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Desvelando a relação de agricultores familiares dos Campos de Cima da
Serra e a cidade: o caso de Caxias do Sul/RS.
Claudia RIBEIRO. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS). Email: [email protected]
Lovois de Andrade MIGUEL. PGDR/UFRGS. Email: [email protected]
Grupo 1: Fundamentos teórico metodológicos da abordagem sistêmica na agricultura
Resumo
Mostra-se como o estudo dos sistemas agrários ancora a pesquisa multidisciplinar, a qual busca conhecer o
potencial do reconhecimento da noção de paisagem em situação de contornos socioambientais no sul do Brasil.
Criúva e Vila Seca, dois distritos rurais de Caxias do Sul, constituem o campo empírico de estudos, em
proximidade a essa cidade que é a segunda maior do Rio Grande do Sul. No domínio dos Campos de Cima da
Serra e do Bioma da Mata Atlântica, consegue-se evidenciar as práticas dos esparsos e pequenos agricultores
locais como fortemente coincidentes à conservação da paisagem do lugar. Há um século e meio, a pecuária
semiextensiva é praticada nessa região de campos ainda autóctones, em coincidência espacial à existência dos
principais mananciais que, majoritária e contemporaneamente, originam a água potável que abastece a
população urbana do município. A partir disso, evidenciam-se contraditórias ações regulatórias urbanas à vida
dessas famílias rurais, em alguma relação aos debates sobre os rumos da nova ruralidade brasileira.
Palavras-chave: Paisagem. Ruralidade. Conservação. Sistemas agrários. Socioambientalismo.
Unveiling the relation between familiar farmers of Campos de Cima da
Serra and the city: the case of Caxias do Sul/ RS.
Abstract
The demonstration is offered on how the study of farming systems embodies multidisciplinary research
which seeks to recognize the potential grasping in southern Brazil of the notion of landscape in socio-
environmental frames. The empirical field of the studies is Criúva and Vila Seca, two rural districts of
Caxias do Sul, neighbors to this city, which is the second largest in the State of Rio Grande do Sul. The
practices of the little and sparse local farmers were seen to strongly meet the landscape conservation at
the place, the domain of the Campos de Cima da Serra in the Atlantic Forest Biome. Semi-extensive
livestock farming is carried on in this region of yet autochthones fields placed together with the main
water sources which nowadays are the main suppliers of potable water to the urban population of this
municipality. From this stand point contradictory regulatory urban actions towards the life of these rural
families are brought into evidence, to a certain extent related to the debates on Brazilian New Rurality.
Keywords: Landscape. Rurality. Conservation. Farming systems. Socio-environmentalism.
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1. Introdução
O pano de fundo desta contribuição é o atual mundo rural brasileiro, em viés de compreensão
de estável realidade própria: definida por suas particularidades históricas, sociais, culturais e
ecológicas, e igualmente contendo suas maneiras de inserção na sociedade brasileira. Pois esse mundo
poderia ser visto como um estágio retrógrado a ser superado, e, por conseguinte, fadado ao
desaparecimento, ou em uma visão de futura dissolução em um continuum – algo residual contido em
espaços urbanos predominantes (FAVARETO; WANDERLEY, 2013; WANDERLEY, 2001).
Dessa forma, o rural é visto emergindo como um valor social contemporâneo, cujas
características gerais definidoras são, além da agricultura como sua atividade econômica setorial
predominante, a relação com a natureza, a baixa aglomeração populacional e sua proximidade às
dinâmicas urbanas (ABRAMOVAY, 2003, p. 53, itálico do autor). Apresentando visão similar,
Wanderley (2001, p. 37) detalha que o recorte campo-cidade mantém sua importância. Porém, destaca
a autora que sua relativa diferenciação está situada nos processos de construção social da ocupação
do território, através de seu entendimento como um lugar de vida. Logo, a particularização desse
espaço é feita por intermédio de referências identitárias e de cidadania do ser humano que nele habita.
Os espaços dessa ruralidade são vistos como um bem coletivo, em estreita associação às atividades
de suas famílias de agricultores. Nessas famílias, segundo também a autora, é que reside cultura
particular, cuja específica reprodução é uma necessidade nesse meio, viabilizando sua dinâmica
“técnico-econômica, ambiental e sociocultural”. Favareto (2006, p. 98), de outra parte e em seu
escrutínio de múltiplos pesquisadores contemporâneos, confirma a recente existência dessa
conformação do rural na sociedade brasileira, de apresentação complexa e com muitas outras
dimensões além das atividades agrícolas. Segundo ele, tal novo mundo social passa a englobar
amplitudes ambientais, tais como: “o acesso à terra, a gestão de bacias hidrográficas, a conservação
de florestas e rios e a valorização da paisagem e da biodiversidade”.
