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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA Mateus Brilhadori de Oliveira THOMAS HOBBES E A FUNDAMENTAÇÃO DO PODER SOBERANO NO LEVIATÃ SÃO PAULO 2014

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

Mateus Brilhadori de Oliveira

THOMAS HOBBES E A FUNDAMENTAÇÃO DO PODER SOBERANO NO

LEVIATÃ

SÃO PAULO

2014

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

Mateus Brilhadori de Oliveira

THOMAS HOBBES E A FUNDAMENTAÇÃO DO PODER SOBERANO NO

LEVIATÃ

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Departamento de Filosofia da Universidade

São Judas Tadeu – USJT, sob a orientação

do Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva.

SÃO PAULO

2014

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Oliveira, Mateus Brilhadori de

O48t Thomas Hobbes e a fundamentação do poder soberano no Leviatã /

Mateus Brilhadori de Oliveira- São Paulo, 2014.

81 f.; 30 cm.

Orientador: Paulo Jonas de Lima Piva.

Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,

2014.

1. Hobbes, Thomas, 1588-1679. 2. Pactos sociais. 3. Poder - Filosofia. I.

Piva, Paulo Jonas de Lima. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa

de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD 22 – 321.01

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da

Universidade São Judas Tadeu

Bibliotecário: Ricardo de Lima - CRB 8/7464

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Agradeço....

Aos meus queridos pais Arnaldo e

Luzia Aparecida, que me deram a dádiva da

existência; ao meu caro irmão Marcos, que

comigo sente o aconchego de uma família –

que tanto contribuíram e me incentivaram

no desenvolvimento pessoal e acadêmico.

Ao meu companheiro Airton Diego,

que esteve tão presente ao longo desta

pesquisa incentivando na busca da

sabedoria.

Ao ilustre professor Dr. Paulo Jonas

de Lima Piva que me orientou e me

incentivou na realização deste estudo.

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Dedico

Ao meu pai Arnaldo de Oliveira e a

minha mãe Luzia Ap. Brilhadori Oliveira.

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“Se não for instituído um poder

suficientemente grande para a nossa

segurança, cada um confiará, e poderá

legitimamente confiar, apenas na sua

própria força e capacidade, como proteção

contra todos os outros”. (HOBBES, 2003,

p. 144)

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RESUMO

Esta dissertação tem como questão central a fundamentação do poder soberano

na filosofia política de Thomas Hobbes (1588 – 1679), mais exatamente no Leviatã, de

1651, sua principal obra da maturidade. Para tratar de tal problema partiremos da

investigação e da análise das suas concepções de natureza humana e de estado de

natureza, de cuja relação teremos um quadro marcado pela existência de indivíduos

movidos pelo medo da morte violenta e pela esperança de paz lutando pela

sobrevivência numa situação de ausência de um poder soberano, para, em seguida,

entendermos como este é fundamentado e construído no estado civil com base num

pacto entre os indivíduos envolvidos na guerra de todos contra todos.

Palavras-chave: estado de natureza; Hobbes; pacto social; poder; soberania.

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ABSTRACT

This dissertation has as its central question the reasoning of the sovereign power

in the political philosophy of Thomas Hobbes (1588 - 1679), more precisely in

Leviathan, 1651, his main work of maturity. To address this problem we leave the

investigation and analysis of their conceptions of human nature and the state of nature,

whose relationship we will have a framework characterized by the existence of

individuals driven by fear of violent death and the hope of peace fighting for survival in

a situation of absence of a sovereign power, then we understand how this is based and

built on marital status with basis of a pact between the individuals involved in the war

of all against all.

Key words: state of nature; Hobbes; social pact; power; sovereignty.

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SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................................10

Capítulo 1: A concepção antropológica de Thomas Hobbes no Leviatã..................23

1.1 O conhecimento, a linguagem e o pensamento no homem

hobbesiano....................................................................................................23

1.2 O homem hobbesiano: ser de paixões e desejo.......................................31

1.3 A O homem não é um animal sociável....................................................34

Capítulo 2: O estado de natureza no Leviatã: o homem na ausência de um poder

soberano..........................................................................................................................38

2.1 A igualdade natural e o domínio de um homem sobre outro...................38

2.2 A precária condição de natureza: o medo da morte violenta...................45

2.3 As leis de natureza: uma orientação da razão para a paz e para a própria

conservação...................................................................................................47

Capítulo 3: O estabelecimento de um poder soberano e a sua fundamentação.......56

3.1 A origem do estado civil..........................................................................56

3.2 A natureza do pacto: submissão ou representação?.................................58

3.3 A soberania no Estado.............................................................................63

3.4 O poder soberano e a lei civil..................................................................71

Considerações Finais.....................................................................................................75

Referências Bibliográficas............................................................................................79

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INTRODUÇÃO

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) foi um observador atento do

homem em seu contexto histórico marcado por um fecundo avanço cientifico e por

sangrentas guerras políticas e religiosas. Os avanços da ciência traziam uma maneira

nova de conceber, enxergar e apresentar o mundo, mas, por outro lado, os conflitos

constantes na Europa, e na própria Inglaterra, como o caso da guerra civil de 1642,

colocavam em risco o poder do Estado.

O panorama caótico da política inglesa fez com que Thomas Hobbes, conforme

ele mesmo afirma, antecipasse a publicação de sua teoria política na obra Do Cidadão,

de 1640:

Aconteceu, nesse ínterim, que meu país, alguns anos antes que

as guerras civis se desencadeassem, já fervia com questões acerca dos

direitos de dominação, e da obediência que os súditos devem, questões

que são as verdadeiras precursoras de uma guerra que se aproxima

(...). (HOBBES, 1998, p. 18)

Em sua teoria política, Thomas Hobbes quer apresentar o Estado como um

artifício humano instituído de um poder soberano com a finalidade de eliminar uma

situação violenta e mortal de guerra generalizada. Ele deposita no Estado forte a

esperança de minimizar os conflitos e as condições favoráveis para o desenvolvimento

do gênero humano. É em decorrência da construção do estado civil que os homens

podem cultivar bem a terra, desenvolver com estabilidade a indústria e o comércio,

construir residências confortáveis, promover a arte e a ciência.

Antes da formação do estado civil, os homens estavam no estado de natureza,

onde eram livres e iguais, a ponto de não existirem regras tampouco nenhum tipo de

organização ou contenção da efetivação dos desejos e das paixões humanas. Escreve

ainda, na obra Do Cidadão, “então decorre que, no estado de natureza, para todos é

legal ter tudo e tudo cometer”. (Ibidem, p. 33) A edificação do Estado é uma

necessidade da própria sobrevivência da humanidade, uma vez que não se pode viver

em uma desconfiança generalizada e em conflitos permanentes.

Neste estudo propomos tratar justamente da fundamentação do poder soberano

do Estado tendo como base a obra de maior maturidade intelectual de Thomas Hobbes,

o Leviatã, de 1651. Nesta obra, publicada um ano após os desdobramentos mais radicais

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da guerra civil que culminou com a execução do rei Carlos I sobre a justificativa a

divina e que suscitou uma profunda indignação ao filósofo. Diante disso, Hobbes

procurou fornecer uma resposta do direito para a barbárie atribuindo à política a

capacidade de estabelecer condições que garantam a paz à existência humana. Assim

escreve o autor do Leviatã: “os homens estão constantemente envolvidos numa

competição pela honra e pela dignidade, (...) e é devido a isso que surgem entre os

homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra (...)”. (HOBBES, 2003, p. 145-146)

A finalidade deste estudo não é trazer novas respostas sobre o poder soberano,

mas analisar criteriosamente e retomar interpretações daquilo que no nosso entender

parece ser o núcleo da teoria política hobbesiana. Para isso, recorreremos aos principais

estudiosos contemporâneos que interpretaram Hobbes e o seu pensamento político.

Alguns comentadores tornaram-se uma referência para os estudiosos

brasileiros: como Gérard Lebrun, Noberto Bobbio, Quentin Skinner e Richard Tuck.

Deste modo, na própria Introdução utilizaremos uma reflexão acerca da maneira como

estes estudiosos interpretaram Thomas Hobbes tendo em vista a questão do poder. Este

diálogo com estes comentadores permite ampliar a interpretação e contextualizar o

próprio debate contemporâneo sobre o pensamento político hobbesiano.

***

Gérard Lebrun (1930-1999) foi um pensador francês que exerceu influência

sobre a filosofia brasileira. Entre as décadas 1960 a 1966 e 1974 a 1980, Lebrun

ministrou aulas na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp) desencadeando um deslumbramento entre os estudantes, sendo

que a cada término de aula era aclamado com uma salva de palmas.

Seu pensamento está caracterizado dentro das vertentes do pós-estruturalismo

que compreende o texto a partir de uma desconstrução literária, ou seja, o texto pode ter

vários sentidos. A tarefa do intérprete não é procurar restituir o real sentido que um

texto poderia ter para os seus contemporâneos, mas em encontrar certo sentido que vai

além do contexto histórico.

Para Lebrun, o equívoco na interpretação dos textos dos filósofos está

justamente em considerá-los como detentores de um sentido e de uma verdade que o

intérprete tem que resgatar. A interpretação exercida na filosofia está muito longe da

objetividade científica, é o que aponta Carlos Alberto Ribeiro de Moura, na

Apresentação de uma coletânea de textos do autor Gérard Lebrun. Essa coletânea de

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textos foi organizada em um livro intitulado: A filosofia e sua história: “Para Lebrun, no

limite a história da filosofia é uma atividade bem mais próxima da crítica literária do

que qualquer ciência positiva”. (LEBRUN, 2006, p. 11)

Os intérpretes são comentadores de um texto e não cientistas imbuídos de um

método rigoroso buscando as provas contidas no próprio texto para trazer à tona a

verdade. Assim, na interpretação de Gérard Lebrun, a filosofia não é ciência e, por isso,

o intérprete não se limita a responder os conceitos de um autor, mas também

reinterpretar o autor e, consequentemente, apresentar os conceitos que ainda exercem

influência sobre nós.

O filósofo Gérard Lebrun escreveu alguns artigos: “Hobbes aquém do

liberalismo” e “Hobbes e a instituição da verdade” organizado no livro, A filosofia e

sua história e, também, uma obra: O que é Poder?, na qual, apresenta a sua

reinterpretação no tocante à teoria política de Thomas Hobbes.

Na concepção de Lebrun, a teoria política hobbesiana é a mais adequada para

tratar da questão do poder. Os homens só reconhecem o poder pelo uso da violência, só

respeitam a autoridade quando são impelidos pelo uso da força. Nas palavras desse

comentador: “quando me submeto às leis e regulamentos editados pelo poder, é sempre

porque uma infração significaria a certeza de uma punição”. (Ibidem, 1981, p. 3)

Aponta que nenhuma organização política pode existir sem a dominação e, a

partir deste reconhecimento, Lebrun demonstra que a teoria da soberania hobbesiana é

apropriada e merece ser analisada, entendendo-a como um modelo político em que “o

soberano tem a tarefa de zelar pela „vida boa e cômoda‟ dos súditos e pela sua

segurança”. (Ibidem, p. 12)

Na interpretação de Lebrun, o Estado possui uma dominação eficaz para o

funcionamento da sociedade se cada vez mais exercer um controle sobre as atividades

dos indivíduos. Ainda escreve: “sem a soberania, ninguém teria aquela confiança

mínima que é necessária para que se sinta membro de uma sociedade”. (Ibidem, 1981,

p. 19) Assim, este poder soberano criado pelos homens mediante a necessidade de

proteção é capaz de uni-los e estabelecer as condições de uma convivência harmoniosa

permitindo, na ausência da lei, certa liberdade ao comprar, ao vender, ao contratar, ao

escolher a residência, a profissão e a educação dos filhos, mas sempre sobre o mais

estrito controle do poder estatal.

***

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O filósofo Noberto Bobbio (1909-2004) é conhecido por suas contribuições no

campo da filosofia política e do direito, considerado um dos maiores nomes

contemporâneos do pensamento político italiano. Escreveu uma obra intitulada Thomas

Hobbes. Na verdade, trata-se de uma coletânea de vários ensaios que foram escritos e

publicados em diversos períodos da vida do autor. Nessa coletânea encontramos várias

temáticas entre as que mais se destacam: a anarquia, a unidade, o Estado e a soberania.

Para Bobbio, a temática central do pensamento político hobbesiano é a unidade

do Estado. É o que podemos verificar na seguinte citação:

Hobbes escreveu sobre política partindo do problema real e

crucial de seu tempo: o problema da unidade do Estado, ameaçada,

por um lado, pelas discórdias religiosas e pelo contraste entre dois

poderes, e, por outro, pelo dissenso entre Coroa e parlamento e pela

disputa em torno da divisão dos poderes. O pensamento político de

todos os tempos é dominado por duas grandes antíteses: opressão-

liberdade e anarquia-unidade. (...) O ideal que ele defende não é a

liberdade contra a opressão mas a unidade contra a anarquia.

(BOBBIO, p. 26)

Na visão de Bobbio, o que realmente incomodava Hobbes era a dissolução da

autoridade política do Estado proveniente da desordem social. Esta desordem seria

originária de uma liberdade que permitiria expressar “opiniões ao próprio gosto sobre

política”, isto é, a liberdade de pensamento: “discordar sobre o justo e o injusto”. A

desagregação da unidade do poder sucede quando os homens começam a defender a

ideia de que o poder deve ser limitado. O incômodo de Hobbes é com a ideia da

insuficiência do poder, a qual instauraria a anarquia, que seria o retorno do homem ao

estado de natureza. Para Bobbio, “não é a opressão que deriva do excesso de poder, mas

a insegurança que resulta, ao contrário, da escassez do poder” (Ibidem, p. 26).

Para Bobbio, a teoria política de Hobbes preocupava-se em construir um

Estado sobre bases tão sólidas que seria impossível a sua dissolução, isto é, a guerra

civil. A guerra civil é um pesadelo, uma calamidade e, portanto, deve ser banida, pois é

produto da ausência do poder.

Portanto, na leitura bobbiana do pensamento político de Hobbes, o poder

soberano do Estado teria sido instituído com o intuito de tornar obrigatórias as leis de

natureza, ou seja, por meio do soberano, aquelas recomendações da razão passam a

valer como leis propriamente expressas. E cabe somente a este determinar o conteúdo

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das leis naturais. Por isso, estará sempre em conformidade com a lei de natureza

qualquer lei civil promulgada pelo soberano. Deste modo, nenhuma lei civil

estabelecida pelo soberano irá contrariar a lei de natureza. Para Bobbio, “o poder

soberano é verdadeiramente ilimitado, seja em relação às leis naturais, seja em relação

aos direitos dos súditos” (BOBBIO, 1991, p. 51).

Segundo Bobbio, o que leva os súditos a romperem com o dever de obediência

não é o poder ilimitado do soberano, não é o excesso de poder, mas a escassez deste. E

isso se explica já que foi a necessidade de segurança mediante a anarquia que levou os

homens a investir outro homem com um poder ilimitado.

Na interpretação de Bobbio, o pensamento político de Hobbes faz alusão ao

Estado moderno que nascia das cinzas da sociedade medieval. Hobbes, afirma Bobbio, é

“um observador despreconceituoso, que assistia – humanamente horrorizado, mas

filosoficamente impassível – ao nascimento de um grande evento, do qual buscou

compreender as causas e finalidade” (Ibidem. p. 57).

***

O historiador britânico Quentin Skinner é uma das maiores referências da

Universidade de Cambridge na interpretação dos autores do pensamento político do

passado. Skinner é um dos defensores “contextualismo linguístico”, que busca

compreender os motivos e as intenções que os pensadores do passado tiveram ao

elaborarem suas teorias políticas.

Deste modo, as teorias políticas não são apenas um sistema geral de ideias, mas

uma concreta interferência nos conflitos ideológicos em que foram elaboradas. Sobre

essa metodologia de interpretação, o próprio Skinner afirma:

Prefiro enfocar a matriz mais ampla, social e intelectual, de que

nasceram suas obras. Começo discutindo o que considero ser as

características mais relevantes das sociedades nas quais eles

originalmente escreveram. Pois entendo que a própria vida política

coloca os principais problemas para os teóricos da política, fazendo

que um certo elenco de pontos pareça problemático, e um rol

correspondente de questões se converte nos principais tópicos em

discussões. Isso não quer dizer, porém, que eu trate essas

superestruturas ideológicas como uma consequência direta de sua base

social. Considero igualmente essencial haver em conta o contexto

intelectual em que foram concebidos os principais textos – o contexto

das obras anteriores e dos axiomas herdados a propósito da sociedade

política, bem como o contexto das contribuições mais efêmeras da

mesma época ao pensamento social e político. (SKINNER, 1996, p.

10)

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Assim, para compreender verdadeiramente o significado de um texto político é

imprescindível o resgate das intenções originais do autor pela contextualização daquela

produção intelectual. Skinner aplica sua teoria da interpretação ao estudar as obras de

Thomas Hobbes.

Na obra Razão e retórica na filosofia de Thomas Hobbes, o pesquisador

Quentin Skinner procurou compreender o desenvolvimento intelectual de Hobbes

analisando a educação que o filósofo recebeu principalmente em Oxford naquela época.

Os currículos da Universidade de Oxford, na Inglaterra, estavam sob influência

do humanismo renascentista. Essa formação humanista era pensada justamente para

formar homens bem preparados para trabalhar como assessores ou conselheiros pessoais

de príncipes e nobres ingleses. Sobre esta formação humanista o pesquisador Quentin

Skinner escreve:

A prova mais sólida de que devemos pensar na formação

intelectual do Hobbes como essencialmente a de um humanista é

fornecida pela gama de trabalhos que ele publicou antes do

lançamento de seu primeiro grande tratado, Sobre o cidadão, em

1642. (SKINNER, 1999, p. 316)

Thomas Hobbes, influenciado por esta formação humanista, foi trabalhar como

professor de alguns nobres, o que lhe permitiu viajar pela França e Itália tendo o contato

com as discussões científicas daquela época. Na interpretação de Quentin Skinner, a

temporada de Hobbes em Paris, nos anos de 1634 e 1635, despertou-lhe um interesse

pela ciência. “Um interesse quase obsessivo pelas leis da física e, acima de tudo, pelo

fenômeno do movimento”. (Ibidem, p. 322) De Paris foi para a Itália dando

continuidade e ganhando incentivo aos seus estudos científicos: “é possível que ele

tenha recebido algum outro incentivo durante sua viagem à Itália (...), conseguiu marcar

um encontro com Galileu”. (Ibidem, p. 342)

Esse contato com as ciências naturais fez com que Hobbes abandonasse a

cultura humanista. Essa mudança intelectual aparece na obra Do Cidadão onde o

filósofo procurou estabelecer um rigor científico na teoria política. Assim escreve

Quentin Skinner: “Hobbes mostra-se perfeitamente disposto a admitir que, na ciência

civil, procuramos uma forma de conhecimento capaz de gerar uma orientação sensata

em questões práticas”. (Ibidem, p. 348)

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Enquanto na obra Do Cidadão Hobbes tinha convicção de que o raciocínio

científico conduzia os homens ao conhecimento verdadeiro, na obra Leviatã, afirma

Quentin Skinner, que Hobbes,

Declara que as ciências têm um poder reduzido, e retoma ao

pressuposto tipicamente humanista de que, para conseguirmos lograr

êxito em convencer os outros a aceitarem nossos argumentos, temos

de contemplar as descobertas da razão com a força mobilizadora da

eloquência. (SKINNER, 1999, p. 569)

Esse retorno à cultura humanista ocorreu na obra Leviatã por ser um trabalho

com a finalidade de atingir um maior número de público e de menor instrução. E além

do mais, “a insistência na ideia de que é pequeno o poder das ciências e, portanto, de

que as descobertas feitas por elas precisam ser complementadas pela força da

eloquência”. (Ibidem, p. 571)

Na obra Hobbes e a liberdade republicana, o pesquisador Quentin Skinner

aponta que Hobbes queria combater as teorias que associavam a monarquia ao regime

de escravidão. No século XVII propagou-se na Inglaterra um conceito de liberdade que

afirmava que em uma monarquia não havia liberdade, como aponta o historiador

Quentin Skinner:

Assim, o nervo da teoria republicana é que a simples presença

de um poder arbitrário é suficiente para subverter a liberdade no seio

das associações civis, porque tem por efeito reduzir os membros de

tais associações do status de homens livres ao de escravos. (Ibidem,

2010, p. 10)

A questão entre liberdade e servidão ganhou importância no período

precedente à guerra civil inglesa, em 1642. Hobbes era o maior adversário da teoria

republicana da liberdade e não mediu esforços para combater sua disseminação naquele

contexto da história do pensamento político inglês.

