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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA A MULHER NA CRÔNICA BRASILEIRA DOS SÉCULOS XX E XXI: UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DE CRONISTAS HOMENS E MULHERES Mestranda: Luana Paula Candaten Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso Frederico Westphalen RS 2016

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS

MISSÕES – CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A MULHER NA CRÔNICA BRASILEIRA

DOS SÉCULOS XX E XXI:

UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DE CRONISTAS HOMENS E MULHERES

Mestranda: Luana Paula Candaten

Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso

Frederico Westphalen – RS

2016

2

Luana Paula Candaten

A MULHER NA CRÔNICA BRASILEIRA

DOS SÉCULOS XX E XXI:

UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DE CRONISTAS HOMENS E MULHERES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Thereza Veloso, como requisito para a obtenção do grau de mestre.

Frederico Westphalen – RS

2016

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS

MISSÕES – CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprovaa Dissertação

A MULHER NA CRÔNICA BRASILEIRA DOS SÉCULOS XX E XXI: UM

OLHAR SOBRE O DISCURSO DE CRONISTAS HOMENS E MULHERES

elaborada por

Luana Paula Candaten

como requisito parcial e último para obtenção do grau de

Mestre em Letras – Área de Literatura Comparada

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria Thereza Veloso (URI)

Orientadora

Prof. Dr. Angela Zamin (UFSM) 1ª arguidor

Profa. Dra. Rosângela Fachel de Medeiros (URI)

2ª arguidora

Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian(URI)

Suplente

4

AGRADECIMENTO

Primeiramente a Deus, por me permitir viver neste mundo e por nunca

ter me abandonado durante minha jornada.

Aos meus pais, Clair e Ivanira, que nunca me deixaram desistir e sempre

me deram força e incentivo para que eu prosseguisse na caminhada,

entendendo minhas ausências, consolando minhas angústias e celebrando

minhas conquistas. É por vocês que sou o que sou e cheguei onde cheguei,

por serem minha base, meu amparo, meu porto seguro, sem jamais deixar

faltar o amor. Igualmente às minhas irmãs, Bruna e Milena, que do mesmo

modo compreenderam as minhas faltas e que, além disso, jamais deixaram de

dar incentivo. Que minhas conquistas inspirem as suas.

Aos demais familiares que sempre estiveram torcendo e orando por

mim.

Ao meu namorado, Cassiano, que foi paciente nas minhas ausências e

nos dias mais nebulosos e que sempre me incentivou a continuar dizendo: “-

Você consegue!”. Eu não teria conseguido sem você.

À minha orientadora, Maria Thereza Veloso, Tetê, por ter aceito minha

proposta de trabalho, por sempre estar ao meu lado e por ser, não poucas

vezes, mais que uma orientadora, ouvindo desabafos, dando conselhos e

torcendo para que tudo sempre desse certo, no mestrado e na vida.

Aos demais professores do Mestrado em Letras – Área de Concentração

Literatura Comparada, por todos os ensinamentos passados.

À CAPES, por financiar esta pesquisa.

Aos meus colegas, que tornaram-se grandes amigos, Angela, Ana,

Adejane, Daiane, Jaime e Vanderléia, pois fizeram com que a caminhada

ficasse mais divertida, partilhando mates, lanches e conhecimento.

À banca examinadora, que aceitou o convite para avaliar este trabalho.

Às minhas colegas de apartamento, Janine e Tatiane, que souberam

compreender os dias ruins e as minhas ausências, sempre dando apoio. E do

mesmo modo todos os meus amigos que sempre estiveram comigo, me dando

suporte.

5

À equipe do Jornal O Alto Uruguai, onde trabalhei durante boa parte do

mestrado, pois sempre compreendeu a minha ausência no trabalho devido às

aulas e a eventos do curso.

Por fim, a todos aqueles que de alguma forma estiveram do meu lado

torcendo para que eu conseguisse alcançar meus objetivos, um trabalho desta

magnitude não seria possível sem vocês.

6

RESUMO:

Este trabalho teve por objetivo principal identificar a imagem da mulher representada em crônicas brasileiras escritas por cronistas homens e mulheres em diferentes épocas e momentos históricos. O estudo baseou-se em duas correntes teóricas, a Literatura Comparada e a Análise do Discurso de filiação francesa, mediante diálogo com teóricos ligados à Literatura Comparada, como Tânia Carvalhal eSandra Nitrini,além da crítica literária Julia Kristeva, e Michel Pêcheux e EniOrlandi, ambos ligados ao campo teórico da Análise do Discurso de filiação francesa.

Palavras-chave:Literatura Comparada. Análise do Discurso.Mulhernahistória.

Representação.

7

RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo principal identificar la imagen de la mujer representada en las crónicas escritas por cronistas brasileños hombres y mujeres en diferentes épocas y momentos históricos. El estudio se basó en dos corrientes teóricas, Literatura Comparada y Análisis de la pertenencia francesa de expresión, a través del diálogo con los teóricos relacionados con la LiteraturaComparada, como Tania Carvalhal y Sandra Nitrini , además de la crítica literaria de Julia Kristeva y Michel Pêcheux y EniOrlandi, ambos vinculados al campo teórico delAnálisis del Discurso de pertenencia francesa. PALABRAS-CLAVE:Literatura Comparada. Análisis del discurso. La mujer en la historia. Representación.

8

Lista de Sequências Discursivas de Referência

Crônica Enigma

SDR1……………………………………………………………………………63

SDR2……………………………………………………………………………64

SDR3……………………………………………………………………………64

Crônica A Viúva na Praia

SDR1……………………………………………………………………………71

SDR2……………………………………………………………………………71

SDR3……………………………………………………………………………71

SDR4……………………………………………………………………………71

SDR5……………………………………………………………………………71

Crônica A Mulher Independente

SDR1……………………………………………………………………………78

SDR2……………………………………………………………………………78

SDR3……………………………………………………………………………78

SDR4……………………………………………………………………………78

SDR5……………………………………………………………………………78

Crônica Os Homens Desejam as Mulheres que não Existem

SDR1……………………………………………………………………………86

SDR2……………………………………………………………………………86

SDR3……………………………………………………………………………86

SDR4……………………………………………………………………………86

SDR5……………………………………………………………………………86

SDR6……………………………………………………………………………87

SDR7……………………………………………………………………………87

9

Sumário 1 INFORME SOBRE O TEMA E A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............... 10

2 REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................ 14

2.1 Sobre a Análise do Discurso ............................................................... 14

2.2 Literatura Comparada ........................................................................... 25

3 OS SÉCULOS XX E XXI NO BRASIL .......................................................... 32

3.1 De 1901 a 2015: o caminho da literatura ............................................. 32

3.2 A mulher de XX e XXI: na história e na literatura ............................... 44

4 A CRÔNICA BRASILEIRA: UM GÊNERO DO MOMENTO ......................... 53

4.1 A mulher brasileira traduzida em crônicas nacionais ....................... 56

4.2 Crônicas e cronistas: apresentando os objetos ................................ 58

4.3 O século XX ........................................................................................... 59

4.3.1 Clarice Lispector............................................................................... 59

4.3.1.1 Enigma – Crônica de Clarice Lispector ......................................... 62

4.3.2 Rubem Braga ................................................................................... 66

4.3.2.1 A Viúva na Praia – Crônica de Rubem Braga ............................... 68

4.4 O século XXI .......................................................................................... 72

4.4.1 Martha Medeiros .............................................................................. 74

4.4.1.1 A Mulher Independente – Crônica de Martha Medeiros ................ 75

4.4.2 Arnaldo Jabor ................................................................................... 79

4.4.2.1 Os Homens desejam as mulheres que não existem – Crônica de Arnaldo Jabor ............................................................................................ 82

5 A MULHER DE XX E XXI REPRESENTADA NA CRÔNICA BRASILEIRA: COMPARAÇÕES E RESULTADOS ................................................................ 92

CONCLUSÃO .................................................................................................. 98

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 101

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1 INFORME SOBRE O TEMA E A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A crônica é um gênero textual marcado pela temporalidade. A palavra

crônica deriva do grego chronos, que significa tempo. Ela aborda fatos

rotineiros,polêmicos. São, na maioria, acontecimentos do dia a dia,

transformados em textos curtos, por vezes narrados em uma linguagem mais

literal. A crônica se baseia na história para existir e quase semprese

apresentacarregada de críticas à própria história, à própria sociedade. O autor

busca inspiração em seu público e devolve a ele essa inspiração transformada

em crítica, expondo sua opinião como cronista, opinião que, às vezes, contém

um pouco de humor e cinismo. Além disso, a crônica é considerada um gênero

híbrido, uma vez que transita entre o jornalismo e a literatura e os limites

existentes entre crônica jornalística e literária são formados por uma linha

tênue, difícil de caracterizar e, consequentemente, separar.

Oliveira (s/d, p. 199) coloca sobre a crônica que

Se comparada à divisão clássica da literatura, ver-se-á que tal gênero assemelha-se ao chamado “gênero menor” praticado na antiguidade. Tal semelhança deve-se ao fato de ambos alimentarem-se da vida mundana, dos acontecimentos do cotidiano, do efêmero, afastando-se das grandes histórias, dos grandes heróis, matéria do chamado “gênero maior” (OLIVEIRA, s/d, p. 199).

Sobre o hibridismo do gênero, Oliveira (s/d, p. 202) ainda complementa

dizendo que é difícil definir a crônica, uma vez que ela tem suas raízes ligadas

à narração do individual, do subjetivo e ganhou força nos jornais com o advento

da imprensa, ao mesmo tempo em que se assemelha a outros gêneros

literários como o conto, o ensaio, etc. Conta ainda com outras características,

como a linguagem intimista e franca, além de abrir possibilidades para

agregarcaracterísticas de outros gêneros na sua composição.Por isso, Oliveira

(s/d, p. 203) diz que “talvez por isso seja tão difícil estabelecer especificidades

ao gênero que é, na verdade, híbrido por excelência” e também que “a função

referencial da linguagem que predomina no jornalismo é apenas uma das

funções linguísticas que podemos observar na crônica”. Dessa forma, a crônica

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tem características que a prendem a ambos os meios – o jornalístico e o

literário –sendo difícil vinculá-laa um ou a outro devido às especificidades que

permeiam a minuciosa linha que separa jornalismo e literatura. Oliveira (s/d, p.

204) complementa: “um texto participa de um ou mais gêneros, mas participar

não significa pertencer”. Ocorre o mesmo com a crônica no que diz respeito ao

seu pertencimento. Certo é que ela participa tanto do gênero jornalístico quanto

do literário.

Este gênero, a crônica, já foi tema de vários estudos. Acontece o

mesmo com o estudo sobre a mulher, quevem ganhando força nos últimos

anos devido ao crescente avanço da classe feminina na busca pelos seus

direitos e na tentativa de inserção na sociedade e essa aparição da mulher em

estudos literários e acadêmicos pode ser percebida pelos eventos dedicados

ao assunto, como, por exemplo, o Fazendo Gênero da UFSC, dentre outros

que são organizados dentro das próprias universidades e pelos artigos e

trabalhos já publicados que têm a mulher como enfoque. Acrescente-seque

estudossobre a representação da mulher nesse gênero literário – crônica -

também já foram motivo de reflexão. Porém, a forma como conciliarei estes

enredos e o objetivo proposto aqui penso que atribuem um novo olhar, uma

nova perspectiva sobre estes temas.

Não foi fácil para o sexo feminino obter um espaço em um mundo

dominado por homens que viam a mulher como um ser inferior, submisso.

Outro ponto que desperta grande interesse por este tema é o fato de quea

inserção feminina no mundo literário,sendo representada como cronistaou

como escritora,é pouco recorrente, tanto que somente há pouco tempo essa

evidência começou a ser objeto da atenção dos estudiosos. Sobre a presença

da mulher nas crônicas brasileiras ser constante, Simon (2006, p. 63) afirma

que “na crônica brasileira produzida ao longo do século XX, a mulher ocupou

espaços bastante significativos”. No entanto, o estudo sobre a presença da

mulher na condição de autora não é tão frequente. Como o próprio autor

comenta, “os estudos feministas têm ainda muito trabalho pela frente até

proporcionar mais visibilidade para a produção das cronistas”. Observando

obras da literatura brasileira de ambos os séculos, podemos perceber que a

figura da mulher oscila entre uma visão de mulher ora submissa, ora livre, ou

ora emancipada e ora reprimida. Porém, em crônicas, ainda não se tem um

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perfil da mulher representada, como personagem. Além dessas constatações

como motivadoras deste estudo, a pesquisa se dará também embusca de uma

resposta àseguinte questão:houve mudança na representação da mulher ao

longo do século anterior e no início deste, nas crônicas brasileiras?A questão é

levantada pelo fato de que a crônica é um gênero momentâneo e, como a

posição da mulher na sociedade mudou, consequentemente, a representação

dela nas crônicas também deveria ter se modificado.

Portanto, busco com este trabalho identificar, na literatura brasileira,e

mais precisamente no gênero crônica, como a mulher é nela representada, se

de fato é mencionada da maneira como o foi historicamente, se a imagem

representada sempre foi a dessa figura feminina submissa ao homem e à

sociedade, ou, ainda, se a visão sobre ela mudou como também se modificou

a própria história do país e a da literatura, consequentemente, andando lado a

lado com a crônica, gênero que se encarrega de retratar todas estas

mudanças. Há também a intenção de verificar se há diferenciação na forma

como ela é retratada quando a crônica foi escrita por um cronista ou quando é

de autoria de uma cronista.

A base teórica deste estudo está apoiada em duas ferramentas: a

Análise do Discurso de filiação francesa e a Literatura Comparada. A seguir,

aportes sobre a história constitutiva de cada uma delas, suas características e

a forma como serão utilizadas nas análises propostas. Após a respectiva

contextualização, com definição e comentários elucidativos sobre ambas, será

feita uma reflexão retrospectiva e resumida em torno da história das mulheres,

da história da literatura e sobre a relação possível de se estabelecer entre

esses itens, a fim de situar a pesquisaem conformidade com os objetivos que a

norteiam. Depois disso, utilizarei a Análise do Discurso para efetuar a análise

das crônicas escolhidas: Enigma, de Clarice Lispector; A Viúva na Praia, de

Rubem Braga, ambos do século XX, e A Mulher Independente, de Martha

Medeiros e Os Homens Desejam as Mulheres que não Existem, de Arnaldo

Jabor, cronistas do século XXI.A escolha destas crônicas e destes cronistas

justifica-se pelo renome adquirido pelos autores no meio em que atuam,

baseando-me em pesquisas em livros em queas crônicas foram publicadas e

também em consultas pela Internet. Evidentemente, existem muitos outros

cronistas e muitas outras crônicas, mas como um dos pressupostos da Análise

13

do Discurso é o aprofundamento do trabalho analítico muito mais que a

quantidade dos recortes sob análise, a escolha pessoal da pesquisadora

privilegiou cronistas conhecidos nacionalmente, autores de textos com

receptividade reconhecida não apenas em sentido amplo, seja pelos leitores,

seja pela crítica literária, mas também amplamente conhecidos no ambiente

escolar.

Por oportuno, adianto quea análise aqui proposta foi realizada

considerando-sedois aspectos: o social, ou seja, a interação social da mulher

como trabalhadora externa (independente se realiza trabalhos como dona de

casa), e,de acordo com cada cronista, se existe nas respectivas crônicas

menção ao aspecto profissional e qual a relação dela e do seu trabalho (ou

não) com as pessoas a sua volta, como a sociedade a vê.

A escolha do tema também teve amparo em questões pessoais e

sociais, uma vez que o fator de ordem pessoal advém da minha área de

formação – o jornalismo – área esta que estuda também a crônica. As

questões de ordem social seguem a linha de contribuição com estudos nesses

temas, que são a crônica, as mulheres e a própria Análise do Discurso e a

Literatura Comparada, servindo de base para futuros trabalhos que envolvam

qualquer um destes enfoques.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

Para embasar este estudo que teve como objetivo primeiro e principal

identificar a imagem da mulher representada em crônicas brasileiras escritas

por cronistas homens e mulheres em diferentes épocas e momentos históricos,

foram utilizadas duas ferramentas: a Análise de Discurso1 e a Literatura

Comparada2, duas vertentes teóricas que se diferenciam em alguns aspectos,

mas que se aproximam muito em outros, aspectos que ficarão evidentes após

a explanação conceitual. Com o apresentado nas próximas páginas, será

possível entender como surgiram estes conceitos, como se desenvolveram -

seus lugares originários, seus primeiros pesquisadores e estudiosos –

conceitos e funcionamento, para que, concluída a contextualização teórica

dotrabalho, ratifique-se a importância da escolha desses dois instrumentos

como base para a pesquisa com vistas às respostas buscadas.

2.1Sobre a Análise do Discurso

A definição de Análise do Discurso que apresento a seguir, tomo-a da

pesquisadora Maria Cristina Leandro Ferreira(2005):

É uma disciplina de entremeio que se estrutura no espaço que há entre a linguística e as ciências das formações sociais. Trabalha com as relações de contradição que se estabelecem entre essas disciplinas, caracterizando-se, não pelo aproveitamento de seus conceitos, mas por repensá-los, questionando, na linguística, a negação da historicidade inscrita na linguagem e, nas ciências das formações sociais, a noção de transparência da linguagem sobre a qual se assentam as teorias produzidas nestas áreas. A AD nos permite trabalhar em busca de processos de produção de sentido e de suas determinações histórico-sociais. Isso implica o reconhecimento de que há uma historicidade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência de um sentido literal, já posto, e nem mesmo que o sentido possa ser qualquer um, já que toda interpretação é regida por condições de produção. Essa disciplina propõe um deslocamento das noções de linguagem e

1 A partir de agora Análise do Discurso será citada apenas como AD.

2 Na sequência deste estudo, aLiteratura Comparada será designada somente pelas iniciais LC.

15

sujeito que se dá a partir de um trabalho com a ideologia. Assim, passa-se a entender a linguagem enquanto produção social, considerando-se a exterioridade como constitutiva. O sujeito, por sua vez, deixa de ser o centro e origem do seu discurso para ser entendido como uma construção polifônica, lugar de significação historicamente constituído (FERREIRA, 2005, p. 11-12).

A partir da citação transcrita, que explicita de forma concisa e simples o

que é a AD, posso adentrar nos conceitos de outros pesquisadores, como

Michel Pêcheux, o fundador da teoria, de maneira que o tema será mais

facilmente entendido, além de estudar seu surgimento e desenvolvimento e

entender muitas questões referentes à análise e interpretação.

O surgimento dos estudos em AD se deu na França, nas décadas de

1960/1970. Harris (1952), citado por Mazière (2007), descreve a AD da

seguinte maneira:

A análise de discurso dá uma multiplicidade de ensinamentos sobre a estrutura de um texto ou de um tipo de texto, ou sobre o papel de cada elemento nessa estrutura. A linguística descritiva descreve apenas o papel de cada elemento na estrutura da frase que o contém. A AD nos ensina, além disso, como um discurso pode ser construído para satisfazer diversas especificações, exatamente como a linguística descritiva constrói refinados raciocínios sobre os modos segundo os quais os sistemas linguísticos podem ser construídos para satisfazer diversas especificações(HARRIS, 1952 apud MAZIÈRE, 2007, p. 7).

Entendemos, então, que a AD nos ajuda a analisar cada elemento de

um texto (seja ele escrito, falado, imagético, interpretado). Ela elucida cada

acontecimento contido na estrutura textual, segundo seu analista. Um analista

de discurso deve ser atento conhecedor do mundo que o cerca, para que sua

análise não seja rasa, superficial; sua bagagem cultural e intelectual precisa ser

vasta, bem como aprofundado deve ser seu conhecimento sobre o assunto

específico que analisará.

Veloso (2012, p. 44), em seu livro O sujeito do desejo na trama do

discurso, faz ponderações acerca de um dos pressupostos da AD, o de“buscar,

sob aparente evidência, o oculto, o não-dito, o que não vem à superfície, o que

é da esfera do não-representável, mas pode ser apreendido nos atos falhos, no

equívoco, no que desliza pelos entremeios da trama discursiva”. Este é um

importante pressuposto a todo o analista de discurso. É o principal meio para

se chegar à produção de sentido que o analista deseja aferir, pois o cerne da

16

AD consiste exatamente nisso, em interpretar aquilo que não está dado

gratuitamente e entender o que está, utilizar de todas as suas ferramentas

intelectuais e culturais (sejam elas livros, anotações, conhecimentos e

experiências adquiridos ao longo do tempo) para fazer uma pesquisa sobre o

assunto e depois utilizá-la para analisar discursivamente, levando em conta a

exterioridade e a historicidade do objeto analisado,contextualizando-o.

A propósito do discurso,este é o objeto utilizado pela AD, sendo ele

constituído a partir da língua e baseando-se em outros discursos ouvidos

anteriormente que, dependendo de fatores como exterioridade e historicidade,

pode ter um efeito de sentido diferente do intencional. Afinal, a língua trabalha

com signos e estes podem produzir múltiplos significados.

Mazière (2007, p. 8-9), diz que a AD “é solicitada sob uma forma restrita,

como complemento de análises textuais, nos trabalhos que se vinculam à

pragmática ou à comunicação, como simples instrumental linguístico, em

completa ignorância dos desafios de sentido que foram os seus”. Também

comenta que foi frequentemente ameaçada pelas outras teorias, mas, mesmo

assim, manteve-se resistente. A autora fala também sobre uma tríplice relação

da AD (2007, p. 10), que se dá entre o sujeito assujeitado, a historicidade de

todo enunciado singular, e com a materialidade das formas de língua, relações

essas que estruturam a teoria, que formam a base em que a AD se sustenta, a

base de sua interpretação e que darão suporteao trabalho do analista.

Conhecer o sujeito, conhecer a história do enunciado do sujeito e todas as

artimanhas da língua, esta é a tríplice relação necessária à AD e ao analista.

A AD não prioriza, por exemplo, as regras gramaticais, mas sim seus

efeitos na composição das frases, no caso de um texto. Não prioriza a

disposição das figuras e a escolha das cores em uma tela, mas sim o efeito de

sentido que as imagens e os tonsdespertam em quem olha, levando em

consideração, sempre, sua exterioridade, sua historicidade, sua condição de

produção. Melo (2009, p. 3) compartilha dessa ideia, afirmando que “o objeto

de estudo de qualquer análise dodiscurso não se trata tão somente da língua,

mas o que há por meio dela: relações de poder,institucionalização de

identidades sociais, processos de inconsciência ideológica, enfim,

diversasmanifestações humanas”.

17

Orlandi(2012, p. 46) também explica essa relação ao afirmar que “na

análise, não é a relação entre, por exemplo, sujeito e predicado que é

relevante, mas o que essa organização sintática pode nos fazer compreender

dos mecanismos de produção de sentidos que aí estão funcionando”. Brandão

(2007, p. 50) partilha da ideia desses autores, ressaltando que “cabe à AD

trabalhar seu objeto (o discurso) inscrevendo-o na relação da língua com a

história, buscando na materialidade linguística as marcas das contradições

ideológicas”. Saliente-se, então: o que é extremamente interessante para a AD

não é o tu, ou o eu, mas sim, o significado que se instaura ou se (re)cria no

diálogo entre nós e como esse sentido se (re)constrói.

Pêcheux (2008) afirma que

Interrogar-se sobre a existência de um real próprio às disciplinas de interpretação exige que o não-logicamente-estável não seja considerado a priori como um defeito, um simples furo no real. É supor que possa existir um outro tipo de real diferente dos que acabam de ser evocados, e também um outro tipo de saber, que não se reduz à ordem das “coisas-a-saber” ou a um tecido de tais cosias. Logo: um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos. (PÊCHEUX, M., 2008, p. 43.)

Na AD, nenhum sentido é fechado, inflexível, impossível de ser mudado.

Todo sentido encontrado no processo de análise terá várias interpretações e,

como mencionou Pêcheux, isso não é um defeito, mas uma produção de

efeitos baseada em diversos fatores que podem sofrer mudanças de acordo

com a interpretação dada pelo analista, de acordo com o conhecimento que

possui sobre o assunto e conformea maneira como ele utilizará esse saber

para analisar o fato dado.

Mazière (2007) lembra também o início dos estudos emAD, ocorrido na

França, entre 1969 e 1971, por meio de uma série de produções, apresentando

métodos, objetos de análise e se difundindo amplamente, dividindo e

organizando os campos das disciplinas. Em 1983,esses estudos se diluiriam,

pela falta de colaboração dos pesquisadores. Porém, em outros países,

especialmente no Brasil, a teoria prevalece e é referência nos estudos da área.

