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1 Uso de biomassa tradicional como fonte de energia em residências um panorama do Brasil e do mundo Ana Paula de Souza Silva 1 Mônica Joelma do Nascimento Anater 2 Paola Mercadante Petry 3 Suani Texeira Coelho 4 RESUMO O uso da biomassa tradicional no mundo, tanto para fins de cocção quanto para aquecimento, representa uma grande parte do consumo mundial de energia. Essa realidade está presente principalmente em países emergentes com abundância de matéria-prima, como o Brasil. A biomassa tradicional é majoritariamente representada pela lenha oriunda de floresta nativa coletada e queimada para fins energéticos em residências, geralmente, sem outra opção energética. Assim, existe uma relação entre o uso da biomassa tradicional com o nível socioeconômico, bem como complicações na saúde dos usuários devido à queima dessa biomassa em ambiente doméstico. Esse trabalho tem como objetivo estudar o uso da biomassa tradicional como fonte de energia para uso doméstico no Brasil, pontuando as relações desse uso com o nível social, clima e cultura de cada região brasileira. O trabalho apresenta uma revisão bibliográfica desses aspectos no mundo e no Brasil. Os resultados mostram que há uma correlação entre o uso de biomassa tradicional e o nível socioeconômico de cada região e que fatores climáticos, como frio mais intenso em certos pontos geográficos, 1 Instituto de Energia e Ambiente - USP e Instituto de Pesquisas Tecnológicas - IPT 2 Instituto de Energia e Ambiente - USP 3 Instituto de Energia e Ambiente - USP 4 Instituto de Energia e Ambiente - USP

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Uso de biomassa tradicional como fonte de energia em residências

– um panorama do Brasil e do mundo

Ana Paula de Souza Silva1

Mônica Joelma do Nascimento Anater2

Paola Mercadante Petry3

Suani Texeira Coelho4

RESUMO

O uso da biomassa tradicional no mundo, tanto para fins de cocção quanto para

aquecimento, representa uma grande parte do consumo mundial de energia. Essa

realidade está presente principalmente em países emergentes com abundância de

matéria-prima, como o Brasil. A biomassa tradicional é majoritariamente representada

pela lenha oriunda de floresta nativa coletada e queimada para fins energéticos em

residências, geralmente, sem outra opção energética. Assim, existe uma relação entre

o uso da biomassa tradicional com o nível socioeconômico, bem como complicações

na saúde dos usuários devido à queima dessa biomassa em ambiente doméstico.

Esse trabalho tem como objetivo estudar o uso da biomassa tradicional como fonte de

energia para uso doméstico no Brasil, pontuando as relações desse uso com o nível

social, clima e cultura de cada região brasileira. O trabalho apresenta uma revisão

bibliográfica desses aspectos no mundo e no Brasil. Os resultados mostram que há

uma correlação entre o uso de biomassa tradicional e o nível socioeconômico de cada

região e que fatores climáticos, como frio mais intenso em certos pontos geográficos,

1 Instituto de Energia e Ambiente - USP e Instituto de Pesquisas Tecnológicas - IPT 2 Instituto de Energia e Ambiente - USP 3 Instituto de Energia e Ambiente - USP 4 Instituto de Energia e Ambiente - USP

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também influenciam no consumo de lenha residencial. Além disso, estudos atuais

preveem a diminuição gradativa do uso da biomassa tradicional e sua substituição por

fontes energéticas modernas, como biocombustíveis, biogás, eólica e solar.

Palavras-chave: Biomassa Tradicional; Uso residencial; cocção; Índice de

Desenvolvimento Humano.

ABSTRACT

The use of traditional biomass around the world for both cooking and heating purposes

still accounts for a large share of the world’s total energy consumption. Wood from

native forest, used for direct burning as firewood, is the main traditional biomass

source. In developing countries with high availability of raw material, like Brazil,

firewood is widely used for different uses. This type of energy source is usually related

to the users’ socioeconomic level, being an energy solution for poorer families. On the

other hand, the consumption of firewood is also associated with air pollution and

respiratory diseases caused by the combustion process. This work aims to analyze the

use of traditional biomass as a source of energy for domestic use in Brazil, in order to

verify the relationship between the social, climate and culture characteristics of each

political region with the use of firewood in residential consumption. A literature review

on these aspects was elaborated, considering the global level as well as the Brazilian

and its political regions’ levels. In addition, some estimates and analyses were drawn

to demonstrate the relationship between income and the option to use firewood as fuel.