Quentin Skinner aponta que o interesse de Hobbes pelas ciências naturais

permitiu chegar a uma intuição que viria a constituir-se o ponto de parida e o princípio

geral de sua teoria:

Que todo o mundo do movimento, “e por consequência toda

espécie de filosofia”, consiste em apenas três elementos, Corpus,

Homo, Civis (o corpo, o homem e o cidadão). Esses foram, portanto,

os objetos de estudo, ele explicou, nos quais decidiu mergulhar,

começando com “os vários tipos de movimento”, passando “aos

movimentos internos dos homens e aos segredos do coração” e

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concluindo com “os benefícios do governo e da justiça”. (SKINNER,

2010, p. 34-35)

Na interpretação de Skinner, Hobbes começou abordar os vários tipos de

movimentos concebendo a conclusão de que a liberdade consiste na ausência de

impedimentos externos para ser mover. No estado de natureza, a liberdade natural é um

empecilho para o próprio homem, é uma liberdade infrutífera que leva os homens ao

conflito permanente. É somente com a criação do Estado que estes são impelidos pelas

leis civis a exercerem a liberdade, mas os laços das leis civis não têm o pleno poder de

atar os homens, uma vez que podem violar as próprias leis e retornar aquela liberdade

infrutífera.

Para os contemporâneos de Hobbes, a liberdade natural era uma condição

pacífica e sociável. Mas para Hobbes, esta liberdade natural era um empecilho aos

homens em conquistarem as coisas necessárias à própria existência, além do mais,

conduziam os homens a uma guerra generalizada. Nas palavras do pesquisador Quentin

Skinner, “é a nossa liberdade natural que constitui o principal e imediato obstáculo à

nossa obtenção de qualquer uma das coisas que queremos da vida”. (Ibidem, p. 55)

Somente a renúncia da liberdade natural, por vontade de cada homem, poderia

trazer a paz e a ordem. Assim, tornar-se súdito era abdicar a liberdade natural que

tornava a vida humana improdutiva, curta, pobre e embrutecida. Escreve Skinner que

Hobbes considerava

A liberdade do estado de natureza como “infrutífera” e

enfatizando que “fora do Estado ninguém pode ter a certeza de gozar

dos frutos de sua indústria”, ao passo que “no interior do Estado todos

podem gozar em segurança dos frutos de seus direitos limitados”.

(Ibidem, p. 101)

Para sair desta liberdade infrutífera do estado de natureza, Hobbes propõe o

contrato como um meio de limitar a nossa liberdade natural. Pelo contrato, cada homem

estabelece por sua própria vontade um estado de obrigação; surge, assim, a pessoa

artificial que poderia agir em nome de todos os homens. Com a criação do Estado todos

os homens são agora limitados por castigos previstos nas leis.

Assim, o Estado utiliza-se de um mecanismo punitivo que provoca o medo aos

homens. Na interpretação de Skinner, “„a paixão do medo‟ é a única coisa que faz os

homens (quando parecer haver lucro, ou prazer em infringir as leis) observá-las”.

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(SKINNER, 2010, p. 141-152) Mesmo com o poder punitivo do Estado, os homens

sempre são livres para obedecer ou desobedecer à lei civil. Contudo, por um contrato, os

homens renunciaram a liberdade natural e se comprometem em aceitar a vontade do

soberano. Assim, os súditos se tornam autores de todas as ações executadas pelo

soberano na forma de lei.

Na interpretação de Skinner, Hobbes sustenta que a razão pela qual os homens

se submetem ao governo é a esperança de receber segurança e defesa. É a necessidade

de obediência ao soberano que assume a responsabilidade em promover a ordem e a

paz. Porém, Hobbes não afirmou que o Estado seria imortal, mas buscou conceber um

estado civil que se prolongue em um maior tempo possível garantindo certa paz e a

preservação da vida humana.

***

Richard Tuck é professor na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e

estudou na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Em Cambridge foi aluno de

Quentin Skinner tendo a influência do “contextualismo linguístico” que busca

compreender as obras dos autores do pensamento político no seu contexto de origem.

A sua metodologia de pesquisa constitui-se em um olhar atento às obras do

pensador político do passado encontrando nelas os diferentes contextos que permeiam a

vida do autor. O intérprete deve estar atento à nuance que marca a vida do autor e suas

obras e, também buscar compreender nas obras daquele autor o diálogo que estabelece

com a tradição anterior.

O professor e pesquisador Richard Tuck é uma referência em filosofia política

de Thomas Hobbes chegando a publicar algumas obras e artigos. Entre as obras

publicadas está uma obra de grande valia intitulada Hobbes, onde realiza uma análise

sobre a teoria hobbesiana. Assim escreve:

Hobbes é uma figura peculiarmente apropriada para ser

discutida numa obra deste gênero, porque a ressurreição daquilo que

ele tentava fazer traz dividendos intelectuais que ultrapassam em

muito a área da pesquisa histórica pura. Trata-se igualmente, não

obstante, de uma figura incomumente difícil, visto que a maioria de

seus leitores atuais o aborda com expectativas formadas, advertida ou

inadvertidamente, pelas tradições insatisfatórias de interpretação que

se desenvolveram a seu respeito nos dois últimos séculos. (TUCK,

2001, p. 10)

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Para Richard Tuck criou-se em torno das obras de Thomas Hobbes uma leitura

que não é plausível, apresentando-o como um pessimista da natureza humana, um

precursor do totalitarismo e do ateísmo.

Quanto ao pessimismo em relação à natureza humana, não é verdadeiro, uma

vez que os homens no estado de natureza não querem ferir uns aos outros por simples

deleite de ferir. O que acontece é que os homens possuem um desejo ardente pelas

coisas que os ajudam na sobrevivência e, numa condição de igualdade natural, onde

todos têm direito a tudo, cada homem tem a certeza que os outros também desejam as

mesmas coisas desencadeando a guerra. Assim escreve Richard Tuck: “os homens não

querem ferir os outros simplesmente por feri-los; eles desejam ter poder sobre os outros,

é certo, mas apenas para assegurar sua própria existência”. (TUCK, 2001, p. 75)

De acordo com a interpretação de Richard Tuck, a saída da guerra generalizada

só tem uma alternativa à criação do Estado, assim afirma, que “o acordo passa pela

política, o que deve ser tido na conta da mais importante contribuição de Hobbes à

teoria política”. (Ibidem, p. 77)

O Estado instituído de um poder soberano deve conduzir a sociedade por meio

de leis estabelecendo a civilidade. Ao estabelecer a soberania do Estado, Hobbes não

está sendo o percursor do totalitarismo. É uma leitura descontextualizada, uma vez que

o Estado hobbesiano é uma coesão de vontades com a finalidade de assegurar a

sobrevivência. Aponta Richard Tuck:

O medo liberal moderno do totalitarismo (em especial depois da

experiência do século XX) é primordialmente de que o Estado

disponha de seus próprios alvos ideológicos, de que imponha

doutrinas racistas ou teóricas econômicas particulares aos cidadãos.

Para Hobbes e seus contemporâneos, no entanto, o Estado era

praticamente definível como o corpo de uma sociedade que não tem

interesses ideológicos próprios. Ainda que o Estado fosse cercado por

dogmáticos, não havia nenhuma razão para que adotasse algum dogma

além do que preconiza a necessidade de assegurar a sobrevivência de

seus cidadãos. (Ibidem, 2001, p. 97)

Hobbes engendrou um Estado no qual o soberano deveria exercer um rigoroso

controle sobre as doutrinas religiosas. O soberano deve estar acima das Igrejas que

contaminam os cidadãos com suas opiniões absurdas desencadeando as guerras civis.

Nas palavras do pesquisador Richard Tuck,

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De Hobbes vem diretamente de suas pressuposições

fundamentais – de que o alinhamento da opinião, e do julgamento, no

qual se assenta o Estado não pode ocorrer se o soberano não é o juiz

pleno daquilo que se deve ensinar aos homens (porque aquilo que

ouvem pode persuadi-los). (TUCK, 2001, p. 95)

O Estado tem o direito de decidir e de legislar sobre questões intelectuais.

Assim, esse poder do Estado hobbesiano causou um incômodo entre os homens cultos e

o clero daquela época. Mas o que mais assustava contemporâneos de Hobbes eram suas

concepções religiosas, sendo acusado de ateísmo.

Para Hobbes, na interpretação de Richard Tuck, o homem é completamente

incapaz de formar uma imagem mental sobre Deus, uma vez que este não é matéria. O

que acontece é que quando observamos o mundo físico percebemos uma sequência de

relações causais, sendo cada mudança ocorrida no mundo causada por outro corpo

movente a ele anterior. Assim, em algum momento essa sequência deve ter um começo,

ou seja, uma causa primeira que só pode ser descrita filosoficamente como Deus. Nas

palavras de Richard Tuck:

Mas um Deus impessoal, filosófico, desse tipo ainda tinha uma

importante função a executar na teoria de Hobbes. Em primeiro lugar,

Hobbes alegou em todas as suas obras mais importantes que existe

uma “religião natural”. O que quer que tenha feito o universo e, em

consequência, nos tenha feito, tem de ser incomparavelmente mais

poderoso do que qualquer coisa que possamos imaginar, e é uma

verdade psicológica que um poder desse gênero provoque

necessariamente o culto. (Ibidem, p. 100)

Toda religião é uma maneira de cultuar esse criador inescrutável, e suas

doutrinas e práticas são tudo o que se julgue socialmente apropriado como atos de culto,

mas cabe ao poder soberano o direito de decidir os nomes de designações honrosas a

Deus e, também, quais doutrinas devem ou não devem ser proclamadas em público.

Deste modo, Hobbes estabelece uma religião natural que tenta estabelecer a existência

divina por argumentos filosóficos sem recorrer à revelação sobrenatural. Escreve o

pesquisador Richard Tuck, que “a ideia hobbesiana de uma religião natural pode ser

razoavelmente descrita como „deísta‟, e sua mistura de deísmo e religião civil mostraria

ser profética de boa parte do pensamento iluminista”. (Ibidem, p. 102)

***

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Além desses comentadores, Gérard Lebrun, Noberto Bobbio, Quentin Skinner

e Richard Tuck, utilizaremos também a interpretação dos estudiosos brasileiros que se

dedicam ao estudo da filosofia hobbesiana, como Renato Janine Ribeiro, Eunice

Ostrensky, Maria Isabel Limongi e outros pesquisadores que produziram suas

interpretações. Estes comentadores brasileiros beberam e ainda bebem daqueles

intérpretes da teoria hobbesiana e trouxeram para o cenário da filosofia no Brasil o

pensamento político de Thomas Hobbes.

Recorrendo a estes pesquisadores expandimos a nossa interpretação e com

um olhar de acuidade mergulhamos na teoria política de Thomas Hobbes buscando

compreender como este pensador fundamentou o poder soberano. Nas palavras de um

dos principais comentadores contemporâneos sobre a importância do estudo do poder

soberano, afirma que o autor do Leviatã “(...) observa repetidamente no curso de seu

texto que o soberano é „a alma da República‟, a anima que serve a unificar e, portanto, a

animar os membros desunidos da multidão ao falar e agir em seu nome”. (SKINNER,

2010, p. 176-177)

Inicialmente pensamos em estudar a teoria política de Thomas Hobbes partindo

de uma reflexão sobre o estado de natureza apontando que cada homem está em plena

liberdade e igualdade entre os homens e as consequências dessa condição natural

ocasionava o conflito generalizado. Posteriormente abordaríamos a passagem de

natureza para a sociedade civil em que cada homem renunciaria sua liberdade e

igualdade natural mediante um contrato, instituindo um poder soberano, e analisando,

assim, a constituição e a fundamentação desse poder político. Por fim, iríamos abordar a

contínua ameaça de conflito entre os homens mesmo com a constituição do estado civil

que possibilitaria a própria desarticulação do Estado, compreendendo, assim, o estado

civil na filosofia hobbesiana como uma contínua tensão entre poder e ausência de poder.

Esta proposta inicial teve que ser abandonada, pois ao longo deste estudo

entendemos que Thomas Hobbes construiu um rigoroso sistema filosófico e, assim,

tivemos que recuar nas nossas investigações partindo da sua concepção antropológica

que vai sustentar a sua teoria política e apontar que em decorrência desta natureza

humana os homens têm a necessidade do Estado e de um poder soberano.

Assim, nossa dissertação está constituída em três capítulos. No primeiro

capítulo, partiremos da reflexão sobre a concepção antropológica hobbesiana,

abordando o valor do conhecimento, da linguagem e a utilização da razão, como

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também as paixões e os desejos como movimentos internos da natureza humana. Em

Hobbes, mostraremos, ainda, que o indivíduo é anterior à sociedade, ou seja, que a

organização social surge mediante a necessidade de cada homem preservar a própria

existência.

No segundo capítulo, abordaremos o estado de natureza caracterizada pela

ausência de um poder soberano, onde cada homem desfruta da plena liberdade e

igualdade, estando assim, entregues aos seus desejos e às suas paixões naturais. A

satisfação dessas paixões naturais leva os homens a se chocarem uns contra outros

desencadeando o conflito. É o medo da morte violenta que ameaça a extinção do

próprio gênero humano que os faz calcularem as vantagens e as desvantagens da guerra

generalizada. Os homens são movidos por suas paixões, e pela sua razão é que

permitem a ultrapassagem da condição de natural para a organização do estado civil.

No terceiro capítulo, trataremos da passagem do estado de natureza para o

estado civil, no qual cada homem renuncia sua liberdade e igualdade natural por meio

de um contrato instituindo um poder soberano. Analisaremos a constituição e a

fundamentação desse poder político.

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CAPÍTULO I

A CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA DE THOMAS HOBBES NO LEVIATÃ

O pensamento político de Thomas Hobbes é um esforço intelectual para fazer

da política uma ciência, ou seja, num empreendimento rigoroso e sistemático que

permita ao indivíduo marcado por uma natureza belicosa convencer-se pelos ditames da

razão como é a realidade e, consequentemente, edificar uma vida coletiva tendo como

fundamento o contrato, a paz e o direito.

Assim, para um melhor estudo do pensamento político hobbesiano, iniciaremos

esta análise pela sua compreensão antropológica que demonstra a necessidade da

criação de corpo político por ocasião dos desejos e das paixões desordenadas dos

homens. Enfocaremos nessa abordagem o valor da experiência na construção do

conhecimento humano, como também o valor da linguagem e a utilização da razão.

Para isso, recorremos à obra de maior maturidade intelectual de Thomas

Hobbes, e que melhor expressa o seu pensamento político, o Leviatã (1651). Deste

modo, utilizaremos para a análise os Capítulos I; II; III; IV; V; VI; VII; VIII e IX com a

finalidade de melhor compreender a abrangência do conceito de homem hobbesiano e as

consequências desse conceito na sua teoria política.

1.1 O conhecimento, a linguagem e o pensamento no homem hobbesiano

O pensamento de Thomas Hobbes está envolto por um período de grandes

descobertas científicas que foram possíveis graças na maior parte ao método

experimental e à matemática; que buscavam compreender as causas e os efeitos de um

fenômeno natural de uma maneira sistemática e descrito por uma linguagem

matemática.

O nosso filósofo elaborou um sistema rigoroso, inteiramente fechado e que

permitisse explicar tudo a partir do movimento. A sua Filosofia tem como único objeto

o movimento, ou seja, o processo causal mediante o qual a realidade de tudo que se

origina pode ser objeto de experiência. Com isso, ele quer compreender as causas

geradoras de tudo aquilo que a experiência pode abranger e exclui da sua Filosofia tudo

aquilo que não se refere aos corpos, pois onde não existe geração também não existe

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filosofia. Tudo aquilo que é essência espiritual ou não é corpóreo está excluído da

filosofia. Exclui da área da filosofia a teologia, pois esta não é capaz de apresentar a

causa geradora de Deus. É o que explica o filósofo:

O assunto da Filosofia, ou a matéria de que ela trata, é todo

corpo do qual se pode conhecer uma geração e do qual se pode

estabelecer uma comparação sob algum aspecto, ou no qual tem lugar

composição e resolução, isto é, todo corpo do qual se pode

compreender a geração ou que tem alguma propriedade.

É isso é deduzido de própria definição de filosofia, cuja tarefa é

a de investigar uma propriedade a partir da geração ou a geração a

partir da propriedade; donde se compreende, portanto, que, ali onde

não há nenhuma geração ou propriedade, não há filosofia. Portanto, a

filosofia exclui de si a Teologia, ou seja, a doutrina da natureza e dos

atributos de Deus, eterno, ingerável, incompreensível, e acerca do qual

não se pode conhecer nenhuma composição ou divisão, nem para

composição ou divisão, nem conceber alguma geração. (HOBBES,

2009, p. 35)

Desse modo, os corpos são os únicos objetos possíveis da razão, e o que não

for material está fora de qualquer possibilidade de investigação. Os corpos são os únicos

sujeitos dos quais se podem falar e dos quais se podem considerar as propriedades e

investigar suas causas. Os corpos são tudo aquilo que não depende do nosso

pensamento, são a substância real sobre a qual o movimento ocorre e imprimem em nós

seus conceitos. Assim, os corpos e o movimento explicam os fenômenos e toda a

realidade. Tudo aquilo que existe é causado pelo movimento é o que assegura o próprio

Thomas Hobbes:

Pois a variedade de todas as figuras é originada da variedade

dos movimentos pelos quais são construídas, e não se pode entender

que o movimento tenha outra causa além de outro movimento, nem

tampouco que a variedade das coisas percebidas pelos sentidos, tais

como as várias cores, sons, sabores etc, tenha outra causa além do

movimento, que se oculta em parte no objeto agente, em parte naquele

que sentem, de um modo tal que, embora não se possa conhecer sem

raciocínio qual seja esse movimento, é, todavia, manifesto que há

algum movimento. (Ibidem, p. 139)

A partir da teoria do movimento, Hobbes procurou explicar o mundo físico, o

psicológico, a própria moral e até a política. No tocante à teoria do movimento, o

pesquisador Quentin Skinner comenta que o próprio Hobbes:

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Considerou sua intuição fundamental: que todo o mundo do

movimento, „e por consequência toda espécie de filosofia‟, consiste

em apenas três elementos, Corpus, Homo, Civis (o corpo, o homem e

o cidadão). Esses foram, portanto, os objetos de estudos, ele explicou,

nos quais decidiu mergulhar, começando com „os vários tipos de

movimento‟, passando aos „movimentos internos dos homens e aos

segredos do coração‟ e concluindo com „os benefícios do governo e da

justiça‟. (SKINNER, 2010, p. 34-35)

Assim, a teoria do movimento é o ponto de partida para a construção do

sistema hobbesiano. A ciência natural está restrita à investigação das causas mecânicas

dos fenômenos naturais. O próprio homem e o seu comportamento podem ser

compreendidos por serem frutos de movimentos externos e internos. E, também, a

política, considerada como ciência, pode ser compreendida a partir do mecanicismo, já

que o Estado hobbesiano é uma criação humana, ou seja, fruto do movimento dos

homens mediante um pacto e, assim, suas causas são plenamente cognoscíveis.

