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URI - UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN – RS MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA EDIVANE SILVIA PIOVESAN EM BUSCA DA COCANHA: A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL ITALIANA NO RIO GRANDE DO SUL Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski Orientadora Frederico Westphalen, agosto, 2008.

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URI - UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN – RS MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

EDIVANE SILVIA PIOVESAN

EM BUSCA DA COCANHA: A (RE)CONSTRUÇÃO

DA IDENTIDADE CULTURAL ITALIANA

NO RIO GRANDE DO SUL

Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski Orientadora

Frederico Westphalen, agosto, 2008.

EDIVANE SILVIA PIOVESAN

EM BUSCA DA COCANHA: A (RE)CONSTRUÇÃO DA

IDENTIDADE CULTURAL ITALIANA NO RIO GRANDE DO SUL

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen, pelo Departamento de Lingüística, Letras e Artes.

Orientadora: Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski

Frederico Westphalen, agosto, 2008

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Pró-Reitoria de Ensino

Departamento de Lingüística, Letras e Artes Campus de Frederico Westphalen – RS

Mestrado em Letras - Área de Concentração: Literatura

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado

EM BUSCA DA COCANHA: A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL ITALIANA NO RIO GRANDE DO SUL

elaborada por EDIVANE SILVIA PIOVESAN

como requisito para obtenção do grau de Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________________________ Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski – URI/FW

(Orientadora)

___________________________________________ Membro Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves – URI/FW

___________________________________________

Membro Prof. Dr. Orlando Fonseca – UFSM

Frederico Westphalen, agosto, 2008

Dedico aos meus bisnonos Giovanni Marco Piovesan e José Tibolla, pela coragem de emigrar em busca da Cocanha, e a todos os seus descendentes.

AGRADECIMENTOS

Tudo que vive, não vive sozinho,

nem para si mesmo. (William Blake)

À equipe de professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração em Literatura,

pelos ensinamentos recebidos.

À professora Ada Maria Hemilewski, pela orientação dedicada.

À minha família, especialmente meu esposo Marcelo, pelo apoio necessário para que

este sonho se tornasse realidade.

À CAPES, pela disponibilização da bolsa de estudos, garantindo o sustento financeiro

necessário à realização deste mestrado.

[...] que cada um passe do local ao global, caminho difícil e mal-traçado, mas que devemos abrir. Não se esqueça nunca de onde você parte, mas deixe esse lugar e junte-se ao mundo. Ame o elo que une sua terra e a Terra e que faz parecerem-se o próximo e o estranho.

(Michel Serres)

IDENTIFICAÇÃO

Instituição de Ensino/Unidade

URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

Campus de Frederico Westphalen

Direção do Campus

Diretor Geral: Prof. César Luís Pinheiro

Diretora Acadêmica: Profª. Dr. Edite Maria Sudbrack

Diretor Administrativo: Nestor Henrique de Césaro

Departamento/Curso

Departamento de Lingüística, Letras e Artes – Chefe: Rosane Vontobel Rodrigues

Curso de Mestrado em Letras – Coordenadora: Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski

Disciplina:

Dissertação de Mestrado

Linha de Pesquisa

Memória e Identidade Cultural

Orientador(a):

Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski

Orientando(a):

Edivane Silvia Piovesan

RESUMO

A presente dissertação investiga como se processam as relações culturais dos imigrantes italianos que chegam ao Rio Grande do Sul no final do século XIX no romance A Cocanha, de José Clemente Pozenato. Através de teorias, o estudo busca perceber como esses imigrantes concebem a sua experiência, tendo como base elementos trazidos de seu país de origem (Itália). Inicialmente, são retomados alguns conceitos sobre os cruzamentos entre a Literatura e a História, denotando divergências e paralelos. A fundamentação teórica também é baseada em análises produzidas no campo dos Estudos Culturais, priorizando as reflexões sobre a identidade cultural. A pesquisa centra-se na possibilidade de reconstrução da identidade de um grupo que, inicialmente, não se vê como iguais, pois são oriundos de diferentes regiões da península Itálica, mas que, ao se instalarem no Brasil, tornam-se todos italianos, mantendo laços de identidade nacional em relação aos outros. A necessidade de vinculação a um grupo com o qual mantém maiores afinidades possibilita um dos mais importantes fenômenos de identificação coletiva: a identidade cultural, que vai sendo (re)construída num outro espaço. Palavras-chave: História. Literatura. Identidade cultural. Imigrantes italianos. A Cocanha.

ABSTRACT

This dissertation investigates of how Italian immigrants cultural relations are processed upon their arrival in Rio Grande do Sul in the late XIX century in the novel A Cocanha, by José Clemente Pozenato. Through the theories, the study seeks to perceive the way these immigrants conceive their experience; based on elements they brought of their home country (Italy). Initially, some concepts about the crossing between Literature and History are retaken, indicating the divergences and parallel. The theoretical ground also is based on the analyses produced in the field of Cultural Studies, prioritizing the reflection about the cultural identity. The research focuses on the possibility of identity reconstruction of people who come from a number of different regions from Italy and therefore do not experience a sense of unity but who, on establishing in Brazil, develop communal national ties, perceiving themselves as being, all of them, Italians. The need to find a group with which to share affinities makes collective identification possible: cultural identity is (re)built in the novel space. Key words: History. Literature. Cultural identity. Italian immigrants. A Cocanha.

SUMÁRIO

1 PONTO DE PARTIDA ......................................................................................................10

2 LITERATURA E HISTÓRIA: UMA VIAGEM ENTRE FRONTEIRAS ...................17

3 ENTRE-LUGAR: NO LIMIAR DAS FRONTEIRAS CULTURAIS ...........................36

4 A COCANHA: ENTRELAÇAMENTO DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO NA

(RE)CONTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL......................................................57

4.1 A História dos caminhos para a Cocanha..........................................................................59

4.2 Os caminhos da Cocanha na Literatura .............................................................................68

5 A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO PAÍS DA COCANHA79

5.1 (Re)construções individuais da identidade no entre-lugar ................................................80

5.2 (Re)construções da identidade coletiva no entre-lugar......................................................87

6 PORTO DE CHEGADA..................................................................................................102

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................111

1 PONTO DE PARTIDA

Partirà, la nave partirà, dove arriverà,

questo non si sà. Sarà come l'Arca di Noè.

(Sergio Endrigo, 1970)

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A viagem em busca da Cocanha, iniciada pelos emigrantes italianos no final do século

XIX, envolve a decisão de deixar uma vida sem perspectivas na pátria de origem e partir para

outra, repleta de esperanças em um futuro promissor. Esse lugar idílico é a América, o Brasil,

o Rio Grande do Sul, a serra gaúcha. Não importa o destino exato, mas sim, atravessar o

oceano e (re)construir a vida num novo espaço, fare la Merica. Partindo desse contexto, o

presente estudo, direcionado para a narrativa literária, aprofunda alguns aspectos históricos,

entrecruzando a História e a Literatura a fim de contribuir para a interpretação da identidade

cultural do imigrante italiano na região da serra do Rio Grande do Sul. A pesquisa insere-se

em uma das linhas mantidas pelo Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) – Campus de Frederico Westphalen,

com Área de Concentração em Literatura: Memória e Identidade Cultural (Linha de Pesquisa

II).

A investigação do processo de (re)construção da identidade cultural do imigrante

italiano torna-se um desafio pessoal para a pesquisadora: reconhecer sua própria história de

vida em representações históricas e literárias da imigração italiana. De modo geral, a narrativa

tradicional da imigração italiana para o Rio Grande do Sul apresenta-se praticamente como

uma epopéia, que se inicia quando da partida da aldeia natal e se encerra com a consolidação

da economia colonial em terras gaúchas. Essa característica narrativa ocorre tanto em histórias

de famílias, como na própria História e na Literatura. Isso acontece especialmente pelo fato de

que são escritas sob a influência de sentimentos diversos e depoimentos de relatos vividos

e/ou ouvidos. Além disso, a maioria dos textos é escrita por descendentes que carregam

consigo emoções, sentimentos nacionais, étnicos e regionais. Esse é também o caminho

trilhado pela pesquisadora no presente estudo.

A temática motiva, praticamente, toda a escrita de José Clemente Pozenato, escritor

gaúcho, intérprete da tradição italiana que deixa explícita sua influência de descendente de

imigrantes, registrando momentos significativos da História do Rio Grande do Sul, mais

especificadamente, da região serrana. Sua ficção, comprometida com a representação da

memória e da cultura italiana, vem ao encontro dos estudos desenvolvidos em várias

disciplinas do curso de Mestrado, situadas no âmbito das relações entre Literatura e História

e, especialmente, dos Estudos Culturais. Com isso, surge a possibilidade da realização de uma

série de leituras acerca da produção crítica e ficcional voltada para a (re)construção de

identidades deslocadas de suas origens. Assim, orientada pelas raízes familiares italianas e

gaúchas, repousa-se sobre o texto ficcional A Cocanha, de José Clemente Pozenato, e nele

vislumbra-se um autor comprometido com um lugar e uma gente.

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Seguindo a linha do referido curso, a (re)construção da identidade cultural do

imigrante italiano em terras gaúchas torna-se o objetivo primeiro deste trabalho que, para

efeito de seleção, promove um corte na produção literária do autor em estudo. Dessa maneira,

opta-se por trabalhar com a obra A Cocanha (2000), primeira parte da trilogia composta

também pelos romances O Quatrilho (1985) e A Babilônia (2006). A escolha é feita a partir

da leitura das obras literárias e de outras pesquisas desenvolvidas sobre o escritor em questão.

Assim, surge a necessidade do levantamento da fortuna crítica de José Clemente Pozenato,

oportunidade em que se constata a escassez de material para suprir tal demanda e o parco

interesse nacional pelas obras do escritor gaúcho. Praticamente todos os estudos realizados

são orientados na Universidade de Caxias do Sul (UCS), a partir dos trabalhos de Cinara

Ferreira Pavani, Cleodes Maria Piazza, João Cláudio Arendt e Julio Ribeiro.

Pozenato é poeta, ensaísta e ficcionista. O escritor nasce em 1938, em Santa Teresa,

localidade da cidade de São Francisco de Paula, na serra gaúcha. Radicado desde 1966 em

Caxias do Sul, onde é professor de Literatura Brasileira na UCS (Universidade de Caxias do

Sul), possui uma obra densa e diversificada: 1967 - Matrícula (poesia); 1971 - Vária figura

(poesia); 1974 - O regional e o universal na literatura gaúcha (ensaio), premiado pelo

Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul; 1982 - Carta de viagem (poesia); 1983 -

Meridiano (poesia); 1985 - O caso do martelo (novela policial), adaptada para a televisão e

traduzida para o espanhol e o italiano; 1985 - O quatrilho (romance histórico), adaptado para

o cinema; 1989 - O caso do loteamento clandestino (novela policial); 1990 - O jacaré da

lagoa (infantil); 1993 - Cánti Rústeghi (poesia); 1998 - O limpador de fogões (contos); 1999 -

Conversa solta (crônicas), coletânea publicada no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul; 2000 - O

caso do e-mail (novela policial); 2000 - A Cocanha (romance histórico); 2001 - Pisca-tudo

(infantil) e, em 2006 - A Babilônia (romance histórico).

Inicialmente, seguindo as lições de Mansueto Bernardi, Pozenato escreve obras

poéticas, passando então a dedicar-se à prosa. Seu primeiro romance com a temática da

imigração é O caso do Martelo, obra policial que se passa na zona de colonização italiana.

Posteriormente, escreve A Cocanha, O Quatrilho e A Babilônia. As obras de Pozenato

referenciam o processo cultural da imigração italiana na região serrana, sendo as primeiras de

valor literário sobre esse importante grupo étnico para a formação do Rio Grande do Sul e do

Brasil. Conforme Rita Terezinha Schmidt,

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[...] a ficção de Pozenato registra um momento significativo de revitalização do regional no quadro da literatura gaúcha contemporânea. Consciente da existência de uma lacuna sobre a região de colonização italiana a nível da abordagem romanesca, Pozenato empreende a tarefa de fixar determinados momentos da história da imigração italiana no Rio Grande do Sul inserindo-se, assim, num projeto coletivo de revisão da história formativa do Estado, do qual participam escritores tais como Assis Brasil e Aldyr Schlee, cujas obras tratam da matéria regional sob o prisma da história.1

A primeira obra da trilogia a ser escrita é O Quatrilho, história que serve de base para

o roteiro do filme dirigido por Fábio Barreto, em 1995, sendo um dos indicados, em 1996,

para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Posteriormente, Pozenato

publica A Cocanha, relatando acontecimentos anteriores aos do livro O Quatrilho. Com essa

obra, o autor recebe o Prêmio Joaquim Norberto (Romances Editados) - União Brasileira de

Escritores, em 2001. Por fim, com A Babilônia, o escritor e professor da Universidade de

Caxias do Sul (UCS) defende sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em

Letras da PUCRS, encerrando a trilogia. O trabalho, com banca presidida por Luiz Antonio de

Assis Brasil e também composta pelos professores Flávio Loureiro Chaves, Gilberto

Mendonça Teles e Regina Zilberman, recebe conceito dez.

A trilogia abarca três gerações de imigrantes. A primeira, relatada em A Cocanha, é

protagonizada pelos italianos precursores do fenômeno migratório. No final do século XIX,

eles partem, de suas aldeias, na Itália, em busca de uma vida de fartura na América. São

camponeses pobres, oriundos do norte da Itália, região mais atingida pela miséria dos tempos

de pós-unificação e industrialização. Nesse romance, o narrador revela a (re)construção da

identidade desses imigrantes italianos no novo espaço, a necessidade de manterem seus laços

e símbolos identitários, bem como de adaptá-los ou, até mesmo, de abandoná-los para criar

outros. Por isso, A Cocanha é escolhida como a obra central da presente pesquisa.

Já a segunda geração, nascida na América, é descrita em O Quatrilho, tendo a

narrativa ocorrido entre 1910 e 1930. O autor passa a relatar a vida dos filhos dos primeiros

imigrantes, que casam e precisam de um lugar para estabelecer suas famílias. Assim, os

descendentes da primeira geração começam a ligar-se entre si. Os protagonistas são dois

casais que, indo morar sob o mesmo teto, acabam trocando de parceiros e, com isso,

transgredindo as regras sociais, morais e religiosas trazidas da Itália e mantidas inicialmente

no Brasil.

1 RIO GRANDE DO SUL. SEC. Instituto Estadual do Livro. José Clemente Pozenato. Porto Alegre: IEL, 1989. 24 p. (Coleção Autores Gaúchos, v. 25), p. 16.

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A terceira geração é narrada em A Babilônia (de 1934 até 1942). A obra tem como

espaço principal Caxias do Sul, abordando a crise de identidade dos imigrantes e

descendentes italianos devido ao nacionalismo vigente no Brasil. Trata-se da geração de

imigrantes que começa a ser vista como estrangeira; são brasileiros de segunda classe. O livro

mostra as circunstâncias anteriores ao ingresso do país na Segunda Guerra Mundial, focando,

por exemplo, algumas ideologias que marcam a época, como Integralismo, Fascismo e

Comunismo.

A dissertação é conduzida procurando respostas para os seguintes questionamentos

norteadores: quais as relações fronteiriças entre Literatura e História no romance histórico?

Qual o papel desempenhado pela memória na (re)construção da identidade cultural? Como se

processa a (re)construção da identidade cultural no entre-lugar ou terceiro espaço? Qual a

relação da obra de José Clemente Pozenato com a História da imigração italiana no Brasil?

Quais são os elementos literários da obra de Pozenato que permitem verificar a (re)construção

da identidade do imigrante italiano? Como os imigrantes italianos contribuíram para a

formação da identidade cultural brasileira?

A pesquisa organiza-se em seis capítulos. O presente capítulo, “Ponto de Partida”,

destina-se a desenvolver um breve histórico desta dissertação, apresentando a motivação

pessoal, bem como a conexão com os objetivos do curso de Mestrado em Letras da URI. Nele

se realiza a apresentação do autor e da obra literária do presente estudo, situando José

Clemente Pozenato na Literatura Brasileira comprometida com a cultura italiana. Por fim,

expõem-se as teorias e considerações desenvolvidas em cada tópico.

O segundo capítulo, “Literatura e História: uma viagem entre fronteiras”, é dedicado

ao estudo do entrecruzamento entre as duas disciplinas. Pozenato, assim como outros

escritores, ao promover a ficcionalização da História da imigração italiana sulina, faz uma

(re)leitura de fatos e acontecimentos da própria narrativa histórica. Nessa parte, são

privilegiados três momentos importantes nos estudos das relações entre Literatura e História:

estudos poéticos da Antigüidade, pesquisas do século XIX e novas propostas teóricas

postuladas ao longo dos séculos XX e XXI. O primeiro é fundamentado em Aristóteles. O

segundo lança mão dos postulados teóricos de vários estudiosos, dentre eles, George Lukács,

Peter Burke, Auguste Comte, Jacques Le Goff, Hayden White, Georges Duby, Guy Lardreau,

Roland Barthes, Luiz Costa Lima, Maria Teresa Freitas, Marisa Lajolo e Teresa Cristina

Cerdeira da Silva. Já no terceiro momento, enfocando as últimas décadas do século XX e o

início do XXI, quando múltiplos estudos privilegiam o entrecruzamento da Literatura e da

História, tomam-se como aporte as reflexões de Paul Ricoeur, as investigações de Walter

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Mignolo, os estudos de Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima, bem como considerações a respeito

dos estudos de Linda Hutcheon.

O terceiro capítulo, “Entre-lugar: no limiar das fronteiras culturais”, aborda diversas

teorias referentes aos Estudos Culturais e Nacionais, principalmente, reflexões desenvolvidas

por Homi Bhabha, Stuart Hall, Kathryn Woodward, Tomaz Tadeu da Silva, Núbia Jacques

Hanciau, Benedict Anderson, Ernest Renan e Zilá Bernd. Tais teóricos convergem para a

conjectura de que a identidade é estabelecida pela relação eu/outro, sendo a diferença

elemento da marcação simbólica relativa a outras identidades: a identidade depende da

diferença.

O capítulo seguinte, “A Cocanha: entrelaçamento da História e da ficção na

(re)construção da identidade cultural”, divide-se em duas partes. O primeiro subcapítulo – “A

História real dos caminhos para a Cocanha” – faz referência à narrativa histórica da imigração

italiana, fundamentada em José Clemente Pozenato, Cleodes Maria Piazza Julio Ribeiro,

Olívio Manfroi, Florence Carboni, Mário Maestri, Loraine Slomp Giron, Radünz Roberto,

Rovílio Costa e Ângela de Castro Gomes. O segundo subcapítulo, denominado “A história

literária dos caminhos para a Cocanha”, busca subsídios teóricos em Antonio Hohlfeldt, José

Clemente Pozenato, Cleodes Maria Piazza Julio Ribeiro, Hilário Franco Junior, Zilá Bernd e

Ana Boff de Godoy.

No quinto capítulo, “A (re)construção da identidade cultural no país da Cocanha”,

busca-se examinar as (re)construções da identidade cultural individual e coletiva nas

personagens do romance A Cocanha, visando à otimização da análise da obra literária de

Pozenato. O capítulo está divido em duas partes: “(Re)construções individuais da identidade

no entre-lugar” e “(Re)construções coletivas da identidade no entre-lugar”. A primeira

privilegia as ações individuais das personagens principais e, a segunda, os elementos

identitários da comunidade representada, com ênfase para as festividades (cantigas, jogos e

culinária), o trabalho e a religiosidade.

No “Porto de chegada” são apresentados os resultados da aprendizagem que o estudo

proporcionou à pesquisadora, sobretudo, no que tangem à significação e valorização da

cultura italiana em terras gaúchas, representada na obra literária A Cocanha, de José Clemente

Pozenato. A partida dos imigrantes, conforme referenciado na epígrafe deste capítulo, é uma

aventura cheia de incertezas quanto à chegada, como Noé com sua barca sobre as águas do

dilúvio.

O desconhecido apresenta-se como uma esperança de transformação, dando um novo

rumo à vida dos italianos, que levam consigo tudo o que possuem e do que necessitam para

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um recomeço em terra estrangeira, especialmente, a coragem e a determinação. Assim

também é esta dissertação, uma viagem cheia de questionamentos, uma busca por respostas

através das indefinidas fronteiras entre a História e a Literatura, para chegar ao entendimento

de como a identidade dos imigrantes é (re)construída na nova pátria, relacionando as duas

narrativas. Esses entrecruzamentos são pertinentes e importantes, já que o texto literário de

Pozenato encontra-se impregnado da própria História. Através desse caminho, espera-se

chegar ao final da pesquisa com a melhor compreensão da temática proposta, possibilitando

aos leitores uma prazerosa viagem cultural.

2 LITERATURA E HISTÓRIA: UMA VIAGEM ENTRE FRONTEIRAS

Dall´Italia noi siamo partiti, siamo partiti col nostro onore.

Trentasei giorni di macchina e vapore, e in Merica noi siamo arriva(ti).

(Corso di língua e cultura italiana, 2002, p. 68)

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Literatura e História são consideradas, através dos tempos, como reflexos da

humanidade. Elas surgem como forma de conhecimento única e indistinta nas primeiras

manifestações literárias da civilização ocidental, compartilhando de um território comum: a

narrativa. Nas origens primordiais, os discursos misturam-se na escrita épica, cantando a

História da civilização grega através dos versos de Homero (Ilíada e Odisséia). Porém,

gradativamente, as fronteiras singularizam-se, oscilando entre semelhanças e diferenças,

aproximações e distanciamentos. Esse diálogo entre os discursos tem perdurado ao longo dos

séculos, desde a Antigüidade Clássica até os dias atuais. Revisando os momentos em que os

estudos literários abordam ordenadamente a relação entre os textos de ficção e os textos de

História, são evidentes os períodos que compreendem os estudos poéticos da Antigüidade, as

pesquisas estéticas do Romantismo (século XIX) e as novas propostas teóricas postuladas ao

longo do século XX.

A constatação de que a discussão sobre a aproximação ou o afastamento entre

Literatura e História remonta ao início da teorização da arte ocidental obriga a retroceder às

idéias de Aristóteles para se entender a construção desses paradigmas e suas configurações

tanto na teoria literária quanto na historiografia. O filósofo estabelece uma oposição entre

História e Poesia em sua obra Poética, criando obstáculos quase intransponíveis entre as duas.

Ele propõe que a Poesia é mais filosófica e mais elevada, pois conta de preferência o geral,

enquanto a História, o particular.

Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; e, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa), - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder.2

A Literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das

diferentes épocas. No enunciado de Aristóteles, ela é o discurso sobre o que poderia ter

acontecido, ficando a História como a narrativa dos fatos verídicos. Como o filósofo assinala,

na hierarquia de saberes, a Poesia é superior à História; esta, limitada à descrição do que se

move e aparece, só pode emitir a mera opinião (dóxa), narrando, portanto, uma coleção de

fatos particulares, enquanto aquela revela capacidade para formular juízos mais universais e

sem precisar estabelecer relações miméticas entre a narrativa e a realidade narrada.

2 ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966, p. 78.

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A diferença entre Poesia e História é estabelecida pelo estudioso grego em termos de

imitação (mímesis). A mímesis de Aristóteles é definida como aquilo que representa, com

verossimilhança, as ações humanas; não o que é, mas o que pode ser ou acontecer. Através

dela (das ações humanas), pode-se representar o universal. Ligada ao conceito de

verossimilhança, a mímesis funciona, pois, como um elo estabelecido com a realidade. Não

com a realidade em si, mas com as possibilidades de sua configuração. Aristóteles acredita

que há interseções entre o real e a representação. A idéia de mímesis é associada à idéia de

representação. Assim, a substância ou natureza particular da arte literária consiste em ser

mímesis, transfiguração ou representação do real.

Percebe-se que, para o filósofo grego da Antigüidade, narrar aquilo que poderia

acontecer é mais importante e interessante do que relatar os fatos reais. Na sua concepção,

através da arte da ficção o mundo expressa suas “verdades gerais”. A partir do século XIX, a

História observa, com grande atenção, as informações constantes das fontes e dos

testemunhos passíveis de comprovação, consolidando sua dimensão científica. Na Literatura

dessa época, proliferam as formas romanescas. O século XIX é, sobretudo, o período do

romance histórico vinculado às definições das diferentes nações européias e americanas,

desempenhando importante papel na construção das nacionalidades/identidades que almejam

se afirmar pela diferença.

Inicialmente, a finalidade da maioria dos romancistas, ao escrever um romance

histórico, consiste em contribuir para a criação de uma consciência nacional, enfocando

determinadas épocas, com seus respectivos acontecimentos, e obedecendo a uma

temporalidade cronológica, a fim de marcar um fato histórico específico e relevante para certa

região.

O romance histórico, de acordo com Georg Lukács, consiste em apresentar um texto

narrativo cujo objetivo é a reconstrução do episódio histórico, em que o autor abdica de seu

tempo e se torna apenas uma testemunha dos fatos, procurando pensar e agir conforme

pensariam e agiriam os personagens históricos. Dessa maneira, o papel do escritor torna-se

semelhante ao do historiador, uma vez que assume uma atitude distanciada em relação ao

episódio histórico, objeto de reconstituição.

Tal como concebido em suas origens, o romance histórico apresenta, entre outras, as

seguintes marcas que lhe são essenciais, como bem aponta Lukács3: traça grandes painéis

históricos, abarcando determinada época e um conjunto de acontecimentos; a exemplo dos

3 LUKÁCS, Georg. La novela histórica. México: Era, 1966.

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procedimentos típicos da escrita da História, organiza-se em observância a uma temporalidade

cronológica dos acontecimentos narrados; vale-se de personagens fictícias, puramente

inventadas, na análise que empreendem dos acontecimentos históricos; as personalidades

históricas, quando presentes, são apenas citadas ou integram o pano de fundo das narrativas;

os dados e detalhes históricos são utilizados com o intuito de conferir veracidade à narrativa,

aspecto que torna a História incontestável; o narrador se faz presente, em geral, na terceira

pessoa do discurso, numa simulação de distanciamento e imparcialidade, procedimento

herdado igualmente do discurso da História.

No entanto, esse gênero é posto num labirinto de desconstrução, pois a História, nesse

período, passa a reivindicar um estatuto científico rigoroso e semelhante ao das ciências

naturais e exatas. A diferenciação entre Literatura e História avança, principalmente, após

1789, quando a Revolução Francesa fortalece a consciência de que é possível apreender

racionalmente o devir histórico, gerando a historiografia científica e o romance histórico. O

Positivismo defende a autonomização plena da História e da Literatura. Auguste Comte4

propõe que os estados teológico e metafísico das ciências têm em comum a predominância da

imaginação sobre a observação. Para elevarem-se ao estágio positivo das ciências exatas, as

ciências humanas devem abandonar a promiscuidade com o aleatório, com o subjetivo, com o

imaginário. Em oposição à visão aristotélica, a historiografia positivista vê a ficção como

produto do arbítrio aleatório da imaginação do escritor.

O Positivismo, concepção iniciada na Alemanha, tem como preocupação fundamental

tornar a História uma ciência. Com a intenção de dotar a História de cientificidade, submete-a

a fontes documentais, propondo o levantamento escrupuloso e criterioso dos fatos. Leopold

Von Ranke, mais expressivo representante dessa tendência, postula uma História baseada em

documentos escritos e oficiais, emanados de “instituições” reconhecidas como “legítimas”.

Uma História almejando a objetividade e mostrando os fatos como realmente aconteceram.

Essa tendência acaba exigindo do historiador uma meticulosa análise dos documentos, para

verificar sua autenticidade. Peter Burke assinala que, “segundo o paradigma tradicional, a

História é objetiva. A tarefa do historiador é apresentar os fatos, ou, como apontou Ranke em

uma frase muito citada, dizer ‘como eles realmente aconteceram’”.5 Costa Lima também

contribui para esse entendimento ao confirmar que a História do século XIX é

4 COMTE, Auguste. Opúsculos de filosofia social. 1819-1828. Porto Alegre: Globo/EDURS, 1972, p. 86. 5 BURKE, Peter. A nova história, seu passado e seu futuro. In.: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 15.

21

[...] apoiada na escrupulosa reconstituição dos fatos, que, depois de testados, eram cronologicamente dispostos em um relato. Este, de seu lado, era apenas a ponta visível que manifestava o pressuposto caro à história positivista: a de captar o passado “como efetivamente fora”. Desmantelar a história narrativa seria comprometer o pressuposto da história objetiva, substituindo-o por aquele que dá primazia à seleção e, daí, à interpretação dos fatos.6

As citações de Burke e Costa Lima revelam que a aproximação entre Literatura e

História torna-se impossível, tanto para os historiadores como para os romancistas do início

do século XIX. O historiador deve ater-se em formar imagens como elementos objetivos,

imaginando como os fatos aconteceram – apesar de não tê-los observado. Com isso, sem

documentos, não há História. A tradição positivista parece consolidar a incoerência de diálogo

entre as duas áreas de conhecimento, pois as obras literárias, segundo ela, são o fruto da

combinação entre elementos reais e ficcionais, com fatos (re)criados e (trans)figurados pela

imaginação do autor, sem qualquer caráter documental.

Apesar disso, o Positivismo invade também a Literatura. Uma espécie de diálogo entre

Literatura e História passa a ser promovido de modo mais intenso quando a Literatura começa

a se inspirar em parâmetros científicos na produção de seus relatos. É o período de vigência

do Realismo-Naturalismo, compondo ficções como reflexo ou documento do real. Para a

narrativa naturalista, a ficção deve construir-se a partir de uma rigorosa investigação

documental. A elaboração do dado empírico pelos conhecimentos científicos da época

permite que o romance se transforme em “demonstração prática das teorias científicas”.7 A

narrativa naturalista vê-se como investigação científica e sonha superar a própria

cientificidade da História. E, também para o romancista realista, o grande desafio é expressar

a fidelidade da ficção à experiência individual e social, tentando a correspondência entre a

palavra e a realidade.

Nesse sentido, o século XIX é de suma importância para a compreensão das relações

entre Literatura e História, visto ser o momento em que a Literatura com raízes românticas,

projetadas desde a Revolução Francesa (1789), redireciona-se rumo a um caráter de denúncia.