The results show that there is a positive correlation between the use of traditional

biomass and the socioeconomic level of each Brazilian political region. Climatic

factors, such as low temperatures, are also related to a higher consumption of this

biofuel. Current studies indicate a trend for a gradual decrease in the use of traditional

biomass, being replaced by modern energy sources, such as biogas, wind and solar.

Keywords: Traditional Biomass; Domestic Use; cooking; Human Development Index.

1. INTRODUÇÃO

A utilização da biomassa como fonte energética tem início com o próprio

homem primitivo. O uso de lenha para gerar calor, aquecer o ambiente e cozinhar os

alimentos tiveram importantes impactos para a evolução humana e da organização

social. A obtenção da energia da biomassa também evoluiu e constitui parte

significativa da matriz energética global. Segundo dados da Agência Internacional de

Energia, publicados no Renewable Information Overview de 2017, 5,2% da matriz

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energética mundial no ano de 2015 foi composta de biomassa e resíduos e desse total

63,7% correspondeu à lenha e carvão vegetal (IEA 2017).

A biomassa na sua forma tradicional, entendida por lenha e carvão vegetal

obtido de forma não sustentável, é ainda a fonte de energia utilizada para fins de

sobrevivência, aquecimento e cocção, em muitos lugares do mundo. Isso é observado

principalmente em locais menos desenvolvidos, com menor Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) e baixa geração de renda, evidenciando disparidades

sociais e econômicas no uso dessa fonte de energia. Mais de 90% da população dos

países mais pobres da África, Ásia e América Latina dependem de lenha, carvão

vegetal e resíduos de cultivos como única fonte disponível para energia (GBEP, 2014).

Parte da biomassa tradicional não é renovável, pois muitas vezes é

proveniente de desmatamento e utilizada em fornos de baixa eficiência como fonte de

energia geralmente não comercial, e por vezes, advém da coleta ou catação manual.

Por outro lado, a biomassa moderna desconsidera a biomassa tradicional e inclui

madeira de floresta plantada, resíduos sólidos urbanos e da atividade agrícola, que

além do uso direto geração de calor, também é utilizada para geração de eletricidade.

Uma das questões envolvidas na contabilização do uso e geração de energia

renovável é que a biomassa, em muitos estudos, entra como fonte renovável tanto na

sua forma moderna quanto na tradicional mesmo que parte da biomassa tradicional

não seja obtida de forma renovável. Essa não distinção entre os tipos de biomassa

pode trazer uma interpretação equivocada da participação das renováveis, já que a

biomassa tradicional tem um peso considerável no consumo de energia primária no

mundo e não é produzida de forma sustentável.

A noção real da participação e evolução das energias renováveis no consumo

de energia no mundo passa por uma análise do uso doméstico de biomassa

tradicional, já que boa parte dessa biomassa é utilizada pela população para

cozimento de alimentos, principalmente em países em desenvolvimento e obtida de

forma não sustentável como foi dito anteriormente.

2. OBJETIVOS

O trabalho tem como objetivo geral descrever a situação do Brasil e do mundo

no aspecto da utilização da biomassa tradicional como fonte energética no setor

residencial, buscando estabelecer as particularidades do país em contraste com o

mundo, concentrando-se especificamente no seguinte questionamento: Qual é o perfil

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da utilização da biomassa tradicional de cada região brasileira? Especificamente

buscou-se:

- Apresentar o contexto mundial da utilização de biomassa tradicional (lenha

e carvão vegetal) como fonte de energia no setor residencial;

- Relacionar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com o nível de

utilização de lenha no Brasil;

- Verificar o uso de lenha pelo setor residencial para cocção de alimentos e

sua relação com a utilização de florestas nativas em cada região.