Thomas Hobbes parte na sua Filosofia de uma concepção materialista e

mecanicista do homem. Assim, existe um desdobramento lógico entre a sua concepção

que foi denominada pelos estudiosos de física (que estuda o movimento dos corpos) e a

sua concepção que foi denominada de antropológica (que estuda o movimento no

homem, como as paixões e os desejos).

A física hobbesiana compreende a realidade material como corpos em

movimentos decorrentes da relação mecânica de causa e efeito. Como mostra o filósofo

sobre o estudo da física que:

(...) Após a consideração do que se produz a partir do simples

movimento, segue-se a consideração de que o movimento de um

corpo produz em outro corpo. E porque pode haver movimento em

cada parte singular do corpo, mas de tal maneira que o todo, não

obstante, não se desloque de lugar, deve-se investigar, em primeiro

lugar, que movimento produz qual movimento no todo. Isto é, se

algum corpo se choca com outro corpo que está em repouso ou que já

se encontra em movimento, com qual trajetória e com que velocidade

se moverá depois do choque, e, por sua vez, que movimento o

segundo corpo gerará num terceiro, e assim por diante. (HOBBES,

2009, p. 141)

Enquanto a física compreende as causas e os efeitos do mundo, a sua

antropologia procura compreender o homem como uma máquina, um ser autômato, que

pode ter suas peças e suas engrenagens devidamente explicadas por leis mecânicas - é o

que podemos constar na obra do Leviatã:

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Pois, considerando que a vida não passa de um movimento dos

membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, por

que não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se

movem por meios de molas e rodas, tal como um relógio) possuem

uma vida artificial? Pois o que é o coração, senão uma mola; e os

nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão outras tantas

rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado

pelo Artífice? E a arte vai mais longe ainda, imitando apenas criatura

racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela

arte é criado aquele grande LEVIATÃ a que se chama REPÚBLICA

(em latim CIVITAS), que não é se não um homem artificial, embora

de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção

e defesa foi projetado. (HOBBES, 2003, p. 11)

A partir do mecanicismo, Hobbes estabeleceu sua “filosofia dos sentidos”

partindo da concepção padrão do empirismo, em que “não existe nenhuma imagem na

mente de um homem que não tenha passado pelos sentidos”. Assim, os movimentos da

matéria pressionam os nossos órgãos de diversas maneiras. O objeto, ao atuar nos olhos,

nos ouvidos ou em outras partes do corpo humano, produz diversas aparências e as

origens de todas as aparências são as sensações.

A sensação no homem é a imagem que o objeto corpóreo produz nos órgãos

dos sentidos. Para explicar as sensações, o filósofo utilizou-se do conceito de

movimento, mas tendo como fundamento o movimento gerado pelo sujeito sensível que

reage ao movimento do objeto, surgindo imagens e representações. É o que afirma o

próprio filósofo, considerando a experiência como única fonte de todo o conhecimento,

e este se dá a partir das sensações:

A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona

o órgão próprio de cada sentido, seja de forma imediata, como no

gosto e no tato, seja de forma mediata, como na visão, no ouvido e no

olfato; essa pressão, pela mediação dos nervos e outras cordas e

membranas do corpo, prolongando para dentro em direção ao cérebro

e o coração, causa ali uma resistência, contrapressão, ou esforço do

coração, para se transmitir; esses esforços, porque para fora, parece

ser de algum modo exterior. E é a esta aparência ou ilusão que os

homens chamam sensações; e consiste, no que se refere à visão, numa

luz, ou cor figurada; em relação ao ouvido, num som; em relação ao

olfato, num cheiro; em relação à língua e paladar, num sabor; e em

relação ao resto do corpo, em frio, calor, dureza, macieza, e outras

qualidades, tantas quantas discernimos pelo sentir. (Ibidem, 2004, p.

15-16)

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Quando o homem vê, sonha etc., após o desaparecimento do objeto ou quando

os olhos estão fechados, conserva-se a imagem das coisas percebidas, entretanto mais

obscura do que quando as percebe em sua presença. Portanto, a imagem ou fantasia é

uma sensação diminuída e pode encontrar-se no ser humano e em outros seres vivos que

estejam adormecidos ou acordados. Quando os objetos são afastados de nossos sentidos,

permanece em nós a impressão; entretanto, surgem novos objetos que estão mais

presentes e atuando em nós, e, com isso, a imaginação passada fica obscura e

enfraquecida. Quanto mais tempo decorrer da sensação deste ou de qualquer outro

objeto tanto mais fraca ficará a imaginação ou a memória. Para o comentador Douglas

Jesseph,

Hobbes limita nosso conhecimento da natureza aos “fantasmas”

ou “fantasias” da mente que toma como representações mentais de um

mundo do exterior. Esses fantasmas são, portanto, causados por coisas

exteriores a nós, e a tarefa fundamental do filósofo natural é buscar

uma explicação causal para tais fenômenos. (SORELL, 2011, p. 119)

As imagens ou fantasias são puras aparências individuais provenientes das

impressões. Por „individuais‟, queremos dizer que essas representações mentais são

frutos do movimento dos sentidos com os objetos armazenando essas imagens (dos

objetos) na memória de cada homem.

As imagens ou as fantasias armazenadas na memória, para não se limitarem a

ser apenas aparências subjetivas, precisam tornar-se palavras ou outros sinais

voluntários, que é o entendimento. O entendimento próprio do homem é o entendimento

não só de sua vontade, mas de suas concepções e pensamentos por meio da sequência e

encadeamento dos nomes em afirmações, negações ou em outras formas de discursos.

Uma cadeia de pensamento é a sucessão de um pensamento a outro, conhecido como

discurso mental. Desse modo, Thomas Hobbes considera que “o homem não pode ter

nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeito à sensação”.

(HOBBES, 2003, p. 29)

Em vez de limitar-se a encadear imagens, o homem criou a mais nobre e útil de

todas as invenções, a linguagem, que consiste em nomes ou apelações. Em suas

ligações, os homens registram o que consistem seus pensamentos, recordando-os e

usando-os para conversarem; sem ela não haveria nem Estado, nem sociedade, nem

contrato, nem paz. É o que afirma o próprio filósofo:

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Mas a mais nobre e útil de todas as invenções foi a

LINGUAGEM, que consiste em nomes ou designações e nas suas

conexões, pelas quais os homens registram os seus pensamentos, os

recordam, depois de passarem, e também os manifestam uns aos

outros para a utilidade e convivência recíproca, sem o que não haveria

entre os homens nem república, nem sociedade, nem contrato, nem

paz, tal como não existem entre os leões, os ursos e os lobos.

(HOBBES, 2003, p. 29-30)

O uso da linguagem tem por finalidade passar o discurso mental para um

discurso verbal (palavras), tendo por serventia o registro de nossos pensamentos,

podendo também ser empregado para o aconselhamento. E ensinamento de uns aos

outros, assim como para darmos a conhecer aos outros nossas vontades e objetivos. Os

nomes servem para marcar e anotar as lembranças. A importância da linguagem na

filosofia de Thomas Hobbes consiste em que os homens deixam de calcular por imagens

para calcular por nomes. Assim, a linguagem tem por utilidade na recordação das

consequências de causa e efeitos, por meio de nomes e de suas conexões.

Para a comentadora Maria Isabel Limongi, a linguagem é um instrumento de

utilidade para a construção da ciência e da política hobbesiana:

A linguagem é, antes de tudo, um auxiliar da memória, a que se

acrescenta, num segundo momento, uma função comunicativa. (...)

Hobbes adota, assim, uma versão nominalista dos universais. (...) Essa

formulação indica que primeiro formamos uma concepção comum a

várias coisas, para depois, ao nomeá-la, instituirmos um nome com a

mesma característica. Isto, porém, vai de encontro à ideia de que é

apenas a partir da instituição dos nomes, e não no plano dos conceitos,

que passamos a poder afirmar algo sobre o mundo sob a forma

universal. (LIMONGI, 2009, p. 153-154)

Toda a filosofia da linguagem em Hobbes é centrada no nome, pois a

linguagem é simplesmente denominação de alguma coisa. A linguagem significa

consecutivamente os conteúdos mentais de quem fala, ou seja, todo nome é nome de

alguma coisa. Escreve Hobbes, no tocante a linguagem,

Considerando então que a verdade consiste na correta

ordenação de nomes nas nossas afirmações, um homem que procura a

verdade rigorosa deve-se lembrar o que significa cada palavra de que

se serve, e então empregá-la de acordo. (HOBBES, 2003, 34)

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Os homens para construir a ciência precisam estabelecer o significado exato de

cada nome por meio da significação. A definição quando não emprega adequadamente o

significado à palavra, ela perde a sua utilidade e, consequentemente, prejudica a

compreensão e a construção do conhecimento científico. O erro na linguagem consiste

no emprego de nomes que não podem ser pensados como nomes de uma mesma coisa.

Para Hobbes, no uso da linguagem, podem ocorrer alguns abusos, por meio de

registros errados pelos pensamentos dos homens e devido à inconstância da significação

de suas palavras com as quais registraram por suas concepções aquilo que jamais

conceberam. Assim, de acordo com o filósofo, são quatro os usos referentes aos abusos

da linguagem e que geram equívocos:

Primeiro, quando os homens registram erradamente os seus

pensamentos pela inconstância da significação das suas palavras, com

as quais registram como concepções suas aquilo que nunca

conceberam, e deste modo se enganam. Em segundo lugar, quando

usam palavras de maneira metafórica, ou seja, como um sentido

diferente daquele que lhes foi atribuído, e deste modo enganam os

outros. Em terceiro lugar, quando por palavras declaram ser uma

vontade aquilo que não o é. Em quarto lugar, quando as usam para se

ofenderem uns aos outros, pois, dado que a natureza armou os seres

vivos, uns com dentes, outros com chifres e outros com mãos para

ferirem o inimigo, nada mais é do que um abuso da linguagem ferir os

outros com a língua, a menos que se trata de alguém que somos

obrigados a governar, mas então não é ferir, e sim corrigir e emendar.

(HOBBES, 2003, p. 31)

Assim, linguagem, na concepção hobbesiana possui um cunho pragmático, ou

seja, um instrumento para expressar o conhecimento, desenvolver a ciência e

estabelecer um contrato que permita edificação do Estado com poder soberano.

Quanto à razão, desenvolve-se no homem no momento em que este inventa a

linguagem, impondo nomes aos conteúdos do seu pensamento, para melhor lembrá-los.

Desse modo, a razão tem uma importância singular na teoria política hobbesiana, pois o

estado civil é fruto dela, uma vez que a razão sugere aos homens, movidos por desejos e

paixões, os caminhos que tendem à paz. E, também, permite aos homens estabelecerem

uma constância na linguagem levando-os a se compactuarem e a instituirem o Estado,

uma espécie de organismo artificial criado por cada um dos homens com a finalidade de

garantir a autopreservação do gênero humano.

A capacidade racional do homem não é um atributo inato e nem adquirido pela

experiência, mas fruto de um estímulo, ou seja, por um rigoroso procedimento

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empregado por cada ser humano que permite realizar conexões bem ordenadas e

necessárias de um pensamento ao outro. É o que diz Hobbes:

Por aqui se vê que a razão não nasce conosco com os sentidos e

a memória, nem é adquirida apenas pela experiência, como a

prudência; pelo contrário, é alcançada com esforço, primeiro por meio

de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar obtendo-se

um método bom e ordenado para proceder dos elementos, que são

nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com outro, e daí

para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com outra,

até chegarmos a um conhecimento de todas as consequências de

nomes pertencentes ao assunto em questão, e é isto que os homens

chamam CIÊNCIA. (HOBBES, 2003, p. 43-44)

Desse modo, a razão em Hobbes não é uma entidade metafísica constituída de

uma substância imaterial e eterna, mas um mecanismo corpóreo, estimulado por cada

indivíduo capaz de conjeturar nomes gerais que foram estabelecidos para marcar e

significar nossos pensamentos. Ainda, nas palavras do filósofo:

Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma

soma total pela adição de parcelas, ou conceber um resto pela

subtração de uma soma por outra; o que (se for feito com palavras) é

conhecer a consequência partindo dos nomes de todas as partes para o

nome do todo, ou partindo dos nomes do todo e de uma parte para o

nome da outra parte. (Ibidem, p. 39).

Raciocinar, portanto, nada mais é que um movimento da nossa razão que

consiste em somar e em subtrair nomes gerais estabelecidos para marcar e significar o

pensamento. A finalidade da razão na teoria hobbesiana é estabelecer significações fixas

de nomes, permitindo assim uma comunicação humana sem ambiguidade. É a

ambiguidade da linguagem que desencadeia toda forma de disputa entre os homens: “as

metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido são como ignes fatui, e

raciocinar com elas é perambular entre inúmeros absurdos, e o seu fim é a disputa, a

sedição ou o desacato”. (Ibidem, p. 45)

O equívoco da linguagem é decorrente da ambiguidade dos nomes e da

inconstância do significado que podem trazer à mente pensamentos diferentes daqueles

que foram estabelecidos. Assim, a não exatidão e compreensão clara da linguagem

compromete a estipulação do contrato, o que desencadeia a precária formação do

Estado.

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É pela convenção que se tem o correto uso da linguagem. Assim, o esforço da

memória permite certificar se cada nome foi empregado corretamente ao objeto. Desse

modo, o que importa para Thomas Hobbes, em sua teoria da linguagem, é que cada

homem utilize as palavras de uma maneira tal que o permita entrar em consenso que

elas se referem aos mesmos objetos. No tocante à linguagem, apresentada por Hobbes,

comenta a pesquisadora Maria Isabel Limongi: “podemos nos enganar quanto ao uso

que os outros fazem deste ou daquele nome, mas não quanto ao critério – a evidência –

que permite saber se este discurso comunica ou não um determinado conteúdo”.

(LIMONGI, 2009, p. 163)

A ambiguidade da linguagem juntamente às paixões humanas, que são

propensas à subjetividade e ao interesse de cada um, podem ocasionar os maiores

malefícios a um Estado, como desencadear uma guerra civil. Hobbes estabeleceu uma

objetividade da linguagem como uma denominação de coisas possibilitando no plano

racional as relações sociais e políticas.

1.2 O homem hobbesiano: ser de paixões e desejos

O ponto de partida para a compreensão do estado de natureza hobbesiano é a

sua abordagem antropológica que caracteriza o homem primeiramente como um ser de

paixões e de desejos. Essas paixões e desejos nada mais são que movimentos internos

que ocorrem sem limites e sem repouso - é o que aponta a comentadora Yara Frateschi:

O homem, como os corpos em geral, move-se inercialmente.

Por conseguinte, suas emoções, que são movimentos internos também

se movem sem fim e sem repouso. A conexão entre a visão do homem

e a concepção mecânica de natureza é, portanto, um aspecto

fundamental na obra hobbesiana (...). (FRATESCHI, 2008, p. 72-73)

Em Thomas Hobbes, as paixões primitivas, como o apetite, a aversão, o amor,

o ódio, o prazer e a dor, são movimentos internos dos homens e decorrem das reações

dos objetos externos. Assim, essas paixões são apenas modalidades de uma tendência

primitiva, o desejo. E, como os homens são estimulados constantemente pelos corpos

(sensações), sempre haverá desejo.

O desejo é um esforço pelo qual o homem tende a buscar aquilo que contribui

para a sua autopreservação. O esforço consiste em movimentos imperceptíveis que

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ocorrem nas partes internas do corpo humano manifestando-se em movimentos externos

perceptíveis.

O esforço é o início do movimento no interior do homem, isto é, antes de se

manifestar no andar, na fala, na luta e em outras ações que são visíveis. É o que afirma o

próprio filósofo na obra do Leviatã:

E dado que andar, falar e os outros movimentos voluntários

dependem sempre de um pensamento anterior de como, onde e o que,

é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os

movimentos voluntários. (...) Estes pequenos inícios do movimento,

no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na

fala, na luta e em outras ações visíveis, chamam-se geralmente

ESFORÇO. (HOBBES, 2003, p. 47)

Assim, quando o esforço é dirigido a algo que o causou, é chamado de apetite

ou desejo; mas quando o esforço é destinado a evitar alguma coisa, é chamado de

aversão. Para Thomas Hobbes, aquilo que consequentemente causar em cada indivíduo

o apetite é denominado de bom, e aquilo que consequentemente causar uma aversão é

dominado de mau.

Deste modo, o bom e o mau são relativos a cada ser humano, ou seja,

provenientes do efeito causado em cada indivíduo em contato com o objeto de anseio.

Na interpretação de Richard Tuck, “Hobbes afirmara e explicara o relativismo moral:

não há propriedades morais objetivas, sendo o que parece bom aquilo que agrada a dado

indivíduo ou é bom para ele”. (TUCK, 2001, p. 74-75) Assim, na teoria hobbesiana, não

existe na condição de natureza um universo moral no qual se fundamenta a concepção

de bondade e maldade. Não existe um bom e mau absoluto que possui em si mesmo a

razão de ser. No estado de natureza, o bom e o mau equivalem, respectivamente, ao que

é prazeroso e ao que é doloroso para cada ser humano, isto é, relativo a cada homem e

fruto da sensação que lhe é causada pelo objeto de desejo. É o que demonstra o próprio

autor do Leviatã:

Mas, seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer

homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto do

seu ódio e aversão chama mau, e ao do seu desprezo chama vil e

insignificante. Pois as palavras “bom”, “mau” e “desprezível” são

sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada que seja

simples e absolutamente, nem há nenhuma regra comum do bem e do

mal. Ela só pode ser tirada da pessoa de cada um (quando não há

república) ou então (numa república) da pessoa que a representa; ou

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também de um arbítrio ou juiz que pessoas discordantes possam

instituir por consentimento, fazendo que a sua sentença seja aceita

como regra. (HOBBES, 2003, p. 48-49)

Esta definição da vida afetiva do homem, em função do desejo, permite

entender que não existe um fim último exterior à existência humana em si. Assim, a

felicidade não pode consistir no descanso e na satisfação em que a posse de último

objeto daria ao homem. Ao contrário, considerando que se trata de um ser de desejo,

que está incessantemente em movimento, o homem permanece sempre em busca de

satisfações e prazeres novos. Nas próprias palavras de Thomas Hobbes:

O sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos

em tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é

aquilo a que os homens chamam FELICIDADE; refiro-me à

felicidade nesta vida. Pois não existe uma perpétua tranquilidade de

espírito enquanto aqui vivemos, porque a própria vida não passa de

movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como

não pode deixar de haver sensação. (Ibidem, 2003, p. 57)

A preocupação central da filosofia política de Hobbes é a autopreservação do

homem. O homem hobbesiano sempre age com a finalidade de satisfazer seus desejos e,

consequentemente, continuar em movimento garantindo a própria existência. O único

objetivo da vida do ser humano é a satisfação dos seus desejos - enquanto cada homem

satisfaz os seus desejos garante a própria sobrevivência.