Relativamente à compreensão do relacionamento da dita nova ruralidade brasileira ao
panorama social mais abrangente, julga-se providencial se ter presente a idealização de progresso
identificada por Favareto e Wanderley (2013) para o caso nacional. O processo de desenvolvimento
brasileiro passa a ser hegemonicamente aproximado à industrialização e à urbanização verificadas no
país a partir de 1930. Todavia, nesse ponto, faz-se importante atentar aos contrapontos dessa
constatação, alinhados pelos mesmos autores, mormente a partir de Celso Furtado (1967) e de
Florestan Fernandes (2008). Alternativamente, então, é possível visualizar um desenrolar histórico
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de bem mais intrincada apresentação, onde contextos rurais e urbanos inter-relacionam-se no processo
de desenvolvimento da sociedade brasileira e são distintamente afetados pelo seu atual padrão de
desigualdade. Nesse mesmo sentido, Favareto e Wanderley (2013) colocam em evidência, dessa vez
a partir de José de Souza Martins (1994), a manutenção do “atraso como um instrumento de poder”,
em ação que se reflete na atual constituição – desigual – da sociedade civil como um todo. O latifúndio
sustenta uma classe dominante rural que, por sua vez, também é uma fração da classe dominante
nacional. Além disso, sublinham eles que a estrutura fundiária dessas extensas propriedades configura
um instrumento de dominação das classes subalternas locais.
Por fim, sobre esse particular recorte de análise do país, esses dois autores identificam que os
diversos modos de vida associados a essa ruralidade coexistem em heterogêneas realidades culturais,
de implicações locais e regionais. Essas diversas realidades rurais são pautadas por três referências
centrais com relação à sua inserção no processo de desenvolvimento brasileiro: a construção e a
reprodução do patrimônio fundiário; as relações de pertencimento a um grupo de reduzidas dimensões
e a necessidade de integração a espaços mais amplos do que o lugar onde vivem e trabalham –
notadamente na escala municipal. A partir disso, em resumo, Favareto e Wanderley (2013) defendem
que esses aspectos conformam as expectativas de quem vive contemporaneamente nas áreas rurais
do Brasil: ao mesmo tempo essas pessoas querem manter os aspectos substanciais dessa ruralidade,
mas buscando bens, empregos e serviços disponíveis nas cidades. Porém, os autores igualmente
ressaltam em sua específica análise que a modalidade geral de projeto futuro para a sociedade
brasileira carece de definição. Nesse abrangente enquadramento, a concepção do rural oscila entre
duas visões muito diferentes: a de “um espaço de investimento” ou a de “um lugar de vida”. Assim,
os atuais processos de urbanização e industrialização podem reforçar “a grande propriedade como o
modelo ideal de empresa rural” em uma continuidade de privilégios do que chamam de “antigo
regime”, mantendo a reprodução de relações de subordinação ao poder tradicional. A bem diversa
alternativa delineada pelos autores é aquela em que a modernização signifique o acesso a bens e
serviços socialmente necessários ao protagonismo dos habitantes do campo, em cidadania enraizada
e “exercida a partir do seu local” (FAVARETO; WANDERLEY, 2013, p. 42-45).
Aloja-se, nessa panorâmica avaliação, o particular aspecto que diz respeito à identificação das
condições de vida dos agricultores de produção familiar, associado às discussões do modo de ser
campesino no Brasil. Nesse recorte mais preciso, enquadra-se o caso em apresentação, o qual surge
por intermédio da apreensão heurística de dinâmica cultural singular, associada a uma paisagem onde
habitam pequenos agricultores. Essa primeira percepção permite atenção posterior para a
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problemática da continuidade das atividades agrícolas, em ruralidade contendo especificidades de
conservação ambiental ditadas pelo espaço urbano.
A partir disso, delineia-se pesquisa multidisciplinar1 em campo empírico de estudos sito em
dois distritos rurais de uma cidade do sul do Brasil. O desafio maior que se encontra nessa presente
situação é a busca da fidedigna escuta da voz de quem ali vive, em contexto de consideração espaço
temporal. Assim, são apresentados os aspectos de trabalho de cunho etnográfico, guiado pela
metodologia dos sistemas agrários, permitindo o descortinar do conflito socioambiental em interface
rural-urbana, com implicações não somente na abrangência do município de Caxias do Sul, mas na
sua contígua região dos Campos de Cima da Serra.
2. Terreno de Estudo
Vila Seca e Criúva, distritos eminentemente rurais do município de Caxias do Sul, constituem
o campo empírico da pesquisa, como dispõe o Mapa 12. Uma cidade média, segundo Pereira e Lemos
(2003), que a dizem ser um mesopolo do tipo industrial. Destaca-se, no entanto, sua situação
praticamente no limite superior de um dos critérios envolvidos nessa definição: a pretendida segunda
metrópole gaúcha tem população que integra atualmente quase meio milhão de habitantes, dos quais
somente 4% são oficialmente considerados rurais. Desse universo, fazem parte as 3.916 pessoas
residentes em 2010 nos dois distritos, que perfazem em seus delimitados 624 km2, 38% da área total
do município (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010a; 2010b;
PEREIRA; LEMOS, 2003; RIBEIRO, V., 2013). Em relevo montanhoso, com altitudes próximas a
1.000 metros, emerge o conflito socioambiental. No Bioma Mata Atlântica e em relevo dobrado, a
vegetação existente no local se caracteriza por um mosaico constituído pelas formações campestres
dos Campos de Cima da Serra entremeadas com manchas arbóreas de grande porte, com a
emblemática presença de araucárias – é a Floresta Ombrófila Mista (BOLDRINI, 2009; SCHLICK,
2004). Com paisagens bem conservadas, todavia suas práticas agrosilvipastoris em campos nativos
constituem sensível ponto dos debates de caráter socioambiental no Rio Grande do Sul (BEHLING
et al., 2009).