É o momento em que a História passa a ser ensinada como disciplina autônoma. É o momento

em que a crença na ciência positiva rebate as dúvidas de domínio de um discurso

determinista. Revela-se, nesse contexto, a tentativa frustrada de construção de um discurso

histórico neutro. A Literatura do período não foge à conjuntura cultural, pois, segundo Lajolo,

as “... concepções e práticas literárias não se isolam no momento em que nascem, nem se

6 LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 20. 7 FREITAS, Maria Teresa. Literatura e história. São Paulo: Atual, 1986, p. 2.

22

segmentam com a nitidez a que as confina uma rígida história dos estilos. Elas são, antes de

mais nada, vivas”.8

A partir da metade do século XIX, são deflagradas, em definitivo, a problematização e

a crise do conhecimento histórico, com o gradual desgaste do modelo positivista e correntes

afins, defensoras da cientificidade inerente da matéria historiográfica produzida pelo

historiador competente. Essa crise decorre também da crescente influência do pensamento e

do instrumental metodológico próprios da Literatura, tanto na aplicação em obras

historiográficas mais recentes quanto em contestações críticas por parte de historiadores não-

tradicionais vinculados a novas abordagens contra o modelo cientificista da prática

historiográfica tradicional. Dessa forma, com o final do século XIX, a crença na neutralidade

da narrativa histórica é rompida. Assim como também se esgota a linearidade do discurso

verdadeiro e único.

Essa nova postura avança com mais intensidade a partir de 1929, com o surgimento da

Escola dos Annales – com Marc Bloch e Lucien Febvre – como um movimento que se

contrapõe ao paradigma da historiografia tradicional, contestando o alcance da História

factualista e o caráter neutro dos registros de construção sobre o passado. Na fase inicial, os

interesses de estudo estão voltados para a construção de uma História social e econômica em

oposição a uma tradição historiográfica centrada nos feitos dos grandes homens. A

denominação Escola dos Annales surge em função da publicação do Annales d´Histoire

Èconomique et Sociale, um periódico que traduz o movimento de reorientação que se quer

imprimir aos estudos historiográficos. A partir de 1940, a Escola dos Annales, em sua segunda

geração, caracteriza-se por uma produção historiográfica predominantemente demográfica.

Em 1946, a revista Annales muda de nome com a intenção de tornar-se um periódico de

ciências sociais – Annales: Economies. Societés, Civilisations. Suas teorias, métodos e

caminhos reflexivos abrem a possibilidade de interlocução da História com outras disciplinas,

inclusive a Literatura, favorecendo uma nova postura crítica frente aos fatos históricos.

Com Os Annales, a dimensão da História como narrativa de ações de cunho político é

postergada em favor de uma História problematizadora, interpretativa e construída sobre

correlações. Assim, o horizonte da escrita da História incorpora a vida cotidiana, as crenças e

representações, atitudes e sentimentos coletivos que, anteriormente, não são considerados

como objetos virtuosos para figurar na História. Deixa-se de lado a noção de que a História

precisa de documentos “verdadeiros”. Como escreve Jacques Le Goff, “Documento é

8 LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 73.

23

monumento”.9 Em História e memória, no capítulo destinado aos documentos, Le Goff inicia

seu estudo fazendo uma distinção entre monumento e documento, definido o primeiro como

uma herança do passado e, o segundo, como sendo uma escolha do historiador, em oposição

ao primeiro.

Segundo ele, partindo do termo docere (ensinar), o vocábulo documento assume o

compromisso de ensinar à posteridade a verdade sobre o passado. Os documentos sobre os

quais a História se legitima são o resultado da consolidação de seu valor comprobatório, ao

longo dos séculos. Isso se consolida com a evolução do termo, cuja acepção mais corrente é a

de prova ou comprovação. Entre o final do século XIX e início do século XX, de acordo com

a forma como a escola histórica positivista entende o termo documento, a comprovação tem

sua materialização, principalmente, em testemunhos escritos. Essa preferência do texto,

inerente à concepção de documento histórico, perdura durante a primeira metade do século

XX, confirmando a importância dos documentos escritos no processo de verificação dos fatos

inseridos na escrita da História, até ser percebida a necessidade de ampliação da noção de

documento. A falta de registros escritos não pode significar a ausência de possibilidade de

escrita da História. Torna-se imprescindível extrair das “coisas mudas” a História tão

necessária. Assim, concretiza-se a necessidade de ampliação do conceito de documento,

incorporando a oralidade, o gestual, a iconografia, os mitos, os textos literários e poéticos,

entre outros.

Se as primeiras gerações dos Annales rejeitam a narrativa – por acreditarem que a

narrativa se identifica com a História política, ao valorizar o relato de ações grandiosas e

possuir um caráter mais literário do que científico, contrariando os objetivos de renovação da

História, de transformação numa disciplina quantitativa, problematizadora e interrogativa –,

na década de 70 do século XX, a narrativa supera o descrédito e ressurge associada à mais

jovem geração dos Annales, popularmente conhecida como Nouvelle Histoire.

Conforme Peter Burke10, La Nouvelle Histoire é o título de uma coleção de ensaios

editada por Jacques Le Goff na França, associada à chamada École des Annales. Burke afirma

que o movimento está unido apenas naquilo a que se opõe, o que dificulta uma definição

clara, apenas podendo caracterizar a Nova História como História total ou estrutural. “A nova

história é a história escrita como uma reação deliberada contra o ‘paradigma’ tradicional

[...]”.11 Essa Nova História começa a se interessar por toda atividade humana.

9 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996, p. 545-547. 10 BURKE, 1992, p. 9-10. 11 BURKE, 1992, p.10.

24

O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma ‘construção cultural’, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço. [...] A base filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída.12

Ao contrário dos historiadores tradicionais, que pensam na História como narrativa

dos acontecimentos, a Nova História está mais preocupada com as estruturas, com as opiniões

das pessoas comuns. Ela faz seus registros a partir de novas fontes (Literatura): diários,

manuscritos, manuais, tratados de moral, poesia, teatro, romances; e não apenas baseada em

documentos. Preocupa-se tanto com os movimentos coletivos, quanto com as ações

individuais, tanto com as tendências, quanto com os acontecimentos. Enfim, interessa-se por

mentalidades, pela vida privada e cotidiana, por sentimentos e comportamentos, por análise e

descrição. A Nova História conta a História sob influência do romance e da Antropologia;

explora o subjetivo e o simbólico; interessa-se por histórias pessoais. Para isso, recorre, com

habilidade, à arte narrativa, assinalando o fim da tentativa de criar uma explicação coerente

sobre a transformação no passado. Conforme Teresa Cristina Cerdeira da Silva,

Hoje sabe-se bem que é vã essa expectativa de ressuscitar integralmente o passado. Porque há fendas, lacunas e silêncios que são objectivamente irrecuperáveis, pois faltam fontes e documentos para tal. Por outro lado, a própria leitura das fontes é um trabalho de selecção que implica a presença de um sujeito comprometido com a sua carga ideológica pessoal e com a carga ideológica do seu tempo, o que faz, por exemplo, com que determinadas fontes sejam valorizadas hoje, tendo passado despercebidas anteriormente. Dessas interrogações, da consciência desses limites impostos à verdade histórica, surge aos poucos a evidência da utopia realista da história. Para continuar a ser o discurso da verdade, a pesquisa histórica tem que limitar os seus anseios e assumir o fracasso do sonho cientificista da plenitude do conhecimento.13

A autora reconhece o caráter de pluralidade do discurso histórico, desconstruindo a

postura que advoga que o discurso deve ser uma espécie de réplica do real, um relato verídico.

Indagando a historiografia do ângulo da lingüística, Roland Barthes14 interroga sobre o real

dos fatos no discurso histórico, considerando que ele próprio possui uma existência

lingüística: é signo e discurso. Para o autor, a História deve ser vista, se não como ficção, pelo

menos como discurso: "essa narração [a história] difere realmente, por algum traço específico,

por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na

epopéia, no romance, no drama?".15 Seu estudo das características fundadoras do discurso

12 BURKE, 1992, p. 11. 13 SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. Os imprecisos limites. In: SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 24-25. 14 BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 10-27. 15 BARTHES, 1988, p. 145.

25

histórico responde que, do ponto de vista da estrutura, ambas as narrativas compartilham de

diversas características. Dessa forma, a distinção entre História e Literatura já não mais se

pode dar em função do valor e do privilégio da primeira estar com a verdade, pois ela não está

localizada em um ponto tal que se possa segurá-la, ela jamais é fixa.

Essas questões são levantadas por Hayden White na obra Meta-história: a imaginação

histórica no século XIX, concentrando-se na análise formalista dos historiadores oitocentistas

Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt, bem como dos filósofos da história Marx,

Nietzsche e Croce, para elaborar sua tese fundamental: a atividade do historiador é ao mesmo

tempo poética, científica e filosófica, incorporando em sua narrativa argumentativa modelos

de análises literários, como ele próprio fez com as obras daqueles pensadores citados,

destacando seus enredos (romance, comédia, tragédia e sátira), seus tropos retóricos

(metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) e relacionando-os a modos de explicação e atitudes

políticas.16

No capítulo “O texto histórico como artefato literário”, White resume de forma clara

suas posições, afirmando que

[...] de um modo geral houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tão inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências.17

Porém, isso não equivale – segundo ele – a tomar a ficção verbal da História como

discurso desprovido de valor; ao contrário, significa reconhecer que toda forma de

conhecimento contém elementos de imaginação e ficção. Também Georges Duby registra

sobre a falência da crença na possibilidade de se exumar o que efetivamente faz parte do

passado. Ele descortina a presença, na Historiografia, de um sujeito comprometido com sua

carga ideológica pessoal e com a carga ideológica do seu tempo:

Com efeito, persuadimo-nos progressivamente de que o ‘fato’ que passou ‘realmente’, ou as condições da vida verdadeira de cada época nos escaparão sempre, de que os abordamos através de uma barreira deformadora: as ‘fontes’ que deles falam.18

16 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. Trad. José Lourênio de Melo. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 20-31. 17 WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 98. 18 DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a nova história. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 75.

26

Em função dos limites impostos à História, surge a evidência da utopia realista da

Historiografia. Para continuar a ser o discurso que é, a pesquisa historiográfica tem que

assumir a derrota da utopia positivista do conhecimento totalizante. Esses conceitos são

questionados pela consciência de que, em História, tudo é discurso sobre algo que acontece

com o ser humano. Discurso elaborado através de uma narração que, imaginariamente, no

presente, busca resgatar e recompor o real de um tempo passado:

Não há qualquer ponto a partir do qual se possa alguma vez exumar um real, apenas discursos, em abismo, até o infinito. Sendo o discurso que hoje se produz sobre a História mais um discurso, sem privilégio, não a verdade dos precedentes nem a verdade de todos os outros, apenas um discurso que é o nosso presente. O passado não existe: sobre ele há apenas nomes.19

Encontra-se nesse ponto a subjetividade do discurso historiográfico, que nasce de um

sonho apoiado em suportes conscientes, em rastros deixados sobre o passado. Por essa razão,

toda a História é contemporânea. As lacunas e o silêncios existentes são preenchidos pela

fantasia e pela imaginação. Assim, o trabalho de pesquisa e investigação do passado, levado a

efeito pela historiografia atual, postula o encontro com o literário, com o ficcional. Refletindo

sobre a narrativa historiográfica, Duby contempla, nessa estrutura discursiva, além da

reabilitação do estilo na História, a vontade subjacente de contar uma boa História. A

História, salienta ele, “é acima de tudo uma arte, uma arte essencialmente literária. A história

só existe pelo discurso. Para que seja boa, é preciso que o discurso seja bom”.20

Desconsiderando a rigidez disciplinar e acadêmica que caracteriza os profissionais da

História tradicional do século XIX e seu modo de agir “científico” e considerando a História

como um saber construído com critérios metodológicos que remetem às evidências do

acontecido e que se articulam ao longo do tempo, promovendo versões dos fenômenos, o

entendimento dos propósitos da História, juntamente com os da Literatura, são múltiplos e

exigem a referência a outros estudos que também procuram demonstrar, cada qual à sua

maneira, o inter-relacionamento entre ambas. Nas últimas décadas do século XX e no início

do novo milênio, é possível observar o aumento da discussão sobre a questão de a narrativa

histórica conter elementos ficcionais. Alguns teóricos, localizando-se em uma situação-limite

de arte e ciência, admitem que alguns relatos não podem prescindir de elementos ficcionais e

abordagens literárias. Um dos trabalhos que discute essa questão é desenvolvido pelo teórico

Paul Ricoeur, em sua obra de três volumes Tempo e narrativa, publicada na década de 80.

19 DUBY; LARDREAU, 1989, p. 35. 20 DUBY; LARDREAU, 1989, p. 50.

27

Especialmente na terceira parte da obra, o autor analisa a configuração e a reconfiguração do

tempo na narrativa histórica e ficcional.

Na trilogia, a preocupação maior de Paul Ricoeur é a de procurar pistas alternativas

para pensar as aporias do tempo capazes de superar as visões dicotômicas que tendem a opor

tempo cosmológico, "tempo do mundo" ou "tempo vulgar" (o tempo que passa e deixa ver os

seus efeitos) e tempo vivido íntimo subjetivo, vivido por cada um. Sua tese central é afirmar a

potencialidade teórica do "tempo narrado" (tanto na historiografia como nas obras de ficção),

que funciona como uma mediação entre essas duas concepções de tempo. Para fundamentar

essa tese, Ricoeur busca articular as contribuições de ambas formas narrativas, estabelecendo

diferenças e semelhanças entre os processos de refiguração do tempo realizadas por cada uma

dessas modalidades. Nessa perspectiva, o teórico identifica e analisa os aspectos que

permitem tanto falar de "ficcionalização da História" como de "historicização da ficção".

O teórico atribui o surgimento de um tempo humano como produto do

entrecruzamento da História e da ficção. Segundo ele, em todas as grafias, esse fenômeno é

passível de observância apenas por uma teoria ampliada da leitura, pois tal entrecruzamento

se dá justamente com o ato da leitura, como ação de quem está lendo e como está lendo

determinado texto. Para Ricoeur, torna-se necessário, então, no mínimo, pensar-se sobre uma

teoria ampliada da recepção (da leitura) dessas narrativas. “É numa tal teoria ampliada da

leitura que a reviravolta se dá, da divergência à convergência, entre a narrativa histórica e a

narrativa de ficção”.21

De acordo com o teórico, pode entender-se por entrecruzamento da História e da

ficção a estrutura fundamental, tanto ontológica quanto epistemológica, que possibilita que as

duas somente concretizem sua respectiva intencionalidade tomando empréstimos da

intencionalidade uma da outra. A partir dessa constatação, Ricoeur mostra que a

concretização só é atingida na medida em que, por um lado, a História se serve, de algum

modo, da ficção para refigurar o tempo e, por outro, a ficção se vale da História com o mesmo

objetivo. Enfocando a ficcionalização da História, o teórico destaca a importância do papel da

imaginação no encarar o passado tal como foi, enfocando como o imaginário se incorpora à

consideração do “ter-sido”, sem com isso enfraquecer seu intento realista. Ricoeur contribui

para pensar a questão quando analisa a problemática dos vestígios, rastros, documentos,

considerados por ele como conectores elaborados pelos historiadores para permitir ao tempo

21 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Roberto leal Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1997, p. 316.

28

histórico realizar seu trabalho de mediação, e também quando constrói o conceito de

representância.

Segundo ele, o trabalho de mediação, realizado pelo tempo histórico, faz com que

sejam elaborados instrumentos de pensamento capazes de assegurar essa mediação. Esses

instrumentos, chamados de conectores, são tais como: o calendário, a noção de seqüência de

gerações — que engloba as noções de contemporâneos, predecessores e sucessores — e os

rastros ou vestígios, responsáveis pela articulação entre o tempo do mundo e o tempo vivido,

como coisa presente que vale por uma coisa passada. Ricoeur destaca que “não nos

esquecemos de que o abismo entre o tempo do mundo e tempo vivido só é atravessado graças

à construção de alguns conectores específicos que tornam pensável e manejável o tempo

histórico”.22 Continua salientando que, “evidentemente, é no fenômeno do rastro que culmina

o caráter imaginário dos conectores que marcam a instauração do tempo histórico”.23 Segundo

essa perspectiva, o sentido não está na História, no passado como de fato ocorreu, mas nos

seus vestígios: escritos, imagens, objetos, em suma, fragmentos que falam do real a partir de

certas instâncias do imaginário. A História, nesse caso, é entendida como narração, como a

repetição de algo ocorrido no passado.

O conceito de representância é criado com o intuito de nomear o duplo estatuto de

realidade (vivência) e ficção (imaginação, representação), que caracteriza a especificidade do

objeto da pesquisa histórica. Esse conceito permite criticar uma visão ingênua de realidade

tanto mais necessária quando essa realidade traz consigo a noção de “passadidade”. Também

permite pensar a modalidade analógica de apreensão do passado que mobiliza a idéia de

“como se” (como efetivamente aconteceu), considerada como recurso de produção de sentido

mais adequado desse tipo de realidade.

[...] o passado é o que eu teria visto, do que eu teria sido testemunha ocular, se houvesse estado ali, assim como o outro lado das coisas é o que veria se o percebesse daí de onde você o considera. Assim, a tropologia se torna o imaginário da representância.24

Com essa explanação, Ricoeur assinala o lugar do imaginário no trabalho de

refiguração. A partir disso, ele salienta a necessidade de avançar do passado datado e do

passado reconstruído para o passado refigurado, bem como precisar a modalidade do

imaginário, que responde à exigência de figuratividade. Todos eles têm em comum o fato de

22 RICOEUR, 1997, p. 318. 23 RICOEUR, 1997, p. 320. 24 RICOEUR, 1997, p. 322.

29

conferir à intenção do passado um preenchimento quase intuitivo. Uma primeira modalidade

consiste num empréstimo direto tomado à função metafórica do “ver-como”. Ao admitir-se

que a escrita da História não se ajunta de fora ao conhecimento histórico, mas dele é solidária,

nada se opõe a que se admita também que a História imita em sua escrita os tipos de armação

da intriga herdados da tradição literária. No momento em que se pode ler um livro de História

como um romance, entra-se num pacto de leitura que institui a relação cúmplice entre a voz

narrativa e o leitor implicado.

A mesma obra pode, assim, ser um grande livro de história e um admirável romance. O espantoso é que esse entrelaçamento da ficção à história não enfraqueça o projeto de representância desta última, mas contribua para a sua realização.25

Ao analisar a historicização da ficção, Ricoeur defende a hipótese segundo a qual a

narrativa de ficção imita, de certa maneira, a narrativa histórica. Contar alguma coisa é contá-

la “como” se ela se tivesse passado. O autor questiona até que ponto esse “como se passado” é

essencial à significação da narrativa e revela que um primeiro indício é de ordem estritamente

gramatical. As narrativas são contadas num tempo passado. Nesse critério, discorda da teoria

dos tempos verbais de Weinrich26, que diferencia o contar e o comentar a partir de tempos

verbais. Ricoeur preocupa-se com a idéia de que a narrativa esteja às voltas com algo como

um passado fictício: se a narrativa convida a uma atitude de desapego, isso não acontece por

que o tempo passado da narrativa é um quase-passado temporal?

O teórico enfatiza que o quase-passado da voz narrativa distingue-se completamente

do passado da consciência histórica. Ele se identifica, em contrapartida, com o provável, no

sentido do que poderia ocorrer.

O quase-passado da ficção torna-se, assim, o detector dos possíveis ocultos no passado efetivo. O que ‘teria podido acontecer’ – o verossímil segundo Aristóteles – recobre ao mesmo tempo as potencialidades do passado ‘real’ e os possíveis ‘irreais’ da pura ficção.27

Concluindo sua tese, Ricoeur relata que o entrecruzamento entre a História e a ficção

na refiguração do tempo se baseia na sobreposição recíproca: quando o momento quase

histórico da ficção troca de lugar com o momento quase fictício da História. Desse

entrecruzamento procede o que se convencionou chamar de “tempo humano”, em que se

25 RICOEUR, 1997, p. 323. 26 WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968. 27 RICOEUR, 1997, p. 331.

30

conjugam a representância do passado pela História e as variações imaginativas da ficção,

sobre o pano de fundo das aporias da fenomenologia do tempo. Duas observações podem ser

feitas no fim deste rápido percurso consagrado ao entrecruzamento da História e da ficção,

enfocando as semelhanças e diferenças entre ambas, a partir das idéias de Ricoeur. A primeira

refere-se ao fato de que tanto a História como a ficção são escritas feitas a partir de

representações da realidade: enquanto o texto histórico busca o “ter-sido”, a ficção é formada

a partir do “como se”.

A segunda observação denota o conceito de refiguração. É justamente nesse momento

de remanejamento da experiência temporal, graças ao texto, que se situam as maiores

diferenças entre narrativa histórica e narrativa ficcional. A História remodela a experiência do

leitor por uma reconstrução do passado baseada nos rastros por ele deixados, a partir de uma

ausência, enquanto a ficção transforma a experiência temporal a partir de sua irrealidade. Se

ambas podem usar estratégias narrativas semelhantes, mecanismos de configuração parecidos

ou mesmo idênticos, o momento de refiguração do mundo do leitor difere, em particular, de

sua experiência temporal.

Em “Lógica das diferenças e política das semelhanças da literatura que parece história

ou antropologia, e vice-versa”, Walter Mignolo refere-se à etimologia das palavras “História”

e “Literatura”, apontando um caminho para o entendimento das relações entre os dois campos

do conhecimento, salientando seus propósitos explicativos: “trato de entender as semelhanças

e as diferenças entre determinadas práticas discursivas historiográficas, literárias e

antropológicas; e não de decidir quais são melhores, ou o que deve ser feito em vez do que se

faz”.28

O autor menciona que, historicamente, na Grécia antiga, não se conhecia o conceito de

Literatura; as diferenças entre as duas áreas são traçadas entre Poesia e História. Assim, na

tradição ocidental, a diferenciação reside na imitação das ações humanas. Mignolo entende

que existe o que ele chama de “convenção de veracidade” e “convenção de ficcionalidade”29

para distinguir História e Literatura. Segundo ele, a convenção de veracidade, que diz respeito

à História, equivale a um discurso em que o seu enunciante pode estar exposto à mentira e/ou

ao erro, já que assume uma relação de correspondência entre o discurso e o mundo. No que se

refere à convenção de ficcionalidade, o enunciante não está comprometido com a verdade do

28 MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das semelhanças da literatura que parece história ou antropologia, e vice-versa. In: CHIAPPINI, Ligia; AGUIAR, Flávio Wolf (Orgs.). Literatura e história na América Latina. Trad. Joyce Rodrigues Feraz (espanhol), Ivone Daré Rabello e Sandra Vasconcelos (francês). 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 116. 29 MIGNOLO, 2001, p. 122.

31

discurso, situação que possibilita ao ficcionista não ficar exposto à mentira e ao erro, pois ele

corta as relações entre o discurso e o mundo.

Assim, conforme Mignolo, a “convenção de ficcionalidade não é, ao que parece, uma

condição necessária da Literatura, ao passo que a adequação à convenção de veracidade, ao

que parece, é condição necessária para o discurso historiográfico”.30 Percebe-se que a

diferenciação entre o romancista e o historiador é estabelecida na aceitação de convenções

que admitem que o primeiro não necessita passar pelo teste da realidade e verificação,

enquanto o segundo precisa inserir no seu discurso a possibilidade da testemunha documental.

Essa perspectiva de Mignolo retoma a concepção de Aristóteles entre História e Poesia, para

quem a Literatura é manifestação do verossímil, enquanto a História tem como objetivo a

expressão da verdade.

Já o teórico Alfredo Bosi, tecendo comentários às questões defendidas por Mignolo,

salienta que o estatuto menos rígido das ciências humanas no século XX – após o Positivismo

e o Evolucionismo – acaba diluindo as fronteiras entre Literatura e História, exigindo dos

estudiosos a produção de discursos mais complexos e flexíveis. O teórico afirma que esses

dois pólos apresentam um único eixo, ou seja, a linguagem: “tanto a prosa do historiador

quanto a prosa do narrador têm que se valer dos signos, têm que se valer das metáforas, têm

que se valer daquilo que há de mais profundo e primeiro, que é o próprio uso da linguagem”.31

A unidade acontece por meio da linguagem, no sentido de que ambas as narrativas usam a

mesma estrutura gramatical.

A frase do romancista não precisa passar pelo teste da realidade, não precisa passar pela verificação, não precisa passar por nenhum teste convencional. Esta é, porém, uma exigência para que se diga que o discurso é historiográfico: é preciso que haja, em algum momento, a possibilidade do teste, do testemunho documental ou ocular.32

Também o professor Luiz Costa Lima, na obra A aguarrás do tempo, realiza análise

sobre os discursos histórico e ficcional, reafirmando vários pontos abordados nos já

mencionados estudos de Walter Mignolo e Alfredo Bosi. Costa Lima desenvolve uma

apreciação da narrativa na escrita da História e, após discorrer sobre ela, bem como a respeito

da narrativa de ficção, afirma que o ficcionista tem à sua disposição mais possibilidades do

que o historiador. De acordo com o estudioso, o discurso da História é sujeito ao protocolo da

30 MIGNOLO, 2001, p. 125. 31 BOSI, Alfredo. Debatedores: Alfredo Bosi e José Carlos Sebe Bom Meihy. In: CHIAPPINI, Ligia; AGUIAR, Flávio Wolf (Orgs.). Literatura e história na América Latina. Trad. Joyce Rodrigues Feraz (espanhol), Ivone Daré Rabello e Sandra Vasconcelos (francês). 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 138. 32 BOSI, 2001, p. 138.

32

verdade, pois, ao produzir um conhecimento que deve ser comprovável, o discurso precisa se

legitimar pela possibilidade da evidência, mesmo que esse conhecimento seja formado por

lacunas, restos e detritos do passado.

Nessa perspectiva, enquanto a narrativa histórica deve construir o seu discurso

fundamentado na verdade, a narrativa ficcional deve possibilitar ao receptor a oportunidade de

questionar se é verossímil ou não o seu discurso, já que não há necessidade de realmente sê-

lo. Nesse sentido, Costa Lima destaca sua posição quanto à verdade na narrativa ficcional. O

autor cita Friedrich Schlegel (fragmento 74 dos Athenäum Fragmente) para comprovar sua

afirmação:

Na prática corrompida da linguagem, verossímil significa quase verdadeiro ou um pouco verdadeiro ou o que talvez possa ser um dia verdadeiro. Por sua formação, a palavra não pode significar isso tudo. O que parece verdadeiro não precisa, no menor grau que seja, ser verdadeiro; mas deve positivamente parecê-lo.33

Entendida dessa forma, a distinção que existe entre narrativa ficcional e narrativa

histórica gira em torno da acepção de verdade atribuída a cada uma delas. Na narrativa

histórica, ainda segundo Costa Lima, há um espaço em que o historiador mantém uma relação

específica em que pese a veracidade do seu discurso, para evitar a possibilidade de produção

de discursos falsos. Com isso, enquanto o historiador deve comprometer-se com a verdade e

esperar que a interpretação do receptor de sua narrativa seja baseada na confiabilidade e na

aceitação da verdade, o ficcionista não precisa comprometer-se, mantendo uma liberdade de

composição maior com a verossimilhança de sua narrativa.

O discurso ficcional, ao mudar a forma de relação com o mundo, também muda sua relação com a verdade. Ele a fantasmagoriza, faz o verossímil perder seu caráter subalterno e assumir o direito de constituir um eixo próprio. [...] O valor social do discurso ficcional não parece estar tanto no questionamento que ofereça dos discursos de verdade mas em não ter condições internas, no próprio tipo de verossímil que atualiza, de se tornar verdade.34

A partir da tese de Costa Lima, pode-se dizer que cabe à narrativa histórica o

comprometimento com a verdade e a realidade, enquanto a narrativa ficcional tem a liberdade

de criar um efeito de realidade, mas que não é indispensável ao seu discurso. O protocolo que

cada discurso assume diante do receptor, como quer Costa Lima, fortalece o acordo de

aceitação estabelecido entre eles do que é histórico e do que é ficção. Nesse caso, o narrador

33 SCHLEGEL apud LIMA, 1989, p. 105. 34 LIMA, 1989, p. 105-106.

33

de cada narrativa tem papel relevante para cada discurso, contudo, o narrador na História,

ainda de acordo com o teórico, tem de assumir a posição de terceira pessoa por estar

submetido ao protocolo da verdade, ao contrário do narrador ficcional, que pode assumir

variadas posições: de primeira, ou até mesmo do chamado “narrador-refletor”, em que o relato

não possui um narrador distinto, sendo também chamado de o “narrador não confiável”.

Ora, se este se define por não atuar com normas que pudessem ser tidas por adequadas aos valores do autor [...], a inconfiabilidade do narrador [...] concede ao ficcionista uma liberdade de composição muito maior que a assegurada àquele cujo discurso está submetido ao protocolo da verdade.35

Para a pesquisadora canadense Linda Hutcheon, as leituras críticas recentes têm se

concentrado mais naquilo que Literatura e História têm em comum do que em suas diferenças.

Ela afirma que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança. Elas obedecem a uma

convenção narrativa e desenvolvem os textos do passado com sua própria textualidade

complexa. Assim, por trás das relações problematizadoras entre História e ficção no pós-

modernismo estão questões como subjetividade, referência, ideologia e intertextualidade,

sendo a última uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e

o presente do leitor, bem como de reescrever o passado dentro de um novo contexto. Ela

analisa que tanto a narrativa histórica quanto a narrativa ficcional não devem ter pretensão à

possibilidade de alcançar alguma verdade.

A teórica enfatiza que, na “metaficção historiográfica” – como ela denomina o

romance pós-moderno que se esforça em retratar a História –, as verdades da História e da

ficção são contestadas, pois tanto uma quanto outra não refletem nem reproduzem a realidade.

A metaficção historiográfica sugere que a verdade e a falsidade podem não ser mesmo os

termos mais corretos para discutir a ficção. A ficção pós-moderna sugere que reescrever ou

reapresentar o passado na ficção e na História é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente e

impedi-lo de ser conclusivo ou ter uma finalidade. Dessa forma, através da abordagem da

poética do pós-moderno, o que Linda Hutcheon procura enfatizar é que tanto a História

quanto a Literatura são discursos representativos da maneira que o ser humano encontra de

conceber a existência e dar sentido ao passado. Na metaficção historiográfica, há o desejo de

reescrever o passado num novo contexto.