3. METODOLOGIA

Primeiramente, foi realizada uma pesquisa bibliográfica para apurar o estado-

da-arte do uso da biomassa tradicional no Brasil e mundo. Assim, foram elaborados

os itens 4.1 e 4.2. Para as estimativas do uso de biomassa tradicional pelo setor

residencial, descritos no item 4.3, foram utilizadas bases de dados de sites

governamentais.

Para dados do número de famílias que utilizam lenha como combustível

domesticamente para cocção de alimentos e aquecimento residencial utilizou-se

dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) (IBGE, 2017). Para os dados do

IDH de cada região foram utilizados dados disponíveis pelo Atlas Brasil (UNDP, 2013),

e o consumo de lenha e carvão vegetal foi obtido do Balanço Energético Nacional

(EPE, 2017) e IBGE (2017).

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

4.1 Uso tradicional de biomassa no Mundo

Em 2015, de acordo com REN21 (2017) a participação das energias

renováveis era de 19,3% da matriz energética mundial. Nesse valor estão sendo

contabilizadas a biomassa tradicional e energias renováveis modernas incluindo a

biomassa moderna. Parte da biomassa tradicional é obtida de forma não sustentável

correspondendo principalmente às regiões rurais de países em desenvolvimento onde

a população não tem acesso a outra forma de energia.

Ainda, 9,1% da matriz energética mundial correspondem à biomassa

tradicional (REN, 21). O seu uso, porém, vem diminuindo e sendo substituído por

fontes de energias mais eficientes. A biomassa moderna, a energia solar e a

geotérmica tiveram sua participação aumentada no fornecimento de energia para

geração de calor e eletricidade no âmbito residencial nos últimos anos.

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Em 2016, foi estimado que a população dependente de biomassa tradicional

até 2030 seja reduzida de 52% da população dos países em desenvolvimento para

42%, porém o número absoluto de pessoas dependentes tende a aumentar devido ao

crescimento da população mundial (GBEP, 2014). Assim comprova-se a manutenção

de um sistema desigual onde a distribuição e a disponibilidade de energia abrangem

a questão social e econômica.

Países em desenvolvimento como China, Índia e do continente africano,

tinham em 2011 mais de 50% da energia residencial proveniente de biomassa

tradicional, segundo o World Energy Outlook (2016), porém as estimativas apontam

que tendem a diminuir o uso dessa fonte nos próximos anos. A biomassa tradicional

já não é mais utilizada para fins residenciais em países da União Europeia e Estados

Unidos, e a tendência de ampliar o uso da biomassa moderna para aquecimento e

cocção, tende também a aumentar nesses países.

Países da África subsaariana, Sudeste Asiático, Índia, China e outros países

em desenvolvimento possuem uma parcela da população que não tem acesso à

eletricidade e a energia limpa para cocção (IEA, 2017). Essa parcela da população

permanece dependente da biomassa tradicional. Isso evidencia a relação do uso de

biomassa tradicional com o nível de desenvolvimento das nações. Assim, quanto

maiores as disparidades socioeconômicas, maior é o uso da biomassa tradicional.

4.1.1 - Relação do uso de biomassa tradicional e qualidade de vida

A queima da biomassa tradicional, como lenha ou carvão vegetal no interior

de residências, normalmente para cozinhar alimentos, em fornos tradicionais e pouco

eficientes, emite gases e material particulado que são prejudiciais à saúde dos

moradores. Essa informação, aliada à de que mais de 90% da população dos países

mais pobres da África, Ásia e América Latina dependem de lenha, carvão vegetal e

resíduos de cultivos como únicas fontes disponíveis para energia (GBEP, 2014), faz

com que a utilização de lenha e carvão vegetal em fornos ineficientes se torne um

grande problema social mundial.

Estima-se que milhões de mortes ocorram anualmente pela exposição direta

com particulados oriundos da queima da biomassa sólida (como lenha e carvão

vegetal) no processo de cocção em residências (KODROS et al., 2018). O grupo mais

afetado com a intoxicação e morte consequente da queima da biomassa tradicional

são mulheres e crianças, já que estas, na maioria dos países dependentes desse tipo

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de combustível, são responsáveis pela preparação dos alimentos e passam a maior

parte do tempo diretamente exportas a fumaça.

