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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Janaína Carlin Leal ADEUS AOS PINHEIRAIS: OS KAINGANG E AS LEIS INDIGENISTAS BACIA DO RIO TIBAGI (SÉCULOS XIX E XX) CURITIBA 2015

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

Janaína Carlin Leal

ADEUS AOS PINHEIRAIS:

OS KAINGANG E AS LEIS INDIGENISTAS

BACIA DO RIO TIBAGI

(SÉCULOS XIX E XX)

CURITIBA

2015

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ADEUS AOS PINHEIRAIS:

OS KAINGANG E AS LEIS INDIGENISTAS

BACIA DO RIO TIBAGI

(SÉCULOS XIX E XX)

CURITIBA

2015

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Janaína Carlin Leal

ADEUS AOS PINHEIRAIS:

OS KAINGANG E AS LEIS INDIGENISTAS

BACIA DO RIO TIBAGI

(SÉCULOS XIX E XX)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Curso de História da Faculdade de Ciências

Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do

Paraná, como requisito parcial para obtenção do

grau de Licenciatura Plena em História.

Orientadora: Profa. Mestra Viviane Zeni.

CURITIBA

2015

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Ao meu querido pai

Você foi minha fonte de inspiração,

pois no final de cada dia, mesmo cansado

eu me lembro de ti com um livro sempre ao lado.

O desejo pelo conhecimento eu aprendi com você,

pois me lembro que não importava a pergunta

você sempre explicava o “porque”.

Mas até os grandes mestres um dia dizem “adeus”,

por isso te dedico esse trabalho

pois eu não conseguiria sem o exemplo seu.

Quando pensava em desistir

A sua lembrança vinha na memória,

E graças ao legado que deixou

é que hoje eu concluo essa História.

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Primeiramente, agradeço ao meu Deus Jeová, pela capacidade que me deu, e

pela infinita força que me proporciona todos os dias para estar sempre seguindo em

frente. Obrigada Pai por ter me atraído na hora certa, por não ter desistido de mim e

por nunca ter deixado de me ouvir.

Quero dizer que, a conclusão dessa monografia significa muito mais do que

concluir o curso de História, ela me faz meditar em tudo que conquistei ao longo desse

tempo. Faz-me pensar nas pessoas que passaram pela minha vida e já foram embora, e

naquelas que apareceram e que ficarão para sempre. E é a estas pessoas que quero,

com todo amor e carinho, agradecer.

Aos grandes mestres que, além de me ministrarem o conteúdo das matérias, me

ensinaram a pensar, a ser um ser mais crítica, olhar além do óbvio, ser mais

persistente, ser paciente, me ensinaram o valor de um fichamento bem feito, o valor de

uma noite toda acordada para estudar, o valor de uma garrafa de café ao lado dos

livros e textos, e acima de tudo, me ensinaram a valorizar e a amar o curso que

escolhi! O meu muito obrigada a todos vocês que passaram pela sala no decorrer

desses anos! Em especial aos professores que mais me marcaram nessa fase

acadêmica, a querida professora Vera Irene, que muitas vezes lembrou muito a minha

mãe, com toda sua autoridade, seus puxões de orelha e também com seus abraços

aconchegantes e cheio de carinho. Obrigada por tudo Verinha, sempre me lembrarei de

você quando ler uma obra do “LeGoffinho”. Ao professor Pedro Valandro também

quero deixar o meu carinho especial, agradecer pela dedicação e pelos esforços tão

sinceros em sempre nos ajudar em tudo que precisávamos, e foram muitas as ajudas, e

sempre com um largo sorriso e muita boa vontade. E “seria de muito bom tom”

ressaltar aqui meu carinho especial a professora mais animada dessa universidade:

Vivi! O que falar da professora que sempre foi meu Norte dentro desse curso? Apesar

de muitas vezes eu ter “rezado para que os deuses tivessem piedade da minha alma” e

me livrassem das finais com ela, ainda assim digo que Ameríndia e Brasil, foram as

duas matérias que mais gostei. Obrigada por ter me orientado nessa pesquisa e ter

aprofundado minha paixão pelos nossos indígenas. Obrigada pela paciência sem fim e

por me acolher de braços abertos e me tratar com tanto amor! Teria uma lista enorme

para te agradecer, até mesmo por me mostrar que “diamante se lapida sob pressão”,

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por me mostrar também que eu sempre posso fazer melhor do que achava que poderia,

e por fim, por me oferecer o pinhão que me fez sentir uma verdadeira Kaingang.

Obrigada por tudo minha “querida, amada e venerada” professora Viviane!

Aos meus queridos amigos, que compunham a “Nuvem”, que sempre estiveram

comigo também quero agradecer. A minha amiga lapiana, Amanda, por ter me

suportado nos momentos bons e ruins, por tantas vezes me consolar, você sempre

estará comigo, longe ou perto! Obrigada pessoal, pelas risadas e pelas rodas de

chimarrão, até mesmo no calor de 30º. E ao amigo mais especial, Ricardo, quero

agradecer do fundo do coração por, ter estado sempre ao meu lado, por ter me apoiado

e me ajudado tanto! Posso dizer que hoje, divido essa vitória contigo, pois foi você que

me despertou o desejo de voltar a estudar depois de tantos anos longe de uma sala de

aula. Obrigada por entrar na minha vida, pela companhia todos esses anos, pelos cafés,

pelos lanches, pelas caronas, pelos cuidados, e por ter acreditado em mim. Você

compôs os pilares que me sustentaram e me mantiveram de pé nos meus dias mais

difíceis, muito obrigada por ter dividido seus dias comigo e por ser o melhor amigo

que já tive na vida!

Não poderia falar em sustentação sem mencionar minha mãezinha, minha

rainha, minha guerreira, minha amiga, meu refúgio! Você foi o outro pilar que me

apoiou e me fez chegar aonde cheguei, pois nada disso teria sido possível se você não

estivesse comigo me ajudando em todos os sentidos da vida. Obrigada pela motivação

e pela paciência que teve comigo enquanto eu estudava e tentava achar o meu rumo na

vida, muito obrigada pelo seu bom exemplo de perseverança que me mostrou o

verdadeiro caminho a seguir, e colaborou para que eu escolhesse e me dedicasse ao

melhor modo de vida.

Quero agradecer ao meu tio Laurinho que esteve comigo vendo minha luta para

trabalhar e pagar meus estudos. Obrigada pelas ajudas que me fizeram ir até o final e

concluir essa etapa na minha vida, obrigada pelo seu amor, por ouvir meus desabafos e

por ser um ótimo amigo e um grande pai pra mim!

Por fim e por último, agradeço a todos que direta ou indiretamente contribuíram

para que eu pudesse escrever a minha História!

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“Não compreendemos porque (...) estudar

leis escritas e aprender saberes que não são

nossos. (...) O que se pode aprender de um

Povo que não respeita seus anciãos e

abandona suas crianças? (...) Não! Nunca

compreenderemos que a lei não seja

conhecida por todos, porque nossas leis não

são escritas, mas são cumpridas porque são

sagradas”.

Líder Kaingang -1995

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RESUMO

Antes de o Paraná tornar-se Província, em 1853, a expansão territorial aumentava rapidamente

avançando sobre os territórios indígenas. Com a ocupação de áreas na Bacia do Rio Tibagi, berço da

comunidade Kaingang, as autoridades provinciais concentraram a sua atenção na implementação de

Políticas Indigenistas já existentes, como ação de defesa contra os selvagens que viviam próximos aos

novos núcleos que se desenvolviam. Para tanto, aldeamentos administrados por capuchinhos que,

foram oficializados para que os religiosos, por meio da catequização, orientassem as comunidades

indígenas na adoção de novos costumes e, sobretudo na incorporação do trabalho, como fonte

primordial do progresso À medida que avançavam dentro dos territórios Kaingang, novas Leis

ganhavam força às pontas das penas dos Presidentes que sempre sancionavam novas medidas de apoio

a essas ocupações. Inseridos neste conturbado cenário, os Kaingang, embora resistissem de diferentes

formas, foram gradativamente perdendo o controle da região que habitavam para descobrir nos

aldeamentos, uma forma de manter suas comunidades. Décadas após as expropriações os Kaingang,

continuam em sua luta pela demarcação de seus territórios e mesmo vivendo nos centros urbanos,

reatualizaram suas práticas ao ressignificar seus rituais e manter a sua cultura.

Palavras-chaves: Kaingang; Políticas Indigenistas; Território paranaense.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................... 9

1. TERRITÓRIO PARANAENSE: UM CONFRONTO ENTRE

INDÍGENAS, EUROPEUS E BRASILEIROS............................................

14

1.1. OS KAINGANG NAS TERRAS DOS PINHEIRAIS: COSTUMES E

COSMOLOGIA................................................................................................

14

1.2.NÃO-INDÍGENAS NO CORAÇÃO DOS TERRITÓRIOS

KAINGANG: PRIMEIROS CONTATOS E O INÍCIO DAS

EXPLORAÇÕES .............................................................................................

19

1.3. EM LUTA PELA TERRA: A RESISTÊNCIA INDÍGENA ................... 25

2. POLÍTICAS INDIGENISTAS: UM PROJETO EXCLUDENTE ....... 34

2.1. PROJETO CIVILIZADOR: A TENTATIVA DE SUJEIÇÃO DOS

INDÍGENAS PERANTE A CRUZ, O TRABALHO E A PERDA DO

TERRITÓRIO ..................................................................................................

34

2.2. INTEGRAR É POSSÍVEL, VIVER É IMPOSSÍVEL?: NOVAS LEIS

INDIGENISTAS ..............................................................................................

46

2.3. OS KAINGANG NA SELVA URBANA: UMA QUESTÃO DE

(RE)TERRITORIALIZAÇÃO ...........................................................................

51

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 56

FONTES ......................................................................................................... 61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 62

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INTRODUÇÃO

Esse trabalho é resultado do meu interesse pelos indígenas que há tempos

imemoriais, ocupam as terras do atual estado do Paraná, porém, com uma

configuração social diferente do seu estado original, como se pode notar ao passar por

pontos turísticos e observar velhos índios vendendo seus cestos à beira da estrada, ou

ver reportagens falando da presença de acampamentos indígenas no coração de centros

urbanos. Tais fatos me levaram a pesquisar o motivo pelos quais estes grupos

abandonaram suas comunidades e passaram a conviver em meios urbanos, que muitas

vezes apresentam péssimas condições de trabalho ou moradia para essas pessoas. Os

Kaingang, objeto dessa pesquisa, foi o grupo privilegiado, visto que esses estão entre

os mais numerosos povos indígenas da região.

No decorrer da pesquisa, a atenção se concentrou nas políticas indigenistas

aplicadas a esses povos, ou seja, nos princípios estabelecidos pelos não-índios a partir

do contato com as sociedades indígenas,1 em especial nos séculos XIX e XX, quando o

Paraná deixou de fazer parte da Comarca de São Paulo e conquistou autonomia como

Província. Os presidentes que estiveram no governo provincial entre 1853 e 1889,

desenvolveram ações políticas a fim de “integrar” tais comunidades nativas a nova

sociedade moderna que surgia. Essa situação levou a expropriações dos mesmos de

seus territórios e a inserção compulsória de uma nova cultura a tais comunidades.

Diante do exposto, o objetivo central deste estudo monográfico consistiu em analisar

como as explorações territoriais e o confronto entre dois mundos diferentes levaram

todo um sistema social étnico a uma reconfiguração cultural e como as Políticas

Indigenistas – dos séculos XIX e XX – influenciaram nas demarcações de terras

Kaingang 2 fazendo com que estes grupos deixassem seu habitat natural e adaptassem

1 TUPINAMBÁ, Renata. Oito Razões para refletir as diferenças das políticas indígenas e

indigenistas. Disponível em www.radioyande.com. Acesso em 22 de maio de 2015. 2 A designação Kaingang foi aplicada pela primeira vez, em 1882, por Telêmaco Borba e depois

reafirmada pelo Visconde de Taunay, aos indígenas chamados de Coroados. O Visconde de Taunay

considerou o termo Coroado excessivamente português e após ouvir de um índio mais ladino a palavra

Caingang, traçou uma genealogia para corrigir a designação. A partir desse momento, mais

precisamente em 1886, os Coroados que habitavam as atuais terras paranaenses foram denominados

Kaingang. DORNELLIS, Soraia Sales. De Coroados a Kaingang: as experiências vividas pelos

indígenas no contexto de imigração alemã e italiana no Rio Grande do Sul do século XIX e início do

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seus costumes, passando a manter suas antigas tradições entre os laços sagrados da

sua cultura no profano mundo urbano.

Para atingir este objetivo, as fontes utilizadas foram Relatórios do Governo do

Paraná Provincial e relatos de viajantes, como Thomas Bigg-Wither e Auguste Saint-

Hilaire, que tiveram contato com esses povos e com a política governamental aplicada

a eles no século XIX.

Para uma melhor compreensão e discussão sobre essa forma de governar, as

indicações de Michel Foucault sobre governamentalidade foram de grande valia, pois

o filósofo explica mais amplamente os três pilares de sustentação de um governo

voltado a atender a população, sendo esses o exercício da soberania, a

disciplinarização e a gestão governamental. Estas indicações ficaram claras nos

discursos dos presidentes provinciais, registrados em seus Relatórios, que se

encontram sob os auspícios do Arquivo Público Paranaense. Nestes percebemos a

ideia de que os grupos indígenas formavam um conjunto homogêneo, sem quaisquer

particularidades históricas e culturais. Além disso, pôde-se comprovar que as

comunidades indígenas eram vislumbradas como um obstáculo para o

desenvolvimento das cidades, pois se encontravam na condição de “inferiores e

selvagens” diante da cultura ocidental moderna que paulatinamente se estabelecia no

atual estado paranaense.

Além das indicações teóricas de Foucault, alguns referenciais bibliográficos

auxiliaram a análise proposta, entre eles, merece destaque as pesquisas de Lúcio Tadeu

Mota sobre as resistências dos Kaingang frente às Políticas Indigenistas e a pesquisa

de Dulce Elena Canieli, sobre os discursos dos presidentes provinciais em relação aos

povos indígenas.

Destaca-se neste momento, a relevância do material sobre as comunidades

indígenas do Brasil disponibilizado pelo ISA Socioambiental, órgão que busca

preservar a cultura indígena e atualizar temáticas que envolvem os diversos grupos da

reivindicação das demarcações de seus territórios. Nos arquivos do ISA

Socioambiental, há um vasto conjunto documental que inclui depoimentos, fotografias,

XX. Porto Alegre: UFRS, 2011, p.9. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br>. Acesso em: 05 de

jun. de 2015.

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relatos míticos, mapas, legislações entre outras fontes que contribuíram para esta

pesquisa.

De posse dos referenciais e fontes acima citados, este trabalho foi dividido em

dois capítulos: o primeiro capítulo apresenta um esboço do quadro cultural Kaingang

deixado pelos viajantes que tiveram oportunidade de desfrutar desse convívio e

registrar em seus relatórios informações, mesmo que breves, sobre como viviam estas

comunidades. Suas práticas de sobrevivência, organização social, táticas de guerras,

bem como seu principal meio de vida, o território sagrado nas florestas dos pinheirais,

foram registradas detalhadamente contribuindo para uma interpretação do modo de

viver Kaingang, embora ciente de que são visões alimentadas pela cultura europeia.

Ainda neste mesmo capítulo, foi apresentado a cosmovisão baseada na dualidade dos

gêmeos originadores de sua cultura, Kamé e Kairu, as duas metades opostas que

apresentam uma relação de complementaridade que explica todo o seu mundo, e seu

modo de ser, pensar, e agir; mito que se reatualiza nas festas e comemorações, como o

Ritual do Kiki, ou festa dos mortos, a mais visível expressão de religiosidade por parte

da tradição Kaingang.

Na sequência foi traçada uma breve contextualização do período em que os

primeiros não-índios chegaram às terras indígenas do Sul Meridional em busca de

novas rotas e riquezas, embora o foco dessas explorações estivesse direcionado às

ocupações de terras na bacia do rio Tibagi, mais especificamente nos campos do

cacique Kaingang Inhoó. Estas explorações foram lideradas pelo Barão de Antonina na

segunda metade do século XVIII e mais tarde, já no século XIX, as terras doadas pelo

mesmo para a construção de um aldeamento que levou o nome de São Jerônimo, em

um período em que o termo vazio demográfico foi largamente usado pelas autoridades

e por fazendeiros que estavam a fim de expandir os seus territórios.

Os Kaingang mostraram forte oposição respondendo com violência e invasões

às fazendas e moradias próximas de suas antigas áreas de habitação que haviam sido

tomadas. As autoridades, por sua vez, investiam na segurança da população reforçando

o policiamento e construindo Colônias Militares próximas a essas áreas de maior risco

de ataques dos selvagens. Diante desse conflito social, Leis Indigenistas começaram a

ser aplicadas como uma forma de minimizar os ataques e trazer por meio brandos os

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índios bravios a conversão da fé católica, “civilizando-os” com o objetivo de “integrá-

los” à sociedade moderna.

