra que a linha reta é o caminhomais curto entre dois pontos, não o que faz que elaseja o caminho mais curto. É preciso perguntar-se oque é isso que faz dela o caminho mais curto, comose chega a essa proposição, e de onde ela tira suanecessidade intrínseca. (MAIMON, 1989, p. 67-68).

A citação deixa-nos entrever a crítica de Maimonao esquematismo transcendental da imaginaçãoelaborado por Kant, este mesmo exemplo serve paraDeleuze propor o método de dramatização ao dizer:

O que denominamos drama assemelha-se,particularmente, ao esquema kantiano. Com efeito,segundo Kant, o esquema é uma determinação apriori do espaço e do tempo correspondente a um

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38. conceito: o mais curto é o drama, o sonho ou,

sobretudo, o pesadelo da reta. (DELEUZE, 2006, p.134-135).

O diálogo controverso com a filosofiatranscendental kantiana fica muito bem explicitado, eDeleuze sempre recorre aos pós-kantianos quando tratade mostrar a importância dos dinamismos espaço-temporais.

De certo modo, todo o pós-kantismo tentou elucidaro mistério desta arte oculta, de acordo com a qual adeterminações dinâmicas espaço-temporais têmverdadeiramente o poder de dramatizar um conceito,embora elas sejam de uma natureza totalmentedistinta da dele. (DELEUZE, 2006, p. 135).

Deleuze considera como pós-kantismo todo oprocedimento advindo de Maimon, e assinala que épreciso prestar bastante a atenção nas distinções entreIdeia, conceito e dinamismos espaço-temporais O seucuidado em apresentar estes detalhes, não tem outrosentido do que aquele que remete para a crítica doesquematismo transcendental da imaginação. A partirdeste questionamento não se leva mais em conta ascondições de possibilidade da experiência; mas sim, ascondições reais da experiência. A determinação do realpassa ser o foco deste detalhamento em que a Ideia passaa ser pensada como virtual e os dinamismos espaço-temporais como atualizadores do real-virtual. A oposiçãoentre possível e real é destituída em prol de umpensamento que destaca que o real é sempre encontradonuma relação indissociável entre o virtual e o atual. Apassagem do virtual ao atual é o foco do pensamento

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013deleuziano, ou seja, o seu modo de pensar destaca que

o par virtual-atual e ó modo como a experiência realse dá. No entanto, a distinção entre Ideia e conceito émais um foco da preocupação deleuziana de apresentara linhas de atualização da diferença.

A resposta talvez esteja na direção que certos pós-kantianos indicavam: os dinamismos espaço-temporais puros têm o poder de dramatizar osconceitos porque eles, primeiramente, atualizam,encarnam Ideias. (DELEUZE, 2006, p. 135).

A distinção entre conceito e Ideia é importante,e primeiramente será exposta a maneira de Deleuzepensar a Ideia; para em seguida expor as suasconsiderações acerca do que vem a ser conceito. “UmaIdeia tem duas características principais. De um lado,ela consiste num conjunto de relações diferenciais entreelementos destituídos de forma sensível e de função,elementos que só existem pela sua determinação recíproca.(DELEUZE, 2006, p. 135). Na sequência veremos aspreocupações de Deleuze em seguir as orientações deMaimon em fazer uma filosofia que possa ultrapassara cláusula kantiana. “Todo objeto é submetido áscondições necessárias da experiência possível”. (LEBRUN,2000, p. 222). No percurso que vai da Ideia às coisas,enquanto uma banda atualizada desta virtualidade,encontramos meios de compreender como o conceitosomente pode ser parte de deste processo dediferençação; os dinamismos espaço-temporaisdramatizam o conceito, justamente porque o conceito éatualização de um problema: o conceito é diferençado.O livro, O que é a filosofia?, escrito em conjunto com

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38. Guattari, possui um capítulo – mas poderíamos chamar

de um platô, já que trata das regiões de intensidadescontínuas – que explicita o que vem a ser conceito. Nolimite, o conceito trata de expressar um acontecimento.