35 LIMA, 1989, p. 105.

34

Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses ‘acontecimentos’ passados em ‘fatos’ históricos presentes. Isso não é um ‘desonesto refúgio para escapar à verdade’, mas um reconhecimento da função de produção de sentido dos construtos humanos.36

Nessa perspectiva, os acontecimentos passados se transformam em fatos históricos

através das explicações narrativas que a Literatura e a História atribuem aos próprios fatos, e

não só esta última deve ter a pretensão de verdade, pois se “tanto a história como a ficção são

discursos, construtos humanos, sistemas de significação [...], é a partir dessa identidade que as

duas obtêm sua principal pretensão à verdade”.37 Pode-se dizer que a relação entre Literatura

e História deve nortear-se na questão de que ambas, ao reapresentar o passado para o presente,

impedem que esse passado seja conclusivo: “tanto a ficção como a história são sistemas

culturais de signos, construções ideológicas cuja ideologia inclui sua aparência de autônomas

e auto-suficientes”.38 Hutcheon dá a entender que, sendo a História e a Literatura um sistema

de signos, ou seja, construtos humanos que apresentam um passado que só pode ser conhecido

através de textos, tanto históricos quanto literários, “ambas fazem parte dos sistemas de

significação de nossa cultura, e aí está seu sentido e seu valor”.39

As considerações feitas não esgotam a análise do estatuto da ficção na narrativa

histórica ou da História na narrativa ficcional. A necessidade e a importância de examinar

alguns pontos diferenciais e semelhanças entre Literatura e História vêm cada vez mais

preocupando estudiosos das duas narrativas, como se procurou mostrar, de forma sucinta, na

presente revisão bibliográfica e conceitual. Destaca-se que as aproximações e distinções entre

os universos histórico e literário ainda possuem muitos pontos a serem explorados e

esclarecidos, mas não há dúvida de que os estudos confirmam uma diluição das fronteiras

entre ambos, especialmente com relação ao romance histórico, pelo caráter de

referencialidade e pela característica narrativa.

[...] sendo ficcionais, hão-de parecer verosímeis e directamente relacionados com o mundo apreendido pela nossa experiência. O romance, o conto e também a novela (e ainda as memórias, a autobiografia, etc.) formulam-se em prosa, porque é esta que cumpre uma dinâmica discursiva de continuidade, de regularidade e directa referencialidade [...].40

36 HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 122. 37 HUTCHEON, 1991, p. 126. 38 HUTCHEON, 1991, p. 149. 39 HUTCHEON, 1991, p. 182. 40 REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 258.

35

O redimensionamento das discussões envolvendo os campos históricos e literários é o

primeiro intento de constituir uma narrativa que tem como objetivo proporcionar novas

versões dos fatos históricos, distintos do discurso oficial. Essa forma de tomada de

consciência está relacionada ao reconhecimento de que a História se faz como discurso, em

que a capacidade de elaborar e fixar imagens através da narração revela-se um importante

mecanismo de construção das identidades, que é o tema deste estudo.

3 ENTRE-LUGAR: NO LIMIAR DAS FRONTEIRAS CULTURAIS

Merica, Merica, Merica, cosa sarà lá sta Merica? Merica, Merica, Merica,

è un bel massolino di fiori.

(Corso di língua e cultura italiana, 2002, p. 68)

37

A identidade cultural está intimamente ligada aos costumes, tradições, hábitos,

valores, crenças e modo de viver de um determinado povo, considerando-se, também, o

sentimento de pertencimento a uma comunidade. Desde as últimas décadas do século XX, ela

tem sido associada ao fenômeno sócio-demográfico das migrações e deslocamentos, que

causam o desenraizamento do indivíduo ou até de um grupo. Essas situações concorrem para

a formação de figurações e configurações múltiplas de identidade causadas pela busca do

sentido de pertencimento e pela tentativa de recuperar um lugar no mundo.

Nesse contexto, os Estudos Culturais têm por objeto analisar o modo pelo qual os

indivíduos interpretam a categoria do outro, conferindo-lhe um lugar, uma raça ou uma etnia.

O sentido de pertencimento vai além de um limite puramente físico, é a construção concreta e

simbólica de um espaço que o indivíduo reivindica como seu; que sintetiza todo o seu

percurso cultural; que é, ao mesmo tempo, identitário, relacional e histórico. Sem pertencer a

um lugar, o indivíduo encontra-se numa situação de fronteira e precisa (re)construir sua

identidade a partir das relações que mantém com os outros. Núbia Jacques Hanciau contribui

para essa temática ao destacar que

a fronteira constitui-se em encerramento de um espaço, limitação de algo, fixação de um conteúdo e de sentidos específicos, conceito que avança para os domínios da construção simbólica de pertencimento denominada identidade e que corresponde a um marco de referência imaginária, definido pela diferença e alteridade na relação com o outro.41

Considerando a identidade cultural como estabelecida pela relação eu/outro, introduz-

se o conceito de que a identidade é relacional, ou seja, ela é marcada pela diferença. “A

identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica

relativamente a outras identidades [...].”42 Os critérios que determinam essa diferença podem

variar em lugares e momentos particulares. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial,

a raça torna-se o critério de identidade. Posteriormente, passa-se a utilizar outro conceito: a

etnia. Stuart Hall43 recorre ao conceito de identificação para demarcar os termos da relação

entre identidade e diferença como um processo nunca completado em sua plenitude. A

diferença é assegurada pela afirmação de que não há fusão total entre o “mesmo” e o “outro”,

41 HANCIAU, Núbia Jacques. Entre-lugar. In.: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Editora UFJF/EDUFF, 2005, p. 133. 42 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In.: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 14. 43 HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In.: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 106.

38

que a fusão sugere, na verdade, uma fantasia de incorporação. As identidades são construídas

por meio da diferença e não fora dela.

As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa demarcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença.44

Essa representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio

dos quais os significados são produzidos, posicionando os sujeitos. É por meio dos

significados produzidos pelas representações que os sujeitos dão sentido àquilo que são e às

suas experiências. Conforme Kathryn Woodward,

a representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser?45

Nesse sentido, é pela construção de sistemas classificatórios que a cultura propicia os

meios de produção de sentido do mundo social, os quais são constituídos sempre em torno da

diferença e das formas pelas quais as diferenças são marcadas. Ou seja, é a partir do

compartilhamento dos sistemas de significação que se forma aquilo que se entende por

cultura. “A diferença é um elemento central dos sistemas classificatórios por meio dos quais

os significados são produzidos.”46 Nessa linha de pensamento, é possível depreender-se que

identidade e diferença possuem uma estreita relação de dependência. Se a identidade é aquilo

que se é, a diferença é aquilo que o outro é. Conforme Tomaz Tadeu da Silva, “assim como a

identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença

são, pois, inseparáveis”.47 O teórico salienta que as duas não podem ser compreendidas fora

dos sistemas de significação nos quais adquirem sentidos, pois são seres da cultura e dos

sistemas simbólicos que a compõem.

Se quisermos retomar o exemplo da identidade e da diferença cultural, a declaração de identidade ‘sou brasileiro’, ou seja, a identidade brasileira, carrega, contém em si mesma, o traço do outro, da diferença – ‘não sou italiano’, ‘não sou chinês’ etc. A mesmidade (ou identidade) porta sempre o traço da outridade (ou da diferença).48

44 WOODWARD, 2000, p. 39-40. 45 WOODWARD, 2000, p. 17. 46 WOODWARD, 2000, p. 67. 47 SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In.: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 75. 48 SILVA, 2000, p. 79.

39

Exemplificando essa teoria, Loraine Slomp Giron afirma que os imigrantes italianos,

quando chegaram ao Brasil, tinham uma expressão que resumia sua posição em relação ao

outro. “Diziam eles: ‘Brasiliani tutti neri’49, ou seja, ‘Brasileiros todos negros’, ainda que

tivessem apenas cabelos pretos e pele morena eram vistos por eles como negros.”50 Assim,

para a teoria cultural contemporânea, a identidade e a diferença estão estreitamente associadas

a sistemas de representação, concebidos como sistemas de significação.

A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. [...] a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.51

Se a identidade está ligada a sistemas de representação, o habitar num espaço novo

gera, no mínimo, insegurança pelo rompimento dos vínculos sociais e pela perda dos pontos

de referências culturais, sociais, lingüísticos e religiosos, podendo levar, entre outros fatores, à

dispersão de identidade. Essa perda de um sentido de si é o que Hall chama de “deslocamento

ou descentração do sujeito”.52 Nesse contexto, os fatores etnia, língua e comunidade são

características mais que fundamentais no processo de manutenção e consolidação de uma

memória coletiva que culmina, em última instância, na preservação de uma identidade.

A questão da identidade cultural tem sido vastamente examinada a partir das

discussões geradas pelos estudos que, segundo Homi Bhabha53, não possuem nome próprio

além do atual e controvertido deslizamento do prefixo “pós”: pós-colonial, pós-modernista,

pós-feminista... E qualquer pesquisa nesse sentido necessita tecer considerações a respeito da

concepção contemporânea de identidade. Hall54, em sua análise da evolução do conceito de

identidade, mapeia as mudanças de sentido causadas pelo que ele considera uma "crise"

originada pela ação conjunta de um duplo deslocamento: a descentralização dos indivíduos

tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos.

49 A autora citada utiliza a expressão neri; porém, se a referência é à cor da pele, costuma-se dizer brasiliani tutti negri. Na Itália, não é usada essa expressão por ser considerada depreciativa. Dir-se-ia brasiliani tutti di colore ou de pelle scura; usa-se neri em outras ocasiões, tais como: neri di rabbia (pretos de raiva). 50 GIRON, Loraine Slomp; RADÜNZ, Roberto. Imigração e cultura. Caxias do Sul: EDUSC, 2007, p. 41. 51 SILVA, 2000, p. 96-97. 52 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 9. 53 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 23. 54 HALL, 2005, p. 9.

40

Essa mutação desenvolve-se desde a postura de sujeito do Iluminismo, evoluindo para

a concepção de sujeito sociológico, até atingir o que os teóricos definem como o sujeito pós-

moderno. Do sujeito individualista do Iluminismo, centrado, dotado das capacidades de

consciência e razão, passa-se à noção de sujeito sociológico, que, pela primeira vez,

reconhece a importância de outros "eus", através dos quais os valores, sentidos e símbolos do

mundo por ele habitado são mediados. Há, portanto, um salto da individualização para a

interação. Embora o "eu real" permaneça, sua postura é terminantemente modificada pelo

diálogo contínuo com o mundo exterior.

Na pós-modernidade, surge um sujeito fragmentado, sem identidade fixa permanente,

que é formado e transformado continuamente em relação às formas pelas quais é representado

ou interpelado nos sistemas culturais que o rodeiam. A identidade torna-se uma "celebração

móvel", sendo definida histórica, e não biologicamente. O sujeito assume identidades

diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu"

coerente. Dentro do sujeito há identidades contraditórias, incitando em diferentes direções, de

tal modo que as identificações estão sendo continuamente deslocadas.

Aquelas pessoas que sustentam que as identidades modernas estão sendo fragmentadas argumentam que o que aconteceu à concepção do sujeito moderno, na modernidade tardia, não foi simplesmente sua desagregação, mas seu deslocamento. Elas descrevem esse deslocamento através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno.55

Hall enfatiza que a questão da identidade não está somente ligada ao sujeito, mas ao

caráter da mudança na modernidade tardia, principalmente ao que está relacionado com o

processo da globalização e de seu impacto sobre a identidade cultural. Ele salienta que são

cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridos no pensamento, no

período da modernidade tardia (segunda metade do século XX), que culminam com o

descentramento final do sujeito, referentes aos estudos de Karl Marx, Sigmund Freud,

Ferdinand Saussure, Michel Foucault e ao movimento feminista.

O primeiro descentramento é o estudo e reinterpretação da obra de Karl Marx. A

afirmação do estudioso de que o homem faz história, mas a faz sob condições históricas

criadas por outros homens, desloca qualquer noção de agência individual. Ele não coloca uma

noção abstrata de homem no centro de seu sistema teórico, mas sim, as relações sociais.

O segundo decorre da descoberta do inconsciente por Sigmund Freud. A teoria de

Freud de que as identidades, a sexualidade e a estrutura dos desejos são formadas com base

55 BHABHA, 1998, p. 34.

41

em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente arrasa o conceito do sujeito cognoscente

e racional, provido de uma identidade fixa e unificada, o sujeito cartesiano. A identidade é

formada ao longo do tempo, através de processos inconscientes. A grande questão que é

colocada sobre o trabalho de Freud é que os processos inconscientes não podem ser

facilmente observados ou pesquisados.

Por sua vez, o terceiro encontra-se associado ao trabalho do lingüista estrutural

Ferdinand de Saussure. Ele argumenta que os sujeitos não são, em nenhum sentido, os autores

das afirmações que fazem ou dos significados que expressam na língua. A língua é um

sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste ao sujeito. O falante individual não

pode, nunca, fixar o significado de uma forma final, incluindo o significado de sua identidade.

Existem sempre significados sobre os quais não se tem controle e estes estão sempre

provocando desconstruções nas mais sólidas construções.

Já o quarto descentramento apresentado por Hall incide no trabalho de Michel

Foucault, que produz uma espécie de genealogia do sujeito moderno, destacando um novo

tipo de poder que ele chama de poder disciplinador, que se desdobra ao longo do século XIX,

chegando ao seu desenvolvimento máximo no início do século XX. O poder disciplinador está

preocupado com a regulação, a vigilância e o governo da espécie humana. O objetivo do

poder disciplinador é manter as vidas, as atividades, o trabalho e os prazeres do indivíduo sob

astuto controle e disciplina, com base nos regimes administrativos.

Por fim, o quinto corresponde ao impacto do movimento feminista, tanto como uma

crítica teórica, quanto como um movimento social. Configura-se num movimento de

contestação e oposição, principalmente, à política liberal capitalista e às formas burocráticas

de organização. O movimento feminista tem relação direta com o descentramento conceitual

do sujeito cartesiano e sociológico ao questionar a clássica distinção entre o dentro/fora, o

privado/público; ao trazer à tona questões como família, sexualidade, trabalho doméstico; ao

enfatizar o tema da forma como os sujeitos são formados e produzidos como sujeitos

generificados; e, ainda, ao politizar a subjetividade, a identidade e o processo de identificação.

De acordo com Bhabha56, a existência do sujeito, conforme percebido na última

década do século XX, “é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas

fronteiras do ‘presente’”. Há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção: “[...]

encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir

figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e

56 BHABHA, 1998, p. 19.

42

exclusão”.57 Nessa perspectiva constituem-se os “entre-lugares” que, na abordagem teórica de

Bhabha, fornecem subsídios para a “elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou

coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e

contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade”.58

Nesse viés, tem-se, pois, a exigência da criação do novo como ato insurgente de

tradução cultural, não sendo o novo parte do continuum de passado e presente. Essa

(re)elaboração, enfim, “não apenas retoma o passado como causa social ou precedente

estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que

inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade,

e não da nostalgia, de viver”.59

Elemento fundamental nas pesquisas teóricas dos estudos pós-coloniais e contingência

do viver o interstício, o estar na fronteira implica o espírito de distanciamento que acompanha

a (re)integração ao lar e ao mundo, bem como a condição das iniciações extraterritoriais e

interculturais: a percepção de estranhamento, de não se sentir em casa (unhomeliness). Sentir-

se deslocado no lar ou espaço (unhomed) difere do estar sem-lar, sem espaço próprio

(homeless) e, de modo semelhante, classifica-se o estar estranho (unhomely) de forma

simplista dentro da divisão da vida privada e pública. “Nesse deslocamento, as fronteiras entre

casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado e o público tornam-se parte um do

outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanto desnorteadora.”60

Nota-se que a condição do ser fronteira conforma uma espécie de entre-lugar ou

terceiro espaço. A fronteira não se situa em nenhum dos pólos que exercem funções opostas

num raciocínio binário, isso porque ela é, ao mesmo tempo, um, outro, ambos e nenhum. A

condição de fronteira é conflagrada pela situação de ser borda, margem, franja. E não estar no

centro é tanto estar distante quanto ser diferente. É, pois, postular a posição do ser “estranho”.

A fronteira é, na verdade, menos uma linha que um espaço, menos um marco físico ou

natural que um sistema simbólico e, embora a conceituação jurídica acarrete, por si só, os

desdobramentos políticos, ela também encerra em si um significado que opera para além dos

aspectos territoriais, definindo-se como marco de referência identitária.

57 BHABHA, 1998, p. 19. 58 BHABHA, 1998, p. 20. 59 BHABHA, 1998, p. 27. 60 BHABHA, 1998, p. 30.

43

Em suma, a fronteira é um marco que limita e separa e que aponta sentidos socializados de reconhecimento. Com isso podemos ver que, mesmo nesta dimensão de abordagem fixada pela territorialidade e pela geopolítica, o conceito de fronteira já avança para os domínios daquela construção simbólica de pertencimento a que chamamos identidade e que corresponde a um marco de referência imaginária que se define pela diferença.61

Assim, conformando-se como construção de sentido que guia a percepção da realidade

em face das construções imaginárias de referência, a fronteira define princípios de

reconhecimento que propõem relações com os outros. Entretanto, ao representar não apenas

um trânsito de lugar, mas as condições favoráveis para o diálogo e para o intercâmbio, as

fronteiras podem configurar um espaço novo caracterizado pela imbricação. Na realidade, são

várias as possibilidades e questões que se apresentam ao se tentar compreender as fronteiras,

marcos divisórios que induzem a pensar na passagem de uma época, situação ou lugar a outro.

Pode-se detectar uma grande ambivalência:

de um lado, a desfronteirização alarga o conceito de unificação e abre novos campos de aceitação e identidade; de outro, se repetida, ou muito aberta, ao evidenciar os processos de globalização e seus movimentos, ela pode provocar a insegurança ou o medo da negação das identidades locais.62

De acordo com Hall, num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades

rompidas, as velhas certezas têm sido postas em questão. A continuidade e a historicidade da

identidade são questionadas pelo imediatismo e pela intensidade das confrontações culturais

globais.

[...] a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidade e novas posições de identificação [...].63

O teórico baseia-se em teorias de Kevis Robins64 para explicar tal fenômeno. Algumas

identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de “tradição”, tentando recuperar

sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido

perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da

representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou

61 PESAVENTO apud MARTINS, Maria Helena (Org.). Fronteiras culturais: Brasil – Uruguai – Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 36. 62 HANCIAU, 2005, p. 140. 63 HALL, 2005, p. 87. 64 ROBINS, Kevis. Tradition and translation: national culture in its global context. In: CORNER, J.; HARVEY, S. (Org.). Enterprise and heritage: crosscurrents of national culture. Londres: Routledge, 1991.

44

puras; e essas, conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins chama de

“tradução”65.

A tradução concebe a cultura como múltipla. Em toda parte do mundo estão

emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição.

Elas retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais, o que resulta

em indivíduos pertencentes a uma cultura híbrida que, por sua vez, constitui um dos diversos

tipos de identidade distintivamente novas produzidas atualmente. Dessa maneira, cabe voltar

ao conceito de tradução citado acima: a tradução descreve aquelas formações de identidade

que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram

dispersas para sempre de sua terra natal.

Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições,

quase sempre sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as

novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder

completamente suas identidades. Elas carregam traços das culturas, das tradições, das

linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não

são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto

de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a um e, ao mesmo tempo, a vários

lugares, e não a um espaço em particular.

Nesse sentido, Bhabha coloca que a dimensão transnacional da transformação cultural

– migração, diáspora, deslocamento – torna o processo de tradução cultural uma forma

complexa de significação. O discurso naturalizado, unificador, da nação ou da tradição

popular autêntica, esses mitos arraigados da particularidade da cultura, não pode ter

referências imediatas. Segundo ele, “a grande, embora desestabilizadora, vantagem dessa

posição é que ela nos torna progressivamente conscientes da construção da cultura e da

invenção da tradição”.66

O conceito de tradução, como é colocado por Hall e Bhabha, refere-se, então, às

identidades que foram ou estão sendo formadas por indivíduos ou grupos que sofreram algum

movimento de diáspora e que se encontram longe do seu lugar de origem, colocando suas

vivências culturais em intenso diálogo com as novas informações recebidas. Esse conceito

estende-se para além daqueles que tiveram, não importando o motivo, de se afastar de sua

terra de procedência, estabelecendo fluxos de trocas informacionais com várias formações ou

identidades culturais. O próprio Bhabha alerta para esses “tradutores” quando afirma que

65 HALL, 2005, p. 87. 66 BHABHA, 1998, p. 241.

45

toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o setenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e pensamento.67

Hall, no ensaio “Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior”, salienta que

diáspora é um conceito baseado fundamentalmente nas noções de alteridade e diferença. Esta,

vista tanto da perspectiva do desigual colocada a partir de uma análise binária, quanto numa

relação de posição e interação não binárias, explicitando “fronteiras veladas” e, segundo o

autor, “sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim”.68 Diáspora é uma

conceituação um tanto imprecisa, de difícil delimitação, uma vez que exposta a trocas

constantes com demais culturas em vigor num mesmo ambiente, num mesmo tempo. Stuart

Hall enfatiza que identidade de diáspora não é

definida por pureza ou essência, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e heteregeneidade necessárias; por uma concepção de ‘identidade’ que vive com e através, não a despeito, da diferença; por hibridização. Identidades de diáspora são as que estão constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da transformação e da diferença.69

Epistemologicamente, o termo diáspora origina-se do grego – diasporein – e significa

“semear”, “a dispersão das pessoas”.70 Nesse sentido, diáspora significa o espalhamento dos

povos, que saem de sua terra de origem para concretizar a vida em outros países ou em outros

continentes. As pessoas diaspóricas são aquelas que vivem longe de sua terra natal, real ou

imaginária, mas a origem se mostra ainda enraizada pela língua falada, religião adotada ou

culturas produzidas.

Seja de forma forçosa ou por opção própria, os povos que abandonam sua casa jamais

se desapegam das origens e mantêm, através da tradição, a cultura na qual nascem. Isso se dá

pela manutenção da língua, da religião, modo de pensar e agir. Mas essa cultura original, no

contexto diaspórico, está em constante transformação, de maneira que novos costumes

acabam sendo assimilados e interferem não apenas na identidade pessoal como na identidade

coletiva que, por sua vez, reflete a identidade cultural de determinado grupo.

67 BHABHA, 1998, p. 241. 68 HALL, Stuart. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In.: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2006, p. 33. 69 HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, p.68-75, 1996, p. 75. 70 BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Coleção Fundamentum, n° 12. Maringá: Eduem, 2005.

46

Talvez o exemplo mais antigo do conceito de diáspora possa ser resgatado da História.

Trata-se de uma cena bíblica do Velho Testamento (Livro do “Êxodo”), em que o chamado

“povo escolhido”, levado à escravidão no Egito, é guiado pelas mãos de Moisés em caminho à

Terra Prometida. É uma narrativa de libertação, que fala sobre algo especificamente humano,

seja em que tempo for: a crença na redenção, a fuga da opressão.

Os filhos de Israel partiram de Ramsés para Sucot: eram seiscentos mil homens a pé, sem contar as crianças. Subiu também com eles imensa multidão com ovelhas, gado e muitos animais. Assaram pães sem fermento com a farinha que haviam levado do Egito, pois a massa não estava levedada: é que, expulsos do Egito, não puderam parar, nem preparar provisões para o caminho.71

Muitos outros exemplos podem ilustrar a diáspora em outros momentos da História.

Desde os modelos coloniais, em que Nações-Estados constituídas buscaram a formação de

verdadeiros impérios pela apropriação e ocupação de terras no Novo Mundo, ou mesmo em

outros continentes, como o africano; até as correntes migratórias atuais, em que povos do

terceiro mundo, em especial, buscam novas e melhores condições de vida em países

desenvolvidos. Dentro desse quadro, pode ser citado o modelo caribenho, exposto por Stuart

Hall no artigo anteriormente referido.

O artigo fala sobre as experiências diaspóricas tanto de africanos inseridos como

escravos no Caribe pela colonização britânica, quanto de afro-caribenhos que migraram para

Londres (ou para o Canadá, ou Estados Unidos) e lá constituíram nova vida, compondo uma

minoria étnica que se identifica com as comunidades britânicas negras. Para aquele que muda

de lugar, há sempre um forte sentimento de identificação com a cultura de origem, mantida

através de costumes, crenças, língua ou sentimento de querer, um dia, retornar.

Os imigrantes italianos também constituem um modelo de diáspora. Deixaram seu país

basicamente por motivos econômicos e sócio-culturais. A emigração, que era muito praticada

na Europa, aliviava os países de pressões sócio-econômicas. Na Itália, depois de um longo

período de mais de 20 anos de lutas para a unificação do país, sua população, particularmente

a rural e mais pobre, tinha dificuldade de sobreviver, tanto nas pequenas propriedades que

possuía ou onde simplesmente trabalhava, quanto nas cidades, para onde se deslocava em

busca de trabalho.

Nessas condições, portanto, a emigração era não só estimulada pelo governo, como

era, também, uma solução de sobrevivência para as famílias. Assim, é possível entender a

71 Bíblia Sagrada. Português. Edição Pastoral. Trad.: Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1990, p. 83-84.

47

saída de cerca de sete milhões de italianos no período compreendido entre 1860 e 1920.72 No

Brasil, a imigração subvencionada estendeu-se de 1870 a 1930: as passagens eram

financiadas, bem como alojamento e o trabalho inicial no campo ou na lavoura. Os imigrantes

comprometiam-se com contratos que estabeleciam não só o local para onde se dirigiriam,

como igualmente as condições de trabalho a que se submeteriam. Como a imigração

subvencionada estimulava a vinda de famílias, e não de indivíduos isolados, nesse período

chegavam famílias numerosas, de cerca de uma dúzia de pessoas, e integradas por homens,

mulheres e crianças de mais de uma geração.

Seja no modelo bíblico, no caribenho ou no da emigração italiana, o espalhamento dos

povos, ocorrido por motivos diversos, parece carregar consigo algo em comum: em todos,

percebe-se a promessa do retorno redentor, que nem sempre acontece, mas que se enraíza na

mente das pessoas como um apego inquebrantável ao lugar de nascimento e uma forma de se

pensar na superação dos problemas mais imediatos pela possibilidade de um dia, quem sabe,

voltar à origem. Hall fala acerca disso, da formação de uma concepção fechada de “tribo”,

diáspora e pátria. Segundo o autor, possuir uma identidade cultural, nesse sentido, é estar em

contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa

linha ininterrupta. “Esse cordão umbilical é o que chamamos de ‘tradição’, cujo teste é o de

sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua ‘autenticidade’.”73

Compartilhando da mesma posição do crítico, considera-se que a diáspora interfere na

identidade cultural dos povos, de maneira que não se pode concebê-la como linear, sucessiva.

Os povos, e tudo que os representa, não começam nem terminam em fronteiras facilmente

distinguíveis e, nesse contexto, os outros acabam tendo um papel fundamental na construção

dos sujeitos. O sentimento de pertencer é algo móvel, não estanque, construído, segundo

Benedict Anderson74, a partir de um “sujeito imaginado” que, por sua vez, faz parte de uma

“comunidade imaginada”, que está sempre em jogo. Dessa forma, a diferença é construída

segundo significados e posições sempre relacionais e em constante transformação.

Nesse contexto, a cultura se renova, se amplia, bem como a identidade cultural do

povo submetido a essas trocas. Outros sujeitos são construídos, e esses novos que surgem têm

seu imaginário reformulado, remoldado à luz da zona de contato. O fato é que essa

intersecção cultural e identitária propiciada no plano físico-geográfico pela diáspora, pelo

72 GOMES, Ângela de Castro. Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade. In: Brasil: 500 anos de povoamento/IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações. 2 ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. 73 HALL, 2006, p. 29. 74 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1989.

48

dispersamento dos povos que saem de sua terra e passam a viver noutra, não faz com que haja

o abandono das origens. As raízes se mantêm, mas também se misturam na nova situação de

vida apresentada; entretanto, há também, para muitos, o sonho do retorno.

Esse é um dos motivos que obriga a pensar a diáspora numa concepção mais ampla,

numa reflexão em que está inconfundivelmente presa à construção de identidades culturais.

Sair de casa, mudar de lar, não pode ser entendido apenas como processo histórico linear ou,

como nos mitos, processo cíclico. O mesmo se pode dizer do retorno ao ponto de partida. A

diáspora muda os que saem, os que já estão e os que ficam.

[...] a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma produção. [...] Mas o que esse ‘desvio através de seus passados’ faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem por nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.75

Identidade e cultura estão, assim, de tal forma imbricadas que é impraticável separá-

las, e essas reflexões vêm mais claramente à tona quando se enfatiza um processo diaspórico.

A terra natal – nome genérico com o qual se denomina o solo onde se plantam as raízes –

representa a própria nação da qual os povos fazem parte, e de modo tão íntimo, que se torna

impossível não pertencer a nação nenhuma. Esse laço que une o homem à terra se instala de

forma a produzir um sentimento de necessidade, apesar de ser, antes de mais nada, uma

construção simbólica, uma “comunidade imaginada”.

Desse modo, como sugere Stuart Hall em seu livro A identidade cultural na pós-

modernidade, a nação pode ser entendida como algo que produz sentidos e que organiza o

campo a partir do qual o sujeito constrói a sua identidade de acordo com uma cultura

nacional. Através dessa concepção, a cultura nacional adquire a forma de um discurso,

gerando sentidos e construindo identidades.

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu passado e imagens que dela são construídas.76

75 HALL, 2006, p. 43. 76 HALL, 2005, p. 9.

49

O teórico reflete sobre o ideário da nação lembrando que as identidades nacionais não

estão incutidas nos genes dos seres humanos e qualquer noção de pertencimento a uma

cultura, a uma comunidade ou a uma região vem acompanhada de um conjunto de

significados que é atribuído como representação de um sentimento nacionalista (de uma

"brasilidade", de uma "inglesidade", ou até, acrescenta-se, de uma "baianidade"). Isso reforça

a idéia de nação também como uma comunidade poderosamente simbólica – a comunhão e a

integração nacionalista entre as pessoas que a compõe, nesse sentido, dependerá da força que

os elementos simbólicos exercem sobre elas.

Historicamente, a identidade nacional tem sido um aforismo no processo de

construção das modernas nacionalidades. Ela transforma-se através do tempo, da mesma

forma que a própria idéia da nação vai se modificando. Essas transformações no campo da

identidade dizem respeito principalmente à lealdade que os sujeitos prestam à nacionalidade

em relação às demais formas de identificações coletivas.

