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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CURSO DE DOUTORADO BEATRIZ PEREIRA DE SANTANA MOÇAMBIQUE É MANINGUE NICE: reflexões sobre lusofonia e identidade SÃO PAULO 2013

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

CURSO DE DOUTORADO

BEATRIZ PEREIRA DE SANTANA

MOÇAMBIQUE É MANINGUE NICE:

reflexões sobre lusofonia e identidade

SÃO PAULO

2013

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BEATRIZ PEREIRA DE SANTANA

MOÇAMBIQUE É MANINGUE NICE:

reflexões sobre lusofonia e identidade

Tese apresentada à linha de pesquisa Linguagem, educação e estudos

lusófonos do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de

Doutora em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Regina Helena Pires de Brito.

SÃO PAULO

2013

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S232m Santana, Beatriz Pereira de.

Moçambique é maninguenice : reflexões sobre lusofonia

e identidade / Beatriz Pereira de Santana - 2013.

160 f. : il. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana

Mackenzie, São Paulo, 2013.

Referências bibliográficas: f. 105-108.

1. Lusofonia. 2. Identidade. 3. Língua Portuguesa.

4. Moçambique. I. Título.

CDD 401.4679

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BEATRIZ PEREIRA DE SANTANA

MOÇAMBIQUE É MANINGUE NICE:

reflexões sobre lusofonia e identidade

Tese apresentada à linha de pesquisa Linguagem, educação e estudos

lusófonos do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Regina Helena Pires de Brito

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profa. Dra. Neusa Maria de Oliveira Bastos

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profa. Dra. Vima Lia de Rossi Martin

Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Eliseu Mabasso

Universidade Eduardo Mondlane

Prof. Dr. Carlos Augusto Andrade

Universidade Cruzeiro do Sul

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Aos negros, aos pobres e às mulheres.

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AGRADECIMENTOS

A Deus que, na sua infinita bondade e misericórdia, concedeu-me a Graça da conclusão deste

trabalho.

A minha mãe, exemplo de fé.

A meu irmão, exemplo de perseverança.

A minha família, as minhas primas Elaine e Patrícia, pelo companheirismo e pela presença

constante em minha vida.

À Profa. Dra. Regina Helena Pires de Brito, pela orientação e pelos conhecimentos

partilhados não só na orientação deste trabalho, mas ao longo de toda a minha vida

acadêmica.

À Profa. Dra. Vima Lia e à Profa. Dra. Neusa Bastos, pelas relevantes contribuições na banca

de qualificação.

Ao Prof. Dr. Armando Jorge Lopes, então Diretor da Faculdade de Letras e Ciências Sociais

da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique), por autorizar a realização desta pesquisa

de campo no ano de 2011; ao Prof. Dr. Eliseu Mabasso, pela colaboração na coleta de dados;

e aos professores moçambicanos entrevistados.

Ao Prof. Dr. Pedro Ronzelli Júnior e À Profa. Dra. Sandra Maria Dotto Stump, a minha eterna

gratidão pelo incentivo à minha vida acadêmica e profissional.

Aos amigos e amigas, com quem, por diversas vezes, compartilhei dificuldades e avanços

deste trabalho, pelo incentivo, carinho e pela gratificante e gratuita convivência.

À Profa. Nancy Arakaki por ter intermediado o meu contato com o Prof. Dr. Armando Jorge

Lopes.

Ao Mackpesquisa, agência de fomento da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela reserva

técnica, a qual possibilitou financeiramente a viagem para a realização da pesquisa de campo.

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Do fundo desta noite que persiste

A me envolver em breu - eterno e espesso,

A qualquer deus - se algum acaso existe,

Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,

Sob os golpes que o acaso atira e acerta,

Nunca me lamentei - e ainda trago

Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,

Somente o Horror das trevas se divisa;

Porém o tempo, a consumir-se em fúria,

Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,

Nem por pesada a mão que o mundo espalma;

Eu sou dono e senhor de meu destino;

Eu sou o comandante de minha alma.

(Invictus, William E Henley, tradução de André C S

Masini)

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RESUMO

Esta tese de doutorado, buscando contribuir para os estudos acerca da Lusofonia, propôs-se a

discutir o papel da língua portuguesa como elemento identitário do povo moçambicano, bem

como o conceito de Lusofonia. Para tanto, este trabalho científico apresentou como objetivos

de pesquisa (1) discutir os conceitos atribuídos ao termo Lusofonia, buscando identificar e

relacionar o mais adequado à proposta desta pesquisa; (2) abordar o conceito de identidade e

de identidade linguística; (3) verificar se há características que delineiam uma identidade

lusófona; (4) contextualizar histórica e linguisticamente Moçambique; (5) averiguar se há

identificação dos moçambicanos com a língua portuguesa e se por ela se sentem

representados. O universo teórico compilado sobre Lusofonia e Identidade fundamentou-se

respectivamente nos autores Brito e Martins (2002, 2004 e 2005), Cristóvão (2008), Lourenço

(2001) e Rosário (2007e 2012); e Bauman (2005), Mattoso (1998), Hall (2006). Ainda no

plano teórico, para tratar do contexto histórico-linguístico de Moçambique, recorremos aos

investigadores moçambicanos Firmino (2002), Lopes (1997, 2002 e 2004) e Gonçalves (1997,

2007). A metodologia de pesquisa adotada baseou-se não só na pesquisa bibliográfica – por

meio da leitura reflexiva de livros, periódicos científicos e sites especializados nas áreas de

Lusofonia, Identidade e Moçambique – como também se constitui por meio de pesquisa in

loco. A pesquisa de campo foi realizada por meio de entrevistas – com perguntas fechadas e

abertas, tendo sido entrevistados 11 professores moçambicanos, constituindo o corpus de

análise deste trabalho, o qual se encontra dividido em cinco capítulos. O primeiro relata a

escolha do tema, os objetivos, a trajetória da pesquisa e a estrutura final da tese apresentada.

O segundo capítulo trata, respectivamente, dos conceitos básicos sobre Lusofonia e

Identidade. Na sequência, temos o terceiro capítulo que apresenta o contexto histórico-

linguístico moçambicano. O quarto destina-se à análise do corpus. O último capítulo,

mediante os resultados da análise, aponta para a língua portuguesa como elemento identitário

do povo moçambicano, embora a sensação de pertença ao universo lusófono não esteja tão

evidente em Moçambique.

Palavras-chave: Lusofonia. Identidade. Língua Portuguesa. Moçambique.

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ABSTRACT

This Ph. D. Thesis, seeking to contribute to Lusophone studies, proposes to discuss the role of

Portuguese language as an identity element of the Mozambican people, as well as the concept

of Lusophony. Therefore, this scientific work has as research goals (1) to discuss the concepts

attributed to the term Lusophony, seeking to identify and relate the most suitable for the

proposal of this research; (2) to address the concept of identity and linguistic identity; (3) to

verify if there are features that delineate a Lusophone identity; (4) to historically and

linguistically contextualize Mozambique; (5) to determine whether Mozambicans identify

themselves with Portuguese language and whether they feel represented by it. The theoretical

universe compiled on Lusophony and Identity was based respectively on Brito and Martins

(2002, 2004 and 2005), Cristóvão (2008), Lourenço (2001) and Rosário (2007 and 2012); and

Bauman (2005), Mattoso (1998), Hall (2006). In order to address the historical-linguistic

context of Mozambique, we have referred to Mozambican researchers Firmino (2002), Lopes

(1997, 2002 and 2004) and Gonçalves (1997 and 2007). Research methodology was based not

only on the literature review – through reflective reading of books, journals and specialized

websites on Lusophony, Identity and Mozambique – but also on on-site research. Field

research was conducted through interviews – with open and closed questions, and 11

Mozambicans teachers were interviewed, constituting the corpus of this study, which is

divided into five chapters. The first chapter reports the choice of the subject, the objectives,

the research trajectory and the final structure of the thesis. The second chapter addresses,

respectively, the basic concepts on Lusophony and Identity. The historical-linguistic context

of Mozambique is presented on the third chapter. The fourth chapter is dedicated to corpus

analysis. The last chapter, based on analysis results, points the Portuguese language as an

identity element of the Mozambican people, although the sense of belonging to the

Lusophone world is not as evident in Mozambique.

Keywords: Lusophony. Identity. Portuguese Language. Mozambique.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mapa do Continente Africano ........................................................................ 18

Figura 2: Moçambique ................................................................................................. 19

Figura 3: Norte de Moçambique ................................................................................... 20

Figura 4: Centro de Moçambique ................................................................................. 20

Figura 5: Sul de Moçambique ....................................................................................... 21

Figura 6: Agrupamento linguístico ............................................................................... 21

Figura 7: Línguas autóctones de Niassa ........................................................................ 22

Figura 8: Línguas autóctones de Cabo Delgado ............................................................ 23

Figura 9: Línguas autóctones de Nampula .................................................................... 23

Figura 10: Línguas autóctones de Zambézia ................................................................... 23

Figura 11: Línguas autóctones de Tete ........................................................................... 24

Figura 12: Línguas autóctones de Manica ....................................................................... 24

Figura 13: Línguas autóctones de Sofala ........................................................................ 24

Figura 14: Línguas autóctones de Inhambane ................................................................. 25

Figura 15: Línguas autóctones de Gaza .......................................................................... 25

Figura 16: Línguas autóctones de Maputo ...................................................................... 25

Figura 17: Convergência Lusófona ................................................................................. 49

Figura 18: Conjunto Lusitanismo ................................................................................... 50

Figura 19: Conjunto Lusofonia ....................................................................................... 50

Figura 20: Afinal o que é Lusofonia? ............................................................................. 56

Figura 21: Mapa dos PALOP ......................................................................................... 60

Figura 22: Logomarca da CPLP ..................................................................................... 62

Figura 23: Mapa dos Estados-membros da CPLP ........................................................... 63

Figura 24: Mapa do Espaço Lusófono ............................................................................ 65

Figura 25: Intersecção geográfica do universo lusófono ................................................. 66

Figura 26: Contexto histórico versus Nascimento ........................................................... 84

Figura 27: Línguas faladas pelos professores entrevistados............................................. 85

Figura 28: Período histórico versus línguas moçambicanas............................................. 85

Figura 29: Formação e atuação profissional dos entrevistados ........................................ 86

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SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 12

2 MOÇAMBIQUE E A LÍNGUA PORTUGUESA ................................................. 17

2.1 PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM

MOÇAMBIQUE ...................................................................................................... 26

2.1.1 Período colonial ...................................................................................................... 27

2.1.2 Período pós-colonial................................................................................................ 32

2.2 PORTUGUÊS MOÇAMBICANO ............................................................................ 36

2.2.1 Língua portuguesa em Moçambique ..................................................................... 36

2.2.2 Língua portuguesa de Moçambique....................................................................... 39

3 LUSOFONIA E IDENTIDADE ............................................................................. 41

3.1 LUSOFONIA: CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ........................................... 43

3.2 LUSOFONIA: CONTINENTE IMAGINÁRIO ........................................................ 59

3.3 IDENTIDADE: CONCEITO EM CONSTRUÇÃO .................................................. 68

3.3.1 Identidade nacional e identidade linguística .......................................................... 71

4 MOÇAMBIQUE É MANINGUE NICE ................................................................ 81

4.1 PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO .......................................................................... 82

4.2 PERFIL DOS ENTREVISTADOS ........................................................................... 83

4.3 A LÍNGUA PORTUGUESA É NOSSA, É MOÇAMBICANA ................................ 86

4.4 MOÇAMBIQUE: LUSÓFONO: SER OU NÃO SER? EIS A QUESTÃO ................ 89

4.5 SER MOÇAMBICANO ........................................................................................... 99

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 101

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 105

APÊNDICE ...................................................................................................................... 109

ANEXOS .......................................................................................................................... 111

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A emoção e a razão são irmãs siamesas que, juntas, nos movem para uma

reflexão. [...] Mas isso não pode nos impedir de fazer uma reflexão objetiva

[...].