GÊNESE, IDEIA E ATO DE CRIAÇÃO DE CONCEITOS

Em se tratando de Deleuze, o que nos resta senão continuar escrevendo sobre o modo deacontecimento? O conceito para este pensador é o atoda filosofia, mas não somente o filósofo tem esta tarefa,a de criar conceito, mas também a de criar personagensconceituais. No entanto, para que tais atos de criaçõesse efetuem, o filósofo precisa traçar um filtro que oafaste dos vertiginosos e incessantes movimentos emque velocidades infinitas se esboçam e desaparecem.O caos, diz Deleuze, não o conhecemos, somentefalamos dele por abstração; trata-se de uma estranhaIdeia, uma Ideia que não totaliza, que não fundamenta,que não sustenta, que não dá suporte. A Ideia, nestecaso, seria o a-fundamento; já o conceito seria o quehabita a superfície destes incessantes e vertiginososmovimentos. Mas, a fim de traçar movimentos simplesna complexidade, iremos nos deter nesteacontecimento, também muito estranho, denominadode conceito. No último tratado, escrito por Deleuze-Guattari, deparamo-nos com o que a díade denominaafetos e perceptos e que fazem uma tríade com osconceitos. “O conceito diz o acontecimento, não a essênciaou a coisa.” O conceito é pensado como umacontecimento, vejamos um acontecimento comoaquele que remete à filosofia como filha da cidade. Acomposição do espaço urbano engloba múltiplas vidas,

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013a vida das pessoas que transitam em suas ruas; essas

pessoas, quando retornam de seus afazeres diários,habitam suas casas. As vidas que habitam uma cidadepossuem algo muito sutil, elas por um fio se tornamquase imperceptíveis quando da passagem do espaçoexterior urbano para o espaço habitável da casa. Nestapassagem, um acontecimento se dá e diferencia ointerior do exterior, ou seja, quando os habitantes dacidade se encontram no interior de suas casas, já nãopossuem os mesmos hábitos de quando estão na rua, eeste aspecto peculiar já não é o mesmo que caracterizacada cidadão em seus registros; mas, desde aí, severifica que devemos buscar meios para distinguir entreinterior e exterior, uma vez que é preciso diferenciar oconceito das demais maneiras de pensar. Quandoalguém se recolhe para sua casa, ergue diante de sium meio que o distingue, mas não o separa daquelescom quem convive no espaço urbano. Mas, este espaço,que é a casa, o torna distinto dos demais; e, já não émais este alguém um como qualquer outro; o que odistingue, além de ser um espaço, é também um tempodemasiadamente outro do que aquele que regula acidade. Trata-se, portanto, de um modo deexplicitarmos o que vem a ser o conceito; no espaçoda casa, temos o que fora erguido por fundamentosque a separam da rua propriamente dita; e algo passoua se dá ali onde quase não havia nada: a casa, obangalô, a oca, a barraca, o barraco e o conceito trazemproximidades com ato de pensar. O ato de conceber éaquele que se aproxima do carregar algo dentro de si;tal ato é dito concepção cujo sentido remete, por

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38. exemplo, a toda aquela que traz uma vida dentro de si:

a casa traz com ela várias vidas, o conceito traz dentrode si as intensidades e velocidades infinitas – o caos jáera. A casa se aproxima então daquilo que gostaríamosde dizer conceito. No entanto, quando se trata de discutirà filosofia, a distinção entre conceito e opinião érelevante. O que seria a distinção básica entre doxa econceito? A tradição filosófica nos educou mediante aassertiva que sinaliza para a tendência ao conceito. Napior das hipóteses, a opinião significa a vida do homemrelacionado à empiria e submetido a conhecimentosapressados e ligeiros sobre o mundo. A finalidade dafilosofia é superar a vida empírica do homem pelo Saber,pela Ideia, pelo Conceito. Deleuze-Guattari, no entanto,como nos diz Michel Foucault, não seguem esta linhafilosófica:

Se poderia dizer que Deleuze-Guattari amam tãopouco o poder que eles buscaram neutralizar osefeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Porisso os jogos e as armadilhas que se encontramespalhados em todo o livro, fazem de sua traduçãouma verdadeira façanha. Mas não são armadilhasfamiliares de retórica, essas que buscam seduzir oleitor, sem que ele esteja consciente da manipulação,e que finda por assumir a causa dos autores contrasua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as dohumor: tanto os convites a se deixar expulsar, adespedir-se do texto batendo a porta. O livro fazpensar que é apenas o humor e o jogo aí onde,contudo, alguma coisa de essencial se passa, algumacoisa que é da maior seriedade: a perseguição atodas as formas de fascismo, desde aquelas,

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013colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até

aquelas formas pequenas que fazem a amena tiraniadas vidas cotidianas.