Desse modo, o agir humano no estado de natureza sempre visa à perspectiva da

autopreservação. Analisando a questão da autopreservação na teoria hobbesiana,

escreve Richard Tuck, “ele acreditava que nosso único direito natural é o direito de

simplesmente nos autopreservar, e de usar qualquer meios que julguemos necessários a

esse propósito”. (TUCK, 2001, p. 80) Assim, a própria competição de cada homem

contra todos os homens, desencadeada no estado de natureza, é para garantir a própria

preservação de cada homem. Quando os homens, movidos por paixões e desejos, agem

antecipadamente contra os demais homens entrando em competição, o que está em jogo

é a autopreservação de cada homem.

A própria saída da condição de guerra generalizada no estado de natureza

justifica-se em nome da autopreservação, já que uma guerra generalizada é desvantajosa

para cada homem e, consequentemente, a todos os homens. O homem hobbesiano quer

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sempre satisfazer sempre mais os seus desejos e, com isso, viver bem. E não há nada

mais contrário a esse princípio que uma guerra generalizada.

Por isso, é em nome da autopreservação que os homens criam o Estado. Nas

palavras da pesquisadora Thamy Pogrebinschi: “a formação da sociedade civil é,

portanto, o resultado do desejo de sobrevivência de cada homem”. (POGREBINSCHI,

2002, p. 43) O Estado está fundamentado sobre a ótica da autopreservação: os homens

edificaram o Estado com a finalidade de o poder soberano manter os homens sob certa

ordem e paz. A autopreservação de cada homem é a única fonte da obediência política

ao soberano e ela é decorrente da satisfação dos desejos de cada ser humano.

1.3 O homem não é um animal sociável

Outro ponto importante na teoria política de Thomas Hobbes é a sua

discordância do pensamento político aristotélico, basicamente da tese do filósofo grego

de que “a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal

social”. (ARISTÓTELES, 1997, p. 15) A ideia central da política aristotélica é que na

cidade (polis) o homem educa os seus desejos para uma vivência harmoniosa uns com

os outros.

Em Aristóteles, a cidade é uma forma natural de associação que engloba a

família e a aldeia. Várias aldeias naturalmente se unem numa única comunidade com o

anseio de ser autossuficiente. Desse modo, a finalidade da cidade é o viver e o viver

bem, conforme afirma Aristóteles:

A comunidade constituída a partir de vários povoados é a

cidade definitiva, após atingir o ponto de uma autossuficiência

praticamente completa; assim, ao mesmo tempo que já tem condições

para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também

para lhes proporcionar uma vida melhor. (Idem)

A comunidade política aristotélica existe com finalidade ao viver bem

coletivamente (o bem comum) e, concomitante a isso, deve-se promover a educação dos

desejos mediante a razão permitindo a convivência harmoniosa dos homens tornando-os

virtuosos. É o que aponta o próprio Aristóteles, na sua obra Ética a Nicômaco: “a

virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e

paixões, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de

sabedoria prática”. (Ibidem, 2004, p. 49)

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Deste modo, na política aristotélica a cidade possibilitava desenvolver o caráter

nos cidadãos com a finalidade de torná-los virtuosos e capazes de ações nobres. Nas

palavras da comentadora Yara Frateschi: “para Aristóteles, é marca distinta do homem

virtuoso não apenas agir virtuosamente, mas sentir prazer ao praticar ações nobres. Essa

identificação do virtuoso com aquele que sente prazer em bem agir está ausente da

filosofia hobbesiana”. (FRATESCHI, 2008, v. 2, n.º 2, p. 04)

O domínio da razão sobre as paixões possibilita ao homem aristotélico um

ideal de humanidade que permite a cada homem uma vivência tranquila e equilibrada. É

como se, individualmente, cada homem constantemente ponderasse as suas ações

mediante a razão para um bem agir.

Essa vida feliz e tranquila não se limita à esfera individual, mas abrange

também a vida em sociedade. Cada homem buscaria naturalmente se organizar para um

viver tranquilo e harmonioso, ou seja, a felicidade coletiva.

A discordância de Hobbes ao pensamento político aristotélico assinala para a

concepção de homem marcada por paixões e desejos incessantes. Não mais para aquela

concepção (aristotélico-escolástica) que afirma ser o homem possuidor de uma

predisposição natural à busca da felicidade coletiva, mas ao homem que pensa única e

exclusivamente em satisfazer seus desejos e paixões naturais. Nas palavras da

comentadora Yara Frateschi,

Para Hobbes os homens têm um impulso natural não para a vida

em comunidade nas para a conservação de si mesmos e para a

obtenção de benefícios próprios. (...) A tendência natural do homem é

a busca de benefícios para si mesmo, e não a associação com outros

homens. (Ibidem, 2008, p. 13)

Para Hobbes, os homens não se reúnem levados pela natureza, mas mediante

um contrato. A vida política não é uma tendência natural dos homens, mas é fruto de

um esforço de cada indivíduo para a instituição desta ordem. A organização social não

está naturalmente dada, mas, pelo contrário, é artificialmente criada pelos homens com

a finalidade de garantir a própria existência humana. A aptidão para a vida social é

adquirida. Assim sendo, a sociedade é decorrente da escolha dos homens que em um

determinado momento optaram coletivamente em construir a sociedade civil.

O homem na teoria hobbesiana tem naturalmente a dificuldade em se acomodar

uns aos outros – é um ser antissocial que pensa somente em sua autopreservação.

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É possível constatar na obra Do Cidadão essa discordância entre Hobbes e o

pensamento aristotélico:

A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a

propósito das repúblicas ou supõe, ou nos pede ou requer que

acreditemos que o homem é uma criatura que nasce apta para a

sociedade. Os gregos chamam-no zoon politikon; e sobre este alicerce

eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para se preservar a

paz e o governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os

homens concordarem em firmar certas convenções e condições em

comum, que eles próprios chamariam, então, leis. Axioma este que,

embora acolhido pela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um

erro que precede de considerarmos a natureza humana muito

superficialmente (HOBBES, 1998, p. 25-26).

Assim, o homem hobbesiano não possui naturalmente um instinto que o leve

espontânea e naturalmente à benevolência e à concórdia. Quando os homens se

relacionam não o fazem por consideração ao próximo, mas por seus interesses pessoais,

ou seja, para garantir a sua existência. Portanto, não existem nos homens um amor ou

uma compaixão natural com o seu semelhante. Nas palavras de Quentin Skinner no

tocante à aversão de Thomas Hobbes ao pensamento político de Aristóteles:

Hobbes descarta com desprezo a suposição em contrário de

Aristóteles, segundo a qual “o homem é um animal nascido apto à

Sociedade”. Não há possibilidade alguma, replica, de que indivíduos

que compõem uma multidão e que vivem em um estado de pura

natureza possam ser capazes de cooperar uns com os outros

amistosamente e em paz. (SKINNER, 2010, p. 98-99)

Como não existe uma cordialidade natural entre os homens, toda associação

entre os indivíduos é para atender às satisfações e interesses pessoais, ou seja, para

buscar o que individualmente parece bom para cada homem. É o que afirma Hobbes na

obra Do Cidadão: “toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto

é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos”

(HOBBES, 1998, p. 26).

Desse modo, na teoria política hobbesiana, somente o medo recíproco leva os

homens a se reunirem: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não

provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas

do medo recíproco que uns tinham dos outros”. (Ibidem, p. 28)

Em Hobbes, a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não está

fundamentada na boa vontade dos homens, de uns para com os outros, mas no medo

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recíproco, isto é, no temor de que cada indivíduo possa efetivamente ameaçar a vida e o

bem estar de cada homem.

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CAPÍTULO II

O ESTADO DE NATUREZA NO LEVIATÃ: O HOMEM NA

AUSÊNCIA DE UM PODER SOBERANO

Analisaremos agora o homem na condição de natureza, que, segundo Thomas

Hobbes, é caracterizado pela ausência de um poder comum capaz de manter os homens

numa certa ordem e paz. “O estado natural dos homens, antes de ingressarem na vida

social, não passava de guerra, e esta não era uma guerra qualquer, mas uma guerra de

todos contra todos”. (HOBBES, 1998, p. 33)

Para isso, recorremos à obra do Leviatã (1651) utilizando para a análise os

Capítulos X; XI; XII; XIII; XIV e XV com a finalidade de melhor compreender a

abrangência do conceito de “estado de natureza” e, consequentemente, os seus

desdobramentos conceituais.

2.1 A igualdade natural e o domínio de um homem sobre outro

Outro ponto importante no pensamento político de Thomas Hobbes é a sua

crítica à teoria da desigualdade natural presente na concepção política aristotélica. Para

Aristóteles, existe uma desigualdade natural entre os homens:

Portanto, todos os homens que diferem entre si para pior no

mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de

um animal inferior (e esta é a condição daqueles cuja função é usar o

corpo e que nada melhor podem fazer) são naturalmente escravos.

(ARISTÓTELES, 1997, p. 19)

A escravidão na teoria aristotélica é decorrente de uma desigualdade natural

entre os homens. Muitos homens obedecem apenas às paixões, sendo necessário se

submeterem à autoridade de alguém que possui inteligência; fazendo assim, participam

da razão por meio do mando. Nas palavras da pesquisadora Yara Frateschi, no tocante à

concepção de escravidão segundo Aristóteles:

A inteligência deve ter autoridade sobre o apetite, os animais

devem ser dominados pelos humanos, as mulheres devem obedecer

aos homens e, finalmente, os homens que não possuem razão devem

obedecer aos que a possuem. Assim, a escravidão é adequada e justa

quando obedece aquele cujo corpo é feito para o trabalho que exige

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força (e não serve para as funções da polis) e manda aquele que é útil

para a vida política. A inversão dessa situação – ou até mesmo a

paridade entre esses dois homens (que são partes de um composto) –

seria prejudicial, e o mesmo acontecerá se o corpo governasse a alma,

os apetites tivessem autoridade sobre a inteligência e os animais

subjugassem os homens. Logo, nem toda escravidão é, para

Aristóteles, uma violação da natureza. Concorda com a natureza a

relação de comando e subordinação entre escravo e senhor quando o

elemento que não possui razão está subordinado ao que possui. E viola

a natureza a escravidão que inverte essa hierarquia fazendo com que o

melhor se subordine ao pior. (FRATESCHI, 2008, p. 111-112)

Deste modo, alguns homens nasceram para exercer o poder sob a justificativa

da racionalidade, e todos os outros homens nasceram para obedecer pela justificativa de

se deixarem conduzir facilmente pelas paixões e desejos. A teoria da desigualdade

natural em Aristóteles estabelecia uma submissão ao governo mediante o argumento

que este é fruto de uma ordem estabelecida pela própria natureza. É o que afirma o

filósofo Thomas Hobbes:

Sei que Aristóteles, no primeiro livro de sua Política, afirma –

que alguns são feitos, por natureza, dignos de mandar, outros apenas

para servir: como se senhor e servo se distinguissem não apenas pelo

consentimento dos homens, mas por uma aptidão, ou seja, por uma

espécie de conhecimento ou ignorância naturais. (HOBBES, 1998, p.

62)

Os argumentos referentes à desigualdade natural aristotélica são retomados

pelos escolásticos considerando a desigualdade entre governantes e governados uma

instituição divina e, por isso, os homens deveriam ter uma submissão total ao poder do

Estado. Em Hobbes, o poder do Estado não é naturalmente dado e muito menos

divinamente estabelecido, mas é decorrente de um consentimento coletivo entre os

homens, isto é, por um contrato. Na teoria política hobbesiana, esse contrato é criado

justamente para romper a igualdade natural entre os homens.

De acordo com Hobbes, é impensável que a razão seja superior aos desejos e

paixões humanas, por isso, não existe uma desigualdade natural, como estabelecera o

aristotelismo. Não existe uma supremacia da razão em comandar as vontades humanas

(os desejos), uma vez que os homens agem por estímulos externos tendo em vista aquilo

que lhes cause prazer e garanta a autopreservação. A razão é uma mera calculadora que

contabiliza os meios necessários para que cada homem possa obter o máximo possível

de coisas e num máximo de tempo garantindo-lhe a própria existência.

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A igualdade natural possui uma singular importância na teoria política

hobbesiana, pois estabelece que o poder está centrado em cada ser humano

singularmente. Este poder consiste no esforço de cada homem em estabelecer seu

domínio sobre qualquer objeto de seu desejo. Na obra Leviatã, o autor afirma:

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do

corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem

manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que

outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a

diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável

para que um deles possa com base nela reclamar algum benefício a

que outro não passa igualmente aspirar. (HOBBES, 2003, p. 106).

No estado de natureza o poder consiste no empenho de cada homem na

realização da sua vontade individual. Ainda escreve Hobbes, considerando o homem

quanto à força corporal, o mais fraco pode suficientemente matar o mais forte, seja por

secreta maquinação ou aliando-se com outros que se sentem ameaçados pelo mesmo

perigo. Já em relação às faculdades do espírito, os homens se encontram em uma

igualdade ainda maior do que a igualdade de força, pois a prudência é nada mais do que

experiência, e há um tempo igual e igualmente oferecido a todos os homens para a

realização daquelas coisas a que igualmente se dedicam.

Assim, a igualdade dos homens estabelece o direito e o domínio de cada

homem sobre todos os benefícios da natureza, gerando a competição e a guerra

generalizada. A competição é fruto da igualdade natural dos homens - é o que afirma o

próprio Hobbes:

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto

à esperança de atingirmos os nossos fins. Portanto, se dois homens

desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser

gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para o seu

fim (que é principalmente a sua própria conservação, e às vezes

apenas o seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao

outro. E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear

do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia,

constrói ou possui um lugar cômodo, espera-se que provavelmente

outros venham preparados com força conjugadas, para o desapossar e

privar, não apenas do fruto do seu trabalho, mas também da sua vida

ou da sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em

relação aos outros. (HOBBES, 2003, p. 107)

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O que Hobbes afirma é que numa situação de igualdade entre os homens, a

inimizade e a disputa são comportamentos que podem ser esperados. No estado de

natureza, cada homem quer a realização do seu desejo, isto é, quer garantir o máximo

possível de bens reais e de poder individual que assegurem a sua própria preservação.

O nosso filósofo entende que cada ser humano em nome da autopreservação é

capaz de eliminar o outro. Assim, o outro no estado de natureza é uma ameaça em

potencial, pois o apetite de um homem acaba sendo a ameaça da realização dos desejos

de outro, ocasionando o conflito. É o que afirma o comentador Alan Ryan quanto à

situação de igualdade na teoria política de Thomas Hobbes: “não importa quão

modestos sejam nossos desejos, enfrentamos o fato de que o uso que outras pessoas

fazem do mundo pode privar-nos daquilo de que precisamos”. (SORELL, 2011, p. 269)

Como no estado de natureza, cada um passa a existir para o outro como uma

possível ameaça e disto ocasiona o conflito. Thomas Hobbes considerou que na

natureza encontram-se três causas principais que levam os homens ao conflito:

De modo que na natureza do homem encontramos três causas

principais de discórdia. Primeira, a competição; segundo, a

desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o

lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros

usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres,

filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defenderem-

nos; e os terceiros, por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma

opinião diferente, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja

diretamente dirigido às suas pessoas, quer indiretamente aos seus

parentes, amigos, nação, profissão ou ao seu nome. (HOBBES, 2003,

p. 108)

O primeiro aspecto esperado da natureza humana, proveniente da busca

incessante de paixões e desejos, é a competição. A competição acarreta com que cada

homem ataque uns aos outros para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e

rebanho dos outros. O único objetivo da competição é a obtenção do máximo possível e

por um maior tempo possível de domínio sobre os outros garantindo a autopreservação.

Referente à competição e à autopreservação está à análise de Richard Tuck: “os homens

não querem ferir os outros simplesmente por feri-los; eles desejam ter poder sobre os

outros, é certo, mas apenas para assegurar sua própria preservação”. (TUCK, 2001, p.

75)

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Desse modo, a competição na teoria hobbesiana visa à manutenção da

autopreservação de cada homem, e desencadeia a desconfiança mútua que proporciona

o conflito. Com a desconfiança mútua, cada homem é levado a se precaver contra o

outro, observando no outro a efetiva ameaça da sua existência. Essa desconfiança faz

com que cada homem aumente o máximo possível de seus recursos para igualmente

poder resistir a qualquer custo à invasão dos outros. É o que afirma o próprio Hobbes:

E por causa desta desconfiança de uns em relação aos outros

nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação,

isto é, pela força ou pela astúcia subjugar as pessoas de todos os

homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao

momento em que não veja nenhum outro poder suficiente grande o

ameaçar. (HOBBES, 2003, p. 107-108)

Os homens tendem à competição e à desconfiança por ocasião da obtenção de

reconhecimento dos outros. A busca pelo reconhecimento dos outros, isto é, a glória, faz

com que os homens entrem em conflito por ninharias, como uma palavra, um sorriso,

uma diferença de opinião ou qualquer sinal de desprezo. No homem hobbesiano o

reconhecimento é adquirido cada vez mais pela obtenção de poder, ou seja, cada homem

quer obter o máximo possível de recursos para garantir em um maior tempo possível à

própria existência.

O homem hobbesiano não é um ser essencialmente que busca produzir riquezas

e/ou acumulá-las, mas sim, um ser que busca o reconhecimento. O reconhecimento

(glória) perpassa pela produção e o acúmulo de riquezas e, também, pelo domínio do

outro. Para o pesquisador Sergio Wollmann, “o homem busca o poder, para desta forma

ser respeitado. O poder pode ser definido como um conjunto dos meios empregos para

obter uma vantagem futura”. (WOLLMANN, 1994, p. 42)

O desejo cada vez mais de poder e, consequentemente, de reconhecimento por

cada homem, produz uma sociedade organizada em torno dos valores da glória e da

reputação. Uma sociedade organizada em torno da glória e da reputação convive

potencialmente em estado de guerra, isto é, sem estabilidade política. Nas palavras de

Maria Isabel Limongi, se “não fosse a busca pelo reconhecimento e pela glória, pela

afirmação do próprio valor diante dos outros, os homens cederiam mais facilmente aos

princípios da razão e seriam mais facilmente conduzidos à paz e à obediência civil”.

(LIMONGI, 2009, p. 91).

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Portanto, os homens são naturalmente iguais, sendo diferentes apenas quanto

ao seu “valor aparente”, ou seja, quanto ao valor que os outros lhes atribuem segundo

seus interesses e opiniões particulares. Um homem honrado e respeitado não tem nele

próprio maior valor e poder que os outros, pois o valor e o poder social que um homem

tem hoje pode deixar de tê-los amanhã, quando a opinião ao seu respeito tiver mudado.

Desse modo, as relações de poder numa sociedade edificada em torno da glória e da

reputação são instáveis, sujeitas às disputas constantes. A relação de disputa,

desconfiança e inimizade leva à guerra e à dissolução do tecido social.

Em Hobbes, o conflito (ou a guerra) é uma inferência a partir do

comportamento dos homens que são movidos por paixões e desejos incessantes. Assim,

nas palavras do próprio Hobbes, “(...) durante o tempo em que os homens vivem sem

um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram

naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra

todos os homens”. (HOBBES, 2003, p. 109).

Num tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, tudo é

válido, como também no período em que os homens vivem sem nenhuma segurança, a

não ser pela sua força. Nesta situação de guerra não existe indústria, não há cultivo da

terra, não há mercadoria a ser importada pelo mar, não há construções confortáveis, nem

instrumentos para remover as coisas da terra, contagem de tempo, nem artes e letras.