1 Pesquisa conduzida atualmente com o suporte de bolsa de pesquisa do CNPq – Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Na sua primeira fase o estudo contou com o apoio da CAPES –
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 2 As imagens do satélite Geo-Eye (2011) foram cedidas pela Prefeitura Municipal de Caxias do Sul e a
cartografia foi realizada pela engenheira florestal Silvia O. Aurelio, como detalhado em Ribeiro (2014).
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Mapa 1: Localização da área de estudo.
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Fonte: Ribeiro (2014, p.113), cartografia de Silvia O. Aurélio.
A abundante rede hidrográfica existente nas localidades e em suas circunvizinhanças traz
similar problemática, a partir da construção de duas grandes barragens para o abastecimento do
tratamento de água potável para a cidade. Caxias do Sul, distante de cursos d’água de maior porte,
busca nessa rede de pequenos arroios 70% de sua água para seus usos domésticos, comerciais e
industriais. Essa ação e a projeção de outros barramentos semelhantes trazem recente e
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progressivamente uma série de restrições à agricultura de caráter familiar em Vila Seca e Criúva. Em
propriedades que, em sua maioria, enquadram-se na faixa de 50 a 100 hectares, as atividades
produtivas predominantes estão há cerca de 150 anos pautadas pela criação semiextensiva de gado de
corte e de leite e os múltiplos pequenos cultivos coloniais.
3. Metodologia e Resultados
A pesquisa metodologicamente é estruturada pelo estudo da paisagem, em estreita relação ao
conhecimento da ruralidade local. Tal condução é realizada por uma etnografia empreendida a partir
do ponto de vista do lugar – mas em caminho inaugurado pelas possibilidades de compreensão
aportadas pelo prévio estudo dos seus sistemas agrários.
A escolha da perspectiva etnográfica passa a ter forte impacto teórico no embasamento da
pesquisa, multidisciplinar em sua origem, e trazendo, a partir disso, evidentes reflexos nas suas
escolhas de método. Nesse sentido, reside a importância preliminar do processo de conhecimento dos
sistemas agrários. Como explicado por Mazoyer (2010), tal importância reside em sua condição de
intelectual e metódica análise da realidade da agricultura, por intermédio do conhecimento de sua
organização e de seu funcionamento. Abarcando os aspectos históricos e traços geográficos das
diversas formas de agricultura no local verificadas, pode-se com esse auxílio teórico caracterizar as
mudanças que afetam os seus processos produtivos, bem como o modo de convivência com um dado
ambiente. Igualmente, podem ser apreendidos os modos socioculturais de existência desses
agricultores, considerando sem dúvida as suas relações com a natureza, bem como a sua coexistência
com outros sistemas produtivos que não os agrários. Como Cochet (2012) ressalta, foram geógrafos
franceses que cunharam o termo “sistemas agrários”, na primeira metade do século XX, construção a
qual, após várias outras elaborações, encontra em Marcel Mazoyer a sua expressão conceitual de
disseminação acadêmica. O primeiro autor aponta outra questão pertinente a esse presente estudo, no
que diz respeito à definição das suas fronteiras de aplicação. Segundo ele, a escala do povoado ou da
comunidade rural é aquela onde a análise do sistema permite uma visão mais nítida, em próxima
relação com a paisagem.
De acordo a Miguel (2009), as ações pragmáticas de estudos de evolução e diferenciação de
sistemas agrários partem da visualização do ecossistema cultivado em suas variadas apresentações ao
longo do tempo histórico. Essa primeira etapa é feita pelo reconhecimento do espaço geográfico –
justamente por intermédio da compreensão de sua paisagem – tendo como produto o zoneamento
regional. Para isso, são consideradas, em um primeiro momento, as características
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geomorfopedológicas do campo empírico estudado e a sua percepção pelas populações presentes
nesse ambiente. Em fase subsequente, buscam-se informações relevantes sobre a agricultura praticada
e suas interligações ao mundo rural, procurando-se entender o respectivo sistema social produtivo,
em suas particularidades de organização e funcionamento. De tal forma isso feito que se tornam
possíveis a identificação e a descrição dos vários tipos de atividades (agrícolas e não agrícolas)
historicamente registrados ao longo da constituição dessa paisagem agrária. Esse procedimento de
estudo visa mais bem compreender os motivos das oscilações cíclicas dessas práticas agrícolas – dos
porquês das mudanças de rumo que acabam instaurando distintas produções sistêmicas agrárias nesse
lugar .
No caso em exposição, a busca de subsídios para a reconstituição da evolução e diferenciação
dos sistemas agrários foi iniciada por pesquisa bibliográfica – que atentou de maneira especial para a
rica produção de autores locais, com posterior complementação realizada por estudo cartográfico e
trabalho prospectivo de campo. Sequencialmente, buscou-se conhecer a paisagem por meio de
paulatino aprofundamento dos percursos etnográficos, empreendidos junto aos agricultores de largo
conhecimento da história agrária da região.
A aproximação etnográfica, por intermédio da observação participante no ciclo de louvação
das Festas do Divino Espírito Santo, consegue identificar em Vila Seca e Criúva a presença da noção
de paisagem, reconstituindo sua trajeção3 ao longo dos sistemas agrários que ali vão se estabelecendo.
Delimitam-se, desse modo, quatro grandes ciclos sistêmicos da produção agrícola nessa paisagem: o
indígena (10.000 A.C. até 1760), o sesmeiro (1760 a 1912), o colonial (1912 a 1980) e o
contemporâneo (de 1980 ao presente).