O conceito é próximo de uma “casa-viva”, ou seja,daquilo que ocorre do lado de dentro, sem contudoperder o vínculo com o lado de fora. Em se tratando devida, de modo que seja sentida e vivida junto a si, isto é,a dita imanência. Todavia, não se pode perder de vistaque estar do lado dentro é relacionar-se com o meio.Ora, o que se observa é um dado peculiar: o lado dedentro nunca é inteiramente de dentro, o meio vincula-se a este através de um aspecto, de dobra, que permiteo contato, deste entre dois, como o dentro do fora.

Na concepção deleuzeana de gênese, queaparece desde Lógica do Sentido, mas com mais ênfasenos textos, A Ideia de gênese na estética de Kant e noMétodo de dramatização, encontramos um novo modode pensar a Ideia que diferente daquele proposto pelofilósofo lituano Salomon Maimon - por retirá-la dopertencimento a qualquer faculdade. A teoria dasdiferenciais da consciência, elaborada por Maimon,ganha enorme atenção por parte de Deleuze ao definira filosofia como uma teoria das multiplicidadespossuidora de dois princípios básicos: o dedeterminação completa e o de determinação recíproca.A definição supracitada deixa-nos entrever asderivações do esforço de Maimon em pensar de outramaneira a diferença transcendental entre conceito eintuição. O pensar e o sentir, como dois modos distintose separados de posicionar-se no mundo, percorrem asfilosofias de Maimon e Deleuze como a de muitos outros

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38. pensadores e porque não dizer de quase toda a filosofia

após o platonismo. Maimon se pergunta pela gêneseideal do sensível, nesta indagação deixa em aberto umcampo de investigação sobre o limiar da consciência.Neste percurso, de indagações, aparecem algumasafirmações acerca do dualismo entre conceito e intuição,o entendimento e a sensibilidade são apresentados daseguinte maneira: a intuição não precisa traçar umalinha para apreendê-la, o entendimento precisa traçá-la, no sentido de fazer o ponto entrar em movimento etornar-se linha. A questão que se apresenta deixa emaberto a escolha entre duas opções: continuar a fazerfilosofia transcendental ou retroceder para o campo dasconsiderações metafísicas tais quais foram propostas porLeibniz. A filosofia da diferença em Deleuze, sobretudoa sua concepção de gênese, é uma recusa a estas duasalternativas, tanto é que a noção de campotranscendental sem sujeito e diferenciado como potênciagenética ganha uma importância vital nos textosposteriores ao livro Lógica do Sentido. Tal recusa, podeser medida em seu alcance quando nos deparamos comas noções de plano de imanência, criação de conceitose personagens conceituais. No texto – O que é a filosofia?– consideramos que aparecia uma estranha Ideia,derivada da noção de caos. Tal estranheza, desta Ideia,deriva justamente de não conseguirmos apreender o caosse não através de um filtro, de um crivo ou do queDeleuze denomina de plano de imanência. Hánitidamente um cuidado terminológico com esta noção,a tal ponto de não vermos mais aparecer, no texto emapreço, a noção de Ideia. A citação de Foucault é muito

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013proveitosa, uma que vez que, a nosso ver, a noção de

Ideia é um meio de propagar fascismos filosóficos. Mas,prestemos atenção na citação de Deleuze-Guattari:

O plano de imanência não é um conceito, nem oconceito de todos os conceitos. Se estes fossemconfundíveis, nada impediria de os conceitos seunificarem, ou de tornarem-se universais e deperderem suas singularidades, mas também nadaimpediria o plano de perder sua abertura. A filosofiaé um construtivismo, e o construtivismo tem doisaspectos complementares, que diferem em natureza:criar conceitos e traçar um plano. (DELEUZE-GUATTARI, 2001, p. 51).