A autora ainda afirma que a AD francesa se estabeleceu em dois anos e até

meados dos anos 90 permaneceu produzindo textos. Após, continuou sendo

estudada, ampliada e repensada em torno das pesquisas de Pêcheux, o

18

iniciadorda Escola Francesa de Análise do Discurso.Mais tarde, a teoria foi

difundida, com vários outros estudiosos se dedicando à área. No início, a AD

era estudada lado a lado com a História, até mesmo porque os textos

analisados eram,basicamente, documentos históricos, passando a textos

jornalísticos e avançando gradativamente por meio de vários pesquisadores,

estes, apoiados em Pêcheux. Tanto isso foi verdadeiro, que a AD mudou de

“do lado da história” para “apropriação da AD pelos historiadores”, um grande

avanço nessa área, uma vez que aqueles que estudavam AD como estudavam

qualquer outra disciplina passaram a estudar e utilizar a AD em seus demais

estudos (MAZIÈRE, 2007, p. 97).

O objetivo da AD era, conforme afirma Melo (2009),

detectar os diferentes processos de reprodução social do poder hegemônico através da linguagem – a princípio muito ligado a políticas partidárias – e que a fez direcionar suas bases epistemológicas para um foco central – a idéia de que o sujeito não é dono de seu discurso, mas assujeitado por ele.(MELO, 2009, p. 5.)

De fato, nenhum discurso é original, nenhum discurso é inteiramente de

quem o pronuncia. Na verdade, cada discurso proferido é uma colcha de

retalhos que foram sendo recolhidos ao longo do tempo, textos vistos, ouvidos,

lidos, vividos em outros lugares, de outras épocas e de autores variados, que o

sujeito vai agregando e com eles construindo um novo discurso, que mais tarde

fará parte da colcha de retalhos de alguém. Baccega (2003) partilha dessa

ideia, afirmando que a sociedade funciona num aglomerado de discursos que

se cruzam, que se esbarram, apropriando-se um do outro, formando novos

discursos, com novos sentidos a partir do momento em que um receptor

absorve esse discurso e, a seu modo, interpreta-o. Ela chama essa

interpretação de subjetividade, “a subjetividade nada mais é que o resultado da

polifonia, das muitas vozes sociais que cada indivíduo “recebe” e tem a

condição de “reproduzir” e/ou reelaborar” (2003, p. 22), salientando ainda que a

produção de sentido não é característica de cada indivíduo, mas sim, insere-se

na própria história, na própria sociedade.

Entendo, a partir dessas ideias, que todo enunciador é, ao mesmo

tempo, um coenunciador, uma vez que para proferir um discurso sempre será

acionada sua memória discursiva. Assim, quando atua na cena discursiva, o

19

interlocutor se torna, automaticamente, enunciador de um novo discurso, de um

novo sentido, dado o trabalho da interpretação que se processa nessa

mediação.

Maingueneau (1997, p. 13), falando sobre o início dos estudos em AD,

explica que “no momento em que „a escola francesa de análise do discurso‟

constituiu-se, a conjuntura teórica era bastante diferente e o trabalho de

explicitação de suas fronteiras não se revestia da mesma urgência que

apresenta agora”. As delimitações, especulações sobre o tema não eram tão

constantes e exigentes e nem tão utilizadas como vem acontecendo, como

explica ele dizendo que “se, durante um longo período, foi-lhe suficiente definir-

se como „o estudo linguístico das condições de produção‟ de um enunciado,

hoje parece necessário precisar melhor os critérios para analisar a experiência

que realiza” (1997, p. 13).Maingueneausegue dizendo que “o que distingue a

AD de outras práticas de análise de texto é a utilização da linguística” (1997, p.

17). Explicaele que isso não significa que um discurso não pode ser analisado

de outra forma senão pela AD apoiada na linguística, mas sim, que este campo

(da linguística) é o que oferece mais suporte, mais eficácia para a realização da

análise.

Sendo a língua o que une todos os aspectos que serão analisados na

perspectiva da AD, Pêcheux (2009, p. 20) faz duas constatações sobre ela:

uma é que “a língua não é histórica precisamente na medida em que ela é um

sistema (pode-se também dizer uma “estrutura”)”; a outra constatação é de que

“é na medida em que a língua é um sistema, uma estrutura, que ela constitui o

objeto teórico da linguística”. Sendo uma estrutura, pode ser desmembrada,

transformada a meros fragmentos que serão analisados separadamente e

depois juntados, formando um novo signo.

Apesar de a AD analisar cada estrutura fundante do texto, a

interpretação, embora às vezes colocada como evidente em certo aspecto,

sempre dependerá de seu analista, doconhecimento deste sobre o assunto e

sobre os demais itens que o cercam, sua exterioridade, pois a interpretação é

pessoal. Também, podemos ver que não existe apenas um real, na verdade

não existe um real, são representações do fato dado, de acordo com quem o

interpreta.

20

Deve-se, no entanto, tomar cuidado com o campo das interpretações,

pois, apesar dessa interpretação ser de ordem pessoal do analista do discurso,

por vezes pode ser uma interpretação manipulada, dependendo de quem é o

analista e das pessoas ou dos fatos que fazem parte da exterioridade de que

se reveste tal episódio, que podem influenciar o analista em seu trabalho

interpretativo.

Mazière (2007, p. 23) afirma que “o analista de discurso não é uma

pessoa neutra. Nunca.” Mesmo que ele quando analisa um objeto que não

esteja próximo de si, que tenha estudado previamente sua exterioridade, sua

historicidade, ele cria um observatório próprio, baseado em seus estudos para

realizar a análise. É o que explica Pêcheux (2008, p. 51), quando diz que o

objeto analisado está entre dois espaços: “o da manipulação de significações

estabilizadas e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma

estabelecida, tomados no relançar indefinido das interpretações”. Ele continua

dizendo que esse espaço pelo qual o analista transita é muito difícil de delimitar

e acaba dificultando a análise do objeto. Afinal, o que é tido como verdade para

um pode nem aparecer na análise de outro analista.

Pêcheux (2009) faz menção, ainda, à questão de a historicidade ser

levada em conta na AD:

Pensamos que uma referência à história, a propósito das questões de linguística, só se justifica na perspectiva de uma análise materialista do efeito das relações de classes sobre o que se pode chamar as “práticas linguísticas” inscritas no funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada: com essa condição, torna-se possível explicar o que se passa hoje no “estudo da linguagem” e contribuir para transformá-lo, não repetindo as contradições, mas tomando-as como os efeitos derivados da luta de classes hoje em um “país ocidental”, sob a dominação da ideologia burguesa. (PÊCHEUX, 2009, p. 24.)

Na análise da história é possível explicar melhor o que acontece hoje

nos estudos linguísticos. Deve-se utilizar essa ferramenta para transformar o

que temos hoje e não apenas repetir o que se tem estudado. O essencial para

uma contribuição significativa no ramo dos estudos da linguagem é usar do que

já foi estudado e aprofundá-lo, ou mesmo transformá-lo quando necessário.

Tudo o que vier para acrescentar nos estudos linguísticos e na AD é bem-

vindo. Pêcheux também afirma que, no início da revolução burguesa, a luta era

21

por uma língua unificada e uniforme e que, com o tempo, essa ideia foi caindo

por terra. Tem-se na atualidade uma língua pluralizada, possível de ser

estudada e possível de ser objeto de estudo da linguística e de suas áreas

afins.

Orlandi(2012, p. 9) salienta que “a interpretação é sempre possível de

equívocos, pois os sentidos não são fechados, não são evidentes, embora

pareçam ser”, corroborando a ideia de Mazière (2007) e Pêcheux (2002), de

que há uma linha tênue onde se estrutura a AD e, dentro dela, a interpretação.

Por isso, são necessários conhecimento e estudo; caso contrário, pode haver

equívoco e dificuldade de distinção. Mesmo assim, conforme a pesquisadora,

não se perde sua totalidade e seu caráter de unidade. Orlandi(2012, p. 11)

também faz uma relação da interpretação com o silêncio e com a

incompletude, ao afirmar que “esta incompletude não deve ser pensada em

relação a algo que seria (ou não) inteiro, mas antes em relação a algo que não

se fecha”. A AD se faz necessária para dar sentido a essa lacuna, sentido este

que também não completará o algo, mas o complementará, pois o sentido não

é fechado. Essa citação de Orlandi é muito importante para o entendimento

sobre o processo de produção de sentido a partir da análise de um texto sob o

olhar da AD. Como podemos perceber, o discurso não é um todo inteiro e

impenetrável. Pelo contrário, é um todo, porém incompleto e passível de

inúmeras tentativas de preenchimento, que nunca acontece inteiramente, mas

que se complementa de diversas formas.

Sobre esse jogo de sentidos postulado pela AD, Eco (2005, p. 28), ao

afirmar que “dizer que a interpretação é potencialmente ilimitada não significa

que a interpretação não tenha objeto e que ocorra por conta própria”, coincide

como que Mazière (2007) e Pêcheux (2008) já afirmaram, sobre o cuidado que

o analista deve ter com a interpretação. O semioticista italiano continua,

dizendo que “interpretar um texto significa explicar por que essas palavras

podem fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são

interpretadas”(2005, p. 28), ressaltando que sim, um discurso pode exprimir

vários sentidos, porém, sempre dentro de um contexto limitável e racional. Não

é simplesmente encontrar significados sem levar em conta os fatores que aqui

já foram enumerados, como a exterioridade e a historicidade; a interpretação; a

produção de sentido é sim, de certa forma, aberta e ilimitada, mas aberta e

22

ilimitada dentro do seu espaço de contextualização, dentro dos seus limites de

pesquisa e análise.

Cito Foucault (1986), a partir de Brandão (2004, p. 50-51), quando diz

que “analisar o discurso é fazer desaparecer e reaparecer as contradições; é

mostrar o jogo que jogam entre si; é manifestar como pode exprimi-las; dar-

lhes corpo ou emprestar-lhes uma fugidia aparência”. É, pois, interpretar,

analisar discursivamente, um trabalho que não se limita ao simples fato de

descrever, pois, como já foi dito, interpretação exige conhecimento, estudo,

bagagens acumuladas, produção de sentido. Caso contrário, a interpretação se

torna uma descrição de fatos evidentes, pobre em conteúdo, que deixa a

desejar no que se refere à análise de cada elemento sintático ou de cada

elemento compositor do objeto analisado. Se ficarmos apenas na descrição,

faremos uma “análise” desprovida de valor científico, pois não “encontraremos”

nada no discurso que o torne outro. Como afirma Pêcheux (2008, p. 53), “todo

enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si

mesmo”. Mas para isso é preciso empregar os preceitos teóricos da AD de

forma correta e não fazer uma descrição somente superficial do enunciado,

pois não há o que ser produzido numa mera reprodução do visível. Para que

ocorra a produção de sentidos, nossos olhos devem se voltar àquilo que é

invisível, ao que precisamos encontrar. Em análise discursiva, o que é gratuito

não nos leva muito longe.

Orlandi(2012), seguindo a mesma linha de pensamento de Pêcheux, diz

que o texto não é uma superfície plana. Ele parte em inúmeras direções,

abrindo um vasto leque de significações e de produção de sentidos. Ela ainda

assevera que não existe um texto original em um discurso, mas sim vários, pois

cada discurso produzido é baseado em vários outros, saberes esses que foram

se acumulando ao longo do tempo e formando a bagagem cultural do sujeito,

enunciador ou analista.

No caso da produção de discurso, podemos relembrar Brandão (2004),

ao afirmarque

a linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, é um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação de ideologia. (BRANDÃO, 2004, p. 11.)

23

Dessa forma, compreendemos que a linguagem não pode ser estudada,

pelo viés da Análise do Discurso, apenas em sua formação sintática, mas sim a

partir de sua formação ideológica, pois esta sim lhe dá o conteúdo mais

interessante e necessário, dá-lhe abertura para a interpretação.A autora

continua dizendo que “a formação ideológica tem necessariamente como um

de seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas. Isso

significa que os discursos são governados por formações ideológicas”.

Quando falamos que na AD um dos aspectos levados em conta para a

produção de sentido é a historicidade do enunciado, ou do objeto, estamos

corroborando com a ideia de Maingueneau(1997, p. 15), quando afirma que

“admitindo-se uma multiplicidade de “análises do discurso”, compreender-se-á

que uma delas mantém uma relação privilegiada com a história, enquanto uma

outra recorre com maior frequência às pesquisas de campo”. Encontraremos

sim várias verdades em uma análise, mas tem de se levar em conta seu

contexto histórico, pois este conduzirá ao caminho da interpretação mais

correto e aproximado do real representado no enunciado.

A propósito, Michel Pêcheux (2008),ao falar sobre a questão das

múltiplas interpretações, afirma que

o objeto da lingüística (o próprio da língua) aparece assim atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagógica do pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações. (PÊCHEUX, 2008, p. 51.)

Na perspectiva da AD, os sentidos dados podem ser manipulados ou

modificados, podem ser totalmente transformados e, a partir destes, outros

serão criados. Esta é uma linha que deve ser cuidadosamente atravessada

para que a interpretação não seja falha, fugindo totalmente aos

sentidossubjacentes no discurso resultante de suas condições de produção.

Melo (2009, p. 7 e 8), falando sobre o surgimento e desenvolvimento da

AD, recorda a AD marcada em três fases, a primeira sendo denominada como

o período das máquinas discursivas, a segunda como apogeu das formações

discursivas e a terceira como o primado do interdiscurso. A primeira fase,

24

segundo o autor, caracteriza-se por ter apenas discursos políticosanalisados,

sendo a AD como uma máquina discursiva automática. Era, por exemplo,

proibido a um comunista falar como um conservador. Essa fase baseia-se na

AD de 1969. A segunda fase, iniciada em 1975, introduz noções de Formações

Discursivas3, delimitando o que pode ser dito de acordo com o espaço social

do sujeito, ou seja, um aprofundamento da primeira fase, regido por regras

sociais. A sociedade “regia” os discursos proferidos, agora não mais apenas na

política, mas em todos os setores. Na terceira fase,

passa-se a pensar que um discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos e que a linguagem é, fundamentalmente, heterogênea. [...] Emerge, então, a importância da noção de interdiscurso, que passa a ser visto como o objeto de investigação de qualquer análise do discurso. (MELO, 2009, p. 8.)

Aqui, na terceira fase, chega-se a uma conclusão – a de que nem a

linguagem e muito menos o processo de significação é heterogêneo, pois tanto

um quanto o outro, ou mesmo os demais elementos desse processo, são

passíveis de inúmeras interpretações, desbancando as outras duas fases da

AD, em que os discursos já eram manipuláveis, tornando a interpretação

induzida.

Refletindo sobre o surgimentoe as fases da AD, Maingueneau (1997)

explica que

O panorama da AD remodelou-se pouco a pouco através da reincidência destas questões. Sucintamente, poder-se-ia dizer que a AD de “primeira geração”, aquela do fim dos anos 60 e início da década de 70, procurava essencialmente colocar em evidência as particularidades de Formações Discursivas (o discurso comunista, socialista, etc.) consideradas como espaços relativamente auto-suficientes, apreendidos a partir de seu vocabulário. A AD de segunda geração, ligada às teorias enunciativas, pode ser lida como uma reação sistemática contra aquela que a precedeu. (MAINGUENEAU, 1997, p. 21.)

De fato, além dessas duas, a terceira foi sim uma reação contra as

anteriores, e foi aquela que se sobressaiu e que regeu os estudos em AD desta

época em diante.

3 Formações Discursivas serão denominadas FD.

25

Orlandi (2001, p. 19), em seuAnálise do Discurso: princípios e

procedimentos, também faz colocações acerca da AD em seus primeiros

momentos, afirmando que “nos anos 60, a AD se constitui no espaço de

questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são ao

mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a Linguística, o Marxismo e a

Psicanálise”. A AD segue, até hoje, apoiada nesse tripé, consolidando-se como

uma disciplina muito importante na análise de qualquer objeto, desde que

sejam seguidos os princípios da exterioridade, historicidade e condição da

produção de sentido.

Em diálogo com Análise do Discurso, que será utilizada na análise das

crônicas individualmente, será empregadaa Literatura Comparada, outra

ferramenta para se chegar ao objetivo desta Dissertação –ou seja, vislumbrar

qual é a representação da mulher nas crônicas brasileiras dos séculos XX e

XXI.

2.2 Literatura Comparada

A LC é um estudo entre um objeto literário e outro objeto ou outros

(literários ou não), buscando apontar as semelhanças e diferenças existentes

entre eles e, a partir dessas semelhanças e diferenças, discutir o que os

distingue, ou o que lhes poderia ser acrescentado, enfim, ponderações que

ficam a cargo da intenção do comparatista.

A LC pode ser entendida, segundo Remak (1961),apud Carvalhal e

Coutinho (1994), como

o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença. [...] Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK, 1961,apud CARVALHAL E COUTINHO, 1994, p. 175.)

A LC é uma área multidisciplinar, pois abrange qualquer campo passível

de estudo, de qualquer lugar e de qualquer idioma, desde que um dos objetos

seja literário. Ela mantém relações interculturais para que seu estudo seja

26

possível. A definição de LC não é fácil de ser encontrada de forma unânime.

Desde o seu surgimento, ela passa por modificações em seus preceitos, tendo

motivado vários entraves entre estudiosos e pesquisadores da área.

Bara(2010, s/p)explica o que pode ter motivado esses entraves e discussões

dizendo que a LC é uma disciplina “que muda, constantemente, tanto no tempo

quanto no espaço, o que corrobora sua tendência de ajustar-se aos métodos

críticos literários que entram em cena no século XX”. De fato, veremos que o

impasse para se chegar a uma definição do que é a LC e de como ela atua foi

muito discutido e modificado, adquirindo variadas acepções com o passar do

tempo; algumas foram sendo derrubadas com o evoluir da sociedade e das

pesquisas e outras permaneceram e foram sendo ampliadas, aprofundadas e

aperfeiçoadas.

Steiner (2001, p. 151) diz que “todo ato de recepção, em linguagem, em

arte e em música é um ato comparativo”, pois tudo o que vemos ou ouvimos,

enfim, tudo o que chega até nós, é, instantânea e automaticamente,

comparado com outras vivências anteriores. O autor exemplifica essa

afirmação:

Procuramos entender “situar” o objeto eu temos diante de nós dando-lhe um contexto inteligível e informativo de experiências prévias a ele relacionadas. Procuramos, intuitivamente, analogias e precedentes, traços familiares que relacionem a obra que é nova para nós, dando-lhe um contexto de forma a podermos conhecê-la. (STEINER, 2001, p. 151.)

Quer ele dizer que o ato de recepção é automaticamente comparatista,

pois buscamos, a partir do enunciado recebido, algo a que possamos

relacioná-lo para que fique mais familiar à nossa percepção. Dessa forma,

torna-se mais fácil assimilá-lo e inclui-lo em nosso cotidiano. Ao fazermos isso,

ao buscarmosessa familiaridade, estamos comparando o que acabamos de

receber com algo semelhante aoque já tivemos contato em outro momento,

buscando as semelhanças e diferenças entre o atual e o já ouvido. Toda a vez

em que analisamos comparativamente um texto literário com outro,ou com

qualquer outro objeto (uma música, um quadro, um comercial de televisão

etc.),estamos fazendo literatura comparada. Carvalhal (2003, p. 20)afirma que

“a literatura comparada leva-nos para o amplo jogo dos discursos e faz-se

27

também leitura do texto na história. Eis a dimensão que a literatura comparada

reintroduz nos estudos literários de hoje: a da historicidade contextual”. Mas o

que seria esta historicidade contextual? Ela faz referência a tudo aquilo que

está em torno do objeto, tudo o que o situa no tempo e no espaço e que deve

ser levado em conta na análise, e o que permite um entendimento mais

completo também. Ainda,Steiner (2001, p. 151) diz que “a interpretação e o

julgamento estético advêm de uma câmara de ecos onde ressoam os

pressupostos históricos. [...] Não existem singularidades absolutas”. O que se

tem são plurais interligados pela história.

O que Carvalhal (2003) e Steiner (2001) ressaltam é que todo e qualquer

discurso se origina em um tempo e tem a sua volta todo um contexto histórico

que esteve junto do discurso desde a sua projeção até ele ser, de fato,

exposto. Esse processo deve ser levado em conta na análise comparatista,

pois as condições de produção de um determinado discurso podem fazer muita

diferença durante a análise. Percebemos, nessa percepção da LC, uma grande

aproximação com a AD, cujos pressupostos teóricos embasarão as análises

posteriores, considerando-se o fato de que, para a análise se aproximar ao

máximo do sentido do enunciado, será necessário avaliá-lo considerando-se

sua exterioridade, sua historicidade e suas condições de produção.

Essa falta de singularidade absoluta a que Steiner (2001) se refere deve-

se ao fato de que cada comparatista fará este estudo comparatista à sua

maneira, como ocorre na AD, de acordo com o conhecimento prévio sobre as

condições de produção, com a visão de mundo que tenha como resultado da

interpelação ideológica, da memória discursiva e da posição-sujeito ocupada

pelos sujeitos durante o ato de fala. Cada elemento dos objetos em estudo é

único. Porém, o plural que eles formam pode ter inúmeros sentidos e o

responsável por identificá-los, estudá-los e juntar as peças desse quebra-

cabeças polissêmico é que irá encontrar o sentido que melhor cabe à sua

interpretação. Vale lembrar que, mesmo tendo feito toda uma análise

contextual da história desse enunciado e das suas condições de produção,

ainda assim a interpretação é heterogênea, não tendo apenas uma e nem

sendo fechada, pois essa interpretação pode ainda ser complementada mais

tarde ou mesmo modificada. Aqui podemos perceber mais uma grande

aproximação entre a LC e a AD, a de que nenhum sentido é fechado e a

28

produção de significados para cada elemento é infinita, podendo ser ampliada,

complementada e mesmo modificada. Como afirma Steiner (2001), cada

elemento que chega, chega da mesma forma, carregado de sua história, mas

talvez não conheçamos toda a história inscrita na memória discursiva de

determinado texto para interpretá-lo em sua totalidade; por isso, a falta de

singularidade absoluta no trabalho analítico.

Mas a comparação não é simples e puramente apontar as diferenças ou

semelhanças entre os elementos analisados. Como lembramBrunel, Pichois e

Rousseau (1990, p. 2), “comparar literaturas não é fazer literatura comparada”.

Comparar é também, e antes disso, avaliar, como destaca Nitrini(1997, p.

164),“as semelhanças que persistem entre o enunciado transformador e o seu

lugar de origem e, em segundo lugar, ver de que modo o intertexto absorveu o

material do qual se apropriou”. O que interessa realmente nesse ato

comparatista é descobrir quais são as semelhanças e diferenças entre os

objetos sob análise e qual o seu significado, que sentido transmitem ao

analista, ou ao comparatista. Por exemplo, não se trata de descobrir por que

esta obra é melhor do que aquela, mas sim, o que a faz ser considerada uma

obra melhor, ou pior4.

Por volta do século XIX, no surgimento da LC, a comparação que se

fazia era entre o designado como literaturas maiores e literaturas menores,

estabelecendo uma hierarquia na literatura: as literaturas maiores eram

consideradas como fontes confiáveis, enquanto as literaturas menores eram

marginalizadas. Com o passar do tempo e o aprofundamento dos estudos na

área comparatista (ou seja, nos estudos de como se fazer literatura

comparada), o que se tem na atualidade é uma comparação não para

classificar qualitativamente as fontes, mas sim apontar as diferenças e

semelhanças entre os objetos comparados e chegar a um patamar do que é

confiável em cada um deles e o porquê de um ser considerado mais confiável

que o outro.

4 Existem alguns aspectos que delimitam as obras literárias, alçando as que se enquadram nos

quesitos ao que chamamos de Cânone Literário. Estes aspectos referem-se a obras que ultrapassam seu espaço-tempo, ou seja, obras que se alastram a outras terras e perduram na memória coletiva, obras que possuem algum valor documental ou histórico, que traduzem os sentimentos e sensações de uma maneira que transcorra a história e permaneça no tempo. Somando-se a isso, Calvino (1993) afirma que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer", uma obra que seria inesgotável.

29

A LC teve seu início juntamente com a própria literatura e visava ao

estudoda influência de outros autores em cada obra e entre países, com a

finalidade de conceituar que a obra de um país é melhor do que a de outro.

Esse conceito era chamado de fonte e influência e o objetivo era identificar o

que de um autor havia em determinada obra. No começo, a LC era feita entre

países, numa tentativa de mostrar o poder de um sobre o outro, principalmente

através desse conceito de fonte e influência. Dependendo dos autores que

influenciavam a nova obra, era possível determinar a força cultural e literária de

um país sobre o outro, de uma literatura sobre a outra, uma determinação do

que era o cânone literário e do que eram as obras marginalizadas. Mais tarde,

pensou-se numa LC que analisasse mais profundamente o texto dado, cada

elemento componente do objeto, no caso, dos objetos, já que a LC deve,

obrigatoriamente, possuir pelo menos dois objetos de análise, um deles

sendoliterário. Faz-se uma contextualização em torno dos objetos, para que

possam ser estudados em sua totalidade e para que a interpretação (que não

será única e singular) se aproxime ao máximo da veracidade, conceito

proposto por René Wellek.