Dessa forma, as questões subjetivas do que se estuda são exploradas por intermédio dos
critérios berquianos dispostos para o estudo da paisagem4. Identifica-se claramente a existência do
sentimento da paisagem no lugar, e, adicionalmente, que tal existência é um bem de uso comum em
Vila Seca e Criúva: um recurso (cultural e mutável), compartilhado por pessoas e sujeito a dilemas
sociais, em conceituação construída a partir de Hess e Ostrom (2007) e Leite (2012).
Relativamente ao viés objetivo de constituição dessa paisagem, vê-se a permanência –
dinâmica – das atividades agrícolas desses agricultores familiares, em estreita associação ao mosaico
3 A trajeção é o termo cunhado por Berque (2011, p. 188; 193 e 194) para nomear o movimento de contínua
interação entre os mundos objetivos e subjetivos, que compõe a realidade dos nossos meios, cujo conjunto constitui
a ecúmena. 4 São pelo autor propostos sete critérios empíricos para a verificação da existência da noção de paisagem em um
dado lugar (BERQUE, 2011b, p. 201), como preliminarmente explicitados em Ribeiro, Dal Forno e Miguel
(2015).
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de campos e florestas autóctones que constitui a macro apresentação do Bioma Mata Atlântica na
região. O estudo cartográfico comparativo em 1871, 1980 e 2011 compreendendo os sistemas
agrários sesmeiro, colonial e contemporâneo, consegue demonstrar este fato, como evidenciado na
Figura 1.
Figura 1: Estudo cartográfico comparativo – usos do solo na área empírica de estudo.
Fonte: Ribeiro (2014, p.263), cartografia de Silvia O. Aurelio.
Se as medições topográficas de Müzel (1871) diziam que o solo era ocupado por 55,4 % de
Floresta Ombrófila Mista (FOM) 5 para 44,5 % de pastagens nativas, os mapas do exército em 1980
mostram que essa floresta quase desaparece. Nessa época, ao final do ciclo de exploração da madeira
de araucária, restam somente 7,4 % do solo coberto com florestas. No dizer dos habitantes
agricultores, “os matos somem e os campos passam a dominar a paisagem”. Essas pastagens
autóctones ocupam nessa época 76,9 % do solo, aparecendo outros usos nos seus 15,7 % de área
remanescente. Contudo, uma vez sustado o urbano processo de exploração predatória de sua floresta,
5 Pode-se afirmar da ocorrência da FOM pelos relatos empíricos, que resgatam a sua característica maior: eles citam,
além de outras espécies de árvores dessa mata, a presença de Araucaria angustifolia.
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essa paisagem se refaz. Em 2011, a FOM já ocupa 33,3% da seção amostral estudada, o campo
majoritariamente autóctone 55,5 %, e outros usos 8,2%.
A exploração madeireira nas matas da região no sistema agrário colonial é escrutinada por De
Boni e Costa (2011). Iniciando em Bom Jesus antes de 1910, a atividade tem um acréscimo
significativo em 1930, ainda no município, para depois crescer em abrangência regional, até o seu
apogeu em 1956. Os autores descrevem que chegaram a existir cerca de 10.000 pessoas engajadas em
105 serrarias ou laminadoras, mas logo decaindo a atividade, pelo escasseamento dos pinheiros. Em
1970, encontram-se 45 registros desses empreendimentos, os quais diminuem já em 1976 para 32.
Segundo eles, o Censo Econômico estadual de 1970 coloca Caxias do Sul com o maior número de
serrarias. Do total de 45 na região, 16 estabelecimentos se situavam no município. E, de acordo com
a análise que os autores fazem pelo nome da firma ou dos cotistas, a quase totalidade dos proprietários
é de famílias advindas do processo de colonização europeia, primordialmente italiana – o processo
que constitui a zona urbana da cidade.
Os relatos empíricos confirmam essa assertiva: não há quase menção aos donos de serrarias
com “nacionais nomes”, aqueles característicos da zona de campo, refletindo as “misturadas” origens:
os indígenas, portugueses e descendentes dos muitos escravos que trabalharam as terras das sesmarias
que continham essas florestas, origem da riqueza urbana. Por outro lado, é necessário sublinhar que
efetivamente as serrarias alteraram profundamente o sistema agrário da região. Esse trabalho atraiu
os peões das fazendas, que preferiram substituir o “sistema pré-capitalista de vida da estância,
plantando como meeiros, criando alguma cabeça de gado na fazenda e recebendo, em dinheiro, uma
quantia insignificante”. No entanto, o seu declínio ocasionou o que os mesmos autores chamam de
processo irreversível de proletarização, caracterizando uma “fuga do campo”, cujo maior polo de
atração foi Caxias do Sul, “com suas fábricas, seu progresso industrial e sua vida urbana a atrair a
mão-de-obra” (DE BONI; COSTA, 2011 [1979], p. 248 e 249).
Igualmente em outro aspecto os achados empíricos são coincidentes às considerações de De
Boni e Costa (2011) e Corteletti (2012): os habitantes desses distritos (como já mencionado),
majoritariamente agricultores, têm plena consciência de que a atividade econômica dos “engenhos”
de beneficiamento de madeira de araucária foi fundamental na constituição da prosperidade de Caxias
do Sul.