A mudança de terminologia é facilmentedetectada quando começamos a nos sentir à vontadeem relação à noção de plano de imanência, e tal noçãonos deixa diante da atividade propriamente filosófica,e raramente podemos apreciar alguém pensando,falando e escrevendo sobre a sua vida filosófica,inclusive fazendo um cântico, um panegírico, davelhice, da terceiridade. É o acontece com Deleuze-Guattari: a expressão de fazer filosofia como ato decriação de conceitos a partir do traçado de um planode imanência. “O plano envolve movimentos infinitosque o percorrem e retornam, mas os conceitos sãovelocidades infinitas de movimentos finitos, quepercorrem cada vez seus próprios componentes”.(DELEUZE-GUATTARI, 2001, p. 11).

Não se pode perder de vista que o infinito é apresença de relações diferenciais, de singularidades,de elementos não formados e sem função; mas, também

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38. é um índice que Deleuze não retorna à metafísica

dogmática e nem muito menos está propondo umretorno ao pré-kantismo. O infinito, neste aspecto, é nadamais nada menos do que o campo problemático, o realvirtual. O plano de imanência libera e permite ao filósoforelacionar uma imagem do pensamento e uma matériado Ser. Não temos mais a distinção entre conceito eintuição, mas o movimento infinito, a velocidade infinitaque remetem ao pensamento e ao Ser, um joga para ooutro. Podemos tomar como exemplo a leitura dos textospré-socráticos inaugurada por Deleuze-Guattari:

O movimento infinito é duplo, e não há senão umadobra de um a outro. É neste sentido que se diz quepensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou antes, omovimento não é a imagem do pensamento sem sertambém matéria do ser. Quando salta o pensamentode Tales, é como água que ele retorna. Quando opensamento do Heráclito se faz polemós, é o fogoque retorna sobre ele. É uma mesma velocidade deum lado e do outro: ‘o átomo vai tão rápido quantoo pensamento’. O plano de imanência tem duasfaces, como Pensamento e Natureza, como Physis ecomo Noûs. (DELEUZE-GUATTARI, 2001, p. 54).

DO CAMPO TRANSCENDENTAL AO PLANO DE IMANÊNCIA

A potência genética do campo transcendentalresultará naquilo que mais tarde Deleuze irá chamarde plano de imanência. Nesse ponto, consideramos sernecessário apresentar o itinerário, dessa passagem, quevai da ideia de campo transcendental até o que Deleuzechama, em seu último texto, de imanência: uma vida.Deleuze procura pensar a filosofia fora de uma imagem

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013dogmática do pensamento, daí fazer recurso a aspectos

da filosofia que são por ele considerados como uma novaimagem do pensamento. Sua filosofia, nesse sentido,procura situar-se naquilo que ele chama de imanênciaem oposição à transcendência, e seu desenvolvimentoapresenta, sobretudo, a preocupação em pensar arelação entre pensamento e vida. O pensamento é umato de criação e consequentemente um modo de vida.Ora, o que pretendemos destacar, nessa passagem, sãoas considerações de Deleuze sobre as relações de Bergsone Sartre 3 com a imanência.

Deleuze reverencia Bergson e Sartre como doisfilósofos que pensaram a imanência sem a colocaremcomo imanente a algo. Bergson aparece em váriosmomentos da obra de Deleuze, que a ele dedica osartigos “Bergson” e “A concepção da diferença em Bergson”,produzidos em 1954 e publicados em 1956. No anoseguinte, publica o Bergsonismo, livro em que não sepode encontrar ainda qualquer referência à ideia deplano de imanência, nem tampouco à de campotranscendental. Não vemos, no bergsonismo, sequerremissão ao primeiro capítulo de Matéria e memória(Seleção das Imagens), que em 1983 se tornará tema emseu primeiro livro sobre filosofia e cinema: “A imagem-movimento”. Este livro toma como referência o campoprévio das imagens de Matéria e Memória – primeirosistema de imagens em que elas agem e reagem entre sisem se reportarem a um centro fixo ou sem que apareça

3 Não podemos deixar de observar que é o nome de Spinozaque brilha na constelação de filósofos que Deleuze consideracomo sendo da imanência.