O segundo capítulo abordou algumas Políticas Indigenista e as várias formas de

como estas foram aplicadas às comunidades indígenas, uma vez que boa parte do

“projeto civilizador” foi desenvolvida contando com o apoio de missionários católicos

para ensinar o rito cristão aos pagãos e acabar aos poucos com suas tradições e

costumes, que tanto dificultavam a aproximação do homem branco ao índio selvagem.

Importa aqui explicar que por Política Indigenista entende-se a forma a qual o

Estado brasileiro se pauta para atender os interesses e necessidades dos povos

indígenas. Para tanto, quem atualmente responde por essa política é a Fundação

Nacional do Índio (FUNAI), órgão do Ministério da Justiça. Já Política Indígena, são

as manifestações produzidas pelos próprios povos indígenas para garantir seus direitos

e interesse por meio de suas próprias instituições representadas por conselhos de

aldeias, associações entre outras formas de organização. 3

Assim buscou-se discutir como as Leis Indigenistas, foram colocadas em

prática, como por exemplo, a Lei de Terras de 1850 que objetivava impedir a

distribuição de terras para assegurar o domínio dos latifundiários determinando que as

terras devolutas, ou terras vazias, fossem reservadas para aldeamentos indígenas, fator

que, desfavorecia os indígenas no que concebe de que aquelas terras seriam

legitimamente suas, já que a Lei deixava claro que, quando esses grupos entrassem em

contato com a população nacional, perdiam seus direitos quanto a terra que possuíam.

A partir da análise dos Relatórios do Governo, percebeu-se como o catequese e

a educação foram difundidas com o objetivo de inserção da nova cultura em

detrimento das tradições indígenas. O Regulamento das Missões, de 1845, foi outra

Lei indigenista aplicada a esses povos com essa finalidade, pois em seus artigos

determinava que o conteúdo didático fosse mesclado a conversão católica,

demonstrando assim, um forte empenho em apagar os costumes indígenas e neste caso

específico as tradições Kaingang, orientadas pelos ritos xamânicos e sua cosmologia.

3 Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu: 50 anos. Instituto Socioambiental

(ISA). São Paulo: 2011.p.25. ISBN 978-85-85994-84-6.

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Essas novas políticas implantadas pelo governo com a finalidade de demarcar

os territórios fronteiriços, diminuir e até mesmo eliminar o contingente indígena que

os habitavam, trouxeram muitas consequências, como a “depopulação” nativa desses

locais. Devido as pressões de diversos segmentos políticos e sociais, em 1910, foi

implantada uma política de “defesa” indígena com a criação do Serviço de Proteção ao

Índio (SPI), que anos mais tarde foi substituído pela Fundação Nacional do Índio

(FUNAI), embora o ideário de “integração” das comunidades indígenas à sociedade

branca, continuasse a vigorar.

Por fim, as situações vivenciadas pelos indígenas, em específico os Kaingang,

conduziu-os a procurar seus próprios meios de sobrevivência e se adaptar às condições

da sociedade moderna, pois desde que seus territórios foram violados, eles se viram

obrigados a prestarem serviços para a nova sociedade que se erguia em suas terras.

Expropriados e vivendo debaixo da “tutela” do governo, como manteriam suas

tradições após sua cultura ser ignorada pelas depreciativas políticas silenciadoras?

Longe de estarem acomodados, os Kaingang procuraram uma maneira de manter viva

suas tradições, e recorrendo a sua cosmologia, encontraram nos seus atuais

acampamentos nas cidades, uma maneira de relembrar a importância de estarem

unidos com seus grupos buscando a sobrevivência, não mais nas florestas de pinheirais

e mas na selva urbana que agora os cercam.

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1. TERRITÓRIO PARANAENSE: UM CONFRONTO ENTRE INDÍGENAS,

EUROPEUS E BRASILEIROS

1.1. OS KAINGANG NAS TERRAS DOS PINHEIRAIS: COSTUMES E

COSMOLOGIA.

Ao longo do século XIX, os Kaingang, pertencentes ao grupo linguístico

Macro-Jê4, encontravam-se estabelecidos em boa parte do Brasil Meridional, nas

bacias do Rio Tibagi, abrangendo uma longa faixa territorial do centro-oeste até o

Norte do atual estado do Paraná.

Nesse período, os registros deixados por viajantes e diretores de aldeamentos que

tiveram contato direto com os Kaingang, apresentam vários dados que permitem

traçar, mesmo que brevemente, um esboço do quadro cultural deste grupo.

Os Kaingang eram caçadores e coletores e praticavam a agricultura em pequena

escala. Seus acampamentos variavam entre os emã, fixos e organizados em campos e

os acampamentos móveis, os wãre, construídos nas florestas perto de rios, para

facilitar a caça e a pesca. Os deslocamentos entre os emã e os wãre eram realizados

por grupos com laços de parentesco, de forma a garantir uma ocupação contínua de

determinadas áreas. As famílias que se fixavam no wãre, praticavam a pesca usando o

pari, uma espécie de armadilha montada nas vazantes dos rios, feita de pedras e

taquaras, e por ali permaneciam acampadas por meses. Da considerável quantidade de

peixes coletados, parte era consumida no wãre, enquanto a outra parte seca ao sol,

para consumo quando regressassem ao emã. A caça era praticada da mesma maneira e

abastecia tanto o wãre quanto o emã. Ela incluía veados, antas, catetos e quatis, além

de aves como jacu, uru, papaguaio, nambu e macuco. Normalmente usavam arcos e

flechas, variando o tipo de suas pontas e materiais usados para produzi-las, como osso

e madeira. 5

A agricultura praticada no emã, baseava-se no cultivo, em terrenos altos, de

milho pururuca, abóbora, feijão de vara e amendoim. Já a coleta, sobretudo do pinhão

4 Kaingang. Instituto Socioambiental. Disponível em: <http://www.socioambiental.org>. Acesso em

16 de abr. 2015. 5 Kaingang. Instituto Socioambiental. Id.Ibid.

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das florestas de araucárias encontradas no Sul, possibilitava a produção de vários

alimentos, como a farinha de pinhão, bebidas fermentadas, e o õkór 6. Esta dieta era

complementada com farinha feita de palmito, mel, erva mate, fuá (frutas silvestres),

Kumi (erva moura), pyfé (folha da mandioca brava), além dos corós (larvas),

presentees nos troncos de palmeiras ou taquaras que podiam ser consumidas cruas ou

fritas na própria gordura.7

Para o antropólogo Kurt Nimuendajú, a organização social Kaingang estava

ligada a sua cosmovisão que apresentava um sistema dualista, ou seja, um sistema

composto por duas metades opostas que se completam, sendo essas metades Kamé e

Kairu a origem de sua sociedade e os divisores tanto dos homens quanto dos seres da

natureza. De acordo com o relato mítico, a criação do mundo se deve aos dois heróis,

irmãos gêmeos, que criaram plantas e animais e povoaram a terra, e devido a isto,

todos os seres vivos manifestam sua descendência por meio de características físicas e

espirituais.

Ainda segundo a tradição, Kamé é o sol e Kairu a lua, Kamé é o lagarto e Kairu o

macaco, e assim por diante. Essas duas metades conduzem toda a vida social e

religiosa dos Kaingang, sendo que cada uma é representada por um símbolo e uma cor,

correspondentes a sua filiação. Kamé representado na pintura com riscos é o mais forte

e sua cor o vermelho, seus representantes caracterizam-se por apresentarem corpos

grossos, pés grandes e movimentarem-se lentamente. O Kairu representado na pintura

com círculos na cor preta, possue representantes (homens ou animais) de corpos finos

mais fracos, peludos, com pés pequenos e rápidos nos movimentos e ações.8

Essa dualidade norteava e norteia o universo cultural Kaingang e se atualiza por

meio do Ritual do Kiki, dedicado aos antepassados falecidos, com o objetivo de afastar

os maus espíritos e conduzir a alma dos parentes a fim de que encontrem o caminho da

paz e do descanso. Ao estabelecer a relação entre os vivos e os mortos, o Ritual do

Kiki se transformava no momento de oposição, complementaridade, assimetria e

6 O õkór é também chamado de pinhão d‟agua, por ser colocado em um cesto com tampa, amarrado a

um cipó na água de um poço ou nos rios. Kaingang. Instituto Socioambiental. Id.Ibid. 7 VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. Disponível em:

www.portalkaingang.org. Acesso em 17 de out de 2014. 8 Kaingang. Instituto Socioambiental. Disponível em: <http:// www.socioambiental.org>. Acesso em

13 de abr. 2015.

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reciprocidade entre Kamé e Kairu e reafirmava a identidade Kaingang. O Ritual era

iniciado por rezadores que acendiam três fogos em um local apropriado conhecido por

eles como “praça da dança” ou “praça do fogo”, e de mandeira geral deveria ocorrer

entre os meses de janeiro e junho. O primeiro fogo aceso antecede a derrubada de um

pinheiro, utilizado como konkéi, cocho no qual era depositada a bebida kiki. No

segundo fogo aceso na noite seguinte, era colocado mel e água para a preparação da

bebida. Já a etapa principal era o terceiro fogo, articulava o maior número de

participantes. Os rezadores e integrantes das duas partes permaneciam ao redor do

fogo entoando cantos e rezas. As mulheres participavam dessa etapa realizando

pinturas faciais que representavam Kamé e Kairu, com o objetivo de proteger os

participantes contra os espíritos dos mortos. Os rezadores faziam suas rezas para a

metade oposta, cantavam e tocavam instrumentos de sopro e chocalhos e, ao

amanhecer, caminhavam até o cemitério, onde as rezas continuavam diante das

sepulturas. Ao regressarem à “praça do fogo” concluíam o rital com o consumo da

bebida kiki.

Nesse cenário, a natureza vislumbrada como fonte principal para a sua existência

e para os territórios onde os Kaingang habitavam, representava o espaço do Ritual,

através do qual as metades exogâmica Kamé e Kairu se manifestavam. 9

A relação entre os hábitos e seu habitat para os Kaingang estava imbricada a sua

cosmovisão e esta afirmação pode ser corroborada por meio do relato abaixo:

Seu principal, e quase exclusivo alimento, é o pinhão, fruto do pinheiro

(Araucária brasileira) que assam no borralho e depois comem.

Quando chegam osmeses de maio, junho e julho quando as pinhas estão bem

maduras e antes de debulharem por sí, os coroados sobem nos pinheiros e,

com uma taquara, desprendem as pinhas, fazendo-as cairem no chão. As

mulheres juntam as pinhas em cestos que carregam nas costas para um lugar

areento e úmido, onde são enterradas. Assim as conservam para comerem

nos meses em que aquelas frutas faltam nas árvores (...)

Os pinheirais em que os selvagens tem seu alojamento são repartidos e

divididos em territórios correspondentes, em tamanhos ao número de

indivíduos que compunham as tribos. Cada tribo subordinada com seu chefe

(cacique subordinado) tem seu alojamento particular (todos juntos formam

alojamento geral), em território que é indicado pelo cacique principal. Este

pequeno alojamento sempre se acha situado sobre um caminhozinho que

9 Kaingang: ritual e xamanismo. Instituto Socioambiental. Disponível em:

<htpp://www.socioambiental.org>. Acesso em 19 de mai de 2015.

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segue de uma a outra tribo, geralmente passando pelo centro do pinheiral,

em direção longitudinal à serra sobre a qual se acha o mesmo situado.

O limite entre um e outro território é assinalado na casca de um pinheiro que

serve de marco de divisa. A casca é cortada com um machado de pedra, para

fazer a marca de cada tribo na posição vertical e ao correr da árvore. Essas

marcas são de várias formas e feitios (...)

Todas essas marcas são cortadas na casca do pinheiro e numa altura de oito a

dez palmos acima do chão. Têm, e, geral, todas as marcas mais de dois

palmos de comprimento. Muitos chefes das tribos subordinadas tem aquelas

mesmas marcas, em tamanho correspondente e proporcional pintadas nas

hastes de taquara de suas flechas, com uma tinta encanada.

Essa tinta é feita com o suco leitoso da figueira do mato, do mato-olho e da

cinchona, misturado com as pétalas das flores escarlates do imberi que

contundem antes de misturarem com o suco leitoso. Outras vezes fazem a

tinta com a resina da casca do pinheiro, misturada com óxido vermelho de

ferro ou ferrugem, que raspam de algum pedaço de ferro velho, oxidado.

Fazem a tinta preta, misturando com o suco leitoso com a fuligem que

apanham dentro de seus ranchos sob coberta de palha onde a fumaça do fogo

se condensa.

O território do pinheiral, compreendido entre duas marcas, pertencem,

exclusivamente, à tribo que nele habitam por ordem do cacique principal e

nesse território é que todos os indivíduos daquela tribo apanham o pinhão

para seu sustento. A invasão de outra tribo, para esse fim, é motivo de uma

guerra de extermínio, para a qual é convocada todas as demais tribos.10

Como se pode perceber, os pinheirais eram importantes para os Kaingang. Estes

além de fornecerem um dos alimentos básicos para a sobrevivência dos grupos,

forneciam muitos dos ingredientes utilizados no Ritual, pois como já comentado, do

tronco de um grande pinheiro, confeccionavam o cocho em que a bebida para o Kiki

era fermentada e do carvão que restava misturavam a resina da casca do pinheiro e

faziam a tinta para a pintura dos representantes da metade Kamé.

O relato acima também indica que os Kaingang não mediam esforços quando

outros grupos invadiam o território do pinheiral, fonte de suas bases materiais e de

reprodução social. Para tanto, os Kaingang fabricavam as armas que chamaram a

atenção dos europeus que entravam em contato com esse grupo.

Pierre Mabilde, após observações realizadas junto aos Kaingang, descreveu a

fabricação de um arco e flecha em detalhes:

Cortavam o cerne do ipê do comprimento nescessário (sic.) e, com pedaços

de grés vermelho, de grãos assaz grossos, desbastavam-no esfregando com

força o pau ao correr das fibras da maneira, até ficar bem arredondado - e

10

MABILDE, Pierre F. A. Booth. Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados

dos matos da Província do Rio Grande do Sul. São Paulo: Ibrasa, 1983. p.125-127.

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afinado do meio para ambas as extremidades. Depois dessa operação

alisavam mais aqüelas partes, assim desbastadas, com outro pedaço de grés

de grão mais fino, esfregando-as até desaparecerem as maiores

desigualdades. Acabavam o aplainamento com uma lasca de sílex ou

calcedonia qüalquer que concervasse (sic.) no qüebrar ou lascar, um gume

cortante, com o qüal raspavam com sutileza o pau do arco, até ficar o mais

liso possível. Depois dessa operação (que as vezes era a última)

aparelhavam, mais ainda, o pau do arco, alisando-o com as folhas secas de

uma árvore (...) cujas folhas pela parte inferior são asperas formando uma

exelente lixa. Depois de bem lixado, abrem nas extremidades dos entalhos

chanfrados, nos qüais, seguram a corda. Depois de aperfeiçoado e alisado o

entalho, dão ao pau do arco o último repasso. Este consiste em aquecer o pau

em fogo muito brando e untá-lo com gordura da jacutinga (espécie de ave)

que esfregam sobre o pau durante algum tempo, com um pedaço de pele de

macaco, até desaparecer a gosdura, tomando a madeira uma cor mais escura

e lustrosa. Não obstante, os poucos e toscos meios de que dispunham aqüeles

coroados para fazerem seus arcos, são contudo fabricados com igualdade,

com uma uniformidade e perfeição de acabamento que seria dificil a um dos

nossos melhores marceneiros - com toda a competente ferramenta a

disposição - fabricar um melhor ou mais bem acabado.11

A arte de guerrear não se limitava somente aos homens, todo um plano de ação

era desenvolvido pelo cacique principal com seus subordinados, incluindo nessas

táticas a ação de mulheres, que por sua vez, tinham algumas funções, como por

exemplo, atrair os inimigos para uma emboscada. Era comum, registrou Pierre

Mabilde, “mulheres e guerreiros simularem com gritos e barulho o ataque por um lado,

enquanto o grosso da expedição avançava pela retaguarda”. 12

A simulação dos gritos

era a melhor maneira de confundir o inimigo e fazer com que eles fossem para o lado

oposto, dando assim vantagens para o ataque. As mulheres tinham um papel ativo

dentro da comunidade guerreira e além de atuarem durante os confrontos ficavam

encarregadas de transportar alimentos e cuidar dos prisioneiros.13

Com a chegada do homem branco às terras que habitavam, os Kaingang se

defrontaram com um novo inimigo que além de cobiçar os seus territórios,

menosprezava a criação de Kamé e Kairu e buscava impor outros modos de vida para

todas as suas comunidades. Diante dessa situação, eles tinham dois caminhos a seguir:

ceder a essas imposições ou resistir bravamente.