Kabengele Munanga1

É sabido que toda tese é um texto dissertativo-argumentativo, pelo qual é apresentada

e defendida uma ideia, posição ou opinião a respeito de um determinado tema. Para que se

cumpra esse objetivo – o de mostrar a veracidade ou a propriedade do ponto de vista

defendido, esses tipos de textos não podem estar vinculados pessoal e subjetivamente ao

autor, mas apresentados como “além” do autor, como pertencente a todos.

Dessa maneira, textos de ordem acadêmica e científica devem ser redigidos de forma

neutra, impessoal, ocultando-se o agente das ações, isto é, o autor. Para se atingir isso

gramaticalmente, as coerções que circunscrevem uma tese exigem o uso da terceira pessoa do

plural, a ocultação do sujeito pelo emprego de expressões como “é preciso”, “é necessário”,

ou ainda pelo uso gramatical do sujeito indeterminado e da voz passiva, estabelecendo, assim,

uma aparente neutralidade. Entretanto, apesar de saber disso, parafraseando Munanga, a

introdução desta tese será redigida em primeira pessoa do singular, pela certeza de que a

emoção e a razão, juntas, moveram esta pesquisadora a uma reflexão objetiva sobre as

questões linguísticas e identitárias de Moçambique.

Por que Moçambique? Esta é uma pergunta que habitualmente passou a ser

respondida por mim todas as vezes que abordei sobre a temática desta tese, embora esta não

1Kabelege Munangapossui Graduação em Antropologia Cultural pela Université Officielle Du Congo à

Lubumbashi (1969) e Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo

(1977). Atualmente é Professor Titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Antropologia,

com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras, atuando principalmente nos seguintes temas:

racismo, identidade, identidade negra, África e Brasil. É autor da obra Rediscutindo a mestiçagem no

Brasil: identidade nacional versus identidade negra.

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seja minha primeira incursão sobre o contexto de Moçambique, e, portanto, na esfera da

Lusofonia.

O interesse por Moçambique não é tão antigo assim, data da primeira década deste

milênio e nasceu de uma curiosidade acerca da fala de um professor moçambicano, Eduardo

Namburete, no Congresso Internacional sobre Lusofonia, realizado pelo IP-PUC-SP, em

2004.

Vislumbrei, naquele discurso, a possibilidade de conhecer um pouco (ou muito) mais

sobre a África. Uma África, até então, por mim desconhecida. A África não só de pobreza e

misérias, como normalmente divulga a imprensa, mas também de riquezas culturais e

linguísticas, como contam população e estudiosos africanos.

Desse fascínio, resultou a dissertação de Mestrado em Letras, intitulada Constituições

Moçambicanas na perspectiva da análise do discurso, defendida em 2006, sob a orientação

da professora Dra. Regina Helena Pires de Brito, na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Acreditava que ao final da pesquisa de mestrado, o meu interesse científico pela língua

portuguesa em Moçambique estaria saciada. Ledo engano! O fim do mestrado aguçou ainda

mais o meu encanto por aquele país.

Desse encanto, resultou uma paixão, que acabou transcendendo em muito a si mesmo,

pois percebi ali certa identidade com a minha condição de pertencimento a um país de língua

oficial portuguesa, o Brasil, também colonizado por portugueses.

Embora saiba que a ciência exige um contexto racional, foi nessa conjectura

emocional que percebi a possibilidade de discutir o papel da língua portuguesa como

elemento identitário para o povo moçambicano, bem como o conceito de Lusofonia.

Despertada essa curiosidade, estabeleceram-se, a partir disso, os objetivos de pesquisa do

Doutorado, que veio a acontecer, por razões pessoais, somente três anos após a obtenção do

título de mestre.

No doutorado, colegas voltaram a perguntar: E, por que Moçambique?, já que uma das

maiores dificuldades para discorrer acerca desse tema está em localizar literatura

especializada que retrate a história de Moçambique, tanto no período colonial quanto no pós-

colonial, no que se refere não só à questão linguística, mas também aos aspectos sócio-

histórico-político-cultural que constituem a sua identidade.

Por paradoxal que pareça, foi essa escassez de material bibliográfico que me

impulsionou a escolher o objeto de investigação, na expectativa de que o presente trabalho

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possa contribuir para as investigações científicas acerca de outros universos lusófonos – nesta

tese em específico Moçambique – pois a maioria dos estudos enfaticamente se concentra no

Brasil e em Portugal. E, mais ainda, que venha a despertar interesse para outras pesquisas

sobre identidade linguística dos demais países em que o português é a língua oficial.

Nos últimos dez anos, estudos referentes à Lusofonia tem se tornado mais frequente na

área de Letras, provavelmente porque provocam reflexões linguístico-culturais e identitárias

acerca de países que no passado estiveram sob o domínio do colonialismo português: Angola,

Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, os

quais apresentam como denominador comum a língua portuguesa. Além desses países, fazem

parte do universo lusófono Portugal e os outros países cujo idioma português de alguma

forma se faz presente, ainda que em pequenas comunidades, como por exemplo, Goa e

Macau.

Outro fator, de valor científico, que levou ao interesse por Moçambique é o fato de ser

uma nação que sempre vivenciou uma enredada situação linguística devido à diversidade de

línguas nacionais que coexistem com a língua portuguesa desde o período colonial e,

oficialmente, a partir de 1990.

É da observação dessa enredada situação linguística moçambicana que se extraem as

questões que norteiam esta investigação:

Moçambique, país de língua oficial portuguesa, é considerado um país lusófono?

A língua portuguesa, ainda que herança do colonizador, pode ser considerada

elemento identitário do povo moçambicano?

Para responder aos problemas de pesquisa apresentados, pretendo, como objetivo

geral, analisar em que medida a língua portuguesa tem sido (ou não), desde a sua implantação,

elemento coesivo e identitário junto ao povo moçambicano.

Antes de seguir, faço aqui um parêntese. O desenvolvimento de uma tese de doutorado

é inviável sem o envolvimento do orientador. Considerando-se que minha orientadora, desde

2001, vem se dedicando ao conhecimento, à sistematização e à divulgação dos estudos

lusófonos nos meios acadêmicos, além de contribuir objetivamente para a construção e

desenvolvimento desta tese, a qual também tem relações acadêmicas com a temática lusófona,

passo a partir daqui a redigir esta introdução em primeira pessoa do plural, a fim de marcar

uma característica do desenvolvimento de uma tese, orientador e orientando, nós.

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Para atingir o propósito inicialmente traçado, decidimos como específicos, os

seguintes objetivos (1) discutir os conceitos atribuídos ao termo Lusofonia, buscando

identificar e relacionar o mais adequado à proposta deste trabalho; (2) tratar dos conceitos de

identidade e de identidade linguística; (3) verificar se há características que especificam uma

identidade lusófona; (4) contextualizar histórica e linguisticamente Moçambique; (5)

averiguar se o moçambicano identifica-se com a língua portuguesa e por ela se sente

representado.

Esta pesquisa compreende, portanto, o universo teórico que versa sobre Lusofonia e

Identidade, bem como abrange o contexto histórico-linguístico de Moçambique. Por esse

motivo, a metodologia de pesquisa adotada baseia-se não só na pesquisa bibliográfica – por

meio da leitura reflexiva de livros, periódicos científicos e sítios especializados nos tópicos de

Lusofonia, Identidade e Moçambique – mas também se constitui por meio de pesquisa de

campo, entrevistas dirigidas, com perguntas fechadas e abertas, as quais constituíram o corpus

de análise. As entrevistas foram realizadas na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), na

cidade de Maputo, em Moçambique, em outubro de 2011.

Estrutura-se esta tese em cinco capítulos. Neste primeiro, são relatadas a escolha do

tema, os objetivos, a trajetória da pesquisa e a estruturação final da tese apresentada.

No segundo capítulo, apresentamos o contexto histórico-linguístico moçambicano, que

versa sobre as línguas nacionais e a língua portuguesa. Para tanto, recorremos, especialmente,

aos trabalhos dos moçambicanos Firmino (2002), Lopes (1997, 2002 e 2004) e Gonçalves

(2007, 2010 e 2012).

Posteriormente, no terceiro capítulo, tratamos respectivamente os conceitos básicos

sobre Lusofonia e identidade, sobretudo pautando-se respectivamente em Brito e Martins

(2002, 2004 e 2005), Cristóvão (2008), Lourenço (2001) e Rosário (2007 e 2012); Bauman

(2005), Mattoso (1998), Hall (2006).

O quarto capítulo destina-se à análise do corpus, procurando observar a língua

portuguesa como elemento identitário do moçambicano, bem como verificar se Moçambique

é uma nação que se sente e se percebe como parte do universo lusófono. O corpus é

constituído por 11 entrevistas realizadas com professores moçambicanos, de acordo com o

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, na Universidade Eduardo Mondlane, em

Moçambique. Duas são as razões pela recolha do corpus in loco, a primeira deve-se a

ausência de estudos acerca de Moçambique publicados no Brasil e a segunda é a importância

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de retratar Moçambique sob a perspectiva de moçambicanos. Por isso, apresentamos o corpus

desta pesquisa científica nos anexos deste trabalho.

No último capítulo, tecemos as considerações finais acerca das ideias discutidas ao

longo do texto, a fim de elucidar quais são as questões lusófonas e identitárias acerca de

Moçambique, um país maningue nice2.