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38. ali qualquer intervalo. Nesse primeiro livro sobre filosofia

e cinema, Deleuze já aplica o termo plano de imanênciapara tratar desse sistema de percepção pura ou damatéria em movimento. Nesse trabalho, Deleuzeobserva que no capítulo IV da Evolução criadora,publicado em 1907, Bergson acusava o cinema deproduzir uma ilusão de movimento através de cortesfixos no tempo; enquanto que em Matéria e memória,escrito onze anos antes, já aparecia o cinema comoimagem movimento 4. Em seu segundo livro sobrecinema “A imagem-tempo”, escrito em 1985, Deleuzeestuda o cinema a partir do terceiro capítulo de Matériae memória “Sobrevivência das imagens”. “O que é a

4 Cf. Gilles Deleuze, Conversações, tradução: Peter Pal Pelbart,Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 63-64. “É muito curioso. Tenhoa impressão de que as concepções filosóficas modernas daimaginação não levam em conta o cinema; ou elas crêem nomovimento, mas suprimem a imagem, ou elas mantêm aimagem, mas suprimem dela o movimento. É curioso queSartre, em L’imaginarie, considere todos os tipos de imagem,exceto a imagem cinematográfica. Merleau-Ponty seinteressava pelo cinema, mas para confrontá-lo com ascondições gerais da percepção e do comportamento. A situaçãode Bergson, em Matéria e memória, é única, ou melhor, éMatéria e memória que é um livro único, extraordinário naobra de Bergson. Ele não coloca mais o movimento do ladoda duração, mas por um lado estabelece uma identidadeabsoluta entre movimento-matéria-imagem, e, por outro,descobre um tempo que é a coexistência de todos os níveis deduração (a matéria sendo o nível mais inferior). Fellini, diziarecentemente que somos ao mesmo tempo a infância, avelhice, a maturidade: é totalmente bergsoniano. Em Matériae memória há, portanto as núpcias de um puro espiritualismocom um materialismo radical”.

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013filosofia?” livro escrito em parceria com Felix Guattari

e publicado em 1991, Bergson é exaltado por terpensado a imanência 5. Sartre, também comparece eminúmeras citações de Deleuze nestes pontos elogiososà imanência. Observamos, entretanto, que Deleuzedesde a “Lógica do sentido” até “A Imanência: umavida...” lança séries de hesitações e de rupturas aofilósofo existencialista para depois fazer referênciaspositivas a esse autor. Na Lógica do sentido essashesitações e rupturas têm como alvo a noção de campotranscendental 6 que Deleuze indica ser imprescindívelpara tratar o tema do sentido. Sua crítica em relação aessa noção utilizada por Sartre se dá, sobretudo pelasligações desse filósofo com a fenomenologia de Husserl,mesmo após ter mostrado que o ego transcendental étranscendente à consciência. A consciência enquanto

5 Cf. Gilles Deleuze O que é a filosofia? tradução: Bento PradoJúnior e José Alberto Alonso Muñoz – Rio de Janeiro : Ed. 34,1992, p. 66-67. “Aconteceu com Bergson, uma vez: o princípiode Matéria e memória traça um plano que corta o caos, aomesmo tempo movimento infinito de uma matéria que nãopára de se propagar e a imagem de um pensamento, que nãopára de fazer proliferar por toda a parte uma pura consciênciade direito”.

6 Cf. Gilles Deleuze, Lógica do Sentido – tradução: Luiz RobertoSalinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 101. “Emverdade a doação de sentido a partir de uma quase causaimanente e a gênese estática que se segue para as outrasdimensões da proposição não podem ser realizar senão emum campo transcendental que responderia as questões queSartre punha em seu artigo de 1937: um campo transcendentalimpessoal não tendo a forma de uma consciência pessoalsintética, a de uma identidade subjetiva – o sujeito, aocontrário sendo sempre constituído”.

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38. intencionalidade 7 é um dos motivos de crítica, isto é,

a consciência ainda mantém um primado de unificaçãocentrado no Eu e na pessoa. Todavia, as consideraçõesde Deleuze, sobre Sartre, mudam de teor quando nosdeparamos com O que é a filosofia?; onde o campotranscendental 8 aparece articulado à imanência e acontribuição de Sartre exaltada. Nesse texto, tambémpodem ser observadas algumas referências críticas aBergson, no que diz respeito às relações entre filosofiae ciência, associadas, sobretudo, à distinção entreestado de coisas e acontecimento. O sobrevoo, pensadocomo acontecimento 9, paira sobre os estados de coisase corpos possuindo uma relação diferente com o tempo.