Como disciplina, a LC começou a emergir no século XIX, iniciando nas

escolas francesas, sendo Paul Van Thiegem o seu precursor, fixando-se como

tal no século seguinte, entre a década de 50/60, sempre ao lado da crítica

literária, com a história da literatura e com uma grande ajuda de René Wellek,

que representou uma ruptura dos modelos de LC, propondo uma leitura mais

aprofundada do texto, primando pela contextualização. Carvalhal (2003, p. 20)

comenta sobre a dimensão que a LC toma nos estudos literários atuais,

dizendo que ela “nos leva para o amplo jogo dos discursos e faz-se também

leitura do texto na história”, fato que chama de “historicidade contextual”. Muito

se discutiu sobre conceitos que surgiram para a LC, como fonte e influência,

originalidade, contextualização, literaturas nacionais e cânone literário. Hoje,

muitas dessas questões já foram esclarecidas e algumas abolidas da LC,

enquanto outras foram sendo aprimoradas e incorporadas, de fato, nas

disciplinas acadêmicas.

Desde os primórdios da LC, vários impasses foram cruzando o caminho

dos estudiosos da área, como as duas escolas que se sobressaíam, a francesa

e a americana. A escola francesa primava por uma LC entre obras literárias

30

apenas, ligadas ao cânone e, de preferência, que não fugissem das fronteiras

nacionais, enquanto a escola americana induzia a que essa relação da

literatura com outras áreas fosse explorada. A linha que se segue é a da escola

americana, pois é tida como a que mais oferece condições de realizar um

comparatismo literário bem estruturado.

Outro impasse existente é em relação às obras traduzidas. Toda vez que

se traduz uma obra nunca a tradução é ou será feita fielmente. Sempre haverá

perda de sentido de algumas expressões ou palavras intraduzíveis que

ganham um novo significado; tudo isso implica uma interpretação

rasa.Guyard(1951) apud CARVALHAL e COUTINHO (1994, p. 98) diz que “o

comparatista deve ler diversas línguas”. De fato, para que se possa falar com

propriedade de determinado autor ou obra, deve-se buscar a obra original, bem

como relatos sobre ela também na língua original.

Sobre o autor de determinada obra, Cioranescu (2006) destaca três

tipos, sendo eles:

el autor puede servir de emisor, si es él quien sirve de modelo o de fuente; de receptor, si a su obra llegan las influencias o las repercusiones de la acción ejercida por el modelo; de agente de transmisión o intermediario, si el autor sirve de enlace entre la fuente y el imitador.(CIORANESCU, 2006, p. 73.)

Esse fator do autor como emissor, receptor ou agente de transmissão,

pode influenciar, também, na hora da comparação, pois pode intervir na

contextualização e mudar a interpretação do objeto analisado. Mazière (2007,

p.18), concorda com essa afirmação de Cioranescu, quando diz que “o

enunciador não é um indivíduo singular. O “eu” do enunciador A passa a ser o

“eu” do enunciador B a partir do momento em que B toma a palavra”.

Para que a literatura comparada seja, de fato, bem compreendida, bem

empregada como aliada no processo analítico, é necessário que o

comparatista, assim como o analista de discurso, tenha um conhecimento

consistente em diversas áreas; que possua uma bagagem de leituras e estudos

ampla e uma certa fluência em outras línguas; como salientaSteiner (2001, p.

158),“em qualquer situação o ato da leitura envolve a história e os

pressupostos da língua. A literatura comparada encontra-se imersa na pródiga

diversidade das línguas naturais e deleita-se com essa diversidade”.

31

Guyard(1951) apud Carvalhal e Coutinho (1994, p. 97), também partilha dessa

ideia de conhecimento pluralizado, quando afirma que “o comparatista deve ter

uma cultura histórica suficiente para recolocar no seu contexto geral os fatos

literários que ele examina”. Guyard cita várias “qualidades” de um bom

comparatista, dentre elas a de que, além de uma boa cultura histórica,

necessita conhecer tanto quanto possível as literaturas de outros países,

conhecer outras línguas para ler as obras em sua língua original e saber onde

encontrar os primeiros dados, ou seja, qual a primeira fonte de informação de

determinado assunto.

Kristeva (2005, p. 67) também corrobora essa ideia, quando diz que

“todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e

transformação de um outro texto”. Autores como Steiner (2001), Guyard (1951)

e Kristeva (2005) falam, de formas variadas, sobre a intertextualidade,

recapturando a ideia de que nenhum discurso é original, mas construído a

partir de vários outros discursos, ouvidos e absorvidos em diferentes ocasiões

e que são adequados ao discurso proferido no momento, em um processoque,

como já afirmado aqui, geralmente é automático.

Tanto na AD, quanto na LC, faz-se necessária uma vasta bagagem de

conhecimento, tanto histórico, quanto social, cultural ou mesmo de línguas,

para ser possível uma boa análise e não somente o levantamento de

diferenças e semelhanças ou, simplesmente, a coleta de informações que já

são óbvias.

32

3 OS SÉCULOS XX E XXI NO BRASIL: A LITERATURA E A MULHER

A análise proposta tem como período de abordagem os séculos XX e

XXI. Para tanto, precisaremos estudar a literatura em alguns de seus aspectos,

como o seu surgimento, um pouco sobre os seus períodos, alguns de seus

principais escritores, como se deu a sua inclusão na sociedade, bem como

estudar um pouco sobre o contexto histórico em que a mulher esteve e está

inserida na sociedade e a sua luta diária para conquistar seu espaço, tanto

naliteratura quanto na sociedade. Depois de estudar estes objetos, poderemos

adentrar na pesquisa proposta, pois é a relação entre os aspectos

observadosque darão suporte para um melhor entendimento da questão

principal, que é representação da mulher nas crônicas brasileiras do período

antes mencionado.

3.1De 1901 a 2015: o caminho da literatura

Literatura. O que é? Quais suas características? O que a define? Antes de

me ater nos anos que me interessam para esta análise, é preciso entender que

para definir e estudar o gênero crônica, é preciso entender e estudar a

literatura em si e, para tanto, Warren e Wellek (2003) dizem que a maneira

mais simples de solucionar essas questões é compreendendo o que é a língua

e como se dá o seu uso na literatura:

a língua é o material da literatura, como a pedra ou o bronze são o da escultura, as tintas da pintura, os sons da música. Devemos perceber porém que a língua não é mera matéria inerte, como a pedra, mas é, ela própria, uma criação do homem e, assim, carregada com a herança cultural de um grupo linguístico (WARREN E WELLEK, 2003, p. 14).

A língua é, pois, uma criação. Como toda criação, ela carrega em si os

traços de seu criador, a cultura de seu criador e, sendo umelemento da

literatura, também esta sofre influências de cada cultura, de cada autor, de

cada tema.

33

Apesar de a língua ser uma das particularidades estudadas pela literatura,

os autores fazem uma distinção entre a linguagem científica, comum a todas às

pessoas, e à linguagem literária, utilizada nos escritos. Dizem que a linguagem

científica é denotativa, que pende para uma linguagem universal; já a

linguagem literária, apesar de carregar histórias e outras características da

linguagem científica, ainda é cheia de percalços pelo caminho, trazendo, além

de uma história, lembranças e associações e um lado expressivo que tende a

persuadir o leitor a se debruçar sobre o texto exatamente da maneira como

deve ser, como tons certos e vários jogos gramaticais.

Warren e Wellek(2003) afirmam também que “é provável que toda a arte

seja “doce” e “útil” aos seus usuários adequados”, ou seja, uma literatura não

vai causar o mesmo prazer ao ser lida para todos os seus leitores, uma vez

que cada leitor tem preferências diferenciadas, gostos diferentes. Portanto, o

que agradaráa um leitor certamente desagradará a outro. Friso ainda que a

literatura deve ser prazerosa não pelo fato de estar contando os mesmos

devaneios e reflexões do leitor, mas pelo modo como descreve tudo isso.

“Quando uma obra de literatura funciona com sucesso, as duas “notas” de

prazer e utilidade não devem meramente coexistir, mas fundir-se. O prazer da

literatura não é uma preferência entre uma longa lista de possíveis prazeres,

mas um prazer superior” (2003, p. 26). Ou seja, além de despertar sentimentos

em quem lê e de fazê-lo identificar-se com o que está escrito, ela deve, de

alguma maneira, modificar, por mínimo que seja, algum aspecto da vida desse

leitor. É essa junção do prazer de ler com a utilidade daquilo que está escrito

que faz a magia da literatura.

Aristóteles já afirmava que a poesia é mais filosófica do que a história, já

que a história relata acontecimentos, e, a poesia, tal como os fatos poderiam

ter acontecido. Segundo o filósofo grego, enquanto a história tem um roteiro já

definido, de acontecimentos que não podem sofrer mudanças, a literatura é um

devaneio que pode significar qualquer coisa. Através dela podemos construir

um mundo do jeito que queremos, pois ela nos permite que isso aconteça.

Milhares de histórias que não aconteceram realmente, mas que, nas páginas

de um livro, de um simples jornal, ou mesmo de um caderno de rabiscos,

ganham uma conotação um tanto quanto verídica para quem se depara com

elas. Mesmo não sendo histórias verdadeiras, sempre conterão algum aspecto

34

com que o leitor encontra identificação, tornando-se para ele uma obra

especial. Como explica também Cademartori (2010),

Não se pode pensar em estilo e normas sem pensar em gosto, e tampouco se pode pensar em gosto sem pensar na época que vai determiná-lo. O gosto, porém, não é o mesmo e o único em uma mesma época. Basta observar a diversidade de normas estéticas a reger os gostos nas diferentes classes sociais. Uma dada obra, apreciada numa determinada camada social, não desperta, necessariamente, idêntico interesse em outra e, além disso, dentro de uma mesma classe, as diferenças de idade, sexo, profissão determinam variados interesses e juízos sobre uma mesma obra. (CADEMARTORI, 2010, p.6.)

Retomando mais uma vez a ideia de que mesmo que cada época tenha

sido marcada por períodos específicos, o gosto de cada leitor independe disso.

Todorov (1975, p.7-8) dá o conceito de literatura fantástica, expressão que

se refere “a uma variedade da literatura ou a um gênero literário. Examinar

obras literárias a partir da perspectiva de um gênero é um empreendimento

absolutamente peculiar”. Com esse conceito, o que Todorov propõe é que se

descubra uma regra que funcione para analisar vários textos, que serão

denominados de “obras fantásticas”. Para isso, o autor explica que antes de

estudar e elucidar a literatura fantástica é preciso estudar os gêneros. Afirma

que os gêneros existem, sim. Apesar de todas as questões levantadas sobre

gênero e de estudar um gênero, a questão primordial é que sim, eles existem,

dentro de níveis de generalidade e do ponto de vista do leitor ou estudioso,

mas existem. Algumas dessas questões referem-se, por exemplo, a conhecer

todas as obras para poder discutir sobre gênero; ou, então, quantos gêneros

existem e como classificá-los; ou ainda, como falar de gêneros, se o que torna

uma obra única é o que ela possui como diferente das demais e não as

semelhanças. Apesar de todas essas questões, o que de fato sabemos é que

os gêneros literários existem sim e são muitos. O particular de cada obra, o

inigualável, existe apesar da inserção dela nesse ou naquele gênero.

Voltando à literatura fantástica, Todorov (1975, p. 31) afirma que “o

fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis

naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”. Refere-se a

um mundo nosso, o mundo real, porém, com coisas e acontecimentos que

fogem às leis naturais, que deixam o leitor passível de confusão sobre o mundo

35

em que vive, perguntando-se sobre se aquilo também faz parte do real, uma

literatura que transporta o sujeito leitor para outro mundo, o mundo fantástico.

Essa hesitação do leitor, essa confusão, é a primeira condição da literatura

fantástica. Todorov (1975, p. 38) diz que o fantástico implica, portanto, “não

apenas a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no

leitor e no herói; mas também numa maneira de ler, que se pode por ora definir

negativamente: não deve ser nem „poética‟, nem „alegórica‟”. Afirma, ainda, que

para que o texto seja fantástico, deve obedecer a três condições: a primeira

seria o leitor hesitar entre o mundo real e o mundo da fantasia, outra é de que o

leitor se identifique com uma personagem e, ainda, que ele ignore o mundo

sobrenatural da literatura, uma vez que ele não existe. Todorov coloca essas

questões sobre a literatura fantástica. Mas, podemos observar que toda

literatura é fantástica, pois o essencial de uma obra, de um texto, de uma

pintura, é fazer o leitor mergulhar na sua história, sentir-se um personagem e

passar a viver nesse novo mundo, sabendo, claro, que não é o seu mundo real,

mas que contém as mesmas indagações dele, leitor, os mesmos sofrimentos,

as mesmas reflexões, porém, com elementos mágicos e desfechos

surpreendentes, diferentes dos reais.

Para além de língua e literatura e da literatura como arte, faz-se necessário

destacar também a diferença entre uma obra literária e uma não literária, o

que, para muitos leitores leigos, pode não ter muita diferença. No entanto,

Amora (2006, p. 53) apresenta questões importantes para diferenciar uma da

outra. Relata que “a literatura se distingue da não-literatura pelo conteúdo e

pela forma, e as características essenciais da obra literária são duas: um

conteúdo intuitivo e individual e uma forma produto da criatividade expressiva

do artista”. E o autor continua dizendo que a obra que chega até nós, apesar

de parecer real ou de nos mostrar o real, deriva do espírito do autor, que

colocou a sua alma e inspiração na história que está contando, sendo a obra

literária uma forma mais abstrata do que concreta.

Sobre esse contar do autor, que coloca seu espírito na obra, Charaudeau

(2008, p. 154) comenta que “contar é uma atividade posterior à existência de

uma realidade que se apresenta necessariamente como passada e, ao mesmo

tempo, essa atividade tem a propriedade de fazer surgir, em seu conjunto, um

universo, o universo contado, que predomina sobre a outra realidade, a qual

36

passa a existir somente através desse universo”. Esse universo é a obra

literária que o leitor irá ler, em que ele vai se familiarizar com algum

personagem e passará a fazer parte desse universo, pelo menos enquanto

estiver lendo, enquanto estiver mergulhando nas páginas que um autor

escreveu com seu espírito e com a sua alma, para que o leitor também sinta o

mesmo na hora em que as estiver lendo.

Após lembrar características que formam ou que constroem uma obra

literária, importa também estudar a história da literatura, uma vez que, para que

a literatura chegasse ao que conhecemos hoje foi necessário que houvesse

muita mudança e diversas transformações, tanto nomodo de ser escrita, quanto

no de ser divulgada, em seus objetivos e no modo como era lida, pois conforme

a sociedade e os modos de vida mudavam, a literatura também se adaptava a

isso como uma forma de sobrevivência ao longo do tempo.

Bosi (2004) lembra que não se pode falar em história da literatura brasileira

sem falar da história da colonização, dos primeiros escritos, mesmo que estes

não sejam considerados literatura, apenas textos:

Os primeiros escritos da nossa vida documentam precisamente a instauração do processo: são informações que viajantes e missionários europeus colheram sobre a natureza e o homem brasileiro. Enquanto informação, não pertencem à categoria do literário, mas à pura crônica histórica e, por isso, há quem as omita por escrúpulo estético. No entanto, a pré-história das nossas letras interessa como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do país. É graças a essas tomadas diretas da paisagem, do índio e dos grupos sociais nascentes, que captamos as condições primitivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar com o fenômeno da palavra-arte. (BOSI, 2004, p. 13.)

Para tanto, antes de aludiraos períodos literários, precisamos saber que

essas classificações são dadas a partir de características de cada época.

Porém, como afirmaCademartori (2010),

Por ser um fato que existe diferentemente no tempo e peculiarmente em cada segmento social, o estilo é um fato histórico e, também, um fenômeno relativo à divisão da sociedade em classes sociais. Sendo assim, num mesmo momento histórico convivem diferentes estilos sujeitos a distintas normas, porque diferentes são as classes e distintas as gerações e profissões a que os produtos culturais sedestinam. Convém ter-se presente, porém, que as normas de um determinado grupo irão preponderar, invariavelmente, sobre as de outros de uma mesma época, e essa preponderância fará com que o

37

conjunto de normas que consiga se impor passe à história como o estilo daquele momento. (CADEMARTORI, 2010, p. 5-6.)

Assim, vê-se que é difícil delimitar as características de cada época para

definir esta ou aquela fase da literatura. A linha que separa cada estilo é muito

tênue e, como frisa a autora, quando um período literário é definido não

significa que o anterior deixou de existir. Ao contrário, o que acontece é que ele

se sobrepõe ao anterior, suas características começam a agradar mais ao

público leitor do que o precedente. Ainda, quando um grupo se sobressai a

outro, passa a ser e a fazer o estilo da época. Atente-se também ao fato de

que, muito provavelmente, encontraremos em uma obra, ou em um autor,

traços de mais de um período. Isso ocorre devido a esta linha tênue, que

confunde características, por vezes, ou porque, num determinado período, o

autor não encontre elementos suficientes para elaborar sua criação literária e

necessite de auxílio de outro. É isso que acontece com a literatura: conforme a

evolução do país,ela vai se moldando e criando períodos

específicos.Entretanto, a base da literatura é a mesma, cativar cada leitor,

envolvê-lo em seu enredo e se tornar importante e especial para alguém.

O nascimento da literatura brasileira, o seu marco inicial, foi a “Carta”, de

Pero Vaz de Caminha, datada de 1500, que relata o descobrimento do Brasil,

as terras achadas, o povo indígena, costumes, enfim, o que os portugueses

encontraram quando aqui chegaram. Essa “literatura” pode ser chamada de

literatura de informação, pois o objetivo do escrivão era relatar ao rei de

Portugal como era a terra descoberta. Essa fase é conhecida como a primeira

da literatura, ouQuinhentismo, ou mesmo como literatura de informação. Nessa

mesma época, também havia um outro modo de escrita que pode ser

considerado participante no nascimento da literatura. Realizado pelo Padre

José de Anchieta, materializava-se em poemas, hinos, sermões, com o objetivo

principal de catequisar os índios.

Depois veio o Barroco, marcado por conflitos espirituais e materiais, corpo e

alma, tema que culminou numa grande produção literária no século XVII. Havia

um grande estudo da religião, da moral, de artes clássicas, além do dinamismo

dos elementos, das criações espetaculosas e do retrato das imperfeições

humanas e da natureza. Era o homem travando conflitos com o sagrado.Bento

38

Teixeira e Gregório de Matos são arrolados como alguns dos principais autores

deste período.

Indo a 1700 (século XVIII), Bosi (2004) cita dois momentos na literatura

deste século, a Arcádia e a Ilustração. O primeiro momento “é poético que

nasce de um encontro, embora ainda amaneirado, com a natureza e os afetos

comuns do homem, refletidos através da tradição clássica e de formas bem

definidas, julgadas dignas de imitação”(p. 55). Também nesse período, ocorre

a ascensão da burguesia. Consequentemente, a produção literária da época

atendia primeiro e preferencialmente a essa classe. Na Ilustração tem-se “o

momento ideológico, que se impõe no meio do século, e traduz a crítica da

burguesia culta aos abusos da nobreza e do clero”(p. 55). Ficam um pouco

relegados os duelos espirituais e materiais do Barroco para dar lugar aos

reclames da burguesia contra o clero e a racionalidade desta classe, que

sempre aparecia como superior na literatura, não que não o fosse na realidade,

mas de uma maneira arrogante, plenos de razão, espécie de supervalorização

desta parte da sociedade que se sobressaía sobre o clero. Assim, também, a

linguagem passou de decorativa e repleta de firulas para uma linguagem mais

clara e simples.

Passando da Arcádia e da Ilustração, no começo do século XIX essas

fórmulas já não são mais tão adequadas “para transmitir os desejos de

autonomia que a inteligência brasileira já manifestava em diversos pontos da

Colônia”, segundo Bosi (2004, p. 80). Foi quando começou a se desenvolver o

Romantismo. Como destaca Bosi, o períodofoi marcado pela obra Suspiros

poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, em 1836. Até essa data, as

criações literárias não eram suficientemente boas e Bosi cita como hipótese de

explicação o hibridismo cultural e ideológico nesse período de mudanças, tanto

políticas quanto econômicas, na sociedade.

Essas mudanças, que interferiram até na literatura, são advindas da

nobreza que perde o poder, da burguesia que tem um crescimento

considerável, da chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 e da

independência em 1822, além da Revolução Industrial, que movimentou a

economia do país edeterminou o crescente aumento da classe operária. Ainda

começam a ganhar força outros gêneros, como o artigo, o discurso e ensaios

39

de jornal, que valorizam muito o resgate histórico, o nacionalismo, a figura da

mulher, a valorização da liberdade.

Bosi (2004) destaca que

As atitudes ideológicas e críticas que se rastreiam durante as quatro décadas do Romantismo têm como fator comum a ênfase dada à autonomia do país. Há em todo o período um nacionalismo crônico e às vezes agudo, que ao observador menos avisado pode parecer traço bastante para unificar e definir a cultura romântica. De Magalhães e Varnhagen a Castro Alves e Sousândrade. Dos indianistas e sertanistas aos condoreiros, transmite-se o mito da terra-mãe, orgulhosa do passado e dos filhos, esperançosa do futuro. (BOSI, 2004, p. 154.)

O autor ainda acrescenta que, nesse período do século XIX, vê-seuma

grande binariedade entre classes: campo/cidade, corte/província, trabalho

escravo/trabalho livre e que foi na primeira geração romântica que essa

binariedadecomeçou a se desfazer. A partir do momento em que se dá a

abolição da escravatura e a crise açucareira tem início, o terreno da literatura

se torna propício para explorar novas ideias, novas histórias, tal como chama

Bosi, “uma ruptura mental com o regime escravocrata e as instituições políticas

que o sustentavam”. Essa fase é conhecida como Realismo/Naturalismo, em

que os principais temas das criações literárias advêmda pura realidade

enfrentada pela sociedade, que inclui os problemas econômicos, sociais e

conflitos humanos.

Entende-se aqui que os conflitos e problemas continuam a ser foco da

atenção dos escritores, mas há uma mudança na forma de escrever.

Antes,tentava-se transmitir sentimentos na forma da escrita e, agora, com a

mais pura realidade. Bosi comenta essa fase dizendo que

para produzir o efeito que ele (romancista) persegue, isto é, a emoção da simples realidade, e para extrair o ensinamento artístico que dela deseja tirar, isto é, a revelação do que é verdadeiramente o homem contemporâneo diante de seus olhos, ele deverá empregar somente fatos de uma verdade irrecusável e constante.(BOSI, 2004, p. 169-170.)

Dito isso, percebe-se que há uma diminuição na fantasia literária e uma

valorização maior da realidade em si. Houve um estreitamento do horizonte

entre as personagens e a sua interação ou relação com a história. Nessa

fase,a linguagem é objetiva, popular, e os temas tratados são da realidade

40

social, com cenas cotidianas e uma visão da realidade por vezes irônica e

crítica.

No final do século XIX e início do século XX, toma forma o Parnasianismo,

que retoma aquela linguagem culta, semelhante àquela do estilo Barroco, com

palavras rebuscadas, vocabulário clássico, fazendo descrições detalhadas e

trazendo à tona temas mitológicos e afins. Bosi (2004, p. 219) explica que “é na

convergência de ideais antirromânticos, como a objetividade no trato dos temas

e o culto da forma, que se situa a poética do parnasianismo”. No método

parnasiano, o primado é preferencialmente o das rimas, métricas e a descrição

perfeita das coisas.

No final do século XIX, surge também o Simbolismo, caracterizado por uma

linguagem abstrata e sugestiva, ou seja, usa de palavras ou expressões com

duplo sentido. Ao leitor cabe a missão de interpretar o que foi escrito. Herdou

do Parnasianismo o senso estético. Além disso, o Simbolismo agregou essa

criação de sentido às suas criações literárias. Bosi lembra, nesta fase, que o

nome Simbolismo retoma a ideia de signo, que é a categoria fundante da fala

humana e criadora de significados, produtora de sentidos.

Em seu livro Literatura e Resistência, Bosi (2002, p. 12) explica que “a

formação do Brasil Nação-Estado, realizada por obra de uma classe

privilegiada, a burguesia latifundiária em um sistema agroexportador e

escravista, foi o carro-chefe que regeu os projetos de constituir uma cultura

nacional, uma língua nacional, uma literatura nacional, uma arte nacional etc.”.

Éa partir daí que entramos na fase Pré-modernista.