Por fim, o título atribuído a esta tese Moçambique é maningue nice: reflexões sobre

lusofonia e identidade reflete a riqueza e a diversidade linguística moçambicana.

“Moçambique” é um nome derivado do árabe, “é” é o verbo ser, conjugado no presente do

indicativo em língua portuguesa, “maningue” é um advérbio de intensidade de uma língua

nacional moçambicana e “nice” é um adjetivo do inglês.

2 A expressão “Moçambique é maningue nice” foi título de um texto, publicado em 1997, de autoria do

renomado sociólogo Dinis Manuel Alves (http://oficinadesociologia.blogspot.com.br/2010/02/mocambique-e-

maningue-nice.html)

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2 MOÇAMBIQUE E A LÍNGUA PORTUGUESA3

Na memória de África e do Mundo

Pátria bela dos que ousaram lutar

Moçambique, o teu nome é liberdade O Sol de Junho para sempre brilhará

(Hino Nacional Moçambicano)

É impossível separar o processo de implantação do idioma português em Moçambique

do seu cenário de colonização. Para Gonçalves (2010, p. 27), “a situação lingüística actual de

Moçambique, e, mais particularmente, a difusão e o estatuto do português resultam de um

longo processo histórico, que teve o seu início com a chegada dos portugueses a este país

[...]”.

Conforme narram os historiadores, a colonização portuguesa explorou e transformou,

de acordo com seus interesses políticos, econômicos e culturais países, não só do continente

africano (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe), mas

também sul-americano (Brasil) e asiático (Timor-Leste), deixando como herança nesses locais

a língua portuguesa como idioma oficial. Logo, Moçambique está dentre os países onde o

português tem o estatuto de língua oficial. Entretanto, além da língua portuguesa são faladas

cerca de vinte línguas bantu, que o caracteriza como um país multilíngue e multicultural.

Este capítulo apresenta os principais acontecimentos históricos que explicam o fato de

Moçambique ser um país de língua oficial portuguesa. A reconstrução dessa memória é o

ponto de partida escolhido para a compreensão do(s) papel(eis) que a língua portuguesa

exerceu(e) em Moçambique, bem como a verificação da questão identitária entre

Moçambique e a língua portuguesa, a fim de perceber-se como país integrante do universo

lusófono (ou não), pontos discutidos no capítulo Moçambique é maningue nice.

3 Parte deste capítulo é uma releitura do primeiro capítulo, intitulado Contexto Histórico e Linguístico de

Moçambique, da dissertação de mestrado desta autora.

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Antes de adentrarmos nas questões de história e língua, considerando-se que muitos

são os equívocos entre Moçambique, o país, e Moçambique, a ilha, é conveniente apresentar

geograficamente o país.

O espaço territorial denominado Moçambique apresenta uma extensão de

aproximadamente 800.000 km², com uma linha costeira de quase 3000 km, banhada pela

imensidão do Oceano Índico (onde está a ilha de Moçambique). Moçambique está

geograficamente situado a sudoeste da África (Figura 1)4 com fronteiras ao norte com a

Tanzânia; a noroeste com o Malawi e a Zâmbia; a oeste com o Zimbaubue e com a África do

Sul; e a sul com a Suazilândia (Figura 2). dividindo-se em três zonas:

norte: Niassa, Cabo Delgado e Nampula (Figura 3);

central: Tete, Manica, Sofala e Zambézia (Figura 4); e

sul: Gaza, Inhambane e Maputo (Figura 5).

4 O destaque para o país de Moçambique foi criado pelo designer Fábio Augusto Almada.

Figura 1: Mapa do Continente Africano Fonte: http://www.only-maps.com/africa-map.html

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Figura 2: Moçambique

Fonte:http://www.worldatlas.com/webimage/countrys/africa/ciamaps/mz-map.gif

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Figura 3: Norte de Moçambique Fonte: http://www.mozambique.mz/

Figura 4: Centro de Moçambique

Fonte: http://www.mozambique.mz/

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Figura 5: Sul de Moçambique

Fonte: http://www.mozambique.mz/

O último recenseamento, realizado no ano de 2007, constatou uma população de cerca

de 20 milhões de habitantes. Moçambique é uma nação com treze agrupamentos étnicos

(Suahilis, Macuas-Lomués, Macondes, Ajauas, Marave, Nhanjas, Sena, Chuabo, Chonas,

Angonis, Tsongas, Chopes, Bitongas); e oito grupos linguísticos: Swahili, Yao, Makua,

Nyanja, Senga-Senga, Shona, Tswa-Ronga e Chope; que se subdividem em diversas línguas

(FIRMINO, 2002. p.78-80):

Figura 6: Agrupamento Linguístico5

5 Este quadro foi elaborado de acordo com FIRMINO, 2002, p.78-80.

GRUPO

LINGUÍSTICO

SWAHILI YAO MAKUA NYANJA SENGA-

SENGA

SHONA TSWA-

RONGA

CHOPI

Línguas

Yao

Makonde Mabiha Mavia

Makua Lomwe Ngulu Cuabo

Cuambo

Nyanja Cewa

Mananja

Nsenga Kunda

Nyungwe Sena Ruwe Podzo

Korekore Zezuru

Manyika Tebe Ndau

Tswa Gwamba Tsonga Ronga

Chopi Lenge Tonga

Shengwe

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Ao associarmos o número de línguas autóctones à quantidade de províncias e etnias,

notamos a existência de uma pluralidade linguística moçambicana, uma vez que há, em

média, duas línguas para cada província e/ou grupo étnico. Isso permite reconhecermos as

características multiculturais e multiétnicas do povo moçambicano que são, na sua maioria, de

origem Bantu e, na sua minoria, de origem asiática e europeia. As línguas autóctones

constituem a língua materna para a maioria dos moçambicanos. De acordo com Firmino

(2002, p.107):

As línguas autóctones são primeiramente usadas para a comunicação entre

membros da família e parentes e, de um modo geral, entre pessoas da mesma

origem étnica, nos domínios que qualificam estas línguas como baixas. Nas zonas rurais, as línguas autóctones são o meio primário de comunicação para

todas as atividades, com uma virtual exclusão do Português e outras línguas.

Nas áreas suburbanas, as línguas autóctones são também largamente faladas,

embora, em algumas interações sociais, o Português possa também ser usado.

De acordo com Firmino (2002, p. 80-103), o relatório do censo de 1980 enumerou a

existência de 24 línguas nacionais6: Bitonga, Chope, Chuabo, Koti, Kunda, Lomwe,

Maconde, Macua, Marendje, Mwani, Ngulu, Nsenga, Nyanja, Nyungwe, Phimbi, Ronga,

Sena, Shona, Swahili, Swazi, Tsonga, Tswa, Yao, Zulu, as quais se encontram espalhadas

pelas dez províncias de Moçambique: Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Zambézia, Tete,

Manica, Sofala, Inhambane, Gaza e Maputo. Para melhor exemplificar o que se afirma,

observamos as figuras abaixo:

Macua

Nyanja

Yao Ngulu

Total: 4 línguas

Figura 7: Línguas autóctones de Niassa

6 O Censo de 1980 apontava a existência de 24 línguas autóctones. Diferentemente do último recenseamento,

realizado no ano de 2007 que relaciona 20 línguas nacionais.

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Macua

Mwani Swahili

Maconde

Yao

Ngulu

Total: 6 línguas

Figura 8: Línguas autóctones de Cabo Delgado

Koti

Macua

Total: 2 línguas

Figura 9: Línguas autóctones de Nampula

Macua

Chuabo

Nyanja Sena

Lowne

Marendje

Total: 6 línguas

Figura 10: Línguas autóctones de Zambézia

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Nyanja

Sena Nsenga

Nyungwe

Shona

Phimbi Kunda

Total: 7 línguas

Figura 11: Línguas autóctones de Tete

Lomwe

Tswa Chuabo

Tsonga

Sena Nyungwe

Shona

Total: 7 línguas

Figura 12: Línguas autóctones de Manica

Sena

Shona

Tswa

Chuabo Macua

Lomwe

Total: 6 línguas

Figura 13: Línguas autóctones de Sofala

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Tsonga Tswa

Chope

Bitonga

Shona

Total: 5 línguas

Figura 14: Línguas autóctones de Inhambane

Tsonga Tswa

Chope

Bitonga Ronga

Total: 5 línguas

Figura 15: Línguas autóctones de Gaza

Tsonga Tswa

Chope

Bitonga Ronga

Zulu

Swazi

Total:7 línguas

Figura 16: Línguas autóctones de Maputo

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As línguas nacionais moçambicanas exercem um importante papel de comunicação

interna entre seu povo, o que impede, portanto, que as mesmas deixem de ser usadas.

Entendemos, diante disso, a razão de constar na Constituição da República de Moçambique

(1990), antes da institucionalização da língua portuguesa como língua oficial, um artigo7 que

faz referência sobre a promoção das línguas nacionais.

2.1 PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM MOÇAMBIQUE

No final do século XV, os habitantes moçambicanos viram chegar às suas terras, por

meio de enormes embarcações, único transporte que ultrapassava as fronteiras geográficas –

ainda não muito bem definidas – continentais e intercontinentais da época, pessoas de pele

clara e de um falar acentuado por um chiado. Quem seriam aqueles “visitantes”? De onde

vinham? O que buscavam? E que língua era aquela que falavam? Imaginamos que tenham

sido estes alguns dos questionamentos do povo de pele negra e de línguas várias que ali

habitava.

Os visitantes eram os portugueses, “desbravadores do mundo”. Partiram da Europa e

buscavam “expandir-se comercialmente” – explorar comercialmente o minério, a agricultura

e, também, os povos, já que sabemos historicamente que o tráfico humano tornou-se a

principal atividade da “expansão comercial portuguesa” naquela região, conforme relato

histórico publicado no sítio oficial de Moçambique:

Os Portugueses fixaram-se no litoral onde construíram as fortalezas de

Sofala (1505), Ilha de Moçambique (1507). Só mais tarde através de processos de conquistas militares apoiadas pelas actividades missionárias e

de comerciantes, penetraram para o interior onde estabelecerem algumas

feitorias como a de Sena (1530), Quelimane (1544). O propósito, já não era o simples controlo do escoamento do ouro, mas sim de dominar o acesso às

zonas produtoras do ouro. Esta fase da penetração mercantil é designada de

fase de ouro. As outras duas últimas por fase de marfim e de escravos na

7 Art.9 O estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e educacional e promove o seu

desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade. Art. 10. Na república de

Moçambique a língua portuguesa é a língua oficial. (MOCAMBIQUE, 1990).

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medida em que os produtos mais procurados pelo mercantilismo eram

exactamente o marfim e os escravos respectivamente. (s/d).