Entretanto, delimitado esse processo, vê-se que, nos últimos 150 anos, o mosaico autóctone
de campo e mato convive estavelmente com a pecuária semiextensiva e com os pequenos policultivos
coloniais, característica que singulariza esses dois distritos em relação à sua vizinhança dos Campos
de Cima da Serra. A explicação se encontra nos vários relatos que a pesquisa obtém junto às pessoas
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mais idosas. Elas contam que os moradores de Criúva e Vila Seca sempre diferenciaram “o mato
nosso e dos outros”. Um exemplo (de vários outros) do apreço pela paisagem do lugar, que em sua
origem era muito semelhante à dos municípios de Jaquirana, de Bom Jesus e mesmo de outros
distritos de São Francisco de Paula, na época também com muita atividade madeireira – Cazuza
Ferreira e Juá.
Assim é que se nota que o relacionamento histórico que esses agricultores, pequenos e
familiares têm como o seu meio é diverso não só em seu viver cotidiano, mas igualmente na sua
consciente relação com o urbano, percebido como cada vez mais próximo. Tal situação permite o
estabelecimento de uma discussão nessa pesquisa no campo dos estudos do campesinato brasileiro,
porém, aninhando-a em mínimo contexto de compreensão da ruralidade que os contém.
4. O agricultor familiar do lugar e a sua campesinidade
Wanderley (2014) reforça o entendimento da grande diversidade das formas do campesinato
no cenário da vida e do trabalho brasileiro. Ela descreve o intenso debate teórico e político iniciado
nos anos 1970 que possibilita a instituição da categoria de agricultura familiar no Brasil, ato que
permitiu que sua importância e extensão fossem reconhecidas oficialmente pela primeira vez no
Censo Agropecuário de 2006. Contudo, a autora pontua que não se esgota nesse ponto a ideia e a
compreensão do que seja o campesinato no Brasil. Lastreada em uma série de consagrados estudos a
esse respeito (os trabalhos de Maria Isaura de Queiroz e de José de Souza Martins, entre outros), a
socióloga direciona a atenção para a necessidade de identificação e compreensão das ações e
estratégias de sobrevivência dessas comunidades camponesas, em sua trajetória de constituição nos
interstícios internos e externos dos latifúndios movidos à mão de obra escrava no período colonial.
Wanderley afirma que, em estratégias de resistência, os pequenos agricultores – os
camponeses – conseguem desenvolver “uma outra agricultura”, estruturada em relações familiares e
comunitárias. Segundo ela, isso é feito em um viés espacial, pois se consegue a “criação de espaços
que escapavam, de direito ou de fato, da ocupação pelos senhores da terra”. Tais atos estão
historicamente situados no período proximamente circundante à instituição da Lei de Terras de 1850:
entre a proclamação da independência em 1822 até a efetiva instituição jurídica dessa lei em todo o
território nacional, o vazio jurídico permitiu ações de ocupação dos pequenos agricultores. Outra
modalidade de acesso fundiário nessa época foram acertos – precários e em diversas modalidades –
de moradia e trabalho em sítios no interior das grandes terras. Em resumo, pontua essa autora que os
agricultores que podem ser ditos camponeses não são nem latifundiários nem patronais, e que o
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sustento de suas vidas provém principalmente de seus próprios recursos de trabalho, em modalidades
produtivas ligada à terra, em atividades da e para a família. A chave da identificação do campesinato
como tal é dita, por esse seu entendimento, como residindo no enraizamento familiar da forma social
dessa atividade produtiva, tanto em seus objetivos – visando satisfazer as necessidades desse grupo,
como em sua organização cooperativa. Indo um pouco mais além, em transcendência dessa análise
da produção, Wanderley propõe que os conceitos de campesinato e de agricultura familiar sejam lidos
de maneira equivalente, defendendo que ambas as designações buscam, mais do que tudo, distinguir
um modo de vida e uma cultura particulares. A autora expõe com clareza a relevância da discussão,
colocando a questão do reconhecimento da extensão do domínio dessa agora denominada agricultura
familiar: é possível agora dizer que 84,4 % dos estabelecimentos agropecuários do Brasil são de
caráter familiar, correspondendo, porém, a tão somente 24,3% de sua área total. Reiterando, segundo
ela, os estudos pregressos, estas novas informações reforçam a atividade produtiva dessas pessoas
como responsável por significativa parte da produção de alimentos do país, bem como constituindo o
trabalho de grande contingente populacional. No entanto e adicionalmente, as novas estatísticas
reforçam a perenidade da concentração fundiária de origem da ruralidade brasileira. A partir das ações
de estudo agora possíveis, Wanderley aponta, enfim, que diversas abordagens identificam situações
de fragilidade de sobrevivência e, portanto, de reprodução da categoria como tal. Não somente as
aliadas à segurança alimentar, mas também a outros tipos de privação, envolvendo além da ordem
material (com os comparativos obtidos pela adoção de linhas de pobreza), aspectos socioculturais
(WANDERLEY, 2014, p. 26;27;33).