De 1902 a 1922, tem-se o Pré-modernismo, que retoma a valorização da

nacionalidade, o Positivismo, os problemas e a vida social.Ele tem sua duração

até a Semana de Arte Moderna, que aconteceu em 1922, na cidade de São

Paulo. A partir da Semana de Arte Moderna, os modelos de literatura foram

repensados,remoldados, estando mais abertos a novas experiências. Todos os

assuntos já tratados nos períodos anteriores começaram a ser reabordados,

porém, com outra linguagem, de caráter mais experimental, e com pitadas de

humor.

Bosi afirma que

a Semana foi, ao mesmo tempo, o ponto de encontro das várias tendências que desde a I Guerra se vinham firmando em São Paulo e

41

no Rio, e a plataforma que permitiu a consolidação de grupos, a publicação de livros, revistas e manifestos, numa palavra, o seu desdobrar-se em viva realidade cultural. (BOSI, 2004, p. 340.)

Após esse encontro de várias tendências, da troca de ideias e experiências,

o Modernismo se apropriou de tudo o que foi colocado na Semana de Arte

Moderna para caracterizar seu objetivo: criar algo novo, reinventar o que já

estava criado. Depois da Semana de Arte Moderna, por volta de 1930, Bosi

lembra que passamos a ser contemporâneos, assim como destaca que

reconhecer o novo sistema cultural que nasce após aquele ano não significa

cortar as relações com o passado, mas apenas ver novas configurações. No

Modernismo não há mais gêneros definidos, mas uma mescla de todos eles

que, com a liberdade de expressão adotada na época, revolucionou o cenário

literário.

Martins (2008, p. 2) explica que “o desencantamento do mundo decorre da

racionalização e intelectualização, estes dois termos entendidos como ligados

a um processo que levou a cultura ocidental ao estágio atual”. Falando sobre a

derrocada do Romantismo, continua ele afirmando que “a especialização

constante, em favor da utilidade, transformou o mundo, que era impregnado

pelo mágico e o místico, perdeu-se o sentido do sagrado”. Os acontecimentos

do mundo moderno e a inclusão do cidadão nas universidades (o que abriu um

leque científico de conhecimento além da área literária) foram distanciando a

magia da literatura, que, para se adaptar, teve de se tornar útil, não somente

prazerosa, como já foi tratado anteriormente. Em meio a tantas publicações,

ela teve de encontrar um meio de sobreviver e de se sobressair às demais

obras.

Lukács (2000, p. 38) diz que “no drama moderno a vida não desaparece

organicamente; ela pode, no máximo, ser banida de cena. Mas o banimento,

levado a cabo pelos classicistas, implica o reconhecimento não apenas da

existência, mas também do poder daquilo que foi banido”, que deixa marcas

em cada e qualquer pedaço do texto, ou da criação literária, e instiga ainda

mais a curiosidade dos estudiosos da área, pois gera uma inquietude, um

questionamento sobre o motivo por tal coisa ter sido banida. Ora, se foi banida

é porque poderia ser poderosa e gerar outros desdobramentos.

42

Desde o início da história da literatura, várias mudanças puderam ser

notadas, mas foi a partir do período da Modernidade que a literatura ganhou

um aspecto novo, que mais conceitos foram encaixados em sua definição.

Apesar dos altos e baixos em seu estudo, este é o conceito ou a fase que mais

perdurou e teve maior abrangência quanto a assuntos e características.

Bosi destaca, por exemplo, que

a cultura universitária dos anos 40 não ignorava a revolução que a sociologia do saber, a fenomenologia, o existencialismo, o marxismo e a psicanálise estavam operando nos métodos das ciências humanas que na Europa já havia muito se distinguiam das ciências exatas e naturais.(BOSI, 2002, p. 44.)

Viu-se, pois, que a literatura passoua ser estudada não só pelo viés literário,

mas também por outras esferas do saber, como a história, que está

intrinsicamente ligada a ela desde os primórdios, sendo fundamental estudá-las

em conjunto para um melhor entendimento. Além disso, começam a ser

estudadas as relações da literatura com a sociedade e com a nação.

Bosi (2002) se reporta também à resistência que a literatura teve de

enfrentar na era da modernidade devido à ascensão de outras esferas de

conhecimento, que sufocaram e diminuíram os estudos sobre a literatura bem

como a sua leitura. Ele dá o significado de resistência como “aquilo que apela

para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é

opor a força própria à força alheia”(p. 11). Também salienta que a arte vem

primeiro da imaginação e depois, colocado no papel o que se imagina, é que

ela floresce. Esse é um dos motivos pelo quais a literatura sofre repressão

nesse período, pois as outras ciências já “nascem” prontas, com conceitos

fechados. Ainda, ele cita o exemplo do romancista ao moldar um personagem

dando-lhe uma identidade: seu trabalho maior é conferir a esta identidade a

verdade de expressão.

Nesse mesmo período começou a ser questionada a relação da obra com a

sua história, sua veracidade. Por isso, a preocupação de dar ao personagem

uma identidade de cunho verídico e não somente o que lhe vier à imaginação,

como antes era feito, e confere à arte o papel de interpretar o real além de

simplesmente copiá-lo e reproduzi-lo.

43

Candido (1999, p. 68) diz que o Modernismo “não foi apenas um movimento

literário, mas, como tinha sido o Romantismo, um movimento cultural e social

de âmbito bastante amplo, que promoveu a reavaliação da cultura brasileira”.

Daí o motivo de tantas mudanças nesse novo período da literatura, que

promoveu uma variada possibilidade de relações. Candido refereainda que

O modernismo brasileiro foi complexo e contraditório, com linhas centrais e linhas secundárias, mas iniciou uma era de transformações essenciais. Depois de ter sido considerado excentricidade a afronta ao bom gosto, acabou tornando-se um grande fator de renovação e o ponto de referência da atividade artística e literária. De certo modo, abriu a fase mais fecunda da literatura brasileira, porque já então havia adquirido maturidade suficiente para assimilar com originalidade as sugestões das matrizes culturais, produzindo em larga escala uma literatura própria. (CANDIDO,1999, p. 69.)

Essa apropriação de várias características começou por criar obras

literárias dispersas. O ecletismo adquirido logo após a Semana de Arte

Moderna e, apesar de ser bom em certo ponto, pois permitiu o conhecimento

de várias outras esferas e a junção de todas elas, de certa forma,interferiuna

literatura brasileira que se adaptava à liberdade de expressão e de gêneros,

mas, ao mesmo tempo, aos olhos dos demais permanecia sem um período

distinto, sem características próprias. Essa liberdade, que permitiu a criação e

a experimentação da criação, foi o aspecto positivo do início do Modernismo.

Zinani (2011) explica que

Os estudos culturais, associados ao pós-modernismo, englobam uma série de disciplinas, entre elas as relacionadas à literatura. Associados aos movimentos de vanguarda, valorizaram expressões culturais normalmente marginalizadas, tais como a cultura popular ou a cultura urbana. Essa abertura proporcionou vários questionamentos relativamente à história da literatura e ao cânone como registro de obras consagradas e referendadas pela academia. Na medida em que foi atribuído valor a obras que não pertenciam ao cânone, suas normas foram questionadas, validando-se novas abordagens, o que destituiu a unicidade do cânone e da própria história da literatura, ambos, agora, caracterizando-se pela pluralidade. (ZINANI, 2011, p. 410.)

Foi nesse período que os estudos de gênero começaram a ganhar espaço,

a ser alvo dos estudiosos, e que a literatura adquire a forma que tem hoje, com

criações que não abrangem somente uma característica, um povo, mas que

tem uma liberdade de expressão, de criação, de mesclacriativa e abrangente,

44

tratando principalmente do mundo contemporâneo, mas deixando claro que

não só dele. De fato, debruçar-se sobre o mundo moderno para criar já é um

terreno bem amplo, pois o sujeito do mundo moderno permite isso, ele mesmo

não é centrado, fechado em algum conceito específico, mas sim passível de

transformações, mudanças, aberto ao novo e ao desconhecido, tornando a

identidade dos personagens digna de veracidade, mesmo podendo exceder-se

na criatividade das histórias.

Assim como a literatura percorreu um longo caminho até os dias atuais e

teve nesse percurso diversas transformações, também a trajetória das

mulheres a ela se assemelha em vários aspectos de seu “desenvolvimento” na

sociedade. É o que veremos no próximo capítulo.

3.2A mulher de XX e XXI: na história e na literatura

Por muito tempo, a mulher teve um papel inferior na sociedade, era apenas

uma coadjuvante. Não possuía muitos direitos, mas deveres lhe sobravam: de

ser uma boa esposa, uma boa mãe e uma boa dona de casa. Sempre em

segundo plano em relação ao homem, não tinha direito a votar, trabalhar fora,

estudar. A luta para que alcançasse a liberdade de expressão, o direito a ter

direitos e ao tratamento igualitário foi longa e árdua, mas devido a todo esse

esforço empenhado várias foram as conquistas alcançadas pela classe

feminina.

Ainda no século XIX e ainda crianças, já havia distinção entre meninos e

meninas, que, na escola, aprendiam a ler, escrever, fazer contas e a conhecer

uma religião.Depois, os meninos continuavam a estudar, aprofundando os

conhecimentos, enquanto as meninas aprendiam a bordar e a costurar.

D‟Incao (2006) faz um resumo de como eram o modelo de família perfeita e

a mulher ideal, na virada do século XIX para o século XX. Nesse período, a

mulher era a organizadora da vida doméstica. Com as mudanças ocorridas na

passagem de um século a outro, como a consolidação do capitalismo e uma

reestruturação da vida urbana, a mulher começou a frequentar locais públicos,

como teatros, bailes e, além de sempre ser alvo dos olhares do marido, agora

recaía sobre ela também o olhar do pai e de toda a sociedade. Nesse

45

período,consolida-se a ideia de que a mulher deve dedicar-se exclusivamente

aos filhos, à casa e ao marido, passando a ser o alicerce, o que mantém o

sucesso da família. Essa era a situação familiar, ou da mulher burguesa, na

virada do século. Já nas classes mais pobres, conformeSoihet (2006), as

mulheres eram consideradas perigosas por terem de correr para alcançar seus

objetivos, considerando-se que não podiam seguir o modelo burguês. Por não

terem condições, precisavam estar presentes nas ruas e preocupadas com o

trabalho.

Telles (2006) afirma que nessa nova configuração do século XIX, tido como

o século do romance, o papel da mulher também foi redefinido. Ela passa a ser

essa tida como o modelo ideal, dedicada ao marido, aos filhos e aos afazeres

do lar. A autora frisa que a cultura burguesa se fundava em binarismos e

oposições, e, no caso da mulher, como um ser inferior que deve ser dominado

por um ser superior, no caso, a cultura masculina. “À mulher é negada a

autonomia, a subjetividade necessária à criação [...] O que lhe cabe é uma vida

de sacrifícios e servidão, uma vida sem história própria” (TELLES, 2006, p.

403).

A autora lembra também que foi aproximadamente nesse mesmo período

que começaram a surgir as mulheres leitoras, geralmente as pertencentes à

burguesia. Logo depois, surgiriam as mulheres escritoras, porém, ainda lhes

era negado o acesso ao ensino superior. “A seguir, de um modo ou de outro,

tiveram de rever o que se dizia e rever a própria socialização. Tudo isso

tornava difícil a formulação de eu, necessária e anterior à expressão ficcional”

(TELLES, 2006, p. 403). A leitura que era permitida à mulher geralmente a

colocava como submissa ao homem, um ser inferior, por ele dominado. Não

bastasse ter de se ver em um texto retratada dessa forma e viver da maneira

como vivia, o ideal era escrever sobre uma mulher diferente daquela retratada

pelos homens, tentando ganhar espaço nesse ramo da escrita.

Tanto é, que Nascimento e Silva (2011) afirmam que

Com a simples constatação de que a experiência da mulher enquanto escritora apresentava diferenças em relação às experiências vividas pelo homem escritor, houve uma verdadeira revolução intelectual, devido à descoberta de um novo horizonte de expectativas, pois até então os estudos literários baseavam-se no conceito da

46

universalidade, que se pautava no paradigma masculino. (NASCIMENTO e SILVA, 2011, p. 1.)

Uma das primeiras mulheres de que se tem conhecimento que tenha tido

uma nova escrita sobre a figura feminina é Nísia Floresta, ainda no século XIX,

no Brasil. Inicialmente, ela traduz uma obra, depois vai ensinar em uma escola,

dirige vários colégios e começa a escrever em jornais, o que gera muita

polêmica por seus textos reivindicarem igualdade e educação para as

mulheres. A partir dela, foram surgindo algumas outras mulheres escritoras e

muitas outras reivindicando igualdade e direitos, a maioria influenciada por

Nísia, como Ana de Barandas, Maria Firmina dos Reis, Narcisa Amália, Delia,

Julia Lopes de Almeida, dentre tantas outras que fizeram história e marcaram

seu nome na história como um todo e na história literária brasileira, em uma

época em que a carreira das letras era considerada como ofício masculino.

Telles relata como era vista a figura da mulher no século XIX:

O século XIX não via com bons olhos mulheres envolvidas em ações políticas, revoltas e guerras. As interpretações literárias das ações das mulheres armadas em geral, denunciam a incapacidade feminina para a luta, física ou mental, donde concluem que as mulheres são incapazes para a política, ou que esse tipo de ideia é apenas diversão passageira de meninas teimosas que querem sobressair. (TELLES, 2006, p. 407.)

A autora explica que as mulheres eram excluídas da sociedade, viviam

trancadas, servindo de espelho mágico para aumentar o ego e a glória do

marido perante o resto da sociedade. Ela servia de musa e criatura, como

denomina Telles (2006), mas queria ser a criadora. Apesar de toda a opressão

da sociedade masculina sobre as mulheres, no século XIX existiram muitas

escritoras, que escreviam desde diários pessoais até romances ou textos para

jornais. Desde Nísia Floresta até as mulheres conseguirem conquistar espaço

no mundo das letras (mulheres que antes de escrever tiveram de se alfabetizar,

em sua maioria), transcorreu mais de um século. Também no século XIX, como

nos lembra Telles, as mulheres começaram a fundar jornais no país inteiro.

Dois deles, do Rio Grande do Sul, foram muito importantes: Escrínio e

Corymbo, das irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro. O

Corymbo durou sessenta anos e fazia coberturas acerca das mulheres na área

das letras e em demais profissões. Além destes, muitos outros jornais e

47

revistas foram sendo criados em todos os estados, todos com o mesmo ideal:

escrever sobre o sexo feminino e mesmo os jornais que não seguiam essa

linha feminista continham muitos textos escritos por mulheres.

Conforme a evolução foi prosseguindo em todas as áreas, as mulheres

também foram começando a buscar cada vez mais seu espaço. Sua figura

também começa a mudar, passando de mulher submissa, dedicada ao lar e à

família, à mulher que busca um amor, que vive em meio a lutas, em meio ao

pecado. De fato, é uma época em que as mulheres começam a colocar em

evidência sua sensualidade e algumas o fazem por dinheiro, realidade

retratada na literatura do século XX. Quanto mais se aproxima o fim desse

século e inicia o século XXI, mais multifacetadas vão ficando as mulheres

representadas na literatura, assim como na própria vida real.

Uma grande contribuinte da literatura brasileira foi Júlia Lopes de Almeida,

que retratava em seus textos uma mulher capaz, organizada e aberta a novas

possibilidades de vida.

No século XXI, é cada vez mais frequente, e mesmo comum, mulheres

escritoras, leitoras, trabalhadoras e, ainda assim, donas de casa, esposas,

mães. Hoje a mulher conseguiu alcançar um espaço considerável na sociedade

e passou, também, a ser estudada, embora este campo, sim, ainda pouco

explorado. Estes estudos sobre a história da mulher começaram, no Brasil, por

volta dos anos 1980, logo depois dos movimentos feministas reivindicando

direitos. Como mostrado anteriormente, a mulher escritora começou a aparecer

no século XIX, mas além da mulher escritora e da mulher que virou tema de

trabalhos e pesquisas, também temos a mulher leitora, mas, da mesma forma

que não foi fácil a inclusão da mulher escritora também a mulher leitora teve de

conquistar seu espaço. Desde quando, no Brasil, formaram-se as primeiras

escolas, nos anos de 1500, em que os padres jesuítas ensinavam o catecismo,

o ensino era destinado aos homens. Por muitos anos, as mulheres só podiam

ter acesso ao ensino se fossem para conventos estudar para seguir a vida

religiosa, ou se tivessem quem as ensinasse na própria casa. Por volta de

1750, começou uma inclusão restrita do público feminino nas escolas, em que

muitas das matérias eram sobre atividades do lar e a vida doméstica. Com o

passar do tempo, a criação de algumas leis, como a Lei Geral, que beneficiava

48

a inclusão das mulheres nas escolas, e a luta das mulheres, essa inclusão se

tornou igualitária no quesito escolarização.

Rago (1995)explica que

a recente inclusão das mulheres no campo da historiografia tem revelado não apenas momentos inesperados da presença feminina nos acontecimentos históricos, mas também um alargamento do próprio discurso historiográfico, até então estritamente estruturado para pensar o sujeito universal, ou ainda, as ações individuais e as práticas coletivas marcadamente masculinas. (RAGO, Margareth. 1995, p. 81.)

De fato, toda e qualquer menção a fatos históricos, a lutas, a façanhas

históricas, era remetida aos homens, todo o crédito do esforço era deles. Mas

isso foi mudando gradativamente. Além de participar dessas histórias, a mulher

fez parte efetivamente da história, tomando frente nas lutas, lutando por seus

direitos e pelo seu espaço, tentando tornarmais igualitária uma sociedade

essencialmente masculina. A autora complementa essa assertivadizendo que

(p. 82) toda a afirmação histórica sobre as mulheres refere-se à década de 70,

quando se começou a pesquisar a participação feminina na sociedade e a

identificar as marcas da opressão masculina sobre elas.

Especialmente valorizadas foram a temática do ingresso das mulheres no mercado de trabalho e a denúncia das formas perversas desta integração. As péssimas condições de trabalho, os salários inferiores aos dos homens, o assédio sexual, as inúmeras formas da violência machista foram temas que ocuparam as páginas das obras que se dedicaram à mulher trabalhadora e que acabaram por identificá-Ia como produto das determinações econômicas e sociais, vítima das injunções do sistema, dando pouco destaque à sua dimensão de sujeito histórico, consciente e atuante. (RAGO, 1995, p. 82.)

Segundo a pesquisadora, o que mais se destacou foram as condições a

que a mulher teve de se submeter e as dificuldades pelas quais ela passou,

que ganharam força nos primeiros estudos sobre as mulheres, e não o seu

espaço ocupado na sociedade como um todo, tal como acontecia com a

população masculina e, usar disso, para então sim mostrar o que ela conseguiu

alcançar. Matos (2013, p. 7) também compartilha a ideia de Rago (1995),

acrescentando que “mesmo sob o contexto desfavorável do autoritarismo dos

49

governos militares (1964-84), as mulheres „entraram em cena‟, se tornaram

visíveis, ocupando espaços sociais e políticos”.

Heloísa Buarque de Hollanda afirma, a propósito, que

Nas décadas de 60 e 70, as questões da identidade e diferença foram inegavelmente importantes, tendo conseguido abrir espaços institucionais como uma imprensa feminista, o cinema de mulher e os estudos feministas enquanto área de conhecimento. (HOLLANDA, s/d, s/p.)

As lutas das mulheres para se inserir na sociedade começaram,

efetivamente, na década de 1960. Antes disso, entretanto, já haviam existido

algumas tentativas, como a conhecida greve das operárias de uma fábrica de

tecidos de Nova York, em 1857. Elas reivindicavam melhorias nas condições

de trabalho. Porém, foram trancadas no interior da fábrica, sendo que em torno

de 130 operárias morreram ali, carbonizadas. Essa dataé hoje conhecida como

o Dia Internacional da Mulher, que se dá em 8 de março.

Quando apontamos a década de 1960 como um marco das reivindicações feministas, não queremos jogar no esquecimento as primeiras manifestações, ocorridas ainda nos séculos XVIII -XIX, que deram uma contribuição significativa para as lutas e conquistas futuras, mas consideramos que nesse momento as mulheres não estavam articuladas em grupos coesos e o que havia eram vozes mais ou menos isoladas de descontentamento. O feminismo de então estava intimamente associado à personalidade e a grande bandeira de luta foi pelos direitos sufragistas. (SILVA, 2008, p. 226.)

A falta de organização, ou mesmo a falta de otimismo em relação à força

feminina frente a tanta indiferença e preconceito em relação ao “sexo frágil”,

pode ter influenciado nessa falta de organização observada nas tentativas das

mulheres,em períodos anteriores a 1960, de serem iguais aos homens em

direitos civis. Rocha (s/d) comenta que o século XX é marcado por três

correntes feministas, a primeira seria nos anos 60, que teria por princípio uma

distribuição de poder, de direitos e de oportunidades mais igualitárias, chamado

como feminismo igualitário. A segunda corrente é o feminismo radical, nos

anos 70, fazendo crítica ao liberalismo e à sociedade patriarcal, enquanto a

terceira corrente é conhecida como feminismo da feminitude, que aparece nos

anos 80, busca a igualdade, mas enfatiza o lado maternal e aspectos

biológicos femininos.

50

Após muita luta por uma nação mais igualitária, ainda há preconceito em

algumas escalas, mas as mulheres conseguiram alcançar um lugar ao lado dos

homens em praticamente todos os setores da sociedade. E não apenas as

mulheres se inseriram nesses setores, também os homens passaram a ajudar

as mulheres em tarefas que antes eram consideradas femininas, como

simplesmente cuidar da casa ou dos filhos. Esse também é um fator que

ajudou a consolidar uma relação homem/mulher mais justa e igualitária.

Na literatura também não foi diferente, tanto na menção às

mulheres,quanto na escrita feita por mulheres. Como afirma Silva (2008),

Escrita fundamentalmente por homens, a narrativa histórica se absteve de incorporar às suas preocupações o sujeito feminino. Este silêncio não foi uma prerrogativa da historiografia brasileira ou latino-americana, mas atitude constante inclusive em países como Estados Unidos e França, onde a busca pelos direitos da mulher e o reconhecimento da condição feminina se deu mais cedo do que entre nós. (SILVA, 2008, p. 224.)

A mulher permanecia vista com pouca importância na própria sociedade.

Quando, na condição de personagem, era traduzida para o papel, continuava

do mesmo modo, submissa ao homem. De forma mundial, uma das causas

para as mulheres começarem a ser objetos de investigação foi a inserção delas

próprias nas universidades, o que se deu, mais tarde, também no Brasil. As

mulheres entravam para o ensino superior e se interessavam em investigar o

porquê de toda essa submissão feminina, além de outros vários

questionamentos. A partir disso, e da participação efetiva das mulheres na

sociedade, é que se começou a inserir a figura feminina em narrativas, tanto

historiográficas, quanto literárias.

Sobre as narrativas históricas, Silva (2008)lembra ainda que começaram

a incluir o sujeito feminino na década de 80. Porém, havia muita preocupação

com o quesito dominação/opressão, não dando muito destaque para toda a luta

das mulheres para chegarem até onde estavam. Polesso e Zinani (2010, p.

101) ressaltam que os estudos acadêmicos sobre esse gênero são muito

recentes no Brasil. E de fato o são, pois as lutas pela igualdade já são um tanto

quanto contemporâneas. As narrativas, pelo fato de terem se desenvolvido

mais tarde ainda, são muito recentes e ainda não completamente estudadas.

Lemaire (1994),apud Polesso e Zinani (2010), afirma que

51

a história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do passado: primeiro, a sucessão cronológica de guerreiros heróicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres “normais”. (LEMAIRE,apud POLESSO e ZINANI, 2010, p. 102.)

Entende-se que, por muito tempo, a literatura feminina não teve espaço,

ficava sempre escondida atrás das literaturas masculinas, geralmente

pertencentes ao cânone, e isso não era apenas na escrita, pois além de

poucas mulheres autoras, também havia poucas mulheres leitoras. A escrita

era restrita a uma pequena parcela da sociedade, composta, em sua maioria,

por homens. A partir da segunda metade do século XX, começou a se

desenvolver a crítica feminista, que, de acordo com Zinani (2011), pode ser de

dois tipos: as que procuram resgatar as obras escritas por mulheres e que

acabaram marginalizadas, e as que buscam fazer uma releitura das obras

literárias escritas por homens.

Culler (1997),apud Zinani (2011), explica a crítica feminista da seguinte

forma:

Nesse primeiro momento da crítica feminista, o conceito de uma mulher leitora leva a asserção de uma continuidade entre a experiência das mulheres nas estruturas sociais e familiares e suas experiências como leitoras. A crítica formulada sobre esse postulado de continuidade interessa-se notavelmente pelas situações e pela psicologia das personagens femininas investigando as atitudes em relação às mulheres ou investigando as “imagens de mulher”, nas obras de um autor, um gênero ou um período (CULLER apud ZINANI, 2011, p. 411.)