Iniciava-se ali, naquele pedaço de terras africanas, mais um “feito português”, o qual

mudaria para sempre – como fez com tantos outros povos – a história inicialmente traçada

pela cultura e pelos habitantes daquele continente, daquele espaço, daquele Moçambique.

Paralelamente, principiava-se o processo de implantação da língua portuguesa em

Moçambique por meio do autoritarismo e da imposição dos colonos portugueses, que

buscavam dominar os colonizados por meio da língua, sob o argumento da civilidade.

Séculos mais tarde, essa imposição, por questões políticas e ideológicas, foi reiterada

pela FRELIMO (Frente de Libertação Moçambicana), ainda no início dos movimentos

nacionais, por volta de 1960, e, posteriormente, mantida e oficializada pelo Governo

Moçambicano, por meio da Constituição, publicada em 1990.

As razões da manutenção da língua portuguesa ao longo da história moçambicana são

várias, como veremos ao longo deste capítulo. A presença portuguesa se fez dominante, mas

não se fez perpétua. A língua portuguesa não se fez nem dominante, nem perpétua, mas se faz

constantemente presente nos espaços moçambicanos, uma vez que é a única língua oficial, e,

por vezes, moçambicana como poderá ser observado no item 2.2 deste capítulo.

2.1.1 Período colonial

As primeiras incursões portuguesas em terras moçambicanas ocorreram no final do

século XV para exploração de minério, especialmente o ouro, o qual era utilizado para a

aquisição de especiarias asiáticas; e de escravos, no século XVI, os quais eram exportados,

principalmente, para as Ilhas Mascarenhas, Madagáscar, Zanzibar, Golfo Pérsico, Brasil e

Cuba. Gonçalves (2000) relata que “[...] 1498 é o ano da chegada de Vasco da Gama a

Moçambique, podendo dizer-se que, a partir desta data, estão lançadas as bases histórico-

sociais para o uso do Português nesta região do globo”. Iniciavam-se, paralelamente à

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exploração de riquezas naturais e humanas, os primeiros contatos entre Moçambique e o

idioma português.

Entretanto, Gonçalves (2010, p.27) ressalta que “ainda que a presença portuguesa no

país date dos finais do século XV, a comunidade moçambicana de falantes de português

constitui-se muito recentemente, tendo sido praticamente nula a difusão desta língua durante

os primeiros quatro séculos de colonização”. Uma das razões para uma propagação inicial

vagarosa do idioma português pode ter sido o fato de os colonos portugueses terem

encontrado a região já ocupada por outros povos, pois de acordo com Lopes (2004, p.17):

Os árabes, navegadores pioneiros no Oceano Índico já por volta do século VIII, foram os primeiros a monopolizar o comércio marítimo entre o Oriente

e o Ocidente. Seguiram-se-lhes neste papel os indianos, os chineses e os

indonésios. As rotas das especiarias e produtos de luxo associadas ao mito de riquezas inimagináveis atraiam o interesse dos ocidentais. Foi neste contexto

que, em finais do século XV, os portugueses chegaram a Moçambique, a

caminho da Índia, na viagem de descoberta da rota do Cabo realizada por Vasco da Gama [...].

Outra justificativa para a lenta difusão da língua portuguesa em territórios

moçambicanos seria uma possível resistência cultural dessas populações que ali já estavam.

Ferreira (apud GONÇALVES, 2000) “lembra que a penetração dos portugueses em

Moçambique foi muito mais difícil do que em Angola, visto que o islamismo já tinha ali

estabelecido raízes profundas”.

A ocupação portuguesa em Moçambique viria a atingir seu ápice, presença efetiva,

apenas com a Conferência de Berlim, em 1884, resultado da reunião de potências europeias

para divisão das colônias da África em colônias, sobre o argumento da “civilização” de povos.

É nesse período que ocorre a ocupação sistemática de Moçambique, de maneira efetiva e

crescente, pelos portugueses.

É diante dessa tentativa europeia de modelar o mundo à sua imagem e semelhança que

“se gestaram novas condições econômicas, políticas, sociais e culturais que deram ao mundo

hodierno seus contornos definidores [...], homogeneizando espaços e culturas, europeizando o

orbe terrestre.” (Navarro, 2004. p.229). Para Hull (2002, p.31), “os estados nascidos destas

divisões eram artificiais, agrupavam populações de diferentes línguas, tradições e religiões”.

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Nesse contexto, houve desprezo pela realidade cultural e linguística do espaço africano

por parte dos países europeus conferencistas o que implicou, por vezes, a divisão de um

mesmo grupo étnico entre duas ou três potências, bem como a junção de grupos étnicos

culturais opostos, os quais foram obrigados a conviver. Isso explica, por exemplo, muitos

conflitos tribais que persistem na África até os dias atuais.

Em decorrência da “partilha da África”, a ocupação portuguesa em Moçambique

transformou-se numa ocupação militar, numa verdadeira administração colonial, a qual,

consequentemente, estendeu-se ao campo linguístico-cultural. No contexto cultural,sabemos

historicamente que a colonização portuguesa efetivava-se primordialmente pela assimilação

linguística, uma vez que as línguas locais eram proibidas de serem utilizadas nos domínios

institucionais. Lopes (1997, p.16) lembra que:

Durante o período colonial, eram essencialmente dois os termos usados pelos

colonos para se referirem às línguas que desde há séculos eram faladas em

Moçambique dialectose línguas indígenas (ocasionalmente também chamadas ‘nativas’ ou ‘autóctones’). [...]. No contexto colonial, ambos os

termos eram usados pejorativamente, significando que as pessoas falavam

qualquer coisa primitiva e pouco digna de um ser humano. Reconhecia-se

apenas uma única língua, o Português, o resto eram sons não articulados.

Segundo Macagno (s/d, p.1),

Durante a etapa colonial (1895-1974) Portugal manteve para Moçambique

um discurso assimilacionista. Segundo esse discurso a língua portuguesa cumpriria um rol central para os indígenas se tornar assimilados e, desta

forma, se emancipar dos seus “usos e costumes”.

Somente no século XIX que se inicia a difusão da língua portuguesa por todo o

território moçambicano. Aprender a língua do colonizador tornava-se imprescindível em toda

e qualquer colônia portuguesa dada à necessidade do indivíduo se comunicar, uma vez que se

havia estabelecido a língua do colonizador como única língua de ensino e de instâncias

administrativas.

Nesse sentido, Firmino (2002, p. 114) assinala que:

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30

Uma vez que a educação era fator-chave para obter as necessárias

credenciais para a mobilidade social, o requisito do uso do Português como

único meio de garantia que só os que dominassem esta língua podiam ter a oportunidade de ascender na sociedade.

No período colonial, a língua portuguesa funcionava mais como instrumento de

aculturação do que de comunicação, pois, acreditava-se que, por meio do idioma, era possível

tornar os colonizados semelhantes aos “civilizados”, aos colonos portugueses. De acordo com

Boleo (1951, p.309),

Para nós, Portugueses, colonizar consiste em atrair as populações

indígenas das nossas províncias do Ultramar à prática dos nossos

hábitos e costumes, modelando as suas almas, adaptando às suas

condições particulares, quanto possível, as nossas instituições [...] Sentindo perfeitamente as diferenças profundas que existem entre o substrato

étnico dum europeu e o do indígena africano, procura-se que o culturalmente

retardado vá subindo os degraus, segura e firmemente, daquela escada que

conduz ao plano social em que se encontram com seus irmãos ‘brancos’, isto é, pretende-se trazer o negro, gradualmente, a uma mais alta civilização,

ajudando-o física, intelectual e espiritualmente. (grifo nosso)

Efetivamente, nesse período, os portugueses entendiam que colonizar, além de

explorar recursos humanos e minerais, consistia na aculturação, a “elevação” de negros à

categoria de assimilados. Colonizar era um ato cultural que beneficiava não só à população

colonizada, mas o mundo, uma vez que o “culturalmente retardado” seria elevado ao plano

social da mais alta civilização, onde se encontravam “seus irmãos brancos”.

Para Mondlane (apud ROCHA, 1998. p.317), o procedimento de aculturação “tratava-

se de um projeto cultural que possibilitava ao assimilado legalmente beneficiar de todas as

facilidades dos brancos, e supostamente ter as mesmas oportunidades educacionais e de

progresso”. Sob essa perspectiva, o português representava simbolicamente a “civilização”;

isto é, aqueles moçambicanos que demonstrassem domínio dessa língua europeia eram

considerados “civilizados”. A língua portuguesa havia se tornado uma espécie de passaporte

para a cidadania portuguesa, o encontro com “os irmãos brancos”.

A “missão civilizadora” portuguesa consistia, na realidade, numa assimilação cultural,

por meio da qual o povo moçambicano, em seu próprio território, via-se obrigado a aprender

uma língua desconhecida para integrar-se à rede de ensino e cultura de um país que não era o

seu. Nas palavras de Namburete (2006, p.66), civilizar consistia em “transformar os povos

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colonizados em portugueses negros”. A língua portuguesa, então, proporcionava um novo

segmento social moçambicano: a classe dos evoluídos. Esses moçambicanos assimilados “se

tornavam precursores e representantes da classe dos pretos acima dos indígenas”.

(NAMBURETE, 2006. p.66). Essa situação criava um novo segmento social, uma vez que

essa pequena elite negra moçambicana, embora não tivesse o estatuto de “cidadão português”,

também não se encaixava na classe dos chamados indígenas. Iniciava-se, assim, a

estratificação social moçambicana. “Os moçambicanos que falam a língua portuguesa

adquiriram através desta língua um poder sem precedentes no que se refere à sua mobilidade e

ascensão social” (LOPES, 1997. p.23).

Instituía-se, assim, o uso do português em terras moçambicanas. Contudo, a imposição

desse idioma, ainda no período colonial, assumiu outros papéis: com o surgimento dos

movimentos nacionalistas, a língua portuguesa passou a exercer papel decisivo na

comunicação entre os combatentes, o que lhe asseguraria mais tarde o papel de língua oficial

de Moçambique.

No século XX, por volta de 1960, começaram a surgir os primeiros grupos

nacionalistas moçambicanos em prol da independência. Dentre eles, a Frente de Libertação de

Moçambique8 (FRELIMO), sob a liderança de Eduardo Mondlane, firmou-se como o mais

importante movimento e declarou luta armada contra o regime colonialista.

Em meio às questões políticas, irrompeu a questão linguística. Para que o movimento

pudesse avançar, por todas as províncias, em busca da independência completa e total do

território moçambicano, era necessário encontrar entre os membros das diferentes regiões

uma língua que pudesse ser de entendimento de todos e que, ao mesmo tempo, permitisse

conhecer o inimigo colonizador.