11

Id. Ibid, p. 138. 12

Id. Ibid, p. 177. 13

Id. Ibid, p. 178.

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1.2. NÃO-INDÍGENAS NO CORAÇÃO DOS TERRITÓRIOS KAINGANG:

PRIMEIROS CONTATOS E O INÍCIO DAS EXPLORAÇÕES.

O primeiro contato dos europeus com os indígenas do atual estado do Paraná,

segundo alguns relatos, ocorreu em 1531/32, quando Aleixo Garcia empreendeu uma

viagem ao Peru, convocado por Martins Afonso de Souza, que em seu regresso foi

morto pelos Guarani. Apesar do trágico fim de Aleixo Garcia, a expedição que

comandava,

(...) atravessou os campos de Piratininga, passou o rio das Cinzas, navegou e

transpôs o rio Tibagi, pouco abaixo da foz do Iapó e, embrenhando-se nos

sertões de oeste, cruzou o Ivaí, margeou o Piquiri, e traspôs (sic) o Paraná

acima das setequedas e penetrou no território da hoje República do Paraguai.

Pelo itinerário seguido por esta expedição, vê-se que ela cortou as terras

tibagianas, passando, exatamente, no lugar onde, muito tempo depois, foi

fundada a atual cidade de Tibagi.14

Outras frentes de exploração tentaram posteriormente, seguir essa mesma rota

pelo Rio Paraná, porém sem o sucesso esperado, devido à interferência indígena. Os

índios “gentilmente” cediam passagem aos europeus pelo rio em canoas produzidas

pelo grupo e quando esses iniciavam a navegação, a embarcação mostrava-se

discretamente deteriorada, apresentando furos tampados por argila que, paulatinamente

derretia em contato com a água naufragando a canoa junto com seus passageiros 15

.

Essa “gentileza” indica que, independente da forma, os indígenas resistiam a presença

dos europeus e as conquistas não ocorreram de modo pacífico, pois eles se recusavam

a entregar suas terras aos europeus que buscavam conquistá-las.

Por volta de 1542, o espanhol Álvaro Nunes Cabeza de Vaca, desembarcou na

região catarinense e se dirigiu ao atual Paraná, onde entrou em contato com um grande

número de habitantes locais. Esse contato a princípio foi passivo, visto que o espanhol

conquistava a simpatia dos indígenas com presentes.

Sua intenção ao cruzar essa região, era empreender uma viagem rumo a Villa de Nossa

Senhora de Assunción, capital da província espanhola do Prata. Pedro Fernandez,

secretário de Cabeza de Vaca, que participava da viagem, registrou em seus relatórios

14

MERCER, Edmundo A. & MERCER, Luiz Leopoldo. História de Tibagi. Curitiba, Cenicom, 1977,

p. 8. 15

Id. Ibid, p.8.

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que os habitantes locais não eram tão passivos quanto aparentavam. Segundo

Fernandez:

Quando nos aproximamos deste rio (Iguaçu), soubemos por informação dos

índios, que ele lançava-se no Paraná, também xamado (sic) Rio da Prata, e

que nas margens destes 2 cursos d‟agua os indígenas tinham mortos

portugueses mandados por Martin Afonso de Souza para descobrir este paiz

(sic). Os índios assaltavam os exploradores, e os matavam no momento em

que atravessavam o rio em canoas. 16

Conforme o alerta de seu secretário, Cabeza de Vaca tomou todo o cuidado

para não ter o mesmo fim que os portugueses, conseguindo assim, chegar a Assunção

no Paraguai no mesmo ano.

Mesmo com a resistência acima citada, as explorações e apropriações em

territórios indígenas no atual Paraná continuaram, sobretudo pelos espanhóis17

, que

voltaram os olhos para as terras a leste do Rio Paraná, interessados na sua abundante

mão-de-obra e em uma rota para o Paraguai e Peru18

. Os portugueses também

disputavam as terras e ampliaram as suas investidas nos séculos XVII e XVIII após a

descoberta de diamantes no Tibagi e construíram para garantir a segurança e a ordem,

fortificações militares em territórios Kaingang rumo ao Mato Grosso.

Nesse período, o Brasil apresentava um contexto político e econômico

conturbado que envolvia as explorações de riquezas naturais. Expedições foram

enviadas ao interior da Colônia em busca de minerais preciosos e o pólo aurífero se

deslocou para a Região Sudeste, com a descoberta das Minas Gerais, conduzindo a

Metrópole a transferir o centro político-administrativo de Salvador para o Rio de

16

Cf. Comentários de Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, Adelantado e governador do Rio da Prata,

redigido por Pedro Fernandez, notório secretário da província. Traduzidos e oferecido ao Instituto

Histórico Geográfico Brasileiro pelo sócio Tristão de Alencar Araripe, publicados na Revista do

Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v. LVI, parte I, em 1893, e transcritos aqui conforme

se acham no original, p. 210-211. Esses comentários relatam toda a passagem de Álvaro Cabeza de

Vaca pela Província do Prata e sua permanência nela até o seu envio à Espanha como preso

político.IN: MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: A história épica dos índios

Kaingang no Paraná (1769 - 1924). Maringá: Edum, 1994. 17

A região a leste do Tibagi, demarcada ao norte pelo Paranapanema, ao sul pelo Iguaçu e a oeste pelo

rio Paraná, foi o local onde se desenvolveram as várias reduções jesuíticas espanholas dos séculos XVI

e da primeira metade do século XVII. 18

MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: A história épica dos índios Kaingang no

Paraná (1769 - 1924). Maringá: Edum, 1994, p. 89.

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Janeiro, que ficava mais próximo da exploração dessas riquezas e também como

estratégia para evitar contrabandos entre outras fraudes. 19

Na parte Sul, houve a ocupação da bacia do Tibagi, mais especificamente dos

campos do Kaingang Cacique Inhoó, como veremos no decorrer deste trabalho. Na

segunda metade do século XVIII, expedições lideradas pelo Barão de Antonina e

fazendeiros, ambos interessados em expandir seus domínios, fizeram dos territórios

indígenas palco de grandes guerras e disputas.

A ocupação da atual região Sul, conforme indica Brasil Pinheiro Machado, em

seus estudos sobre a formação do território paranaense, foi um processo que a

princípio consistia em destruir as populações locais, que impediam a colonização das

áreas fronteiriças, para depois localizar os lugares desabitados e os grupos que o

habitavam compulsoriamente com o objetivo de fundar vilas, criar fazendas e estâncias

e construir estradas de ligação entre os vários núcleos. Nesse sentido,

Entre Portugal e Espanha tinham-se conseguido um acordo, que parecia a

todos provisório. As fronteiras seriam demarcadas por onde houvesse

ocupação e posse. Era preciso então povoar. Distender as populações em

mais vilas. Chegar antes que os espanhóis nas terras desabitadas. Tomar

posse 20

.

A ideia de terra desabitada, e logo passível de ocupação, foi estendida ao atual

território paranaense, tanto no século XVI pelos europeus que aqui chegavam, quanto

no século XIX, pelo Governo imperial e fazendeiros dos Campos Gerais.

Cabe ressaltar que, em meados do século XIX, o café era o produto que

movimentava a economia do Brasil, tornando a realidade mais dinâmica, além de

exigir a construção de ferrovias e portos e criar condições favoráveis para o

crescimento de outros empreendimentos, como bancos e atividades ligadas ao

comércio interno e uma série de iniciativas empresariais. A aprovação da Tarifa Alves

Branco21

"que majorou as taxas alfandegárias e da lei Eusébio de Queirós, que em

19

Guia Geográfico História do Brasil: O Brasil do século XVIII. Disponível em:

<htpp//:www.historiadobrasil.com.br>. Acesso em: 10 de mar. 2015. 20

MACHADO, Brasil Pinheiro. Esboço de uma Sinopse da História regional do Paraná. In: História:

Questão e Debate, ano 8, n.14, dezembro de 1987, p.188. 21

Tarifa alfandegária que aumentou as taxas de importação para 30% quando não havia similar

nacional e para 60% quando havia o produto nacional, causando impacto na comercialização inglesa e

em consumidores brasileiros que adquiriam tais produtos. Seu objetivo era equilibrar a balança

comercial nacional. A tarifa criada pelo advogado Manuel Alves Branco, em 1844, permaneceu ativa

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1850 aboliu o tráfico negreiro liberando capitais para outras atividades, estimularam

ainda mais os negócios urbanos no Brasil" 22

. Nesse "surto" de desenvolvimento, foi

criada a Lei de Terras, Lei n° 601 de 18/09/1850, que em seu 3° artigo, regulava a

posse da terra pela aquisição de um título legítimo e não pela ocupação efetiva,

visando impedir a distribuição de terras ao assegurar o domínio dos latifundiários

sobre a propriedade, visto que as terras devolutas, ou seja, as terras que julgavam ser

"desabitadas" seriam divididas em sesmarias. Em outras palavras, a Lei determinava a

reserva de terras devolutas ao Império para o aldeamento dos índios, quando fosse

necessário assentá-los e deslocá-los de seus territórios originais. 23

De acordo com a nova Lei, cada repartição contaria com um Diretor Geral das

Terras Públicas, maior autoridade sobre a terra, um Chefe de Repartição e um Fiscal,

nomeados por Decreto Imperial. Caberia a esses três funcionários reportarem ao

Governo as terras devolutas que deveriam ser reservadas para o assentamento dos

indígenas, fundação de povoações, construção de estradas, e quaisquer outros serviços

que interessassem ao Governo Imperial, a fim de legitimar essas terras por meio de

Regulamentos. 24

No Paraná, a ideia de terra desabitada ganhou força em 1853, quando deixou

de ser Comarca de São Paulo para tornar-se Província. De acordo com Wilson

Martins, uma das principais preocupações do primeiro presidente da Província,

Zacarias Goes e Vasconcelos, concentrou-se na questão das terras, visto que um

território de duzentos mil km² “desabitado”, tornou-se um problema em sua

administração, para Martins nesse momento a Província era,

(...) do ponto de vista humano, um ilimitado deserto, interrompido

irregularmente por dezenove pequenos oásis, situado a distancias imensas

um dos outros – e distanciam literalmente intransponíveis, pois, além dos

“caminhos históricos”, que iam revelar dentro de pouco não serem

“caminhos econômicos”, nada existia que pudesse pronunciar uma rede

qualquer de comunicações (...). Em compensação, na maior parte do

até 1860. FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Gênese e Precursores do Desenvolvimento do Brasil. In:

Revista Pesquisa & Debate. v.15, n. 2, jan-jul. São Paulo: PUC, 2004. Disponivel em:

<http://www.revista.pucsp.com.br> Acesso em: 08 de nov. 2014. p. 225-256. ISSN: 18098428. 22

Id. Ibid. p. 237. 23

BRASIL. LEI Nº 601. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Rio de Janeiro, 18 de setembro

de 1850. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br > Acesso em: 04 de mai 2015. 24

Id. Ibid.

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23

território o vazio era absoluto: eram os “campos gerais”, era a floresta, era a

Serra do Mar.25

O ilimitado deserto serviu de base para que fossem introduzidas em

territórios indígenas, colônias de imigrantes europeus colocando os habitantes locais à

parte dessa formação. Além de povoar e preencher o ilimitado deserto, as colônias

deveriam servir na proteção das fronteiras e abastecer as cidades, vilas e povoados por

meio da agricultura. Além disso, uma decisão do Império, um mês após a promulgação

da Lei de Terras, mandou incorporar os próprios nacionais as terras de aldeias de

índios que viviam entre os colonos. 26

Diante deste contexto, encontramos traços na história da ocupação de áreas do

Paraná, ainda no século XIX, que demonstram que o termo “vazio demográfico” foi

apropriado e largamente usado por fazendeiros interessados em terras indígenas que

visavam tanto a exploração de riquezas naturais quanto a acomodação de seus gados

em espaçosos campos, como o exemplo do território ocupado pelos Kaingang na

região do Rio Tibagi. Importa aqui lembrar que, essa região desde tempos imemoriais,

era ocupada pelos Kaingang e após a descoberta de diamantes nas bacias orientais do

rio Tibagi, despertou em diversos grupos, o interesse na exploração desse território.

Desde 1794, a área em que se localizava o centro da comunidade Kaingang,

foi ocupada por Antonio Machado Ribeiro, capitão de mato do Sargento Mor José

Felix da Silva, transformando-se, anos mais tarde, na cidade de Tibagi. No início da

segunda década do século XIX, a região recebeu a visita do próprio José Felix da

Silva, agora com o cargo de tenente-coronel de Milícias, por ter comandado a

expedição final do século XVIII naquela localidade. Esse militar custeou a expedição

para descobrir as riquezas que existissem na região do Tibagi. 27

Alguns anos mais tarde, em 1838, o neto do tenente-coronel, Manoel Inácio do

Canto e Silva, deu continuidade a exploração, mais especificamente nos Campos do

Cacique Inhoó (ou Inhonhô) que seu avô havia "descoberto" alguns anos atrás. No

início da década de 1840, a iniciativa da ocupação dessas terras foi levada adiante por

25

MARTINS, Wilson. Um Brasil Diferente. São Paulo: Ed. Anhembi, 1995, p. 71. 26 MOTA, Lucio Tadeu. Op. cit. p. 41. 27

MOTA, Lúcio T. A Guerra de Conquista nos Territórios dos Índios Kaingang do Tibagi. In: V

Encontro Regional de História - ANPUH-PR, de 10 a 13 de julho de 1996, em Ponta Grossa-PR,

p.196. Disponível em <htpp://www.researchgat.net>. Acesso em 19 de mai de 2015.

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João da Silva Machado, o Barão de Antonina28

. Para empreender tais explorações,

foram comissionados José Francisco Lopes, também conhecido como Guia Lopes,29

e

o marinheiro norte-americano John Henrique Elliot. Passado seis anos, na área de

reconhecimento, em suas andanças pela região do rio de Apucarana, ao subirem a

serra, avistaram a algumas distâncias, os Campos do Inhoó e decidiram “que era

necessário explorá-lo para ver se esses campos eram grandes o suficiente para o

estabelecimento de um depósito e acomodação do gado,30

planejado pelo Barão de

Antonina.

Assim, junto com mais 30 homens, sendo entre eles dois índios que serviram

como guias, partiram a procura do campo e três meses depois de iniciarem a picada

pelas campinas, o encontraram batizando o local com o nome de São Jerônimo, por

estar próximo a cabeceira do rio com esse nome. Esse território pertencia aos

Kaingang que responderam com fogo a invasão. Tal resistência não impediu Guia

Lopes e Elliot de perceberem que o campo era viável para a construção do depósito

projetado pelo Barão, e que para tanto a relação com os indígenas locais deveria de ser

pacificada. Vinte e cinco dias após o conflito com a população nativa, a expedição

retornou ao local com uma ordem expressa do Barão, para que fosse aberta uma rota

que ligasse Curitiba ao Mato Grosso. 31

Guia Lopes, o cartógrafo, e Elliot passaram o final do ano 1847, explorando a

região e navegando pelos rios até o Mato Grosso a procura de uma rota. A partir desta

expedição a região do Tibagi, onde se localizava o Campo do Inhoó, se transformou

em um entreposto comercial, no caminho entre o Mato Grosso e a fazenda do Barão de

Antonina32

, batizada de São Jerônimo, no coração do território Kaingang.

28

Nascido no Rio Grande do Sul, o Barão de Antonina, foi uma figura proeminente do Império, que

teve a sua vida transformada, de simples tropeiro a um notável arrematador de gados nas feiras de

Sorocaba e principal fornecedor desses animais ao exército e a Corte. PRADO JR, Caio. Formação

do Brasil Contemporâneo. 14 ed. São Paulo: Brasiliense, 1976. p.195. 29

TAUNAY, Visconde de (Alfredo d‟Escragnolle Tunay). A Retirada de Laguna: episódio da Guerra

do Paraguai. São Paulo: Melhoramentos. s/d. p.93. 30

MOTA, Lucio Tadeu. As Guerras dos Indios Kaingang... Op. cit. p.197-198. 31

ELLIOT, João Henrique. Itinerário de huma viagem de exploração pelo rios Verde, Itararé,

Paranapanema, e os sertões adjacentes mandado fazer pelo Barão de Antonina. São Paulo:

RIHGESP, 1930. p. 203-267. 32

MOTA, Lucio Tadeu. As Guerras dos Indios Kaingang... Op. Cit. p. 198.