Nesse esforço contemporâneo de leitura do agricultor familiar em proximidade ao conceito
de campesinato, a compreensão desse categorizado ser humano predominantemente agricultor
(itálico nosso) parte nesse momento de uma visão muito próxima de seu mundo, focando seu trabalho
visceralmente dependente das atividades que conseguem desenvolver em um pedaço de terra
específico. Woortmann (1990, p. 19; 23) constrói um sentido subjetivo para esse entendimento, a
partir de sua proposição da existência de uma campesinidade – uma qualidade identificada em
distintos tempos e lugares, articulando culturalmente o que ele chama de “categorias nucleantes
principais” das sociedades ditas camponesas: a terra, a família e o trabalho. Nessa sua perspectiva, a
centralidade adotada não é a da família como origem da força de trabalho – para a geração de bens
materiais – mas sim a sua permanência no tempo como responsável pela sua produção cultural como
um valor. Essa propriedade (que o autor propõe como caracterizadora do camponês) é imaginada em
um contínuo, pensado no tempo e no espaço, cujos polos de máxima e mínima incidência são
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definidos como uma ambígua apropriação individual, pela qual “os tempos modernos são usados para
restabelecer o tempo tradicional”. Verifica-se, por essa situação, agricultores em situações distintas
em um mesmo momento histórico, tanto a nível coletivo como para o sujeito em sua individualidade.
Nessa ruralidade impregnada de práticas culturais, a reconstituição da dinâmica trajetiva do
sentimento da paisagem aporta um viés de compreensão. Os dados empíricos que surgem a partir de
Ribeiro (2014) mostram como efetivamente acontecem as lutas pela posse da terra, em estreita
conexão ao transformar das atividades produtivas, que, por sua vez, relacionam-se com o movimento
maior de constituição das cidades e de industrialização da região.
4.1 A questão fundiária e a vida nos dias de hoje
O sistema agrário indígena, constituído de caça, coleta e de práticas agrícolas incipientes nas
várzeas dos rios da região, finda com o praticamente completo extermínio da população original dessa
paisagem – os Kaingang, o que ocorre com o estabelecimento ainda no Brasil Imperial, de sesmarias
e posteriores estabelecimentos coloniais.
Nesse quadro é de muita importância o escrutínio da luta pelo estabelecimento fundiário que
ocorre entre o sistema agrário sesmeiro e o colonial, em três instâncias. A primeira é a das famílias
dos primeiros agraciados com as três sesmarias nesse local – portugueses, açorianos e já nascidos na
terra brasileira, mas todos ligados ao poder real. A segunda ação é a dos chamados na região de “os
nacionais”. Eles são precários trabalhadores das sesmarias originais ou pequenos agricultores sem
terras vindos de outros estados, muitos de origem indígena e afrodescendente. Além dessas duas
modalidades de ocupação de terras, os governos procuram na região terras devolutas para ainda
estabelecer colonos de origem europeia, após as áreas definidas em uma primeira ação desse tipo
terem sido esgotadas.
Os primeiros proprietários são, em sua grande maioria, pessoas já com algum recurso
econômico, que vêm “fazer terras” – cercam bem mais do que lhes é concedido e depois requerem a
posse do adicionalmente abarcado. Os colonos, de origem europeia (italianos em sua grande maioria,
mas também alemães e poloneses), têm seu processo inicial bem delimitado pelo governo, pagando
pelo seu primeiro lote de terra – o que não impede que, em um segundo momento, eles se incluam na
dinâmica local de apropriação de terras. Os ditos “nacionais” são os mais frágeis, pois são os de
nenhuma propriedade ao início de tudo. Por isso sua ocupação vai sendo paulatinamente deslocada
para os peraus, como são chamadas as terras na borda de declivosos vales de rios que cortam o
Planalto das Araucárias (os Campos de Cima da Serra). Isso acontece pelas ações mais estruturadas
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dos posseiros em melhores condições econômicas: primeiro de ocupação física, e em posterior
validação jurídica. Em função dessa dinâmica, até hoje muitos dos pequenos agricultores ainda não
detêm documentos oficiais de suas terras, mas apenas algum tipo de “documento de posse”. E, por
isso, os agricultores hoje de vida penosa nesses distritos (verificada pela ocorrência de situações de
extrema pobreza) situam-se preponderantemente “nos fundões”: as piores terras para cultivo, de mais
longínquo e duro acesso.
Entre o sistema agrário colonial e o contemporâneo, nota-se um rearranjo fundiário de outra
ordem. Recolhem-se várias estórias de agricultores que, com o fim do ciclo madeireiro tiveram que ir
para a cidade trabalhar nas atividades industriais, mas também há os que permaneceram no campo,
trabalhando para outro proprietário maior. Instigante na situação em análise é que se sabe de vários
exemplos de famílias que, posteriormente a esse esvaziamento do rural e após alguns anos de trabalho,
conseguem comprar a sua própria terra e estabelecer o seu núcleo familiar produtivo. O curioso é que
eles declaram que voltam para onde nasceram – não imaginam ir para nenhum outro lugar. Como
exemplo emblemático dessa atitude, é o dito corrente que conta que o muladeiro (quem nasceu nos
“Fundos da Mulada”, uma das áreas de peraus de Criúva) sempre volta à sua terra.