Conforme Benedict Anderson77, o nacionalismo deve ser compreendido pondo-o lado

a lado com os sistemas culturais amplos que o precederam e a partir dos quais passaram a

existir. Segundo ele, os dois sistemas culturais primordiais para o surgimento de uma

consciência nacional foram a comunidade religiosa e o reino dinástico. Todas as comunidades

clássicas concebiam-se como cosmicamente centrais, mediante uma linguagem sagrada

vinculada a uma ordem de poder supra terrestre. Apesar de toda a grandeza e poder das

comunidades imaginadas religiosamente, sua coerência deliberada desvaneceu-se,

rapidamente, depois do final da Idade Média.

Essa decadência deu-se por dois motivos essenciais: em primeiro lugar, as navegações

e a descoberta do mundo não-europeu alargaram o horizonte cultural e geográfico e, com isso,

também a concepção dos homens sobre as formas possíveis de vida humana; em segundo, a

deteriorização gradual da própria língua sagrada. A decadência do latim exemplificava um

vasto processo em que as comunidades sagradas, gradualmente, se fragmentavam,

pluralizavam e territorializavam.

No reino dinástico, mantinha-se a crença de que a sociedade se organizava de maneira

natural em torno de centros elevados – monarcas que se distinguiam dos outros seres humanos

e que governavam por alguma forma de disposição cosmológica (divina). As lealdades

humanas eram, necessariamente, hierárquicas e centrípetas, porque o governante, como a

escrita sagrada, era um ponto central de acesso à existência e a ela inerente. Contudo, durante

77 ANDERSON, 1989.

50

o século XVII, a legitimidade automática da monarquia sagrada começou também a decair.

“Ainda em 1914, os Estados dinásticos constituíam a maioria dos componentes do sistema

político mundial, mas [...] muitos dinastas já vinham há algum tempo adquirindo um cunho

‘nacional’, à medida que o antigo princípio da Legitimidade fenecia silenciosamente.”78

Anderson vai além na sua teoria do surgimento das nações como comunidades

imaginadas.

[...] seria uma visão acanhada, porém, pensar que as comunidades imaginadas das nações simplesmente tenham brotado das comunidades religiosas e dos reinos dinásticos e tomado seu lugar. Por trás da decadência das comunidades, línguas e linhagens sagradas, tinha lugar uma mudança fundamental nos modos de apreender o mundo, que, mais do que qualquer outra coisa, tornou possível ‘pensar’ a nação.79

Assim, para o nascimento da comunidade imaginada da nação, duas formas de

imaginar que floresceram na Europa, no século XVIII, foram fundamentais: o romance e o

jornal, os quais seduziram e impulsionaram um número cada vez maior de pessoas a refletir

sobre si mesmas e, também, em relação ao grupo em que estavam inseridas. O romance abriu

precedentes para que o leitor, como integrante de uma comunidade e de uma cultura,

interpretasse a narrativa.

O jornal, por sua vez, apresentava uma tendência ficcional, não passava de uma forma

extrema do livro (são best-sellers por um só dia). Além disso, o jornal apresentava uma

cerimônia de massa paradoxal que se desenrolava em silenciosa intimidade, mas, por outro

lado, estava consciente de que a cerimônia executada estava sendo replicada,

simultaneamente, por milhares de outros, de cuja existência estava seguro.

O princípio básico para a existência das nacionalidades, conforme Renan, foi

introduzido no mundo através das invasões germânicas, iniciadas no século V. Para isso, eles

“impuseram dinastias e uma aristocracia militar a partes mais ou menos consideráveis do

antigo Império do Ocidente, partes estas que tomaram o nome de seus invasores”.80 Ou seja,

as populações invadidas fundiram-se aos invasores, adotando a religião do vencedor,

esquecendo a língua do vencido e misturando as raças. Assim, os grupos que anteriormente

eram distintos não mais podiam distinguir-se, resultando no próprio modelo de nação. Esse

fato traz à tona um importante aspecto para a formação de uma nação: o esquecimento. Todos

78 ANDERSON, 1989, p. 30. 79 ANDERSON, 1989, p. 31. 80 RENAN, Ernest. O que é uma nação? In.: ROUANET, Maria Helena. Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p. 16.

51

os aspectos históricos decorrentes da dominação de um povo sobre o outro devem ser

deixados de lado. Assim, “a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muito

em comum, e também que todos tenham esquecido muitas coisas”.81

Essa série de fatores que convergem para um mesmo ponto constitui a noção moderna

de nação. Certos teóricos políticos afirmam que uma nação é, antes de qualquer coisa, uma

dinastia. Porém, no transcurso da História – como é o caso dos Estados Unidos – já ficou

provado que uma nação pode existir sem princípio dinástico, pois, além do direito dinástico,

há o direito nacional. Com relação ao último, que critérios devem reconhecê-lo? Diversos

fatos se apresentam, porém, isolados, não sustentam o conceito.

Para Ernest Renan82, as formas da sociedade humana são as mais variadas possíveis:

grandes aglomerações de homens, tribo, cidade, reuniões de países diversos, comunidades

sem pátria, nações, confederações e outros. Tais agrupamentos relacionam-se a diversos

aspectos de identificação, entre eles raça, língua, religião, interesses e geografia; porém, a

formação da nação não pode ser confundida ou conceituada a partir desses fatores, conforme

os argumentos de Renan.

O primeiro argumento refere-se à raça, salientando que as origens zoológicas da

humanidade são imensamente anteriores às origens da cultura, da civilização, da linguagem.

Nenhum grupo étnico brotou isoladamente, portanto, não há raça pura ou única. Ela é algo

que se faz e se desfaz. O segundo enfoca que, antes de ser confiado a tal ou qual língua, o

homem é um ser dotado de razão e moral. Assim, a sua vontade influencia muito mais na

reunião de um grupo do que a língua. O terceiro centra-se na religião, enfocando que não

existem mais massas crendo de modo uniforme. A religião tornou-se coisa individual. O

quarto são os interesses que, apesar de serem laços poderosos, não são suficientes para fazer

uma nação. Relacionam-se mais a transações comerciais. E, por fim, a geografia certamente

tem papel considerável na formação de uma nação.

No entanto, a nação é um princípio espiritual, uma alma, estando acima de qualquer

espaço físico.

O homem não é escravo de sua raça, nem de sua língua, nem de sua religião, nem do curso dos grandes rios, nem da direção das cadeias de montanhas. Uma grande agregação de homens, de espírito são e coração caloroso, cria uma consciência moral que se chama nação. Enquanto esta consciência moral provar sua força através dos sacrifícios exigidos pela abdicação do indivíduo em prol de uma comunidade, ela será legítima, e terá o direito de existir.83

81 RENAN, 1997, p. 20. 82 RENAN, 1997, p. 12-43. 83 RENAN, 1997, p. 42-43.

52

Dessa forma, a partir dos estudos de Renan, o elemento que distingue uma nação da

outra é a vontade humana de viver junto, buscando os mesmos ideais nas tristezas e alegrias,

nas derrotas e vitórias. Essa solidariedade deve ser contínua, supondo um passado grandioso e

um presente expresso na vida em comum.

Retomando a perspectiva de Benedict Anderson84, o nacionalismo surge no Novo

Mundo e não no Velho, devido à necessidade dos americanos de encontrarem sua própria

identidade, uma vez que viveram tanto tempo sob o jugo de outros povos. Eles precisavam

conquistar a autonomia nacional. Esse processo de formação de comunidades americanas

livres iniciou, primeiramente, nos Estados Unidos da América, com a Declaração de

Independência das Treze Colônias, em 1776.

Esse foi o primeiro fato – seguido por vários outros – determinantes para a ruptura do

velho e o surgimento do novo. A ruptura com o passado, de acordo com Michelet85, requer a

exumação de pessoas e eventos que possibilitaram o desligamento com o velho e o

surgimento de uma consciência nova. Ele enfatiza o seguinte: “nunca perdi de vista, em

minha carreira, este dever do historiador. Dei a muitos mortos por demais esquecidos a

assistência de que eu próprio precisarei”.

Por outro lado, Anderson revela precisamente a preocupação com o esquecimento,

caracterizando-o como “fator essencial para a criação de uma nação”.86 Isso remete a uma

contradição, pois, ao salientar a necessidade de esquecer determinados fatos históricos para

tornar possível o engrandecimento nacional, as próprias palavras os recordam. Na realidade,

esquecer o que precisa ser constantemente lembrado revela-se um dos mecanismos para a

construção das genealogias nacionais. A História tem mostrado que há dificuldades em se

esquecer determinados acontecimentos, especialmente, aqueles relacionados à exploração e

dizimação de determinadas raças por outras.

Seguindo um processo natural, todas as mudanças na consciência acabam deixando

lacunas na História das nações. Para que esses esquecimentos pudessem ser preenchidos,

surgiram as narrativas. Ou seja, aquilo que não podia ser lembrado devia ser narrado, sendo

recriado a partir de evidências históricas, complementando a identidade nacional. Nesse

sentido, a biografia das nações pode ser comparada à das pessoas. Porém, “na história secular

84 ANDERSON, Benedict. Memória e esquecimento. In: ROUANET, Maria Helena. Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p. 60-97. 85 MICHELET apud ANDERSON, 1997, p. 80. 86 ANDERSON, 1997, p. 87.

53

da pessoa, há um começo e um fim. [...] As nações, contudo, não têm nascimentos claramente

identificáveis e sua morte, caso ocorra, nunca é natural”.87

As origens das nações, assim como das narrativas, perdem-se nos mitos do tempo e apenas na memória seus horizontes se realizam plenamente. Esta imagem da nação – ou narração – pode parecer excessivamente metafórica, mesmo desesperadamente romântica, mas é a partir das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge, no Ocidente, como uma poderosa idéia histórica.88

Essa afirmação de Bhabha justifica a importância da narração para a nação: é preciso

narrar, contar a História da nação para que ela exista. A narrativa é mítica, sendo aceita como

verdadeira por força da tradição e assumindo um caráter primordial. A narração revela uma

ambivalência entre os que a escrevem e os que a vivem. Embora haja consciência das origens

da nação como signo de modernidade, é preciso enfatizar que a temporalidade cultural da

nação implica uma realidade social de transição. Nesse sentido, a nacionalidade deve ser

considerada em toda a amplitude, entendendo os grandes sistemas culturais que o precederam

e a partir dos quais passou a existir.

O estudo da nação através de seu discurso narrativo precisa ser bastante cuidadoso,

pois pode tornar-se algo restrito e, conseqüentemente, ineficaz como leitura nacional. O valor

textual da nação precisa estar vinculado a todas as significações da nação e associado à vida

nacional. Como afirma Bhabha,

[...] a perspectiva ambivalente e antagônica da nação como narração estabelecerá as fronteiras culturais da nação, para que possam ser reconhecidas como ‘detentoras’ de limiares de significações que devem ser atravessados, apagados e traduzidos no processo de produção cultural.89

Além disso, é preciso levar em consideração que a unidade da nação está inserida em

um espaço mais amplo que converge para as fronteiras: a dimensão internacional. A

construção dessa perspectiva internacional é um processo posterior ao da tomada de

consciência nacional, mas precisa ser explorado para o engrandecimento e fortalecimento da

nação, tanto dentro dos limites do espaço-nação quanto nas fronteiras entre nações e povos.

“O ‘outro’ nunca está fora ou além de nós; ele força sua emergência dentro do discurso

87 ANDERSON, 1997, p. 95. 88 BHABHA, Homi K. Narrando a nação. In: ROUANET, Maria Helena. Nacionalidade em questão. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p. 48. 89 BHABHA, p. 56-57.

54

cultural, quando achamos que estamos falando ‘entre nós’ da maneira mais íntima e mais

regional.”90

Dessa forma, cada povo precisa conquistar sua nação para realmente sê-lo e poder

narrar sua História. Nesse contexto, a análise da constituição de processos identitários

encontra na ficção um meio privilegiado, especialmente no caso de narrativas que mais

explicitamente representam a entidade nacional. A estreita ligação entre narrativa e nação tem

sido com freqüência objeto de estudo. Zilá Bernd91 destaca que, no interior das literaturas

fortemente voltadas para a consolidação de um projeto identitário, o sujeito emergente

procura reapropriar-se de um espaço existencial. Nessas circunstâncias, o discurso literário

produzido “é marcado pelo desaparecimento do ‘eu’ individual em favor de um ‘nós’

coletivo”.92

Por sua vez, Paul Ricoeur93 afirma que a construção da identidade é indissociável da

narrativa e, conseqüentemente, da Literatura.

Identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se é, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se encontra.

A busca de um indivíduo ou uma comunidade por essa definição identitária pode,

conforme Edouard Glissant94, caracterizar duas funções da Literatura, a função de

dessacralização e a de sacralização:

Há a função de dessacralização, função de desmontagem das engrenagens de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escondidos, de desmistificar. Há também uma função de sacralização, de união da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia.

Nesse sentido, Bernd95 argumenta que uma Literatura que se atribui a missão de

articular o projeto nacional, procurando fazer emergir os mitos fundadores de uma

comunidade e recuperando sua memória coletiva, passa a exercer somente a função

sacralizante, ou seja, busca uma construção unificadora que é própria de uma consciência

90 BHABHA, 1997, p. 68. 91 BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1992. 92 BERND, 1992, p. 14. 93 RICOEUR, 1997, p. 432. 94 GLISSANT, Edouard apud BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1992, p. 17. 95 BERND, 1992, p. 17-18.

55

ingênua, única. Por outro lado, uma Literatura que concebe a identidade nacional no sentido

de sua dessacralização estabelece um pensamento politizado, abrindo-se para o diverso e

possibilitando relações entre as diferentes culturas.

Considerando-se a função dessacralizante, nesta pesquisa, busca-se o entendimento de

como a Literatura representa a identidade cultural do sujeito nos entre-lugares, criados e

caracterizados por diversos processos inter e transculturais. A identidade é estabelecida e

construída por meio de uma negociação de elementos, forças e práticas culturais – uma

hibridização mundana ambivalente de conexão e desconexão, preservação e transformação

baseada num complexo processo de memória e esquecimento –, possibilitando que novas

posições identitárias alternativas possam ser mobilizadas e improvisadas nessa zona

fronteiriça.

Em textos literários, analisar o deslocamento e a relocalização da identidade num

contexto inter e transcultural significa mapear a identidade num contexto textual e

extratextual dentro de, entre e através de fronteiras, e delinear a identidade que focaliza o

contexto. Significa examinar a relação entre a localização de um sujeito (por exemplo:

etnicidade, raça, classe, gênero, sexualidade, idade, etc.) e sua identidade como um processo

contínuo de negociação que envolve relações, forças e práticas socioculturais, econômicas,

políticas e históricas de continuidade, descontinuidade e hibridização.

Bernd96 associa o termo híbrido a identidades construídas, ambíguas, impuras,

heterogêneas e deslocadas. Ela acredita na possibilidade fertilizadora da “inscrição

subversiva” de culturas marginais nas culturas hegemônicas. Podem-se observar

manifestações de “hibridação literária” na estética, na construção de personagens e/ou

narrativas propriamente ditas. Assim, o importante é a análise de processos mediante os quais

identidades são construídas dentro de e através de campos de diferença. Teorizar as conexões

entre localizações, experiências e identidades socioculturais significa analisar o processo do

“ser-estar no mundo” das personagens, ou seja, as ligações causais entre o ser de um sujeito –

as categorias historicamente constituídas e socioculturalmente determinadas que formam as

diversas localizações sociais de um sujeito, bem como suas experiências.

O presente estudo é norteado pela idéia de que as identidades não se configuram como

coisas com as quais o indivíduo nasce, mas são formadas e transformadas no interior da

representação. Assim, a intenção é apontar como ocorre o processo de (re)construção da

96 BERND, Zilá. Escrituras híbridas: estudos em literatura comparada interamericana. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1998.

56

identidade dos imigrantes italianos que se estabelecem no Rio Grande do Sul, mais

especificamente, na região onde hoje se localiza o município de Caxias do Sul, no final do

século XIX.

O ponto central encontra-se na reconfiguração do entre-lugar como um espaço de

adaptação e negociação cultural. Dessa forma, pretende-se analisar como se processam as

relações culturais e nacionais desse grupo, enfocando os modos diferenciais através dos quais

eles foram sendo incorporados aos (ou excluídos dos) projetos de nação de seus países de

origem e recepção, tanto na História quanto na Literatura, a partir da narrativa A Cocanha, de

José Clemente Pozenato.

4 A COCANHA: ENTRELAÇAMENTO DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO NA

(RE)CONTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL

In America noi siamo arrivati, non abbiam(o) trovato né paglia, né fieno.

Abbiam(o) dormito sul nudo terreno, come le bestie abbiam(o) riposa(to).

(Corso di língua e cultura italiana, 2002, p. 68)

58

José Clemente Pozenato, na obra A Cocanha, revela uma outra visão sobre o

fenômeno imigratório no Rio Grande do Sul, não focalizando os fatos como documentos, mas

revisando a História oficial dos imigrantes italianos que chegam ao Estado no final do século

XIX pelo viés da ficção. Ao (re)contar a História a partir da Literatura, ele acaba destituindo-

se do compromisso com a verdade e, ao mesmo tempo, tendo a possibilidade de apresentar,

livremente, novas versões da História.

Como texto literário, o romance em estudo prima pela verossimilhança e não pela

verdade. No entanto, o autor constrói suas personagens baseado nos pioneiros italianos que

emigraram para a serra gaúcha. Eles representam ações vividas pelos imigrantes, incluindo

acontecimentos não contados pela História.

Pozenato, ao recuperar a saga do imigrante, desenha o percurso de seus deslocamentos: os imigrantes, vindos de Roncà, vão à Verona, atravessam o mar, passando pelas Ilhas Canárias. No Brasil, passavam por Fernando de Noronha até chegar ao Rio de Janeiro. De lá, seguiam para Porto Alegre, com destino a Nova Palmira, São Pedro e, depois, ao Campo dos Bugres na região do Alto da Serra. Os colonos viam esta chegada como um simulacro da entrada no Paraíso.97

Os imigrantes italianos deixam seu país basicamente por motivos econômicos e sócio-

culturais. Essa situação histórica é descrita de forma verossímil por Pozenato, fazendo com

que o pacto de leitura institua uma relação de cumplicidade entre a voz narrativa e o leitor,

podendo-se ler o romance como a representação da História dos imigrantes italianos que se

estabelecem na região da serra do Rio Grande do Sul no final do século XIX. Essa perspectiva

remete à hipótese de Ricoeur, ao analisar a historicização da ficção, defendendo que a

narrativa de ficção imita, de certa maneira, a narrativa histórica.

A narrativa de ficção é quase histórica, na medida em que os acontecimentos irreais que ela relata são fatos passados para a voz narrativa que se dirige ao leitor; é assim que eles se parecem com acontecimentos passados e a ficção se parece com a história.98

O processo de aculturação e assimilação vivenciado pelas personagens fictícias de

Pozenato confunde-se com aquele por que passaram milhares de imigrantes italianos com

destino à América. Trata-se, pois, de um texto ficcional que traz uma visão singular da

História da imigração no Brasil. O diálogo entre a História oficial e a ficção resgata o

97 BONIATTI, Ilva Maria. Paesi di cuccagna, tradições locais e regionais: a colonização italiana no Alto da Serra, Sul do Brasil. In: POZENATO, José Clemente; RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Julio (Org.). Cultura, imigração e memória: percursos & horizontes - 25 Anos do ECIRS. Caxias do Sul: Educs, 2004. 98 RICOEUR, 1997, p. 329.

59

percurso existencial de uma parcela significativa da sociedade brasileira, através da

tematização do fenômeno da imigração.

4.1 A História dos caminhos para a Cocanha

Os imigrantes italianos começam a chegar ao Brasil em 1875. Fugindo da penúria,

sonham com o país da fartura, ou seja, com a Cocanha. Os problemas políticos e econômicos

enfrentados na Itália e a necessidade de mão-de-obra no Brasil formam uma situação ideal

para o surgimento de um intenso fenômeno emigratório na Itália, no período compreendido

entre o final do século XIX e o início do século XX. Esse movimento é uma conseqüência

direta da Revolução Industrial, tendo ocorrido em toda a Europa. Em todos os países, há

numerosa população excedente no campo e na cidade. De outro lado, há um mercado para

mão-de-obra barata na América, especialmente devido às crescentes restrições ao tráfico de

escravos africanos.

Das Províncias de Vêneto, Bellum, Treviso, Piemonte e Toscana (Norte da Itália), provém nossa imigração. O Norte da Itália era a região mais atingida pela crise econômica. A América revestia-se de um contexto utópico e apresentada astuciosamente pelos Agentes de Imigração, como uma terra prometida, fascinava os agricultores, tanto mais que sua situação de camponeses sem terra e sem futuro tornava-se sempre mais dramática.99

A realidade econômica e social na Itália diante dos problemas da recente Unificação e

do advento da Revolução Industrial mostra-se confusa para boa parte da população, que se

encontra sem defensores e condenada à miséria e à fome. Os pequenos agricultores estão

presos a uma estrutura fundiária que não permite o sustento de suas famílias, em sua maioria

numerosas. No Norte da Itália, as propriedades rurais são pequenas e o cultivo de lotes cada

vez menores torna-se insuficiente para a subsistência do grupo familiar. Por sua vez, a

indústria do Norte não é capaz de absorver a grande quantidade de mão-de-obra disponível.

Conjugado a esse último fator, observa-se a destruição da pequena indústria artesanal que

serve de complemento à renda dos camponeses.

99 MANFROI, Olívio. A colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações econômicas, políticas e culturais. Porto Alegre: Grafosul, 1973, p.180.

60

O artesanato rural italiano foi golpeado pela expansão da produção industrial. A indústria itálica era incapaz de absorver os braços expulsos do campo. Os pequenos arrendatários do setentrião sofriam sob o jugo dos altos aluguéis dos minifúndios, dos pesados impostos, dos rústicos métodos agrícolas, da baixa fertilidade da terra.100

Assim, recém-unificada e em transição acelerada do feudalismo para o capitalismo,

bem como saindo das lutas de um processo de unificação política inevitavelmente sofrido para

sua população – especialmente a rural e mais pobre –, constituída por quase 30 milhões de

habitantes, a Itália torna-se o melhor dos mercados de mão-de-obra barata e abundante em

1870. Milhões de italianos têm bons motivos para acreditar na Cocanha e buscar sua

concretização, mesmo que, para isso, precisem atravessar um oceano.

Com a unificação italiana os problemas econômicos agravaram-se. O processo de unificação não havia trazido consigo a solução de problemas que haviam nascido da decadência do feudalismo e da instalação do sistema capitalista. A agricultura ainda estava estruturada em moldes arcaicos, e não propiciava condições necessárias à população agrária para enfrentar a crise instalada. A influência da unificação sobre a economia italiana não resolveu questões que a população acreditava que fossem solucionadas pela via política, como a diminuição do custo de vida, salários mais altos e redução das taxas alfandegárias. A Itália convivia com regiões desenvolvidas e regiões atrasadas e as contradições desses dois modelos era gritante para àqueles que não tinham o mínimo para viver.101

Por esse contexto, é possível entender por que a Itália, naquele período, estimula a

emigração. Trata-se de um mecanismo para aliviar o país das pressões sócio-econômicas, bem

como alimentá-lo com um fluxo de renda vindo do exterior. Para os que emigram, trata-se,

primeiramente, de questão de sobrevivência e, em segundo, da chance de possuir um pedaço

de terra e enriquecer. Partem para a América para fugir da fome, da exploração no trabalho,

do salário irrisório, do alto aluguel da terra. A colonização americana oferece a possibilidade

de realizar uma das mais importantes aspirações do agricultor: transformar-se em proprietário

de um pedaço de terra, garantindo a sobrevivência do grupo familiar.

Para os imigrantes que povoaram o Nordeste do Rio Grande do Sul, a propriedade da terra era a aspiração máxima, meta pela qual deixaram a pátria natal. A propriedade dava-lhes a garantia contra a exploração de outros indivíduos, e ainda possibilitava ao grupo familiar a segurança contra a fome e a miséria, permitindo a mudança da antiga condição de servo de gleba para a de senhor de sua terra, ou seja, a de ascensão social.102

100 CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. Raízes italianas do RS. Passo Fundo: UPF, 2000, p. 16. 101 POZENATO, José Clemente; RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Julio (Org.). Cultura, imigração e memória: percursos & horizontes - 25 Anos do ECIRS. Caxias do Sul: Educs, 2004. p. 298/299. 102 GIRON; RADÜNZ, 2007, p. 19.

61

Atraídos por uma propaganda que lhes garante passagem, alojamento e deslocamento

gratuitos até a localidade de destino, partem para fazer a América. “[...] entre 1870 e 1920,

momento áureo do largo período denominado como da ‘grande imigração’, os italianos

corresponderam a 42% do total dos imigrantes entrados no Brasil, ou seja, [...] eram cerca de

1,4 milhão.”103 Para o aliciamento, a figura do agente de viagens passa a ser o foco das

atenções: promete que os emigrantes, quando chegarem ao Brasil, receberão todo o necessário

para iniciar suas vidas, estipulando condições de pagamentos por longos anos. Esse tipo de

mensagem acaba alimentando muitas esperanças e provocando um alistamento em larga

escala.

Porém, a viagem em busca da Cocanha é difícil desde a partida. Gênova, no

Mediterrâneo Ocidental, é o principal porto de embarque italiano para o sul do Brasil. Os

emigrantes viajam por cerca de trinta a quarenta dias, na terceira classe de um navio

superlotado, sem assistência médica, comida precária, dormindo no chão. A travessia pelo

mar é feita em navios seguros, mas em terceira classe, sobrecarregados além de sua

capacidade e em difíceis condições de higiene. Não há médico a bordo, nem remédios para

doenças mais graves. Muitas pessoas não sobrevivem à viagem.

Freqüentemente, passavam 15 ou 20 dias e, até mesmo um mês, no porto, aguardando que se reunisse um considerável número de imigrantes. A travessia do Oceano, em condições precárias, em navios sobrecarregados, marcou profundamente os imigrantes italianos. Há, muito freqüentemente, lamentações dos colonos quanto ao mau tratamento, falta de espaço e à perda de bagagens nos navios transatlânticos.104

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, os imigrantes ficam de quarentena na Ilha das

Flores. Desse ponto, partem em vapores para Rio Grande numa viagem de dez ou mais dias,

passando posteriormente para barcos menores, nos quais chegam a Porto Alegre. Na capital

gaúcha, são alojados em barracões, seguindo, dias depois, em pequenas embarcações, até

Montenegro, São Sebastião do Caí ou Rio Pardo. Desses locais, a viagem prossegue a pé, em

lombo de burro ou carretas.

Os imigrantes que chegavam à capital eram alojados em um prédio especialmente destinado para eles ou dormiam nas ruas e praças próximas. A seguir, os que se dirigiam à Serra partiam da capital em pequenas embarcações, que navegavam pelo Caí por sete ou mais horas. [...]

103 GOMES, 2007, p. 161. 104 COSTA, Rovílio et al. Imigração italiana no Rio Grande do Sul: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: EST/EDUCS, 1986, p. 14/15.

62

Inicialmente, os primeiros colonos concluíam a viagem até as colônias com uma marcha de uns três dias, feita a pé ou no lombo de mulas, através de picadas e caminhos estreitos e íngremes, apenas abertos na mata virgem, logo, esses caminhos transformaram-se em estradas carroçáveis, ainda que precárias. No final da difícil viagem, eram alojados no barracão dos imigrantes ou enviados aos lotes coloniais, se já demarcados.105

É uma viagem bastante difícil, após a qual, os imigrantes ainda percorrem caminhos

abertos na mata virgem durante vários dias. Na colônia, voltam a ficar em barracões de

madeira, as chamadas Casas de Agasalho, até serem fixados em suas propriedades. Os

homens saem ao amanhecer para trabalhar e, à noite, retornam para o barracão. Essa situação

dura o tempo suficiente para limparem o terreno e erguerem uma improvisada moradia no

respectivo lote. As primeiras casas são muito precárias e improvisadas, pois são erguidas em

caráter de emergência, para se protegerem do frio e dos animais. Às vezes, é apenas um

rancho de pau a pique, coberto de palhas. Muitas são construídas com varas ou pranchas de

araucária, cobertas com folhas ou tábua lascada, denominada scandole.

Em geral, uns trezentos metros separavam as moradias de dois lotes coloniais vizinhos. Elas eram construídas com tábuas rachadas e serradas de pinheiros e, mais raramente, com pedras e tijolos. Inicialmente, as coberturas eram de pequenas tábuas de pinheiro – scandole – e, a seguir, em telhas e em zinco.106

As moradias definitivas são de madeira ou pedra, e sempre bem amplas. O

lambrequin, detalhe decorativo, de madeira recortada na borda dos telhados, torna-se marca

registrada das casas de imigrantes italianos. Os locais preferidos para a construção das

moradias são as encostas suaves, para facilitar a localização do porão, indispensável para

depositar cereais, carnear animais, servir como cantina para o vinho e a graspa. Para a

fabricação de tábuas, cortam-se as toras de araucária com serra manual, um trabalho bastante

árduo. A cumeeira é alta, para dar lugar a um sótão onde se pode guardar, sem risco de

umidade, diversos tipos de grãos, como amendoim, feijão, lentilha.

A cozinha localiza-se, em geral, separadamente da casa, pois, com o fogo sempre

aceso, em meio a material combustível, ela fica sujeita a incêndios, já que os primeiros

imigrantes ainda não conhecem o fogão. Para cozinhar, usam o foccolári, que consiste num

caixão retangular revestido de madeira, forrado por dentro com terra batida e uma cavidade no

meio onde se acende a lenha. Para cozinhar, especialmente a tradicional polenta, as panelas

são suspensas a uma corrente, chamada la catena. À noite, o fogo é coberto com cinzas para

105 CARBONI; MAESTRI, 2000, p. 21. 106 CARBONI; MAESTRI, 2000, p. 22.

63

conservar o braseiro e facilitar o reacendimento no dia seguinte. A cozinha funciona como

sala de estar, servindo como local das refeições e encontros familiares. Na outra parte da casa,

ficam os quartos e uma sala, usada em raras ocasiões, como enterros, casamentos ou para

receber visitas muito importantes. No pátio, próximo à casa, ficam localizados o forno para

pão, o estábulo sempre isolado e a latrina feita de tábuas.