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25

1.3. EM LUTA PELA TERRA: A RESISTÊNCIA INDÍGENA

A construção da fazenda São Jerônimo, deu início a uma resistência por parte

dos Kaingang que passaram a guerrear contra os colonos, conforme pode-se perceber

no relato do Presidente da província, Francisco Liberato:

(...) um grande número de indios, quasi todos guerreiros armados de arco,

flexas e lanças com choupas de ferro, assaltaram a fazenda S. Jeronymo,

estrada para Jathay, invadiram a casa da residencia do administrador, e o

intimidaram a lhes entregar todas as ferramentas, sob pena de ser morto,

servindo de intérprete d‟elles uma indígena velha que falla regularmente o

portuguez. Obedecido, novas exigencias fizeram, e por ultimo aponderaram-

se de tudo, o que encontraram.33

As resistências das populações indígenas no Paraná cresceram e se fortaleceram antes

mesmo da chegada do Barão à região e desde o início do século XIX, os colonos

enfrentaram a reação permanente dos indígenas perante as

vilas que brotavam em suas terras, às fazendas implantadas em seus campos,

aos viajantes, tropeiros, comerciantes, às patrulhas da guarda nacional e

provincial que percorriam suas terras e às tribos colaboracionistas que

insistiam em indicar suas posições e persegui-los 34

No entanto, o ataque a fazenda São Jerônimo, mobilizou as autoridades que,

em 17 de julho de 1859, por intemédio do Aviso da Secretária de Estado dos Negócios

do Império35

, criaram em território Kaingang, o Aldeamento São Jerônimo. Importa

neste momento destacar que, no caso específico dos Kaingang, a luta em defesa por

seus territórios já ocorria desde o século XVIII e a relação conflituosa com os grupos

inimigos ou colaboracionistas, permitiu que estes indígenas desenvolvessem novas

técnicas de resistências, pois

refinaram táticas de luta, aperfeiçoaram formas de atacar e de manter o

inimigo sob pressão, enfim, desenvolveram uma tecnologia de guerra, de

guerrilhas, e de emboscadas e ataques capaz de fazer frente a um inimigo

muito superior a eles36

.

33

Relatório do Presidente da Província Francisco Liberato de Mattos. Relatórios, 7/01/1859, p.2.

Disponível em <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em: 19 de mai de 2015. 34

Id.Ibid, p. 93. 35

Esta Secretaria tinha como atribuição sustentar a ação administrativa da metrópole portuguesa, para

um novo formato, definido pelos princípios do Liberalismo Constitucional que marcou o século XIX.

Disponível em <htpp://www.an.gov.br>. 36

Id. Ibid, p.93.

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26

Por muitos anos, na historiografia foi alimentada uma equivocada ideia de que

os indígenas não se defendiam contra seus invasores e aceitaram a colonização de

forma pacífica. Com a aproximação dos pesquisadores a história cultural, essa linha de

pensamento passou a ser questionada. Na década de 1970, Florestan Fernandes, em

seus estudos sobre os Tupinambá, procurou desmistificar tais ideias, alertando que:

Ainda hoje se mantém o “mito” de que os aborígenes, nesta parte da

América, limitaram-se a assistir à ocupação da terra pelos portugueses e a

sofrer, passivamente, os efeitos da colonização. A ideia de que estavam em

um nível civilizatório muito baixo é responsável por essa presunção.

Todavia, nada está mais longe da verdade, a julgar pelos relatos da época.

Nos limites de suas possibilidades, foram inimigos duros e terríveis, que

lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurança, pela liberdade, que lhes

eram arrebatadas conjuntamente.37

Segundo o alerta de Florestan Fernandes, uma atenção especial, foi dedicada

aos relatos do naturalista e botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que percorreu a

comarca de Curitiba no ano de 1820 e descreveu os fatos ocorridos durante a sua

passagem. Em seus relatos, podemos perceber as investidas indígenas contra fazendas

construídas em seus territórios, não só no vale do Tibagi, mas por toda região dos

Campos Gerais, como a fazenda Boa Vista, propriedade de um abastado coronel de

milícias, o Sr. Luciano Carneiro, nas imediações do rio Jaguariaíva, quase na divisa de

São Paulo, onde ali perto havia uma cruz erguida em memória daqueles que foram

mortos pelos índios38

. Saint-Hilaire, registrou a indignação do coronel frente aos

constantes ataques indígenas da população nativa. De acordo com o viajante:

O coronel queixava-se da vizinhança dos índios inimigos, que, por vezes,

atacavam as casas dos paulistas. Como a população branca, desde algum

tempo, viesse diminuindo, (...), os selvagens iam-se tornando cada vez

mais atrevidos, e a seca de 1819, da qual também sofreram os tristes

efeitos, mais contribuiu para aumentar a sua audácia. Recentemente,

haviam eles invadido os campos de propriedade do coronel, tendo morto

alguns cavalos e comido a carne, o que nunca tinham feito até então.

Poucos dias antes de minha chegada a Jaguariaíba, foram vistos a rondar

37

FERNANDES, Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. São Paulo:

EDUSC, 1970, p.182. 38

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Comarca de Curitiba (1820). São Paulo: Ed. Nacional,

1964, p.45.

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27

pela vizinhança da casa, e o coronel, imediatamente, ordenou a vinda de alguns soldados, a fim de persegui-los.

39

Os soldados enviados e bem armados, continuou Saint-Hilaire, perseguiram a

cavalo as pegadas dos índios por dentro das matas, e as seguiram até o acampamento.

Quando os encontraram abriram fogo contra o grupo, que fugiu já pronto para armar

uma emboscada. Cientes das intenções indígenas, os soldados tomaram outros atalhos

para regressar, evitando assim, o mesmo caminho, para preservar a missão e,

sobretudo as suas vidas. 40

Na década seguinte, quando os campos de Guarapuava, ou Coranbang-rê

como os índios locais o chamavam, já haviam sido ocupados pelos brancos, os

Kaingang ali residentes migraram para a região de Palmas, a fim de se refugiar.

Porém, os fazendeiros da região procurando novas pastagens, voltaram a sua atenção

para esses campos. Mesmo sabendo dos riscos que corriam, investiram na apropriação

dessas terras, fundaram uma povoação e deram início a novas áreas para pastagens

expulsando novamente os indígenas do local e acirrando ainda mais a rivalidade já

existente. Os Kaingang, por sua vez, enfrentaram as delações de indígenas convertidos

pelos religiosos, que como será abordado no decorrer desse trabalho, contribuíram

para expandir a inimizade entre as populações nativas. 41

Dessa forma, podemos inferir que a primeira metade do século XIX

apresentou como pano de fundo, violentas lutas travadas entre brancos e população

nativa, nas disputas e defesas por terras e até mesmo entre diferentes grupos indígenas

que, nesse cenário, se tornaram rivais, não sabendo se a melhor opção era entregar

seus bens e se renderem para tentar sobreviver em paz ou fortalecer suas resistências e

aprimorar seus combates, para viver em guerra com o que restava de sua dignidade.

Em 1853, com a criação da Província do Paraná, entre os relatos do primeiro

presidente, no início de sua administração, podemos perceber a sua preocupação com

conflitos entre a população branca e os indígenas:

39

Id. Ibid, p.45. 40 MOTA, Lúcio Tadeu. As Guerras dos Indios Kaingang... Op.cit, p. 140 41

Id. Ibid, p.142.

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No primeiro de fevereiro do corrente anno, huma porção de índios selvagens,

dos que percorrem o immenso sertão, que há entre o Paranã e o minicipio de

Guarapuava, tendo assaltado a fazenda do Alferes Domingos Florianno

Machado, matou-ó e a oito pessoas de sua família, ferio gravemente a mais

cinco, e, levando comsigo o que na casa havia de mais valor, o resto

entregou à devastação e à ruína.42

De acordo com o relatório, a fazenda situada na orla do campo era vizinha dos

bosques onde ficavam os indígenas, que sempre a visitavam e recebiam presentes

como forma de consolidar uma amizade. No dia do ataque (06/02/1854), o fazendeiro

Domingos Machado, assim que avistou os índios na sua propriedade, saiu como de

costume, sem nenhuma cautela para recebê-los, com seus “mimos” como sempre fazia.

Mas em uma ação rápida, foi ferido mortalmente por seus visitantes que colocaram

um fim prematuro à sua vida e a de sua família. Um dia depois, na fazenda de José

Nogueira do Amaral, a quatro léguas da fazenda de Domingos Machado, ocorreu outro

ataque dos indígenas, mas nessa ocasião, as pessoas que se encontravam na casa,

puderam se defender e espantar os agressores antes que houvesse outro fim trágico.

Após descrever os acontecimentos, o presidente explicou que "por occasião de tão

triste acontecimento (...) pedio-se a presidência a creação de huma delegacia de policia

naquelle ponto e hum destacamento de primeira linha em substituição das praças da

guarda policial (...) ali chamadas á serviço". 43

Para proteger os colonos, foi dada ordem à força pública que percorresse as

áreas onde se concentravam as fazendas e não mais ficasse concentrada na vila como

era de costume, pois lugares distantes do povoado eram mais suscetíveis aos ataques

indígenas. No entanto, as áreas das fazendas avançavam cada vez mais em território

kaingang e os indígenas quando não conseguiam se organizar em sua defesa fugiam

para lugares mais distantes a fim de se protegerem.

Com as mortes ocorridas devido aos ataques, muitos fazendeiros abandonaram

suas terras, enquanto outros decidiram lutar contra a perseguição. Entretanto, frente a

constantes investidas, foram obrigados a deixar a região. Ainda em 1855, persistiram

os ataques,

42

Relatório do Presidente Zacarias de Goes e Vasconcelos. RELATÓRIO, 15/07/1854, p. 3. Arquivo

Público Paranaense. Disponível em <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 19 de mai. de

2015. 43

Id. Ibid. p.6.

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(...) uma vez na fazenda do capitão Hermogeneses Carneiro Lobo Ferreira,

districto de Palmas, e outra na do cidadão Francisco Ferreira da Rocha

Lourdes, districto daquella Villa, factos que trazem sobressaltados os

fazendeiros em geral, que habitão aquella parte da província.44

Os fazendeiros, por sua vez, contavam com o apoio de Viry, o cacique do

aldeamento de Palmas, que prestava importante serviço de proteção a população contra

os índios resistentes. E por esse motivo, o presidente da província permitiu que fosse

entregue aos índios do cacique Viry, algumas armas e munições. 45

A situação conflitante permaneceu até o ano de 1859 que, aliás foi marcada

por muitos fatores, como por exemplo, a incursão dos Xocleng, tribo inimiga dos

Kaingang no sul da província. Nos anos que se seguiram, a região continuou

convulsionada, como apontou o relatório do presidente Francisco Liberato de Mattos,

sobre Tranquilidade Pública e Segurança Nacional, ao mencionar que há três léguas

da "Colônia Thereza tinha ido colher mate no Herval, (...), uma família composta por

dois homens, uma mulher e seu inocente filho, quando apareceram os selvagens, e os

sacrificaram ao seu furor". 46

O ataque dos selvagens à família deixou a população da Colônia Thereza

agitada e aumentou os sentimentos de medo e insegurança, fazendo com que muitos

colonos fugissem do local e se refugiassem em lugares mais seguros47

. As ações dos

Kaingang iam além dos campos de Guarapuava e cidades como Castro, por exemplo,

também foram alvos de ataques registrados pelo presidente que, indignado relatou que

índios armados de arcos e flechas com ferro na ponta, invadiram a fazenda São

Jerônimo e renderam o administrador, ameaçando-o de morte caso não entregasse as

ferramentas. Uma velha índia serviu de intérprete enquanto os demais assaltavam a

residência. Na primeira oportunidade o administrador refugiou-se na fazenda

Fortaleza, conhecida como um local seguro, onde encontrou o mineiro sertanista

44

Relatório do vice-presidente Theofilo Ribeiro Rezende. RELATÓRIO 01/05/1855, p. 10. Arquivo

Público Paranaense. Disponível em <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 19 de mai de

2015. 45

Id. Ibid. p. 141. 46

Relatório do presidente Francisco Liberato de Mattos. RELATÓRIO 07/01/1859, p.11. Arquivo

Público Paranaense. Disponível em <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 19 de mai de

2015. 47

Id. Ibid.p.12.

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30

Joaquim Francisco Lopes, que foi ao encalço dos índios em São Jerônimo com

presentes para acalmá-los. 48

Tal afirmação pode ser comprovada também nos registros do engenheiro

inglês Thomas Bigg-Wither que, ao passar na região, relatou que a fazenda Fortaleza

servia como fortificação e ponto de encontro para reuniões com o objetivo de discutir

medidas a serem tomadas contra os indígenas. Antes da implantação da fazenda nesse

local, os indígenas davam muito trabalho aos moradores, pois atacavam tanto de dia

quem ficava na roça, quanto à noite os ranchos de madeira onde moravam. A fazenda

era vigiada dia e noite, por nela serem armazenadas armas e munições destinadas a

caçar os índios. Informados sobre esse "barril de pólvora", os Kaingang objetivaram

destruir o local, e para tanto não mediram esforços. De acordo com Bigg-Wither o

último ataque foi tão violento,

(...) que os defensores não tiveram tempo de carregar as armas pelo processo

moroso e habitual. Cada dois homens, portanto, fazia um montão de pólvora

no chão, entre eles, e assim carregavam e atiravam com maior rapidez

possível. A luta prosseguiu durante a noite, por parte dos índios, com gritos

demoníacos, setas incendiadas e, por parte dos defensores, como homens

cujo destino estava nas próprias mãos. Por fim, amanheceu o dia e la no alto

da colina que dominava o forte, na claridade matinal, via-se a figura do

cacique acenando, para que os seus guerreiros, vencidos, abandonassem a

luta49

.

Embora vencedores, os colonos exigiram do Governo imperial que fosse

autorizada a criação de um aldeamento indígena a oeste de Guarapuava e de Palmas,

sendo esse pedido atendido em 1860, dois anos após a solicitação. Porém, após um ano

o aldeamento foi extinto e a região continuou "sob o controle indígena, e de alto risco

para os que alí se aventuravam estabelecer propriedades". 50

O vice-presidente da província, Sebastião Gonçalves da Silva, descreveu os

acontecimentos dos primeiros dias de julho de 1863, em que os territórios a oeste de

Guarapuava tornaram-se palco de novas guerras. Nesse período, cerca de cem

indígenas entraram armados na casa de Joaquim Freitas, no distrito de Guarapuava. As

48

MOTA, Lúcio Tadeu. As Guerras dos Indios Kaingang... Id. Ibid, p.174. 49

BIGG-WITHER, Thomas. Novo Caminho no Brasil Meridional: A Provincia do Paraná, três anos

de vida em suas florestas e campos – 1872/1875. Rio de Janeiro: J. Olympio; /Curitiba/ : UFPR,

1974,p. 180. 50

MOTA, Lucio Tadeu. As Guerras dos Indios Kaingang... Op. Cit. p.174.

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31

pessoas que ali se encontravam tentaram se esconder como meio de defesa, mas os

índios estavam em grande alvoroço, sendo os seus gritos ouvidos pelos vizinhos, entre

eles, Manoel Pereira do Valle, que se dirigiu até a casa, e tentou chamar os selvagens

a sentimentos pacíficos. Pensando que já tinha conquistado tal confiança, Manoel

Pereira foi ferido pelas costas por uma flecha e fugiu a cavalo na busca pela

conservação de sua vida. No caminho encontrou algumas pessoas a quem relatou o

fato e essas quando chegaram ao lugar indicado, não encontraram os índios que já

haviam fugido para o mato.51

Em outros documentos emitidos pelo Diretor Geral dos Índios52

ao vice-

presidente, pode-se perceber que na região continuaram a ocorrer acontecimentos

semelhantes aos ataques à casa de Joaquim Freitas. No oficio de 19 de julho 1864, por

exemplo, foi comunicado que os índios haviam assassinado onze pessoas da família

Nogueira quando essas colhiam uma roça no Chagú, localizada a vinte léguas da vila

de Guarapuava, sendo as vítimas, duas mulheres, três homens e seis meninos53

. No

relato, o diretor relembrou o caso semelhante que ocorreu em 1859, na fazenda de

Domingos Machado que, como já citado, foi finalizado com a morte de oito pessoas da

família. Tais relatos demonstram como a insegurança era evidente entre os moradores.

Por esta razão, as autoridades no afã de reverter a situação, providenciaram para a Vila

de Guarapuava, 20 praças da Guarda Nacional, com armas e munições, para assim

reforçar a segurança dos moradores e tentar impedir novos ataques.