Enfim, não existe sociedade e, com isso, a vida do homem é solitária, pobre, imunda,

embrutecida e curta.

Nesta condição de guerra generalizada, Hobbes afirma que existe o maior

medo humano: “(...) o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte

violenta”. (Ibidem, 2003, p. 109) Deste modo, o homem usa todos os esforços para

preservar e defender o seu corpo dos sofrimentos e da morte. Assim, a morte é a única

adversária verdadeira do homem, seu semelhante é um instrumento para efetivá-la. Nas

palavras da pesquisadora Thamy Pogrebinschi:

A morte é o mal primário, o maior e supremo mal. A morte

consiste na negação do bem, de todos os bens, inclusive do bem

primário e supremo, a preservação da vida. (...) Mas não é a morte em

si ou qualquer morte que o homem hobbesiano tanto teme. O maior e

supremo mal é uma morte agonizante ou, em outras palavras, a morte

violenta. (POGREBINSCHI, 2003, p. 55)

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A fim de escapar dela ou de adiá-la, o homem procura um meio de neutralizar

sua possibilidade; sendo assim, o medo da morte causa o medo do outro, porque este

pode matá-lo. Em outras palavras, cada homem no estado de natureza é um assassino

em potencial.

E, como, naturalmente, todo homem tem o direito de preservar a vida e afastar

a morte, é lícito que cada indivíduo utilize todos os meios disponíveis e pratique todas

as ações para atingir esse fim. Afinal, no estado de natureza é legítimo fazer o que se

quer, mesmo que isso implique prejuízos fatais para outros homens. Desse modo, o

homem poderia possuir, usar e desfrutar de tudo o que quiser e o que conseguir obter. É

o que Hobbes afirma sobre o estado de natureza, na obra Do Cidadão: “(...) embora

qualquer homem possa dizer, de qualquer coisa, „isto é meu‟, não poderá porém

desfrutar dela, porque seu vizinho, tendo igual direito e igual poder, irá pretender que é

dele essa mesma coisa”. (HOBBES, 1998, p. 33)

Na interpretação de Renato Janine Ribeiro, Hobbes foi um filósofo que levou

em conta, no tocante aos fundamentos de seu pensamento, uma paixão considerada a

mais vergonhosa e que melhor expressa a passividade humana, ou seja, o medo. Assim,

“o medo à morte violenta nos leva ao governo absoluto: só cessamos a guerra natural

concentrando o medo no soberano, seu legítimo monopolista”. (RIBEIRO, 1999, p.

111)

É por ocasião do medo que os homens buscam a força, a guerra, o pacto e a

confiança num poder superior, isto é, o Estado, que provoque um medo maior aos

homens que o medo de um contra o outro. Nas palavras da pesquisadora Thamy

Pogrebinschi:

Os homens hobbesianos, ao pactuarem e fundarem a sociedade

civil, delegam o seu mais alto poder ao soberano por medo mútuo da

morte violenta. Ao fazerem isso, eles substituem o medo que sentiam

uns em relação aos outros pelo medo de um terceiro poder neutro, a

soberania. (POGREBINSCHI, 2003, p. 56)

Desse modo, o homem vive temerosamente e nunca o medo será superado nem

mesmo com a criação do Estado. A condição natural da humanidade é marcada pelo

próprio medo, o medo generalizado de todos contra todos.

Para Hobbes, a guerra “de todos contra todos” não se restringe às batalhas, mas

sim a um período em que a vontade de lutar é manifesta: “pois a guerra não consiste

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apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a

vontade de travar batalha é suficientemente conhecida”. (HOBBES, 2003, p. 109)

Num tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, tudo é

válido, como também no período em que os homens vivem sem nenhuma segurança, a

não ser com a própria força. Nessa situação de guerra, a vida é incerta e miserável, pois

não há progresso, não há indústria e não há ciência. Enfim, no estado de natureza, não

existe sociedade e, com isso, a vida do homem é solitária, pobre, embrutecida e curta.

2.2 A precária condição de natureza: o medo da morte violenta

De acordo com Hobbes, por meio de uma guerra perpétua não é possível a

conservação do gênero humano:

É fácil julgar como uma guerra perpétua é inadequada à

conservação, quer da espécie, quer de cada homem individualmente

considerado. (...) Pois todo homem, por necessidade natural, deseja

aquilo que para ele é bom; e assim ninguém considera que lhes faça

bem uma guerra de todos contra todos. (Ibidem, 1998, p. 34)

A guerra geral ocasiona a redução da espécie humana, chegando um momento

em que essa situação leva os homens restantes a se colocarem, antes de tudo, sob a

perspectiva da autopreservação. No começo de cada guerra existem razões boas e más,

porém, em seguida, vem o momento em que o cálculo de raciocínio é feito, por meio do

qual se toma consciência de que se arrisca perder mais do que se pode ganhar. Não se

trata, com isso, de saber se a guerra é justa ou injusta, mas se trata de fazer triunfar esse

momento em que a tomada de consciência coletiva dos participantes da guerra lhes dita

à razão de parar. Com isso, é atingida a contabilidade espontânea, que permite avaliar a

probabilidade do desaparecimento do gênero humano.

Hobbes fundamenta esse hipotético estado de natureza a partir da observação

de fatos reais de sua época, isto é, a guerra civil inglesa, e conclui que os homens têm

uma tendência natural para a mútua invasão e à destruição. É o que afirma Eunice

Ostrensky:

É que guerra civil é somente o outro nome de estado de

natureza, do qual todos os homens – iguais e com os mesmos direitos

– encontram-se dispostos a sair, apenas a tempo de se sujeitar a uma

autoridade que recomponha, de uma vez por todas e de uma outra

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forma, a ordem perdida pela irreflexão e insensatez humanas.

(OSTRENSKY, 2005, p. 70)

Portanto, se não existir uma força que reprima e provoque medo no homem,

eles entrarão em guerra, por mais que se viva bem; a ameaça e a discórdia pairam sobre

o indivíduo, pois o homem é um ser desconfiado e que procura constantemente destruir

o outro para se elevar.

É importante salientar que, de acordo com Hobbes, o estado de natureza talvez

nunca tenha existido sobre a Terra: “poderá porventura pensar-se que nunca existiu um

tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido

geralmente assim, no mundo inteiro (...)”. (HOBBES, 2003, p. 110) O nosso filósofo

apresenta o estado de natureza com o objetivo de prevenir os indivíduos que vivem em

Estados defeituosamente soberanos, para que suas vidas não se tornem um horror e para

que aceitem completamente a submissão a um poder soberano. O estado de natureza não

é fato histórico, mas uma hipótese filosófica que retrata sua concepção de natureza

humana.

O comentador Alan Ryan também compreende o estado de natureza como

situação esperada do ser humano em momentos em que o Estado não garante mais a paz

e a ordem, uma das condições necessárias para a preservação da existência humana. É o

que afirma este comentador: “o estado de natureza não apenas era um fato histórico,

mas o retorno a ele era um perigo permanente. De fato, o estado de natureza com o qual

Hobbes está preocupado é mais próximo das pessoas civilizadas privadas de um

governo estável do que qualquer outra coisa”. (SORELL, 1996, p. 266)

No pensamento político hobbesiano o conflito é uma ocorrência toda vez em

que a técnica civilizadora estiver ausente ou decadente. As causas da guerra não são

unicamente os desejos e paixões dos príncipes como pensara Nicolau Maquiavel, mas

de todos os indivíduos, devido à confrontação de todos os seus desejos egoístas. Afinal,

na definição hobbesiana, o homem é lobo do homem. A guerra não é um escândalo que

a moral reprovaria, mas algo que faz parte da ordem natural dos homens. A reflexão

política em Hobbes não se fundamenta na guerra, mas na mudança dessa ordem.

É com o intuito de advertir os homens que Hobbes apresenta o estado de

natureza onde a vida é curta, bruta e solitária. Desse modo, os homens podem superar

essa precariedade da vida natural mediante as próprias paixões e pela razão. De acordo

com as palavras do próprio Hobbes, “as paixões que fazem os homens tender para a paz

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são medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida

confortável e a esperança de as conseguirem por meio do trabalho. E a razão sugere

adequadas normas de paz”. (HOBBES, 2003, p. 111)

Hobbes contrapõe em sua teoria política o medo à esperança, pois o medo

induz o homem a afastar-se da guerra natural, que ocasiona a morte violenta, já a

esperança leva o homem a buscar o Estado que lhe garante certa paz e conforto. É o que

afirma o comentador Renato Janine Ribeiro: “os homens não querem apenas viver –

mas viver bem. Não os levou à sociedade só o medo da morte, mas também a esperança

de conforto (...)”. (RIBEIRO, 1999, p. 117)

Enquanto as paixões e os desejos conduzem os homens ao conflito e à guerra

generalizada, são estes mesmos desejos e paixões que podem conduzir os homens à

ordem e à paz. Assim, o desejo de uma vida agradável e, também, a contradição das

paixões (medo e esperança) podem mover os homens à vida social. Portanto, o medo da

morte violenta, o desejo das coisas necessárias para uma vida agradável e a esperança

de obtê-las, expressas pelos homens, por palavras ou ações, permitem a formação do

estado civil, tirando-os daquela condição de natureza, que é conflito constante: uma

guerra de todos contra todos.

2.3 As leis de natureza: uma orientação da razão para a paz e para a

própria conservação

Ao mesmo tempo em que o homem teme a morte generalizada, ele tem

esperança de sair dessa condição que é naturalmente incerta e violenta fazendo com que

a vida humana torne-se pobre e embrutecida. É a razão que calcula e estabelece

adequados artigos de vantagens pacíficas, que são chamados de leis de natureza, as

quais permitem cada homem entrar em acordo com outros homens instituindo o Estado.

Para Alan Ryan, comentador da teoria política hobbesiana, o Estado não poderia estar

fundamentado na Bíblia e nem numa tradição secular, como era o reino da Inglaterra

que possuía uma estrutura tradicional. “O Estado tinha de ser baseado nas leis da

natureza, e não no hábito ou no mito local”. (SORELL, 2011, p. 272)

As leis de natureza são uma advertência estabelecida mediante o cálculo da

razão com o objetivo de conduzirem os homens à paz e à própria preservação da

existência com a criação do estado civil. Hobbes entende as leis de natureza como um

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exercício da razão, como teoremas que evidenciam aos homens como devem agir para,

assim, garantirem a autopreservação. É o que afirma Thomas Hobbes: “A estes ditames

da razão os homens costumam dar o nome de leis, mas impropriamente. Pois eles são

apenas conclusões ou teoremas relativos ao que contribui para a conservação e defesa

de cada um (...)”. (HOBBES, 2003, p. 137)

Na teoria política hobbesiana a razão possui uma importância singular, pois

estabelece mediante o cálculo um modo de agir que leva os homens a edificarem o

estado civil. O Estado hobbesiano é fruto do esforço racional dos homens que querem

abandonar a condição de natureza marcada pela guerra generalizada de cada homem

com todos os homens. Assim, no tocante a razão e aos seus preceitos que conduzem à

paz, Hobbes assinala:

A verdadeira razão é uma lei certa, que (já que faz parte da

natureza humana, tanto quanto qualquer outra faculdade ou afecção de

mente) também é denominada natural. Por conseguinte, assim defino a

lei de natureza: é o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que,

na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de

assegurar a conservação da vida e das partes do nosso corpo. (Ibidem,

1998, p. 38)

As leis de natureza consistem em apenas encontrar os meios eficazes para a

preservação da existência. O homem conjectura os meios eficientes para a eficácia da

ação em direção a sua conservação. Deve-se notar que essas leis de natureza não

possuem uma força coercitiva, isto é, não consistem em uma obrigatoriedade a ser

cumprida, é apenas um pressuposto da razão, indicando o que é necessário fazer ou não

fazer para que cada homem garanta a própria preservação da vida. Nas palavras de

Hobbes:

Uma LEI DE NATUREZA é um preceito ou regra geral,

estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer

tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários

para a preservar, ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para a

preservar. (Ibidem, 2003 p. 112)

As leis de natureza não são leis com poder coercitivo, mas uma orientação da

razão indicando o que é necessário fazer ou não fazer para a preservação da própria

existência humana. Não é possível ver na teoria hobbesiana uma precursora do

imperativo categórico kantiano, uma vez que a razão em Hobbes é uma calculadora

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computando as possibilidades que garantem a autopreservação do homem. De acordo

com a pesquisadora Yara Frateschi, “atribuem à razão hobbesiana uma função – a de

estabelecer um imperativo moral – que ela não tem e não pode ter por ser uma faculdade

meramente calculadora operando em indivíduos exclusivamente auto-interessados”.

(FRATESCHI, 2008, v. 2, n.º 2, p. 12)

Desse modo, as leis de natureza apenas são uma orientação da razão, mediante

o cálculo, possibilitando ao homem que estabeleça gestos que almejem efetivamente à

paz e à ordem. Por isso, o primeiro preceito que a razão estabelece é que todos os

homens devam esforçar-se na busca da paz.

A busca pela paz é o ponto central na teoria política hobbesiana, pois é a

garantia da preservação do gênero humano por meio da estabilidade social. A busca por

esta estabilidade (a paz) é o ponto final, pelo menos temporário, da guerra e,

consequentemente, o fundamento para a construção do estado civil e para o próprio

progresso da humanidade.

Na obra do Leviatã, Thomas Hobbes estabelece a primeira lei de natureza:

“Que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a

conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da

guerra”. (HOBBES, p. 2003, p. 113) A busca pela paz é o primeiro conselho da razão,

pois suscita a esperança nos homens de saírem daquela condição de guerra generalizada

e, consequentemente, do ininterrupto medo da morte violenta.

É importante salientar que quando a razão estabelece a primeira exortação,

“que os homens busquem a paz”, não quer dizer que os homens devem dominar as

paixões para obter a paz, como pensou Aristóteles em sua concepção ética e política.

Mas ao contrário, a razão deve estabelecer juntamente às paixões uma combinação que

conduz os homens à sociabilidade e essa combinação está na autopreservação. Essa

interpretação também é assinalada pelo pesquisador Ismar Dias de Matos:

Na verdade, a razão está a serviço das paixões, tentando

estabelecer um arranjo voltado para a sociabilidade a partir da

autoconservação, finalidade suprema dos homens. Ao buscar a

autoconservação, como ser de desejo, o homem busca mais do que

isso: busca construir uma vida mais confortável para poder

desenvolver sua arte criadora em todas as suas dimensões. (MATOS,

2007, p. 90)

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Enquanto a razão orienta o caminho para a paz, as paixões conduzem à paz seja

pelo medo da morte violenta ou pela esperança de uma vida confortável e daquelas

coisas necessárias à existência.

Mas na teoria hobbesiana a paz só pode ser alcançada se cada homem

renunciar ao direto natural a todas as coisas. Enquanto prevalecer o direito da cada

homem fazer tudo o que quiser e com quem quiser, jamais será possível a suspensão

daquela condição de guerra, que é de todos contra todos. É o que afirma o próprio

Hobbes:

Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na

medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de

si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se,

em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que os outros

homens permitem em relação a si mesmo. Porque enquanto cada

homem detiver o seu direito de fazer tudo quanto queira todos os

homens se encontrarão numa condição de guerra. (HOBBES, 2003, p.

113)

Nesta segunda lei de natureza é em nome da autopreservação que os homens

transferem ou abdicam ao seu direito natural a todas as coisas. Sem essa renúncia não

será possível a construção da sociedade civil, pois cada homem estaria se empenhando

em mutuamente se atacar com a única finalidade de obter o máximo possível de poder.

O direito natural de cada homem usufruir sobre todas as coisas leva os homens

a viverem em estado permanente de guerra. Somente a renúncia a essa liberdade natural

(de cada homem usufruir como quer os bens da natureza) possibilita a construção de

uma paz duradoura. As palavras do pesquisador Quentin Skinner:

(...) É essencial que abandonemos nossa liberdade natural. (...)

Estigmatizando a liberdade do estado de natureza como “infrutífera”.

(...) É o argumento central de Hobbes sobre a condição natural da

humanidade: que, embora seja um estado de liberdade, é também um

estado no qual, como agora o exprime, “qualquer um tem o direito de

matar ou espoliar a quem quer que seja” e “somos protegidos

unicamente por nossas próprias forças”. (SKINNER, 2010, p. 99-103)

No tocante à segunda lei, quando ela estabelece “a renúncia de um direto

natural” significa renunciá-lo de forma absoluta e transferi-lo a outro. Caso contrário, se

os homens resolvessem não renunciar aos seus direitos e não transferissem a outro,

ainda estariam naquela condição de “guerra de todos os homens contra todos”.

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A transferência de um direito é privar-se de todo o benefício que se possuía até

aquele momento e passá-lo irrestritamente ao outro. “Na transferência de direito, não

basta a vontade apenas daquele que transfere: também é preciso haver a daquele que

recebe”. (HOBBES, 1998, p. 40)

A transferência de um direito é manifesta por palavras que devem estar no

presente ou no passado. Somente as palavras não são o suficiente, uma vez que elas

precisam expressar a vontade do indivíduo de abdicar a tal direito. Nesse caso, o direito

de usufruir todas as coisas da natureza e de utilizar todos os meios ou recursos para

conservar a própria vida.

De acordo com Hobbes, a paz só pode ser alcançada quando outros

manifestarem que também a desejam. A estabilidade só vai acontecer numa correlação

de vontades que se expressa através de um acordo ou um contrato. “O ato de dois, ou

mais, que mutuamente se transferem direitos chama-se contrato”. (Ibidem, 1998, p. 42)

Ao estabelecerem um contrato, ambas as partes envolvidas devem cumpri-lo.

Entretanto, pode ocorrer que em um pacto as duas partes imediatamente cumprem

aquilo que contratam, de modo que nenhuma parte precisa ter confiança na outra, ou

então, uma cumpre e confia na outra, ou ainda, nenhuma parte cumpra com o pacto.

Para Hobbes:

Quando ambas as partes cumprem imediatamente aquilo a que

se comprometeram, o contrato chega a seu termo tão logo se dá o

cumprimento. Mas quando se dá crédito a uma ou a ambas, então

aquele que recebeu a confiança promete cumprir depois a sua parte e

esse tipo de promessa chama-se convenção. (Ibidem, 1998, p. 42).

Os pactos que foram firmados no estado de natureza conforme um contrato de

confiança recíproca são nulos e inúteis, porque não há nada que os obrigue ao

cumprimento do pacto. Com isso, os homens continuam naquela desconfiança natural

de um indivíduo contra o outro. Trata-se daquela desconfiança tão perigosa e causadora

de conflitos que chega a ferir aquele primeiro ditame da razão: que todos os homens se

esforcem pela busca da paz.

Por isso, a terceira lei de natureza estabelece “que os homens cumpram os

pactos que celebrarem. Sem esta lei os pactos seriam vãos, e não passariam de palavras

vazias (...)”. (Ibidem, 2003, p. 124) Percebe-se que a terceira lei de natureza apresenta

certa esperança aos homens para o estabelecimento de uma possível e concreta

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estabilidade que garanta a existência do gênero humano. Sem o respeito aos acordos e

mediante a ameaça da desconfiança mútua os homens estão sujeitos àquela situação

muito inconveniente de guerra e de uma guerra de todos contra todos. Para o

pesquisador da teoria política hobbesiana, Alan Ryan, no tocante ao “cumprimento dos

pactos”:

Saber o que é um pacto é saber que ele é um modo de incorrer

em uma obrigação. Esse pensamento é o que se encontra por trás da

afirmação de Hobbes de que a quebra de um pacto é semelhança ao

que os lógicos chamam de absurdo, com efeito, dizendo o que nós

devemos e não devemos fazer, seja isso o que for. (SORELL, 2011, p.