Se possível, aproveitava-se o declive do terreno para o porão e a cantina. A casa, com uma porta e duas janelas dianteiras, possuía uma ampla sala de entrada – com funções sociais – e os dormitórios. [...] a cozinha era erguida nos fundos, em construção independente, a alguns metros, para prevenir a propagação de eventuais incêndios, já que o fogo era mantido, num improvisado fogão de chão, sob as cinzas, enquanto se trabalhava na roça. Uma cobertura em madeira podia unir a cozinha ao corpo central da casa.107

Para assentar os imigrantes da Itália, o governo brasileiro destina trinta e duas léguas

de terras devolutas, agora já não mais nas áreas planas e férteis dos vales dos rios Caí e Sinos,

onde se encontram instalados os imigrantes alemães. As terras ficam na acidentada encosta da

Serra, região ainda selvagem e de difícil acesso. As primeiras colônias são demarcadas em

1870. Chamam-se Conde D'Eu e Dona Isabel, origem das atuais cidades de Garibaldi e Bento

Gonçalves. A terceira colônia no Rio Grande do Sul, inicialmente, chama-se Sétima Légua

e/ou Campo dos Bugres; em 1877, passa a denominar-se Caxias, ocupando dezessete léguas

quadradas. Antes de completarem cinco anos, as três primeiras colônias – Conde d'Eu, Dona

Isabel e Caxias – já têm, em conjunto, mais de dez mil habitantes. Em 1884, começam a ser

organizadas outras três colônias contíguas a Caxias: São Marcos, Nova Pádua e Antônio

Prado.

No Sul, a imigração atende à necessidade de povoar as terras para produzir e para

contrabalançar o poder dos estancieiros-militares. Atende, também, ao interesse do Império de

“branquear” a população, processo já iniciado com os alemães. As primeiras atividades dos

imigrantes não são de plantio, mas de limpeza do mato, construção das casas e abertura dos

caminhos. Só depois começam as lavouras, geralmente pelo milho. De fácil cultivo e rápida

colheita, ele fornece o principal alimento – a polenta – e a palha, que serve de forragem para

os animais e enchimento para os colchões. O trigo, cujo plantio e colheita intercala-se com o

milho, vem na seqüência para garantir o pão e a massa. A palha do trigo serve para fazer

longos metros de dressa (espécie de trança), utilizada na confecção de chapéus e cestos.

107 CARBONI; MAESTRI, 2000, p. 22.

64

O imigrante, para atender à necessidade de sobrevivência autônoma, dedicou-se a culturas variadas. Num esquema rotativo e em ordem de importância, cultivou: trigo, milho, arroz, amendoim, feijão, cebola, alho... Plantações colaterais complementavam os interstícios, no tempo e no espaço.108

Outros produtos de inverno, como centeio e cevada, também passam a ser cultivados.

Além disso, em todo o lote, são plantadas árvores frutíferas: laranjeiras, bergamoteiras,

macieiras, marmeleiros, figueiras, etc. As frutas, além de serem consumidas em estado

natural, fornecem também os doces e compotas para o ano todo. Os imigrantes criam diversos

animais – como boi, vaca, galinhas e porcos – para auxiliar na alimentação familiar. Em

poucos anos também já produzem vinho, graspa, salame, presunto, toicinho, banha e queijo,

sendo que a produção de vinho artesanal logo se expande. A extração da madeira é outra fonte

importante de renda desde os primeiros momentos. A araucária é abundante em toda a região

serrana, sendo largamente usada pelos colonizadores na construção de moradias, móveis,

carroças e implementos de trabalho. Outras espécies nativas – como o cedro, o ipê, o angico e

a cabriúva – são muito utilizadas também.

Já nos primeiros anos, o prato principal de qualquer mesa da região é a polenta

(preparada com farinha de milho moída e cozida em água), feita pela manhã, quando é

consumida ainda quente e cremosa. Na colazzione (marmita levada para aqueles que estão no

trabalho da terra), há a polenta brustolada, torrada sobre uma chapa de ferro. Data desses

primeiros tempos de carência alimentar a passarinhada. Esse gosto particular é explicado de

duas maneiras: a abundância de aves encontradas na região e a necessidade de buscar ainda na

natureza os primeiros alimentos. Além disso, o hábito é justificado como forma de proteção à

lavoura, devorada por bandos de aves.

No início, os intercâmbios comerciais resumem-se à troca de cereais por artigos ou por

animais, devido à escassez de moeda e às dificuldades de transportar os produtos. Depois

começam a surgir os carroceiros, balseiros ou simples tropeiros e mascates, que são os

primeiros elos entre as colônias, bem como delas com os mercados maiores. Puxadas por bois,

mulas ou cavalos, as carroças ou carretas são, por muito tempo, o único meio de transporte

para cargas pesadas pelos caminhos difíceis da serra, até o surgimento da estrada de ferro

ligando por trem as principais regiões.

O transporte das mercadorias era feito com mulas bruaqueiras e carroças puxadas a mulas, por picadas e estradas de trânsito difícil, sobretudo no inverno. Apenas

108 COSTA, 1986, p. 86.

65

após a Proclamação da República, em 1910, Caxias, a principal cidade colonial, foi ligada à capital pela estrada de ferro.109

Uma das exigências feitas pelo governo brasileiro é que o imigrante seja agricultor, já

que a meta principal da imigração no Sul é ocupar o território e aumentar a produção agrícola.

Entre eles, no entanto, há muitos profissionais e artesãos, registrados como agricultores. São

esses que dão impulso ao surgimento de oficinas e pequenas indústrias, assim que os núcleos

começam a se desenvolver. A dificuldade de comunicação com os centros mais desenvolvidos

e a necessidade de equipamentos para suprir os colonos da região estimulam a diversificação

de ofícios. Seis anos depois da chegada dos primeiros colonos, em 1882, a vila de Caxias já

registra a existência de fábrica de cerveja, oficina de sabão, funilaria, oficinas de ferreiro,

além de inúmeros moinhos. Por sua localização geográfica, num centro de passagem para

outras colônias, Caxias conhece um desenvolvimento econômico mais rápido que as demais.

Além da forte produção agrícola dos seus moradores, serve de entreposto comercial entre os

campos de cima da serra, as colônias do Nordeste e Porto Alegre.

No início, os imigrantes sobrevivem com muito sofrimento. Perante as dificuldades e

promessas não-cumpridas, muitos pensam em desistir, porém, não têm para onde ir. Nesse

contexto, uma das forças que permite recomeçar a vida num solo totalmente desconhecido

durante o período árduo da adaptação é a religião. Os imigrantes italianos trazem consigo uma

tradição religiosa que é um dos pilares da colonização. Ela torna-se um fator de integração e

uma força de dinamismo econômico.

Chegados ao Brasil, os imigrantes que vieram para o Rio Grande do Sul instalaram-se em lotes já demarcados, na grande maioria distantes uns dos outros e, mais ainda, praticamente isolados das comunidades já existentes. Eles conheceram a solidão, a miséria, a fome e praticaram o trabalho incansável. Conheceram também o abandono do governo, mas conservaram o sentimento religioso.110

Ao contrário da maioria dos alemães, que sofrem cerceamentos por serem protestantes,

num país em que a religião predominante é a católica, os italianos fazem da atividade

religiosa o foco da sua vida comunitária. Em cada núcleo colonial, a igreja ocupa o ponto

principal, e a construção de igrejas e capelas mobiliza sempre a participação coletiva, com

doação de material e trabalho voluntário. Os estilos e materiais são variados, desde simples

109 CARBONI; MAESTRI, 2000, p. 26. 110 POZENATO; RIBEIRO, 2004, p. 141.

66

casinhas de madeira até imponentes obras de pedra talhada ou de tijolos artesanais,

transportados para o local pelos fiéis.

É decisivo o papel das igrejas na aglutinação dos colonos e na formação das cidades e

vilas, em toda a região de ocupação italiana no Estado. Muitos padres, principalmente os

italianos, que acompanham os imigrantes, ajudam a superar a saudade; mas, por outro lado,

dificultam a adaptação à nova cultura, procurando manter a ilusão de que ainda estão na Itália

através do uso da língua materna e da pregação e manutenção da moral.

Há inicialmente gente de outras nacionalidades mas, logo em seguida, só quem agüenta firme nesse pionerismo é o agricultor italiano. Isso talvez se explique pelo fato de ter se feito acompanhar do padre capelão que ali já está rezando ao bom Deus na improvisada capela feita de pinheiros abatidos.111

Outro fator fundamental na História dos imigrantes nos primeiros anos é o trabalho,

tornando-se elemento primordial para buscar o enriquecimento que todos querem conseguir.

Isolados de sua terra natal, eles propõem-se a trabalhar para atingir seus objetivos. “Livres,

como náufragos em uma ilha, os colonos italianos dobraram sua capacidade de trabalho, já

extraordinária e, no Rio Grande do Sul, o imigrante italiano se tornou o símbolo do

trabalho.”112 A partir do trabalho familiar, eles começam a se sentir proprietários em

ascensão, adquirindo vacas, cavalos, podendo comer e beber de sua própria produção. Além

disso, passam a vender o excedente do cultivo agrícola.

A possibilidade de acumulação quando não se trabalhava ‘para um patrão’, mas para si mesmo ou para uma ‘sociedade’ onde os ganhos eram divididos, crescia bastante. O trabalho permanecia sendo árduo e atravessando todo o dia, o que não chegava a ser razão de desânimo, uma vez que o ethos do trabalho caracterizava fortemente o imigrante, incluindo o italiano.113

Uma das características dos imigrantes destinados ao Rio Grande do Sul é a

arregimentação de famílias inteiras – pai, mãe, filhos, nonas, agregados e compadres. Nesses

pequenos clãs, raramente não menos do que oito pessoas, a mulher tem um papel central. De

modo geral, além da criação dos filhos, sempre numerosos, e das lides domésticas, ainda é

mão-de-obra auxiliar no trabalho da lavoura. Dentro da família, os papéis do pai e da mãe

111 LESSA, Barbosa. Pioneiros em ermas paragens. Zero Hora, Porto Alegre, 28 jun. 1997. Segundo Caderno, p. 7. 112 MANFROI, 1973, p. 16. 113 GOMES, 2007, p. 175.

67

praticamente se igualam, mas, no âmbito social, o homem tem maior relevância, pois é o

chefe da família, o dono da propriedade, enquanto a mãe é apenas a dona da casa.

As mulheres ocupavam-se das tarefas caseiras, dos cuidados da pequena criação e das hortas. Porém, elas intervinham ativamente, ao lado dos homens, em praticamente todos os trabalhos agrícolas. Segundo suas forças, as crianças labutavam desde os oito anos. Havia também tarefas artesanais masculinas e femininas e um verdadeiro desequilíbrio, em detrimento das mulheres, na divisão dos trabalhos entre o casal colonial.114

A sociedade, na visão do imigrante, é dividida em duas: a de dentro e a de fora.

No discurso das histórias de família ao falar dos de dentro, são usadas as palavras povo, imigrante e colono. Os colonos são o povo, já o povo brasileiro é designado de brasiliani. [...] A sociedade, de qualquer modo, é composta pelos de dentro que fazem parte do grupo e pelos de fora, seja a outra classe social da sociedade italiana ou da brasileira. Isso significa que, ser de dentro, é ser agricultor e trabalhar a terra com sua família e viver com os seus. A comunidade dos de dentro é formada por adultos economicamente ativos, que estão reunidos em família, sendo o homem o elemento essencial [...].115

Para os de dentro, os de fora têm pouca importância. A ausência de referências marca

o distanciamento do grupo em relação ao outro. Entre os de fora estão os brasileiros, também

chamados nativos pelos imigrantes italianos. São esses nativos, ou seja, esses brasileiros, que

determinam a diferença dos colonos. Como a identidade é marcada pela diferença, são eles

que determinam a identidade do grupo. É importante destacar que o próprio grupo dos de

dentro tinha suas diferenças, oriundas do país de origem.

O recém fundado Estado italiano era, no geral, ainda fundamentalmente agrário, e a maioria da população se compunha de homens e mulheres que se vinculavam a suas regiões e aldeias; que se comunicavam por dialetos variados; que festejavam santos locais e que tinham costumes bem diferenciados. Por isso, não se reconheciam como ‘italianos’, como a política imigratória os designava, e como iriam ser identificados pelos brasileiros e pelos demais imigrantes ao desembarcarem em nosso país. Ou seja, era no Brasil que os imigrantes dessa época aprendiam que eram ou deviam tornar-se ‘italianos’.116

Dessa forma, é no Brasil que ocorre a construção de uma identidade étnica entre os

imigrantes italianos. Longe de seu lugar de origem, eles acabam sendo traduzidos, pois

precisam se adaptar ao novo ambiente, um entre-lugar. Inicialmente, os membros desse grupo

não se vêem como iguais, pois são oriundos de diferentes regiões da península Itálica, mas, ao 114 CARBONI; MAESTRI, 2000, p 25. 115 GIRON; RADÜNZ, 2007, p. 45. 116 GOMES, 2007, p. 164.

68

chegarem ao Brasil, tornam-se todos italianos, mantendo laços de identidade nacional.

Quando falam sobre sua origem, os imigrantes dizem-se vênetos, friulanos, udineses,

calabreses, sicilianos, napolitanos. Porém, no Brasil, são os italianos, ou, num sentido

pejorativo, os “gringos”. Com isso, uma identidade antes produzida a partir da diferença,

torna-se uma identidade coletiva. E, assim, eles formam colônias que reproduzem os usos e

costumes do mundo deixado para trás. “E as colônias já vão se agregando como um novo

‘paese’. Seus habitantes vieram do Vêneto, do Piedomonte, de Emília, da Lombardia. Vários

são os dialetos, mas uma só a religião que os congrega.”117 Conforme Gomes,

A luta por uma identidade italiana foi, portanto, mais uma batalha travada em terras brasileiras pelos imigrantes chegados durante a ‘grande imigração’, bem como por seus descendentes. [...] Nesta permanente luta, muitas instituições tiveram papel chave, dentre as quais a escola, a igreja, as associações beneficentes, profissionais, recreativas e, também, a imprensa.118

Os imigrantes procuram criar no Brasil uma segunda Itália, defendendo e mantendo a

herança cultural trazida na memória: costumes, língua e mesmo a religião. Essa permanência

favorece a construção de uma identidade coletiva que vê na etnicidade em comum um valor a

ser preservado como forma de autodefesa. As dificuldades e privações a que os italianos são

submetidos os tornam diferentes dos brasileiros, o que os impede – inicialmente – de romper

os laços com a terra natal e estabelecer laços com a pátria adotiva. Nesse contexto, os

imigrantes buscam recriar o ambiente das aldeias de origem. Entretanto, aos poucos, pode ser

percebida a introdução de costumes da terra entre eles e a integração à nova pátria, o que

acaba contribuindo para a formação da própria identidade cultural da nação brasileira.

4.2 Os caminhos da Cocanha na Literatura

A História da emigração, adaptação e aculturação dos italianos no Rio Grande do Sul

já tem registros literários – e também históricos – documentados por diversos escritores,

especialmente depois das comemorações oficiais do Centenário de Imigração e Colonização

Italiana no Brasil, em 1975. Tais publicações são feitas, em grande parte, a partir da

Universidade de Caxias do Sul, um dos berços da imigração italiana no Estado. A abordagem

italiana na vida intelectual de escritores brasileiros é bastante visível, sendo tema de uma

117 LESSA, 1997, p. 7. 118 GOMES, 2007, p. 176.

69

conferência pronunciada por Antonio Hohlfeldt em ciclo promovido pela Fondazione

Giovanni Agnelli e Universidade de São Paulo, em São Paulo, em outubro de 1985,

posteriormente publicada na obra Pelas veredas da literatura brasileira. No capítulo

“Repensando alguns problemas”, o autor dedica a primeira parte à cultura italiana e à

Literatura Brasileira, traçando um painel significativo de obras e autores que enfocam

registros do imigrante italiano.

Especificamente no Rio Grande do Sul, Hohlfeldt ressalta grandes nomes da Literatura

Gaúcha nessa retomada, tais como Erico Verissimo que, “especialmente em romances como

Música ao longe e em diversos momentos da trilogia O tempo e o vento, refere-se ao

imigrante italiano”.119 Outro autor citado é Moacyr Scliar que, em certo momento, inclui

personagens italianos em sua obra, especialmente em Festa no castelo. Sérgio Caparelli,

escritor mineiro radicado no Rio Grande do Sul, também contribui para a Literatura Gaúcha

de enfoque imigratório ao escrever Vovô fugiu de casa.

Porém, Hohfeldt destaca que a influência italiana tem marcado mais fortemente a

poesia contemporânea no Rio Grande do Sul. É o caso de Mansueto Bernardi: “[...] a própria

geografia serrana, local da colonização italiana no Rio Grande do Sul, com seus vinhedos,

seus vales, seu verde exuberante, torna-se o tema central da poesia, abrindo caminho para um

grupo de poetas que, alguns anos depois, lhe seguiriam a lição”.120

Dentre esses escritores estão Oscar Bertholdo, Jayme Paviani, Ary Nicodemus Trentin

e José Clemente Pozenato, que escreve as obras poéticas Carta de viagem (1981) e Meridiano

(1982). Pozenato passa, então, a dedicar-se à prosa com temática italiana: O Caso do Martelo

(1985), A Cocanha, O Quatrilho e A Babilônia, publicados em 2000, 1985 e 2006,

respectivamente. Sua trilogia, enfocada particularmente nesta dissertação através do romance

A Cocanha, representa um momento expressivo de revigoração do regional no conjunto da

Literatura Gaúcha atual, retratando aspectos da cultura e da História deste Estado.

O livro A Cocanha revela o processo de adaptação dos imigrantes italianos a um

novo contexto, no caso o Brasil, bem como a (re)construção de sua identidade nesse entre-

lugar. O autor busca as origens da imigração na aldeia de Roncà, de onde camponeses pobres

deixam a Itália, partindo para o porto de Gênova e, depois, para a América, vista como a

terra das grandes oportunidades. Relata a partida da Itália, a viagem no navio, a chegada, o

percurso ao longo das costas brasileiras, a instalação das famílias nas terras, enfim, a

fundação da exploração agrícola familiar na região da serra do Rio Grande do Sul. A obra

119 HOHLFELDT, Antonio. Pelas veredas da literatura brasileira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 51. 120 HOHLFELDT, 1994, p. 58.

70

mostra como, em território brasileiro, o imigrante italiano (re)elabora sua identidade,

delimita imaginariamente seu território, estabelece sua ordem social e familiar e define seus

modelos de conduta. Em suma, como ele vai perdendo e ganhando novos aspectos

identitários.

Pozenato faz um registro da região da serra gaúcha colonizada por imigrantes

italianos, dando ênfase à própria manifestação lingüística regional. Ele apresenta a dinâmica

do processo de aculturação dessa região através da linguagem da obra A Cocanha. Os

imigrantes italianos do Rio Grande do Sul, originários de várias partes da Itália (Vêneto,

Bérgamo, Vicença, Beluno e outros lugares), não conhecem a língua italiana da mesma forma.

Como há superioridade numérica dos falantes oriundos de Vêneto, sobressai-se nas colônias

seu dialeto, tomando caráter de língua oficial. O uso do dialeto vêneto contribui para a

manutenção das origens e a legitimação identitária, mas, aos poucos, devido à pobreza e

insuficiência de vocabulário, acabam incorporando elementos da língua portuguesa. Esse

aspecto lingüístico revela-se através da narrativa escrita em português com muitos registros

vocabulares provindos do dialeto vêneto, sem tradução em nota de rodapé. Um exemplo é a

expressão usada por Gema ao saber que Betina não quer mais partir para a América por causa

do namorado: “Chi fa de so testa paga de so borsa”, ou seja, quem faz o que pensa, paga do

que é seu.

O romance possui trezentas e setenta e uma páginas, divididas em quatro partes. A

primeira, constituída por quinze capítulos, relata o momento em que as famílias saem de

Verona, de trem, em direção a Gênova, iniciando a longa viagem, em novembro de 1883.

Durante o percurso, através de pensamentos e lembranças das personagens principais, o leitor

conhece os motivos da partida e a vida de cada um. Após, as personagens embarcam no navio

– na terceira classe – rumo ao Brasil, quando passam por inúmeras dificuldades, como

acomodações precárias, doenças, pouca água, com “gosto do ferro” dos canos e, inclusive,

risco de morte.

Apesar disso, recebem comida farta, reforçando a idéia da abundância que os espera na

América. Finalmente, chegam ao Rio de Janeiro, desembarcam e permanecem em quarentena

na Ilha das Flores. Depois disso, seguem rumo a Porto Alegre. Pela Lagoa dos Patos, a

imensidão de terras que vêem e o cansaço fazem pensar que não precisam mais viajar,

desejam instalar-se nesse espaço e reconstruir suas vidas. O assombro diante de tanta terra é

motivado pela realidade vivida na Itália, onde cada um era proprietário ou arrendatário de um

pedaço bastante ínfimo de solo para plantar.

71

Rebanhos de gado e ovelhas pastavam num campo verde que parecia não ter fim. Aves de todas as cores voavam e tornavam a pousar. Por que não ficavam eles ali mesmo, sem terem de ir ainda mais longe? Terra não faltava, e raras eram as casas que apareciam na planície a perder de vista. Não era possível que aquele campo todo fosse apenas pasto para os animais.121

A segunda parte – com vinte e quatro capítulos – inicia quando os imigrantes partem,

por terra, de Porto Alegre até Campo dos Bugres. A partir de então, compram seu lote de terra

e iniciam a construção das primeiras casas, enquanto as mulheres permanecem no alojamento.

A seguir, são relatadas as primeiras ações dos imigrantes na nova propriedade: primeiras

plantações e colheitas, festas, nascimento dos filhos. Nessa parte do livro, a personagem José

Bernardino, fazendo “anotações para um romance realista”, tem papel fundamental para o

entendimento da vida na colônia. Ao observar e analisar os colonos, suas vidas, sonhos e

religiosidade, acaba trazendo uma perspectiva diferente da apresentada pelas personagens,

uma visão estrangeira.

Já a terceira apresenta dezessete capítulos, contando especialmente sofrimentos e

dificuldades enfrentadas pelos colonos, como a epidemia da varíola. O acontecimento

principal refere-se à decisão da comunidade de Santa Corona de construir uma igreja,

sinônimo de progresso e conforto espiritual. Vários capítulos também fazem referência à

Revolução Federalista, mas com a adesão de poucos imigrantes ao conflito, já que preferem

não interferir no poder das autoridades brasileiras. Por fim, a quarta parte, em quatro

capítulos, encerra o ciclo dos primeiros imigrantes como força familiar e social, deixando aos

filhos nascidos no Brasil, ainda bastante jovens, a responsabilidade de continuar o trabalho

iniciado por eles.

Na obra A Cocanha, percebe-se que a situação de miserabilidade da população italiana

possibilita aos habitantes acreditar e sonhar com uma vida melhor, associando essa

transformação ao mito da Cocanha. No texto nos comentários de capa da primeira edição,

Pozenato revela que o termo Cocanha – documentado pela primeira vez no século XII –

designa um modelo de sociedade utópica relacionado com a fartura e com o desfrutar pleno

dos prazeres materiais. “Na Itália do século XIX, essa utopia de origem medieval foi

largamente difundida entre a população pobre, que, ao emigrar para a América, trouxe

consigo a idéia de um país imaginário caracterizado pela abundância.”122

Na obra Cocanha: a história de um país imaginário, Hilário Franco Júnior ressalta que

a característica alimentar do termo Cocanha é explícita até mesmo no nome do país, sendo

121 POZENATO, José Clemente. A Cocanha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000, p. 84. 122 POZENATO, 2000, comentários de capa.

72

que a maioria das explicações etimológicas ligam-se a esse aspecto. De acordo com o autor, a

palavra pode ter derivado do latim coquere, que significa cozinhar, ou do provençal cocanha

ou coucagno, derivado de coca, coque, significando casca de ovo ou de certas frutas. Também

pode ter sido originada do provençal coco, que quer dizer brioche, pão doce. Também no

médio alemão a palavra encontra referência alimentar: kokenje, derivando de coek, ou seja,

bolo. No antigo irlandês, cucainn significa cozinha, provisão, tendo passado com esse sentido

para o inglês, posteriormente para o francês e para os demais idiomas europeus.

A hipótese mais provável é a de que o francês cocaingne tenha surgido em meados do século XII a partir de uma origem latina, com ou sem intermediação provençal. Dele derivam o inglês cokaygne ou cockaigne (fins do século XIII ou princípios do seguinte), o italiano cuccagna (século XV) e o espanhol cucaña.123

Conforme definição de Ana Boff de Godoy, publicada no Dicionário de figuras e

mitos literários das américas: DFMLA, organizado por Zilá Bernd, Cocanha é um termo que

pode ser associado, ao mesmo tempo, a mito, ideologia e utopia, sendo o último significado o

mais utilizado pelos estudiosos.

Isso porque a atenção do ideário da Cocanha foca-se, sim, em um passado indefinido para tentar não exatamente explicar, mas aliviar o presente. Assim Cocanha é mito. Partindo das experiências idealizadas (mas tidas por concretas) de um grupo, a crença na Cocanha projeta um futuro promissor. Logo, Cocanha é ideologia. Levando em consideração a realidade de um momento presente, os partícipes de um determinado grupo buscam a construção do seu futuro como um reflexo de um passado que imaginam ter existido. Então, Cocanha é utopia.124

Franco Júnior, no livro citado, descreve o país da Cocanha, aonde o indivíduo só

chega depois de passar por várias provações, mas que, uma vez lá, vive sob a lógica do quanto

menos faz, mais recebe. Conforme o autor, Cocanha representa a terra da abundância, da

ociosidade, da liberdade, da juventude; enfim, dos prazeres absolutos. Esse lugar simbólico,

que serve como resposta a todos os problemas, existe apenas no imaginário, não tem uma

posição geográfica definida, é apenas uma utopia. “E de fato, apesar de algumas versões

falarem vagamente em ‘Ocidente’, aquela terra não tem uma localização precisa, sendo nesse

sentido literalmente uma utopia, um ‘lugar nenhum’.”125 No Sul do Brasil, ainda conforme o

autor, “por influência da imigração italiana de fins do século passado, o tema da Cocanha é

123 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 59. 124 GODOY, Ana Boff de. Cocanha. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas: DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial/Editora da Universidade, 2007, p. 123. 125 FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 19.

73

ainda hoje bem conhecido”126. Para a cultura dos imigrantes, a Cocanha está mais relacionada

à abundância, opondo-se à realidade de carência alimentar na Itália.

Essa referência é explicada, entre outros motivos, pelas publicações feitas na Itália

sobre a Cocanha. Em 1588, em Cesena, é publicada a obra Il piacevole viaggio di Cuccagna,

literatura de crítica social que, “seguindo a tendência da época, dá grande atenção à

abundância, pequena à ociosidade, e menor ainda à juventude e à liberdade”.127 A relação com

a América aparece em meados do século XVI, com um texto anônimo publicado em Módena,

fazendo grande sucesso. Dessa forma, na perspectiva da abundância, o tema, apesar dos

inevitáveis desenganos provocadas pelas diferenças entre a Cocanha encontrada e a Cocanha

sonhada, continua no imaginário dos imigrantes e descendentes na América.

Ainda em fins do século XIX, os recrutadores do Norte italiano (sobretudo Lombardia, Vêneto e Tirol), que buscavam trabalhadores para emigrar ao Brasil, comparavam a América à Cocanha, sinal de que esse discurso encontrava ressonância na população local. Para aquelas pessoas atormentadas pela fome na sua terra natal, ‘a identificação da América com o Paese di Cuccagna, ainda que a soubessem inverossímil, talvez tenha sido estimulante por exprimir a reivindicação do desejo insatisfeito’.128

Em Cocanha: várias faces de uma utopia, Franco Júnior faz uma compilação das

principais obras literárias e pictóricas sobre a temática em diversas culturas. Segundo ele,

“várias são as tradições folclóricas que falam no país da Cocanha”.129 Ele destaca que ainda

restam oito representações da Cocanha feitas entre os séculos XIII e XV; porém, o número

aumenta entre as representações literárias e pictóricas feitas entre os séculos XVI e XVII: 12

versões francesas, 22 alemães, 33 italianas e 40 flamengas, no mínimo. O autor afirma que a

primeira utilização desse nome no âmbito literário ocorre em meados do século XIII, numa

fábula poética de 188 versos denominada O Fabliau de Cocaingne.

A primeira delas, o fabliau (‘conto em versos para rir’, definiu Joseph Bédier há quase cem anos) francês de meados do século XIII, parece ser obra de um poeta goliardo. Isto é, de um estudante ou clérigo desenraizado, profundamente crítico em relação às aceleradas transformações da sua época. Típico representante da nova sociedade urbana de então, ele denegriu apesar disso muitos de seus valores, imaginando uma terra de abundância, ociosidade, juventude e liberdade.130

126 FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 196. 127 FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 211. 128 FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 212. 129 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: várias faces de uma utopia. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998, p. 9. 130 FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 10.

74

Após essa, várias são as obras que apresentam a temática da Cocanha, dentre elas, as

seguintes merecem destaque: The land of Cockaygne (poema inglês do final do século XIII);

Schlaraffenland (poema alemão cujo título significa “País dos Tolos”); Bengodi (uma paródia

da Cocanha feita por Giovanni Boccaccio em Decameron no ano de 1530); Cockaengen (a

Cocanha Holandesa do século XV); Schlaweraffenlandt (uma paródia alemã da Cocanha

escrita em 1530, cujo título foi traduzido por Franco Júnior como “O País dos Preguiçosos”);

Luilekkerland (“A Terra da Preguiça e da Gula”, paródia holandesa de 1546); Jauja (paródia

espanhola de 1547); Chacona (canção espanhola do século XVII).

Como se percebe, muitos são os relatos de culturas mundiais que referenciam a

Cocanha no decorrer dos séculos. De acordo com Godoy, no Brasil, esse tema pode ser

encontrado em, pelo menos, cinco obras literárias, citadas a seguir sem respeitar a ordem

cronológica. A primeira é o famoso poema de Manuel Bandeira “Vou-me embora pra

Pasárgada”, do livro Libertinagem, escrito em 1930. “Pasárgada é a Cocanha do poeta, um

lugar onírico para o qual seus desejos de felicidade são direcionados. Belas mulheres para

serem namoradas, banhos de mar, gente civilizada: eis o modelo de Cocanha do poeta

brasileiro.”131 A segunda aparição revela-se ao longo de toda a obra infantil de Monteiro

Lobato: O Saci (1921), Reinações de Narizinho (1931), Caçadas de Pedrinho (1933), Emília

no País da Gramática (1934), Aritmética da Emília (1935), Geografia de Dona Benta (1935),

Memórias da Emília (1936), Serões de Dona Benta (1937), O poço do Visconde (1937),

Histórias de Tia Nastácia (1937) e O pica-pau-amarelo (1939), entre outros. As ações desses

livros são desenvolvidas em cenário de sonhos e perfeição: o Sítio do Pica-Pau-Amarelo.