Em meio às diferentes línguas nacionais moçambicanas, a língua portuguesa foi

selecionada para estabelecer a comunicação entre os combatentes. Uma das razões que

justifica essa escolha é o fato de que, proibindo as línguas moçambicanas como meio de

8No início da década de 60, começaram a surgir os primeiros grupos nacionalistas de Moçambique, que formaram partidos

políticos, como por exemplo, a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), a Mozambique African National Union (MANO), a União Africana de Moçambique Independente (UNAMO) e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Os três primeiros partidos defendiam ideias regionalistas, porque acreditavam que o caminho para a independência era a libertação do país por regiões; diferentemente da FRELIMO, favorável a uma ação que integrasse todas as regiões, um movimento nacional. A FRELIMO, sob a liderança de Eduardo Mondlane, conseguiu se impor como o mais

importante movimento, ao convencer alguns membros dos demais grupos políticos de que juntos poderiam atingir o objetivo de tornar Moçambique livre de Portugal e transformá-lo num Estado-Nação-nação. (SANTANA, 2006, p.23)

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comunicação entre guerrilheiros, era possível materializar o espírito da unidade nacional, pois

todos os cidadãos passariam a falar uma só língua. (NAMBURETE, 2006. p.67). Notamos

aqui que os dirigentes da FRELIMO perceberam, naquele momento, a importância de um

idioma que pudesse neutralizar as diferenças étnicas entre os combatentes, unindo-os como

um só povo, o povo moçambicano. Salientamos ainda que ao buscar um ponto em comum,

estabelecia-se, ainda que de maneira sutil, uma identidade entre as diversas tribos ali

existentes. Dessa forma, os grupos que se opunham étnica e culturalmente passavam a

compartilhar uma mesma língua, a língua portuguesa. Acerca disso, Brito (2005, p.86) aponta

que “[...] essa escolha do português como língua de movimento também provoca outra leitura,

ligada à necessidade de conhecimentos técnicos para o manejo com o armamento utilizado na

guerra [...]”.

Para Brito e Martins (2004, p.9),

[...] o português era a única língua que poderia nivelar as diferenças linguísticas, propiciar uma certa unidade no próprio movimento, além é

claro, de ajudar a conhecer o opositor comum. Será, portanto, o português a

língua dos dois lados da luta: do poder da metrópole e da resistência da colônia.

Assim, a língua do colonizador, nesse momento da história, tornava-se um dos

elementos estratégicos de luta do colonizado. A língua europeia, que havia servido

inicialmente como instrumento de colonização, passaria a contribuir para o processo de

independência moçambicana, a qual ocorreu em 25 de junho de 1975.

2.1.2 Período pós-colonial

Moçambique independente adotou a língua de seu colonizador. Apesar das vinte

línguas moçambicanas (Cicopi, Cinyanja, Cinyungwe, Cisenga, Cishona, Ciyao, Echuwabo,

Ekoti, Elomwe, Gitonga, Maconde (ou shimakonde), Kimwani, Macua (ou emakhuwa),

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Memane, Suaíli (ou kiswahili), Suazi (ou swazi), Xichanga, Xironga, Xitswa e Zulu)9

comumente faladas pela população, a língua portuguesa tornou-se o único idioma a ser

utilizado no governo, nas comunicações escritas, e, principalmente, na educação.

A estratégia de usar a língua portuguesa em detrimento das línguas autóctones

proporcionava, assim como o que ocorreu entre os combatentes no período colonial, a

comunicação entre as diferentes etnias da população moçambicana, garantindo uma unidade

nacional. Segundo Gonçalves (1996, p. 17), “se por um lado, o [português] parecia oferecer

mais garantias como língua de unidade nacional, [...] ao mesmo tempo permitia a

comunicação com a comunidade internacional”. Sob esse olhar, entendemos que a língua

portuguesa, então, assumia o papel de língua de unidade e de afirmação nacional

moçambicana. Uma só língua, um só povo, além de ser o contato com o exterior.

Entretanto, há de se reconhecer que a motivação governamental para usar um idioma

que não o seu, mas o do antigo colonizador tinha, antes de tudo, uma razão política: não

privilegiar nenhum grupo étnico. Essa atitude pretendia evitar uma guerra civil entre tribos e

impedir que o país se fragmentasse, mantendo-se, assim, a integridade da jovem nação-estado.

Contudo, essa escolha não foi o suficiente para impedir as guerras civis, Moçambique

vivenciou embates internos, entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) a

RENAMO10

(Resistência Nacional Moçambicana) por quase duas décadas após a

independência moçambicana.

Apesar disso, a intenção política de escolha da língua é evidenciada pelo linguista

australiano Hull (2002, p.31),

9Fonte: MOÇAMBIQUE. Informação geral sobre Moçambique. Disponível em: <http://www.portaldogoverno.gov.mz/Mozambique>. Data de acesso: 27 jan 2013.

10 Com a conquista da liberdade, conforme Colaço (2001, p.103), “permaneceu em Moçambique um Estado com características autoritárias e repressivas”, ocasionando no país uma profunda crise interna, decorrente da formação de um estado socialista. Diante desse contexto [...] Moçambique entrou em conflito com países vizinhos e sofreu com incursões

militares em seu próprio território. A priori uma guerra sem nenhum projeto político, entregue a agentes da Rodésia e da África do Sul, cuja missão era desestabilizar Moçambique”. Por instigação desses países, no final dos anos 70, surgiu um movimento denominado Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), formado por indivíduos opositores à atuação da FRELIMO. “Boa parte da população não estava satisfeita com os procedimentos da nova ordem instaurada pela FRELIMO, principalmente em relação à sua política administrativas [...]”. A RENAMO tornou-se, então, o principal instrumento de desequilíbrio da presidência de Samora Machel e, consequentemente, do governo da FRELIMO.Como todo veículo de oposição governista, a RENAMO é apontada nos livros como um grupo de marginais sem posição ideológica, apenas como um movimento de baderneiros da África do Sul – um grupo de guerrilheiros – que tinha como função desestabilizar o país

vizinho; e não como uma organização popular que buscava a implantação de um sistema político multipartidário e a realização de eleições presidenciais.(SANTANA, 2006. p.28)

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[...] uma vez que não existia uma cultura comum, os novos governos viram-

se impossibilitados de elevar um dos múltiplos vernáculos ao estatuto de

língua nacional, devido ao receio de alienar grupos linguísticos minoritários. Foi por esta razão que a maioria dos estados africanos decidiu manter como

língua oficial a língua da sua antiga potência colonizadora – quer o inglês, o

francês ou o português. A língua em questão, apesar de ser estrangeira na

origem, tinha indubitavelmente a enorme vantagem de ser neutra.

Acerca disso, é curioso observar que a primeira Carta Magna da República, a

Constituição Moçambicana, publicada em 1975, logo após a independência, não faz

referência nem às línguas autóctones nem à língua portuguesa. Fato que nos leva a reconhecer

a sagacidade política da FRELIMO, partido que assumiu o governo, pois oficializar a língua

do colonizador como idioma oficial, logo após a independência, poderia gerar um conflito

entre a população e o governo. Sendo assim, percebemos que a adoção da língua portuguesa,

no período pós-colonial, ocorreu também de maneira ‘naturalmente’ impositiva.

O português apareceu nos documentos oficiais apenas quinze anos após a libertação,

na reformulação do texto constitucional. Foi na segunda constituição, publicada em 1990, que

os dirigentes moçambicanos assumiram a institucionalização da língua portuguesa como

língua oficial em detrimento das línguas nacionais11

.

Sabemos que a presença da língua portuguesa em Moçambique remonta ao período

colonial, falada com certa regularidade e com falantes por todo o país. No entanto, não era, na

época da independência, o idioma de conhecimento da maioria dos moçambicanos. Segundo o

I Seminário Nacional de Informação, realizado em 1977, apenas 10% da população havia tido

contato com o português. Em 1980, o Recenseamento Geral da População aponta um

crescimento de 15% no número de falantes de língua portuguesa, ou seja, de 10% para 25%

da população, sendo que 1,2% tinha a língua portuguesa como língua-mãe.

Esses dados revelavam a multipluralidade linguística de Moçambique12

, a qual é

destacada por Lopes (2002, p.32):

11 De acordo com a Constituição da República Moçambicana, em seu artigo 9, “O Estado valoriza as línguas

nacionais como patrimônio cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como

línguas veiculares da nossa identidade”. Em seu artigo 10, a lei de base oficializa a língua portuguesa, “Na

República de Moçambique a língua portuguesa é a língua oficial”.

12 O relatório do Censo de 1980, segundo Firmino (2002, p.80-103), enumera a existência de 24 línguas

nacionais.

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Em Moçambique, a maior língua, o Emakhuwa, representa cerca de 25% da

população total do país [...]. Este fato significa que, com base no conceito de

elevada diversidade linguística13

e tendo em conta o factor numérico, nenhuma língua africana [...] está em condições de poder reivindicar, a nível

nacional, o estatuto de língua maioritária [...] tal situação tende a reforçar o

papel e o funcionamento veicular, a nível nacional, da língua exógena, como

tem vindo a acontecer com a língua portuguesa.

Embora o Emakhuwa também fosse falado por 25% da população, diferentemente da

língua portuguesa, a língua moçambicana não podia ser encontrada em todas as regiões do

país, o que a caracterizava como específica de alguns grupos étnicos. Isso tudo a impedia de

ser elevada a categoria de língua oficial. Nas considerações de Brito (2009, p.79-80), “essa

realidade linguística, marcada pela multiplicidade de línguas, limita a comunicação mesmo

entre os próprios moçambicanos que falam línguas nacionais diferentes – parece residir aí o

papel fundamental (ou pelo menos a justificativa política desse papel) do status de oficial que

cabe à língua portuguesa no território”.

Nesse sentido, uma reflexão acerca da implantação da língua portuguesa em

Moçambique permite-nos perceber que num primeiro momento, a imposição da língua

portuguesa, além de arbitrária, foi visivelmente preconceituosa e doutrinadora, desrespeitando

a cultura e as línguas dos grupos étnicos ali existentes. Num segundo momento, também é

autoritária, uma vez que é institucionalizada em detrimento das línguas nacionais

moçambicanas. Entretanto, com propósitos diferentes do antigo colonizador, por pensar nas

diferenças étnico-linguísticas é que se instituiu a língua portuguesa como oficial, pois com o

estabelecimento desse idioma não se privilegiou nenhuma língua autóctone e, evitou-se,

aquilo que acentuaria conflitos étnicos.