277).

A terceira lei de natureza é a fonte da justiça, pois a injustiça é o não

cumprimento de um pacto, e justiça é o cumprimento de todos os pactos. No entanto,

para que as palavras “justo” e “injusto” tenham sentido, é necessário um poder que

reprima, obrigando os homens ao cumprimento de seus pactos. Isso somente é possível

através do terror de algum castigo que seja superior ao benefício que se espera tirar do

rompimento do pacto. Esse poder institui-se na criação do Estado, ou seja, a validade

dos pactos só se inicia com a instituição de um poder civil que obriga os homens a

cumpri-los. Nas palavras do pesquisador Quentin Skinner, referente ao poder punitivo

do Estado, escreve:

O único mecanismo provado para induzir à obediência é o

medo. Embora as leis da natureza sejam regras da razão bem como

máxima de autopreservação, somente podemos esperar seguir suas

injunções pela paixão mais do que pela razão. É apenas quando

deliberamos sobre as consequências da desobediência que

experimentamos o tipo de terror que nos inibe seguramente de

proceder desobedientemente. (SKINNER, 2010, p. 150)

Desse modo, a constante ameaça do poder do Estado tem a finalidade

estabelecer aos homens, enquanto seres racionais, que avaliem racionalmente (cálculo)

que é preferível para si cumprirem os acordos estabelecidos a se submeterem à terrível

punição do Estado.

Quanto à quarta lei de natureza, ela expõe: “que quem recebeu benefício de

outro homem, por simples graça, deve se esforçar para que o doador não venha a ter

motivo razoável para se arrepender da sua vontade”. (HOBBES, 2003, p. 130) Essa lei

reafirma a concepção hobbesiana de homem, cuja natureza é marcada pela busca

incessante de seus interesses e do seu próprio bem. Desta maneira, quem dá alguma

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coisa a alguém, visa a um benefício posterior, e se esta expectativa for frustrada, não

haverá benevolência e muito menos confiança mútua. Nesse caso, os homens se

encontrarão naquela situação tão temível de guerra generalizada.

A quinta lei reza que “cada homem deve se esforçar por se acomodar com os

outros” (HOBBES, 2003, p. 130). A compreensão dessa lei perpassa pelo argumento

hobbesiano que os homens não possuem uma aptidão natural para a sociedade e, por

isso, a necessidade de cada indivíduo esforçar-se para ser benéfico aos outros,

permitindo coletivamente a criação do estado civil. “Aos que respeitam esta lei

podemos chamar-se sociáveis (...), e aos que não o fazem, obstinados, insociáveis,

refratários ou intratáveis” (Ibidem, 2003, p. 131).

Já a sexta lei consiste na determinação de que “como garantia do tempo futuro

se perdoem as ofensas passadas, àquelas que se arrependam e o desejam”. (Idem) Caso

cada homem não relevar as ofensas passadas mediante o pedido de perdão do outro que

o ofendeu, continuará com ressentimentos e com motivos para se atacarem. O perdão é

a garantia da paz.

Derivado da sexta lei encontra-se o sétimo preceito da razão: “que na vingança

(isto é, a retribuição do mal com o mal) os homens não olhem a importância do mal

passado, mas só a importância do bem futuro. Isso nos proíbe aplicar castigo com

qualquer intenção que não seja a correção do ofensor ou o exemplo para os outros”

(Idem). Esse preceito de natureza vem ensinar que o castigo deva ser aplicado com a

finalidade da correção, ou como exemplo para os outros indivíduos, já que a vingança

não visa ao exemplo ou ao proveito futuro, mas, apenas nutrir o ódio e propagar o

conflito.

A oitava lei de natureza define “que ninguém por atos, palavras, atitudes ou

gesto declare ódio ou desprezo pelo outro” (Ibidem, 2003, p. 132), porque na condição

de natureza todos os homens são iguais, e a questão de decidir quem é melhor não tem

sentido. Desse modo, a nona lei complementa a oitava, pois propõe “que cada homem

reconheça os outros como seus iguais por natureza”. (Idem)

A décima lei declara “que uma vez aceitas as cláusulas da paz ninguém exija

reservar para si um direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos

outros”. (Ibidem, 2003, p. 133) Essa lei quer garantir alguns direitos necessários à

existência humana: “o de governar o próprio corpo, desfrutar o ar, a água, o movimento,

os caminhos para ir de um lugar a outro, todas as outras coisas sem as quais não se pode

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viver, ou não se pode viver bem”. (HOBBES, 2003, p. 133) Já a décima primeira lei

consiste em que “se a alguém for confiado servir de juiz entre dois homens, é um

preceito da lei de natureza que trate a ambos equitativamente”. (Idem) O não

seguimento desta lei garante a guerra como o único meio de decidir as controvérsias

entre os homens.

Da décima primeira deriva a décima segunda lei de natureza que prescreve:

“que as coisas que não podem ser divididas sejam gozadas em comum, se assim puder

ser; e se a quantidade da coisa o permitir, sem limite; caso contrário, proporcionalmente

ao número daqueles que a ela têm direito” (Idem). E para as coisas que não puderem ser

divididas e nem gozadas em comum, a décima terceira lei de natureza prescreve que “a

primeira posse seja determinada pelo sorteio” (Ibidem, 2003, p. 134), com isso, garante-

se a distribuição equitativa.

Além dessas leis, Thomas Hobbes considera mais algumas: “que todo que

serve de mediador para a paz seja considerado salvo-conduto”. (Idem) Essa lei tem por

objetivo a paz enquanto fim, e ordena a intercessão como meio, pois o meio para a

intercessão é o salvo-conduto. Também considera que “aqueles entre os quais há

controvérsias submetam seu direito ao julgamento de um árbitro”. (Idem) Por mais

desejosos que os homens estejam de cumprir as leis referidas anteriormente, é possível

que surjam controvérsias relativas às ações: primeiro, se foram ou não foram praticadas;

e segundo, caso tenham sido praticadas, foram ou não foram contrárias às leis de

natureza. Daí a necessidade de os homens concordarem em aceitar a sentença de um

terceiro para que não decidam pela força, afastando qualquer possibilidade de paz.

As leis de natureza prescrevem que “ninguém pode ser árbitro em causa

própria” e ainda “em nenhuma causa alguém pode ser aceito como árbitro, se

aparentemente para ele resultar mais proveito, honra ou prazer com a vitória de uma das

partes do que com a da outra”. (Ibidem, 2003, p. 134-135) A busca de poder na filosofia

política hobbesiana tem como fonte a natureza humana marcada por paixões e desejos

incessantes que levam os homens a guerra generalizada. Todavia, um juiz que pautar

suas sentenças na busca da glória e do poder está fomentando as disputas entre os

homens e afastando qualquer esperança de estabelecer a paz e a estabilidade. Um juiz

deste modo é um opositor da paz e um inimigo da humanidade.

Na teoria hobbesiana, somente as leis de natureza, que são preceitos da razão

que indicam os apropriados meios de assegurar as condições de uma vida satisfatória,

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não são suficientes para estabelecer certa paz e estabilidade entre os homens. Referente

à insuficiência das leis de natureza e a necessidade da criação do Estado para manter

certa ordem e paz, escreve Maria Isabel Lomongi:

As leis de naturais são comuns na medida em que nos

apontam para a necessidade da instituição da soberania. Tudo se

passa como se elas dissessem: como somos incapazes de

partilhar um universo moral, a única forma de o fazermos é

instituindo um poder cuja vontade e cuja palavra passem a valer

como regra comum do bem e do mal. (LIMONGI, 2009, p. 167)

Deste modo, é preciso romper com a igualdade natural causadora do estado de

guerra. E, somente por meio do estabelecimento de uma relação hierárquica estável, isto

é, a criação do Estado, seria possível certa paz entre os homens. Enquanto os homens

coletivamente não edificarem mediante um pacto um poder grandioso que regule o agir

humano estabelecendo a coesão social, os homens ainda permanecerão naquele estado

de guerra que é de todos contra todos.

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CAPÍTULO III

O ESTABELECIMENTO DE UM PODER SOBERANO E A SUA

FUNDAMENTAÇÃO

Neste capítulo consideraremos a passagem do estado de natureza para o estado

civil, buscando compreender o que fundamenta o pacto social para instituir o poder

soberano e qual o embasamento conceitual em Thomas Hobbes do poder soberano.

Mas, para isso, recorreremos à obra Do Cidadão (1642), nos Capítulos V e VI, e à obra

Leviatã (1651), nos Capítulos XVI e XVII, com o objetivo de melhor compreender a

natureza do pacto que institui o poder soberano, uma vez que nestas obras aparecem

diferenças conceituais referentes à natureza do pacto.

3. 1 A origem do estado civil

Como vimos, na teoria política hobbesiana, somente as leis de natureza não são

suficientes para que os homens abandonem a condição de natureza. É preciso, então,

romper com a igualdade natural dos homens (desencadeadora da guerra) e estabelecer

uma relação hierárquica estável conferida de um poder tão grande capaz de manter a

ordem social. A igualdade natural dos homens inclina-os ao conflito pelo simples desejo

incessante em obter o máximo de recursos e por maior tempo possível.

O estado de igualdade é o estado de guerra generalizada marcado por conflitos:

“uma guerra de todos os homens contra todos os homens”. É preciso instituir a

desigualdade para alcançar a paz, é o que afirma o próprio autor do Leviatã:

A causa final, finalidade e desígnio dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domínio sobre outros), ao introduzir

aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver em

república, é a precaução com a sua própria conservação e com uma

vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera

condição de guerra, que é a consequência necessária (conforme

mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder

visível capaz de os manter em respeito e os forçar, por medo do

castigo, ao cumprimento dos seus pactos e à observância das leis de

natureza (...). (HOBBES, 2003, p.143)

Para Hobbes, o Estado, ao ser instituído pelos homens, passa a estar acima de

cada um destes, evitando a contínua insegurança das relações de poder que caracteriza o

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estado de natureza. Cada um dos homens, ao instituir o Estado, confere a ele uma

desigualdade, uma força irreversível e um poder temível. Nas palavras de Hobbes, “é

essa a geração daquele grande LEVIATÃ, ou antes (para falar em termos mais

reverentes) daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz

e defesa” (HOBBES, 2003, p. 147).

O Estado hobbesiano é esse grande Leviatã e compara-se ao monstro bíblico

impregnado de autoridade sobre a terra, retirado do livro de Jó. O Estado hobbesisno é

monstruoso e foi criado artificialmente pelos homens com a finalidade de estabelecer

uma unidade absoluta e o poder soberano garantindo a paz e a segurança.

Deste modo, o que marca a passagem do estado de natureza para a sociedade

política é a estipulação de uma convenção, pela qual os homens renunciam ao seu

direito de natureza e o transferem a um poder superior e absoluto, o Estado. Esta

passagem dos homens na condição de natureza para o estado civil só é possível

mediante um pacto.

Antes do pacto, em que cada homem transfere seu direito natural “de garantir a

vida e evitar a morte”, não existe estado civil, mas somente uma multidão. É a

transferência do poder individual de cada homem que dá legitimidade ao poder do

Estado. É o que afirma o comentador Quentin Skinner: “(…) when the members of a

multitude covenant to submit to a common power, what they do is „confer all their

power and strength upon one man, or upon one Assembly of men, that may reduce all

their wills, by plurality of voices, unto one will‟”1. (SPRINGBORD, 2007, p. 159)

O pacto é um ato voluntário da transferência do poder individual para um único

poder. Essa transferência é essencial a fim de que a convenção de todos os homens

possa constituir uma defesa estável para todos. É o que expressa Hobbes no Leviatã:

Designar um homem ou uma assembleia de homens como

portador de suas pessoas, admitindo-se e reconhecendo-se cada um

como autor e todos os atos aquele que assim é portador de sua pessoa

praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e à

segurança comuns; todos submetendo desse modo as suas vontades à

vontade dele, e as suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que

consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles

numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com

todos os homens (HOBBES, 2003, p. 147).

1 Tradução: “quando os membros de uma multidão se submeterem a um poder comum, o que eles fazem é

„conferir todo o seu poder e força para um homem ou uma assembléia de homens, passam a reduzir todas

as suas vontades, por pluralidade de voz, até uma vontade‟”.

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Assim, a única maneira de instituir um poder soberano capaz de defender os

homens da invasão estrangeira e das injúrias uns dos outros é a designação de um

homem ou de uma assembleia de homens como representantes de suas pessoas. Todos

devem submeter suas vontades às vontades dos representantes, e suas decisões às deles.

Para Quentin Skinner, “when the members of the multitude agree „every man with every

man‟ to authorise an individual or an assembly to represent them, the name of the

Person they generate is „a commonwealth, in Latin CIVITAS‟”2. (SPRINGBORD,

2007, p. 174)

Trata-se de uma verdadeira unidade de todos os homens em torno de uma só

pessoa ou de uma assembleia de homens, realizada por uma convenção de cada homem

com todos os homens. É o que afirma Gerard Lebrun, “para que haja „corpo político‟, é

preciso que as vontades de todos sejam depostas numa única vontade, e que exista um

depositário da personalidade comum” (LEBRUN, 1981, p. 12).

O Estado hobbesiano é expressão máxima das vontades de todos os homens

que são temerosos diante da possibilidade, no estado de natureza, do domínio de um

homem sobre o outro ameaçando a própria existência humana. E, como o Estado é

constituído da vontade de todos os homens mediante um pacto, torna-se uma única

pessoa, um único corpo, um homem artificial que possui um poder suficientemente

grande capaz de manter certa ordem e paz.

3.2. A natureza do pacto: submissão ou representação?

Na teoria política hobbesiana, o estado civil é decorrente de um pacto. Assim, o

nosso filósofo afirma-se dentro de uma tradição contratualista, na qual o Estado é a

expressão máxima do que a humanidade poderia produzir para garantir aos homens

certa ordem e paz. Hobbes, ao fundamentar sua teoria política dentro da concepção

contratualista, estabelece que o pacto constitua um compromisso, ou melhor, numa

linguagem jurídica, uma obrigação. Uma vez instituído o estado civil, todos os homens,

obrigatoriamente, estão sob sua tutela e proteção.

2 Tradução: “quando os membros da multidão concordam „cada um com cada homem‟ para autorizar um

indivíduo ou um conjunto para representá-los, o nome da pessoa que geram é „uma comunidade, em latim

CIVITAS‟”.

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A construção do estado civil requer a renúncia da liberdade e da igualdade de

natureza. Para Hobbes, o Estado é fruto de um sacrifício individual de cada ser humano.

Cada homem abdica da condição de igualdade e do direito sobre todas as coisas para se

acomodarem uns aos outros sobre a tutela de um poder, acima de todos os poderes

individuais, com a finalidade de obterem certa estabilidade e condições básicas para o

viver bem. Nas palavras de Quentin Skinner, no tocante à infrutífera condição dos

homens no estado de natureza:

Para Hobbes (...) é a nossa liberdade natural que constitui o

principal e imediato obstáculo à nossa obtenção de qualquer uma das

coisas que queremos na vida. Ele não apenas insiste em que nossa

liberdade é de “pouco uso e benefício” para nós (...). Hobbes começa

por reiterar que todos desejam o que julgam ser bom para eles

mesmos. Ademais, essa inclinação natural abarca o desejo não apenas

“de evitar o que é danoso”, mas de atingir “os ornamentos e conforto

da vida”. E a única maneira de adquirir esses benefícios é viver juntos

em “paz e sociedade”. (SKINNER, 2010, p.55)

Assim, em Hobbes, os homens devem renunciar a seu direito de natureza e

transferir a outros. Somente no momento em que cada homem submeter a sua vontade

ao Estado, representado por um único homem ou por uma assembleia, promove-se a

estabilidade da paz e a reciprocidade dos pactos. É o que afirma o próprio autor do

Leviatã:

Uma multidão de homens se torna uma pessoa quando é

representada por um só homem ou pessoa, de maneira que tal seja

feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa

multidão. Porque a unidade do representante, e não a unidade do

representado, que faz a pessoa ser una. E é o representante o portador

da pessoa, e só de uma pessoa. E não é possível entender de nenhuma

outra maneira a unidade numa multidão. (HOBBES, 2003, p. 141)

O Estado é uma criação originariamente humana e só sucede quando as

vontades individuais dos homens convergem para um único objetivo, a conservação da

vida. Hobbes, ao estabelecer que a origem do estado civil provém de uma convenção,

quer dizer que os homens devem obedecer ao poder do Estado como se o tivessem

fundado a partir de um contrato jurídico. Os homens devem compreender e obedecer ao

poder do Estado como a um acordo de vontades acima das vontades individuais. É o

que sustenta a comentadora Maria Isabel Limongi:

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A hipótese da origem contratual do poder político se impõe

como uma forma de nos fazer ver que o Estado e seu poder (...)

possuem uma realidade que é de ordem do jurídico. É uma obrigação

jurídica, contratual, que sustenta o poder do Estado e não qualquer

qualidade de fato desse poder, como sua força ou seu valor intrínseco.

E é na medida em que compreendemos a natureza dessa obrigação que

podemos conceber o tipo de estabilidade – uma estabilidade jurídica –

que esse poder possui.

Por ser juridicamente estável em sua soberania, por não estar

sujeito à oposição de nenhum outro poder (...) o poder do Estado é o

maior de todos os poderes que os homens podem constituir para

garantir as condições de sua existência (LIMONGI, 2002, p. 29).

O Estado, na teoria política hobbesiana, é fruto dos homens que concordam em

expressar suas vontades mediante um pacto e, assim, consequentemente, são levados a

agir de acordo com essas vontades devidamente expressas. A princípio, o pacto é

expressão das vontades humanas e, por conseguinte, um ato linguístico proclamado por

palavras ou por atos.

O pacto é uma convenção estabelecida, ou seja, é um contrato firmado pelos

homens a fim de estabelecerem no plano racional e jurídico uma situação de

sociabilidade. “As relações de poder só podem ser estáveis e só podem conduzir à paz

entre os homens se assentadas não mais sobre a simples força (ainda que toda relação de

poder seja no limite uma relação de forças), mas sobre um princípio jurídico: o

contrato” (Ibidem, 2009, p. 137-138). Estabelecido este contrato, é irracional

desrespeitá-lo, porque, com isso, declara-se aos outros que não está disposto a

estabelecer com eles relações racionais, sem as quais não é possível a paz.

O pacto é uma convenção humana, expresso por palavras ou atos, em que cada

homem que o firmou está compelido a reconhecer e aceitar por manifestar sua vontade.