[...] o sítio é o lugar para onde o curioso Pedrinho sempre vai em busca de aventuras; é também o lugar que serve de refúgio para inúmeras personagens que saem dos livros de história contadas pela Dona Benta; é um lugar de fartura, com hortas sempre produzindo produtos fresquinhos e com os quitutes da tia Anastácia sempre ao alcance das mãos; ali são todos amistosos; ali todos têm vida e inteligência [...].132

Outra recorrência da Cocanha na Literatura Brasileira destacada por Godoy aparece

em um folheto de cordel intitulado Viagem a São Saruê, de 1947, escrito por Manoel Camilo

dos Santos. O poema aparece transcrito na íntegra na obra de Franco Júnior. “É uma conversa

do autor (Camilo) com seu pensamento, que o guia até um país chamado São Saruê, ‘o melhor

lugar que neste mundo se vê’”.133

131 GODOY, 2007, p. 124. 132 GODOY, 2007, p. 124. 133 GODOY, 2007, p. 125.

75

A temática da Cocanha realmente significativa para este estudo surge em Vita e stória

de Nanetto Pipetta: nassuo in Itália e vegnudo in Mérica per catar ela cucagna. A obra,

escrita por Aquiles Bernardi em dialeto vêneto, em 1937, é inicialmente publicada como

folhetim pelo jornal Stafetta Riograndense, entre 23 de janeiro de 1924 e 18 de fevereiro de

1925. “O personagem fictício Nanetto Pepetta, nascido na Itália (Veneza), vem para a

América à procura da Cocanha, à procura de fortuna e fartura.”134 Essa referência é análoga à

de José Clemente Pozenato, referindo-se ao fascínio dos emigrantes italianos pela América,

bem como ao estranhamento pelo qual passaram quando chegaram ao destino.

Nesse sentido, a Cocanha da obra de Pozenato referencia a busca de um lugar idílico.

“A América (Cocanha) sonhada está presente em toda a primeira parte da obra, quando as

personagens dão adeus a um país que tantos dissabores lhes oferecera [...] e idealizam aquele

outro que os receberá de braços abertos e lhes proporcionará uma vida digna.”135 A crença

utópica transforma-se em realidade para dar conta da diversidade regional e das expectativas

dos colonos italianos. Já na epígrafe da obra, encontra-se descrito o lugar idealizado que os

imigrantes buscam no Brasil, a partir da “DESCRIÇÃO DO PAÍS DA COCANHA, ONDE

QUEM MENOS TRABALHA MAIS GANHA”:

A topografia do Paese di Cuccagna é dominada por uma montanha, na verdade um vulcão, que expele, continuamente, moedas de ouro. Quando chove, nesse país, chovem pérolas e diamantes, mas podem chover também raviólis. Em direção ao porto, denominado de Porto dos Ociosos, navegam embarcações carregadas de especiarias, mortadelas, toda a sorte de embutidos e presuntos. Rios de vinho grego são atravessados por pontes de fatias de melão, e lagos de molhos soberbos estão coalhados de polpette e fegatelli. Fornadas permanentes de pão de farinha de trigo abastecem os habitantes do lugar. Aves assadas despencam do céu, direto sobre a mesa, enquanto as árvores cobrem-se de frutos nos doze meses do ano. As vacas parem um vitelo ao mês e os arreios dos cavalos são de ouro, mas as rédeas são lingüiças... a topografia se completa com uma colina na qual está a prisão destinada aos infratores da única lei que vigora no país: não trabalhar e gozar a vida. Para os camponeses pobres e atormentados pelo espectro da fome, a identificação da América com o Paese di Cuccagna, ainda que a soubessem inverossímil, talvez tenha sido estimulante por exprimir a reivindicação do desejo insatisfeito.136

Essa representação coletiva da Cocanha ajuda os colonos italianos a se decidirem pela

emigração em massa. Segundo Godoy, “a Cocanha é um lugar utópico; mais do que isso, um

lugar simbólico. Símbolo dos desejos e aspirações de um só poeta ou de um povo inteiro, é o

lugar dos desejos, da fartura, da vida digna, da juventude, dos amores, do ócio, da

134 GODOY, 2007, p. 125. 135 GODOY, 2007, p. 126. 136 RIBEIRO apud POZENATO, A Cocanha, 2000, p. 7.

76

felicidade”.137 No romance A Cocanha, percebe-se que esse é um sonho comum nutrido pela

coletividade, pelo grupo que busca sua realização na América. “Eles vão para a América e

pensam estar agora livres dos senhores e da polícia, dos contratos não cumpridos, da miséria e

da fome”.138 A utopia motiva o alistamento voluntário dos colonos italianos, substituindo o

fantasma da fome pela idéia da fartura.

A concepção do Brasil como o país da Cocanha já se encontra arraigada no imaginário

dos camponeses de várias regiões da Itália quando dela se utilizam os propagandistas que

incentivam a emigração para a América. São esses agentes que abrem para os camponeses

pobres do Norte a esperança de serem proprietários autônomos do seu próprio chão, o que

permite alcançar a tão sonhada oportunidade de uma vivência tranqüila, livre dos entraves que

ameaçam o bem estar e a harmonia cotidiana. Nos momentos de crise, muitos italianos criam

a sua própria América e poucos resistem ao sonho de encontrá-la. As ofertas de terras nas

quais poderão plantar seu próprio alimento com autonomia serve como pretexto para os mais

indecisos. As imagens sobre o Brasil da Cocanha, difundidas pelos propagandistas

emigratórios, imprimem nos camponeses pobres a possibilidade da fuga da miséria e da fome.

A América passa a representar o lugar de investimento das esperanças e dos sonhos

camponeses, cujo imaginário identifica a existência do país da Cocanha no além-mar. De

lugar de fantasia, a Cocanha passa para a condição de utopia realizável.

No entanto, é preciso esclarecer que a busca desenfreada por melhores condições de

vida não é uma aposta apenas na utopia da Cocanha, já que os emigrantes são também

realistas quanto ao que encontrarão na América. Apesar de não terem informações concretas

sobre a nova terra, eles sabem que pouco têm a perder. Assim, não há resistência do grupo de

italianos, eles estão dispostos a correr o risco de enfrentar o desconhecido. Conforme

pensamentos da personagem Rosa:

Não podia adivinhar o que os esperava na América. Ela não era bruxa para ler o futuro. Mas não era possível que fossem ficar pior do que estavam, com falta de trabalho, de comida, do que vestir, de onde morar, de tudo. Em Roncà não se vivia, se morria, como não se cansava de dizer Cósimo, seu padrinho de casamento. E se era para morrer, emendava, tanto fazia deixar a pele aqui como na América.139

Na narrativa de Pozenato, sonhando com a esperança de uma nova vida a ser

construída no Brasil, repleta de riquezas e possibilidades, seguem viagem entre os emigrantes

137 GODOY, 2007, p. 126. 138 POZENATO, 2000, p. 13. 139 POZENATO, 2000, p. 22.

77

as personagens Rosa e Aurélio, Gema e Bépi, Giulieta e Antônio Besana, Marieta e Cósimo,

os três primeiros casais ainda sem filhos e o último já com quatro; Domênico Bonpiero, que

deixa a família na Itália; bem como Roco, Betina, Francesco e Ambrósio. A narrativa inicia

em Roncà, com a descrição da festa da partida:

Na frente, um homem traz nos ombros uma menina com guirlandas nos cabelos. Dois passos atrás, o rosto arroxeado pelo vento frio, um jovem imberbe ergue bem alto o galhardete, feito em pano de lençol. Nele se lê, em grandes letras tortas: Viva la Mérica! A banda de música, em uniforme festivo, enche os ares com a estridência das trompas e clarinetes. As batidas do bumbo ecoam nas paredes das casas e marcam o passo dos quase duzentos camponeses, vindos de todas as estradas da redondeza, em suas melhores roupas. Mulheres e crianças trazem flores nas mãos, e os homens acenam com os chapéus. A população inteira da vila está nas janelas ou na beira da rua, calçada com pedras luzidias. Domênico, o alfaiate, corre ao longo do cortejo, agita os braços e grita sem parar: – Viva lá Mérica! – Viva! Viva! – respondem homens, mulheres e crianças. – Viva il paese della cuccagna!140

Porém, essa alegria parece durar pouco, pois as dificuldades iniciam ainda na Itália.

Durante os sete dias antes do embarque, no porto de Gênova, os emigrantes são explorados

por hospedarias, casas de pasto, vendedores, ladrões de bagagens... “Nem o governo nem os

padres faziam nada para pôr fim à exploração, feita de modo escandaloso. Todos sabiam dela

e todos se calavam.”141 Em outra passagem: “A quem iam reclamar? Ao governo? Aos

padres? À polícia? Aos jornais? Estavam todos se coçando pelo que acontecia com os

miseráveis emigrantes”.142 As personagens maldizem a Itália por isso. É o sonho da Cocanha

que começa a ruir, sendo substituído pelo medo e a desilusão. No início do romance, Pozenato

descreve a semana de espera e angústia dos personagens em Gênova, tendo como única

referência o agenciador Domênico, que também emigra para o Brasil.

Os emigrantes têm consciência de que, com a saída deles, a situação da Itália melhora,

pois eles são um problema para o país. Isso serve para instigar ainda mais os sonhos dos

emigrantes em relação à América (a pátria que os acolhe), tornando mais fácil a partida, já

que o ódio à Itália (a terra natal que os expulsa) aumenta a vontade de partir. A América

representa o sonho de algo que um dia seria real, enquanto a Itália, “realidade duramente

experimentada, destaca-se como a terra da fome, da miséria e da exploração.”143

140 POZENATO, 2000, p. 12. 141 POZENATO, 2000, p. 32. 142 POZENATO, 2000, p. 30. 143 ARENDT, João Cláudio; PAVANI, Cinara Ferreira. América: a anti-utopia da imigração italiana. In.: Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 219-241, jan./jun. 2006, p. 227.

78

Embora o desejo de buscar a Cocanha seja fator fundamental na decisão de partir, as

personagens do romance sofrem por precisar abandonar a pátria, os amigos e os parentes que

ficam na Itália. Isso gera “um sentimento de insegurança que abala profundamente as

referências simbólicas responsáveis pela manutenção da identidade das personagens.”144

Ao se deslocarem de suas comunidades de origem, os emigrantes acabam perdendo

esses laços identitários já construídos e precisam reconhecer em outros grupos novas

identificações. Ainda na viagem de navio, os italianos começam a integrar-se com seus

compatriotas, apesar das diferenças de dialeto e região apresentadas entre eles. Nesse

momento, eles passam a se identificar como o grupo de emigrantes italianos que parte para a

América em busca da Cocanha, sentindo-se diferentes de todos os demais italianos que

permanecem no país. Essa parece ser a primeira (re)construção da identidade cultural no

entre-lugar, reconhecendo no outro pontos comuns para solidificar um novo grupo de

identificação. Através da seguinte passagem, percebe-se como o novo grupo, ainda durante a

travessia para a nova terra, já começa a identificar-se pelo sofrimento coletivo:

Como podiam ter feito aquilo com eles? Sem nenhum recurso a bordo, só restava ter paciência e esperar chegar com vida. Viva o Brasil!, dizia alguém de vez em quando, com raiva, é este o país da cocanha? Eram tratados como esterco que se tira da estrebaria. Ou nem isso, porque com o esterco havia sempre o cuidado de não perder nada, ele era necessário para adubar a plantação. Eles eram só merda, como dizia Cósimo, não valiam nada para ninguém. Os que tinham a ganhar com eles já haviam se servido. Agora, só Deus podia ajudar.145

Enfrentando o desconhecido e rompendo os laços com as origens, os imigrantes

acabam (re)elaborando sua identidade a partir da adesão ou não aos sistemas simbólicos da

nova terra. Através da obra A Cocanha, é possível verificar a existência de diversas

perspectivas de adaptação dos italianos à nova vida, ao entre-lugar. Muitos deles apresentam

facilidade em integrar-se à sociedade, outros demonstram dificuldade de habituar-se às novas

condições de vida. Pozenato problematiza esse processo de (in)adaptação através das

personagens, revelando o processo de (re)construção de uma nova cultura, fundindo o velho e

o novo.

144 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 233. 145 POZENATO, 2000, p. 82.

5 A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

CULTURAL NO PAÍS DA COCANHA

L’America´è lunga e è larga, È formata di monti e di piani.

E com l’industria dei nostri italiani, Abbiam(o) formato paesi e città.

(Corso di língua e cultura italiana, 2002, p. 68)

80

A obra A Cocanha possibilita o reconhecimento de elementos que garantem a

(re)construção da identidade das personagens, tanto individual como coletivamente. Os

indivíduos estabelecem novas identidades a partir das diversidades culturais com que

interagem, devido às relações que mantêm com os outros. Situando-se num entre-lugar,

muitas incertezas são geradas, pois, nesse novo contexto, os antigos vínculos sociais são

rompidos, assim como se perdem pontos de referências culturais, sociais, lingüísticos e

religiosos. Para os imigrantes italianos, a superação dessas perdas é possibilitada por diversos

fatores pessoais e grupais.

É bastante expressiva a (re)construção individual da identidade em outro espaço na

obra em estudo. As personagens desejam manter seus laços com o passado, procurando

(re)construí-los a partir de representações simbólicas. Tornam-se evidentes as dificuldades

enfrentadas pelos indivíduos para (re)elaborarem suas identidades, já que sempre procuram

referências no passado e, por isso, encontram dificuldades para viver o presente. O principal

elemento unificador da identidade coletiva entre os imigrantes italianos é o sonho da

Cocanha, a busca pela fartura. Assim, é coletivamente que os símbolos mais colaboram para a

manutenção da identidade, funcionando como diferenciadores e conferindo singularidade ao

grupo. Dentre os rituais mais preservados pelos imigrantes – representados pelas personagens

de Pozenato – em terras gaúchas destacam-se as festas, sempre acompanhadas de cantigas e

mesa farta, o trabalho e, principalmente, a religião. Esses três elementos constituem-se nos

principais reveladores do processo de (re)construção da identidade coletiva.

5.1 (Re)construções individuais da identidade no entre-lugar

A (re)construção da identidade cultural no entre-lugar manifesta-se de forma bastante

explícita nas personagens centrais da trama de José Clemente Pozenato. O casal Rosa e

Aurélio e os três casais vizinhos, unidos pela amizade das mulheres, lê rondinèle (as

andorinhas), Gema, Giulieta e Marieta, casadas – respectivamente – com Bépi, Antônio e

Cósimo. As rondinèle procuram ajudar-se sempre. Os maridos conseguem lotes nas

proximidades, o que facilita a convivência das quatro. Gema e Marieta são as mais fortes,

aquelas que sempre auxiliam as outras, procurando animá-las nas adversidades.

Marieta, a mais velha de todas, já com quatro filhos na partida para a América e

grávida novamente, é a amiga experiente, “com quem aprendiam coisas sobre os homens e a

81

vida da mulher casada”.146 Além de exercer praticamente o papel de mãe das demais, ela

torna-se a parteira, trazendo ao mundo muitos filhos de imigrantes italianos. Sua adaptação ao

novo espaço ocorre praticamente em função de contribuir para o bem-estar do grupo todo,

especialmente de sua família numerosa. É também enfocando a coletividade que a

personagem Gema (re)constrói sua identidade no entre-lugar. Já no primeiro dia na colônia,

Gema chega à casa de Rosa e a faz rir de sua miséria.

Gema riu e avisou que, antes do café, ia inspecionar tudo, ver se a Rosa estava bem instalada. Arregaçou um pouco a saia, como viam fazer as damas ricas, empinou o nariz com ar de autoridade e começou a pôr defeito em tudo. Mal feito, esse canteiro. Muito alta, essa escada. Onde estão os vidros das janelas? Feia, essa cama. Não havia lugar melhor para a Santa? Mas ao ver o fogão improvisado de pedras começou a elogiar. – Grande, bonita, esta cozinha. Tem tudo, não falta nada. É a melhor cozinha que eu já vi. – E, de súbito, furiosa: – Quem foi o ignorante que fez isto. O Aurélio nunca viu uma cozinha?147

Gema ironiza a construção da casa e, principalmente, a cozinha de Rosa. É a forma

que ela encontra para superar as adversidades e auxiliar a adaptação de todos ao novo

ambiente: o humor e a extroversão. Como ninguém leva a sério o que ela diz, acaba sempre

sendo porta-voz do grupo, falando tudo o que os outros não têm coragem de dizer. Ao ironizar

os aspectos de miserabilidade encontrados na América, desmantela o sonho da Cocanha e

força um retorno à realidade concreta.

Já sua irmã Giulieta procura construir na América o que ainda não conseguiu na Itália:

a felicidade. “Não tinha muita certeza de haver um lugar no mundo onde ser feliz. Talvez a

América.”148 Tendo morado num convento, recebe um pouco mais de instrução e se sente

frustrada por precisar fazer trabalhos pesados e servir aos homens. Na Itália, a personagem

leva uma vida de servidão, devendo – inclusive – subordinar-se não só ao marido, mas a todos

os homens da casa. A submissão dessa mulher representa todas as demais.

Conforme João Cláudio Arendt e Cinara Pavani149, Giulieta busca uma possibilidade

de autonomia nas atividades domésticas e na vida familiar na América. No entanto, continua

sujeita às ordens do marido. Para piorar a situação, Antônio acaba ampliando sua autoridade

masculina, chegando a agredir física e emocionalmente a esposa, já que ela não lhe dá um

filho homem para ajudar no trabalho da roça. Sua única fuga da opressão ocorre a partir da

leitura de um romance emprestado por Domênico, que lhe dá coragem de buscar uma certa

146 POZENATO, 2000, p. 23. 147 POZENATO, 2000, p. 158. 148 POZENATO, 2000, p. 43 149 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 224.

82

autonomia fora do casamento. Apesar de saber que ler romance é algo condenado,

praticamente proibido, Giulieta aceita a oferta do admirador e acaba sendo conduzida a um

mundo do qual não faz parte: uma relação baseada no amor entre duas pessoas.

[...] Não quer ler I promessi sposi? É um belo romance. – Romance? – pergunta ela, como se dissesse uma palavra proibida. – Este não tem nada de mal – apressa-se ele em dizer antes que ela recuse. – Tem um padre, o Dom Abbôndio, que é uma simpatia, um santo homem. A Perpétua, uma santa mulher.150

A partir das palavras amenas de Domênico, Giulieta concorda em ler o romance,

conforme ele deseja e planeja. A partir da leitura, abre-se uma perspectiva nova na sofrida

vida da personagem, a oportunidade de repetir na realidade o que lê na ficção. Como

romances proibidos com pessoas comprometidas são cercados de ilusões, expectativas,

carências e sonhos, ela se entrega a Domênico como as personagens Lúcia e Renzo lutam por

seu amor. O romance estimula uma mudança de comportamento, uma tomada de atitude

buscando a realização pessoal: ela quer se sentir amada, desejada. E, dessa relação, nasce a

filha Teresa, uma das protagonistas da obra O Quatrilho, a romântica e sonhadora

personagem que assume o amor que sente pelo marido da prima, deixando o esposo e fugindo

com o outro. É um momento de ruptura dos valores morais da cultura religiosa italiana, na

qual o casamento é visto como sagrado, devendo ser respeitado por toda a vida.

Por sua vez, para a personagem Bépi, um bastardo criado por pais adotivos e sem nem

mesmo conhecer seus pais consangüíneos, emigrar para a América não significa romper laços.

Ele não possui raízes familiares que o prendam à terra natal, segundo Arendt e Pavani151.

– Ir para a América não me custa nada, como para vocês. Vocês sabem onde nasceram. Eu não sei onde nasci. Então, qualquer lugar do mundo é igual para mim. Vocês estão deixando parentes, eu não. Não sei quem são meus parentes.152

As humilhações sofridas por Bépi no país de origem o incapacitam de nutrir

sentimentos patrióticos em relação à Itália. O Brasil torna-se seu chão; o Brasil torna-se sua

família, sua pátria. Como salienta Benedict Anderson153, o sentimento de pertencer é algo

móvel, não estanque, construído a partir de um “sujeito imaginado” que, por sua vez, faz parte

de uma “comunidade imaginada”, sendo impossível não pertencer a nação nenhuma. Esse

150 POZENATO, 2000, p. 151. 151 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 224. 152 POZENATO, 2000, p. 59. 153 ANDERSON, 1989.

83

laço que une o homem à terra se instala de forma a produzir um sentimento de necessidade,

apesar de ser, antes de mais nada, uma construção simbólica.

Individualmente, Cósimo – mais velho e mais experiente – acaba interferindo na

(re)construção coletiva da identidade cultural de seu grupo de amigos. Ainda na Itália, é ele

que os convence a emigrar, mostrando um folheto da La Veloce: companhia de navegação

que faz o transporte dos imigrantes italianos desde Gênova até o Brasil. Prometem viagem

rápida, terras quase de graça para quem quisesse ser proprietário. Também na chegada às

novas terras, é ele o primeiro a escolher seu pedaço, fazendo com que os demais comprem

lotes próximos ao seu.

– Eu já escolhi – diz Cósimo. – É aqui que eu vou ficar. Até morrer. Os outros olham para ele em silêncio. [...] – E que nome tem esse lugar? – Ainda não tem nome. – Então vai se chamar Santa Corona – diz Cósimo. Bate o pé no chão e repete: – Aqui é Santa Corona.154

Segundo considerações de Arendt e Pavani155, a personagem Aurélio Gardone, a

convite do padrinho Cósimo, resolve emigrar para a América para poder ver-se livre do patrão

e ter sua propriedade para plantar. Ele não é bobo de acreditar em “salame pendurado nas

árvores, em pedras feitas de queijo, em fontes de vinho moscatel”,156 mas idealiza o futuro

para a esposa Rosa como uma verdadeira “signora, se Deus o ajudasse, com anéis nos dedos e

camisa de renda”.157 Em sua imaginação, a América é projetada como um lugar idílico. Partir

significa a possibilidade de ter esperança, por isso, não conserva muitos laços com o país que

não lhe oportuniza fazer de sua esposa uma verdadeira senhora. Porém, ele guarda, com zelo,

no bolso da sua jaqueta, uma caixa de rapé herdada do pai, símbolo do apego do italiano a

suas tradições familiares. Esse objeto, por ter valor simbólico e afetivo, contribui para Aurélio

manter sua identidade, prolongando, assim, os laços com o passado.

Durante a festa da partida, ele não expressa felicidade, não consegue sentir-se alegre,

sente medo e, às vezes, raiva por precisar partir. Já na primeira etapa da viagem, quando os

emigrantes vão de trem, desde Roncà até o porto de embarque em Gênova, é possível

perceber uma crise de identidade nessa personagem. Aurélio tenta lembrar a vida na Itália:

“tudo parecia envolto em névoa, tudo se desmanchando. Tentou imaginar então como seria a

154 POZENATO, 2000, p. 117-118. 155 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 223. 156 POZENATO, 2000, p. 17. 157 POZENATO, 2000, p. 16.

84

América, lá no fim da viagem. As cobras, as florestas enormes. Mas tudo se misturava”.158 A

dissolução dessas referências habituais torna-se o ponto de partida da crise de identidade

vivida por Aurélio. Esse fato é decorrência do processo de (re)construção da identidade da

personagem, comparando elementos familiares com os novos. A personagem procura, a partir

daquilo que lhe é conhecido, formar imagens do novo lugar desconhecido, porém, ainda não

possui referências simbólicas do local de destino que possibilitem essa concretização. Ao

mesmo tempo, tem consciência de que a Itália já faz parte de seu passado, torna-se apenas

memória, afirmam Arendt e Pavani159.

Percebe-se que Aurélio procura manter as lembranças apenas durante a viagem, pois,

ao chegar ao Brasil, está focado no trabalho, quer ter sua terra para trabalhar. Isso pode ser

comprovado simbolicamente através da tabaqueira, que desaparece do seu bolso, fazendo com

que a presença da Itália fique perdida para sempre.

Despertou quando o sol lhe bateu no rosto, lembrando do sonho, e apalpou o bolso da jaqueta. A caixa de rapé tinha desaparecido. Alguém a tinha roubado? Perdera no navio? Ou caíra no mar quando despencou da escada de corda do barco? Sentiu-se infeliz. Era como se tivesse perdido um pedaço dele mesmo.160

Aurélio segue seu caminho em busca da Cocanha, todavia, o desejo de transformar

Rosa numa signora, com anéis, camisas de renda e vestidos vermelhos não se concretiza na

realidade, somente em seus próprios sonhos, como quando adormece durante a viagem de

trem para Gênova:

Viu à sua frente um enorme campo de flores que subia pelas encostas, margeava as estradas e cobria até a torre da igreja. Ele andava a cavalo no meio delas, com uma espingarda no ombro e, de repente, encontrava Rosa, de vestido vermelho, uma linda dama, deitada na relva, sorrindo, chamando por ele.161

Talvez para esquecer as dificuldades encontradas no país da Cocanha e a decepção por

não concretizar seu sonho, ele se afunda na bebida. A personagem não encontra no entre-lugar

representações simbólicas que a posicionem como sujeito. Segundo Woodward, é por meio

dos significados produzidos pelas representações que os sujeitos dão sentido àquilo que são e

a suas experiências.

158 POZENATO, 2000, p. 17. 159 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 233. 160 POZENATO, 2000, p. 84. 161 POZENATO, 2000, p. 20.

85

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser?162

Aurélio, embora se livre do patrão na Itália, não encontra no Brasil as condições de

fartura com que sonhara. Sente-se frustrado com a vida, marcada pelo sofrimento e pela

luta em busca da sobrevivência. Se o sonho de transformar Rosa numa senhora é a razão de

emigrar, quando ela morre – no parto do oitavo filho, aos 36 anos – Aurélio sente que sua

vida não tem mais nenhum sentido. Entrega a responsabilidade de cuidar da família ao filho

de 14 anos: “– Ângelo, já és homem, tens quatorze anos. Vais criar os teus irmãos. Eu já fiz

a minha parte”.163

Todavia, é Rosa o exemplo mais expressivo de (re)construção individual da identidade

em outro espaço: procura manter seus laços com o passado, buscando reconstruí-lo a partir de

representações simbólicas. Na vinda para a América com o marido, não projeta seu futuro de

forma idílica, nem acredita que as promessas de riqueza possam se concretizar. O que deseja

para sua família é bastante simples: “[...] não era tonta de imaginar que se tornariam senhores,

como Aurélio às vezes dizia, certamente para animá-la, ou para animar-se ele mesmo. Ela se

contentaria com menos. Bastava terem um teto só deles e mesa farta para os filhos”.164

Rosa sabe que, como esposa, deve seguir o marido. Assim, quando ele decide partir,

não contesta, nem argumenta, apenas procura pensar que será para melhor, tendo consciência

de que é sem volta a mudança.

Ela, pelo menos, não estava arrependida, nem nunca iria se arrepender, não importava o que acontecesse. Muitas pessoas queridas ficavam para trás. Nem os pais, nem os irmãos se sentiram com coragem de sair de Roncà. Ia sentir a falta deles como uma dor, pela vida inteira. Não estava querendo se enganar sobre isso. Mas não ia sofrer menos se ficasse. Não podia adivinhar o que os esperava na América. Ela não era bruxa para ler o futuro. Mas não era possível que fossem ficar pior do que estavam, com falta de trabalho, de comida, do que vestir, de onde morar, de tudo.165

Nutrindo o sonho de ter apenas uma casa e uma mesa farta, Rosa emigra para o Brasil.

O casal instala-se na colônia de Caxias, no Rio Grande do Sul. Apesar de querer tão pouco,

não consegue sentir-se segura em relação ao que o futuro lhe reserva. Ainda quando se

encontra no barracão dos imigrantes, o medo toma conta dos seus pensamentos:

162 POZENATO, 2000, p. 17. 163 POZENATO, 2000, p. 366. 164 POZENATO, 2000, p. 22. 165 POZENATO, 2000, p. 22.

86

Sentia-se dividida. Ansiava ir logo para sua própria casa, onde teria o filho e, enfim, a vida que sonhara com Aurélio. Mas tinha receios, também. O maior deles, pensava, era a solidão em que iam ficar. Nunca tinha vivido só, longe dos outros. Na Itália, os vizinhos eram tão próximos que eram quase parte da família, até para os mexericos. Na viagem, e até agora, naquele barracão em que estavam alojados, sempre estivera rodeada das amigas, de vizinhos, de conhecidos. Todos vivendo as mesmas durezas, todos se ajudando, todos se consolando.166

O tempo todo, quando Aurélio decide emigrar para a América, Rosa imagina que vão

morar em pequenos povoados e vilas, como na Itália. Porém, já na chegada, percebe que as

casas dos colonos são isoladas. Mesmo gritando, no caso de uma necessidade, o vizinho

mais próximo não consegue ouvir. Também tenta imaginar-se morando dentro das casas que

observa, tão diferentes daquela onde tinha sempre vivido. Acostumada a conviver com as

rondinèle, “todas ao redor do mesmo fogo, cozinhando às vezes na mesma panela, podendo

conversar a toda hora”.167 Precisa adaptar-se à nova vida solitária.

Inicialmente, Rosa busca organizar sua vida de acordo com os antigos hábitos

culturais da Itália, procurando adaptá-los ao novo espaço e às novas condições de vida

apresentadas:

[...] dedica-se aos afazeres domésticos, cuidando da horta e dos animais. Ela procura organizar o seu espaço e dominar a natureza através da criação de referências simbólicas que lhe permitam estabelecer novas relações de identidade: a casa de chão batido, o terreno para plantar temperos e flores, a gaiola de taquaras para prender as galinhas e, ao fundo, além dos troncos chamuscados, a mata fechada. Dentro da pequena casa, os utensílios de cozinha, as ferramentas de trabalho, a cama de tábuas e o baú com seu enxoval fazem parte dessas referências.168

Ainda que esteja num outro espaço, Rosa quer ser a mesma, adapta-se como pode ao

novo local, mas sempre procurando as referências de sua cultura. O travesseiro de penas que

a acompanha durante toda a viagem é o objeto mais significativo da personagem,

representando muito mais do que uma permanência, a continuidade da mesma Rosa de

sempre.169

Muitos elementos da flora e da fauna ajudam Rosa a (re)construir seus laços

simbólicos. Dentre eles, merece destaque uma planta bastante utilizada como alimento pelos

italianos: o pissacàn, chamado de almeirão no Brasil. “Esmagou o talo nos dedos e cheirou,

166 POZENATO, 2000, p. 125. 167 POZENATO, 2000, p. 154. 168 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 231-232 169 Cf. ARENDT; PAVANI, 2006, p. 231-232.