Não foi somente para impedir problemas étnicos que se oficializou a língua

portuguesa, mas também, e principalmente, para tentar garantir a existência do Estado-Nação,

já que a escolha de um único idioma conduz o povo, de certa forma, à sensação de

pertencimento ao mesmo local, neste caso, a Moçambique, por atribuir-lhe algo em comum,

uma identidade.

13 Robinson (apud LOPES, 2002. p.22) define o conceito de elevada diversidade linguísitca como “[...] uma

situação em que não existe uma percentagem superior a 50% da população que fale a mesma língua”. É

importante observar que a multiplicidade de línguas moçambicanas é reflexo da diversidade étnica de seu povo.

Cada língua nacional, na maioria das vezes, está associada a um grupo étnico, portanto, a uma determinada

região moçambicana.

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A identidade linguística, contudo, é um fator imprescindível para a unidade de uma

nação, mas não é o único. Assim, reconhecemos que antes de uma unidade linguística, seria

necessária uma unificação dos diferentes povos que se encontravam juntos no espaço

territorial moçambicano, respeitando-se as diferenças étnicas e culturais de cada grupo.

2.2 PORTUGUÊS MOÇAMBICANO

Para alguns estudiosos moçambicanos, a institucionalização da língua portuguesa foi

algo positivo, sendo considerada “politicamente correta” por ser neutra numa sociedade

multiétnica e por promover a integração da jovem nação independente no contexto mundial.

Para outros, essa imposição linguística foi negativa porque o fato de não ser um idioma

nacional e de conhecimento da maioria da população não colaborava para a integração

nacional e, ainda, reforçava a estagnação econômica, além de não representar uma identidade

moçambicana.

Com estatuto de oficial, a língua portuguesa tinha, agora, uma nova missão, a

responsabilidade de constituir uma identidade moçambicana, deixando de ser a língua

portuguesa em Moçambique, para se tornar a língua portuguesa de Moçambique, a língua

portuguesa moçambicana. Acreditamos que somente essa transformação poderia ratificar a

escolha do português em detrimento das línguas autóctones, fazendo o abandonar o título de

língua do colonizador para assumir a condição de língua do povo moçambicano.

2.2.1 Língua portuguesa em Moçambique

Apesar de a língua portuguesa se tornar o idioma oficial no país independente e passar

a ser o principal e o único veículo de transmissão de informação, cultura e conhecimento nos

espaços moçambicanos reservados ao governo, à educação e aos assuntos administrativos,

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eram as línguas bantu que continuavam a estabelecer a comunicação nas relações familiares e

entre amigos, caracterizando-se como língua de afeto. Diante disso, o governo percebia cada

vez mais a necessidade de promover a difusão do português junto ao povo.

Essa disseminação ocorreu por meio de um processo basicamente escolar, o qual

conforme relatam Brito e Martins (2004, p.9), apresentava muitas “dificuldades [...], pois [a

língua portuguesa] é ensinada num meio em que é pouco falada, e os alunos não têm outro

espaço que não a sala de aula para a praticarem, com a agravante de ser limitado o

desempenho linguístico do professor”. Acerca desse assunto, é importante lembrar que as

dificuldades e o fracasso escolar não podem ser considerados como resultados exclusivos de

ações pedagógicas decorrentes do trabalho do professor e do empenho dos alunos. É

imprescindível levar em considerações os aspectos sociais, históricos, políticos, ideológicos e

linguísticos relacionados ao estatuto da língua portuguesa na sociedade moçambicana (DIAS,

2002).

A propagação da língua portuguesa encontrava, então, barreiras diversas, entre elas o

aluno que, muitas vezes, tinha na escola o primeiro contato; o professor, que na maioria das

vezes, não dominava linguisticamente o idioma e a maneira impositiva como a língua

portuguesa passou a ocupar os espaços curriculares.

O fato de eleger a língua oficial como a única norma linguística da escola, o sistema

educacional, no lugar de promover o idioma, retardava seu aprendizado, pois a maior parte

das crianças que ali chegavam, tinham o domínio apenas das línguas maternas.

Para a diminuição dessas dificuldades, a fim de garantir a promoção de um símbolo

linguístico unificador, na opinião de Firmino (2002, p.84), as seguintes medidas deveriam ser

tomadas:

concessão de um estatuto claro, livre de ambiguidades, de língua nacional tanto para o

português como para as línguas autóctones;

concessão do estatuto de principal língua oficial em todo o território moçambicano ao

português; e

concessão de estatuto de língua oficial regional às diferentes línguas autóctones

dominantes nas áreas.

Considerando-se que o uso exclusivo da língua portuguesa não promovia o avanço e o

desenvolvimento do número de seus falantes, via-se na proposta de Firmino uma sugestão de

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ensino bilíngue, capaz de elevar o aprendizado do idioma e proteger a identidade

moçambicana, pois as línguas nativas representariam os diversos grupos, e a língua

portuguesa seria aquela que unificaria esses diversos grupos moçambicanos (NAMBURETE,

2006.)

Nessa direção, entendemos que o modelo de Firmino aproxima-se do ideal, uma vez

que exige a criação de rádios, televisões e jornais locais, bem como a tradução de documentos

oficiais para as diversas línguas. Há que se considerar que é um dos métodos mais trabalhosos

e com custo elevado, no entanto, parece ser um dos mais apropriados já que além de

considerar a multipluralidade linguística e cultural do povo moçambicano, reforça a

consciência de nação, o sentimento de pertença comum.

A proposta de um ensino bilíngue deveria priorizar o desenvolvimento educacional da

criança na sua língua local, apreendida e interiorizada ao longo de sua vida pré-escolar, para a

sistematização dessa língua, para posteriormente, desenvolver e sistematizar o aprendizado da

língua portuguesa como segunda língua. Entendemos, diante disso, que a adoção das línguas

moçambicanas no ensino seria um meio para o aprendizado efetivo da língua portuguesa.

Além disso, o método bilíngue valorizaria a língua e as culturas moçambicanas, contribuindo

para a afirmação da identidade e promoveria a unidade nacional, permitindo aos

moçambicanos a comunicação por meio de uma língua comum, o português. Com essa

concepção de ensino, a situação linguística de Moçambique poderia deixar de ser um

obstáculo para o desenvolvimento da sociedade para ser elemento de consolidação da

identidade e independência moçambicana.

Para Lopes (1997, p. 10), “a promoção das línguas indígenas deveria implicar a

aquisição de estatuto de língua oficial (não apenas a sua utilização como expressão de

etnicidade) e de que o Português teria de ser promovido como língua de ligação, a nível

nacional”. Essa perspectiva, além de um ensino bilíngue, sugere o estatuto de língua oficial

também para as línguas nacionais.

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2.2.2 Língua portuguesa de Moçambique

A coexistência da língua europeia com as línguas bantu provocaram algumas

alterações na norma do português. A norma europeia do português em contato com o

contexto sociocultural multilíngue moçambicano passou por um processo de

moçambicanização, fazendo emergir uma vertente moçambicana da língua portuguesa.

As modificações resultantes desse processo natural são mais evidentes na linguagem

oral, já que a escrita, de um modo geral, permanece muito próxima da norma padrão europeia.

Entretanto, essas transformações já permitem afirmar a existência de uma nova variedade

linguística: o português moçambicano.

Lopes (1997, p.40) afirma que: “O Português vem sendo modificado na pronúncia, na

gramática e discurso. As palavras são usadas de maneira diferente e novas palavras são

introduzidas [...] a mudança é natural e inevitável [...]”. Alguns estudos acerca das influências

das línguas nacionais na língua oficial ‘estrangeira’ demonstram que são perceptíveis as

nuances nos campos fonético-fonológico, morfológico e sintático.

É o que apontam, por exemplo, os estudos de Vilela (1999, p.175-195), que resumimos

abaixo:

a) plano fonético-fonológico: constata-se a nasalização incompleta, a não distinção entre

algumas consoantes áfonas e surdas (/d/, /t/, e /k/,/g/), a não distinção entre /l/ e /r/ e a

não distinção entre /r/ e /R/. Além disso, são comuns as eliminações dos grupos

consonantais, como por exemplo, na palavra dificuldade em que se desfaz o grupo

consonantal ld ao se pronunciar [difikulidadi];

b) plano morfológico: são comuns ausências de artigos, por exemplo, Fui buscar livro;

diferenças no uso dos pronomes, o lhe é usado em substituição ao o/a e vice-versa; e a

conjugação verbal, Eu compra lápis;

c) plano sintático: há diferenças no posicionamento do complemento direto e indireto na

frase, Era o comandante a explicar a situação militar; e o emprego frequente de

passivas, Eu fui nascido em Maputo;

d) plano semântico: o sentido da palavra adquire novos significados em diferentes

regiões do país, com por exemplo, a palavra grávida que para falantes da língua E-

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cuabo, falada pela população de Quelimane e Milanje, significa não manter relações

extraconjugais; e, para falantes da língua Cinyungwe, comum na Zambézia, mantém o

sentido de gestação ou adquire o sentido de barriga grande.

Significativas mudanças como essas são positivas, pois confirmam a independência

dessa jovem nação, bem como a construção de uma identidade linguística própria e reafirma a

cultura local, uma vez que entendemos que são as alterações linguísticas sofridas no padrão da

língua europeia que tornam esta mesma língua legitima da comunidade moçambicana.

A presença da língua portuguesa em Moçambique é inegável herança do processo

colonial português, mas também compreendemos, ao observar o seu papel atual, que ao se

constituir como uma nova variedade, a língua portuguesa deixa de “estar em” Moçambique

para “ser de” Moçambique, com características peculiares que a diferencia das normas

europeia e brasileira, por exemplo.

Essa variedade linguística recebeu dos investigadores moçambicanos as seguintes

designações: (a) português de Moçambique, (b) português moçambicano, ou simplesmente (c)

português. Os linguistas que assim denominaram essa nova modalidade são respectivamente

Mendes (2000), Lopes (1977) e Firmino (2002), este último, muitas vezes, também usa o

termo Português em Moçambique. Já a linguista Gonçalves (1996) utiliza tanto o termo

português de Moçambique quanto português moçambicano (cf. MENDES, 2010).

Independentemente da designação adotada, Mendes (2010, p.30) ressalta que:

Os principais factores, que têm contribuído para as suas características, são:

a contextualização do país; a difusão do Português nos meios rurais e

suburbanos; o contacto com outras línguas faladas em Moçambique, tais como Línguas Moçambicanas e o Inglês; a evolução tecnológica, a

valorização da tradição e da cultura moçambicanas.

O português moçambicano, adotando a denominação proposta por Lopes (1997),

Português Moçambicano, é símbolo de identidade e de unidade e da diversidade

moçambicana. Essa modalidade linguística também identifica e diferencia Moçambique dos

demais países de língua oficial portuguesa. A língua, ao mesmo tempo em que une, diferencia

o povo moçambicano no universo da Lusofonia.