Além da preparação de alimentos, as mulheres geralmente são responsáveis

também pela procura, coleta, e transporte da biomassa até as residências, o que faz

com que o tempo gasto para realizar a tarefa “cozinhar” com biomassa tradicional seja

ainda maior. De acordo com Barnes e Sen (2013) que estudaram mais de 5 mil casas

em 180 vilas da Índia, esse tempo é, em média, 0,39 h maior do que quando utilizado

querosene, 0,44 h maior que quando utilizado GLP, e 0,24 h maior que quando

utilizado eletricidade. A utilização dessas fontes, em substituição a biomassa

tradicional, também reduz o tempo de coleta de combustível para quase zero. Os

mesmos autores mencionam que a simples troca de fogões pouco eficientes por

fogões melhorados a biomassa pode reduzir em 0,13 h o tempo necessário para

cocção de alimentos e 0,16 h o tempo de coleta do energético.

As enormes distâncias percorridas, o grande peso transportado e o enorme

tempo desperdiçado fazem com que haja uma “deterioração” das mulheres, tanto

fisicamente quanto social e economicamente. Assim, a possibilidade de outras

atividades, como estudos, lazer, agricultura, por exemplo, são reduzidas

consideravelmente (WARIS e ANTAHAL, 2014).

Estudos focados em países onde a biomassa tradicional é amplamente

utilizada, como em países da África, apontam a necessidade da substituição por

combustíveis com queima mais limpa, como o GLP, pela alta eficiência da queima,

baixos níveis de emissão e possibilidade de um melhor desenvolvimento pessoal das

famílias (YAMAMOTO et al., 2009).

Para todos os casos, como a diminuição do nível de fumaça, menos tempo

gasto na cocção, e menor consumo específico de lenha (kg/h), é essencial o uso de

fogões mais eficientes. Nesse sentido, diversos estudos apontam a possibilidade de

redução de mais de 50% no volume de lenha necessário para uma mesma finalidade

quando utilizado fogões eficientes em comparação aos tradicionais (AKPOOTU et al,

2014; JETTER et al, 2009; MACCARTY, 2008).

Programas governamentais de implantação de fogões mais eficientes, como

no caso da Índia, Nepal e Peru, apontaram uma ampla economia obtida pela utilização

dessas tecnologias, promovendo incremento no aquecimento doméstico e benefícios

ambientais além da redução de custos. A economia de consumo de combustível

nesses países variou ente 27% e 66%. Só no Paquistão, estima-se que a substituição

de fogões tradicionais por melhorados promoverá uma economia de 14,5 milhões de

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toneladas de biomassa por ano. Além disso, estudos apontam que se houvesse

investimento e incentivo para a troca do uso de biomassa tradicional por moderna, os

benefícios seriam ainda mais evidentes (BioenergyCrops, 2013).

4.2 Uso tradicional de biomassa no Brasil

No uso residencial, uma das principais funções da lenha no Brasil é a cocção

de alimentos. Conforme pode ser observado na Figura 1, no ano de 2016, para este

fim, foram destinadas 6.064.000 tep de lenha, enquanto para o mesmo ano foi

destinado 6.573.000 tep de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) (EPE, 2017).

Figura 1 – Principais fontes energéticas utilizadas no Brasil entre os anos de 2000 e 2016 com

finalidade de cocção. Fonte: Elaboração própria a partir de dados de EPE (2017).

O acesso fácil à madeira em regiões rurais faz com que a lenha seja um dos

principais recursos energéticos para o uso residencial, mesmo com o advento de

outras fontes de energia, como a eletricidade e o gás liquefeito de petróleo.

4.2.1 - Lenha x GLP

Na década de 1970 a lenha era o recurso energético mais utilizado nas

residências brasileiras, porém, o uso foi decaindo ao passar do tempo, principalmente

pelo incremento do acesso à eletricidade e à melhor infraestrutura de distribuição do

GLP, que atualmente está mais desenvolvida em todas as regiões, incluindo as áreas

rurais (ESCOBAR, 2016).