Na obra Do Cidadão, Thomas Hobbes compreende que o pacto, o qual permite a

passagem do estado de natureza para o estado civil, deve ser um pacto de submissão:

Contudo aquele que submete sua vontade à vontade de outrem

transfere a este último o direito sobre sua força e suas faculdades – de

tal modo, que quando todos os outros tiverem feito o mesmo, aquele a

quem se submeteram terá tanto poder que, pelo terror que este suscita,

poderá conformar as vontades dos particulares à unidade e à

concórdia. (HOBBES, 1998, p. 96)

Para Hobbes, os homens estabelecem o pacto por submissão com a finalidade

de garantir a própria existência, e assim, saírem do estado de guerra generalizada em

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que o medo da morte violenta é o maior dos males. Assim, o nosso filósofo compreende

que quando pactuamos para estabelecer o estado civil, a sujeição a ele é absoluta e a

condição de cada homem pode ser descrita como uma condição de servidão. Quentin

Skinner, comentando sobre o “pacto de submissão” presente nas obras Do Cidadão e Os

Elementos, escreve:

The political covenant, in other words, is now said to take the

form of an act not of relinquishment but of authorisation, an act by

which every member of the multitude makes himself the author of

whatever is said and done in his name by his sovereign

representative.3 (SPRINGBORD, 2007, p. 159)

Todos os homens estão submissos ao poder do Estado e limitados por castigos

previstos pelo soberano, assim, não mais se encontram em condições de gozarem da

própria liberdade natural, em que cada homem emprenhava-se em mutuamente se

destruírem. Nas palavras do comentador Quentin Skinner:

Tornar-se súdito (...) é a pessoa pactuar a própria submissão a

um soberano assinalando sua vontade de renunciar a seu direito de

resistência. Quando um número suficientemente grande de pessoas

executa certo ato de submissão, isso produz o efeito de fazer nascer

um corpo “fictício”, um corpo composto dos membros da multidão em

uma única Persona por terem concordado em criar um soberano único

com o qual suas vontades individuais estão “envolvidas” ou

“inclinadas”. (...) Hobbes descreve essas pessoas fictícias como

“cidades ou corpo políticos”. (SKINNER, 2010, p. 60)

O pacto de submissão expresso na obra Do Cidadão manifestava a

preocupação que Hobbes, no tocante aos conflitos que levaram a Inglaterra a

desencadear uma guerra civil por ocasião de uma disputa de poder entre o rei e o

Parlamento. Apresentar os argumentos de que o Estado é fruto de um pacto de

submissão dos súditos ao soberano é enfatizar que sem a submissão ao poder do Estado,

os homens não podem gozar em segurança dos frutos de seus direitos limitados.

Enquanto em Do Cidadão o autor define o pacto como uma simples renúncia

de direitos em que cada homem se submete ao poder do Estado para garantir a

autopreservação, no Leviatã, o pacto é descrito como de autorização em que todos os

3 Tradução: “O pacto, por outras palavras, agora é dito para tomar a forma de um ato de renúncia, mas

não de autorização, um ato pelo qual cada membro da multidão torna-se autor de tudo o que é dito e feito

em seu nome por seu soberano representante”.

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súditos se tornam autores de todas as ações executadas pelo soberano. É o que afirma

Hobbes:

Autorizo e transfiro o meu direito de me governar a mim

mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a

condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de uma

maneira semelhante todas as suas ações. (HOBBES, 2003, p. 147)

Hobbes percebeu que ao estabelecer um pacto de submissão colocaria em risco

a própria preservação da vida e, também, das próprias condições de existência dos

súditos. E que a única finalidade da constituição do estado civil é para que os homens

vivam e vivam bem.

O Estado por autorização tem como fundamento na obra Leviatã a ideia da

representatividade, ou seja, o soberano é a reprodução máxima das vontades de cada

homem. No agir do soberano concentra-se a vontade de cada indivíduo que compõe o

estado civil. Essa interpretação também é apresentada por Quentin Skinner:

Hobbes‟s key concept is thus that of representativeness. He

maintains, that is, that one way to represent the members of a

multitude (in the sense of speaking and acting for them) will always be

to appoint a single person who can represent (in the sense of offering

an image or likeness of) the individuals involved. A satisfactory

„representer‟, on this analysis, will simply be someone who can stand

as a representative person, a person representative of each and every

individual who is being represented.4 (SPRINGBORD, 2007, p. 168)

Thomas Hobbes estabeleceu um novo conceito de pacto fundamentado na

autorização, como a única prerrogativa transferida ao soberano de propiciar as

condições necessárias à sobrevivência dos súditos. Na interpretação do comentador

Richard Tuck:

O único direito por nós outorgado ao soberano, ou que ele

exerce em nosso nome, é o de considerar que meios são necessários à

nossa sobrevivência, não sendo portanto com base em nossos direitos

que o soberano viesse a introduzir algum programa que vai além das

condições da sobrevivência física” (TUCK, 2001, p. 92)

4 Tradução: “O conceito chave de Hobbes, é portanto, o de representatividade. Ele sustenta, ou seja, que

uma forma de representar os membros de uma multidão (no sentido de falar e agir por eles) será sempre e

nomear uma única pessoa que pode representar (no sentido de oferecer uma imagem ou semelhança de)

os indivíduos envolvidos. A satisfatória „representação‟ nesta análise, será simplesmente alguém que

pode ficar como uma pessoa representante, um representante de cada pessoa e de cada indivíduo que está

sendo representado.

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No pacto de autorização, Hobbes compreende um Estado que busca garantir a

sobrevivência humana e que na vontade do soberano expressa à vontade de todos os

homens. Desse modo, o soberano agirá em favor dos seus súditos garantindo a própria

preservação do poder soberano e do povo que o representa. O poder do Estado, que é

um poder soberano manifestado pela vontade de cada homem mediante o pacto, tem

como finalidade utilizar de todos os meios para garantir a autopreservação dos seus

membros afastando qualquer ameaça decorrente das paixões e desejos humanos que

coloque em risco a ordem e a paz, condições necessárias para o progresso do gênero

humano.

3.3 A soberania no Estado

O Estado hobbesiano é como um organismo que está acima dos cidadãos, é um

poder maior que todos os poderes que os homens podem constituir para garantir as

condições de uma vida boa. Na interpretação de Gerard Lebrun, “não há comunidade

sem unificação e não há unificação sem soberania –, mas também não há soberania sem

poder absoluto (que não está submetido a nenhum outro) e perpétuo (sem solução de

continuidade)”. (LEBRUN, 1981, p. 12)

Todavia, para que o poder do Estado seja absoluto e perpétuo, o contrato não

pode ser firmado pelos súditos com o soberano, visto que este não pode participar do

contrato, mas entre súditos. Nas palavras de Renato Janine Ribeiro, o poder do soberano

ou da assembleia é indivisível e absoluto: “o soberano, figura da exterioridade, instala-

se na mais alta diferença face aos súditos” e “a função do Estado é dar consistência à

diferença primeira, a que separa o Leviatã dos súditos”. (RIBEIRO, 2003, p. 30-31)

Em Hobbes, para estabelecer uma possível condição de paz, não basta apenas a

palavra, é preciso que o Estado utilize a espada. Os pactos firmados entre os homens

não passam de palavras, e podem ser violados enquanto o Estado não lhes garantir a

legitimidade e a validade mediante as ameaças penais. “Os pactos sem a espada não

passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém”. (HOBBES, 2003, p. 143)

É pelo medo da punição do Estado que os homens são forçados a se respeitarem, como

assinala Thomas Hobbes:

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Devemos portanto providenciar nossa segurança, não mediante

pactos, mas através de castigos; e teremos tomado providências

suficientes quando houver castigos tão grandes, previstos para cada

injúria que se evidencie que sofrerá maiores males quem a cometer do

que quem se abstiver de praticá-la. Pois todos, por necessidade

natural, escolhem o que a eles pareça constituir o mal menor.

Portanto, como é necessário, para segurança dos particulares –

e, por conseguinte, para a paz comum -, que o direito de usar o gládio

do castigo seja transferido a algum homem ou conselho,

necessariamente se entende que este tenha direito ao poder supremo

na cidade. (HOBBES, 1998, p. 103-104)

Na teoria política hobbesiana, o poder punitivo do Estado é a condição material

da validade formal do contrato, é um poder de fato, um poder que lhe foi concedido por

cada indivíduo. Deste modo, os homens, ao pactuarem constituindo o Estado,

concederam o uso legítimo da força, levando aos homens na vida pública a se

acomodarem uns com os outros. A propósito, Lebrun fala sobre Hobbes: “O poder

político não pode ser mera instância de gestão e organização, mas sim o detentor

permanente de uma força absoluta, sem a qual sequer seria possível falar em

„sociedade‟”. (LEBRUN, 1981, p. 17)

O Estado hobbesiano consiste em um poder soberano, isto é, numa autoridade

impregnada de força e domínio, que pode resolver as contendas e arbitrar qualquer

decisão. Na interpretação de Eunice Ostrensky, o Estado “é uma autoridade „civil‟ ou

„política‟ inteiramente autônoma, capaz de monopolizar o uso legítimo da violência”.

(OSTRENSKY, 2005, p. 150) É pela instituição do Estado e mediante o poder que lhe é

autorizado que o homem deixa de ser, de certo modo, o lobo do homem, passando a

controlar suas paixões, pois a força do Estado é incompatível a qualquer outra força, e,

com isso, o terror que o Estado inspira permite-lhe modelar, para o bem de todos, a

vontade de todos. O Estado transforma os homens em cidadãos, introduzindo a

moralidade e a racionalidade nas relações humanas.

Na teoria política hobbesiana é a concordância de todos os homens, mediante

um contrato, que institui um poder comum que os obrigue a obedecer a tudo aquilo que

o detentor do poder ordenar, para garantir o viver bem dos súditos. Mediante o contrato

de autorização, a vontade de todos os homens é depositada numa única vontade. Nas

palavras de Gerard Lebrun,

O depositário dessa personalidade é chamado soberano, ele se

diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos”. Este

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soberano será “um único homem, ou uma assembléia cuja vontade é

tida e considerada como vontade de cada homem em particular.

(LEBRUN, 1871, p. 12)

É mediante o consentimento de todos os homens que o Estado sucede como um

poder superior ao dos indivíduos. Trata-se de um poder suficientemente grande para

impedir o uso individual da força. O Estado é a instituição resultante do contrato de

todos os homens destinada a sanar a contradição do estado de natureza. De tal modo, o

poder do Estado é um poder soberano, pois é o único a ter o poder sobre todos os

homens.

A grandiosidade do poder do Estado está justamente no fato de quem o detém

poder exercê-lo sem limites exteriores. Em Hobbes, a legitimidade do poder soberano

do Estado está justamente fundamentada na transferência quase total dos direitos

naturais dos homens. Restando aos homens, ao fazerem parte do Estado, apenas o

direito à vida. Nas palavras de Hobbes,

Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente

condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não

resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o

ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá

viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer. (HOBBES, 2003,

p. 185)

Destarte, o direito à vida é irrenunciável e decorre da própria lógica da teoria

política hobbesiana, pois os homens instituem o Estado para evitarem a permanente

ameaça da morte que caracteriza o estado de natureza.

O que leva os homens a romperem com o dever de obediência ao Estado não é

o excesso de poder, não é o poder ilimitado do soberano, mas a escassez do poder. É

pelo medo da desagregação do poder do Estado que Hobbes afirma que a soberania é

irrevogável, ilimitada e também indivisível. Por isso, o Estado deve ser o único poder e

os homens devem aceitá-lo como razão suprema, pois a dissolução dessa unidade

levaria os homens a voltarem àquela condição de natureza marcada pela guerra

generalizada, ameaçando a própria sobrevivência do gênero humano.

Uma vez instituído o Estado, não é possível libertar-se desse poder sobre

qualquer pretexto. Para Hobbes, o poder absoluto do Estado é irrevogável, “nenhum dos

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súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de que o soberano

transgrediu seus direitos”. (HOBBES, 2003, p. 150)

Quanto à irrevogabilidade deste poder, Hobbes ainda afirma que os pactos

estabelecidos entre os homens para instituir o poder soberano do Estado foram

estabelecidos entre indivíduos singulares. É o que é possível constatar na obra Do

Cidadão:

O poder supremo é constituído em virtude dos pactos que

reciprocamente cada cidadão ou súdito faz, enquanto indivíduo, com

cada outro; ora, cada contrato, porque recebe sua força dos

contratantes, pelo seu consentimento também pode perdê-la e ser

rompido.

Mas, ainda que essa dedução fosse verdadeira, não vejo que

perigos os soberanos possam legitimamente temer. Pois, como se

supõe que cada um se obrigou para com cada um dos outros, se

qualquer um deles se recusar a obedecer, apesar disso ele estará

obrigado a tudo o que os demais concordarem em fazer. (...) Ora, não

se deve imaginar que venha a acontecer que todos os súditos em

conjunto, sem a exceção de nenhum, um dia se combinem contra o

poder supremo; de modo que não devem os soberanos recear que por

algum direito venham a ser despojados de sua autoridade. (HOBBES,

1998, p. 116)

Portanto, para dissolver o poder do Estado, não basta a vontade da maioria dos

homens, ou seja, não é a vontade de um grupo ou de uma porção de homens que revoga

o poder soberano do Estado. Em Hobbes, a dissolução do poder do Estado só poderia

acontecer se todos os homens estivessem de acordo, ou seja, apenas com a vontade

devidamente expressa de todos os homens, membros do estado civil. Assim, essa

unanimidade não seria alcançada, pois não seria fácil de conjeturar que todos os súditos

estejam concomitantemente de acordo em destituir o poder soberano. Além do mais,

não basta o consenso de todos os homens, é preciso à concordância do próprio soberano

para dissolver o poder do Estado - é o que afirma o próprio Hobbes: “(...) os súditos, em

qualquer número que sejam, não têm direito algum a despojar de sua autoridade o

governante supremo, sem o seu consentimento”. (Ibidem, 1998, p. 118) Por

conseguinte, para Hobbes, uma vez instituído o Estado, mediante o pacto de cada um

dos homens com cada um dos outros, não é possível desfazê-lo. Instituído o poder do

Estado, este poder é irrevogável.

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Deste modo, o Estado hobbesiano está alicerçado em um poder soberano, isto

é, em um poder que é o maior dos poderes que os homens podem conceder a outros

homens. Nas palavras Gerard Lebrun, “somente um poder comum é capaz de agregar

politicamente indivíduos iguais. Iguais em sua submissão” (LEBRUN, 1981, p. 16) e

“foi apenas graças à tutela de um poder único e centralizador que o „indivíduo‟ se viu

capaz de compensar o seu isolamento, e de reivindicar a sua condição de indivíduo”.

(Ibidem, 1981, p. 16-17)

O poder soberano do Estado hobbesiano assim está constituído: quem o detém,

seja um único homem ou uma assembléia de homens, pode exercer esse poder sem

limites exteriores, como afirma o próprio Hobbes:

Reside um poder supremo em alguém, o maior que os homens

tenham direito a conferir: tão grande que nenhum mortal pode ter

sobre si mesmo um maior. Esse poder é o que chamamos de absoluto,

o maior que homens possam transferir a um homem. Pois se alguém

submeteu sua vontade à vontade da cidade, de modo que esta possa,

com todo o direito e sem risco de punição, fazer qualquer coisa –

baixar leis, julgar controvérsias, fixar penalidades, utilizar a seu bel-

prazer a força e a riqueza dos homens –, com isso conferiu a esta o

maior domínio que se possa conceder a uma pessoa. (HOBBES, 1998,

p. 108)

Já que este poder fora instituído mediante um pacto celebrado por cada um dos

homens, assim qualquer ação do soberano não pode ser considerada danosa e injusta aos

súditos, pois na ação do soberano repousa a vontade de cada um dos membros do estado

civil. E “por meio dessa instituição da república, cada indivíduo é autor de tudo quanto

o soberano fizer (...)” (Ibidem, 2003, p. 152). Além do mais, “aquele que detém o poder

soberano não pode justamente ser morto, nem de nenhuma outra maneira pode ser

punido pelos seus súditos”, (Idem) uma vez que o poder do soberano é ilimitado e foi

esta legitimidade que os indivíduos autorizaram ao soberano para romper a igualdade

natural e, assim, garantir a vida de cada um dos membros que se submetem ao poder do

Estado. É o que se pode constatar nas palavras do comentador Gerard Lebrun:

Enquanto minha vida não estiver ameaçada, é regra a submissão

absoluta à legislação, por invasora que esta seja, pois não compete a

mim, mas ao Soberano, decidir acerca do alcance dos meios

requeridos para a proteção dos súditos. Salvo o direito de conservarem

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suas vidas, os homens não têm liberdade essencial que o Estado seja

obrigado a respeitar. (LEBRUN, 1981, p. 27)

Quanto a este poder soberano, cabe-lhe ser juiz do que é necessário para a paz

e da segurança dos súditos, como também ser juiz de quais opiniões e doutrinas podem

ser ensinadas para a garantia da ordem e da paz. Desse modo, “pertence à soberania ser

juiz de quais as opiniões e doutrinas são contrárias à, e quais as que lhe são propícias”.

(HOBBES, 2003, p.152) Compete, ainda, ao poder soberano prescrever as regras

através dos quais os súditos podem saber o que lhes pertence e quais ações podem ser

praticadas sem serem incomodados por nenhum dos seus concidadãos. Pois,

(...) Está anexada à soberania todo o poder de prescrever as

regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que

pode gozar e quais ações pode praticar, sem ser incomodado por

nenhum dos seus concidadãos: é isto que os homens chamam

propriedade. Porque antes da constituição do poder soberano (...)

todos os homens tinham direito a todas as coisas, o que

necessariamente provoca a guerra. (Ibidem, 2003, p. 153)

Para Hobbes, a própria propriedade privada é resultante do Estado. Assim, o

Estado é quem estabelece a legitimidade da propriedade privada, por um ato do

soberano, manifesto na forma de leis determinando a posse, quais as ações podem ser

consideras justas e injustas. É o que afirma o filósofo:

Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há

injustiça. (...) A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do

corpo ou do espírito. (...) São qualidades que pertencem aos homens

em sociedade, não na solidão. Outra consequência da mesma condição

é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o

teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e

apenas enquanto for capaz de o conservar. (Ibidem, 2003, p. 111)

E, onde não há Estado, existe uma guerra perpétua de cada homem com seu

vizinho e, assim sendo, cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força e isto não é

propriedade, mas incerteza, como também não há justiça e nem injustiça. Sem a

constituição do Estado não é possível estabelecer a justiça e a injustiça, pois não há

poder suficientemente grande que manifeste a vontade de cada um dos indivíduos numa

só pessoa.

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É mediante o ato do soberano devidamente expresso pela prescrição das leis

que se institui a justiça. É o que diz o próprio Hobbes: “portanto, o que é o roubo, o

assassínio, o adultério, e de modo geral a injúria, deve ser dito pelas leis civis, isto é,

pelas ordens daquele que possui a autoridade suprema”. (HOBBES, 1998, p. 113)

É o poder soberano que tem o múnus de prescrever as leis estabelecendo a

justiça, cabendo “o direito de ouvir e julgar todas as controvérsias. (...) Porque sem a

decisão das controvérsias não pode haver proteção de um súdito contra os danos de um

outro”. (Ibidem, 2003, p.154)

Pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com outras nações com

o intuito de proteger o bem comum, pois esta é a finalidade do Estado, proteger a vida

de cada um dos seus membros. Também, “está anexada à soberania a escolha de todos

os conselheiros, ministros, magistrados e funcionários, tanto na paz como na guerra”.