87

tinha o cheiro amargo do pissacàn. [...] Se não estivesse errada, tinha salada para

acompanhar a polenta, ou fazê-lo cozido e temperado com alho, como aprendera com a

mãe”.170 Assusta-se com a presença de um macaco em sua janela, aumentando o sentimento

de solidão.

Eram só ela e a casa. Ela e o silêncio. Ficou de repente paralisada, com uma ponta de medo querendo subir até a garganta e uma súbita vontade de ir até a casa da Gema. Mas não podia fazer isso, devia acostumar-se, certamente muitos dias como esse teria pela frente.171

Para suportar as dificuldades, Rosa escolhe um símbolo religioso como lenitivo. Trata-

se de um quadro da Madona, que ela coloca numa prateleira feita por Aurélio aos pés da

cama: “Ajoelhou-se diante do quadro da Madona rezando e chorando. Ao fim levantou-se

resoluta, e apanhou uma enxada. Ia preparar o canteiro das verduras”.172 Também a presença

do filho ainda no ventre a faz sentir-se mais segura, um filho gerado ainda na Itália. “O meu

embarcou comigo. Fez toda a viagem junto.”173

A partir da análise das (re)construções individuais, pode-se compreender o processo

de integração das culturas no entre-lugar. Indivíduos que deixam sua terra e suas raízes, mas

trazem consigo a identidade cultural, que passa por adaptações ao novo espaço. O sofrimento

e as dificuldades das pessoas para (re)construir suas identidades é visível na obra em estudo.

As personagens sempre procuram referências no passado e, por isso, têm dificuldade de

viver o presente. O fato de estarem localizadas num entre-lugar, por serem imigrantes,

coloca-as numa situação de não-pertencimento frente à nova sociedade. Precisam reconstruir

conceitos essenciais em relação a sua identidade, como forma de sobrevivência ao novo

meio.

5.2 (Re)construções da identidade coletiva no entre-lugar

No romance em análise, o principal elemento congregador da identidade coletiva entre

os imigrantes italianos é o mito da Cocanha (sinônimo de fartura), que conecta os sonhos e

projetos do grupo. Nessa obra literária de Pozenato, é também coletivamente que os símbolos

170 POZENATO, 2000, p. 155. 171 POZENATO, 2000, p. 156. 172 POZENATO, 2000, p. 157. 173 POZENATO, 2000, p. 202.

88

mais colaboram para a manutenção da identidade. Apesar de terem praticamente sido

expulsos da Itália, entre os imigrantes e seus descendentes, os elementos culturais: dialeto

regional, origem comum, culinária típica, valores religiosos, valorização do trabalho e da

terra, entre outros, funcionam como diferenciadores e conferem singularidade ao grupo.

Através das ações das personagens do romance de Pozenato, os imigrantes demonstram a

intenção de fazer do Brasil uma “nova Itália”.

– Tem que ir se acostumando – provocou Domênico. – A América não é a Itália. – Isso eu sei. Mas eu vou plantar aqui as nossas frutas. Já venho trazendo as mudas. De uva, de ameixa, de maçã. – Trazendo a Itália para a América? – É, não tinha pensado, é isso mesmo.174

São as origens italianas que orientam o agir dos colonos, influenciando diretamente na

adaptação ao novo espaço. A cultura italiana é a única representação identitária de suas vidas,

é ela que os faz sentirem-se iguais quando enfrentam o desconhecido, o estranho. Ressalta-se

que, em território italiano, os integrantes desse mesmo grupo que parte não se consideram

semelhantes: são diferentes devido às distintas regiões de onde provêm. Ainda no embarque, a

personagem Rosa revela essas diferenças na língua: “Lá em cima havia um vozerio como de

praça cheia de gente, falando toda espécie de dialeto. Alguns, Rosa conseguia entender.

Outros pareciam língua estrangeira, de tão diferentes”.175 Outro momento de identificação de

antigas diferenças ocorre quando há o encontro de italianos desconhecidos:

Seriam eles como os cães, que se reconhecem pelo faro? Arriscou-se a perguntar. — Italiano? O homem olhou-o como se estivesse decidindo se ia responder ou não. Por fim, dignou-se a falar. — Sim, sou italiano. O senhor, quem é? — Sou Bonpiero. Bonpiero Domênico, de Verona. — Meu nome é Custode. Custode Guglielmo, de Vicença. — Dos magna-gatti, então. — Como o senhor é dos tutti-mati. Riram. Eram os apelidos com que se mimoseavam na Itália, os vizinhos de província, desde remotos tempos. Os de Vicença, comedores de gatos. Os de Verona, todos loucos.176

Mais um elemento revelador da identidade dos italianos já em território brasileiro é a

indumentária, que os diferencia dos demais: “– Olha em roda – disse o napolitano, na sua fala

cantada. – Negros, mulatos, quase sem roupa. E olha a pele de vocês, olha as roupas.

174 POZENATO, 2000, p. 75. 175 POZENATO, 2000, p. 47. 176 POZENATO, 2000, p. 86-87.

89

Ninguém usa roupas como essas neste calor”.177 Para os italianos, no vestuário, prevalece o

princípio da economia. Geralmente, usam vestimentas simples, como chapéu de abas largas e

chinelos de couro grosseiros. Apenas nas festas, costumam usar a fatiota de brim e colete. As

mulheres usam vestidos longos, feitos por elas mesmas. Assim, pela cor da pele, pelas roupas

e pela linguagem, eles reconhecem seus compatriotas facilmente em meio aos demais

indivíduos da sociedade.

Os imigrantes passam a analisar os outros de forma diversa, reconhecendo-se como

iguais pela origem nacional, embora em território italiano isso não ocorresse. Esse fato

demonstra que a identidade cultural, a partir da diferença, começa a transformar-se. Nesse

contexto, a nova localização geográfica leva as pessoas a se reunirem em grupos iguais,

visando a compartilhar seus interesses em comum. A (re)construção das identidades é

necessária para o indivíduo delimitar seu lugar no mundo e ser reconhecido. A possibilidade

de ser reconhecido por meio de uma ou várias identidades transforma-se na fonte básica de

significação no entre-lugar. Através da personagem José Bernardino, funcionário da

Comissão de Terras, consegue-se entender claramente como se (des)constrói a identificação

cultural e nacional dos italianos no Brasil. Com a saúde abalada, ele resolve deixar Porto

Alegre e embrenhar-se na “selva selvagem” para respirar ares mais puros.

José Bernardino é também grande poeta e brilhante jornalista, por isso, resolve fazer

anotações, a fim de escrever um romance realista a partir de suas observações sobre os

imigrantes. Ele representa alguém com uma visão de fora, pois não pertence ao grupo.

Essa gente que aqui vem chegando, descubro agora, não se considera italiana. Ou considera-se tal apenas em segundo plano. Pergunte-se a qualquer deles a sua origem e dirão: sou veronês, sou paduano, sou vicentino, sou belunês. Outros, de língua mais arrevezada, diz-me o Góes que são milaneses, bergamascos, cremoneses. Vi passaportes em que os portadores constam até mesmo como austríacos, embora falem um dialeto de tipo italiano. Mas eles também não se dizem austríacos, e sim tiroleses. São os senza bandiera, os ‘sem bandeira’. [...] Tenho notado, também, que não falam todos a mesma língua, a ponto de muitas vezes não se entenderem entre eles mesmos. [...] Resulta de tudo isso que eles sequer tinham uma pátria única em sua origem. É possível que aqui aprendam a ter esse tipo de sentimento. O que quero dizer: de tanto os chamarmos de italianos, irão se identificando como tais, até, quem sabe, para se sentirem todos solidários na mesma sorte. Mas, para ser realista, não poderei chamá-los de italianos. Para empregar um termo genérico, talvez deva recorrer ao ‘gringo’, que vejo ser usado seguidamente pelos naturais daqui. Há a desvantagem de ser ele um termo pejorativo, infamante, mas o tempo acabará por dar a ele alguma simpatia. Ou, mas simplesmente, serão todos, ao fim e ao cabo, brasileiros como todos nós.178

177 POZENATO, 2000, p. 76. 178 POZENATO, 2000, p. 194-195.

90

A partir desse trecho, pode-se depreender que, na Itália, não há uma congregação

coletiva entre os colonos que emigram. Essa unificação passa a existir quando seus ideais

tornam-se comuns, ou seja, quando sentem que precisam do apoio um do outro para se

fortalecerem e sobreviverem no novo espaço. Conforme Bhabha, a existência do sujeito, no

entre-lugar, fornece subsídios para a “elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou

coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e

contestação [...]”.179 Assim, eles acabam aderindo a um sistema comum de valores que

modela seus comportamentos.

As primeiras impressões do Brasil que o país desperta nos italianos nem sempre são

favoráveis. Eles percebem que os brasileiros não os recebem com entusiasmo, a começar

pelos funcionários que conferem a documentação: “Pela carranca e má vontade, ele via os

imigrantes como estorvo, e como estorvo os tratava”.180 Para o italiano, o brasileiro é

identificado como vagabundo, que não gosta de trabalhar. A personagem José Bernardino, por

exemplo, ao ser chamado de brasilián, negro e pelandrón por um italiano, “achou estranho

que tivessem sido juntadas as duas palavras, brasileiro e negro, como se fossem

sinônimas”.181

Loraine Giron afirma que “a identidade existe se houver a diferença. Assim, a

identidade só tem sentido pela comparação entre grupos iguais, distinguindo-os daqueles que

possuem outras características e, portanto, outra identidade”.182 Sabe-se que a identidade é

construída historicamente, ou seja, o sujeito não possui uma identidade fixa, devido às

relações com os sistemas culturais que o rodeiam. Os indivíduos apropriam-se e/ou constroem

novas identidades a partir das diversidades culturais com que interagem. Conforme Hall, “a

identidade permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo

formada”.183

O fato de estarem num outro espaço gera muitas incertezas pelo rompimento dos

vínculos sociais e pela perda dos pontos de referência culturais, sociais, lingüísticos e

religiosos, cultivados no país de origem. Esse distanciamento pode levar, entre outros fatores,

à dispersão da identidade. A perda de um sentido de si é o que Hall chama de “deslocamento

ou descentração do sujeito”.184 Os fatores etnia, língua e comunidade são características mais

179 BHABHA, 1998, p. 19. 180 POZENATO, 2000, p. 78. 181 POZENATO, 2000, p. 218. 182 GIRON, Loraine Slomp. Da identidade à etnicidade. In.: CHAVES, Flávio Loureiro; BATTISTI, Elisa (Orgs.). Cultura regional: língua, história e literatura. Caxias do Sul: Edusc, 2004, p. 54. 183 HALL, 2005, p. 38. 184 HALL, 2005, p. 9.

91

que fundamentais no processo de manutenção e consolidação de uma memória coletiva que

culmina, em última instância, na preservação de uma identidade. Dentre os rituais mais

preservados pelos imigrantes em terras gaúchas estão as festas, sempre acompanhadas de

cantigas e mesa farta, o trabalho e, principalmente, a religião.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes para se estabelecerem na

região da serra gaúcha, nos momentos de euforia, as festas populares do país de origem estão

sempre presentes, não podendo faltar as cantigas e as comidas típicas. Elas funcionam como

um elo entre os indivíduos, fazendo-os sentirem-se mais unidos. Várias cenas do romance A

Cocanha, de Pozenato, exemplificam esse aspecto. Uma delas ocorre durante a construção das

primeiras casas nos lotes adquiridos. Para amenizar a saudade de tudo o que ficou na Itália e

que os identificava, os amigos de Roncà resolvem ser todos vizinhos, escolhendo colônias

próximas. Fazem mutirões para construir as casas, no que são inicialmente ajudados pelo

velho Nicola, italiano que havia chegado há anos ao Brasil.

À noite a fogueira parece mais viva, animada pelo forte cheiro de resina das cascas de pinheiro. Os homens estão esquecidos do desentendimento da noite anterior e cantam. Desencontram-se um pouco, pois em cada dialeto a mesma canção tem palavras diferentes. Mas é bonito ver que, agora também no canto, eles procuram acertar as diferenças. Mais tarde, pensa Nicola, quando se lembrarem desse começo, poderão dizer que cantavam alegres em meio às dificuldades e que se ajudavam como irmãos. O começo parece sempre mais bonito depois que tudo passa e as coisas ruins são esquecidas.185

As mulheres permanecem no barracão dos imigrantes, em Campo dos Bugres,

enquanto os homens estão acampados nas terras recém-compradas, trabalhando juntos para

providenciar as casas. Elas também recorrem às cantigas e à dança durante a ausência dos

homens. Esse aspecto colabora para a manutenção da identidade, que está nitidamente ligada

a tais elementos.

Depois do jantar, as mães acomodam os filhos nas camas e, uma a uma, retornam ao salão. No começo cochicham entre si, sentadas nos bancos ao longo da mesa, ainda de ouvido nas crianças, à espera de que durmam de vez. Pouco a pouco, as vozes vão se tornando animadas e um riso explode aqui e ali. As mais velhas riem escondendo a boca, como se fizessem algo proibido, mas seus olhos brilham como os de meninas travessas. Cantam uma canção, a meia voz, e a seguir outra, já mais solta.186

Os jogos de baralho e mora também são parte do cotidiano dos pioneiros. É jogando

cartas que os homens fazem a viagem de navio não ser tão penosa, esquecendo o tempo que 185 POZENATO, 2000, p. 141. 186 POZENATO, 2000, p. 128-129.

92

não passa. Jogam dados, dominó, quatrilho, tri-sét: “Uma cama servia de mesa de jogo, e

depois um barril que encontraram perto da casa de máquinas. [...] No jogo, não percebiam o

balanço do navio”.187 Em território brasileiro, esses jogos tornam-se praticamente a única

forma de diversão masculina, sendo que mulheres não participam. Nas festas, cabem a elas as

tarefas domésticas.

As mulheres entram no circuito íntimo de suas conversas e começam a pôr ordem e limpeza em pratos e garfos. Não fazem isso como tarefa ou obrigação, mas como um arremate da festa, e para não se sentirem soltas em demasia. Os homens fazem também seu círculo e se põem a jogar.188

A ausência de recursos materiais para a prática de esportes e atividades recreativas faz

com que, nas primeiras décadas, o lazer ocorra a partir dos encontros de famílias e/ou

vizinhos. Diferentes jogos aparecem como forma de entretenimento e do cultivo de estar

juntos. Não se joga por dinheiro ou prêmios, mas como forma de diversão, passatempo. Por

isso, os jogos de baralho, bochas e outros, oportunizam o crescimento dos contadores de

histórias, dos piadistas, dos tomadores de vinho e cachaça.

Da mesma forma que as cantigas e o jogo, a mesa farta é fundamental nas festas dos

colonos. Para as primeiras famílias de imigrantes italianos oriundos da região norte da Itália, a

compra de um pedaço de terra significa o início da realização de um sonho. Trazem consigo

não só esperanças, mas também seus hábitos nativos, e são justamente seus hábitos

alimentares que resistem às transformações ocorridas diante de uma nova vida. Encontram na

comida toda uma simbologia, uma forma de resistência ao processo de aculturação,

auxiliando na formação desse grupo étnico em outro espaço. Na véspera de Páscoa, os

moradores de Santa Corona preparam uma grande festa para comemorar a passagem de um

ano, desde que começaram a morar em suas propriedades.

À noite, o cheiro da passarinhada assando nos espetos, temperada com sálvia e fatias de toicinho, pingando gordura nas fatias douradas de polenta, deixa todos inebriados. No país da cocanha, conta-se, as aves caem já assadas do céu. Estas caem do céu, mas cabe a eles assá-las, sentindo o aroma que entra pelas narinas e invade o corpo até a profundeza da alma. É maior que o da cocanha esse prazer de estarem preparando o banquete com suas próprias mãos, tendo a sensação da fartura sem limites. [...] As mulheres mexem as panelas de polenta, não pode faltar a polenta, e antes sobrar que faltar, para a festa não ser um desastre.189

187 POZENATO, 2000, p. 50. 188 POZENATO, 2000, p. 256. 189 POZENATO, 2000, p. 254-255.

93

A polenta é, sem dúvida, o alimento mais consumido pela população italiana em

território brasileiro, especialmente por ser um prato barato e de fácil preparo. Os imigrantes

reafirmam sua italianidade através da culinária, de modo especial por intermédio da polenta,

um símbolo de identificação para seus descendentes. A polenta, utilizada como comida pelos

italianos em situações de penúria na Itália, é também o principal alimento para as famílias de

imigrantes italianos instalados nas colônias brasileiras, diante das dificuldades encontradas

para a obtenção dos meios de subsistência.

Aos poucos eles conseguem diversificar a alimentação, como ocorre quando a igreja é

inaugurada:

[...] prepararam cada uma das iguarias: a sopa de agnolini, o pien embutido na pele do pescoço das galinhas, o risoto temperado com miúdos. Os assados de galinha e de porco elas tinham feito em casa, no forno de pão da Gema, que comandava a todas elas.190

Os imigrantes passam a consumir comida brasileira. No início, resistem ao gosto: “só

a comida estranha, um feijão preto como carvão, misturado com alguma espécie de farinha, a

carne com cheiro forte, de coisa podre, é que não agradou muito”.191 Provam frutas tropicais

como manga, que “Cósimo arriscou a experimentar e fez uma careta”.192 Ao provarem

amoras, reconhecem a diferença: “seu gosto é ácido, meio selvagem. Mas talvez sejam boas

para fazer um licor”.193 Porém, as laranjas são muito apreciadas: “eram cheirosas, grandes,

doces, cheias de suco. Rosa não conseguia parar de comê-las”.194 A personagem também

demonstra apreciar a fruta do coqueiro, com gosto forte, açucarado e estranho. Com o passar

do tempo, começa a ocorrer, de forma lenta e progressiva, a integração das culturas também

na alimentação. É o que acontece com Roco, um dos primeiros imigrantes que, na obra,

começa a considerar-se brasileiro e quer se “sentir brasileiro, com filhos brasileiros e, se

possível, de uma mãe brasileira”.195 Aprende a tomar chimarrão e a comer churrasco na casa

de Delfina, sua namorada brasileira.

O costume de beber vinho – não só em festas, mas diariamente – também é trazido

com os italianos. Entretanto, quando os imigrantes aqui chegam, não há ainda a videira para

elaborar o vinho caseiro. A bebida mais barata é a cachaça, que ameniza o sofrimento dos

190 POZENATO, 2000, p. 283. 191 POZENATO, 2000, p. 74. 192 POZENATO, 2000, p. 75. 193 POZENATO, 2000, p. 114. 194 POZENATO, 2000, p. 93. 195 POZENATO, 2000, p. 221.

94

colonos instalados em meio à mata. Utilizam tal bebida para os casamentos e aniversários, o

descanso ao domingo, as alegrias e dificuldades freqüentando os botecos. A cachaça alimenta

e anestesia os seus sonhos e esperanças de uma nova vida na terra de adoção. Também faz as

mulheres chorarem de tristeza ao ver seus homens perdidos no vício.

O trabalho é outro elemento fundamental na adaptação dos imigrantes aos costumes da

nova pátria, de tal forma que uma das principais contribuições dos italianos na constituição

dos alicerces culturais e morais da sociedade brasileira é a ética do trabalho, o qual se

transforma em sinal de identificação da italianidade. Os novos proprietários de terra tornam-se

pequenos produtores e, através da mão-de-obra familiar, iniciam a História da zona colonial

na região da serra do Rio Grande do Sul, tendo consciência de que do solo é que podem retirar

o sustento da família. Por isso, inicialmente, a agricultura é marcada por culturas agrícolas de

sobrevivência.

Sonhavam no que iam conseguir ter e nunca tinham tido. Cada um tinha seu sonho particular, mas o de todos eles era no fim semelhante. Imaginavam a quantidade de terras que iam cobrir de trigo, de milho, de cevada, de amoreiras. As vacas produzindo leite, sem nunca faltar queijos empilhados no celeiro, os porcos em quantidade, os salames pendurados na cantina o ano inteiro, as galinhas, gansos e patos. As pipas cheias de vinho. Tudo isso podiam ter na América [...].196

Apesar de acostumados ao trabalho pesado na Itália, ao chegarem nos lotes

comprados, percebem que a tarefa não é fácil. Precisam aprender a lidar com as diferenças de

solo e plantas. O velho Nicola é quem orienta as primeiras ações a serem tomadas: abrir um

roçado com as foices. “É uma desgraça. Bépi prende a foice nos cipós, Aurélio tenta cortar a

touceira pelas folhas, Cósimo derruba tudo o que corta em cima dos pés.”197 Aos poucos, as

personagens começam a identificar-se com a nova terra.

O trigo estava maduro para a colheita. A primeira colheita que Aurélio Gardone fazia na América. Estranho, porque era dezembro, e na Itália ceifava-se o trigo em junho: “junho, foicinha em punho”, dizia-se. Muitas das coisas que ele sabia sobre o sol, a lua, o tempo de colheita e plantação aqui não valiam quase nada. Era tudo invertido.198

Além de se adequar aos novos períodos das estações do ano, os imigrantes sentem que

o trabalho, no Brasil, passa a ser algo penoso. Cada colono precisa garantir o sustento da

família, a partir do que produz em sua lavoura. Na Itália, o trabalho era realizado de forma

196 POZENATO, 2000, p. 60-61. 197 POZENATO, 2000, 2000, p. 132. 198 POZENATO, 2000, p. 230.

95

coletiva, com muita festa. É o que revela Aurélio, em suas lembranças, enquanto colhe o trigo

sozinho: “A diferença de uma colheita de trigo na Itália! Iam em grupo, homens e mulheres,

rapazes e moças, com grandes chapéus de palha, e cantavam o tempo todo”.199 A única

alegria, no Brasil, é não precisar dividir os lucros com o patrão, como ocorria na Itália.

Tornar-se signore, ou seja, proprietário, é algo muito importante para os primeiros

emigrantes que se aventuram rumo ao desconhecido. É a promessa de ascensão social que, na

Itália, para a maioria, era uma impossibilidade. Os camponeses viviam num regime de

privações, pois as colheitas nem sempre eram boas e os impostos, um pesado encargo.

Chegando ao Brasil, trabalham sem cessar para conseguir melhorar suas propriedades,

adquirir animais e independência, características essas constantemente enaltecidas, atitudes

por meio das quais alguns conseguem ascender socialmente como proprietários livres.

Mais uma vez, José Bernardino, com visão de fora, resume o que o trabalho representa

para o imigrante:

Esses colonos pareciam trazer consigo uma compulsão que os impelia a buscar sempre mais. [...] Ou uma ambição sem limites. Era incrível o que tinham eles conseguido realizar em poucos anos. [...] era uma fila de colméias ativas ao longo do caminho. O mel da riqueza amadurecia nos favos.200

O trabalho incansável do imigrante resulta no prazer de sentir que é proprietário em

ascensão, que a fartura buscada na América começa a aparecer lentamente. “Era de ver que

estava rodeado de fartura. Depois de sete anos de luta, ele era quase um senhor. Tinha seu

cavalo, as duas vacas, queijos e salames guardados no porão, uma pipa de vinho, essa ninhada

de leitões.”201

Não são apenas os homens que trabalham incansavelmente para melhorar de vida. As

mulheres, além das tarefas domésticas e da criação dos filhos, acompanham os maridos na

lavoura. É uma jornada tripla e sem reconhecimento. “Os maridos decerto imaginavam que

elas eram de ferro. Só iam se dar conta de quanto elas se matavam de trabalhar, se é que

seriam capazes disso, no dia em que elas morressem.”202 Também as crianças precisam

colaborar para o sustento da numerosa família. O nascimento de filhos homens sempre é

comemorado com mais alegria, pois representa mais força para o trabalho, embora as meninas

igualmente peguem pesado.

199POZENATO, 2000, p. 230. 200 POZENATO, 2000, p. 241. 201 POZENATO, 2000, p. 277. 202 POZENATO, 2000, p. 325.

96

Mas era sempre bom poder sair de casa e deixar o trabalho de lado. Carregar água, tratar dos animais, cuidar das irmãs menores, lavar a casa, era quase sempre com ela, porque as mais velhas iam trabalhar com o pai e a mãe no cabo da enxada. Mas na época de plantar o trigo e de limpar o milho, nem da enxada ela conseguia se livrar.203

Apesar de o Império exigir a profissão de agricultor como pré-requisito para emigrar,

muitos outros profissionais conseguem fazer a travessia. É o caso de Domênico, alfaiate e

fotógrafo, que acaba se instalando no vilarejo de Campo dos Bugres. Logo na chegada, faz

contato com moradores do local e inicia seu trabalho.

Quis então saber como podia se instalar na cidade, comprar uma propriedade, abrir a oficina de alfaiate e fotógrafo. O lote, informou Dallaosta, ele devia requerer na Comissão de Terras. Ali no centro devia estar custando uns vinte mil réis, mais as taxas. Quanto à oficina, ele, Dallaosta, podia alugar uma sala, com porta e janela, ao lado mesmo da casa de comércio. Não era grande, mas servia bem, até que Domênico construísse sua casa.204

Entre os primeiros ofícios estabelecidos nas vilas estão as ferrarias, sendo a

personagem Roco um dos primeiros empreendedores. Ele chega da Itália, instala-se na vila e

passa a trabalhar numa ferraria. Porém, descontente com o patrão, que deseja limitar sua

liberdade, manipulando inclusive a escolha de amigos, ele resolve abrir um negócio próprio.

Roco é representado como um dos pioneiros para o desenvolvimento da Região da serra

gaúcha.

Tinha conseguido instalar a ferraria, embora ainda tivesse dívidas pela compra das ferramentas. [...] Assim que entrasse algum dinheiro dos colonos, depois da colheita do trigo, ia tratar de adquirir um torno, para fabricar artigos que rendessem mais, panelas talvez, ou espingardas.205

Uma variedade de possibilidades se oferece ao imigrante que chega com vontade de

progredir, ou seja, a Cocanha só é alcançada através do trabalho. A política de imigração visa

especialmente buscar trabalhadores para promover condições de desenvolvimento econômico,

social e político no Brasil. Assim, não só agricultores tornam-se necessários, mas também

pedreiros, operários, alfaiates, ferreiros, fotógrafos e muitos outros profissionais. Nesse

sentido, há uma subversão do mito da Cocanha (idéia de facilidade), pois, sem trabalhar,

ninguém consegue fartura, nem sobreviver em terra estrangeira.

203 POZENATO, 2000, p. 368. 204 POZENATO, 2000, p. 108-109. 205 POZENATO, 2000, p. 272-273.

97

A Cocanha está, então, ali, em um ponto imaginário qualquer e ao alcance dos sonhos. Aqueles que conseguem nela chegar terão uma vida ótima, com pouco ou nenhum trabalho e muitas recompensas: fartura de todo tipo de alimento, clima sempre agradável, nascentes de rios que em vez de água destilam vinhos de excelente qualidade, mulheres sempre dispostas a amar...206

A partir dessa passagem, pode-se entender melhor a desmitificação da Cocanha. É

certo que os imigrantes não projetam sua vida apenas a partir de um mito; mas, para a

maioria, as facilidades prometidas são substituídas por trabalho incansável para poder garantir

a sobrevivência. Gozar a vida sem trabalhar não é uma realidade para esses colonos.

O trabalho é um elemento de diferenciação entre italianos e brasileiros. Conforme

Gomes, a capacidade de trabalho dos imigrantes se apresenta como uma das características

mobilizadas para a constituição de uma identidade étnica que os distingue dos brasileiros,

considerados pelos italianos como “menos instruídos, mais preguiçosos e ‘malandros’, além

de ‘menos brancos’”.207

Na obra A Cocanha, Pozenato revela o espanto inicial da personagem Ambrósio ao

descobrir que seu patrão brasileiro rouba no peso: “No primeiro dia chegara contando que o

dono da casa de secos e molhados em que trabalhava tinha dois jogos de pesos de balança, um

para as vendas de arroz e açúcar aos fregueses e outro para comprar o milho e o feijão dos

colonos.”208 Analisando mais profundamente a relação propriedade/trabalho entre os italianos,

Silvino Santin afirma o seguinte:

O trabalho, para o imigrante italiano, não representava apenas uma ação produtiva, nem mesmo um valor econômico exclusivamente, ou uma condição da pessoa, mas, e acima de tudo, uma dimensão antropológica e cultural. Ser trabalhador não só implicava a idéia de quem trabalha, mas especialmente o modo de trabalhar. Ser trabalhador significava trabalhar com extrema dedicação, grande empenho e total convicção.209

Assim, enquanto atividade de sobrevivência, o trabalho torna-se um dos símbolos dos

imigrantes italianos, adquirindo valor fundamental, não apenas como fonte de riquezas, ou

condição essencial para a sobrevivência humana, mas sim, um elemento simbólico criado para

justificar discursos e ações em detrimento de outras culturas. Além de transformar-se em

valor ético, sendo o elemento que garante o progresso e a acumulação de capital. A

206 BERND, 2007, p. 121. 207 GOMES, 2007, p. 175. 208 POZENATO, 2000, p. 146. 209 SANTIN, Silvino. Dimensão social do trabalho e da propriedade do imigrante italiano na ex-colônia de Silveira Martins. In: DE BONI, Luís A. (Org.). A presença Italiana no Brasil - Vol. II. Porto Alegre: EST, Torino: Fondazione Giovanni Agnelli, 1990, p. 457.

98

organização de vida das personagens faz com que o acúmulo de riquezas econômicas torne-se

primordial, partindo da sobrevivência para a acumulação.

A análise da História da imigração italiana e a leitura da obra literária de Pozenato

revelam que o elemento de maior destaque na (re)construção da identidade do imigrante

italiano é, sem dúvida, a religião católica; representada por seus ritos, imagens e símbolos.