7 Cf. Idem, ibdem, p. 101n. “A ideia de um campo transcendentalimpessoal ou pré-pessoal, produtor do Eu, assim como do Ego éde uma grande importância. O que impede esta tese dedesenvolver todas as suas conseqüências em Sartre é que o campotranscendental impessoal é ainda determinado como o de umaconsciência que deve então unificar-se por si mesma e sem euatravés de um jogo de intencionalidades ou retenções puras”.

8 Gilles Deleuze O que é a filosofia?, p. 65-66. “A suposição deSartre, de um campo transcendental impessoal devolve aimanência seus direitos. Um tal plano é talvez um empirismoradical; ele não apresenta um fluxo de vivido imanente a umsujeito, e que se individualiza no que pertence a um eu. Elenão apresenta senão acontecimentos, isto é mundo possíveisenquanto conceitos, e outrem, como expressões de mundospossíveis e personagens conceituais. O acontecimento nãoremete ao vivido a um sujeito transcendente = Eu, mas remeteao sobrevôo imanente de um campo sem sujeito”.

9 Idem, ibdem, p. 203-204. “Um sistema atual, um estado decoisas ou um domínio de função, se definem, de qualquermaneira, como um tempo entre dois instantes, ou entre muitosinstantes. É por isso que, quando Bergson diz [Continua]

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013É em seu último texto, publicado em 1995, “A

Imanência: uma vida”, que o campo transcendental 10

vai ser articulado ao plano de imanência e este definido

[Continuação da Nota 9] que entre dois instantes, por maispróximos que sejam, há sempre tempo, ele ainda não sai dodomínio das funções e somente introduz nele um pouco de vivido.Mas, quando subimos para o virtual, quando nos voltamos paraa virtualidade, que se atualiza no estado de coisas, descobrimosuma realidade inteiramente diferente, onde não temos mais decuidar do que ocorre de um ponto a outro, de um instante aoutro, porque ela transborda toda função possível. De acordocom os termos familiares, que se pôde emprestar de um cientista,o acontecimento “não se preocupa com o lugar em que está, epouco se importa em saber desde quando ele existe”, de modoque a arte, e mesmo a filosofia, podem apreendê-lo melhor quea ciência. Não é mais o tempo que está entre dois instantes, é oacontecimento que é um entretempo: o entretempo não é eterno,mas também não é tempo, é devir. O entre-tempo, oacontecimento, é sempre um tempo morto, lá onde nada se passa,uma espera infinita que já passou infinitamente, espera e reserva”.

10 Gilles Deleuze. L’imannence: une vie, Paris, Philosophie, n. 47,Minuit, 1995 – A imanência; uma vida., tradução de JorgeVasconcellos e Hércules Quintanilha, in: Gilles Deleuze: imagensde um filósofo da imanência, Londrina, UEL, 1997. “O que é umcampo transcendental? Ele se distingue da experiência desdeque não se remeta a um objeto nem pertença a um sujeito(representação empírica). Também se apresenta como puracorrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexivae impessoal, duração qualitativa da consciência sem eu. Podeparecer curioso que o transcendental se defina por tais dadosimediatos: falaremos de empirismo transcendental em oposiçãoa tudo o que faz o mundo do sujeito e do objeto. Há algo deselvagem e de potente neste empirismo transcendental. Não éo elemento da sensação (o empirismo simples), já que asensação não passa de um corte na corrente da consciênciaabsoluta. É a passagem, por mais próximas que sejam duassensações, a passagem de uma á outra se dá como um devir,como aumento e diminuição de potência ( qualidade virtual)”.

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38. como “uma vida”. E o que vem a ser uma vida? A

filosofia, sob inspiração aristotélica, sempre consideroua existência da ciência apenas do universal. Deleuzeretoma a pesquisa dos pensadores franciscanosmedievais da escola de Oxford e também a de Espinoza.A hecceidade, considerada por Duns Scot como arealidade última, compreende o indivíduo comodetentor de uma essência singular irredutível à essênciauniversal e específica. Quando Deleuze afirma uma vidacomo pura imanência, antepondo ao termo vida oartigo indefinido, uma, não é para a indeterminaçãoque ele aponta, mas para a determinação de umasingularidade. Esse texto, “A imanência: uma vida...”traz em suas linhas primorosas uma grande exaltaçãodos filósofos anteriormente criticados pelo autor.Husserl, por exemplo, é criticado, em “O que é afilosofia?”, por conceber a imanência a uma subjetividadetranscendental como um fluxo de vivido. No entanto,como esse vivido puro e mesmo selvagem, não pertenceinteiramente ao eu que o representa para si, é nasregiões de não pertença que se reestabelece nohorizonte algo de transcendente: uma vez sob a formade uma “transcendência imanente ou primordial” deum mundo povoado de objetos intencionais; umasegunda vez como transcendência privilegiada de ummundo intersubjetivo povoado de outros eus; umaterceira vez como transcendência objetiva de ummundo povoado de formações culturais e pelacomunidade dos homens. Apesar de todas essasconsiderações críticas, Husserl vai ser exaltado comoaquele que permitiu a Sartre elaborar a tese sobre a