51

Relatório do vice-presidente da província, Sebastião Gonçalves da Silva. RELATÓRIOS,

21/2/1864, p. 30. Arquivo Público Paranaense. Disponível em

<htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 14 de fev. de 2015. 52

Ao Diretor Geral dos índios era atribuída a função de aldear os indígenas que se sujeitassem,

incentivá-los à agricultura, introduzindo gradualmente o sistema de relação social almejado pelo

Estado. Cabia ao Diretor também puni-los por seus "crimes e insubordinações", exercendo a "justiça"

dentro do aldeamento. AGUIAR, José Otávio. Revisitando o tema da guerra entre os índios Puri-

Coroados da Mata Central das Minas Gerais nos Oitocentos: Relações com o Estado,

Subdiferenciações Étnicas,Transculturações e Relações Tensivas no Vale do Rio Pomba (1813-

1836).In: Revista Mnemosine. v.1, n.2, jul/dez. Campina Grande: UFCG, 2010. Disponível em:

<htpp://www.ufcg.edu.br>. Acesso em: 05 de nov 2014. ISSN: 22373217. 53

Relatório do vice-presidente da província, Sebastião Gonçalves da Silva. RELATÓRIOS,

21/2/1864, p.30. Arquivo Público Paranaense. Disponível em <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>.

Acesso em 15 de out. de 2014.

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Além dos Relatórios, as anotações de Bigg-Wither são reveladoras quanto as

formas de investidas realizadas pelos Kaingang. Contando com o apoio de um índio

Caiuá, o viajante registrou as seguintes informações:

Os Caiuás e os brasileiros que, nessa ocasião

Estavam em guerra contra os coroados, tinham

acamapdo numa pequena clareira aberta na

floresta, quando antes da madrugada o vigia deu o

alrme da furtiva aproximação do inimigo, que os

ouvidos apurados tinham percebido pelo quebrar

de um graveto ou o sussurro de folhas na mata.

Dado o alarme, imediatamente um grito agudo de

uma explosão de vozes adiante, na floresta, na

retaguarda deles. A maioria do grupo, pensando

que o ataque viesse daquele lado, se volutou e se

preparou para oferecer resistência à agressão

esperada naquela direção. Alguns homens mais

experimentados, porém, suspeitando da russe –

tática natural do índio coroado é não dar sinal da

sua aproximação até que esteja junto do inimigo –

ficaram de olhos e ouvidos voltados para o lado

de onde os primeiros ruídos suspeitos procediam.

Devagar e cautelosamente arrastando-se cada vez

mais próximos, os seus movimentos, quase

abafados pelo tumulto vindo do lado oposto e,

como eles sem dúvida pensavam, naõ suspeitados

pelas iludidas vítmas, o cacique coroado e seus

guerreiros estavam efetivamente se aproximando

deste lado, para cair sobre a retaguarda de seus

inimigos enganados pela gritaria feita. [...] A

primeira gritaria tinha sido feita pelas mulheres,

treinadas para ajudar os seus senhores e mestres

na batalha. No transcurso da luta, que durou até o

dia clarear, as mulheres, bem escondidas na

floresta, continuavam a apoquentar e confundir os

brasileiros com seus alaridos e rebates falsos. 54

Por esse relato podemos perceber e confirmar a estratégia de luta dos

Kaingang que, como já comentado, contavam com a ação das mulheres do grupo para

confundir os inimigos com simulações de gritos, o objetivo de obterem inúmeras

vantagens em suas investidas contra aqueles que invadiam os seus territórios.

Os ataques as fazendas e residências de moradores da região, apresentavam-se

como forma de resistência, uma maneira de afugentá-los de seus territórios, que muitas

vezes deu certo, já que a população se sentia totalmente ameaçada pela presença dos

54 BIGG-WITHER, Thomas. Op. Cit.. p. 295.

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33

“selvagens”. Embora a estratégia Kaingang tenha persistido nos anos seguintes, essa

não foi a única forma de resistência por eles encontrada e à medida que a sociedade

branca estreitava relações com o grupo, ele foi desenvolvendo novas técnicas de

combate.

Podemos inferir nesse momento que o desenvolvimento dessas novas técnicas

está relacionado a uma re-interpretação do grupo, pois se percebe um dinamismo das

práticas de combate em que elementos fundamentais do passado se inscreveram,

somando-se a novos elementos, de forma a mostrar que a tradição não é estática, pois

como nos alerta Marshall Sahlins:

Os esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou

menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. A

síntese desses contratos desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos

históricos, ou seja, das pessoas envolvidas.55

Mesmo com anos de convivência, direta ou indireta com os brancos, os

indígenas preferiam manter distância, levando muitos colonos a criarem uma visão

deturpada sobre esses povos, como se pode constatar no relato do presidente José

Feliciano Horta Araujo: "Enquanto o indígena puder evitar o contacto com o homem

civilisado, fal-o-ha. É preciso por obstáculo á satisfação do instincto que o leva a ser o

que é". 56

Não sabia, ou não queria saber o presidente, que os territórios para os

indígenas, e neste caso específico para os Kaingang, era a única condição de vida para

eles, não só pelo fator material, mas no sentido de que toda sua forma de vida se

desenvolve dentro desse ambiente. Gersem Luciano dos Santos, indígena do povo

Baniwa no Amazonas, nos traz uma clara descrição do significado de território para as

populações indígenas. Segundo o antropólogo, para os indígenas território é “(...) um

conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a

possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva”. 57

Histórica e culturalmente, o

55 SAHLINS, Marshall. Ilhas da História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p.7. 56

Relatório do presidente José F. Horta Araujo. RELATÓRIO 15/02/1868, p.41. Arquivo Público

Paranaense. Disponível em <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 9 de maio de 2014. 57

SANTOS, Gersem Luciano dos (Baniwa). O Índio Brasileiro: O que você precisa saber sobre os

povos indígenas no Brasil de hoje. Série via dos sabers nº1, novembro, 2006. Brasilia: Coleção

Educação para todos. p.100.

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território é o ponto crucial da identidade indígena, e sob esse aspecto, todas as

comunidades se mobilizaram para defender o bem que é comum a todos: o território.58

No entanto na visão de Horta Araújo, era preciso vencer a resistência indígena

e submetê-los a um modo de vida que se enquadrasse na sociedade envolvente. Assim

sendo, a ideia de enviá-los para aldeamentos, era a melhor forma de “civilizá-los”,

independente da relação que os indígenas mantivessem com suas terras originais.

2. POLÍTICAS INDIGENISTAS: UM PROJETO EXCLUDENTE

2.1. PROJETO CIVILIZADOR: A TENTATIVA DE SUJEIÇÃO DOS INDÍGENAS

PERANTE A CRUZ, O TRABALHO E A PERDA DO TERRITÓRIO.

Todos os dias da semana, acaba a oração, se dirá

logo uma missa que possam ouvir os índios antes

de irem às suas lavouras [...] a qual acabada se

ensinarão aos índios as orações ordinárias [...].

Acabada essa doutrina irão todos os nossos para

a Escola [...] aonde os mais hábeis, se ensinarão

a ler e a escrever [...] e quando menos, se

ensinará todos a doutrina cristã [...].

Padre Antonio Vieira

No período colonial, povos indígenas e aldeamentos foram objetos de estratégias

para implantação do Cristianismo ministrado por jesuítas. Com a expulsão desses

religiosos em 1759, pelo Marquês de Pombal, esse trabalho ficou comissionado a

outros missionários, como por exemplo, os capuchinhos. Além disso, a ideia de

civilização que desde o século XVIII influenciava inúmeros corações e mentes,

ganhou força no século XIX e no caso específico do Paraná, atingiu os Kaingang,

objeto desta pesquisa.

É importante neste momento destacar que, desde a segunda metade do século

XVIII, mudanças legais haviam operado no cenário das políticas indigenistas e não era

mais só por meio das Guerras Justas 59

que se elaboravam estratégias para a

58

SANTOS, Gersem Luciano dos (Baniwa). Id. Ibid. p.101. 59 Doutrina de guerra fundamentada em um conjunto de regras de condutas que definiam em quais

condições as guerras era ou não moralmente aceitáveis. Esse termo foi cunhado por Agostinho de

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subordinação dos povos, embora essa prática tenha voltado à cena no início do século

XIX. Assim sendo, essa realidade não poderia imperar de forma generalizada em um

território tão vasto e as populações indígenas não poderiam ficar debaixo do mesmo

manto estatal de forma homogênea. Para tanto foi promulgado o decreto 426 de

24/07/1845, conhecido como Regulamentos das Missões, que possuía um caráter

basicamente administrativo, ao regulamentar a constituição dos aldeamentos. Por

intermédio do Regulamento, os indígenas foram colocados em sujeição ao trabalho,

com o objetivo que assimilassem a cultura branca, ou seja, com a finalidade de

transformá-los em trabalhadores com novos costumes (trabalho) e necessidades

(roupas, mercadorias, etc). O Regulamento foi seguido pelas várias Províncias por um

longo período.60

No Paraná, já emancipado, o primeiro presidente Zacarias Góes de

Vasconcelos, deu início ao seu empreendimento nos aldeamentos indígenas

nomeando, em 1854, Manoel Inácio do Canto e Silva, abastado estanceiro de Castro,

para administrar o aldeamento de Palmas, o único que estava regularmente ativo. O

pedido de missionários para os aldeamentos havia sido realizado e segundo consta no

Relatório daquele ano, teve início “uma nova fase”, visando “tornar as missões

manifesta, com grande utilidade para a „civilização‟ dos indígenas"61

. As autoridades

estavam certas que o trabalho ao qual os missionários estavam encarregados de

assumir dentro dos aldeamentos, atingiria o objetivo proposto, pois acreditavam no

poder que a religião poderia exercer sobre as hordas selvagens e por este motivo o

governo chegou a prometer honorários aos missionários que ficassem responsáveis

pela evangelização, como forma de dignificá-los pelo "ato de amor ao próximo" ao

ensinar aos pagãos o verdadeiro rito cristão.62

Hipona (354-430), e aplicada de duas maneiras fundamentais: quando ela tem uma autoridade

adequada e a a causa adequada. Esse termo foi frequentemente usado para justificar as Cruzadas.

Disponível em: <htpp://www.ufgrs.com>. Acesso em 4 de nov. de 2014. 60 RAIA, Simone. Política Indigenista no Século XIX: O Caso do Aldeamento Indígena São Pedro de

Alcântara. Curitiba: UFPR, 1999. Disponível em: <htpp://www.historia.ufpr.br>. 6 de out. de 2014. 61

Relatório do presidente Zacarias Goes e Vasconcelos, RELATÓRIO de 8/02/1855. In: Arquivo

Público Paranaense, disponivel em: <htpp:// www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 08 de set de

2014. p.45-46. 62

Relatório do presidente Zacarias Goes e Vasconcelos, Id. Ibid. p.46.

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De acordo com os documentos de 1856, estimava-se que cerca de 10 mil

índios viviam por todo território da Província, porém os religiosos não estavam

conseguindo dominar esse contingente de “selvagens” na base da catequização, pois os

consideravam rudes demais e por não se "civilizarem", os indígenas representavam

cada vez mais uma ameaça à população nos arredores dos sertões onde viviam63

.

Importa salientar que, neste período, as autoridades buscavam reduzir o número de

“índios selvagens” e procuravam alcançar tais objetivos de três formas: conquista,

catequese e civilização. A primeira com interesses políticos, visava a expansão de

domínio territorial, a segunda enquanto um atributo da religião, e a terceira como

resultado da indústria. 64

Para a Província que emergia, era fundamental integrar os indígenas na nova

sociedade, e para tantoinvestiu-se mais no processo de "domesticação", pois os

“selvagens e agressivos” índios se fossem detentores de princípios religiosos,

adquiririam uma personalidade de mansidão.65

Em 1859, o então presidente Liberato Matos levantou alguns dados sobre os

425 indígenas aldeados em toda Província e sob o tema Catechese e civilização dos

índios, descreveu os pormenores:

Na freguesia de Palmas, sob o comando do cacique Virí, ha 215, sendo so

sexo masculino, e maiores de 16 annos, 102 - e do fenimino 68; e menores

de ambos os sexos 45. Na mesma freguesia, residindo no Xapecó, sob o

comando de Vitorino Condá, existem 48; destes, 10 do sexo masculino, 15

do feminino, e 13 menores, de um ou outro sexo.66

Complementando esses dados, Liberato Mattos registrou que no Aldeamento

de São Pedro de Alcântara, havia “154 indígenas, sendo 34 do sexo masculino, 55 do

sexo feminino, e 65 menores de ambos os sexos”, afirmando que nesse aldeamento, os

63

Relatório do Vice-presidente Beaurepa Ire Rohan. RELATÓRIO de 1/03/1856. In: Arquivo Público

Paranaense, disponivel em: <htpp//: www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 08 de set de 2014,

p.49 64

Relatório do Vice-presidente Beaurepa Ire Rohan. RELATÓRIO de 1/03/1856. In: Arquivo Público

Paranaense, disponível em: <htpp//: www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 08 de set de 2014,

p.50. 65

Id.Ibid. p. 47. 66

Relatório do Presidente Liberato Matos. RELATÓRIO de 7/01/1859. In: Arquivo Público

Paranaense, disponível em: <htpp//:www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 10 de set de 2014,

p.12.

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indígenas plantavam e recebiam uma espécie de “salários” pelos serviços que

prestavam e que segundo o diretor Castelnuevo, eles se contentavam com qualquer

retribuição67

. A catequese ministrada nesses estabelecimentos era de suma importância

– visto que ainda havia bastante "hostilidade" por parte daqueles "índios" que se

recusavam a se aldear – e servia como uma mediadora entre os indígenas e os "bons

costumes".68

Com esta ideia o presidente nomeou uma comissão composta pelo

brigadeiro Francisco Ferreira da Rocha Lourdes, e dois cidadãos, Pedro de Siqueira

Cortes e Joaquim Antonio de Moares Dutra, para explorar os sertões e definir a

melhor área para o estabelecimento de um novo aldeamento, com o objetivo de

chamar a vida civilisada o maior número possível de selvagens 69

. Contrária ao uso da

força e da violência, a catequese era uma opção de adequação dos indígenas a essa

sociedade moderna em transformação70

.

Compartilhando das considerações de Michel Foucault sobre a

governamentalidade , as autoridades quando se preocupam em manter-se no poder,

levando em consideração apenas o território e os súditos de maneiras genéricas, geram

um bloqueio na arte de governar. Com base nesse pressuposto podemos constatar que

esse tipo de governamentalidade vigorava no atual Paraná antes de 1853. Após a

emancipação, ocorreu uma espécie de desbloqueio dessa arte de governar, sobretudo

quando, o governo deixou de focar somente na expansão territorial e começou a

observar os problemas emergentes gerados por essas expansões, passando a se

preocupar com a segurança, a modernização e o desenvolvimento das áreas

governadas. Dessa forma, a disciplina, a soberania e a gestão governamental, se

tornaram os pilares que sustentaram essa nova organização da instância do poder que,

nas palavras de Foucault, referem-se a Arte de Governar.71

67

Relatório do Presidente Liberato Matos. RELATÓRIO de 7/01/1859. In: Arquivo Público

Paranaense, disponível em: <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 10 de set de 2014,

p.13. 68

Id.Ibid, p.14. 69

Id.Ibid, p.14 70

A Revista do Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (IHGB) e as Populações Indígenas no Brasil

do II Reinado (1839-1889). In: Diálogos, v. 10 n. 1, Maringá: DHI/PPH/UEM, 2006. Disponivel em:

<htpp://www.ihgb.org.br>. Acesso em: 02 de set. de 2014. p.135. ISSN: 0102-6909. 71

FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade. In: A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,

1976. p. 277-293.

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Retomando a questão indígena, com base no Regimento das Missões, que

desde 1845 regulava os aldeamentos de índios em todo território nacional, os

missionários, que muitas vezes também eram os diretores deveriam ensinar aos nativos

cursos primários, para que assim pudessem assimilar as letras da nova língua e

conseguissem mais tarde aprender a ler e a escrever. O conteúdo didático do ensino

ministrado constava no artigo 6.º do Regulamento, assim como o objetivo proposto

que nada mais era do que a conversão a fé católica, por meio dos ensinamentos da

doutrina cristã sem o emprego da força física ou da violência, mas pela força da

persuasão, convencendo os pais a batizarem seus filhos por meios brandos e

suasórios.72

Porém, todo esforço realizado para catequizar os indígenas e fazer com que

eles frequentassem uma escola secular fracassaram e o aldeamento de São Pedro de

Alcântara, tornou-se um exemplo desse fracasso após a morte de Castelnuevo (1895),

enfraquecendo até chegar a sua extinção em 1900, quando foi anexado à Colônia

Militar de Jathay. Apesar dos esforços para se cumprir o que determinava o Regimento

indigenista, enquanto o aldeamento ainda vigorava, a verba para a escola destinou-se a

beneficiar somente os filhos dos colonos. Esse fato também prejudicou a escola do

aldeamento de São Jerônimo que atendia crianças e adultos não-índios. Fracassos a

parte, o Estado continuou a considerar a educação formal para os índios, sinônimo de

catequese e a ideia de inserção à nova cultura seria reforçada por meio do trabalho.73

Assim sendo,

a montagem da escola nos aldeamentos indígenas procurava atender essa

demanda: sedentarizar, mudar os hábitos, obter a conversão dos índios ao

catolicismo e ao trabalho eram atribuições que se afinavam com a prática da

educação (...), a eficácia da conversão católica na domesticação dos

selvagens: a escola e a catequese dos índios eram o meio para a obtenção de

trabalhadores.74

A entrada dos missionários capuchinhos nas missões de civilização e

catequese nos aldeamentos pode representar bem a ânsia de atender demandas

72CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. Mito, história, etnicidade. São Paulo,

Brasiliense, 1992. p.193. 73

Id.Ibid.. p.136. 74MOTA, Lucio Tadeu. As Guerras dos Indios Kaingang... Op. cit.. p.153.