0

2000

4000

6000

8000

10000

12000

14000

16000

10

3 t

ep

Gás natural Lenha GLP Carvão vegetal

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A determinação da quantidade de lenha utilizada para cocção é um grande

desafio, pois esse tipo específico de biomassa está fora de estatísticas. Alguns

estados brasileiros já possuem legislação autorizando o uso de lenha catada, como o

caso de Minas Gerais, onde, a Resolução conjunta SEMAD/IEF nº 1905/2013

estabelece que: “extração de lenha em regime individual ou familiar para consumo

doméstico - atividade de catação de material lenhoso - até o limite de 33 st5 (trinta e

três estéreos) ao ano, por família, destinada à subsistência familiar, exclusivamente

para uso na propriedade”.

Apesar da regulamentada em alguns estados, o levantamento da real

quantidade utilizada pelas famílias não é realizada pelos órgãos governamentais

competentes, o que torna as estimativas de consumo imprecisas e de difícil

formulação no país.

A Figura 2 mostra o uso residencial da lenha e do GLP nos últimos 16 anos e

é possível observar que tanto a queda do uso da lenha quanto o aumento do uso de

GLP, principalmente a partir de 2011 são gradativos. Essa leve diferença entre os

anos pode estar ligada ao fato de que mesmo com a melhoria da infraestrutura de

distribuição do GLP em áreas rurais, a população continua mantendo o fogão a lenha

por questões de tradição e por fatores econômicos, já que a lenha está disponível nas

redondezas da casa.

Figura 2 – Utilização de lenha e GLP para fins domésticos entre os anos de 2000 e 2016. (Elaboração

própria a partir de dados de EPE (2017).

5 33 st equivalem a cerca de 22 m³ de lenha.

5000

5500

6000

6500

7000

7500

8000

8500

10

3te

p

Lenha GLP

r= -0,96

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Pela Figura 2 também é possível verificar a complementaridade das fontes

energéticas destinadas à cocção de alimentos. O consumo de lenha é inversamente

proporcional ao consumo de GLP, como verificado na correlação forte negativa

encontrada na comparação da energia dedicada a este fim nos últimos anos (r = -

0,96).

4.3 As particularidades de cada região do Brasil.

Como visto, a utilização de lenha como combustível para cocção nas

residências do Brasil, assim como no mundo, possui grande relação com a pobreza.

A Figura 3 mostra o consumo de lenha em TJ no Brasil no ano de 2015 destacando

as diferenças entre as regiões brasileiras e a relação do consumo de lenha com a

renda da população de cada região. Observa-se que os 10% mais pobres (D1) de

todas as regiões apresentam consumo maior de lenha no setor residencial. Por outro

lado, os 10% mais ricos (D10) apresentam menor consumo, principalmente devido ao

aumento de renda que torna outras alternativas de energia para cocção mais

acessíveis e disponíveis, como a eletricidade e o GLP, que substituem a lenha no

cotidiano das famílias.

Figura 3 – Consumo de lenha para cocção (em TJ) por decíl de renda para cada região brasileira no

ano de 2015. Fonte: adaptado de Coelho et al. (2017).

0

1

2

3

4

5

6

D1 D2 D3 D4 D5 D6 D7 D8 D9 D10

Co

nsu

mo

de

len

ha

em

TJ

Sudeste Sul Nordeste Norte Centro-oeste

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As Regiões Sul e Sudeste tem menor variação no uso de lenha entre os decis

de renda. Isso se deve a grande utilização desse combustível para fins de lazer e

aquecimento, e não apenas para cocção de subsistência. Já na região Nordeste, é

verificado uma grande variação no consumo de lenha entre os níveis de renda. Nesta

região, há ampla exploração do bioma caatinga para uso energético. Já a região Norte

se aproveita da exploração da Amazônia para utilizar a madeira que sobra de cortes

para utilizar em suas casas.

Em resumo, as regiões brasileiras possuem diferenças ambientais,

econômicas, sociais e culturais que refletem no acesso a e uso de lenha. O Quadro 1

sintetiza as principais características observadas nas regiões do Brasil.