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3 LUSOFONIA E IDENTIDADE

É nesta misteriosa dualidade entre diferença e unidade que a lusofonia se

vem cerzindo no espaço e no tempo aproximando o que, doutro modo, se

veria afastado, concertando o que, noutras condições, se veria divido.

Roberto Carneiro14

Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença [...]. Porém a identidade possui uma outra dimensão, que é

interna. Dizer que somos diferentes não basta, é necessário mostrar em que

nos identificamos.

Renato Ortiz15

Para o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP)16

, Lusofonia pode ser

entendida como um (1) conjunto político-cultural dos falantes de português; (2) a divulgação

da língua portuguesa no mundo; e a (3) condição de lusófono.

Segundo o dicionário Aurélio (1999, p.1241), Lusofonia é a (1) adoção da língua

portuguesa como língua de cultura ou língua franca por quem não a tem como vernácula, tal

ocorre, por exemplo, em vários países de colonização portuguesa; e como uma (2)

comunidade formada por povos que habitualmente falam português.

De acordo com o dicionário Houaiss (2009, p.1203), a Lusofonia é um:

(1) conjunto daqueles que falam o português como língua materna ou não. (1.1) conjunto de países que têm o português como idioma oficial ou

dominante [A Lusofonia abrange, além de Portugal, os países de colonização

portuguesa, a saber: Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, abrange ainda as variedades faladas por parte

14 Roberto Carneiro escreveu o prefácio da obra Da Lusitanidade à Lusofonia, de Fernando Cristóvão. Atualmente é professor associado da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, presidente do Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa e do Instituto de Ensino e Formação a Distância. Atuou no Ministério da Educação de Portugal entre 1973 e 1979.

15 Roberto Ortiz é doutor em Sociologia e Antropologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas (São Paulo – Brasil). Entre suas obras publicadas, destacam-se Mundialização: saberes e crenças e Cultura Brasileira e Identidade Nacional.

16 O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP) é um dicionário europeu eletrônico disponível em

<http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=lusofonia>

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da população de Goa, Damão e Macau na Ásia, e tb. a variedade do Timor

na Oceania].

Em busca de consenso para a ideia de Lusofonia, a comparação dessas definições

permite identificar inicialmente duas categorias de significação para o termo Lusofonia. A

primeira é linguística – falantes de língua portuguesa; a segunda geográfica – países de língua

oficial portuguesa e/ou localidades em que a língua portuguesa se faz presente. Além de

perceber essa possível categorização, a comparação provoca também reflexões diversas

acerca do termo Lusofonia, como por exemplo, qual é o conjunto político-cultural dos falantes

de português? Lusofonia seria um movimento de difusão da língua portuguesa no mundo? O

que significa, para os diferentes povos, “ser” lusófono?

Essas questões surgem possivelmente porque a descrição do termo nesses dicionários

não consegue dimensionar o significado de Lusofonia, uma vez que esta palavra carrega

consigo um valor semântico decorrente do fascinante contexto histórico-cultural que precisa

ser considerado na sua conceituação.

Assim, para buscar outras explicações sobre Lusofonia, faz-se necessário,

considerando-se as definições já apresentadas, entendermos que historicamente, o espaço

lusófono inicia-se com Portugal, amplia-se com as colonizações, e, posteriormente, com as

comunidades espalhadas pelo mundo. Portanto, Lusofonia pode ser compreendida como os

espaços em que o português é utilizado não só como língua oficial, mas também de

comunicação cotidiana de muitas comunidades presentes em países cuja língua oficial não é o

português.

A partir da comparação entres os diferentes dicionários, notamos que “o conceito de

Lusofonia é, [...] em relação ao seu uso, mais amplo e denso do que o simples conceito

linguístico [...]” (CRISTÓVÃO et al, 2008). Etimologicamente, o conceito de Lusofonia

assenta-se no significado de dois termos que o formam luso e fonia. O primeiro corresponde a

lusitano ou Lusitânia, ou seja, o mesmo que dizer português. O segundo elemento advém do

verbo grego foneo, que significa falar. Nesse sentido, Lusofonia é o falar português.

A essa conceituação, podemos acrescentar a de Cristóvão “A lusofonia é uma família

que fala uma língua comum em situações diversas onde existem duas coisas muito

importantes que ainda são ignoradas. Por um lado o sentido de unidade, por outro lado o

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sentido de independência nas variedades de cada país.”17

. Nessa conceituação, a Lusofonia se

faz convergente e divergente concomitantemente, uma vez que ao mesmo tempo em que é una

é também diversa.

Diante dessas observações, parece-nos que um dos princípios da reconstrução do

termo Lusofonia é a relação convergente e divergente existente em sua essência histórica e

cultural. Tratar de Lusofonia é, portanto, caminhar por um terreno arenoso, ora convergente,

ora divergente e, sobretudo, por ser um conceito ainda em construção. Por isso, este capítulo

apresenta essa complexa situação e, a partir disso, busca referenciais, sejam teóricos ou

históricos, que possam colaborar para uma definição de Lusofonia e, consequentemente, dos

termos dela derivados.

Ainda, neste capítulo, abordaremos sobre a questão da identidade, por entendermos

que o conceito de Lusofonia perpassa a ideia de identidade sob as perspectivas nacionalista,

linguística e cultural.

3.1 LUSOFONIA: CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS

A polêmica que circunscreve as expressões Lusofonia, comunidade lusófona e mundo

lusófono está no fato de que há, por parte de alguns estudiosos, a compreensão de que a

Lusofonia e os termos dela derivados nada mais são do que elementos de manutenção do

império português.

Numa acepção mais “imperialista”, Lusofonia é compreendida como um movimento

ideológico que surgiu para dar sustento a práticas políticas de colonizadores portugueses na

contemporaneidade. Nesse sentido, a Lusofonia é um “imperialismo disfarçado”, é uma

dominação portuguesa exercida por meio de um colonialismo linguístico, uma espécie de

império da cultura, neocolonialismo cultural, de tal modo que Margarido (2000, p.76) afirma:

17 Entrevista concedida à Rede Globo de Televisão, no dia 20 de novembro de 2006, disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=Vof4kU-IT14.

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O discurso “lusófono” actual18

limita-se a procurar dissimular, mas não a

eliminar os traços brutais do passado. O que se procura de facto é recuperar

pelo menos uma fracção da antiga hegemonia portuguesa, de maneira a manter o domínio colonial, embora tendo renunciado à veemência ou à

violência de qualquer discurso colonial. Ou seja, pretende-se manter o

colonialismo, fingindo abolir o colonialista, graças à maneira como o

colonizado é convidado a alienar a sua própria autonomia para servir os interesses portugueses. O recurso à língua portuguesa não seria uma

operação autônoma, mas antes o elemento central da alienação destinada a

manter o escravo no seu lugar de sempre. (grifo nosso).

Sob essa perspectiva, a Lusofonia nada mais é do que “um rosto sob um véu”. De

acordo com Lourenço (2001, p.164), “não sejamos hipócritas, nem sobretudo

voluntariamente cegos: o sonho de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, bem ou

mal sonhado, é por natureza – que é sobretudo história e mitologia – um sonho de raiz, de

estrutura, de intenção e amplitude lusíada”. Um disfarce que camuflaria as atitudes de uma

nação que persistentemente se julga superior e, por isso, institui a língua portuguesa como

instrumento da neocolonização portuguesa. Desse modo, perdidas as colônias, Portugal veria,

por meio da língua, a possibilidade de manter a sua hegemonia.

Para Rosário (2007), estudioso moçambicano,

Independentemente da postura partidária de quem quer que seja e que pode

enformar o discurso, hoje na essência, a questão permanece inalterável. O destino dos portugueses é plasmar o seu ser nos quatro cantos do mundo. A

história, em parte, confirma isso, na medida em que, a partir do século XV,

Portugal tornou-se numa grande potência mundial, presente em todos os

continentes, fazendo-se respeitar e fazendo com que a sua língua se tornasse na língua franca nos meandros da economia, do comércio e da diplomacia.

Mesmo com o enfraquecimento do estado português e consequente

desaparecimento desse poderio real, os portugueses interiorizaram esse desígnio de grandeza histórica que lhe não permite ser contido naquele

pequeno rectângulo que constitui o seu território.

Se assim pensarmos, a Lusofonia pode ser compreendida como o “Quinto Império

Português”, em que o colonialismo passaria de geográfico a linguístico. Assim, a língua

passaria a ser o explorador e seus falantes, os explorados. Esse procedimento dominador, se

verdadeiro, desencadearia um processo de neocolonialismo português instituído por meio da

18 Preservaremos, nas citações, a grafia original das palavras, isto é, serão grafadas de acordo com a grafia utilizada em cada

país.

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legitimação de uma velha e conhecida prática de colonizadores: marginalização de línguas

locais e, consequentemente, da cultura frente ao idioma e aos costumes portugueses.

Convém lembrarmos, conforme aponta Cristóvão (2008, p.171), que:

Entender a Comunidade da Lusofonia como Quinto Império é a

concretização de um ideal de profundas raízes na cultura portuguesa [...]

para o padre António Vieira e para Fernando Pessoa, o Quinto Império foi coisa perfeitamente definida, e cada um a define a sua maneira. Apenas

haverá um Quinto Império se não existir um Quinto Imperador.

Se assim a compreendemos, a Lusofonia só existira porque haveria nos portugueses a

crença de que este é o meio para a disseminação da “sua” língua e, consequentemente, de sua

cultura, já que para muitos portugueses,

[...] a base da Pátria é o idioma, porque o idioma é pensamento em acção, e o

homem é um animal pensante, e a acção é a essência da vida. O idioma, por isso mesmo é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente

viva, concentra em si, indistinta e naturalmente um conjunto de tradições, de

maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado

morto que só nele pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser amigos dos que falam uma língua diferente. (SERRÃO apud CRISTÓVÃO,

2008. p. 171).

Em função disso, entendemos que os outros países, uma vez colonizados por Portugal,

são parte integrante e constituinte da nação e do território português, tendo como

representação geográfica um imaginário mapa de um Portugal pluricontinental. Na esteira

desse pensamento, a extensão do território português é o ultramar. Os países africanos, o

Brasil e o Timor-Leste pertenceriam, assim, a dois continentes, aquele em que

geograficamente se encontram e ao europeu. Além disso, percebemos que sob a perspectiva

do Quinto Império, o imperador não é necessário porque por meio da língua outros elementos

apareceriam, daí a razão de quanto mais se propagar e ensinar a língua portuguesa, maior seria

o império português.