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013transcendência do ego e consequentemente do campo

transcendental. 11 É na perspectiva da história dafilosofia apresentada como a instauração de um planode imanência que a importância de Sartre e Bergsonse agiganta, revelando a parcela de contribuição dessesfilósofos que pensaram o campo transcendental e oplano de imanência sem a submissão a algotranscendente como uma consciência, um sujeito ouum objeto. É assim que Bergson e Sartre participamda elaboração daquilo que Deleuze em seu textoderradeiro nomeou de empirismo transcendental12.

DO ATUAL E DO VIRTUAL

O último escrito por Deleuze, cujo título é OAtual e o Virtual, retoma considerações bergsonianas

11 Idem, ibdem, “Até mesmo Husserl reconhece: O ser do mundoé necessariamente transcendente à consciência, mesmo naevidência originária, e permanece necessariamentetranscendente. Mas isso não muda em nada o fato de que todatranscendência se constitui unicamente na vida da consciência,como inseparavelmente ligada à esta vida..(Meditationscartesiennes, Ed. Vrin, p. 52). Este será o ponto de partida dotexto de Sartre”.

12 Valéria Loturco da Silva, O empirismo transcendental na filosofiade Gilles Deleuze, dissertação de mestrado apresentada sob aorientação de Bento Prado Júnior ao Departamento de Filosofiada USP, em fevereiro de 2001, p. 221. “Nesse sentido, o empirismotranscendental define o próprio movimento da diferença, tendoem vista que o campo virtual não está submetido à identidade doEu ou da consciência, mas pode ser definido como sendo o exercerda diferença em si mesma. Então, o empirismo transcendental é ocaminho para se chegar à diferença. Agora, além de se definircomo um empirismo transcendental, o pensamento deleuzianotambém pode ser chamado de filosofia da diferença”.

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38. acerca do par virtual-atual, e apresenta, sobretudo,

articulações imprescindíveis acerca da noção de planode imanência.

O plano de imanência compreende a um só tempo ovirtual e sua atualização, sem que possa haver aílimite assimilável entre os dois. O atual é ocomplemento ou o produto, o objeto da atualização,mas esta tem por sujeito senão o virtual. A atualizaçãopertence ao virtual. A atualização do virtual é asingularidade ao passo que o próprio atual é aindividualidade constituída. O atual cai para fora doplano como fruto, ao passo que a atualização o reportaao plano como àquilo que converte o objeto emsujeito. (DELEUZE, 1996, p. 51).

Deleuze, neste texto, apresenta dois momentos:1) O atual sendo rodeado de múltiplas virtualidadesque se apresentam de modo cada vez mais extensos,tomando como exemplo a percepção que evocalembranças, e também quando uma partícula criaefêmeros. 2) O movimento em que o virtual se aproximado atual e dele não quase não se distingue, e toma comoexemplo o objeto atual e sua imagem virtual, umapartícula possui seu duplo virtual que dela se afastamuito pouco; a percepção atual tem sua próprialembrança. A citação a seguir resume esta duasdistinções:

Com efeito, como mostrava Bergson, a lembrançanão é uma imagem atual que se formaria após oobjeto percebido, mas a imagem virtual que coexistecom a percepção do objeto. A lembrança é a imagemvirtual contemporânea ao objeto atual, seu duplo,sua ‘imagem no espelho. (DELEUZE, 1996, p. 53).

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013Deleuze faz considerações sobre a relação entre

virtual e atual remetendo aos dois aspectos do tempo:1) Fazer passar o presente; 2) Conservar o passado.Nestas considerações se assiste ao tema da “obsessãopela gênese” na obra deste pensador que imprime umnovo ritmo ao afazer filosófico.

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