Características Observadas nas Regiões brasileiras

Região Nordeste

A região Nordeste apresenta menor IDH de todas as regiões brasileiras e o maior consumo de lenha no setor residencial como mostrado na Figura 3. Possui o maior consumo total de lenha nas residências, sendo esse consumo mais expressivo nas famílias com menor renda o que caracteriza a população com grande dependência de biomassa tradicional.

Região Sul

A região sul tem o maior IDH e um consumo significativo de lenha no setor residencial, onde é utilizada em todos os níveis de renda. Porém como o Sul é uma região mais rica e mais fria entende-se que o uso da lenha, na sua maior parte, seja para aquecimento das residências e, no caso de preparo dos alimentos, uma opção cultural das famílias, além do costume e valorização dos fornos à lenha. Mesmo a parcela mais rica da população dessa região consume mais lenha que a parcela mais rica de qualquer outra região brasileira, o que mostra que há uma escolha em usar a lenha mesmo havendo acesso a outras fontes de energia.

Região Sudeste

A região Sudeste apresenta um IDH próximo da região Sul e um consumo de lenha variando pouco entre os diferentes níveis de renda, da mesma maneira que na região Sul, podendo apresentar um grande consumo por ser a região mais populosa do país. Vale ressaltar que o uso opcional da lenha na região sudeste também é significativo visto a cultura que valoriza forno à lenha. A quantidade de pizzarias e restaurantes com forno à lenha na região é uma evidencia desse costume. Além disso, a logística estruturada na região sudeste permite o acesso amplo ao GLP pelas residências.

Região Norte

A região Norte apresenta o segundo menor IDH, porém o uso de lenha não é tão expressivo, comparado a outras regiões. É preciso considerar que nessa região está concentrado apenas 3% da população brasileira, e, por isso há um número menor de famílias utilizando esse tipo de combustível no dia a dia. A falta de infraestrutura de transporte de GLP e a grande distância dos grandes centros de distribuição faz com que este combustível chegue mais caro nessas localidades, promovendo o maior uso de lenha para o consumo residencial (Sanches-Pereira et al, 2016).

Região Centro-Oeste

A região Centro-Oeste segue o padrão geral do país: quanto menor a renda maior o consumo residencial de lenha. Por apresentar uma cultura menos tradicional em

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relação aos fornos à lenha, o consumo de lenha se torna menos significativo na parcela da população mais rica, mostrando que o aumento da renda faz com que as famílias optem por energias modernas.

Quadro 1 – Características observadas nas regiões brasileiras referente ao uso doméstico de

biomassa tradicional

5. CONCLUSÕES

Dentro da matriz energética mundial, a biomassa tradicional ainda é

responsável por uma parcela de mais de 9% da energia primária consumida. Esse

padrão também é observado na matriz energética brasileira, principalmente pela

grande parcela de oferta de energia oriunda da lenha, para uso residencial. Verificou-

se a dificuldade em obter números que mostrem o real consumo de lenha no Brasil,

pelas bases de dados oficiais divergentes, pela parcela oriunda de desmatamento e,

ainda pela parcela oriunda de catação manual de difícil monitoramento.

O uso do GLP é uma realidade e, investimentos na infraestrutura de

abastecimento fez com que esse combustível chegasse às zonas rurais,

diversificando o uso de combustíveis nas residências. Ainda assim, a lenha tem um

consumo expressivo, possuindo relação direta com questões econômicas, culturais e

de acesso a biomassa tradicional. Como visto no decorrer do texto, GLP e lenha são

combustíveis complementares no uso residencial.

O uso lenha está correlacionado ao IDH e, em regiões com menores IDH’s, o

consumo de lenha para cocção é maior, como verificado no caso da região Nordeste.

Os padrões culturais também provocam influência no consumo de lenha pelas

famílias, como é o caso da região Sul, que pelo clima mais frio, a lenha é usada para

aquecimento e preparo de refeições familiares.

O consumo de lenha no Brasil e no mundo ainda é expressivo, evidenciando

a desigual distribuição do acesso à energia e a exposição das famílias mais pobres

aos ricos à saúde pela queima da biomassa tradicional em ambiente doméstico,

muitas vezes como única fonte energética. Portanto, verifica-se a necessidade da

criação de políticas públicas para universalizar o acesso à energia e alterar essa

realidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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