Esse olhar feminino sobre uma obra renomada, independente de quem

seja o autor, pode dizer muito da obra em si. A mulher se valeda sua visão de

mundo e das suas vivências para interpretar o que está escrito, para entender

os personagens. A autora ressalta também que “essa crítica feminista procura

desconstruir os processos ideológicos tradicionais, discutindo as

representações masculinas e femininas, a fim de colocar em evidência as

questões de identidade de gênero” (p. 413). Esse novo olhar, essa releitura de

52

grandes obras, pode ser um grande avanço em estudos na área e mesmo na

literatura, pois como já foi reafirmado, o campo das interpretações corre por

linhas tênues e é sempre passível de vários desfechos diferentes.

Depois de ver, estudar e conhecer a história do país, da literatura e das

mulheres, percebe-se que de fato há um encontro na contextualização desses

três aspectos, o que dá sentido a este estudo e dará um suporte ainda maior

no momento em que as crônicas serão analisadas. Um recorrente ponto de

aproximação é o fato de a história do Brasil e a história da literatura terem

começado do mesmo ponto, o descobrimento deste país e, que a literatura foi

um importante meio de divulgação dos acontecimentos, tanto do país quanto

das lutas e avanços das mulheres, ou seja, de uma maneira ou de outra todos

os aspectos estão interligados.

53

4 A CRÔNICA BRASILEIRA: UM GÊNERO DO MOMENTO

Já mencionei que a crônica é um gênero do momento, uma vez que o

cronista se espelha em fatos do dia-a-dia, ou em polêmicas e histórias que

estão em voga no momento, para criar seus pequenos textos, com um tom por

vezes opinativo, por vezes cômico, por vezes crítico, usando ou não linguagem

literal.

Retomando o já mencionado neste trabalho, o primeiro contato que se

tem com a crônica é a carta de Pero Vaz de Caminha a El Rey Dom Manuel,

escrita no descobrimento do Brasil e achada em 1773. Ela é considerada, além

da certidão de nascimento do Brasil, um marco no surgimento da produção da

linguagem e da produção literal, como afirma Sá (2001, pg. 05). Com o

surgimento dos folhetins e jornais, a crônica passou a ser vista como um

gênero jornalístico, relatando pequenos fatos cotidianos e que, com a evolução

dos meios de comunicação e o aperfeiçoamento da escrita, acabou se

transformando. Continua transcrevendo acontecimentos factuais, mas agora

carrega consigo uma pitada de literatura, um protesto aqui e um

questionamento acolá, satirizando os fatos e abrindo fronteiras para a

interpretação. Agora ela passeia tranquilamente pelas fronteiras jornalísticas e

literárias. Como destacam Ferro e Ferro (2013),

Uma das características marcante da crônica é a opinião gerada pelo escritor, quase sempre com um tom de protesto ou de argumentação. Esses textos apresentam atributos marcantes da literatura; contudo, também se destacam no cunho jornalístico. A crônica se diferencia e destaca no jornal em razão do seu objetivo, que é a não busca pela exatidão da informação. (FERRO; FERRO, 2013, p. 03.)

Ferron (s.d.) comenta sobre essa transitoriedade da crônica entre o

gênero jornalístico e o gênero literário e sobre o seu possível pertencimento a

um ou a outro dizendo que

Muito além do chamado "conteúdo", a crônica significa toda uma parcela valiosa de uma época e este aspecto torna-se mais precioso por ser o resultado de uma subjetividade exercida cotidianamente: o território da crônica conseguiu manter-se o mais "independente" possível de normas internas e coerções dos manuais de redação dojornalismo brasileiro. Para alguns, a crônica não se encaixa como

54

notícia – mas ela faz dos fatos seu enredo e das pessoas comuns suas personagens. Para outros, sua linguagem e seu estilo próprios não permitem que ela seja simplesmente jornalismo, seria mais que isso, seria literatura. (FERRON, s.d., s.p.)

Outro escritor que compartilha dessa ideia de Ferron é Coutinho (1983),

ao afirmar que a crônica é uma forma de arte, uma vez que o cronista se

apropria do fato dado e coloca nele seu lirismo, sua essência, seu estilo. A

crônica se coloca entre o jornalismo e a literatura, deixando uma janela aberta,

pela qual tanto a imaginação do cronista quanto a do leitor podem “viajar”.

Por ser um texto leve, próximo do leitor, caracterizado por uma

linguagem mais informal, vejamos a crônica do jornal como um ponto de fuga,

onde o leitor se refugia das matérias objetivas e estritamente informativas do

resto do jornal. É um gênero que traz leveza ao jornal e descanso aos leitores.

Gomes (2010, p. 101) comenta sobre a transitoriedade da crônica, do

meio jornalístico para o meio literário, dizendo que “dos jornais para o livro, a

crônica supera a transitoriedade e deixa de ser um mero painel fragmentado

das páginas jornalísticas, tornando-se eterna”. Ela muda de meio, mas

permanece a mesma em sua essência.

Coelho (2009, p. 33) comenta que a crônica tende a revelar

características de seus dois gêneros: o jornalístico e o literário, sendo que

“tende para aquele, na medida em que tem como meta propor um diálogo

informal com o interlocutor, em tom ao da conversa. E apresenta o estatuto do

gênero secundário, pois esse recurso é estratégia persuasiva para se

aproximar do leitor e fisgar sua atenção”. Esta citação evidencia mais uma vez

o caráter hibrido da crônica, que, para Coelho, está mais para um gênero

intermediário do que para um primário ou secundário, uma vez que possui

características de ambos.

Sobre a sua temporalidade, sua instantaneidade, Sá (2001) afirma que a

crônica surge primeiro no jornal, numa leitura apressada que morre em 24

horas, ou “no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de

embrulho ou guarda os recortes que mais lhe interessam em um arquivo

pessoal” (2001, p. 10). Diz, ainda, que tão rápida quanto a sua leitura tem de

ser a sua escrita, tanto por que o jornal precisa ser fechado, quanto por que

trata de um assunto momentâneo, precisa ser tão ágil quanto os fatos. “Por

55

isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da

conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito”. (SÁ, 2001,

p. 11.)

Marca, como já dito, de forma bem visível, o momentâneo, o moderno,

essa vida modernosa, a pressa, a inquietação, o consumismo que ela causa.

Arrigucci Jr. (1987), explica tal fato:

A crônica é ela própria um fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumismo imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do capitalismo industrial e em seus espaços periféricos. (ARRIGUCCI Jr., 1987, p. 53.)

Ferron (s.d.) também fala sobre as características da crônica e seu valor

documental. Enfim, apesar de não seguir os padrões da objetividade, ela faz

com que seu autor seja um assíduo leitor, conhecedor de seu tempo e do

mundo que o cerca:

A crônica moderna traz em si o imaginário de uma época, pois tem nos seus autores – antes de mais nada – leitores argutos do seu tempo e capazes de produzir memória. Assim, muitos são os estudos, nas mais diversas áreas, os quais tratam a crônica como uma forma diferenciada de documento para o pesquisador implementar suas análises sobre determinada época. Se por um lado, a notícia e os demais gêneros do jornalismo buscam muitas vezes a conclusão, tentam oferecer ao leitor uma história clara, concisa, em que a objetividade tem a pretensão de esgotar os fatos por meio do relato imparcial, a crônica parece ir a um sentido oposto. (FERRON, s.d., s.p.)

A autora complementa salientando queo cronista assume, no mínimo,

duas visões: alguém que vê os fatos e faz da crônica uma membrana sensível,

capaz de registrar a moda, os costumes, as mudanças, novas expressões e

termos, a novidade e as marcas do tempo que são as notícias; e o olhar de

alguém que julga, critica, faz o leitor pensar.

Além dessa característica jornalística, a crônica ainda tem um caráter

memorialístico e historicista, pois usa fatos do dia-a-dia e personagens de

histórias reais para construir seus relatos, deixando um pé no jornalismo, na

realidade, e outro na subjetividade, no campo literário.

56

Há também uma diferença entre crônicas publicadas em jornal e

crônicas que compõem um livro. A crônica que é publicada em jornal

apresenta-se ao leitor como um complemento ou um bônus que vem associado

àquilo que o leitor estava buscando: um veículo que lhe traga as notícias. Entre

essas notícias temos a crônica, que relata, provavelmente, algum fato destes

que estão nas páginas internasdo jornal. Caso o leitor necessite de maiores

informações para entender a crônica, basta folhear o jornal em busca da notícia

referente ao fato. Já no caso do livro, precisa, antes, haver uma vontade por

parte do leitor de adquirir o livro, independente da forma, pois o único interesse

neste caso é a própria crônica, diferentemente do interesse pelo veículo que a

contém. Outro ponto que diferencia a crônica do jornalda crônica do livro é a

forma de escrevê-la, uma vez que no livro o leitor só tem sua própria memória

para recorrer, caso não entenda algo ou não se lembre de algo sobre o qual o

cronista escreveu. Por isso, podemos afirmar que, apesar de a crônica possuir

este caráter factual e momentâneo, ela permanece no tempo, tem valor e

durabilidade, consegue ser factual sem deixar de ser duradoura e este é um

dos grandes desafios do gênero: manter-se no tempo.

Candido (1981, p. 13) fala sobre a crônica em seu artigo A vida ao rés

do chão:

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menos. “Graças a Deus”, seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica mais perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura. (CANDIDO, 1981, p. 13.)

Nesta citação de Candido percebemos o quão simples e singela é a

crônica se comparada aos romances e poesias, mas é nessa linguagem

simples, que se aproxima muito do leitor, que encanta. Um gênero que serve

seus leitores de seus próprios acontecimentos de uma forma envolvente. Seja

a crônica jornalística ou literária, o fato é que ela retrata o cotidiano sem cair na

mesmice, atribuindo importância àquilo que está retratando.

57

4.1 A mulher brasileira em crônicas nacionais

Os estudos sobre crônicas brasileiras e a representação da mulher

nesse gênero já foram abordados por outros estudiosos, porém, sob outros

aspectos. Na verdade, a aparição da mulher nas crônicas brasileiras é muito

constante, como afirma Simon (2006, p. 61), “na crônica brasileira produzida ao

longo do século XX, a mulher ocupou espaços bastante significativos”, porém,

seu estudo não é tão recorrente, como o próprio autor comenta, “os estudos

feministas têm ainda muito trabalho pela frente até proporcionar mais

visibilidade para a produção das cronistas”. Na literatura brasileira, a figura da

mulher oscila entre uma visão ora de mulher submissa, ora livre, emancipada,

ora de uma mulher reprimida. Em crônicas, o perfil da mulher representada é

bem amplo. Sabemos que a crônica é um gênero momentâneo e que, ao longo

dos séculos, a posição da mulher perante a sociedade sofreu mudanças. Há

uma ligação entre fatores que será estudada aqui, ou seja, como um reflete no

outro. Candido (1992) ressalta que a crônica faz sempre uma relação entre

episódios e pessoas, por isso o porquê da investigação da relação entre esses

fatos. Sobre a posição da mulher brasileira oitocentista, Dias e Sousa (2013)

afirmam que

No que concerne à condição feminina no Brasil oitocentista, a história da mulher brasileira, como a história de tantas mulheres, é marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal que, legitimada pela religião cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em todas as esferas sociais. Elas eram – assim como as inglesas – subordinadas e dependentes dos pais ou dos maridos, sendo feitas propriedades dos homens e silenciadas por eles. Seguindo o modelo europeu, desde menina, a mulher era ensinada a ser mãe e esposa; sua educação limitava-se a aprender a cozinhar, bordar, costurar, isto é, tarefas estritamente domésticas. Carregava o estigma da fragilidade, da pouca inteligência, entre outros que fundamentavam a lógica patriarcal de mantê-la afastada dos espaços públicos e, consequentemente, da educação formal, pois não lhe era permitido o acesso à escola.(DIAS; SOUSA, 2013, p. 150-151.)

Vários fatores podem influenciar nesta mudança, dependendo de quem

escreveu a crônica, pois a abordagem de cada um é diferente e também

dependendo da época em que foi escrita, desde o século XX até o século XXI,

uma vez que cada século traz momentos históricos distintos e o gênero crônica

tem uma particularidade que o torna diferente dos outros gêneros literários, que

58

é a atualidade. A crônica geralmente se baseia nos acontecimentos da época,

em assuntos que estão em voga, os mais comentados e, mesmo assim,

consegue permanecer ao longo dos anos, não perdendo sua importância. A

crônica pode ser considerada também um gênero híbrido, que caminha entre a

literatura e o jornalismo, abrangendo um universo maior de estudo. Como

afirma Granez (2011, p. 14), “é atualmente um gênero nitidamente brasileiro e

que incorpora o real do jornalismo e o ficcional da literatura”.

Ao realizar esta análise temos de levar em conta a própria mudança

histórica, social, cultural e econômica do país, mudança da qual as mulheres

também fizeram parte, como afirma Milagres (2008, p. 10), “a partir do histórico

social da mulher, percebemos que ela já atingiu muitas conquistas, em

variados aspectos da vida privada e pública”.

Dias e Sousa (2013), seguindo a mesma linha de pensamento de

Milagres, dizem que

No que se refere à posição social da mulher e sua presença no universo literário, as teorias críticas feministas colocaram em foco as circunstâncias socio-históricas em que se encontravam as mulheres, circunstâncias estas entendidas como determinantes na produção das representações femininas no cenário literário.(DIAS; SOUSA, 2013, p. 152.)

A maioria das mulheres do século XIX vivia num silenciamento, eram

retratadas, mas não podiam gozar do direito de escrever, salvo algumas

exceções que reivindicaram, ou que se arriscaram no cenário literário e

acabaram por se tornar grandes nomes da literatura da época.

Scott (1990) explica que a luta das mulheres para conquistar seu espaço

em um meio comandado e feito por homens ganhou força com o movimento

feminista do século XX para tentar ganhar mais espaço e reivindicar seus

direitos. É a partir daí que poderemos verificar as mudanças tanto na vida real

quanto na representação da mulher nas crônicas.

4.2Crônicas e cronistas: apresentando os objetos

Para alcançar as respostas aos objetivos propostos, utilizarei as

seguintes crônicas: Enigma, de Clarice Lispector; A viúva na praia, de Rubem

59

Braga; A mulher independente, de Martha Medeiros, e Os Homens Desejam as

Mulheres que não existem, de autoria de Arnaldo Jabor. A seguir, abordo

aspectos relacionadosaos autores, vida e obra, bem como contextualizo a

crônica que será analisada e apresento a respectiva análise.

4.3 O século XX

Como já observado no capítulo que traz a contextualização histórica,

econômica e social do país (e das mulheres), o século XX traz mulheres que

lutam por seus direitos enquanto são observadas como submissas. Com o

objetivo de verificar se nas crônicas isso também acontece, apresento, como

cronistas do século XX, Clarice Lispector e Rubem Braga, efetuando, após uma

rápida explanação sobre vida e obra de cada um,e a análise da crônica

escolhida de cada escritor.

4.3.1 Clarice Lispector

Clarice Lispector foi uma escritora e jornalista do século XX. Para contar

sua trajetória, uso como referência o sitewww.claricelispector.com.br, criado

pela editora Rocco,totalmente destinadoa divulgar aspectos da vida e da

trajetória literária de Clarice.

A escritora nasceu em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia.

Aproximadamente com dois anos de idade, veio com sua família para o Brasil.

Fugiam das perseguições aos judeus que ocorriam em seu país. Chegaram

primeiro em Maceió, depois Recife, onde Clarice perdeu a mãe, e mais tarde

para o Rio de Janeiro. Enquanto estava em Recife, Clarice escreveu sua

primeira peça teatral Pobre Menina Rica, além de outros textos curtos que

tentava publicar nos jornais de Recife, sempre sem sucesso.

A década de 40 foi de mudanças. Estudando Direito, publica seu

primeiro trabalho de ficção, o conto Triunfo, em um semanário. Alguns meses

depois seu pai falece e, no mesmo ano de 1940,ela começa a trabalhar como

repórter e redatora na Agência Nacional, do Departamento de Imprensa e

60

Propaganda.Foi quando a vida de jornalista surgiu em Clarice. Depois trabalha

como repórter no jornal A Noite. Em janeiro de 1943, naturaliza-se brasileira,

casa e publica seu primeiro livro,Perto do Coração Selvagem, obra que recebe

o prêmio Graça Aranha de melhor romance (e mais tarde uma edição francesa,

além de uma peça teatral). Em 1946, lança seu segundo livro, O Lustre e, em

49 o terceiro, A Cidade Sitiada.

Em 1950,assume a página Entre Mulheres do jornal Comício, usando o

pseudônimo de Tereza Quadros, além de publicar seu primeiro livro de contos,

Alguns Contos. Em 1959, Clarice usa outro pseudônimo, Helen Palmer,

assumindo a coluna Correio Feminino – Feira de Utilidades, no jornal Correio

da Manhã, do Rio de Janeiro e, ainda, publica vários contos na revista Senhor.

Seu segundo livro de contos, Laços de Família,foiescrito em 1960 (livro

que ganharia o prêmio Jabuti no ano seguinte), mesmo ano em que a escritora

fica responsável pela coluna Só Para Mulheres, do Diário da Noite, sendo

Ghost Writer da atriz Ilka Soares. Em 1961, publica mais um romance, A Maçã

no escuro, livro que ganha o prêmio Carmen Dolores Barbosade melhor livro.

Dois anos depois, em 1964, publica mais dois livros, um de contos, A Legião

Estrangeira, e seu quinto romance, A Paixão Segundo G. H (que mais tarde é

encenado no teatro). Torna-se cronista em 1967, pelo Jornal do Brasil e publica

o primeiro livro infantil no mesmo ano, O Mistério do Coelho Pensante (que no

ano seguinte recebe a Ordem de Calunga). A Mulher que Matou os Peixes foi o

segundo livro infantil de Clarice, escrito em 1968, mesmo ano em que começa

uma série de entrevistas intituladas Diálogos Possíveis com Clarice Lispector.

No ano seguinte publica mais uma obra premiada, sendo o romance Uma

Aprendizagem ou O Livro dos Prazerespremiado com o Golfinho de ouro.

Felicidade Clandestina, livro de contos, é publicado em 1971. Em 1973,

publica o romance Água Viva e o livro de contos A Imitação da Rosa. No ano

de 1974, Clarice publicou mais dois livros de contos, A Via Crucis e Onde

Estivestes de Noite, além de mais um livro infantil, A Vida Íntima de Laura. Em

1975 publica a coletânea de crônicas Visões do Esplendor – Impressões

Leves, e um livro de entrevistas,De Corpo Inteiro. Em 1976, recebe um

importante prêmio (prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal) pelo

conjunto de sua obra, esta, diga-se de passagem, vasta e com um conteúdo

muito rico. Participa de entrevistas na revista Fatos e Fotos. Em 1977, ano de

61

sua morte (que se deu em decorrência de um câncer), é contratada pelo jornal

Última Hora, assinando uma crônica semanal, e publica seu último livro, a

novela A Hora da Estrela (que no ano seguinte ganha o prêmio Jabuti, de

melhor romance,que mais tarde ganharia adaptação para o cinema). Em 1978,

um ano após sua morte, ocorre a publicação do romance Um Sopro de Vida

(que foi adaptado para o teatro), do livro infantil Quase de Verdade e da

coletânea de crônicas Para Não Esquecer. O conto Feliz Aniversário ganha

adaptação televisiva. A Bela e a Fera é publicado.

As crônicas que Clarice Lispector escreveu no Jornal do Brasil foram

reunidas em livro, A Descoberta do Mundo(1984), obra que contéma crônica

que será analisada, Enigma. Antes da análise desta crônica, termino a

cronologia da escritora e jornalista Clarice Lispector, registrando que, em 1987,

mais um livro infantil é publicado, Como Nasceram as Estrelas.

Nas décadas seguintes, vários livros, contos e crônicas de Clarice foram

adaptados para o cinema, televisão, teatro, áudios; serviram de inspiração para

outras obras, ganharam relançamentos, remodelagens,romances e novas

coletâneas de contos e crônicas perduram no cenário literário até hoje e, com

certeza, ficarão registrados para sempre. São obras que trazem, ao mesmo

tempo, simplicidade e complexidade, relatos cotidianos que envolvem e com

quais se identificam os leitores.

Poli (2009, p. 439), a propósito do texto de Clarice, pergunta:

Como explicar, senão deste modo, a forma como o texto clariciano afeta o leitor? Como entender que pela simples leitura de elementos gráficos, uma verdadeira experiência – de gozo e de angústia – possa se produzir? O texto de Clarice pulsa e convoca o leitor a incluir-se em um circuito pulsional no qual as letras trilham o caminho que recorta o objeto da pulsão. (POLI, Maria Cristina, 2009, p. 439.)

Uma grande estudiosa de Clarice é Nádia Gotlib que, em um de seus

escritos sobre Clarice Lispector, afirma que

O seu processo de escrita, de certa forma reforça o processo da leitura que fazemos de tais documentos: escreve em fragmentos soltos, em guardanapos ou pedacinhos de papel, que, depois, se perdem, já que, para a autora, são apenas suportes descartáveis. A escritora espalha esses miolos de papel na sua trilha. E são eles recuperados pelo leitor que a segue nesse percurso de vida e obra, atenta aos sinais, rastros, na tentativa de remapear os sentidos. Mas sem nunca alcançar o alvo, já que é fisgado pela autora que,

62

calculadamente, desnorteia o rumo do leitor-perseguidor e projeta-o na contramão. (GOTLIB, Nádia, 2010, p. 184.)

A crônicaEnigma faz parte de um livro, uma coletânea de crônicas da

autora, publicadas no Jornal do Brasil, entre agosto de 1967 e dezembro de

1973. Enigma foi publicada na edição do dia 26 de abril de 1969, na página 2

do Caderno B, sendo, posteriormente, juntada a outras publicadas no mesmo

jornal e acabando por fazer parte do livro A Descoberta do Mundo, publicado

no ano de 1984. No livro esta crônica encontra-se na página 200.

4.3.1.1 Enigma – Crônica de Clarice Lispector

Ela estava vestida de uniforme listrado de empregada, mas falava como

dona-de-casa. Viu-me subir as escadas cheia de embrulhos e parando para

sentar nos degraus - os dois elevadores estavam enguiçados. Ela morava no

quinto andar, eu no sétimo. Subiu comigo segurando alguns de meus

embrulhos numa das mãos, e na outra o leite que comprara. Quando chegou

ao quinto andar, botou o leite em casa dela entrando pela porta de serviço,

depois fez questão de segurar meus embrulhos e de subir comigo até o sétimo.

Que mistério era esse: falava como dona-de-casa, seu rosto era o de

dona-de-casa, e no entanto estava uniformizada. Sabia do incêndio que eu

sofrera, imaginava a dor que eu sentira, e disse: mais vale a pena sentir dor do

que não sentir nada.

- Tem pessoas - acrescentou - que nunca ficam nem deprimidas, e não

sabem o que perdem.

Explicou-me, logo a mim, que a depressão ensina muito.

E - juro - acrescentou o seguinte: ―A vida tem que ter um aguilhão, senão

a pessoa não vive.‖ E ela usou a palavra aguilhão, de que eu gosto.

26 de abril de 1969.

Um olhar inicial sobre esta crônica nos coloca diante de duas

personagens – patroa e empregada.Esta é apresentada usando uma

63

caracterização própria da categoria: uniforme listrado, que somente

empregadas domésticas costumam usar. É o que as identifica na sua

profissão.Ela chega carregando pacotes com compras, serviço que as donas

de casa não faziam, mas designavam como tarefa, além de todas as outras da

casa, para a serviçal. Essa personagem é vista entrando pela porta de serviço,

porta utilizada somente pelos empregados, diferente daquela principal, pela

qual somente a dona (e os donos) da casa poderia(m) entrar e sair.

A segunda personagem é também uma mulher. Nenhum traço particular

lhe é atribuído, até porque ela própria é a narradora e não fala sobre si mesma,

não se descreve física ou emocionalmente. É do seu discurso que vaza sua

identificação principal – o não pertencimento à mesma classe social da primeira

personagem. Ela é a patroa, um sujeito discursivo pertencente a uma

Formação Discursiva (FD) distinta e mais considerada socialmente da que é

originária sua empregada. Nenhuma das personagens é identificada

nominalmente. O que parece estar em destaque em um primeiro movimento

interpretativo sobre o discurso que sustenta a narrativa literária é a diferença

social,como definidora do relacionamentoexistente entre as duas mulheres.