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seculares. Por isso, muitas vezes, catequese e escola foram confundidas ou viraram

sinônimos perante ao governo como prestadores da ordem pública.

O frei Luis de Cemitille relatou como encarava a importância da catequização

dos índios que viviam no aldeamento São Jerônimo que administrava:

Algumas pessoas talvez pensem que é pura perda de tempo gasto em coligir

estas notícias e que eu poderia ter empregado mais vantajosamente as

minhas horas desocupadas (...) desejo, porém, que se lembrem que cada um

procede como entende a este respeito; porque aquilo que a uns parece

supérfluo, aos outros não só parece útil, como também necessário para poder

civilizar os índios ainda bravios; e mesmo tudo que se puder colher acerca

dos costumes deste primogênitos do solo americano, será de grande utilidade

para a história futura. Tempo virá que os nossos descendentes duvidarão da

existência de uma raça de homens que viviam em estado de natureza a mais

completa”.75

Mesmo com a expressa disposição em civilizar os índios ainda bravios, o frei

Cemitille encontrou grandes barreiras a serem vencidas na catequização dos indígenas

locais, incluindo os Kaingang, pois percebeu que os rituais tinham grande importância

na vida deles, principalmente pelo apelo a cosmologia Kamé e Kairu, e portanto,

segundo o frei, quando o assunto se tratava de conversão ao catolicismo o interesse

dos índios ao se aldearem, não se concentrava na religião cristã e sim nas mercadorias

fornecidas a essas comunidades.76

Nesse sentido, pode-se afirmar que, como indicou a

antropóloga Marta Rosa Amoroso, as conversões ocorreram pela via do materialismo

que se ofereciam aos indígenas pacificados e não pelo interesse verdadeiro na nova fé

cristã. 77

Outra dificuldade que os missionários encontravam na catequização dos

indígenas, foi em relação a comunicação, visto que não dominavam a língua de seus

subordinados, 78

fator que criava obstáculos na criação de argumentos para trazê-los à

conversão. Além disso, as tradições xamânicas permaneciam muito fortes entre os

75 Esta Memória, publicada pela primeira vez em 1882, e posteriormente apresentada na XXVI

Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais – de 22 a 26 de Outubro de 2002, GT: Povos

Indígenas - “Saberes coloniais, práticas de mediação e processos de construção da alteridade,

coordenado por João Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ) e John Manuel Monteiro

(UNICAMP). Disponível em: <htpp:// www.portalanpocs.org>. Acesso em 14 de set de 2014, p.7. 76 AMOROSO, Marta. Entre os Selvagens do Brasil: Ensaios e Memórias dos Frades Capuchinhos

sobre os Aldeamentos Indígenas do Império (1844-1889), 1998. p.8 77

Id. Ibid. P.8. 78

Só os Kaingang, segundo a linguista e missionária UrsulaWiesemann, classificam-se em cinco

dialetos, diferenciados pelo regionalismo, que inclui São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Disponível

em: <htpp://www.pib.socioambiental.org>. Acesso em 14 de set de 2014.

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Kaingang, 79

dificultando ainda mais o trabalho dos missionários. Esses obstáculos

tornaram-se um grande problema para o governo, pois como já citado, a catequização,

dentro dos aldeamentos era um requisito das novas políticas aplicadas aos povos

"selvagens".

Vislumbrando os índios como um obstáculo para a consolidação de um estado

moderno, o governo adotou uma política que propiciava a incorporação dos indígenas

em novos espaços territoriais demarcados, utilizando como base o Regulamento das

Missões. 80

A promulgação da Lei 601 de 18/09/1850, a Lei de Terras, reafirmou a

conveniência do assentamento das “hordas selvagens”, regulamentando o confisco de

terras indígenas sob a alegação de que os mesmos quando em contato com a população

nacional, perdiam o direito às terras que habitavam. De acordo com a Lei, para o

aldeamento, seriam reservadas áreas dentre as terras devolutas, ressaltando em seu

terceiro artigo que as “terras devolutas” seriam:

1) As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional

ou provincial ou municipal;

2) As que não se acharem sob o domínio particular por qualquer

título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras

concessões do Governo geral ou províncial, não incurso em

comisso, por falta das condições de mediação, confirmação e

cultura;

3) As que não se acharem dadas por sesmarias ou outras

concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso,

forem revalidadas;

4) As que não se acharem ocupadas por posses que, apesar de não

se fundarem em título legal, forem legitimadas. 81

No Paraná após 1853, o governo adotou os ditames da lei, além de medidas

que efetivaram a ocupação das terras pertencentes aos indígenas e a ação central dos

presidentes, concentrou-se na "pacificação" dos milhares de indígenas que allí

79 Os Kaingangs, nos dias atuais preservam os registros mitológicos e compartilham crenças e práticas

acerca de suas experiências e rituais, principalmente o ritual aos mortos, uma tradição muito presente e

de incontestável valor estruturante na cosmologia Kaingang. <http:// www.pib.socioambiental.org>.

Acesso em 14 de set de 2014. 80

CANIELI, Dulce Helena. As Populações Indígenas nas Narrativas das Autoridades Provinciais do

Paraná. Maringá: UEM, 2001. Disponível em: <htpp//:www.nou-rau.uem.br>. Acesso em 15 de fev.

de 2014. p.53. 81

CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislação Indigenista do Século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992,

p.66.

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andavam como errantes e bárbaros82

. Dessa forma, entendiam as autoridades que

conseguiriam alargar as fronteiras e dominar estes outros grupos ao impor seu modo

de vida, para atingir o progresso nacionalizador no enorme sertão que necessitava ser

modernizado83

. Com essa justificativa foram instalados os aldeamentos, como forma

infraestrutural, pois estes serviriam como fonte de abastecimento e de mão-de-obra,

uma vez que submetiam os indígenas à agricultura, para que assim aprendessem a

viver de forma "civilizada e longe da barbárie", tentando transmitir a ideia de uma

nova condição social, 84

afinal havia

(...) a necessidade de promover, pela colonização a cultura de tanto terreno

desperdiçado, e de chamar a civilização milhares de indígenas que alíandão

errantes e barbaros, pedem que o governo da nova província approxime-se,

quanto seja, possível desses lugares onde tamanhos interesses tem à

fiscalizar superintender.85

Assim a política indigenista esteve inteiramente ligada ao crescimento do

território visando prosseguir com o processo de modernização, como registrou em

1854, o presidente Zacarias Góes e Vasconcelos:

N‟este empenho importante acompanhei a crença geral de que a grandeza

furura da província pende muito do maior desenvolvimento da catechese.

Convicto de que só ao evagelho e a cruz dado reduzir tantas hordas errantes

e bravias, dirigi-me logo ao governo imperial solicitando-lhe a vinda de

catechese. 86

Entre 1853 e 1889, poucos foram os presidentes do Paraná que não

desenvolveram ações em relação aos indígenas e a “civilização” por meio da catequese

nos aldeamentos, conforme podemos constatar nos quadros a seguir:

82

Relatório do presidente Zacarias Góes e Vasconcelos. RELATÓRIO15/07/1854. In: Arquivo

Público Paranaense. Disponível em: <htpp//:www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 10 de set de

2014, p.28. 83

Id. Ibid. p. 57 84

Id. Ibid. p. 63. 85

Relatório do presidente Zacarias Góes e Vasconcelos. RELATÓRIO 15/07/1854. In: Arquivo

Público Paranaense, disponível em: <htpp//: www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 06 de out. de

2014, p.10. 86

Relatório do presidente Zacarias Góes e Vasconcelos. RELATÓRIO 15/12/1854. In: Arquivo

Público Paranaense, disponível em: <htpp//: www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em 06 de out de

2014, p. 10.

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Quadro II - O Serviço da Catequese e Civilização dos Índios na Província do Paraná 1853-

188987

Presidente e Vice-Presidentes Emitiu opnião

sobre as

populações

indígenas

Os Relatórios só

contêm

informações

sobre as

populações

indígenas

Concordava com o

serviço da catequese

proposto pelo

Governo Imperial

Zacarias de Góes e Vasconcelos

(1853-1855) √ √ √

Theofilo Ribeiro Rezende

(vice-presidente/ 1854) √ √ √

Henrique de Beaurepaire Rohan

(vice-presidente/ 1855-1856) √ √ X

Vicente Pires da Mota

(1856) X X

Sem posição definida

José Antonio Vaz de Carvalhães

(vice-presidente/ 1856-1857) √ √ X

Francisco Liberato Mattos

(1857-1859) √ √ √

José Francisco Cardoso

(1859-1861) √ √ √

Antonio Barbosa Gomes Nogueira

(1861-1863) √ √ X

Sebastião Gonçalves da Silva

(vice-presidente/1863-1864) √ √ X

José Joaquim do Carmo

(1864) X X

Sem posição definida

Dr. André Augusto de Pádua Fleury

(1854-1866) √ √ X

Dr. Manoel Alves Araujo

(vice-presidente/ 1865) X √ Sem posição definida

Dr. Agostinho Ermelino Leão

(vice-presidente 1866) X √ Sem posição definida

Polidoro Cezar Burlamaque (1866-

1867) √ √ X

José Feliciano Horta de Araújo

(1867-1868) √ √ X

Carlos Augusto Ferraz de Abreu

(vice-presidente 1867-1868) X √ Sem posição definida

Dr. Antonio Augusto da Fonseca

(1868-1869) √ √ X

Dr. Antonio Luiz Affonso de

Carvalho

(1869-1870)

√ √ √

Dr. Venancio José de Oliveira

Lisboa (1870-1873) √ √ √

Coronel Manoel Antonio Guimarães

(1873) √ √ √

87 CANIELI, Dulce Helena. As Populações Indígenas nas Narrativas das Autoridades Provinciais do

Paraná. Op. cit.. p.70-71.

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Dr. Fredirico José Cardoso Araújo

Abranches

(1873-1875)

√ √ X

Dr. Adolfo Lamenha Lins

(1875-1877) √ √ √

Dr. Joaquim Bento de Oliveira

Junior

(1877-1878)

√ √ √

Dr. Rodrigo Octavio de Oliveira

Menezes

(1878-1879)

√ √ √

Bacharel Manuel Pinto de Souza

Dantas Filho

(1879-1880)

X √ Sem posição definida

Dr. João José Pedrosa

(1880-1881) √ √ √

Dr. Sancho de Barros Pimentel

(1881-1882) X √ Sem posição definida

Dr. Carlos Augusto de Carvalho

(1882-1883) X √

Sem posição definida

Comendador Antonio Alves de

Araújo

(vice-residente 1883)

√ √ X

Dr. Luis Alves Leite de Oliveira

Belo

(1883-1884)

X X Sem posição definida

Dr. Brazílio Augusto Machado

D‟Oliveira

(1884-1885)

√ √ √

Dr. Alfredo D‟Escragnolle Taunay

(1885-1886) √ √ X

Joaquim D‟Almeida Faria Sobrinho

(1886-1887) √ √ X

José Cesário de Miranda Ribeiro

(1887) X X

Sem posição definida

Comendador Ildefonso Pereira

Correia

(1888)

X X Sem posição definida

Dr. Balbino Cândido da Cunha

(1888-1889) X X

Sem posição definida

Conselheiro Jesuíno Marcondes de

Oliveira e Sá

(1889)

X √ Sem posição definida

Legenda:

SIM √

NÃO X

Ao observar a tabela acima, constatamos que dos trinta e sete governadores, doze

concordavam com o serviço de catequese e civilização do índios e lhes deram

prosseguimento de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo governo imperial.

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Outros doze discordavam desse serviço e colocavam em prática outras formas de

“civilizá-los”. Esses governantes que discordavam do projeto Imperial, faziam severas

críticas a execução do mesmo. Alguns achavam que o segredo da catequese havia

desaparecido com os jesuítas, outros diziam que os indígenas desapareceriam e que era

inútil investir nesse projeto. Além de tecerem suas críticas, algumas dessas autoridades

propuseram uma forma de reduzir a população nativa, por meio da criação de colônias

militares e a utilização da força. 88

Mesmo com vozes dissonantes, a tabela indica ainda

que, seis governantes não se posicionaram e os outros sete apenas informaram a

respeito do serviço e somente em alguns momentos uma sequência de mandatos

representou continuidade no serviço iniciado na gestão anterior.

As ações por parte dos governantes do Paraná indicam que as Leis

Indigenistas eram burladas e que cada governo aplicou a política que atendesse aos

seus interesses, afirmação que pode ser corroborada se observarmos a sucessão de

mandatos e as descontinuidades na aplicação da política “civilizatória” por meio da

catequese.89

Diante desse cenário, pôde-se perceber que os Kaingang embora tivessem

acesso nos aldeamentos a "artigos de metal, armas de fogo, onde se abrigavam do

ataque de outras tribos e mesmo dos brancos (...), onde podiam conseguir alimentos,

com acesso a cereais aos animais domesticados"90

, a sua presença dentro nesses locais

era instável. O aldeamento de São Pedro de Alcântara, administrado pelo Frei Timóteo

Castelnuevo, era um bom exemplo desta observação, sendo que os maiores períodos

de instabilidade ocorriam nos meses de maio, junho e julho, pois nessa época "era

costume dos índios coroados mansos desta zona deixar o aldeamento e sair andando

pelas grandes florestas de pinheiros, alimentando-se do que conseguiam matar com o

arco e flecha e com fruto dos próprios pinheiros". 91

As evasões costumavam acontecer quando não tinham por perto a presença de

seus "mentores" brancos, indicando um descaso à vida que lhes era imposta, e ao

88

CANIELI, Dulce Helena. Id. Ibid. p.71. 89

CANIELI, Dulce Helena. Id. Ibid, p. 71. 90

MOTA, Lúcio Tadeu. Id. Ibid, p.178 91

BIGG-WITHER. Novo Caminho no Brasil Meridional: A Provincia do Paraná três anos de vida em

suas florestas e campos - 1872/1875. Rio de Janeiro: J. Olympio. Curitiba: UFPR, 1974.p. 378.

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contrário da "subordinação" que o homem branco achava que tinha conquistado, essas

“saídas” indicavam uma forma de resistência.

No interior desse aldeamento interagiam vários grupos sociais e em suas

proximidades existiam outros aldeamentos, como o de São Jerônimo. A criação dos

aldeamentos na bacia do rio Tibagi foi articulada pelo Barão de Antonina, quando

começou investir na ligação entre a Província do Mato Grosso e o porto de Antonina.

No mesmo local, em 1850, foi criada a Colônia Militar de Jatay, que ficava em frente

ao aldeamento, prática comum adotada pelos não-indígenas, como forma de proteção

contra qualquer investida da população nativa, como também para manter uma

disciplina entre os colonos. A colônia militar não era restrita somente aos povos

indígenas, nela também viviam religiosos, militares, comerciantes, africanos, entre

outros grupos sociais. Em 1855, o aldeamento de São Pedro de Alcântara abrigou os

índios Kaiowá e somente em 1860, chegaram os Kaingang e os Ñandeva, porém esse

aldeamento tinha suas particularidades, diferentes dos demais, como na Colônia

Militar em frente, ali aldeavam-se não-índios, e africanos livres e escravos.

O aldeamento de São Pedro de Alcântara era cercado por mata virgem e tinha

um bom solo propício para o plantio e mesmo o governo considerando-o como um

lugar próspero e frutífero, estava muito longe de conquistar a prosperidade pretendida,

pois carecia de:

(...) pessoal habilitado, de igreja, escola, e officinas e fáceis communicações

que desenvolvam o commercio, a indústria, e ponham em contacto os

catechumenos com os civilizados, para que adqiram amor ao trabalho que

garante os commodos, enriquece a família e o estado, e os liga a vida

pacifica de produtor, reconhecendo os inconvenientes da vida nômade e

desleixada que levam.92

Podemos perceber explicitamente que o relatório indicava a falta de

“colaboração e reconhecimento” por parte dos indígenas aldeados, que mesmo

habitando em local que apresentava o solo bom para plantio e consequentemente para

a vida sedentária, vida esta que os indígenas se negavam a adquirir, preferiam sua vida

nômade e desleixada. Não se submeter à cultura sedentária que lhes era imposta,

também se configurava como forma de resistência e essa ação era vislumbrada com

92

Relatório do presidente José F. Horta Araujo. RELATÓRIO 15/02/1868. In: Arquivo Público

Paranaense. Disponível em: <htpp://www.arquivopublico.pr.gov.br>. Acesso em: 20 de jul. de 2014.

p. 41.