Nos dias de hoje, outra dinâmica ocorre: proprietários envelhecidos não mais conseguem
trabalhar a terra, ou por si a atividade produtiva nela empreendida não mais garante o sustento das
gerações subsequentes. As necessidades de estudo e de trabalho (atividades produtivas não agrícolas),
somadas às dificuldades estruturais variadas (deficiências de mobilidade, acesso à escola,
atendimentos de saúde, ausência de telefonia e internet) acaba fazendo com que alguns constituam
moradia nas vilas centrais desses distritos (mas não na área urbana de Caxias do Sul). Em função
disso, as terras “dos campos” são muitas vezes temporariamente arrendadas – não querem se desfazer
do que sabem ser um patrimônio familiar de valor muito maior do que a pequena renda que hoje delas
é obtida. Esse arrendamento tem regras e modalidades que devem ser ainda melhor entendidas. Por
exemplo, alguns acertos têm restrições da lotação máxima de gado, ou regramentos sobre os cultivos
permitidos – extensos plantios de “saladas” ou de “eliotis ou eucaliptos”, entre outros vistos como
destruidores “dos campos” não são bem vistos. Desse modo, igualmente é sentida como uma
“ameaça” recente o plantio de soja transgênica. Antes inexistente nesta região, começa a aparecer nas
vizinhanças de Vila Seca e Criúva, preocupando os agricultores familiares de tradição de manejo do
campo nativo. Importante nesse âmbito, contudo, notar a existência de outros acordos mais
“despreocupados”, possibilitando mesmo até a remoção da vegetação autóctone para monoculturas
variadas, algumas de extensa e continuada utilização de agrotóxicos.
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4.2 Novas relações comunitárias defendem a paisagem
A reinvenção dos rituais da Festa do Divino Espírito Santo nos dois distritos, a criação da
Festa do Pinhão em Vila Seca e da Festa Sabores de Criúva desenham linhas de sobrevivência e
adaptação na nova ordem das coisas no sistema agrário contemporâneo, como proposto por
Woortmann (1990, p. 19). As festas em Vila Seca (a incidência vista até o presente momento em mais
detalhes) são muito ligadas em sua origem à esfera predominantemente religiosa católica. No entanto,
sua atualização é ato criativo e espontâneo comunitário leigo, a partir do contato com os movimentos
do distrito vizinho de Criúva e contendo, inclusive, incursões conjuntas ao arquipélago dos Açores,
berço dessas manifestações culturais. Daí surge a sua releitura do ritual tradicional, com novas
músicas e regras próprias – incorporação de outros personagens na corte do Divino, com vestuário e
funções ligados à sua particular condução dos seus aspectos festivos e profanos desse ritual. Esse
exercício comunitário anual, em ciclo de fevereiro a junho, é aqui lido como uma indiscutível
estratégia de fortalecimento, com seu dinâmico transitar extrapolando os limites geográficos
institucionais. Uma vez que, como proferido pelo leigo que conduz a louvação em Vila Seca, “o
Divino não tem território”. Observando-se esse desenhar espaço-temporal – essa trajeção – percebe-
se que esses agricultores do sistema agrário contemporâneo resistem em variados pequenos
empreendimentos familiares, em evidência de escolhas conscientes, afetivas e persistentes pela vida
no lugar.
Todavia, digno de nota é a face socioambiental que se encontra nessa reconstituição, nos
termos tipificados por Brandemburg (2010), fundado no ajuste ecológico descrito por Candido
(2003). Ocorre que tal aspecto aparece de maneira muitas vezes bastante incoerente nos
acontecimentos de origem rural e urbana que se cruzam em Vila Seca e Criúva: verificam-se
assimetrias pronunciadas nessa especificidade relacional que acaba sendo estabelecida entre esses
dois contingentes populacionais do município.
Por um lado, o conjunto de ações técnico-institucionais – um agir proveniente do urbano –
não demonstra uma preocupação maior com a permanência da atividade agrícola dos habitantes dos
distritos e de sua culturalmente enraizada ruralidade. Em alguns momentos, a tradução dessa atitude
parece dizer que talvez fosse mais cômodo que esse espaço estivesse desembaraçado dos agricultores
e de suas atividades, disponível para os outros usos pretendidos pela cidade. De outra parte, essa
apresentada prioridade – de atendimento supostamente indiscutível das várias demandas normativas
apresentadas pelo urbano – é contestada em vários momentos de maneira bastante enfática pelos
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moradores do lugar. Essa atitude, em época recente, permite a construção do reservatório do Arroio
Marrecas, com potencial de suprimento de grande parte da água potável demandada pela cidade. Uma
vez que um de seus vigorosos protestos, organizado junto ao governo estadual, impediu a realização
da intenção urbana naquele tempo para esse mesmo local: construir um novo aterro sanitário para o
município. Paradoxalmente, muitos desses moradores tiveram suas terras desapropriadas em função
desse novo barramento.
Nessa mesma linha de atuação, atualmente os moradores buscam qual seria a lógica
socioambiental que explicaria que as melhores pastagens, com águas excelentes – no Rincão das
Flores, os campos reservados aos melhores animais, onde se podia apear do cavalo e beber água com
a mão – hoje enfrentem o impacto de um aterro sanitário que lá a cidade finalmente impôs. Apesar de
suas mobilizações, dessa vez infrutíferas, a cidade conseguiu lá construir essa área de disposição de
seus resíduos sólidos – sobre as nascentes de seus mananciais futuros, supostamente protegidos por
sua própria legislação. Após isso, restam sérios problemas para os agricultores: mesmo com a alegada
sofisticação do tratamento do chorume gerado, foi verificado um sério episódio de contaminação
hídrica, e, além disso, o gado seguidamente morre nesse local devido à ingestão das sacolas plásticas
levadas pelo vento. Tampouco se entende como esse mesmo discurso – supostamente de conservação
ambiental – que é acionado para proibir ou muito dificultar o licenciamento de pequenos açudes para
dessedentação animal e irrigação nas propriedades (entre muitos exemplos de entraves às atividades
agrícolas de pequeno porte) permite instalar hidrelétricas, um presídio e uma área para disposição de
resíduos sólidos industriais na mesma região hidrográfica de captação de água para usos potáveis,
como mostra o Mapa 2.