Um olhar mais atento, no entanto, demonstrará que na fala da

empregada existe um discurso que não confirma, mas contradiz, o pré-

construído que,na perspectiva da memória discursiva predominante na FD da

patroa,corresponderia à FD da serviçal.

Para fins de análise, destacam-se, nessa crônica, três Sequências

Discursivas de Referência5 (SDRs), respectivamente

SDR1

Que mistério era esse: falava como dona-de-casa, seu rosto era o de dona-de-casa, e no entanto estava uniformizada. Sabia do incêndio que eu sofrera, imaginava a dor que eu sentira (...). ...

5 A partir daqui, a expressão Sequências Discursivas de Referência será utilizada com a sigla

SDR.

64

SDR 2

E - juro - acrescentou o seguinte: ―A vida tem que ter um aguilhão, senão a pessoa não vive.‖ E ela usou a palavra aguilhão, de que eu gosto.

e SDR 3

Tem pessoas - acrescentou - que nunca ficam nem deprimidas, e não sabem o que perdem.

Destaca-se, na primeira SDR a materialidade discursiva de um já-lá

constituído em umaFD que traz em sua constituição ideológica as marcas de

diferença social que, por rotineira, é entendida comonatural no ambiente

doméstico das famílias de classe social de média à alta. Esse já-lávem à tona,

na crônica, pelo discurso da empregada, um discurso que provoca na patroa,

em um primeiro momento, incredulidade. Que mistério é esse, reflete ela, a

patroa(SDR1), ao perceber quem nem o vocabulário (SDR 2, E(...)ela usou a

palavra aguilhão, de que eu gosto.), nem a fisionomia ou o uniforme de

serviçal usado pela empregada denunciavam-lhe essa condição social inferior,

mas a identificavam como alguém que chegava, inclusive, a usar palavras

apreciadas por ela, uma mulher de condição social e cultural mais elevada,

conforme ditames da hierarquia social em que se situava.

Usando o substantivo mistério,que semanticamente remete ao que ainda

não foi desvendado e nem nomeado e, por isso, é indefinido em

suamaterialidade significante, a patroa não apenas reconhece ignorar quem é

de fato a pessoa com quem convive. Confessa também sua incredulidade

diante do que vê e ouve, e vai além disso. Ao sugerir que sabia dos prejuízos

da patroa em razão do incêndioque sofrera, a empregada desvendou outros

matizes de sua personalidade aos olhos da patroa, ou seja, o matiz da

solidariedade combinado ao da sabedoria que a vida prática ensina aos

atentos, independente de classe social. A vida tem que ter um aguilhão, senão

a pessoa não vive‖, advertiu a empregada. Ao ressaltar, pelo uso da voz

imperativa presente na expressão tem que,a necessidade de uma parcela de

sofrimento, representada semanticamente no textopelo uso do substantivo

65

aguilhão, para se adquirir algum significado à própria vida como existência

enriquecedora do ser mais que do ter, a empregadademonstrou sua

capacidade de reflexão também sobre questões existenciais. Posicionou-se

como alguém a quem não bastava a rotina, reflexivamente vazia, da simples

luta pela subsistência. Há um Outro que até aquele momento estivera

compreensivelmente invisível na imagem que a patroa possuía de sua

empregada. A patroa via na empregada o pré-construído que sua FD lhe

permitia ver.

A estranheza que o discurso da empregada causa na patroa resulta da

identificação que, de repente, esta percebe existir entre ambas. Descobre-se

ali, aos olhos da patroa, uma alteridade traduzida não em negação, mas em

aproximação, naquele momento: (...) ela usou a palavra aguilhão, de queeu

gosto(SDR 2).Essa descoberta transforma o discurso da patroa. “O sentido

não é criado instantaneamente, mas somente ex post facto: após o evento em

questão”, explica Fink (1998, p. 87), ao lembrar que Lacan “nunca aponta com

precisão o aparecimento cronológico do sujeito na cena (...) ele sempre está “a

ponto de chegar”. É um ponto de vista que confirma: o sentido não se cria num

momento apenas, instantaneamente. O envolvimento do sujeito na cena

discursiva é gradativo, ou seja, o efeito seguindo-se à causa e, dessa forma,

contradizendo “a linha do tempo da lógica clássica”, conforme o mesmo Fink

(p. 86).

Na crônica analisada, a presença da empregada como sujeito discursivo

torna-se matéria significante diante da patroa somente quando acontece o

discurso, ou seja, quando um sentido se faz no espaço discursivo partilhado

por ambas e nelas encontra/desperta reciprocidade, quando há um encaixe

entre ideias pré-existentes sem que se originemconflito entre elas, ou seja,

quando acontece uma espécie de assimilação de algo, quando o sujeito “se

sente alguém, ou imagina-se como alguém (um eu ou self) que cumpriu uma

tarefa difícil” (FINK, 1998, p. 95-96).

No caso de Enigma, o discurso acontece quando a empregada imagina

haver encontrado na patroa uma espécie de receptividadeàs suas ideias, efeito

imaginário que a “interpela” a verbalizar, mesmo subliminarmente, o que pensa

sobre a patroa, como se constata da leitura da SDR 3, em que o verbo ter,

usado no Presente do Modo Indicativo, contém o significado de haver(tem)e

66

aparece seguido de substantivos (pessoas) e adjetivos pluralizados

(deprimidas),ou seja, que não individualizam sujeitos; de verbos flexionados

na terceira pessoa do plural e, por isso, igualmente portadores da ideia de

coletivo (ficam; sabem; perdem), e de um advérbio de significado também

opaco ao indicar a que noção temporal se refere – nunca.

4.3.2 Rubem Braga

Rubem Braga foi um grande escritor, jornalista e cronista do século XX

(ele é responsabilizado por popularizar o gênero crônica no país, na década de

50/60). Nascido em 1913, no Espírito Santo, mudou-se para Niterói, no Rio de

Janeiro, onde começou a cursar a faculdade de Direito, curso que concluiu em

Minas Gerais, onde participou como repórter dos Diários Associados, durante a

cobertura da Revolução Constitucionalista. Também foi correspondente de

guerra do Diário Carioca, na Itália, ocasião em que escreveu o livro Com a FEB

na Itália, em 1945. Retornou ao Brasil e, depois de morar em diversas cidades

do país, alojou-se definitivamente no Rio de Janeiro. Naqueles tempos de

guerra, Braga foi preso diversas vezes e, em outras tantas, teve de se

esconder da repressão. As informações que utilizo para retratar este brilhante

artista são do siteReleituras, criado e desenvolvido por Arnaldo Nogueira Jr.,

desde 1996.

Voltando aocronista, seu primeiro livro publicado foi O Conde e o

Passarinho, em 1936. Em 1968, junto com Fernando Sabino e Otto Lara

Resende, fundou a Editora Sabiá. Rubem Braga foi também jornalista, além de

um excelente cronista. Como repórter, redator e editorialista, trabalhou em

jornais e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Porto Alegre e

Recife. Ainda, foi correspondente, em Paris, de O Globo e também do Diário da

Manhã. Esteve, por vezes, envolvido com a política. Entretanto, mesmo

durante esse período, não deixou de lado sua veia jornalística, realizando,

paralelamente, reportagens sobre política, economia, cultura.

Rubem Braga possui uma vasta bibliografia, sendo autordo romance A

Casa do Braga.Realizou também alguns trabalhos de adaptação, como

algumas obras da Coleção Reencontro;traduziuTerra dos Homens, de Antoine

67

de Saint-Exupéry, além depossuir uma larga e vasta lista de obras que

surgiram da junção de suas crônicas, como, por exemplo, 50 Crônicas

Escolhidas, 100 Crônicas Escolhidas e 200 Crônicas Escolhidas, A Traição das

Elegantes, O Verão e as Mulheres, Ai de Ti, Copacabana, entre diversas

outras. Este último citado, Ai de Ti, Copacabana, é o livro do qual retirei a

crônica que trago para análise, A Viúva na Praia. Este últimofoi publicado em

1962 e contém uma seleção de crônicas escritas entre abril de 1955 e março

de 1960, período transitório para o autor, que foi do Correio da Manhã para o

Diário de Notícias e, depois, para O Globo.

O livro traz sentimentos que, segundoCursino (2009), podem ser

explicados pela contextualização econômica e social da época. Cursino (2009,

p. 5) relata que nesse período o país era governado por Juscelino Kubitschek,

que havia traçado um programa de metas para o governo, encabeçado pelo

lema “Cinquenta anos em cinco”, programa que resultaria em um acelerado

crescimento industrial, no êxodo rural, com as paisagens urbanas, que antes

eram compostas por muito verde, começandoa dar lugar ao desmatamento e à

construção de edifícios. O título Ai de Ti, Copacabana, segundo Cursino

(2009), refere-se ao que aconteceu à Copacabana:

Copacabana, antes um bairro considerado da elite, sofre com a especulação imobiliária, que atende a nova clientela; a burguesia industriaria e urbana da capital do país.Precipita-se a ocupação desordenada do espaço. Muitos dos seus antigos e mais importantes prédios são demolidos para dar lugar aos modernos edifícios de condomínio e aos centros comerciais. Ocorre dessa forma, uma profunda mudança não só ao que se refere ao espaço físico, mas também a diversificação de aspectos humanos e de classes sociais. (CURSINO, 2009, p. 5 – 6.)

Por isso, ao lembrar-se de sua Copacabana, que estava sendo

radicalmente modificada, Braga insere em suas crônicas altas doses de

memorialismo e melancolia. Sendo assim, apresento, na sequência, a

crônicaanalisada neste trabalho: A Viúva na praia.Elafoi escrita em setembro

de 1958, sendo que, na versão digital consultada, encontra-se publicada nas

páginas 64 e 65. Passemos, então, à rememoração do texto.

68

4.3.2.1 A Viúva na Praia – Crônica de Rubem Braga

Ivo viu a uva; eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na

praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.

0 enterro passara sob a minha janela; o morto eu o conhecera

vagamente; no café da esquina. A gente se cumprimentava às vezes,

murmurando "bom dia"; era um homem forte, de cara vermelha; as poucas

vezes que o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não

me via; e eu também. Lembro-me de que uma vez perguntei as horas ao

garçom, e foi aquele homem que respondeu; agradeci; este foi nosso maior

diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um "Citroen", com a

mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à

praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava

de longe; sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista;

eu não a olhava de frente.

A morte do homem foi comentada no café; eu soube, assim, que ele

passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor.

Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.

E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à

praia? Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente; além disso, vamos

supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu

maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto; já era preto. E ela tem, como

sempre, um ar decente; não olha para ninguém, a não ser para o menino, que

deve ter uns dois anos.

Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias

depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a

viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção; é discreta,

de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos; talvez menos,

talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros; os olhos são um pouco

amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco; a

linha do queixo muito nítida.

Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n'água.

Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar

que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista,

69

do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que

olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído.

Mas eu não morri; e eu sou o outro homem. E a idéia de que o defunto

ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo

de sua viúva, essa idéia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa

lhe imputar essa idéia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande

superioridade sobre ele.

Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que

vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o

garoto já bem crescido. 0 esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das

coxas; é bela assim, marchando com a sua carga querida.

Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um

mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto,

a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o

vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em

que viveu meses. Vendo seu homem se finar; vendo-o decair de sua glória de

homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do

filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino,

às vezes até ridículo, às vezes até nojento...

Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo

e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro

da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em

ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

Setembro de 1958.

Braga destaca, nesta crônica, a história de uma viúva que, tendo perdido

o marido há poucos dias, vai à praia com seu filho, como fazia antes da viuvez.

Quem conta a história não é a viúva, mas um homem que a observa e tem

lampejos de pensamentos sobre o homem morto, sobre a morte, sobre a viúva.

O cronista, nesta crônica, não se preocupa com passado, não se preocupa

com futuro, apenas com o momento, com o presente, com o que acontece ali,

naquele instante.

70

Tem-se como personagens-sujeitos-discursivos desta crônica o

narrador, a viúva, o filho da viúva e o falecido marido. O falecido marido

aparece apenas como lembrança, nos momentos em que o narrador o

recupera em sua memória discursiva, relembrando de onde o conhece e como

ficou sabendo de sua doença e sua morte, por exemplo. Há um já-lá que se

reatualiza em seu discurso, como que o encontrava sempre no café, que

sempre iam à praia com um Citröen e que ficou sabendo de sua morte no café

sem, no entanto, haver sentido falta dele, mostrando que não havia nenhum

tipo de laço envolvendo o personagem-sujeito-discursivo-narrador com o do

marido falecido. Nada a respeito da vida íntima, profissional ou qualquer outra

menção à questões particulares. O filho da viúva aparece na crônica poucas

vezes e, nestas, sempre atrelado à viúva, sua mãe, referindo-se que ela

sempre o leva à praia, ou que ele desobedeceu às ordens de sua mãe e entrou

no mar, nada ligado a questões da vida particular.

O personagem-sujeito-discursivo que se destaca nesta crônica é a viúva,

pois esta é o sujeito discursivo que representa uma FD ao narrador, que

remete ao que, para ele, materializa-se como um ato de contemplação, ou seja,

o que se lê é um discurso sem palavras, fruto da pulsão escópica que se

manifesta. O que sobressai, portanto, é o discurso do olhar. O narrador se

contenta com observá-la na praia.Tendo-a como objeto de seu desejo,nela

reconhece todas as suas curvas, chegando mesmo a conhecer alguns de seus

hábitos. Sabe, por exemplo, que ela costumava ir à praia com o menino e que

o maiô preto que usava não remetia ao luto pela perda do marido, pois sempre

usara o preto, mesmo antes da viuvez. À exceção da viúva, nenhum dos

personagens-sujeitos-discursivos desta crônica é nomeado, assim como

nenhum tem especificidades da vida profissional, o que deixa evidenciado que

o discurso que sustenta a narrativa literária tem como base para sua

interpretação não a vida dos personagens, nem o nome, nem a profissão, nem

a classe social a qual pertencem.

Nem mesmo o sujeito-discursivo-narrador se identifica. Não se

podemperceber traços de nenhum momento da sua vida, pois ele não se

caracteriza e nem mesmo seu discurso diz alguma coisa sobre ele próprio.Seu

discurso apenas se exterioriza pelo olhar de contemplação com que observa a

viúva no momento em que está deitado na areia a observá-la. A viúva

71

representa uma FD já instaurada na mente da sociedade, que se manifestapelo

estágio do luto pelo qual deve passar alguém ao perder seu/sua

companheiro(a) de vida. Na crônica de Braga, no entanto, essa FD é

desconstruída pelo discurso do narrador, que não “vê” o luto na viúva.

Separo cincoSDRs para fins de análise desta crônica:

SDR 1

A mulher ia às vezes à praia com o menino, em

frente à minha esquina, mas só no verão. [...] Eu

passava de longe; sabia quem era, que era casada,

que talvez me conhecesse de vista; eu não a olhava

de frente.

...

SDR 2

E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva.

...

SDR 3

E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por

luto; já era preto.

...

SDR 4

Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando

de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo

o vento do mar.

E

SDR 5

O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

72

Na primeira SDR, o que se destaca é a FD construída através da

observação do narrador sobre a viúva. Ele sabe quando ela vai à praia, sabe

quem é ela e que é casada, mas não a encara de perto, apenas a observa de

longe. Sendo ela casada, o pressuposto levantado aqui é de que ele não se

aproxima por respeito à sua condição de esposa e mãe de família, como se

constata na SDR 1que era casada. Porém, após a morte do marido, o seu olhar

até ali discreto sobre o sujeito discursivo viúva se torna um olhar mais atento,

como se percebe na SDR 2, e agora estou deitado na areia, vendo sua viúva.

Nesta SDR2, leva-se em consideração a reatualização do tempo, presente na

narrativa da SDR 1, pelo uso do advérbio de tempo agora e pelo uso do verbo

estar no presente do Modo Indicativo, o modo da concretude, e do verbo ver

no gerúndio, indicando fato que se desenrola no momento mesmo da

narração.Esses usos linguísticos são pistas que permitem a percepção de que

o narrador lembra até mesmo de olhares dirigidos à viúva quando o marido

desta ainda vivia. A morte dele representa uma abertura ao sujeito-discursivo-

narrador para observar mais atentamente aquela mulher.

A partir dessa contemplação, o narrador levanta reflexões, entre elas

sobre o maiô que a viúva usa, que é preto, mas ele destaca, não que o tenha

comprado por luto; já era preto (SDR 3). O que se constata aqui, pelo

conhecimento popular ou senso comum6, é que a cor preta representa o luto,

ou seja, pelos ditames da FD construída socialmente no mundo ocidental, um

determinado sujeito discursivo usa uma roupa preta como forma de demonstrar

seu luto pela perda de algum ente querido. O que transcorre na crônica é que o

sujeito-discursivo-narrador, pela observância sobre a mulher antes que

elaenviuvasse, faz a primeira constatação: a mulher não está de luto pelo

marido falecido, pois seu maiô preto não é indicativo de luto – ele sempre foi

desta cor, mesmo antes da doença do marido. A partir deste primeiro indicativo

de que a viúva não está de luto, observável na SDR 3, percebe-se, através da

FDvislumbrada também na SDR 4, que o sujeito discursivo narrador descobre

outros aspectos que demonstram que a mulher, pelo menos aos olhos dele,

não está de luto, como se nota em a viúva está brilhando de sol, está vestida

de água e de luz. Respira fundo o vento do mar. Ele usa no

6 Segundo Cotrim (2002, p. 46), senso comum é um vasto conjunto de concepções geralmente

aceitas como verdadeiras em determinado meio social.

73

gerúndio,brilhando,o verbo brilhar, que significa emitir luz, destacar-se. Ora,

quem emite luz de fato se destaca em meio a outros. A viúva estar brilhando,

mesmo após ter perdido o marido, constrói uma significância na narrativa de

que ela não morreu, ela está viva e brilha, destacando-se, emitindo a luz, ideia

que traduz a vida. Utiliza também o verbo respirar, que denota a vida. Respira

aquele que está vivo. Para dar mais vivacidade à viúva e mostrar que ela não

está de luto, o sujeito-discursivo-narrador utiliza de palavras-chave que

representam a natureza, como sol, água, luz, vento e mar,substantivos que

representam o brilho, o calor e o movimento da vida; o sol e a luz, que

expressam o poder da visão, a claridade, a energia e o calor que emanam,

assim como a água, o mar e o vento, que com seu movimento refletem o que é

a vida. Assim o sujeito-discursivo-narrador descreve a viúva: viva.

Essa relação que o narrador faz da viúva com elementos da natureza

estabelece uma analogia. A viúva, que não está de luto, exala seu calor,

ilumina-se com o movimento do seu corpo, assim como o sol aquece o mar e o

vento lhe dá movimento, assim como o sol ilumina o dia, componentes de uma

FD que outra vez está contida na SDR 5, quando o personagem-sujeito-

discursivo-narrador diz o sol ama a viúva.Como pode o sol amá-la se ele é um

ser inanimado? O que acontece é que o sujeito-discursivo-narrador utiliza da

personificação para exemplificar o afeto que a viúva lhe desperta, assim como

quando diz que ela está vestida de água e de luz (SDR 4),pois, evidentemente,

água e luz não cabem como vestimentas. O contraponto vem com a

afirmaçãoeu vejo a viúva (SDR 5), demonstrando que o sujeito-discursivo-

narrador, de certa forma, sente inveja do sol, um ser inanimado, mas que pode

tocar o corpo da viúva, iluminá-la e aquecê-la, ao contrário dele, que é um ser

humano e mesmo assim apenas observa a mulher. Hegel (1993) diz que um

poema lírico deve ser analisado pelo viés da conotação, pois as imagens

exprimem a subjetividade. O mesmo deve ser feito nesta crônica, quando a

personificação é utilizada para descrever a viúva. A prosopopeia que Braga

utiliza nesta narrativa é o que conduz o discurso do sujeito-discursivo-narrador,

é o que transforma o discurso da crônica e cria efeitos de sentido subjetivos e

mais intensos.

Em A viúva na praia não acontece um discurso verbalizado, o que

acontece nesta crônica é um discurso reflexivo, motivado pela pulsão escópica,

74

que habita apenas o pensamento do narrador, que não se expressa

verbalmente, mas pelo direcionamento do olhar,sem tampouco ser

compartilhado com outros sujeitos. É um discurso produzido solitariamente e

assim permanece. O que fica é apenas o prazerescópico, e o desejo,

inalcançável talvez,de exprimir em ações tudo aquilo que, pelo olhar, construiu-

se em sua mente. A evidência desse pressuposto percebe-se na escolha dos

verbos utilizados na última frase da crônica, o sol ama a viúva. Eu vejo a

viúva(SDR 5).

4.4 O século XXI

Para dar segmento a esta rememoração, que se dá pelo contexto do

século XXI, trago dois cronistas que se destacam e que estão muito em

evidência na atualidade: Martha Medeiros e Arnaldo Jabor.

Observamosque,,neste século,as mulheres conquistaram muitos direitos,

conquistaram igualdade e conseguem se inserir, cada dia mais, na sociedade

atual. A partir de crônicas destes dois autores, apresento os dados necessários

(que se juntarão aos já coletados) para verificar,através da Análise do

Discurso,se de fato o que as mulheres conquistaram de espaço na sociedade

se aplica, também, nas crônicas escritas e publicadas sobre elas.

4.4.1 Martha Medeiros

Martha Medeirosnasceu em 1961, em Porto Alegre. Formou-se em

Comunicação Social e atuou na área de publicidade e propaganda, nos setores

de criação e redação. Sua primeira obra literária foi lançada em 1985: era o

livro de poesias Strip-Tease. Depois de deixar a carreira de publicitária, em

1993, Martha passou nove meses no Chile, onde se dedicou à poesia. No seu

retorno ao Brasil, escreveu algumas outras obras, entre elas,De cara lavada,

em 1995, Geração Bivolt, também em 1995, este sendo seu primeiro livro de

crônicas;Santiago do Chile, em 1996. Em 1997 escreveu Topless, obra com

que ganha o prêmio Açorianos de Literatura. Ainda em 1997, escreve Trem

75

Bala, obra que foi adaptada para o teatro. Também escreveu um livro infantil,

Esquisita como eu, em 2004. Sua obra Divã, publicada dois anos antes, foi

adaptada para o cinema e para uma minissérie da televisão,Doidas e Santas

(2008), que também ganhou adaptação para o teatro. Martha escreveu

aindadiversos livros de crônicas, comoNon Stop (2000), Coisas da vida (2005),

Feliz por nada (2011) – livro que contém a crônica aqui analisada -, Um lugar

na janela (2012), entre tantos outros. Martha também é cronista do jornal Zero

Hora, desde 1993, tendo uma coluna no caderno Donna, além de já ter escrito

para O Globo.

O livro Feliz por nada reúne mais de oitentacrônicas de Martha

Medeiros, publicadas originalmente em sua coluna no jornal Zero Hora e

também no jornal O Globo, entre 2008 e 2011.

4.4.1.1 A Mulher Independente – Crônica de Martha Medeiros

Estava autografando meu livro quando uma senhora alta, elegante, já

bem madura, chegou pra mim e disse: ―Te acho uma mulher fenomenal‖. Eu,

toda sorrisos, tomei o livro que ela tinha em mãos e me preparei para escrever

uma dedicatória bem carinhosa. Ela então complementou: ―Mas eu não queria

ser casada contigo – tu és muito independente!‖.

Concluí a dedicatória, agradeci a gentil presença dela, enquanto meu

coração começou a bater de forma mais lenta. O que estou sentindo?,perguntei

a mim mesma, em silêncio.

Tristeza, respondi a mim mesma, em silêncio, enquanto a próxima

pessoa da fila se aproximava. Em que eu seria mais independente do que

qualquer outra mulher? Quase todas as que conheço trabalham, ganham seu

próprio sustento, defendem suas opiniões e votam em seus próprios

candidatos. Algumas não gostam de ir ao cinema sozinhas, já eu não me

importo.

Poucas moraram sozinhas antes de casar, eu morei. Quase nenhuma,

que eu lembre, viajou sozinha, eu já. E nisso consta toda a minha

independência, o que não me parece suficiente para assustar ninguém. Fico

imaginando que essa tal ―mulher independente‖, aos olhos dos outros, pareça

76

ser uma pessoa que nunca precise de ninguém, que nunca peça apoio, que

jamais chore, que não tenha dúvidas, que não valorize um cafuné. Enfim, um

bloco de cimento.

Quando eu comecei a ter idade para sonhar com independência, passei

a ler afoitamente os livros de Marina Colasanti – foram eles que me ensinaram

a importância de abrir mão de tutelas e a se colocar na vida com uma postura

própria, autônoma, mas nem por isso menos amorosa e sensível.