(Idem)

Ao poder soberano é confiado o direito de compensar e punir qualquer súdito

de acordo com a lei que previamente estabeleceu, além do poder de cunhar moedas e de

comprar nos mercados. Cabe ainda ao soberano determinar de que maneira se deve

fazer entre os súditos toda espécie de contrato - compra, venda, troca, empréstimo,

arrendamento - e que palavras e sinais validam esses contratos. Sobre o poder soberano

afirma Hobbes, na obra: Os Elementos da lei natural e política:

A síntese destes direitos da soberania, a saber, o uso absoluto da

espada na paz e na guerra, a elaboração e anulação das leis, a

judicatura e a decisão suprema em todos os debates judiciais e

deliberativos, a nomeação de todos os magistrados e ministros, como

outros direitos contidos no mesmo, fazem com que o poder soberano

seja não menos absoluto na república do que cada homem, antes da

república, era absoluto em si mesmo para fazer ou não fazer aquilo

que considerava benéfico. (Ibidem, 2002, p. 138)

Para Hobbes, como foi demonstrado, o poder do Estado deve ser absoluto. O

poder absoluto não é tão prejudicial aos homens como a sua ausência. É a ausência do

poder soberano que é prejudicial aos indivíduos, levando a cada um confiar nas suas

próprias forças desencadeando a tão temível guerra generalizada. É o que afirma o

próprio filósofo na obra Leviatã:

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Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito

miserável, pois se encontra sujeita à lascívia e a outras paixões

irregulares daquele ou daqueles que detêm nas suas mãos poder tão

ilimitado. (...) Ora o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se

estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos. E isto

sem levar em conta que o estado do homem nunca pode deixar de ter

uma ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o

povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta

quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que

acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens

sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar

as suas mãos, impedindo a rapina e a vingança. (HOBBES, 2003, p.

157)

A dissolução do poder do Estado faz com que os homens retornem à condição

de natureza, marcada pela igualdade natural e pela possibilidade de se ferirem

mutuamente. É o medo da desagregação do poder Estado que levou Hobbes a afirmar

que soberania é indivisível.

Em Hobbes, o poder do Estado deve ser único, inclusive cabendo decidir sobre

as coisas espirituais. Com isso, não deve ocorrer uma separação entre Igreja e Estado,

que é uma das causas principais da dissolução da unidade do poder do Estado como

afirma o filósofo na obra Do Cidadão,

Pois, se um mandar que se faça certa coisa sob pena de morte

natural, e outro a proibir sob a pena de morte eterna, e ambos tiverem

direito a dar essas ordens, seguir-se-á não apenas que os cidadãos,

embora inocentes, serão todos eles puníveis de direito, mas ainda que

a própria cidade estará completamente dissolvida. Pois ninguém pode

servir a dois senhores; e aquele a quem acreditamos dever obedecer

por medo da condenação da alma não é menos poderoso (e até mais)

do que esse a quem obedecemos por medo à morte temporal. (Ibidem,

1998, p. 107)

A Igreja deve ser uma instituição do Estado, pois o poder soberano deve ser o

único poder sobre os homens, e, caso contrário, eles retornariam àquela precária

condição de natureza. Assim, é pela tutela do poder do Estado que os homens passam a

ter a paz, a segurança, a sociabilidade, a benevolência, o domínio da razão e o

refinamento da ciência.

Hobbes, para garantir a coesão do Estado, procurou estabelecer ao soberano,

seja um único homem ou uma assembleia, o direito de governar as ações dos súditos,

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seja na política quanto na religião, já que seria calamitoso para o Estado limitar o poder

soberano nas decisões religiosas. Por isso, na interpretação de Patrícia Springborg, “o

soberano assume o papel de pastor supremo tanto como sacerdote quanto como

governante. Em suas mãos a autoridade eclesiástica é poder absoluto, e em virtude de

sua supremacia a estrutura organizacional da Igreja é extensão de seu domínio

soberano” (SPRINGBORG, 2011, p. 433).

O Estado hobbesiano possui o privilégio exclusivo de governar e, assim, a

Igreja não passa de uma multidão legitimamente autorizada pelo poder soberano a se

reunir para invocar o nome de Cristo e sob a constante vigilância deste poder. A Igreja

não passa de uma instituição do Estado. Com isso, Hobbes quer evitar que qualquer

doutrina ou discurso religioso ameace o poder soberano do Estado levando os homens à

condição de natureza. O filósofo quer uma religião cívica que ajude os súditos a

reconhecerem nos soberanos os mantenedores fundamentais e agregadores da paz e da

ordem.

Apesar desse esforço de submeter o poder espiritual ao poder temporal, e

consequentemente garantir o máximo de força ao soberano, não significa afastar a

ameaça da dissolução do Estado. Assim, o poder soberano não é capaz de eliminar

totalmente o medo do homem em relação ao outro. O Estado hobbesiano encontra-se

numa linha tênue entre a garantia de paz e a anarquia social.

3.4 O poder soberano e a lei civil

Os homens pelo contrato edificaram o Estado conferindo-lhe um poder

suficientemente grande com a finalidade de garantir a paz e a preservação do gênero

humano. Todavia, para que esta finalidade seja efetivamente cumprida, o Estado

devidamente soberano tem que ordenar os homens e impondo-lhes as regras.

Na teoria política hobbesiana, o soberano, seja ele um único homem ou uma

assembleia de homens, é o único legislador, ou seja, é o único que tem o poder de fazer

as leis. Assim, a lei é a vontade devidamente expressa do soberano, não é um conselho,

mas uma ordem obrigando alguém, ou melhor, os seus súditos a obedecerem a esse

comando. Na obra do Leviatã, Hobbes define a lei civil da seguinte maneira:

A LEI CIVIL é para todo o súdito constituída por aquelas regras

que a república lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal

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suficientemente da sua vontade, para usar como critério de distinção

entre o bem e o mal, isto é, do que é contrário à regra. (HOBBES,

2003, p. 226)

A lei é expressão da vontade do Estado, em Hobbes; o direito está alicerçado

na política, ou seja, o detentor da soberania é a fonte da validade das leis. É o soberano

que diz aos súditos o que pode ser feito e o que não pode ser feito, em outras palavras,

aquilo que no estado civil é justo e injusto.

Uma vez instituída uma lei, ela é expressão incondicional e absoluta da

vontade do soberano e, pela mesma razão, somente a sua vontade pode revogar uma lei

estabelecida. O soberano como detentor do poder não está sujeito às leis, uma vez

quando bem quiser pode revogar as leis que o estorvam fazendo outras novas. Hobbes,

ao constituir o soberano um poder legislativo, estabeleceu um Estado com poder

absoluto e ilimitado. Nas palavras do comentador Noberto Bobbio,

Uma das características marcantes da investigação hobbesiana é

a tentativa sistemática e impiedosa de eliminar tudo onde se possa

aninhar um vínculo ou um limite ao poder do Estado. (...) Hobbes

conseguiu nos dar o conceito de um Estado no qual é levado às

extremas consequências o fenômeno da monopolização estatal do

direito, através da cuidadosa eliminação de todas as fontes jurídicas

que não sejam a lei, ou vontade do soberano (...) e de todos os

ordenamentos jurídicos que não sejam o estatal. (BOBBIO, 1991, p.

103)

No Estado hobbesiano, a lei é a vontade do soberano e, deste modo, não

depende do costume e nem da extenuante interpretação do seu conteúdo, mas somente

do comando do soberano. Isso significa que a validade da lei está na intenção daquele

que detém o poder. É o que afirma Hobbes, no Leviatã: “o que faz a lei não é aquela

juris prudentia, ou sabedoria dos juízes subordinados, mas a razão deste homem

artificial, a república, e suas ordens” (HOBBES, 2003, p. 230). Hobbes é um teórico do

positivismo jurídico e para o positivismo jurídico ou legalista a lei deve ser obedecida

em todas as circunstâncias já que são ordens e comandos estabelecidos pelo Estado. Por

se tratarem de ordens as pessoas obedecem ao direito porque confiam no poder

soberano ou porque se sentem intimidados por ele diante o uso legítimo da força. Para o

comentador Goldsmith, no tocante à lei civil hobbesiana:

Hobbes não é apenas um teórico do comando, mas também um

positivista legal. O positivismo legal nega que princípios gerais de

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justiça, moralidade ou racionalidade (enquanto tais) sejam critérios

para a validade da lei. Grosso modo, ele nega que as leis precisam ser

justas, corretas, morais e boas a fim de serem leis. Em vez disso, a lei

é distinguida por um teste procedimental (...). A saber, se ela foi

perceptivelmente significativa como comando do legislador.

(SORELL, 2011, p. 333)

Para Hobbes é pela da fragilidade das leis de natureza que o soberano tem que

legislar. As leis de natureza não passam de um preceito da razão sem implicar

efetivamente em uma obrigatoriedade à ação. O Estado criado pelos homens tem a

finalidade de garantir a paz e a sobrevivência humana fazendo valer as leis de natureza.

Assim, o soberano é o único capaz de fazer valer as leis de natureza por meio da lei

civil. As leis de natureza, nas palavras do filósofo, “só depois de instituída a república

elas efetivamente se tornam leis, nunca antes, pois passam então a ser ordens da

república, portanto também leis civis, na medida em que é o poder soberano que obriga

os homens a obedecer-lhes”. (HOBBES, 2003, p. 227-228)

O Estado foi o único meio eficaz para limitar a liberdade natural do homem

impedindo os homens de causar danos uns aos outros. Estes, conduzidos pelas leis de

natureza, esforçaram-se na busca da paz edificando pelo pacto o estado civil. Assim, o

Estado se funda nas próprias leis de natureza, mas estas obrigam os homens a agirem

apenas na consciência e, por isso, precisam ser ordenados a efetivamente agirem pela

imposição da lei civil. Nas palavras do Hobbes,

A obediência à lei civil também faz parte da lei de natureza. A

lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes

partes da lei, uma das quais é escrita e chama-se civil, e a outra não é

escrita e chama-se natural. Mas o direito de natureza, isto é, a

liberdade natural do homem, pode ser limitado e restringido pela lei

civil; mais, a finalidade das leis não é outra senão essa restrição, sem a

qual não será possível haver paz. (Ibidem, 228)

Na teoria hobbesiana, as leis de natureza e as leis civis se complementam, uma

conduz os homens à paz e a outra indica como devem agir para viverem em paz. Os

homens, em favor da autopreservação e da paz, deixaram decidir por si mesmos para se

submeterem às decisões do soberano, o qual transforma as leis naturais em leis civis. As

leis de natureza são genéricas e não determinam com exatidão que comportamento os

homens devem apresentar em um estado civil. Somente a lei civil traz a particularidade

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do comportamento do homem tão necessário para a manutenção da ordem. É o que

afirma o próprio Hobbes, na obra Do Cidadão:

O roubo, o assassínio e todas as injúrias são proibidos pela lei

de natureza; mas o que há de se chamar roubo, o que assassínio,

adultério ou injúria a um cidadão não se determina pela lei de

natureza, porém pela civil. Pois roubar não é tirar de outra pessoa

qualquer coisa que ela possui, mas apenas o tirar-lhes os bens; ora, o

que é nosso e o que é dele compete à lei civil dizer. Da mesma forma,

o assassinato não é qualquer homicídio, mas apenas aquele que a lei

civil proíbe; nem toda união carnal com uma mulher constitui

adultério, apenas a que está proibida na lei civil. Finalmente, toda

quebra de promessa é injúria, se a promessa for conforme à lei (...).

(HOBBES, 1998, p. 112)

Em Hobbes não existe uma oposição entre as leis de natureza e as leis civis,

pois tudo aquilo que é estabelecido pela lei civil está fundamentado nas leis de natureza.

No estado civil até os comportamentos não previstos pela lei civil devem ser analisados

pelos tribunais em conformidade pelas leis de natureza, uma vez que os homens,

imbuídos de racionalidade, são capazes de conhecer estas leis válidas para todos e ao

mesmo tempo fazer valer a justiça.

Além do mais, o próprio soberano deve governar em conformidade com as leis

de natureza e a maneira pela qual o soberano age de acordo com estas leis da razão é

fornecendo segurança para seus súditos por meio de boas leis civis. A obrigação do

soberano consiste na segurança do povo e toda vontade do soberano expressa na forma

de lei para garantir tal situação com a qual foi criado o Estado.

Em Hobbes, a lei civil não contraria a lei de natureza, caso contrário, ameaçaria

a própria finalidade do estado civil e, consequentemente, o próprio poder soberano

levando os homens na antiga condição de natureza marcada por uma guerra

generalizada de todos contra todos. O Estado hobbesiano com seu poder soberano

transforma homens egoístas movidos por paixões e desejos em homens racionais e

civilizados capazes de se acomodarem uns com os outros para promoverem juntos o

bem estar e o progresso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo procuramos retomar as interpretações no tocante ao

pensamento político de Thomas Hobbes recorrendo à sua obra de maior maturidade

intelectual, o Leviatã, e aos principais comentadores contemporâneos, tendo como

problemática a fundamentação do poder soberano.

Hobbes compreende o Estado como uma criação humana fruto do movimento

dos homens mediante um pacto com a finalidade de garantir a paz e a preservação do

gênero humano. O nosso filósofo apresenta uma concepção antropológica que necessite

da criação do Estado soberano. Conforme apontamos, “(...) não existe uma perpétua

tranquilidade de espírito enquanto aqui vivemos, porque a própria vida não passa de

movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar

de haver sensação”. (HOBBES, 2003, p. 57) É justamente pelo desejo que o homem

naturalmente busca aquilo que contribui para a sua autopreservação.

Apontamos que a autopreservação é um dos temas centrais da teoria política de

Thomas Hobbes. Antes da edificação do Estado, os homens no estado de natureza estão

caracterizados por uma contínua competição, em que cada homem, está em conflito

contra todos os homens com a finalidade de garantir o movimento da própria existência.

Os homens entram em conflito porque querem garantir o máximo possível de bens reais

e de poder individual que assegurem a sua autopreservação.

A saída dessa competição no estado de natureza é em nome da

autopreservação. Os desejos e as paixões humanas, como vimos, conduzem os homens

aos horrores do conflito generalizado, mas também os conduzem à paz. Como afirmou o

nosso filósofo, “pois todo homem, por necessidade natural, deseja aquilo que para ele é

bom; e assim ninguém considera que lhes faça bem uma guerra de todos contra todos”.

(Ibidem, 1998, p. 34)

O próprio desejo de autopreservação do gênero humano faz com que os

homens recorram à razão contabilizando as vantagens e desvantagens de uma guerra

generalizada em que a vida humana se torna pobre e embrutecida. Como vimos nas

palavras do próprio filósofo, “o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na

medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a

conservação da vida e das partes do nosso corpo”. (Ibidem, p. 38) Assim, a razão

calcula e estabelece adequados artigos de vantagens pacíficas que são chamados de leis

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de natureza, as quais permitem cada homem entrar em acordo com outros homens

instituindo o Estado.

Os preceitos da razão não são suficientes para oferecer garantia da paz e da

preservação do gênero humano; faz-se necessária a criação de um poder acima dos

poderes individuais. O Estado é esse poder instituído pelos homens que está acima de

cada um destes, evitando a contínua insegurança das relações de poder que caracteriza o

estado de natureza.

Thomas Hobbes vai fundamentar o Estado no contrato e, conforme

demonstramos, o contrato é um ato voluntário da transferência do poder individual para

a constituição de um único poder. Nesse sentido cabe retomarmos as palavras do

próprio autor do Leviatã:

Todos submetendo desse modo as suas vontades à vontade dele,

e as suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que consentimento ou

concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma

pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens.

(HOBBES, 2003, p. 147)

Essa transferência é essencial a fim de que esta convenção de todos os homens

possa constituir uma defesa estável para todos. O contrato que institui o Estado é uma

convenção humana, realizado por palavras ou atos, em que cada homem reconhece e

aceita, por assim expressar devidamente a suas vontades. Trata-se de um acordo que

estabelece no plano racional e jurídico uma situação de sociabilidade permitindo certa

estabilidade nas relações humanas.

O Estado hobbesiano é expressão máxima das vontades individuais dos

homens dirigidas para um único objetivo, a conservação da vida. Mas para Hobbes,

somente o contrato que no primeiro instante se limita apenas a palavras pode ser violado

a qualquer momento. Assim, para garantir a legitimidade e a validade do contrato, o

Estado precisa coagir com ameaças penais. Como escreve o nosso filósofo: “os pactos

sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém”

(Ibidem, p. 143). É pelo medo da punição do Estado que os homens são forçados a se

respeitarem.

O poder punitivo do Estado é a condição que permite a realização do contrato e

foi concedido por cada homem para que tivesse a proteção e a paz. O Estado hobbesiano

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consiste em um poder soberano justamente porque está impregnado de uma força e de

um domínio capaz de amenizar ou resolver qualquer conflito.

O Estado hobbesiano, ao primeiro momento, parece aterrorizante por estar

revestido de um poder ilimitado, mas o que é aterrorizante para o nosso filósofo é um

Estado enfraquecido, desagregado em seu poder soberano e anulado da sua unidade

conduzindo os homens àquela condição de natureza marcada pelo conflito generalizado.

Thomas Hobbes apresenta em sua teoria política um Estado forte e irrevogável

- uma vez instituído, não é possível libertar-se deste poder sob qualquer pretexto. Trata-

se de uma grande máquina criada por cada homem para garantir a estabilidade nas

relações humanas. Um mecanismo que na esfera pública controla, limita, envolve e

domina os homens para que vivam em certa harmonia. Como vimos, nas palavras do

filósofo, e que vale a pena retomar:

Esse poder é o que chamamos de absoluto, o maior que homens

possam transferir a um homem. Pois se alguém submeteu sua vontade

à vontade da cidade, de modo que esta possa, com todo o direito e sem

risco de punição, fazer qualquer coisa – baixar leis, julgar

controvérsias, fixar penalidades, utilizar a seu bel-prazer a força e a

riqueza dos homens –, com isso conferiu a esta o maior domínio que

se possa conceder a uma pessoa. (HOBBES, 1998, p. 108)

E não é essa a finalidade do Estado? Uma instância superior acima das

vontades individuais que reprima com a força acomodando os homens à vida pública;

que controle os indivíduos por meio de leis restringindo a liberdade natural podendo

estes agirem sem punição somente quando a lei civil não os impedem. O Estado

moderno é monstruoso porque força os homens acomodarem a suas vontades à vontade

do soberano que é expressa na forma da lei e, consequentemente, cria a ideia do homem

civilizado.

O movimento do Estado hobbesiano ocorre por meio das leis civis

manifestando a vontade do soberano. As leis civis são estáveis porque são decorrentes

de uma única vontade, a do poder soberano, fazendo, assim, valer as leis de natureza

que até então eram meras advertência de prudência da razão advertindo os homens a

agirem ou não agirem para alcançar a paz.

Hobbes pensou um Estado em que o poder soberano é representante da vontade

de cada homem. Ao criarem o estado civil pelo contrato autorizaram o soberano a agir

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expressando a vontade de todos pela forma da lei, pelo uso da força para manter a

ordem, pelas decisões das controvérsias e, ainda, sobre quais convicções podem ser

proferidas publicamente. É um Estado pensado filosoficamente para minimizar os

conflitos decorrentes da própria natureza humana.

Na teoria hobbesiana, esta grande máquina criada pelos homens tem como a

causa o poder do soberano, teve inspiração na observação e nos estudos do nosso

filósofo pelo mundo físico, compreendendo-o como um organismo em movimento que

se explica por leis invioláveis da mecânica. No Estado, as leis civis têm as mesmas

finalidades que as leis da mecânica têm no mundo físico, ou seja, garantir a ordem e a

dinâmica das coisas.

Mesmo que Thomas Hobbes tenha criado em sua teoria um Estado que

provoque certo desconforto por estabelecer entre os homens um poder excessivo, seu

pensamento é importantíssimo, pois sua teoria política consiste na criação de um Estado

que garante a sobrevivência e a paz humana. Esta teoria influenciará vários pensadores,

que passarão a discutir a formação, a função e o poder soberano do estado civil.

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