Antes da partida, todos os que emigram participam de uma missa solene, na qual o padre faz

um sermão com as últimas recomendações, afirmando ser uma despedida sem retorno:

“entrega aos que partem um quadro com a efígie da Madona, para que ela os acompanhe na

viagem e os faça lembrar sempre da fé católica e romana de seus pais”.210 Segundo Arendt e

Pavani211, quando nos momentos de perigo e medo, as personagens recorrem às orações e aos

hinos religiosos, buscando a proteção divina. A primeira manifestação de religiosidade,

depois da partida da Itália, ocorre ainda em alto-mar, durante uma tempestade:

Aos poucos, as vozes que rezavam foram dominando o choro e o alarido de pânico. Todos repetiam as ave-marias do rosário, de ouvido atento aos rangidos das madeiras, esperando a hora em que iriam para o fundo do mar. No fim, alguém entoou a Salve Regina, e Aurélio cantou, como todo mundo, com todas as suas forças, tentando afastar a idéia de que ia morrer afogado.212

Esse apego à religião contribui para a unidade do grupo: “A crise mobiliza os

indivíduos a, conjuntamente, buscarem amparo em forças sobrenaturais, reforçando o

sentimento de pertença e a identidade religiosa fundada na doutrina cristã”.213

Nesse sentido, Arendt e Pavani214 destacam o significado da presença do padre entre

os imigrantes, como legítimo representante da Igreja. Em todas as comunidades, ele é detentor

de poderes morais e até de ordem econômica e comercial. No romance em estudo, o padre

Giobbe é visto como alguém que conforta e consola ao levar a doutrina cristã à comunidade

de Santa Corona.

Percebia que tocavam nele às escondidas, quando estava no meio das pessoas, quem sabe imaginando que saísse dele alguma energia para realimentar suas almas cansadas. Pobre gente. Mal sabiam o quanto ele também se sentia fraco. Mas se a presença dele servia de algum conforto, não iria decepcioná-los, passaria o resto dos seus dias no lombo da mula.215

210 POZENATO, 2000, p. 12. 211 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 235. 212 POZENATO, 2000, p. 53. 213 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 235. 214 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 237. 215 POZENATO, 2000, p. 337.

99

Quando o padre visita a comunidade, chegam a ocorrer disputas para decidir quem irá

recepcioná-lo. No romance, esse fato ocorre entre Gema e Marieta do Cósimo, com a vitória

da primeira, garantindo que sua casa fica mais perto da igreja e que sua comida é melhor.

Estrategicamente, Gema decide convidar a personagem Rosa para auxiliá-la, a fim de que o

padre lhe diga algumas palavras de conforto. Ele percebe que essa mulher de apenas trinta

anos está muito envelhecida, sofrida pelo trabalho e a bebedeira do marido. Rosa sente-se

amparada pela presença do padre Giobbe, que parece lhe encorajar. Além de ouvir confissão,

o sacerdote se interessa por sua vida particular, por seus sofrimentos, de acordo com Arendt e

Pavani216.

Conforme Giron, “o papel da Igreja não se limita a conselhos dados a camponeses,

pois junto com os emigrantes vem o clero, encarregado de acompanhá-los no rito de perda da

pátria e na construção de uma nova identidade”.217 O catolicismo constitui-se num dos

elementos fortalecedores dos imigrantes, ajudando-os a (re)construir sua identidade cultural a

partir de uma vivência de fé e esperança. No romance, a idéia de sofrimento liga-se a de

salvação: padecer na terra para descansar no paraíso, após a morte.

A construção da igreja – principal local de expressão dessa religiosidade – torna-se

fundamental para a unidade do grupo e, também, para iniciar o progresso da comunidade.

Miro abre a reunião renovando a promessa de que vai doar um pedaço de terreno para a igreja, com escritura passada e tudo o que a lei exige. Arenga mais um pouco mostrando o quanto a igreja é importante para o progresso do lugar. Ninguém está sonhando em conseguir um padre só para eles, como tinham na Itália. Mas o certo é que depois de terem a igreja podem pensar até mesmo numa pequena vila, com escola, ferraria, quem sabe um agente postal. Fala com convicção, não deixando escapar nenhum olhar do seu controle. E conclui afirmando que tem certeza de que todos irão dar a sua parte de contribuição, como ele estava dando a sua.218

Erguer igrejas não visa apenas à manifestação religiosa dos fiéis, os italianos também

vêem nelas uma oportunidade de demonstrar a prosperidade dos fiéis. A comunidade toda se

envolve na escolha do local das capelas, bem como na eleição do padroeiro; porém, como são

originalmente de regiões diferentes da Itália, essas seleções chegam a motivar disputas, pois

cada um gostaria que o santo de sua preferência fosse o escolhido. A contenda apresentada no

216 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 237. 217 GIRON; RADÜNZ, 2007, p. 26. 218 POZENATO, 2000, p. 279.

100

romance ocorre na localidade de Santa Corona. Os moradores não entram em acordo sobre

qual será o santo protetor: Santa Corona, Santo Antônio ou São Vigílio.219

Apesar da sugestão de se colocarem os três santos no mesmo altar, o

descontentamento leva o grupo a se dividir e a construir duas igrejas, “o impasse criado entre

as personagens pode ser interpretado com base na idéia de que as identidades se constroem a

partir da marcação de diferenças simbólicas entre os grupos que constituem uma

coletividade”.220

Apesar de algumas diferenças encontradas pelo grupo, fazendo com que sejam

construídas duas igrejas, a religião – com seu universo simbólico – cumpre o papel de unificar

a maioria dos indivíduos em torno de seus ritos, os quais são parte da identidade dos próprios

indivíduos. Exemplo disso, no romance em estudo, ocorre durante a inauguração da igreja em

Santa Corona, quando toda a comunidade encontra-se reunida para festejar.

Dentre os rituais praticados pela religião e considerados sagrados, encontra-se o

funeral, com velório e enterro acompanhados por padre. Durante a narrativa, as personagens

enfrentam situações em que esse rito precisa ser desrespeitado. O primeiro caso ocorre com a

morte de um passageiro – a nòna – durante a viagem de navio, fato que marcou

profundamente a memória da imigração e foi incorporado ao imaginário social.221

Para o grupo de imigrantes, não realizar o ato funeral de um cristão significa o começo

das modificações em sua cultura. Num outro caso de morte durante a viagem, uma criança de

sete anos, poder enterrá-la num cemitério de Rio Grande é uma conquista da manutenção dos

seus valores. Mais um acontecimento relacionado à morte ocorre quando a polícia resolve

desenterrar o corpo que havia sido sepultado na comunidade de Santa Corona sem autorização

do governo.

Os colonos ouvem o badalar dos sinos e vão correndo com armas para ver o

acontecido. Dois soldados exigem que desenterrem o cadáver da personagem De Bastiani,

morto no dia anterior. Os imigrantes negam-se a profanar o corpo do morto e os soldados

prendem Cósimo e mais dois colonos, a pedido do primeiro: “– Me leva preso, seu guarda.

Me deixa preso a vida toda, se quiser. Mas deixa a alma do pobre De Bastiani descansar em

paz”.222 Depois de liberados, ao receberem as explicações para registrar legalmente o

cemitério, questionam-se por que o enterro agora é coisa do Estado, quando deveria ser

apenas da Igreja.

219 Ver: ARENDT; PAVANI, 2006, p. 338. 220 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 238. 221 ARENDT; PAVANI, 2006, p. 229. 222 POZENATO, 2000, p. 329.

101

Esses rituais narrados no romance A Cocanha revelam um processo de (re)construção

da identidade coletiva, por parte das personagens. As referências simbólicas ampliam-se para

abrigar outros símbolos que ajudam o grupo na concretização de seus objetivos. A

consolidação disso depende de uma adaptação das referências trazidas da Itália e da adesão às

culturas locais, (re)elaborando a identidade cultural e nacional. Constata-se, assim, que

(re)construir a identidade cultural envolve sobrepujar outras identidades ligadas ao lugar de

nascimento, a etnias ou a religiões, ou seja, essa criação do novo passa pelo ato de tradução

cultural. Esse conceito, como visto, revela o (re)inserir-se no lar e no mundo, concebendo a

cultura como múltipla.

O imigrantes italianos são obrigados a negociar com as novas culturas que passam a

fazer parte de sua vida no entre-lugar, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem

perderem completamente as próprias identidades. Eles carregam traços das culturas, das

tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcados no país de

origem, tornando-se o produto de várias histórias e culturas interconectadas. Nesse

movimento, a cultura se renova, se amplia, bem como a identidade cultural do povo italiano,

submetido a essas trocas. Outros sujeitos são construídos, e se auto-constroem tendo sua

identidade cultural reformulada. Enfim, o dispersamento dos povos que saem de sua terra e

passam a viver noutra não faz com que haja o abandono das origens, as quais se mantêm, mas

igualmente se misturam na nova situação de vida.

6 PORTO DE CHEGADA

Va', pensiero, sull'ali dorate, va', ti posa sui clivi, sui colli, ove olezzano tepide e molli l'aure dolci del suolo natal!

Del Giordano le rive saluta, di Sïonne le torri atterrate.

Oh, mia pátria, sì bella e perduta! Oh, membranza, sì cara e fatal!

Arpa d'or dei fatidici vati,

perché muta dal salice pendi? Le memorie nel petto raccendi,

ci favella del tempo che fu!

[...]

(Giuseppe Verdi – trecho da Ópera "Nabucco" – 1842)

103

Ler o romance A Cocanha é viajar no tempo, voltar ao passado. É uma história que

aborda a própria História, a trajetória de um povo diaspórico construída entre a realidade e a

ficção. A representação de personagens e situações cotidianas leva o leitor a conhecer o

desenvolvimento de um período e uma região específica: a partida dos emigrantes da Itália e o

seu estabelecimento na região da serra do Rio Grande do Sul. Como a epígrafe revela, são as

lembranças caras de uma pátria bela, mas perdida, que só pode ser reacendida na memória,

pois são recordações del tempo che fu. A vida desses italianos é contada na perspectiva da

Literatura, mostrando que as ações humanas configuram-se nas representações da realidade

objetiva.

O estudo apresenta muitas respostas, algumas definitivas e completas, outras talvez

temporárias e parciais. A partir do propósito de esboçar um panorama da (re)construção da

identidade cultural do imigrante italiano que se estabelece no Estado, propicia-se o

entendimento de diversos fatos históricos, concretizando o conceito do entrecruzamento entre

História e Literatura e contribuindo para que se possa discernir melhor a vida enquanto

produtora de direções múltiplas e imprevisíveis. Os dois discursos, cuidadosamente

entrecruzados no romance, destinam-se a provocar diante do novo, do inesperado, a

concretude da vida, aumentando assim a percepção das relações da realidade/verdade e

ficção/verossimilhança. Constata-se que a maior proximidade entre esses dois campos do

conhecimento reside na eterna e infatigável busca pela vida e/ou por sua representação.

Assim, ao realizar-se a análise do romance, dois aspectos fundamentais são levados

em consideração e relacionados: os fatos históricos e os literários. Nos ficcionais, a ênfase é

dada na (re)construção da identidade individual e coletiva. Na análise histórica, um dos fatos

importantes é a representação dos momentos de incerteza e desequilíbrio emocional diante da

crise econômica e social que assola a Itália em fins do século XIX. Na ficção, José Clemente

Pozenato recria essas circunstâncias de forma coerente, representando nas personagens a

consciência de sua condição de miserabilidade. Os emigrantes reconhecem-se como

indivíduos marcados, no país de origem, pela fome e pela falta de perspectivas, cuja única

saída é ir em busca da Cocanha. O sonho da fartura torna-se mais uma esperança do que uma

certeza, sendo concretizada, ou não, de forma diferente por cada personagem.

A narrativa de Pozenato busca na arte a realidade histórica empírica, registrando,

através da verossimilhança, os nexos essenciais de acontecimentos reais recriados

ficcionalmente. As páginas de A Cocanha relatam sobre a partida dos emigrantes da Itália e

sobre o seu estabelecimento na serra gaúcha. O autor aproxima-se das explanações correntes

da História e da memória da imigração para apresentar uma representação ficcional

104

comprometida com os fatos da imigração italiana no Rio Grande do Sul, uma vez que a

Literatura torna viva a própria História. A obra representa os fatos históricos submetidos ao

estatuto da Literatura produzindo enredos, compondo cenários e personagens, reinterpretando

a imigração. A Cocanha revela personagens ansiosas na busca de seus objetivos, determinadas

a (re)construir suas vidas no outro lado do Oceano Atlântico. São sujeitos conscientes das

oportunidades e dos desafios que o novo mundo apresenta.

Nesse novo espaço, denominado também entre-lugar, é que se processa a

(re)construção da identidade cultural dos pioneiros italianos. O deslocamento dos indivíduos

de seu local de origem ocasiona uma ruptura nas referências simbólicas e, conseqüentemente,

há a necessidade de recuperar um sentido de pertencimento. Ao serem colocadas em contato

com o diferente, passam a estabelecer marcações identitárias, produzindo novos significados

para os antigos sistemas de representação e se posicionando, novamente, como sujeitos. Nessa

(re)construção de sistemas simbólicos, são projetados novos sentidos para o que se entende

por cultura. Ou seja, é a partir da diferença que a cultura é formada. A identidade cultural não

é natural, nem inerente ao indivíduo, ela é preexistente a ele e, como a própria cultura se

transforma, a identidade cultural do sujeito não é estática e permanente, mas é fluida, móvel;

sendo construída nas relações com o outro.

Conforme teorias dos Estudos Culturais desenvolvidas por Stuart Hall, Kathryn

Woodward e Tomaz Tadeu da Silva (evidenciados especialmente na obra Identidade e

diferença), a identidade é estabelecida pela relação eu/outro, sendo a diferença elemento da

marcação simbólica relativa a outras identidades. As duas não podem ser compreendidas fora

dos sistemas de significação, pois são seres da cultura e dos sistemas de significação que as

compõem. Woodward argumenta que a marcação da diferença é decisiva no processo de

construção das posições de identidade. Para Silva, identidade e diferença são inseparáveis,

mutuamente determinadas, interdependentes. Hall também considera que as identidades são

construídas por meio da diferença e não fora dela.

Nesse sentido, se identidade e diferença estão estreitamente associadas a sistemas de

representação, concebidos como sistemas de significação, os entre-lugares conceituados por

Homi Bhabha tornam-se condições para ocorrências de tradução cultural, resultando em

sujeitos pertencentes a uma cultura híbrida. Esse processo de negociação cultural num novo

espaço é bastante evidente em indivíduos que sofrem movimentos de diáspora, colocando sua

identidade construída em intenso diálogo com novas formas de significação. A cultura

original, no contexto diaspórico, mantém-se em constante transformação, de maneira que

105

novos costumes acabam sendo assimilados e, assim, interferindo na identidade individual e

coletiva de um grupo.

O movimento da diáspora tem papel muito importante no processo de (re)construção e

(re)significação pelo qual passam as identidades culturais. Com ele, acentua-se o transporte de

culturas de um lugar para outro, bem como a tradução dessas culturas e dessas pessoas – de

suas identidades – no novo lugar para onde se dá a migração, possibilitando a transformação

da cultura local e, conseqüentemente, a produção de identidades culturais híbridas.

Esse processo de tradução cultural ocorre a partir da diferença: o reconhecimento das

personagens sob o aspecto da diferença é fundamental para a sinalização da passagem entre

identidades fixas, originais, e a possibilidade do hibridismo cultural que acolhe a diferença.

São as relações com o outro, o diferente, que promovem a busca pela negociação com outras

identidades. As personagens precisam adaptar-se para a sobrevivência do grupo, implicando

no processo de hibridização, na revisão de seus valores e regras, o que gera uma tensão entre a

tradição e a tradução cultural, a qual atua na configuração de novas identidades.

A condição de fronteira acarreta aos outros um papel fundamental na (re)construção

dos sujeitos e, com isso, a cultura se renova, se amplia, bem como a identidade cultural dos

povos submetidos a esses intercâmbios. Assim, a produção da identidade e da diferença não

pode ser vista como algo natural e fixo. Pelo contrário, o processo de diferenciação gera

instabilidade e insegurança. Um dos aspectos essenciais do hibridismo é caracterizar-se como

um processo de tradução cultural que nunca se completa, que permanece sempre indefinido.

Na obra em estudo, essas características são reveladas através das ações das

personagens, tornando-se possível identificar os conceitos simbólicos trazidos do país de

origem, bem como sua adaptação ao novo meio. Elas são protagonistas de uma história que

materializa os primórdios da colonização, desvelando depoimentos, sentimentos e impressões

de agentes históricos reais da imigração, transfigurados pela ficção, e permitindo o

entendimento da (re)elaboração da identidade cultural do imigrante italiano em terras

gaúchas.

Elas buscam, nos primeiros tempos, preservar sua herança cultural, pois faz parte de

suas identidades, caracterizando-as como grupo. São italianos, imigrantes, colonos sempre em

negociação com outras identidades, num processo de (re)construção cultural que não se fecha

em si mesmo. A substituição dos antigos padrões culturais de origem por outros dá-se,

primeiramente, com a consciência da impossibilidade de um retorno à Itália. Os imigrantes

passam, então, a estabelecer novos modelos de conduta cultural, sempre referenciando suas

raízes.

106

Individualmente, pode-se observar que cada personagem reage de forma diferenciada

no entre-lugar, pois cada uma busca, além do sonho comum, alimentar suas esperanças

particulares de mudança de vida. Se as representações simbólicas que trazem da Itália são

praticamente as mesmas, diferentes são as personalidades que reagem ao novo. Alguns têm

mais facilidade em aceitá-lo; outros resistem, procurando manter sua cultura de origem e

prolongar suas vivências passadas. Para os homens, as perspectivas significativas estão mais

ligadas à satisfação exterior e material, enquanto que, para as mulheres, o sentido maior é a

satisfação interior, uma existência simples, voltada à família. A identidade cultural de cada

personagem é simbolizada em objetos como travesseiro, tabaqueira, imagens de santos... São

lembranças de um passado que desejam guardar na memória.

A (re)construção cultural dos imigrantes italianos na obra A Cocanha tem sua ênfase

na coletividade. Inicialmente, é o mito da Cocanha que instiga a emigração em massa. A

América representa a busca pela abundância, em oposição à carência vivida na Itália. Porém,

essa utopia aparece, na obra em estudo, pautada por decisões e ações de personagens

conscientes de que precisam ser fortes para enfrentarem o desconhecido; a fartura que buscam

é resultado do esforço individual e coletivo. Isso demonstra a desmitificação da Cocanha

como o lugar ideal, onde tudo é fácil e abundante, especialmente, referindo-se à alimentação.

Coletivamente, os símbolos que mais colaboram para a manutenção ²rrrdentidade

são a origem comum, os valores religiosos, a valorização do trabalho e da terra, a culinária

típica, o dialeto regional, entre outros. Esses elementos funcionam como diferenciadores,

conferindo singularidade ao grupo. Através das personagens do romance de Pozenato,

percebe-se nos imigrantes uma intenção de fazer do Brasil uma “nova Itália”, tendo como

referência sua cultura original, que influencia diretamente na adaptação ao novo espaço.

O processo de adaptação à nova terra é bastante difícil, devido à falta de condições

favoráveis. Ao chegarem no Brasil, os imigrantes precisam começar uma nova vida,

praticamente do nada. Mesmo assim, eles procuram identificar-se com o novo ambiente,

mantendo sua cultura e incorporando novos hábitos, fazendo surgir, dessa forma, uma nova

comunidade. Na serra gaúcha, o imigrante começa a viver uma experiência inteiramente

inovadora de agrupamento espacial, de adaptação ambiental e de condição sócio-econômica.

Constrói-se uma comunidade a partir de relações sociais pautadas, especialmente, pelas

festividades, pelo trabalho e pela religiosidade.

As festividades têm grande influência na adaptação dos colonos, servem como elo

entre os indivíduos, fazendo-os sentirem-se membros de um grupo solidário. As festas,

sempre acompanhadas de comida, jogos e cantigas, constituem-se no lugar e momento em que

107

o coletivo se reúne e se exterioriza, no qual a participação de todos é efetiva, cada um

desempenhando sua função para o bem da coletividade.

Outro aspecto abordado sobre a trajetória dos pioneiros italianos é o trabalho, sendo

um dos elementos mais significativos. Inserido no meio rural, cada indivíduo parece

construir-se como pessoa através da distribuição das tarefas que realiza como pai, mãe, filho,

filha, vizinho etc. Por intermédio do trabalho, os descendentes se identificam como sujeitos

atuantes e capazes de interferir no contexto social. Trabalhar é um ato natural e rotineiro, ou

seja, trabalhar muito é o correto, o que garante o espaço do ser humano. Além disso, o

trabalho é o meio para melhorar de vida. Enquanto atividade de sobrevivência, ele adquire

importância fundamental e se transforma em valor ético, modelador de comportamentos

individuais e coletivos. Os padrões de honestidade, confiança e credibilidade são

fundamentados de acordo com o trabalho que a pessoa é capaz de executar, observando-se o

quanto e como as tarefas pertinentes a cada um são realizadas. O trabalho é questão de honra

na vida desses descendentes de italianos, permitindo à maioria dos imigrantes (re)elaborar sua

vida em um local estranho e distante.

A função da religiosidade na (re)construção da identidade cultural é outro ponto

bastante enfocado no estudo. A religião demonstra exercer grande influência nas relações

familiares e na comunidade, fortalecendo-se como valor cultural e moral. A vida social e

cultural do imigrante vai sendo (re)construída, tendo como ponto de referência a capela, onde

se desenvolvem todas as atividades coletivas. A construção de uma capela ou igreja católica é

considerada pelos descendentes de italianos um ato de devoção. As comunidades que não

possuem a sua igreja sentem-se desvalorizadas e inferiores. A capela representa a

materialização da devoção dos fiéis à igreja católica, à fé consagrada.

Essa identidade individual e coletiva dos imigrantes italianos tem como elemento

essencial a memória. É ela que possui a propriedade de conservar as impressões e

informações passadas, possibilitando o resgate dos processos de transformação dos indivíduos

e da sociedade. É na memória que os imigrantes italianos guardam as recordações da pátria,

transmitindo-as às gerações descendentes que, por sua vez, guardam, até hoje, também na

memória, as narrativas da travessia feita pelos pioneiros, bem como descrições dos primeiros

tempos nas novas colônias.

A partir de leituras para fundamentação da análise da obra, pode-se detectar que a

identidade italiana no Brasil apresenta três fases distintas. A primeira constitui-se na etapa

abordada na obra A Cocanha, caracterizada pela busca da (re)construção de uma identidade

ameaçada em país estranho, baseada na preservação e, ao mesmo tempo, na adaptação. É a

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fase mais difícil, quando os indivíduos precisam criar estratégias de superação no entre-lugar

para composição de uma nova identidade cultural.

A segunda fase distingue-se pela adesão aos novos aspectos identitários, fundindo a

cultura original à local e fazendo com que seus valores sejam hibridizados e/ou também

reprimidos. É possível associar essa segunda fase ao governo de Getúlio Vargas, quando

triunfa o nacionalismo conservador. No governo getulista, a campanha de nacionalização

busca erradicar as influências estrangeiras e incutir nas populações de origem européia o

sentimento de brasilidade.

A terceira etapa pode ser caracterizada pelo resgate dessa identidade italiana que se

supunha perdida. Ela pertence ao momento atual, quando os descendentes querem resgatar

sua italianidade. Um dos maiores desafios dessa geração é recuperar fragmentos e elos

dispersos para reconstituir a História, preservando e/ou revisando o passado, em respeito ao

futuro. Muitas famílias, associações e entidades étnicas em diversas regiões têm buscado

redescobrir sua italianidade. Engajadas nesse processo de retomada, ressaltam o objetivo de

resgatar a cultura italiana. Retiram do passado as bases para o que se entende hoje por

identidade ítalo-brasileira.

A ligação rompida com a Itália, velho mundo deixado para trás, tem sido reatada. As

formas para reafirmar a identidade italiana aproximam o descendente de seu país de origem.

Na esteira da reafirmação da identidade, nas últimas décadas, surgem inúmeros eventos

visando recuperar a italianidade: programas nos meios de comunicação, cursos de língua,

grupos de dança e canto, publicações, encontros de família, bem como intercâmbios

facilitados pelo fato de a Itália garantir a cidadania italiana para os descendentes e de o Brasil

permitir a dupla nacionalidade a seus cidadãos.

A base de qualquer processo de redescoberta da italianidade, seja na região da serra do

Rio Grande do Sul ou em qualquer outra parte do Estado ou do país, precisa centrar-se no

presente, na realidade histórica de cada comunidade, que é fundamentada na memória dos

pioneiros e seus descendentes. É necessário estar consciente de que os ítalo-brasileiros, acima

de tudo, são brasileiros em contato com outras etnias e culturas que contribuíram para que o

descendente de italiano hoje possua múltiplos perfis, formando um grupo étnico da sociedade

brasileira.

Benedict Anderson argumenta que a nação é, na verdade, uma “comunidade

imaginada”. Para que exista, é preciso que um número considerável de pessoas de uma dada

comunidade se sinta parte de uma nação, que tenha coisas em comum, que se considere ou se

imagine integrante dessa nação. Para haver essa consciência de nação, esse sentimento de

109

pertencer a um mesmo grupo, a uma mesma cultura nacional e tornar possível uma

identificação, alguns aspectos são considerados para representar a nação e produzir

significados. Para Ernest Renan, os agrupamentos relacionam-se a diversos aspectos de

identificação, entre eles raça, língua, religião, interesses e geografia; porém, a formação da

nação não pode ser confundida ou conceituada a partir desses fatores. Segundo o teórico, o

elemento essencial para a constituição das identidades nacionais, para a constituição das

culturas nacionais e para a formação de uma consciência nacional é a vontade humana de

viver juntos, buscando os mesmos ideais.

Partindo dessa internalização da idéia de pertencimento nacional, o imigrante italiano

e as gerações que o sucedem estão integrados tão intensamente ao novo país que acabam

tendo forte influência na nova identidade cultural, contribuindo para o desenvolvimento

econômico, assim como para a cultura e a formação étnica da população. No perfil da

sociedade brasileira, os traços italianos são claramente identificáveis. O ítalo-brasileiro forma

um grupo étnico integrado, sem abandonar totalmente a cultura do país de origem.

A imigração italiana constitui-se num fator muito importante para o desenvolvimento

cultural, a formação étnica e a economia do Rio Grande do Sul, assim como de outras regiões

do Brasil. À medida que o número de imigrantes e seus descendentes cresce, o país modifica

seus costumes, assim como os imigrantes modificam os seus. É relevante notar que a

influência italiana no Brasil não ocorre de maneira uniforme: no Sul/Sudeste, a comunidade

italiana torna-se forte, chegando a representar a maioria da população em certas localidades;

noutras regiões do país, a presença italiana é quase nula. Ressalta-se, também, que há grandes

diferenças entre o grupo de italianos que se concentra no trabalho agrícola – no Sul – e os

trabalhadores do café – no Sudeste. Nas colônias gaúchas, o imigrante se mantém

praticamente isolado, enquanto no Sudeste, o italiano mais facilmente se integra à população

local.

As influências dos imigrantes italianos estão em toda parte. Das inúmeras

contribuições para o Brasil e sua cultura, destacam-se a divulgação do culto católico, trazendo

elementos italianos para a religião brasileira, tais como festas de igreja, procissões, presépios

e capelas ao longo das estradas; a organização social com base na vida da família; a

incorporação da culinária típica à alimentação brasileira, como o hábito de comer panetone e

outros pratos natalinos, pizza, macarrão, além da popular polenta; a introdução de novas

técnicas agrícolas; a linguagem influenciada pelo dialeto (especialmente vêneto), que propicia

a incorporação de inúmeras palavras e expressões no cotidiano brasileiro, bem como o

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sotaque diferenciado. Também pode-se destacar a influência dos imigrantes italianos nas

artes, como música, arquitetura e criação literária, elemento central deste trabalho.

Nesse sentido, a presente pesquisa contribui para a ampliação dos conhecimentos

sobre a obra de José Clemente Pozenato com ênfase na cultura italiana. As considerações

apontadas instigam uma necessidade de aprofundar algumas reflexões e desenvolver vários

outros conceitos em torno da trajetória dos descendentes de imigrantes italianos, tendo em

vista que a pesquisa não é algo que se conclui em si mesma, mas um meio que possibilita

outras análises.

Este estudo da (re)construção da identidade cultural do imigrante italiano no Rio

Grande do Sul possibilita a percepção de que a Literatura é um meio privilegiado de

aprimoramento, projetando nos leitores novas concepções da realidade. A partir da narrativa A

Cocanha, torna-se possível enriquecer o universo cultural, permitindo a descoberta de

inúmeros sentidos relacionados às raízes étnicas. A leitura e análise do romance revelam que

o mundo (re)criado pelos imigrantes italianos dá origem a uma rica tradição cultural, que

ficam registradas nas formas de falar, de sentir, de se comportar, de trabalhar e de viver do

povo gaúcho e de outras regiões do Brasil.

Um dos maiores valores da presente pesquisa encontra-se na retomada das origens

pessoal e familiar da história dos descendentes de italianos. A narrativa literária da obra A

Cocanha apresenta-se como a recriação da própria História dos antepassados. A viagem da

Itália até o Brasil, difícil e corajosa, e o estabelecimentos nas colônias longínquas, são

heranças que persistem no tempo, tornam-se símbolo, histórico e sentimental, de um grupo

étnico que se fortalece e (re)constrói sua identidade em terra estrangeira. A epopéia das

famílias de colonos pobres que deixam sua pátria no final do século XIX possui personagens

reais: são nonas e nonos, bisnonas e bisnonos das atuais gerações. Essa memória dos

imigrantes italianos não pode ser esquecida no tempo; é preciso resgatar a História dos

pioneiros para que as futuras gerações também possam conhecer seu passado.

Enfim, reviver a História da imigração italiana no Estado do Rio Grande do Sul,

resgatar a significação das relações culturais no universo de uma cultura peculiar, tendo como

evidência basicamente a História e a Literatura, certamente é um exercício de interação,

trazendo à tona momentos significativos para a pesquisadora. A colonização italiana, iniciada

em fins do século XIX, é hoje uma trajetória de (re)construção cultural, configurada no

hibridismo. A revalorização da noção de pertencimento étnico tem proporcionado novas

formas de sociabilidade, de troca e de inserção dos indivíduos na sociedade através da

memória das origens.

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