Independência nada mais é do que ter poder de escolha. Conceder-se a

liberdade de ir e vir, atendendo suas necessidades e vontades próprias, mas

sem dispensar a magia de se viver um grande amor. Independência não é

sinônimo de solidão. É sinônimo de honestidade: estou onde quero, com quem

quero, porque quero.

Sobre a questão de a independência afugentar os homens, Marina

Colasanti brincava: ―Se isso for verdade, então ficarão longe de nós os

competitivos, os que sonham com mulheres submissas, os que não são muito

seguros de si. Que ótima triagem‖.

Infelizmente, a ameaça que aquela senhora acredita que as

independentes representam não é um pensamento arcaico: no aqui e agora

ainda há quem acredite que ser um bibelô (ou fazer-se de) tem lá suas

vantagens. Eu não vejo quais. Acredito que a independência feminina é

estimulante, alegre, desafiadora, vital, enfim, uma qualidade que promove

movimentação e avanço à sociedade como um todo e aos familiares e amigos

em particular. ―Eu preciso de você‖ talvez seja uma frase que os homens

estejam escutando pouco de nós, e isso talvez lhes esteja fazendo falta. Por

outro lado, nunca o ―eu amo você‖ foi pronunciado com tanta verdade.

30 de novembro de 2008.

A crônica A Mulher Independentefoi extraída do livro Feliz Por Nada -

coletânea de crônicas reunidas e publicadas em 2011. A crônicaanalisada foi

publicada em 30 de novembro de 2008.

A narrativa acontece durante uma sessão de autógrafos em que Martha

(que se apresenta na crônica como ela mesma, diferente das crônicas já vistas

77

até aqui em que o narrador não se identifica) foi abordada por uma senhora

que estava na fila de autógrafos. Aproximando-se da autora, a mulher disse-

lhe que a considerava fenomenal, mas que não queria ser casada com ela por

considerá-la muito independente. A partir daí, Martha começa, então, um

questionamento sobre a independência feminina.

Nesta narrativa temos apenas a participação de um sujeito discursivo,a

senhora na fila do autógrafo, que levanta um questionamento ao sujeito-

discursivo-narradora. A este sujeito-discursivo-personagem são conferidas

como características alta, elegante e madura. O adjetivo alta não traz conceitos

pré-estabelecidos consigo, mas os adjetivos elegante e madura, relacionados

com a afirmação do sujeito-discursivo-personagem de que a narradora é muito

independente, remetem a uma FD diferente da sua, levando em consideração

a idade – pelo adjetivo madura – e a classe social de maior poder aquisitivo –

pelo adjetivo elegante -, a senhora viveu em uma época em que as mulheres

eram mais submissas e reservadas, vivendo longe da independência do

sujeito-discursivo-narradora, além de desopacificar a estranheza que essa

atitude ainda causa em algumas pessoas. Vê-se também que osujeito-

discursivo-personagem (a senhora), ao usar a expressão fenomenal,

manifestaadmiração por essa independência, que na sua época de juventude

ainda não havia sido conquistada por completo.

O que se sabe sobre ao sujeito-discursivo-narradora é que é uma

escritora,o que se confirma através da passagemestava autografando meu

livro.Ainda, através da fala da senhora, mais especificamente sobre o

adjetivoque usa – independente -. A partir daí, a narradora explicita algumas

questões da sua vida, por meio das quais se consegue caracterizá-la. O

sujeito discursivo,na figura da narradora, caracteriza-se como uma mulher que

já morou sozinha, viajou sozinha e não se preocupa em ir ao cinema sozinha.

Para muitos, como a senhora na fila de autógrafos, a FD a que esses discursos

remetem seria constituída também por um sentimento de solidão, que remete à

independência como uma de suas causas. Uma construção de sentido

equivocada, segundo o próprio sujeito-discursivo-narradora, segundo a

qualquem anda só e toma suas próprias decisões é uma pessoa solitária e não

precisa de outras pessoas.

Nesta crônica destaqueicincoSDRs para análise, respectivamente,

78

SDR 1

―Te acho uma mulher fenomenal‖. [...] ―Mas eu não

queria ser casada contigo – tu és muito

independente!‖

...

SDR 2

O que estou sentindo? [...] Tristeza, respondi a mim

mesma [...]. Em que eu seria mais independente do

que qualquer outra mulher?

...

SDR 3

Fico imaginando que essa tal ―mulher

independente‖, aos olhos dos outros, pareça ser

uma pessoa que nunca precise de ninguém, [...] um

bloco de cimento.

...

SDR 4

[...] foram eles que me ensinaram a importância de

abrir mão de tutelas e a se colocar na vida com uma

postura própria, autônoma, mas nem por isso menos

amorosa e sensível. Independência nada mais é do

que ter poder de escolha.

E

SDR 5

[...] ainda há quem acredite que ser um bibelô (ou

fazer-se de) tem lá suas vantagens. Eu não vejo

quais. Acredito que a independência feminina é

estimulante, alegre, desafiadora, vital, [...]

79

Pode-se dizer que a mulher de antigamente, anterior à década de

1980/1990, aquela submissa aos desejos da família e do marido, que ficava em

casa ou que exercia apenas tarefas destinadas ao público feminino, nunca foi

vista com olhos de desprezo por isso. Era uma condição naturalmente imposta

pela sociedade da época.Prova disso é o queMallard (2008) explica quando diz

que devido à cultura patriarcal, durante muito tempo a mulher aceitou essa

condição de ser submissa. Isso pode ser constatado pelo fato de o sujeito-

discursivo-personagem,identificado aqui comoa senhora que foi solicitar um

autógrafo, ter feito o comentário que fez, que a identifica comoum sujeito-

discursivo que viveu em tempos em que a mulher era dependente do marido,

conforme se observa na SDR 1, te acho uma mulher fenomenal’. [...] Mas eu

não queria ser casada contigo – tu és muito independente! A partir da

constatação feita com veemência (veemência que lê pelo uso do advérbio de

intensidade muito seguido pelo ponto de exclamação)pela senhora, a

narradora indaga em que eu seria mais independente que qualquer outra

mulher? (SDR 2). O sujeito-discursivo-narradora verbaliza uma indagação

própria dos dias atuais, perguntando-se porque ela seria mais independente do

que outrasmulheres, se poderia ter utilizado, no lugar de mulher, o substantivo

pessoa, mostrando um discurso centrado na visão da independência feminina

especificamente. Note-se que antes da pergunta ela diz a mim[si] mesma

sentir-se triste, remetendo à independência que, na narrativa, na visão da

senhora está associada à solidão. Na FD de quea senhora faz parte – um

cenário onde a normalidade para as mulheres é a dependência - aquela que

era independente era vista como solitária, racionalista. A expressão A mim

mesma reforça mais um traço da independência do sujeito-discursivo-

narradora. Esta poderia ter feito a indagação à senhora que lhe fez a acusação

e talvezpudesse explicar-lhe com maior clareza a razãodo questionamento. No

entanto, ela prefere guardar a dúvida para si mesma.

Para confirmar essa leitura, vejamos a SDR 3, em que a narradora utiliza

a palavra pareça para expressar a suposição de que aos olhos dos outros,

pareça ser uma pessoa que nunca precise de ninguém. O uso do verbo

parecer,no Modo Subjetivo e como um auxiliar modal, evidencia que na

realidade a mulher independente precisa dos demais e que a ideia de que ela

nunca precise de alguém é apenas uma visão distorcida da FD em que foi

80

criada, em outros tempos até vivenciada, mas que não se encaixa mais nos

moldes de outras FDs características da sociedade atual e pelas quais a

mulher moderna transita. Essa associação distorcida é tida como um senso

comum por aqueles que são portadores dessa opinião, uma vez que a tomam

como verdade, sem conhecer a pessoa que estão julgando, julgamento este

feito com base naquilo que conheceram outrora. Há nesta crônica uma

metáfora, um bloco de cimento(SDR 3), utilizada pelo sujeito-discursivo-

narradora para aludir à falta de afeto que existiria na mulher independente, uma

vez que um bloco de cimento é firme, difícil de penetrar e de ser visualizado em

seu interior, além de ser gelado e sem cor, características estas que são

atribuídas às pessoas que não deixam transparecer seus sentimentos e, no

caso da crônica, às mulheres que seriam independentes. A partir da suposição

de que a mulher independente não é emotiva, o sujeito-discursivo-narradora diz

que aprendeu a se colocar na vida com uma postura própria (SDR 4), não

precisando depender de ninguém. O adjetivoprópria remete à sua

individualidade, à sua capacidade de tomar as próprias decisões e encarar a

vida com suas ideias, assim como o adjetivo autônoma, que surge logo após.

Faz, ainda, um contraponto, ao afirmarnem por isso menos amorosa e

sensível. O pronomemenos indica que, além da sua autonomia, ela é sensível

e amorosa tanto quanto as outras pessoas e iguala essa sensibilidade à sua

autonomia, nem por isso menos.

Mas a independência, ou sua definição, pode ser respondida de forma

simples, como a própria narradora que, enquanto sujeito discursivo, afirma que

a independência nada mais é, apenas é, simplesmente é, mostrando que não

há mistérios em torno da independência feminina, é, apenas,ter poder de

escolha.Note-se que a narradora utiliza três palavras, remetidas à

independência feminina, que não eram usuais na época em que a senhora que

comparecera à sessão de autógrafos viveu sua juventude – as palavras ter,

poder e escolha. Como exposto no capítulo referente, durante boa parte do

século XX, tais palavras não faziam parte do vocabulário e do cotidiano das

mulheres.Estas palavras só passaram a fazer parte da vida das mulheres a

partir das lutas e das conquistas por seus direitos.

Apesar de todo esse discurso construído sobre os prós e contras da

independência feminina, a conclusão a que chega a narradora da crônica, é de

81

que,na FD a que pertence uma significativa parcela da sociedade(SDR 5),ainda

há quem acredite que ser um bibelô ou fazer-se de tem lá suas vantagens.

Chamo a atenção para a expressão fazer-se de, que cria um efeito de sentido

designando que algumas mulheres ainda acreditam e vivem de uma forma

dependente. Mesmo almejando a independência, elas se fazem, elas fingem

ser dependentes para levar uma vida mais cômoda, em que não precisem

tomar decisões ou trabalhar o dia todo. Ela usa o substantivo masculinobibelô,

designador de um objeto utilizado como enfeite, de pouco valor que, quando

atribuído como característica a alguém, remete à ideia deuma pessoa frágil,

delicada, de boa aparência, porém inútil. O sujeito-discursivo-narradora vai

além. Acredita que ser um bibelô nos dias atuais não traz vantagens para a

mulher que sonha em assumir uma postura própria. e, Para tal afirmativa, usa

adjetivos como estimulante, alegre, desafiadora, vital, contrariando a metáfora

dobloco de cimento(SDR 3)com que membros da FD a que pertence o sujeito-

discursivo-personagem definem a mulher independente.

Nesta narrativa, o discurso construído começa a tomar forma a partir da

provocação do sujeito-discursivo-personagem, a senhora, (SDR 1),tu és muito

independente. É um discurso de conteúdo crítico, verbalizado e transmitidocom

êxito a um receptor específico, o sujeito-discursivo-narradora, que o recebe,

internaliza e se questiona a respeito dele, sem verbalizá-lo oucompartilhá-lo

com outros sujeitos discursivos. Essa atitude, aparentemente silenciosa,

contribui paraa defesa da independência feminina, em oposição aos

pressupostos de FDsque a sociedade cria e vivencia como normativas de

convivência, incorporando-as a seu cotidianoeque, quando colocadas face a

face com uma realidade diferente, como é o caso do sujeito-discursivo-

narradora, parecem absurdas e causam, ao mesmo tempo, estranheza e

admiração: estranheza por não fazer parte de suas vidas e admiração por ser

algo que almejam, mas não têm.

4.4.2 Arnaldo Jabor

Arnaldo Jabor é um cineasta, roteirista, diretor de televisão e de cinema,

jornalista, escritor, entre outras atividades, além de, claro, cronista. Jabor

82

nasceu em 1940 e, antes de adentrar na vida midiática que tem hoje, na

década de 60 foi militante e participou de movimentos contra a ditadura

militar.Participou também da formação no Cinema Novo, sendo seu primeiro

longametragem o documentário Opinião Pública.Produziu muitos outros ao

longo da sua carreira, como Toda Nudez será Castigada (1973), O Casamento

(1975), Tudo Bem (1978), Eu te amo (1980) e depois Eu sei que vou te amar. A

partir da década de 90, Jabor começou sua vida na imprensa, como colunista

no jornal O Globo, indo mais tarde para os programas jornalísticos da Rede

Globo. Em 2004 e 2006, lançou Amor é prosa, Sexo é poesia e Pornopolítica,

respectivamente, que se tornaram grandes Best-sellers. Arnaldo Jabor é muito

conhecido pelo tom irônico que adota nos seus comentários sobre os mais

variados fatos do cotidiano, levando essa ironia também para suas

crônicas.Além de colunista do jornal O Globo, Jabor já escreveu para O Estado

de São Paulo, Correio Popular, O Sul e A Gazeta.

4.4.2.1Os Homens desejam as mulheres que não existem – Crônica de Arnaldo

Jabor

Está na moda - muitas mulheres ficam em acrobáticas posições

ginecológicas para raspar os pêlos pubianos nos salões de beleza. Ficam

penduradas em paus-de-arara e, depois, saem felizes com apenas um

canteirinho de cabelos, como um jardinzinho estreito, a vereda indicativa de um

desejo inofensivo e não mais as agressivas florestas que podem nos assustar.

Parecem uns bigodinhos verticais que (oh, céus!...) me fazem pensar em...

Hitler.

Silicone, pêlos dourados, bumbuns malhados, tudo para agradar aos

consumidores do mercado sexual. Olho as revistas povoadas de mulheres

lindas... e sinto uma leve depressão, me sinto mais só, diante de tanta oferta

impossível. Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de

"objetos", produziu mulheres livres como coisas, livres como produtos perfeitos

para o prazer. A concorrência é grande para um mercado com poucos

consumidores, pois há muito mais mulher que homens na praça (e-mails

indignados virão...). Talvez este artigo seja moralista, talvez as uvas da inveja

83

estejam verdes, mas eu olho as revistas de mulher nua e só vejo paisagens;

não vejo pessoas com defeitos, medos. Só vejo meninas oferecendo a doçura

total, todas competindo no mercado, em contorções eróticas desesperadas

porque não têm mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no

Brasil; já expuseram o corpo todo, mucosas, vagina, ânus.

O que falta? Órgãos internos? Que querem essas mulheres? Querem

acabar com nossos lares? Querem nos humilhar com sua beleza

inconquistável? Muitas têm boquinhas tímidas, algumas sugerem um susto de

virgens, outras fazem cara de zangadas, ferozes gatas, mas todas nos olham

dentro dos olhos como se dissessem: "Venham... eu estou sempre pronta,

sempre alegre, sempre excitada, eu independo de carícias, de romance!..."

Sugerem uma mistura de menina com vampira, de doçura com loucura e

todas ostentam uma falsa tesão devoradora. Elas querem dinheiro, claro,

marido, lugar social, respeito, mas posam como imaginam que os homens as

querem.

Ostentam um desejo que não têm e posam como se fossem apenas corpos

sem vida interior, de modo a não incomodar com chateações os homens que

as consomem.

A pessoa delas não tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa,

frágil, tênue, morando dentro dele.

Mas, que nos prometem essas mulheres virtuais? Um orgasmo infinito?

Elas figuram ser odaliscas de um paraíso de mercado, último andar de uma

torre que os homens atingiriam depois de suas Ferraris, seus Armanis, ouros e

sucesso; elas são o coroamento de um narcisismo yuppie, são as 11 mil

virgens de um paraíso para executivos. E o problema continua: como abordar

mulheres que parecem paisagens?

Outro dia vi a modelo Daniela Cicarelli na TV. Vocês já viram essa moça?

É a coisa mais linda do mundo, tem uma esfuziante simpatia, risonha,

democrática, perfeita, a imensa boca rósea, os "olhos de esmeralda nadando

em leite" (quem escreveu isso?), cabelos de ouro seco, seios bíblicos, como

uma imensa flor de prazeres. Olho-a de minha solidão e me pergunto: "Onde

está a Daniela no meio desses tesouros perfeitos? Onde está ela?" Ela deve

ficar perplexa diante da própria beleza, aprisionada em seu destino de

84

sedutora, talvez até com um vago ciúme de seu próprio corpo. Daniela é tão

linda que tenho vontade de dizer: "Seja feia..."

Queremos percorrer as mulheres virtuais, visitá-las, mas, como conversar

com elas? Com quem? Onde estão elas? Tanta oferta sexual me angustia, me

dá a certeza de que nosso sexo é programado por outros, por indústrias

masturbatórias, nos provocando desejo para me vender satisfação. É pela

dificuldade de realizar esse sonho masculino que essas moças existem,

realmente. Elas existem, para além do limbo gráfico das revistas. O contato

com elas revela meninas inseguras, ou doces, espertas ou bobas mas, se elas

pudessem expressar seus reais desejos, não estariam nas revistas sexy, pois

não há mercado para mulheres amando maridos, cozinhando felizes, aspirando

por namoros ternos. Nas revistas, são tão perfeitas que parecem dispensar

parceiros, estão tão nuas que parecem namoradas de si mesmas. Mas, na

verdade, elas querem amar e ser amadas, embora tenham de ralar nos haréns

virtuais inventados pelos machos. Elas têm de fingir que não são reais, pois

ninguém quer ser real hoje em dia - foi uma decepção quando a Tiazinha se

revelou ótima dona de casa na Casa dos Artistas, limpando tudo numa faxina

compulsiva.

Infelizmente, é impossível tê-las, porque, na tecnologia da gostosura,

elas se artificializam cada vez mais, como carros de luxo se aperfeiçoando a

cada ano. A cada mutação erótica, elas ficam mais inatingíveis no mundo real.

Por isso, com a crise econômica, o grande sucesso são as meninas belas e

saradas, enchendo os sites eróticos da internet ou nas saunas relax for men,

essa réplica moderna dos haréns árabes. Essas lindas mulheres são pagas

para não existir, pagas para serem um sonho impalpável, pagas para serem

uma ilusão. Vi um anúncio de boneca inflável que sintetizava o desejo

impossível do homem de mercado: ter mulheres que não existam... O anúncio

tinha o slogan em baixo: "Sheneeds no foodnorstupidconversation." Essa é a

utopia masculina: satisfação plena sem sofrimento ou realidade.

A democracia de massas, mesclada ao subdesenvolvimento cultural,

parece "libertar" as mulheres. Ilusão à toa. A "libertação da mulher" numa

sociedade ignorante como a nossa deu nisso: superobjetos se pensando livres,

mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres

meninas famintas de amor e dinheiro. A liberdade de mercado produziu um

85

estranho e falso "mercado da liberdade". É isso aí. E ao fechar este texto, me

assalta a dúvida: estou sendo hipócrita e com inveja do erotismo do século 21?

Será que fui apenas barrado do baile?

03 de dezembro de 2002.

Jabor comenta, nesta crônica, sobre qual é a mulher idealizada pelos

homens e sobre o que as mulheres fazem na tentativa de se tornarem essas

mulheres. O texto contém uma crítica à sociedade atual, que vê apenas

aparência. Foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, no Caderno 2, em

03 de dezembro de 2002.

Nesta narrativa temos apenas o personagem narrador, que é o sujeito

discursivo que expõe e relata FDs acerca de outros personagens que não são

definidos, mas integram um todo generalizado. Basicamente, a crônica retrata

as mudanças de valores na sociedade, relacionadas ao prazer e ao sexo, em

que a mulher, antes doce e companheira, transformou-se em um produto que

se compra em qualquer lugar para atender aos desejos masculinos e

proporcionar prazer. A premissa da FD retratada aqui é de que, depois de todo

o caminho que o gênero feminino percorreu para alcançar um posto igualitário

na sociedade e a liberdade de pensamento e de expressão, as mulheres

tornaram-se livres para ser o que quiserem – exceto a realidade de que são

escravas dos padrões de beleza impostos, principalmente, pela mídia.

O que se sabe a respeito do sujeito discursivo – o narrador – é que ele

viveu no século XX a julgar pelos discursos que ele faz referente a uma época

em que o sexo era mais valorizado e as mulheres ainda não eram objetos

sexuais. Não se tem mais nenhum ponto de referência sobre sua profissão ou

mesmo vida pessoal. O discurso desta crônica não está voltado a conhecer o

narrador ou mesmo algum personagem, mas sim tratar de mudança de valores

relacionada às mulheres e no que culminou a busca pela liberdade de

expressão.

Da crônica escolhida, separei seteSDRs, apresentadas a seguir:

SDR 1

86

[...]a vereda indicativa de um desejo inofensivo e não

mais as agressivas florestas que podem nos

assustar.

...

SDR 2

[...]tudo para agradar aos consumidores do mercado

sexual.

...

SDR 3

Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa

liberdade de "objetos", produziu mulheres livres

como coisas, livres como produtos perfeitos para o

prazer.

...

SDR 4

[...]eu olho as revistas de mulher nua e só vejo

paisagens; não vejo pessoas com defeitos, medos.

Só vejo meninas oferecendo a doçura total, todas

competindo no mercado[...]

...

SDR 5

Tanta oferta sexual me angustia, me dá a certeza de

que nosso sexo é programado por outros, por

indústrias masturbatórias, nos provocando desejo

para me vender satisfação.

...

87

SDR 6

Elas têm de fingir que não são reais, pois ninguém

quer ser real hoje em dia[...]

e

SDR 7

A democracia de massas, mesclada ao

subdesenvolvimento cultural, parece "libertar" as

mulheres. Ilusão à toa. [...] A liberdade de mercado

produziu um estranho e falso "mercado da

liberdade".

A premissa do discurso que subjaz nesta crônica é de que as mulheres

se tornaram produtos. Na SDR 1 verifica-se que antigamente, antes da década

de 1990 – constatação posterior a um histórico sobre a mulher do século XX e

XXI –, o sexo era algo para ser descoberto, algo desafiador, agressivas

florestas que podem nos assustar. A expressão Agressivas florestas se

relaciona com a depilação feminina, comoinforma o sujeito discursivo autor no

decorrer da crônica, acrescentando que foram diminuindo os pelos, de florestas

para pequenos jardins estreitos;jardins são bonitos, mas não assustam, não

desafiam, não despertam o desejo desafiador de adentrar a floresta para

descobrir o que ela esconde; os jardins despertam apenas um desejo

inofensivo. Quem se depara com um jardim logo constata o que há nele, não

há a euforia da descoberta, não há o prazer de explorar o desconhecido, pois,

na verdade, não há desconhecido.

Porém, essa mudança na forma da depilação feminina é mais um passo

para agradar o que o narrador chama de consumidores do mercado sexual. O

sujeito discursivo, apresentado na forma do narrador,utiliza a expressão

mercado sexual (SDR 2)referindo-se às vastas possibilidades de conseguir

prazer sexual existentes. Um mercado nada mais é do que um local onde

existem diversos produtos à venda, cada um com seu preço e suas

características, expostos em prateleiras e em seções, onde quem deseja ou

precisa do produto vai até ele e adquire o que mais lhe agradar. Um mercado

88

sexual seria um local onde os produtos são mulheres, apresentadas das mais

variadas formas, como revistas, DVDs, pôsteres, loiras, morenas, enfim, de

tudo um pouco, para agradar aos consumidores, ou seja, para agradar aos

homens que buscam o produto, que desejam comprar um produto neste

mercado sexual. Concomitantemente a isso, a SDR 3 também traz este

conceito:vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de

"objetos", produziu mulheres livres como coisas, livres como produtos perfeitos

para o prazer. Percebe-se que o sujeito discursivo utiliza as palavras objetos,

coisas e produtos, remetendo novamente à reificação das pessoas, mais

especificamente das mulheres, que são transformadas em objetos, coisas e

produtos, rótulos que são colocados pela sociedade de acordo, neste caso,com

a FD capitalista e as demais FDsnela coexistentes, graças à condição de

porosidade própria de todas as formações discursivas.

Max Weber (2004, p. 166)se refereao homem moderno

como“especialistas sem espírito, sensualistas sem coração; nulidades que

imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”, sendo a

reificação consequência desse homem,mediante a atribuição de valores a

coisas que não os têm e transformando pessoas, que têm valores, em objetos

com valor de mercado e não de caráter. Ao mesmo tempo em que o sujeito-

discursivo- narrador usa essas palavras para designar a mulher do século XXI,

ele usa também o termo livres, porém, o adjetivolivre, que denota uma pessoa

que tem liberdade de decidir por si, está associado às palavras mencionadas

anteriormente: objeto, coisas e produtos, levantando uma ironia. Uma vez que

um objeto não pensa, ser livre é uma condição que jamais atingirá. Um objeto é

pertencente a alguém, e é manipulado por esse alguém. Quando uma mulher é

livre como um objeto, como um produto, essa liberdade é apenas ilusória.