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indignação pelos não-indígenas que reforçavam uma imagem negativa destes povos,

como por exemplo, Frei Timótheo Castelnuevo que redigiu o Memorial

Testamentário: "Achei nos índios uma intransponível barreira na falta de inteligência

para aprender; um intransponível instinto para seu modo de viverem, e na

desconfiança nêles inata de serem por nós um dia sacrificados”. 93

Para Lúcio Tadeu Mota que em seus estudos sobre as comunidades indígenas

do Paraná, privilegiou o processo de aculturação vivenciado pelos Kaingang;

“centenas de homens, mulheres e crianças, brancos, negros ou índios adversários

encontraram seu fim nas pontas das flechas dos potentes arcos dos guerreiros

Kaingang”. 94

Sentindo-se ameaçados, os não-índios procuraram uma maneira de silenciar a

população nativa e para tanto, desenvolveram políticas com a finalidade de conter os

destemidos grupos, acreditando eles que, frente a essa nova forma de “manipulá-los”,

conseguiriam mantê-los longe dos territórios de seus interesses ou passariam assim a

terem uma convivência mais pacífica se esses grupos bravios compreendessem o valor

da sua integração à sociedade “civilizada”. Com total interesse nos territórios

indígenas e expropriações dos mesmos, o governo passou a assumir uma posição que,

na prática cedia pouco espaço a essas comunidades, mas na teoria buscava comprovar

que as ações realizadas estavam pautadas e legitimadas pelas Leis Indigenistas.

2.2. INTEGRAR É POSSÍVEL, VIVER É IMPOSSÍVEL?: NOVAS LEIS

INDIGENISTAS

As Políticas Indigenistas implantadas pelo governo imperial, durante o II

Reinado, em meados do século XIX, geraram como consequência um processo de

"depopulação" e transformações culturais intensas, que levaram ao abandono de

aspectos identitários centrais dentro das comunidades indígenas.95

93

Timóteo de Castelnuevo. Apud., In: MOTA, Lucio Tadeu. As guerras dos Índios Kaingang: a

história épica dos índios Kaingan no Paraná (1769-1924). p.181 94

MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang : a história épica dos índios Kaingang no

Paraná (1769-1924). Maringá: Eduem, 2008, p.123. 95

GIRALDIN, Odair. Catequese e Civilização: os capuchinhos entre os selvagens do Araguaia e

Tocantins. Campinas: UNICAMP, 2002. Disponível em: <htpp//:www.uft.edu.br>. Acesso em 23 de

set de 2014.

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No sul do país, na região do atual Estado do Paraná, havia duas preocupações

centrais para os não-índios que tinham interesse por essas terras, sendo que a primeira

consistia na delimitação dos territórios fronteiriços e a segunda na ordenação do

contingente populacional indígena que habitava esses locais. Os territórios, como já

mencionado, eram despertaram o interesse de fazendeiros que exigiam do governo a

retirada das comunidades indígenas, com o objetivo de expandir suas terras e viver em

segurança, sem a ameaça dos selvagens. Essa situação levou o Estado Imperial e os

governos provinciais a elaborarem políticas específicas, na tentativa de aldear e

"civilizar", e assim “integrar” o indígena à sociedade brasileira.96

A integração dessas comunidades estava intimamente ligada à apropriação de

seus territórios, pois as políticas indigenistas desenvolvidas no Brasil se pautavam nos

interesses do governo e não nas necessidades das comunidades indígenas97

. Afinal,

"(...) a política indigenista brasileira da segunda metade do século XIX (...) foi

moldada segundo os interesses da expansão da grande propriedade agrária e dos

projetos específicos de colonização desenvolvidos em certas regiões do país". 98

Nesse sentido, podemos afirmar que o processo de construção da nação

brasileira, estava carregado de valores ideológicos, inspirados nos moldes estrangeiros

que pressupunham a superioridade da raça branca. Esse caráter importado da Europa

impôs a "modernização", 99

influenciando tanto o Brasil, quanto várias outras

nações.100

Outro fator que legitimou as políticas indigenistas nesse período, foi à

necessidade de mão-de-obra nas grandes propriedades, que até então era suprida pelo

trabalho escravo africano que começou a encerrar em 1850 e após a promulgação da

Lei Áurea (1888). Temendo que essa prestação de serviço se tornasse escassa, o

trabalho realizado por indígenas assim como por imigrantes, pareceu considerável para

96

Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. (IHGB) e as Populações Indígenas no Brasil no

II Reinado (1839-1889). v. 10, n.1. Maringa: UEM, 2006. Disponível em: <htpp:// www.redalyc.org>.

Acesso em 23 de set de 2014. p.121, ISSN 1415-9945. 97

Id. Ibid. p.122. 98

MOREIRA Neto, Carlos de Araújo. A política indigenista brasileira durante o século XIX. Rio

Claro, 1971. p.78. 99 Modernização é um termo que se refere a um processo pelo qual uma sociedade passa por mudanças

sociais que alteram a parêcncia ou o comportamento dos individuos. <htto://www.wikipédia.org>.

Acesso em 29 de mar de 2015. 100Op. cit. p. 121.

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a substituição do trabalho escravo. Dessa forma, o trabalho se apresentou como ponte

de ligação entre a população indígena e a sociedade branca.101

Buscando reeducar e

aculturar as populações indígenas por meio do trabalho, novamente a política

indigenista brasileira, “representava a negação do direito aos índios de aspirar tanto à

autonomia cultural e política quanto à posse das terras que, tradicionalmente,

ocupavam"102

. Em outras palavras, a construção do Estado moderno no Brasil, acabou

se tornando título da política de extermínio que sobreveio sobre os povos nativos.

Com a proclamação da República, em 1889, as políticas indigenistas pouco

mudaram e as questões indígenas ficaram a mercê das constituições e com pouco

amparo das leis vigentes. Na Constituição de 1891, os indígenas não foram

mencionados, salvo no artigo 64 que transferiu ao Estado as terras devolutas que se

situassem em seus territórios. Com a responsabilidade passada aos Estados, algumas

Unidades Federativas fundaram órgãos indígenas, mas de modo geral, as políticas

indigenistas continuaram sendo as mesmas usadas no período imperial com base na

catequese.103

No final do século XIX, além de todos os conflitos já vividos pelas

comunidades indígenas e fazendeiros, somou-se as disputas de terras entre esses

grupos e os imigrantes. Além dessas disputas, outros fatores contribuíram para ampliar

a expropriação das comunidades indígenas do atual Paraná, como por exemplo, as

construções de estradas de ferro, que no início do século XX atravessavam territórios

Kaingang acirrando as lutas armadas entre os trabalhadores e este grupo indígena, que

enfrentava também diversas frentes de expansão para o interior e consequentemente o

avanço dos seus territórios. 104

Diante de todos esses conflitos atestava-se a ideia de que o Brasil era

excludente em relação aos direitos desses povos. Em 1907, as disputas atingiram

repercussão internacional gerando calorosa polêmica. Von Ihering, diretor do Museu

101

Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. (IHGB) e as Populações Indígenas no Brasil

no II Reinado (1839-1889). v. 10, n.1. Maringa: UEM, 2006. Disponível em: <htpp//:

www.redalyc.org>. Acesso em 23 de set de 2014. p.122, ISSN 1415-9945. 102

MOREIRA Neto, Carlos de Araújo. Id. Ibid. p.71. 103

GOMES, Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil. São Paulo: Vozes, 1991. Disponível em:

<htpp://www.e.historiooffline.com>. Acesso em: 08 de out de 2014. p.1. 104

Id. Ibid, p.1

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Paulista nesse período, defendeu o extermínio dos povos indígenas, gerando grande

revolta na sociedade civil contra esse pensamento. 105

Devido as pressões de diversos segmentos sociais, em 1910 o Brasil criou o

primeiro órgão Federal voltado para a defesa dos indígenas, o Serviço de Proteção ao

Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que mais tarde tornou-se o

Serviço de Proteção ao Índio (SPI), sob o comando do coronel Cândido Mariano da

Silva Rondon, simpatizante das causas indígenas. Esse órgão visava a proteção e

integração desses povos em relação a fundações de colônias que usassem mão-de-obra

encontradas por expedições oficiais mantendo até a Revolução de 30 suas convicções e

ideologias.

A Constituição 1934 tem peso histórico para os indígenas, pois adotou

medidas de proteção, reconhecendo aos povos indígenas o direito sobre os territórios

efetivamente habitados por eles, como indicava o artigo 129, ao afirmar que seria

respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se encontrassem localizados, sendo

no entanto, proibido aliená-las. 106

Durante este período o SPI manteve-se atento ao seu objetivo de incorporar os

povos indígenas à nação brasileira, garantindo-lhes condições físicas e morais. O

órgão visava também a localização de terras e promovia uma coexistência pacífica

entre indígenas e não-índios nas frentes de expansão econômica e defendia que "esses

objetivos seriam alcançados por meio da demarcação de terras, da proteção da

violência dos fazendeiros, da alfabetização, do ensino de prática agrícolas" entre outras

ações.107

Entre os anos de 1940 e 1947, o órgão esteve em seu auge institucional,

sobretudo durante o Estado Novo, quando Getúlio Vargas promoveu a "marcha para o

oeste", visando incorporação territorial e econômica das áreas do Brasil central. 108

105 Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Disponível em: <http://pib.socioambiental.org>. Acesso em: 17

de ago. de 2014. 106

LEITÃO, Sérgio. Os Direitos Constitucionais dos Povos Indígenas. In: Biblioteca Jurídica.

Disponível em: <htpp:// www.bibliotecajuridica.unam.mx>. Acesso em 8 de out de 2014. 107

Serviço de Proteção aos Índios, SPI. Disponível em: <htpp;// www.funai.gov.br>. Acesso em 19 de

maio de 2015. p. 1-8. 108

MARTINEZ, Paulo. Políticas Indigenistas. In: Revista de História. Disponível em:

<htpp://www.revistadehistoria.com.br>. Acesso em 12 de out de 2014. Issn: 1983-0831.

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No ano de 1943, mesmo ano em que foi instituída a data de 19 de abril como

Dia do Indio, teve início as expansões para a Região Central, ação marcada por

grandes conflitos de terras muitas e mortes.

A reorganização de território, somada com a reunião de diversos povos,

resultou em uma mudança na Política Indigenista atuante até a década de 1950. Novas

medidas se faziam necessárias, devido a redução drástica da população indígenas e o

SPI criou diversos postos de atendimento visando auxiliar as comunidades em diversos

aspectos.109

Em 1957, o Serviço de Proteção ao Índio, sofreu um amargo declínio, "quando

se sujeitou a política partidária e a fins eleitorais na sua instituição”.110

Alguns

escândalos envolveram servidores acusados de corrupção e de serem cúmplices nos

assassinatos de indígenas. O SPI foi extinto no governo militar em 1967 e substituído

pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI),111

para resolver os problemas que os

militares concebiam como “questões indigenistas”.

Mesmo com a criação da FUNAI, a ideia de “integração do indígena à

população branca", não foi alterada e durante os anos que se seguiram, em meio a

avanços e impasses, o Estado se tornou "tutor" desses povos, agindo de forma a evitar

que as tragédias ocorridas no passado continuassem se repetindo.

Esses novos mecanismos seriam suficientes para que o Estado conseguisse

articular as populações indígenas dentro da sociedade branca de forma integral?

Depois de séculos de luta por suas terras, os Kaingang que viviam na região do Tibagi,

antes e depois da Província, se encontraram em situações precárias dentro das reservas

que lhes foram impostas através das Políticas Indigenistas discutidas até aqui. Políticas

de bem estar e "integração" que não funcionaram na prática, somente contribuíram

para uma reconfiguração de sua cultura dentro do quadro o qual que se encontraram no

decorrer do século XX. Essa situação os motivou a procurar novos meios de

109

O SPI adotou medidas para que esse contingente voltasse a aumentar e em 1952, criou o plano do

Parque Nacional do Xingu, em 1953 o Museu do Índio, e em 1955 atuavam 106 postos de atendimento

assistencialista aos povos indígenas. Disponível em: <htpp://www.brasiloeste.com.br>. Acesso em 19

de mai. de 2015. 110

MARTINEZ, Paulo. Políticas Indigenistas. In: Revista de História. Disponível em:

<htpp://www.revistadehistoria.com.br>. Acesso em 12 de out. de 2014.

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sobrevivência, conduzindo muitos Kaingang a se adaptarem a uma nova realidade

banhada no engodo da sociedade urbana.

2.3. OS KAINGANG NA SELVA URBANA: UMA QUESTÃO DE

(RE)TERRITORIALIZAÇÃO

Desde a chegada dos europeus na região Sul, as terras indígenas foram violadas.

Os territórios onde habitavam os Kaingang não fugiram a essa regra e esses grupos ora

enfrentavam as ações de particulares, ora as ações do Estado que não respeitava os

princípios de justiça, pois como é conhecido o Estado tem razões que a justiça

desconhece. Envolvidos nestas “razões”, os Kaingang foram tratados, a princípio

como mão-de-obra escrava (em sua maior parte) e após como “grandes crianças” que

deveriam ser protegidas por um novo instrumento da missão civilizadora: a tutela.

Por todo o século XX, os Kaingang prestaram serviços como guias,

mateiros, intérpretes, e desde que o processo “integrador” foram recrutados como

mão-de-obra “assalariada” tanto nas atividades exigidas nos aldeamentos quanto em

obras públicas como no caso da construção da Estrada do Cerne em 1935,

contribuindo assim, na consolidação das bases da sociedade que emergia nas regiões

da bacia do Tibagi. 112

Após sua mão-de-obra deixar de possuir um peso significativo o que restava

de suas terras passou a ser alvo de cobiça para a construção de mais pastos para o

gado, exploração madeireira e mineral. Como já observado, os Kaingang que viviam

da caça e da coleta e tinham nos pinheirais suas bases materiais de produção e

reprodução social e cultural, enfrentavam desde o fim do século XVIII a ocupação de

suas terras por fazendeiros e seus campos transformados em pastagens.

Fora do seu território, os Kaingang se viram obrigados a se adaptarem a nova

sociedade e adotar os padrões impostos. Tornaram-se assim, agricultores e assalariados

e passaram a produzir seus artefatos artesanais para vendê-los nas cidades próximas de

onde viviam.

112

TOMMASINO, Kimiye. Os novos Acampamentos (wãre) Kaingang na Cidade de Londrina:

Mudança e persistência numa Sociedade Jê. In: Revista Mediações. v. 3, n.2. jul-dez. Londrina: 1998.

p. 67-71. Disponívem em: <htpp://www.uel.br>. Acesso em: 22 de out. de 2014. ISSN 1414-0543.

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Dentro das reservas a eles “concedidas”, cultivavam suas roças, porém a

produção não era suficiente e isso explica o fracasso dessas "reservas", pois o Governo

nunca levou em conta as especificidades culturais e materiais dessas comunidades113

.

Essa forma de proletarização não significou o fim de seus hábitos socioculturais, ao

contrário do que esperavam os órgãos federais com sua política de "integração e

inserção", e apesar da violência simbólica, continuaram a se reproduzir de maneira

etnicamente diferenciada.

Os Kaingang sempre produziram artefatos como produtos de suas

necessidades cotidianas, conhecimento transmitido entre os membros da comunidade

por meio da observação sistemática, experimentação e pesquisa da natureza114. Porém,

a partir do contato com os não-indigenas, ocorreram várias transformações no que se

refere à matéria-prima e à função dada ao artefato. Devido as novas necessidades

geradas pelo processo de “integração”, esses artefatos passaram a ser produzidos quase

que exclusivamente para a comercialização115

.