Conhece-se nessa primeira fase da pesquisa o questionamento enfático à atitude urbana que
enfim viabiliza a nova barragem para abastecimento exclusivo de água potável, e a partir disso
sumariamente interdita (por exemplo, entre outras proibições de uso e acesso) o uso de balneários e
locais de pesca longeva e costumeiramente usufruídos pelos habitantes desses distritos.
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Mapa 2: Hidrografia da área empírica de estudo.
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Fonte: Ribeiro (2014, p.121), cartografia de Silvia O. Aurelio.
Nessa situação tampouco se compreendem os regramentos que tornam extremamente difícil
um agricultor utilizar a madeira de uma araucária seca pela intempérie, mas que permitem que o poder
público possa cortar milhares dessas árvores em sua plena vitalidade – para depois deixá-las apodrecer
em pilhas ao relento, às vistas de todos, nas margens do novo reservatório. Em atitude bastante
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emblemática, os agricultores questionam que espécie de “acordo ou trato” é esse, que não aceita as
longevas práticas de manejo do campo autóctone com fogo, mas, todavia, institucionalmente
concorda com a sua destruição – por exemplo, para concretagem de depósito de indústrias
automotivas e para o plantio de monoculturas com aplicações de agrotóxicos e fertilizantes químicos.
A questão socioambiental fica claramente evidenciada na paisagem do sistema agrário
contemporâneo: identificam-se, por esse viés, fortes influências advindas da cidade adjacente. Porém,
evidencia-se que tal comportamento se apresenta como primariamente regido nos termos do
atendimento de funcionalidades espaciais: o contexto urbano tem atuado como um polo gerador de
necessidades variadas, que são apresentadas para serem supridas por esse espaço rural. Enfim, não
parece esse quadro conter um refletir mais profundo, que considere a possibilidade de que a
continuidade dessa ruralidade contemporânea possa ser uma fundamental condição de atendimento
de muitas dessas demandas urbanas. E de que, justamente por isso, devesse existir uma escuta muito
mais atenta aos agricultores e seus saberes, conformadores da paisagem desse lugar.
5. Algumas questões propostas para reflexão
É de se pensar as razões pelas quais a parte rural desse município do sul do Brasil apresenta
significativa ocorrência de extrema pobreza: fato que é verificado em uma região nacionalmente
reconhecida como campo de sucesso dos empreendimentos de agricultura familiar, em uma cidade
que exibe um dos melhores índices de desenvolvimento do país. Parece ser importante escrutinar a
coincidência de aspectos encontrados: os indícios de criticidade de sobrevivência, associados a
assimetrias étnicas de apropriação da terra e sua subjacente e posterior situação desfavorável para o
desenvolvimento de atividades agrícolas – em solo pouco fértil, de terrenos pedregosos e muito
inclinados. Tal conjunção sobreposta aos desejos urbanos e rurais na direção da conservação da
paisagem do lugar – desejos esses que não apresentam o mesmo enraizamento identitário.
Outro ponto que emerge dessa exploração é a necessidade de compreensão profunda das
diversas particularidades de existência da agricultura familiar enquanto modo de vida e cultura,
colaborando para seu definitivo e abrangente reconhecimento. Parece ainda haver um hiato entre o
cotejo de suas atuais delimitações institucionais e de sua origem conceitual. Uma vez que essa origem
emerge da discussão acadêmica e política do campesinato, campo de compreensão ainda instável hoje
no Brasil.
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A parte do nome mais apropriado que será enfim acomodado para esse tipo diferenciado de
agricultura, esse exercício reflexivo aponta, por exemplo, e exploratoriamente, ser necessário rever o
que significa exatamente ser “não latifundiário”, principalmente tendo em vista as incoerências vistas
na abrangência dos Campos de Cima da Serra (o caso das diversas definições de módulos fiscais).
Por outro lado, não se podem relevar as existentes críticas ao meio pelo qual o apoio financeiro
específico tem influenciado o modo de produzir (e, portanto, em boa medida, de viver) desses
agricultores, privilegiando aqueles cujas opções produtivas se aproximam dos agronegócios
exportadores.
Não menos importante parece ser discutir como considerar nessa delimitação de agricultor
familiar as existentes práticas comunitárias desde longo tempo verificadas nessa trajeção da paisagem
desses sistemas agrários de Vila Seca e Criúva. São elas, mais do que as atividades produtivas por si
só, que fazem com que a paisagem seja o bem comum nesse lugar. Em outras palavras, diz-se que a
questão de ser ou não campesino, reconhecida no espelho institucional atual brasileiro que é a
categoria agricultor familiar, e o que essa coincidência compreende e articula pode ser central para a
sobrevivência desses agricultores e para a conservação dessa paisagem. Que é a paisagem da
ruralidade geográfica – e convenientemente – mais próxima a conter a água que a cidade de Caxias
do Sul necessita.
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