Da mesma forma, como se identifica na SDR 2com a expressãomercado

sexual, e na SDR 3com o emprego dos substantivos coisas, objeto e produtos,

na SDR 4 também há mais uma referência a reificação das mulheres. É

quando são comparadas à paisagens e estão competindo no mercado

oferecendo aquilo que elas possuem de melhor. Estão expostas em prateleiras,

fazendo marketing para vender seu produto, que será comprado pelo rótulo.

Notemos que o sujeito-discursivo-narrador utiliza o substantivo paisagens e

logo depois defeitos, medos. Na FD capitalista sabe-se que paisagens que

89

façam parte dos mundos vegetal e mineral não têm e nem expressam

sentimentos, uma paisagem não sente medo. Essa proposital ausência de

sentimentos é ratificadatambém na SDR 6, com a expressãoelas tem de fingir

que não são reais, pois ninguém quer ser real hoje em dia.E qual o motivo que

leva as mulheres a usarem da liberdade que conquistaram para se tornarem

objetos de desejo do público masculino? Qual o motivo pelo qual ninguém quer

ser real hoje em dia?

Não há uma resposta específica para esses questionamentos, mas é

possível estudar esta questão pelo viés de uma sociedade que, cada vez mais,

vem sendo pautada pela modernidade, pela mídia, por uma imposição de

padrões que construíram FDsque levam as pessoas(no caso da crônica, as

mulheres) a mostrarem algo que não lhes pertence verdadeiramente. Como

explica Debord (1997, p. 13), emA sociedade do espetáculo, “toda a vida das

sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia

como uma imensa acumulação de espetáculo. Tudo o que era diretamente

vivido se esvai na fumaça da representação”.

Além do corpo feminino como produto, tem-se, também, o corpo como

produtor de discursos, uma vez que é ele que se vende. Não se trata um

discurso verbalizado. Pelo contrário, é um discurso construído através de

imagens, expressões, posições remetendo ao prazer que o consumidor terá ao

adquirir aquele produto.

O discurso do corpo, como explica Louro (2000, p. 6), regula, normatiza,

instaura saberes, que produzem "verdades", verdades constituídas em forma

de FDs que regem a vida em sociedade. Acrescenta elaque esses discursos

não são únicos, mas que cada vez mais novos discursos são construídos e

tentam se impor em meio a este cenário mercadológico. Em concordância,

tem-se na SDR 5 a afirmação Tanta oferta sexual me angustia, me dá a

certeza de que nosso sexo é programado por outros, por indústrias

masturbatórias, nos provocando desejo para me vender satisfação.O provocar

desejo para vender satisfação é o discurso do corpo encontrado nesta SDR

que, além de ter o corpo como como produto, é elaborado por outros, por uma

indústria masturbatórias.O sujeito discursivo usa o substantivo indústria, o que

seria um local de fabricação em massa de determinado produto. Neste caso, o

90

produto é o corpo feminino; mais um exemplo de reificação, juntando-se aos

encontrados das SDRs 2, 3 e 4.

Atentemos, ainda, para a palavra programado;o sexo é programado,

quando uma ação é programada ela já é estudada com antecedência, tudo é

testado e melhorado até que esteja em conformidade para que, na hora em

que for executada a ação, tudoocorra bem. No caso da temática abordada na

crônica, o produto deve provocar desejo desde o primeiro contato do

consumidor com o produto até que ele, consumidor,alcance a satisfação que

procurava, atestando que a indústria cumpriu com êxito a tarefa de elaboração

do produto.

Juntando-se a este meio de uma indústria que programa seu produto

para que ele seja adquirido com sucesso, temos a SDR 7, A democracia de

massas, mesclada ao subdesenvolvimento cultural, parece "libertar" as

mulheres. Ilusão à toa. [...] A liberdade de mercado produziu um estranho e

falso "mercado da liberdade", insinuando que a liberdade que as mulheres

acreditam ter conquistado, na verdade é apenas uma ilusão que advém da

democracia das massas, ou seja, um pensamento massificado, do qual um

grande grupo compartilha e que constrói uma FD mascarada de democracia,

mas que somente parece. O pareceque o narrador utiliza instiga a essa

liberdade aparente, tida como verdadeira para esta massa, mas que não o é

realmente. Outro ponto do qual surge essa liberdade ilusória é o

subdesenvolvimento cultural.Enfim, muito do que se vê no mercado sexual é

tido como cultura, uma cultura que banaliza o sexo e transforma a mulher neste

objeto, neste produto de que fala a crônica, e tudo isso é mascarado como

pertencendo a uma nova FD, em que a mulher é livre e alcançou aquilo por

que sempre lutou. Se tal ocorresse, certamente se estaria diante de um

acontecimento discursivo. No entanto, como o sujeito-discursivo-narrador

mesmo afirma,é ilusão à toa. Da mesma forma como a liberdade ilusória

apreendida da SDR 3, aqui temos, sim, uma liberdade ilusória.

Essa liberdade aparente que, aos olhos das mulheres, dá-lhes o poder

de fazer aquilo que querem, na verdade as transformou em mulheres

submissas aos desejos do mercado, um “mercado da imagem de liberdade”,

onde tudo é possível, desde que seus produtos sejam vendidos. Um mercado

que, para atingir e superar suas expectativas, explora de toda e qualquer forma

91

este produto que, na verdade, não é o corpo feminino, mas a imagem desse

corpo.

O discurso construído nesta crônica é um discurso produzido por apenas

um sujeito discursivo, que faz apontamentos acerca da liberdade feminina, da

transformação dessa imagem de liberdade em produto mercadológico e da

mudança de valores existente no período que mediou a passagem do século

XX para o XXI, época em que se deu o maior salto feminino na conquista de

seus direitos.

Por oportuno, é importante recordar que muitas das características

discursivas percebidas em um discurso literário como identificadorasde uma FD

resultam do olhar atento com que o sujeito-discursivo-narrador acompanha as

práticas discursivas a seu alcance, da percepção sobre as condições de

produção que cercam sua criação, ou em que se viu imerso durante o ato de

interlocução com o próprio discurso analisado.

92

5 A MULHER DOS SÉCULOS XX E XXI REPRESENTADA NA CRÔNICA

BRASILEIRA: COMPARAÇÕES E RESULTADOS

Neste capítulo apresento o viés utilizado para identificar a representação

da mulher nas crônicas estudadas. Após ler e estudar atentamente o discurso

presente em cada uma das crônicas que constituíram objeto de pesquisa,

delimitei alguns pontos para aprofundara investigação, de modo a explorar

melhor os resultados.

Pelas características do discurso que hoje permeia as relações sociais –

em que sobressai a imagem da mulher inserida na sociedade, ressalto como a

mulher foi representada por cada cronista.

Assim, nas crônicas escritas por mulheres (Clarice Lispector e Martha

Medeiros), há uma mulher que apresenta como característica fundamental o

trabalhar fora, que usa de seus direitos, que é independente; que, apesar das

FDs construídas com uma visão que já não é a única sobre a sua imagem, atua

na sociedade sem se importar com regras pré-estabelecidas de conduta.

Já nas crônicas escritas por homens (Rubem Braga e Arnaldo Jabor),

percebi que não há essa característica da mulher independente e que trabalha

fora, mas sim uma representação mais relacionada ao seu ser, porém, de uma

forma diferente em cada cronista. Se em Rubem Braga encontramos a

descrição de uma mulher discreta, que prima pela família e pelo marido, em

Arnaldo Jabor temos uma mulher que fez da suaaparência a credencial para se

inserir na sociedade, principalmente na sociedade masculina, presa à sua

própria liberdade,embora essa liberdade exista criada sob a perspectiva do

olhar masculino.

Inicialmente, apresento uma análise de cada crônica, entendendo que,

em separado, os resultados comparativos surgem melhor delineados.

Paralelamente, no entanto, apresentoainda uma ligação comparativa entre

elas. Começo por Lispector e sua crônica Enigma, em que uma das

personagens é a patroa, da qual não se tem referência de profissão, e a outra é

caracterizada como empregada doméstica, sendo representada como uma

93

mulher que trabalha fora. Não foi possível identificar se esta mulher possui

família ou mesmo qualquer outro aspecto da sua vida que não seja o

profissional. Os aspectos presentes na crônica que identificam a mulher como

profissional sãoSDR 1[...] ela estava vestida de uniforme listrado de

empregada, SDR 2[...] entrando pela porta de serviçoeSDR 3[...] estava

uniformizada.

Tão logo há a descrição de sua profissão, começa um questionamento

levantado pela narradora desta crônica, que é onisciente, quando diz (SDR

4)[...]mas falava como dona de casa e (SDR 5)[...] seu rosto era o de dona de

casa. Pelo conhecimento prévio adquirido sobre as características de uma

empregada doméstica, principalmente a do século XX, foi possível identificar

essa profissão na personagem e, apesar de a narradora sugerir que a

personagem estava vestindo um uniforme de empregada, esse discurso não

está verbalizado na crônica. Porém, há um já-lá que sustenta a narrativa,

possível de ser aferido tanto na descrição do traje da serviçal, quanto na

mençãoà porta de serviço, que, principalmente neste período em que a crônica

é ambientada, é a porta destinada a entrada e saída dos serviçais

dasresidências de pessoas de maior poder aquisitivo, para que não se

“misturem” com os donos/patrões. Do mesmo modo, tem-seo listrado como

característica básica de uniformes das empregadas domésticas que prestam

serviços nessas residências.

De acordo com Ferreira (2005),“passa-se a entender a linguagem

enquanto produção social, considerando-se a exterioridade como constitutiva,

em que o sujeito deixa de ser o centro e origem do seu discurso para ser

entendido como uma construção polifônica, lugar de significação

historicamente constituído”, ou seja, para que eu pudesse analisar esta crônica,

foi necessário estudar os fatos e pressupostos que envolvem a cena, para

entender o centro e, assim,realizar esta construção de sentido, este novo

discurso que complementa o anterior, entender que formações discursivas

eram identificadas a partir de determinadas características e que sentidos e

significados eram atribuídos de acordo com essas características.

Além disso, outro fato que faz distinção é a fala da empregada para a

patroa, como observamos (SDR 6)[...] a vida tem que ter um aguilhão e (SDR

7)e usou a palavra aguilhão, de que eu gosto. Estas SDRs reforçam o ponto de

94

vista de Ferreira, a que ainda acrescento o que afirmaOrlandi(2005), de que o

texto não é uma superfície plana, mas que parte em inúmeras direções e,

ainda, que em todo discurso encontramos marcas de outros discursos. Com

base nesses conceitos,pude chegar a esta construção de sentido da crônica

Enigma e constatar que uma das personagens era a patroa e, por isso,

pertencia a uma FD diferenciada de outra, a que pertencia sua serviçal, em sua

condição de empregada doméstica.

Na crônica de Rubem Braga pude perceber que a questão da mulher

enquanto profissional não está em foco, uma vez que ele não faz menção ao

trabalho da mulher representada.

Na crônica A viúva na praia, a personagem que ganha foco não ganha

descrição de sua vida profissional. O que vaza é, apenas,que acabou de ficar

viúva, que tem um filho e que a família possui posses, uma vez que (SDR 1)só

ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um Citroen, em uma época em que

não muitas pessoas possuíam carros, mais ainda sendo o Citröen um carro

somente acessível a pessoascom uma boa condição financeira. Em relação ao

modo como a mulher é vista, também não há muita informação, uma vez que

apenas o narrador fala sobre ela, em um discurso que se relaciona mais com

os sentimentos e pensamentos dele do que propriamente com o que se passa

em sua vida.

Entretanto, podemos notar nas falas do narrador, como em (SDR 2)a

viúva na praia me fascinou e(SDR 3)fiquei a contemplar a viúva, que seu olhar

sobre a viúva é tão respeitoso agora quanto antes, quando o marido dela vivia.

Essa constatação se confirma mediante as expressões(SDR 4)sabia quem era,

que era casada, que talvez me conhecesse de vista, não a olhava de

frente;(SDR 5)ela tem, como sempre, um ar decente; não olha para ninguém, a

não ser para o menino;(SDR 6)não é dessas que chama a atenção, é discreta

e (SDR 7)ela está sentada quieta, séria.

Medianteos recortes mencionados, nota-se que, pelos comentários do

narrador e conhecendo os costumes da época, a viúva é uma mulher de

família, que respeita seus preceitos, mesmo com o marido doente e definhando

até a morte e mesmo depois da morte do mesmo, características que,

remetendo à historicidade discursiva, eram fundamentais em uma mulher. As

FDs determinantesdo discurso solitário do sujeito-discursivo-narrador,

95

acopladas e vistas como um todo, demonstram conter as características

mencionadas, enquanto o modo como ele constrói e coloca esses discursos na

crônica também evidencia que tais características eram importantes e tidas na

categoria das qualidades femininas.

Na crônica A Mulher Independente, de Martha Medeiros, temos uma

mulher que não depende de ninguém para encaminhar a sua vida. Esta se

dácom a interação social da mulher como trabalhadora externa. Essa

independência é perceptível em vários momentos da crônica, como em(SDR

1)Algumas não gostam de ir ao cinema sozinhas, já eu não me importo;(SDR

2)poucas moraram sozinhas antes de casar, eu morei;e(SDR 3)quase

nenhuma, que eu lembre, viajou sozinha, eu já. Esses comentários surgiram

após um questionamento de uma senhora de que a personagem e narradora

da crônica era muito independente. Depreende-se que esse comportamento

de agir sozinha pode causar estranhamento em pessoas de mais idade, uma

vez que elas pertencem a uma época em que a mulher era mais dependente,

em que não era comum ver uma mulher morando sozinha, por exemplo. Era

casada e devotava boa parte do seu dia e da sua vida ao marido, ou então à

própria família, quase nunca para si.A personagem diz também que começou a

sonhar com independência com a ajuda de livros. Essa independência acaba

por torná-la, aos olhos dos outros, uma mulher fria, que não tem sentimentos e

que não precisa de ninguém, como se percebe nos recortes(SDR 4)eu não

queria ser casada contigo;(SDR 5)uma pessoa que nunca precise de ninguém,

que nunca peça apoio, que jamais chore, que não tenha dúvidas, que não

valorize um cafuné; e (SDR 6)um bloco de cimento.

Retomando a história feminina, da luta da mulher para alcançar

conquistas, percebe-se, ainda, que o sujeito discursivo desta crônica,

apresentado como personagem/narradora, valoriza o que foi conquistado,

constatação esta feita com base nestes diálogos: (SDR 7)quase todas as que

conheço trabalham, ganham seu próprio sustento, defendem suas opiniões e

votam em seus próprios candidatos;(SDR 8)a independência feminina é

estimulante; e (SDR 9)promove avanço e movimentação à sociedade como um

todo.

Analisando essas afirmativas e sob a perspectiva da AD, percebo que

há, em cada crônica,uma diferença na forma de retratar a mulher. Embora em

96

ambas as cronistas a mulher trabalhe fora, em Clarice temos uma mulher mais

reservada, apesar de quebrar o paradigma de que empregada tem de ser

diferente e submissa ao patrão e agir de forma a levantar suspeita sobre sua

profissão;em Martha temos uma mulher independente, que sabe, inclusive,

exercer o direito ao voto e expor sua opinião sem precisar da interferência de

outras pessoas.Seu modo de ser e agir contribui também para um processo de

desconstrução de FDs que contêm a ideia de que uma mulher independente

não possui sentimentos e não necessita da ajuda de outras pessoas.

Na crônica de Arnaldo Jabor, a única menção que o cronista faz sobre o

profissionalismo da mulher tem relação com o trabalho que envolve o corpo e a

sensualidade, como as modelos que posam para outdoors, ou que estampam

capas de revistas masculinas e que, aos olhos dele, acabam perdendo a sua

verdadeira essência ao explorar a busca pelo corpo perfeito e transformar isso

em um produto vendido em uma prateleira. Esse exagero feminino pela busca

da fama usando o corpo como instrumento causa um distanciamento entre a

mulher e o homem que a “adquire” através de revistas, outdoors ou mesmo

pela televisão. Sobre usar o corpo como profissão, em Os Homens desejam as

mulheres que não existem podemos perceber através dos discursos (SDR

1)tudo para agradar aos consumidores do mercado sexual;(SDR 2)livres como

produtos perfeitos para o prazer;(SDR 3)a concorrência é grande para um

mercado com tão poucos consumidores, pois há muito mais mulheres do que

homens na praça;(SDR 4)oferecendo a doçura total;(SDR 5)todas competindo

no mercado, (SDR 6)nosso sexo é programado por outros, por indústrias

masturbatórias; e (SDR 7)provocando desejo para vender satisfação.

Jabor explicita em sua crônica (e isso se confirma através dos recortes

citados) uma certa indignação com o rumo que tomou o poder feminino e com

a exploração mercadológica existente a respeito da mascarada liberdade

feminina. As frases do cronista são ainda mais críticas e impactantes,

demonstrando sua indignação em relação àquilo em que a luta das mulheres

resultou, no que tanto esforço para serem vistas se transformou. Seu

posicionamento discursivo é diferente do de Martha Medeiros,que retrata uma

mulher guerreira e independente que soube aproveitar as oportunidades. Jabor

retrata a mulher que transformou suas conquistas em mercadoria e que, por

isso, ficou cada vez mais distante do mundo real. Constata-se a afirmação

97

através de recortes como (SDR 8)vejo que no Brasil o feminismo se

vulgarizou;(SDR 9)só vejo paisagens; e(SDR 10)ninguém quer ser real.

Depois da análise, percebe-se que houve diversas maneiras de retratar

as mudanças que ocorreram do século XX para o século XXI. Assim como na

AD cada analista tem uma visão, da mesma forma ocorreu nas crônicas.

Delasfiz leituras particulares a partir de leituras de alguns cronistas, podendo

perceber semelhanças e diferenças ao analisá-las comparativamente. Percebi

diferença no discursos de cada um e que tratam a mulher de forma específica e

diferente um do outro. Assim,em Clarice temos uma empregada que foge aos

padrões da época, enquanto em Martha surge uma mulher independente que

contraria, também, as FDs em que mulher independente não precisa de ajuda

e não tem sentimentos; em Braga, a mulher é uma viúva recatada, que o deixa

pensativo e que o sol que a envolve lhe causa ciúmes por não ser ele a

envolvê-la; já em Jabor surge a transformação da liberdade feminina em

ilusão, do corpo em objeto e do sexo em banalização.

98

CONCLUSÃO

Sendo a AD um campo teórico que permite a análise de construções

ideológicas presentes em um discurso, aqui ela foi utilizada com o fim de

responder ao seguinte questionamento: houve mudança na representação da

mulher ao longo do século anterior (XX) e no início deste (XXI) nas crônicas

brasileiras? A crônica, gênero escolhido para efetuar o mencionado estudo, é

um gênero que permeia os limites do jornalismo e da literatura, sem encontrar

ancoragem em um ou outro, circunstância que vai ao encontro do meu

interesse pessoal, uma vez que venho da linha jornalística com passagens pelo

meio literário. Assim como a AD possibilita essa desconstrução linguística para

que se obtenha um melhor entendimento sobre o objeto, no caso a crônica, a

LC também oferece um grande auxílio, proporcionando abertura para que os

dados obtidos sejam cruzados comparativamente, fato que permitiu a

efetivação deste trabalho. Além disso, a pesquisa esteve amparada em

interesses de ordem social, visando à contribuição para trabalhos futuros sobre

o tema, servindo, talvez, de referência ou mesmo de auxílio.

Após a análise das crônicas, posso salientar que assim como a crônica

retrata o momentâneo, também o foi com a mulher representada neste gênero,

uma vez que foi constatada a mudança na forma como ela foi descrita,

principalmente pelo viés cronista homemversus cronista mulher. Foi perceptível

também a diferença de enfoque presentenas crônicas dependendo da época

em que retrataram a mulher. Ferro e Ferro (2003, p. 3) afirmam que “uma das

características marcante da crônica é a opinião gerada pelo escritor, quase

sempre com um tom de protesto ou de argumentação”. Nestas crônicas

analisadas pude perceber que cada cronista apresenta em suas crônicas um

pouco disto: argumentação e protesto, sempre respeitando a história de cada

época.

Percebi um avanço nas crônicas escritas por mulheres, de Clarice até

Martha. Ambas falam sobre a mulher como trabalhadora, porém Martha retrata

essa realidade de forma muito mais independente, muito mais contemporânea,

representando os dias atuais, enquanto que Clarice trata o tema de uma forma

99

que respeita a época, que não é nem muito abusivo para as décadas de

1960/1970 e nem muito retraída. Mesmo assim, causa uma certa estranheza

que uma de suas personagens – a empregada doméstica – demonstre traços

de uma certa modernidade e de uma certa liberdade feminina prestes a ser

alcançada.

Nas crônicas escritas por homens,percebe-se que a mulher descrita por

Braga continua sendo idolatrada, mas agora não mais pela doçura, pela

essência, pelo caráter, mas sim pela beleza exterior, pelo belo corpo – cada

vez mais artificial – e pela capacidade que tem de despertar o prazer masculino

– características presentes na crônica de Jabor. A diferença encontrada para

retratar essas mudanças entre as crônicas é que, em Jabor, por exemplo, tem-

se o uso do corpo como produto, da imagem da mulher como mercadoria,

enquanto que nas outras crônicas a mulher não é vista como produto, mas

como pessoa, com essência. Essa diferença constatada em crônicas escritas

por homens e por mulheres há muito já vem sendo notada, como afirmouSimon

(2006), ao reconhecer que

O papel da mulher na crônica brasileira do século XX é significativo não só pela autoria que divide espaço com um grande número de cronistas homens com projeção mas também pela representação feminina que emerge como uma das maiores constantes nesta modalidade (SIMON, 2006, p. 62).

Conclui-se que o sujeito discursivomulher, tal como representado em

crônicas brasileiras dos séculos XX e XXI, seguiu as evoluções dos séculos.

Sua imagem, de maneira geral, não foi elencada permanentemente de forma

submissa ao homem. Foi possível perceber que o discurso vazado pela

conduta femininafoi registrado nas crônicas com fidelidade à gradativa

transformação da força feminina, à forma como ela é capaz de cuidar da sua

vida. Cada cronista usa de uma particularidade para propor esta representação

e nem todas foram positivas, como a mulher de Jabor, que se torna escrava da

própria liberdade e dos padrões impostos pela sociedade. Crendo que está

gozando de seus direitos,na verdade,ela é submissa a uma sociedade que a

quer assim. A mulher de Lispector se expressa como se não pertencesse a sua

classe, já demonstrando traços da mulher moderna que viria com o século XXI

e a de Martha expressa isso de fato. Esta mulher é a evolução daquela de

100

Lispector. Braga enaltece a vivacidade e a beleza da mulher em si mesma, não

dando importância a nenhum aspecto profissional, apenas à essência de ser

mulher. Para fins de conclusão, a mulher foi representada, nas crônicas do

século XX e XXI, de maneira similar à evolução da própria história delas, uma

mulher guerreira, uma mulher capaz e que, ao alcançar o século XXI com suas

mudanças, teve a oportunidade de fazer suas escolhas.

Acredito, ao fim desta análise, que este trabalho possa proporcionar a

futuros estudantes do tema, tanto da crônica, quanto das mulheres, quanto da

LC e da AD, uma possível ajuda teórica na elaboração de trabalhos posteriores

a este, à luz do campo jornalístico e do campo literário, assim como despertar o

próprio interesse em estudar este tema.

Como já salientei em diversas outras vezes sobre a crônica e seu

hibridismo, penso que este tema sempre poderá ser olhado sob novos vieses,

que serão primordiais para despertar o interesse de novos pesquisadores,

assim como a LC e a AD, que formam um alicerce reforçado para o

desenvolvimento de pesquisas, uma vez que, como afirma Orlandi (2003, p.

11) “pela fecundidade do campo de questões que inaugura no seio das

disciplinas da linguagem, a análise de discurso tem sua presença efetiva

desenhada nesse campo [da linguagem, no qual se encaixa a crônica]”. Em

paralelo aOrlandi e sua percepção sobre o papel da AD, Carvalhal (2006, p. 6)

afirma que, ao observar estudos em LC, pode-se constatar que “pela

diversificação dos objetos de análise, concedem à literatura comparada um

vasto campo de atuação”. Dito isso, pensando-se na possibilidade de estudos

que podem ser levantados e nos grandes nomes que temos nestas áreas, da

mesma forma como eu constatei os perfis da representação da mulher em

crônicas brasileiras dos séculos XX e XXI, percebo queo arcabouço teórico

desses dois campos do saber colabora para que toda a pesquisa em alguma

dessas áreas e de outras afins alcance êxito esperado.

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