A cultura material sempre foi de grande importância para os indígenas, dado a

relevância de que nela está empregado todo um simbolismo, que reflete a identidade

do grupo116

pois é "o papel fundamental do artesanato – seu valor absoluto:

testemunhar a vida, dar peso, importância, felicidades ao cotidiano, seja pela eficácia

mágica atribuída aos objetos, rituais e adornos, seja pela própria identidade intrínseca

das peças destinadas à facilitação do existir". 117

Em 1998, Kimiye Tommasino, doutora em Antropologia Social, baseado em

fontes orais, escreveu sobre a migração dos Kaingang para a zona urbana, explicando

que coagidos pelas circunstâncias dentro das reservas a que foram destinados, eles

desenvolveram um novo tipo de comércio. Os Kaingang do Posto de Apucarana, por

exemplo, passaram a construir novos wãre no centro de Londrina e ao seguirem um

113

Id. Ibid. p. 68 114 SAVORO, Daniel, SILVA, Ninarato Mazzato da, NOTZOLD, Ana Lúcia Vulfe. Artesanatos

Kaingang: Entre Usos e Desusos da Cultura Material. In: Caderno CEON.v.19, n.24. Chapecó:

UNOCHAPECÓ, 2005. Disponível em: <htpp://www. bell.unochapeco.edu.br>. Acesso em 22 de out.

de 2014. p.31-50. ISSN 21750173. 115

Id. Ibid. p. 32. 116 Id. Ibid. p. 34. 117

RIBEIRO, Berta G. O Índio na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1987. p.147.

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padrão pré-existente, esses indígenas expropriados de seu habitat natural, recriaram um

novo espaço Kaingang em um mundo dominado pelos brancos.118

Apesar da aparência de ocidentalizados, eles não perderam os costumes e

continuaram reproduzindo sua cultura, porém de forma adaptada, modelada,

reformulada e repensada como estratégia para enfrentar uma nova conjuntura histórica,

modificada por contingências externas. Os seus novos acampamentos aparecem dentro

de um novo quadro social, que os obrigou a sair de suas reservas para a obtenção de

víveres, usando do serviço oferecido dentro do território dominado pelo não-indígena.

As coletas que antes faziam nas florestas, passaram a fazer na cidade, ou na emã-bang,

como atualmente chamam essa área. 119

Nos seus wãre do passado, eram seres humanos livres, já no espaço urbano,

eles se veem presos a sua produção. Mesmo enfrentando uma nova conjuntura

histórica, podemos perceber nos dados levantados por Kimiye Tommasino que os

Kaingang em Londrina,

(...) recriam, temporariamente, um espaço social tipicamente kaingang:

deslocam-se em grupos de parentesco, cada qual instala sua barraca e lá

permanecem por cerca de 10 ou 15 dias. Tal como faziam antes (e ainda

fazem) nas matas e beira de rios, trazem os equipamentos básicos para a

permanência provisória: roupas, panelas, animais de estimação. A cozinha é

improvisada na parte externa da barraca, os produtos para comércio são

expostos dependurados nas árvores das ruas, em frente ao acampamento.

Dentro da barraca, ajeitam as mercadorias, as roupas de uso, forram o chão

onde dormem. Não se incomodam de dormirem no chão, pois consideram

que "vida de índio é assim mesmo". 120

Dentro de suas barracas de lonas improvisadas, continua a antropóloga, esses

indígenas recordam de "quando eram crianças e dormiam no chão sobre folhas de

samambaias com os pés voltados para o fogo que ficava aceso a noite toda"121.

Saudosos do tempo em que viviam em suas terras, os Kaingang buscam dentro desses

acampamentos improvisados uma (re)territorialização, ao reproduzir sua cultura

adaptando-se ao novo meio (urbano) em que vivem. Em algumas épocas do ano, os

acampamentos abrigam mais indígenas e um maior número de famílias sai às ruas da

118 TOMMASINO, Kimiye. Os novos Acampamentos (wãre) Kaingang na Cidade de Londrina:

Mudança e persistência numa Sociedade Jê.Op. cit.p.69 119 Id. Ibid. p. 70. 120 Id. Ibid. p. 70 . 121 Id. Ibid. p. 71.

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cidade para vender seus artesanatos, e uma possivel explicação para esse encontro está

relacionada ao Ritual do Kiki quando os Kaingang tomavam a bebida sagrada (Kiki) e

executavam as cerimônias dançando em volta do fogo, acompanhados de cantos

sagrados e de personagens que formavam círculos de acordo com o grupo a que

pertenciam, Kamé ou Kairu.122

Por mais de 50 anos os Kaingang dessa região, deixaram de realizar o Ritual do

Kiki conforme a tradição, em contrapartida adotaram as festas introduzidas pelos

diretores e missionários dos aldeamentos. Se em tempos imemoriais, saíam para as

florestas em busca de alimentos que seriam consumidos no Ritual, agora se dirigem às

suas roças para colher poucos alimentos e para a cidade vender os seus balaios. Por

esse motivo nas semanas que antecedem tais festas, os Kaingang se dedicam mais às

vendas para arrecadação de meios que tornem as comemorações bem sucedidas.

Quando dependiam somente dos recursos das florestas, o Ritual do Kiki era realizado

no inverno, estação em que as colheitas de pinhão era farta e o milho estava maduro,

gerando assim uma relação entre o Ritual e o ciclo da colheita. Hoje, as comemorações

não obedecem ao calendário natural como tampouco o costume de se pintar com as

cores dos gêmeos Kamé e Kairu.123

Devido as pressões “civilizatórias” que

condenavam as “bebedeiras”, a maior expressão de religiosidade Kaingang passou a

ser fortemente combatida. 124

Em outras comemorações adotadas do convívio com os brancos (Dia do

Índio, Páscoa, Natal e Ano Novo) os acampamentos dos Kaingang dentro do perímetro

urbano de Londrina, geram nos citadinos várias reclamações junto às autoridades e a

imprensa local, alega estarem os indígenas sujando as áreas públicas e invadindo a

cidade. 125

Os indígenas sempre foram vislumbrados como "atrasada” em uma sociedade

que se pretendia “moderna”. No entanto, é possível que os Kaingang pensam sobre o

122 SCHADEN, Egon. A mitologia heróica de tribos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1959.

p. 59. 123 Id. Ibid. p.72. 124

Ritual e Xamanismo. Disponível em: <htpp:// www.socioambiental.org>. Acesso em 20 de maio de

2015. 125

SCHADEN, Egon. A mitologia heróica de tribos indígenas do Brasil. Op.cit. p.72.

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que lhes aconteceu de sua própria forma e buscam reconstruir uma história na qual

suas escolhas apontam consequências.

Podemos perceber que eles ao enfrentarem uma situação de dificuldades

econômicas se deslocaram de suas reservas para a área urbana, mesmo que nestes

locais ainda não conquistassem uma vida social digna e enfrentassem inúmeros

problemas. Em nome do progresso, as leis indigenistas, retiraram o que lhes era de

direito, sobretudo seus territórios, o maior símbolo de sua identidade, 126

e hoje sua

cultura material está vinculada ao comércio para garantir-lhes um mínimo necessário

para a subsistência de suas comunidades. Entretanto, notamos que os Kaingang

continuam sujeitos ativos na história, pois apesar das dificuldades não perderam sua

identidade, e buscam, como outros povos indígenas, uma efetiva integração.

Neste momento cabe uma ressalva, pois a noção de integração pensada e

disseminada pelas Leis Indigenistas, conduziram a uma concepção errônea que

contribuiu para que muitos brasileiros entendessem integração enquanto sinônimo de

assimilação cultural. Para Manuela Carneiro Cunha:

[...] se há algo nefasto é essa confusão de termos. O homem é um

ser social, de início. Ele é dado em sociedade e não é concebível

fora dela. Os direitos do homem se aplicam, por tanto, ao um

homem em sociedade: supõem, assim, direitos das sociedades,

direitos dos povos. Ora, um direito essencial de um povo é poder

ser ele próprio. Querer a integração não é, pois, querer assimilar-

se: é querer ser ouvido, ter canais reconhecidos de participação no

processo político do país, fazendo valer seus direitos específicos.127

Compartilhando da indicação acima, podemos afirmar que mesmo não

podendo viver em suas terras com os mesmos recursos e meios de vida que seus

antepassados, os Kaingang buscaram uma nova forma de serem reconhecidos e por

meio de seus acampamentos eles encontraram uma maneira de recriar seus espaços, há

tempos perdidos, relembrando as tradições do Emã e Wãre.

126

NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe. O ciclo de vida Kaingáng. Florianópolis: Imprensa Universitária,

UFSC, 2004.p.13. 127 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro

Enigma, 2012. p. 114.

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No inverno de 1990, no Posto Indígena de Toldo Barreiro em Apucarana, uma

senhora Kaingang de 70 anos de idade, demonstrou em seu comentário em que medida

as políticas indigenistas alteraram o modo de viver de sua comunidade:

Eu tenho muitas criações, mas agora não tenho

mais.

Eu tinha muitas criações de gado que viviam

nos matos, que são as antas, mas agora não

tenho mais.

Então agora não tenho mais pra comer. Por

isso eu estou vendendo os balaios, para

sobreviver.

Aqui tinham muitas árvores, matos, palmitos.

Mas agora não tem mais palmitos.

Eu tinha muita alimentação no mato, mas

agora não tem mais.

Agora tem muitas criações de gado nesses

pastos, mas eu não gosto da carne nem da

gordura deles.

Essa noite eu sonhei que comia carne de anta.

Era gostosa, era macia, mas naquela hora eu

acordei.

Então eu disse: porque eu sonhei dessa

maneira? Eu disse pra mim mesma [...] eu

tenho vontade de comer de novo, por isso

sonhei.128

As particularidades e caminhos específicos trilhados pelos Kaingang, apontam

que apesar dos limites a que foram submetidos, eles mantiveram algumas das

especificidades de seu sistema cultural, reinterpretando-as e demonstrando, a sua

maneira, que continuarão buscando o retorno ao seu Estado de direito.

128 TOMMASINO, Kimiye. Op. cit. p.1.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho contemplou um pouco da trajetória dos Kaingang, desde a

chegada dos colonizadores em seus territórios na Bacia do Tibagi até os dias atuais.

Como discutidos as Políticas Indigenistas desenvolvidas pelo Governo a fim de

“pacificá-los” tornou-se o divisor de águas entre, os indígenas que “aceitaram” a nova

cultura como forma de preservar suas comunidades e os grupos que perderam suas

vidas lutando em defesa dos seus direitos, sobretudo que diz respeito aos seus

territórios.

As expropriações já aconteciam há muito tempo, desde que o interesse dos

europeus (portugueses e espanhóis) e bandeirantes nascidos no Brasil foi direcionado

às terras indígenas que compunham parte da Bacia do rio Tibagi, coração do território

Kaingang. A descoberta de diamantes nesse rio levou muitas expedições até essa

localidade e os confrontos foram inevitáveis tornando a região do Tibagi palco de

sangrentas disputas entre indígenas e não-índios.

A apropriação dos campos do cacique Kaingang Inhoó, liderada por Barão de

Antonina para a criação de pastagens, deu início a uma grande disputa que durou

décadas. Fortemente armados, os não-índios conquistaram esses campos e fizeram

deles a fazenda São Jerônimo, que mais tarde foi doada pelo próprio Barão ao governo

para aldear os selvagens e hostis indígenas.

Com o crescimento da população de não-índios e as expansões das fazendas, os

Kaingang foram paulatinamente empurrados para às margens de seus territórios, fato

que desencadeou forte resistência, principalmente quando essas expropriações

começaram a ser pautadas nas novas políticas implantadas pelo governo provincial,

que lhes concedeu a “chance” de preservarem suas comunidades, se abdicassem de

seus territórios e cultura.

A Política Indigenista aplicada dentro dos aldeamentos era baseada nos moldes

europeus de “civilização” e visava a “integração” desses povos a sociedade nacional.

Com base nesse pensamento ocidental cristão, a cultura desses povos foi considerada

“selvagem e atrasada”, logo obstáculo para a sociedade moderna que estava se

desenvolvendo na província. Essas políticas que visavam o domínio territorial por

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parte do governo e favoreciam a expansão de terra dos grandes fazendeiros, geraram

grande impacto nas comunidades Kaingang, pois uma vez que, de distintas maneiras,

disseminavam que a cultura nativa era “imprópria” para a frente modernizadora que se

expandia junto com o crescimento populacional urbano.

As comunidades Kaingang que se defrontaram com essas políticas, no coração

de seus territórios, eram formadas por grandes guerreiros usaram o espírito de combate

para resistir as pressões que as empurravam para fora de seus domínios naturais, nos

quais se organizavam socialmente e mesmo a tentativa de “inserção” à nova cultura

branca e cristã, ministrada por meio da catequização e dos aldeamentos, desencadeou

outras formas de resistência.

Os Kaingang sempre foram vistos como "atrasados" pela sociedade branca,

cristã, ocidental, que se via como “superior”, e por maior que seja o paradoxo, nos

documentos do governo foram localizadas várias reclamações sobre as invasões desses

povos “atrasados” às fazendas que abrigavam homens com habilidades avançadas e

muitos armamentos.

No final século XIX, foram estabelecidas políticas que visavam garantir aos

indígenas, reservas de terras e no início do século XX, criado um órgão de proteção

aos índios, mesmo sob “tutela” do governo, que visava “integrá-los” à sociedade

nacional. Muitos grupos, que já não viviam mais em seus territórios, foram enviados às

reservas indígenas: pequenos espaços fora de suas áreas que foram poupados para a

centralização de algumas comunidades. O contato com o homem branco e as

mudanças sociais as quais foram submetidos, conduziram os Kaingang a assumir uma

nova postura diante desse confronto de culturas. Esse povo que sempre produziu

artesanatos para atender as suas necessidades cotidianas, diante da nova realidade, fez

inúmeras transformações no que se refere à matéria-prima e à função dada ao artefato.

Este que possuía uma interligação com sua cosmologia, passou a ser produzido quase

que exclusivamente para a comercialização.

A cultura material sempre foi de grande importância para os Kaingang, dado a

relevância de que nela está empregado toda uma identidade e simbolismo da etnia,

pois é "o papel fundamental do artesanato - seu valor absoluto: testemunhar a vida, dar

peso, importância, felicidades ao cotidiano, seja pela eficácia mágica atribuída aos

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objetos, rituais e adornos, seja pela própria identidade intrínseca das peças destinadas à

facilitação do existir". 129

Por meio desse estudo monográfico, percebemos o cotidiano

Kaingang e a relação desenvolvida entre os membros mais jovens e os mais velhos, já

que as crianças passam grande parte do seu tempo junto de seus avós e recebem deles

esse conhecimento. Pudemos também perceber que, diante de toda expropriação

realizada ao longo dos séculos e, devido as circunstâncias dentro das reservas que lhes

sobraram, no século XX os Kaingang foram coagidos a engendrar a comercialização

de seus artefatos.

Por meio desse comércio, os Kaingang do Posto de Apucarana, por exemplo,

passaram a construir novos wãre no centro de Londrina. Seguindo um padrão pré-

existente, os indígenas expropriados de seu habitat natural, recriaram um espaço

Kaingang em um mundo dominado pelos brancos, reproduzindo sua cultura de forma

adaptada, modelada, reformulada e repensada, de forma que pudessem enfrentar uma

nova conjuntura histórica, modificada por contingências externas. Os seus novos

acampamentos, wãre, aparecem dentro de um novo quadro social que os obrigou a sair

de suas reservas para a obtenção de víveres e utilizar dos serviços oferecidos dentro do

território dominado pelos não-índios.

Há mais de 50 anos os Kaingang dessa região, deixaram de realizar a Ritual do

Kiki, em contrapartida, adotaram as festas introduzidas pelos diretores e missionários

dos aldeamentos. Desenvolvendo o gosto por celebrações que nunca fizeram parte da

sua cultura, como as festividades de Páscoa, Natal e Ano Novo, os acampamentos

Kaingang dentro do perímetro urbano de Londrina, desencadeiam nos citadinos várias

reclamações junto às autoridades locais

Porém não se pode deixar de mencionar, que esses indígenas foram

impulsionados a essas adaptações devido as dificuldades econômicas em que se

encontravam nas terras que lhes sobraram e por isso se deslocaram de suas reservas e

foram para área urbana em busca de sua sobrevivência. Hoje, sua cultura material está

vinculada ao comércio para garantir-lhes um mínimo necessário de subsistência e

mesmo estando readaptados, não abdicaram de sua cultura, como muitos um dia

chegaram a acreditar que com o tempo aconteceria.

129

RIBEIRO, Berta G. O Índio na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1987. p.147.

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Não podendo reconquistar suas terras, há muito tempo perdidas, eles

encontraram um maneira de recriar seus espaços, relembrando em meio a sociedade

urbana o emã e wãre construídos de lonas em meio a locais públicos, se

(re)territorializando em espaços hoje ocupados pela sociedade não indígena, que por

longo tempo empregou a eles uma Política de expropriação e dominação, limitando-os

a viverem em terras isoladas em nome do um progresso. Com tudo, a resistência em

desmontar seus acampamentos e sair do centro da cidade, indica que os Kaingang

aprenderam com essa sociedade o significado das palavras "invadir e apropriar".

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