Nesse caso, a Lusofonia apropriar-se-ia da língua como pretexto de manutenção do

status quo imperialista de Portugal. E, ainda, atribuiria um caráter científico a uma ideologia

pressuposta. Segundo Rosário (2007),

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Os interesses políticos e sobretudo económicos fizeram com que as ex-

potências coloniais desenhassem uma estratégia de continuidade com outra

roupagem. Quer isto dizer que, ao colonialismo clássico se seguia o panorama neocolonial. E uma das configurações que esse novo modelo

tomou foi o de comunidade linguística.

Nesse mesmo aspecto, Honwana (apud GONÇALVES, 2012) afirma que:

o conceito de lusofonia não corresponde a nenhuma realidade sociológica ou política e não tem qualquer validade científica”, e defende que surgiu como

“forma atabalhoada para resgatar o espaço do império cuja desaparição

relegou Portugal a uma situação de subalternidade no palco europeu e mundial”

Diante dessas concepções, notamos que, por vezes, a Lusofonia pode ser

compreendida como elemento de manutenção da hegemonia portuguesa sobre os povos por

ela escravizados e dominados.

O conceito de Lusofonia, no entanto, é, ou pelo menos deveria ser, compreendido

como muito mais abrangente do que a aparentemente simples definição geográfica

colonialista. Reconhecemos, conforme lembra Cristóvão (2008, p.26), que “as raízes da

lusofonia mergulham na tradição mítica de um “Quinto Império” – afinal, foi a língua um dos

instrumentos de dominação portuguesa.

Entretanto, sabemos que o papel da língua portuguesa nos países em que é adotada

como oficial não exerce o papel de dominadora, não tem essa intenção. A língua portuguesa

confere ao povo uma identidade linguística em seu território, a fim de promover a interação e

integração entre a população nacional e a divulgação da cultura desses povos para o mundo.

Até mesmo porque, em tempos de Organização das Nações Unidas (ONU) e dos Direitos

Humanos, são poucos os que ousariam defender a dominação de um povo sobre outro, pois

sabemos que na era da globalização congregar é melhor do que colonizar.

Para Brito e Bastos (2006, p.74), “o que não é viável é a instituição de uma ideologia

lusófona que nasça e corra por conta de interesses político-econômicos na esteira da chamada

globalização”. Afinal, “num tempo de globalização, em que o mote é a constituição de redes

de conhecimento e cultura, os países lusófonos possuem-na, dela têm consciência, e querem

promovê-la e atribuir-lhe um papel efectivo ao serviço do desenvolvimento.” (RODRIGUES,

2006. p.20).

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Nesse contexto, Brito e Martins (2004) assinalam que:

Num tempo marcado, todavia, pela globalização, interculturalismo e

multiculturalismo, o espaço cultural da lusofonia não pode deixar de ser hoje senão um espaço plural e fragmentado, com uma memória igualmente plural

e fragmentada. Quer isto dizer que a ideia de pertença identitária, implícita

no facto de um conjunto de povos falar um mesma língua, não dispensa nunca a consideração de realidades nacionais multiculturais em distintas

regiões do globo, com a língua portuguesa a ter que se relacionar com outras

línguas locais e ter que entrar em muitos casos em competição com elas.

Por conseguinte, a dinâmica da Lusofonia não intenciona, e nem pode, ignorar o

passado do movimento lusófono, o qual já sabemos que se iniciou com as incursões

colonialistas ao redor do mundo. Como bem lembra Rosário (2007), “se quisermos ver

legitimado o conceito que a expressão Lusofonia contém, devemos ir a fundo na busca dos

seus referenciais. Se assim não acontecer, reduziremos o seu alcance a um mero exercício de

retórica política, banalizando-se o seu significado.”

A Lusofonia precisa, então, reconhecer o mal ocasionado pelos colonizadores

portugueses e perceber que esse ranço de negação é herança de suas raízes, a fim de

reconfigurar-se e reconstruir-se no sentido de adquirir um novo significado, em que são

lusófonos aqueles que se comunicam “em (ou também) em língua portuguesa” (cf. BRITO E

MARTINS, 2004). É essa reconfiguração e reconstrução de significado que nos permite

afirmar que se trata de um termo ainda inacabado, portanto, em construção.

A esse respeito, Brito e Bastos (2006, p. 73) lembram que segundo Reis (apud Sousa,

2002. p.306-7)

o conceito de lusofonia pode, então ser formulado tomando por base três

princípios. O primeiro deles é o da globalização, entendendo que os

problemas da lusofonia e a afirmação de uma identidade comunitária que se funda na língua ultrapassam o fator linguístico e convocam globalmente

governos, ONG, sociedade civil, etc. O segundo princípio é o da

diversificação, reconhecendo a heterogeneidade de cada realidade nos países

que compõem a comunidade lusófona e que, do ponto de vista português, são marcados por elementos que não têm origem portuguesa. A revitalização

é o último dos princípios, implicando que a comunidade lusófona, devido à

diversidade de cada realidade, é desigual e muito pouco coesa.

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Nesse aspecto, afirmamos que a Lusofonia pode ser compreendida como espaço de

relações culturais contemporâneas entre os países falantes de língua portuguesa e como

fenômeno cultural que se articula por meio de uma língua comum, que realça, por meio de

suas modalidades, a diversidade linguística e étnica de cada povo pertencente a essa

comunidade. Logo, Lusofonia é uma comunidade para além da questão linguística, embora

seja a língua o elemento primeiro de identificação desse grupo. Entretanto, conforme nos

lembra Namburete (2006, p. 99), “não podemos separar a língua da cultura, uma vez que são

interdependentes na medida em que a língua expressa e representa simbolicamente os

elementos de uma dada cultura e, ao mesmo tempo, é parte constitutiva dessa realidade

cultural.”

Diante do exposto, a Lusofonia quando vista como “Quinto Império Português” não é

Lusofonia é lusitanidade ou lusitanismo ou lusismo ou lusoculturação, ou qualquer outro

termo que signifique ou faça referência explicita ou implicitamente à “somos todos

portugueses”, porque esta seria a raça superior em língua, cultura e civilização. É justamente

nesse ponto que a palavra Lusofonia causa divergências, porque muitos insistem em evocar a

presença de uma hierarquia camuflada.

Diferentemente desta Lusofonia em que “somos todos portugueses”, a Lusofonia em

que “somos todos falantes de língua portuguesa”, o idioma ao mesmo tempo em que nos une,

nos diferencia, já que se deixa modelar pela cultura local. Há, nesse contexto, uma

descentralização do português: o idioma que antes era só de Portugal passa a ser também de

Angola, do Brasil, de Cabo Verde, de Guiné-Bissau, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe

e de Timor-Leste.

No entanto, precisamos reconhecer que na divergência entre a Lusofonia do “somos

todos portugueses” – lusitanismo – e a Lusofonia do “somos todos falantes de língua

portuguesa”, há um ponto de convergência, que é a língua. Apesar de ideologias diferentes, há

entre essas “Lusofonias” um ponto de intersecção; com perspectivas contrárias aproximadas

por um ponto em comum, cada uma delas atribuirá à língua um papel diferente.

O lusitanismo olha para a “sua” língua portuguesa como artifício de dominação de

povos e culturas. Desse modo, se valem da língua para mascarar a real intenção de

assimilação político-cultural e exploração econômica. Contrário a isso, a Lusofonia percebe a

língua como meio de comunicação entre povos e culturas, um encontro de culturas diversas

por meio de uma única língua, a portuguesa. Essa dinâmica é que permite distinguir-se do

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outro pela língua e por ela também perceber-se no outro, sem ignorar a realidade de

diversidade étnica e linguística dos países africanos e de Timor-Leste.

Percebemos, diante disso, que se faz necessário reconhecer que o termo Lusofonia

contém uma dimensão semântica e ideológica capaz de neutralizar outras dimensões que

possam surgir a partir de uma nova realidade global e de perspectivas pós-coloniais e

contemporâneas. Notamos, assim, que se exige ainda tempo para que ocorra um

distanciamento desse passado colonizador, já adormecido no Brasil, mas muito recente para

os países africanos. Por essa razão, Brito e Bastos (2006. p. 72) assinalam que:

Enxergar a lusofonia supõe, assim, distanciar-se da carga semântica evocativa da matriz metropolitana que o vocábulo encerra, propiciando

interpretações que conferem a Portugal um estatuto ascendente numa

situação de relacionamento que se pretende igual (Graça, 1995) [...]. De fato, para os povos que foram colonizados não pode ser simples dissociar o

passado histórico colonial do sentido que ensinam os dicionários: o termo

lusófono aplica-se aos indivíduos que têm em comum a Língua Portuguesa e que partilham elementos culturais e históricos.

Se desconsiderarmos os princípios sugeridos para a formulação do conceito de

Lusofonia, e o restringirmos ou o associarmos unicamente à questão linguística, permanecerá

viva a ideia de Quinto Império porque há entre o lusitanismo e a Lusofonia uma convergência

que é a língua. Como ilustramos abaixo:

Figura 17: Convergência Lusófona

Algumas dúvidas sobre a legitimidade da Lusofonia são, por vezes, geradas a partir

dessa confusão entre os termos. A falta de vontade de pertencer à comunidade lusófona por

parte dos cidadãos não portugueses está no fato de não saber ao certo a qual dessas

“Lusofonias” fazem parte quando dizem somos todos Lusófonos. Por isso, julgamos

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importante detalhar essa intersecção linguística, a qual resulta da composição dos seguintes

conjuntos:

Figura 18: Conjunto lusitanismo Figura 19: Conjunto lusofonia

Sobre isso, ousamos dizer que uma Lusofonia lusitanista corresponde ao período

colonialista; diferentemente de uma Lusofonia contemporânea, que corresponde ao período

pós-colonial. Assim, quando discutimos o conceito de Lusofonia, não podemos deixar de

considerar as motivações históricas que fragilizam e dificultam a definição desse termo.

Como lembra Lourenço (2001, p.176),

[...] a lusofonia não é nenhum reino mesmo encantadamente folclórico. É só

– e não é pouco, nem simples – aquela esfera de comunhão e de

compreensão determinada pelo uso da língua portuguesa com a genealogia que a distingue entre outras línguas românicas e a memória cultural, que

consciente ou inconscientemente, a ela vincula. (grifo nosso)

A língua portuguesa, no âmbito dessa Lusofonia, é tão própria daqueles que foram

colonizados (angolanos, brasileiros, caboverdianos, guineenses, moçambicanos, são tomenses,

timorenses) quanto dos colonizadores. Ainda que originária de Portugal, a língua ganha

contornos da cultura e dos idiomas locais; assim, “é preferível abandonarmos a expressão

Quinto Império e usarmos a que melhor exprime a realidade e os nossos ideais – a Lusofonia.

É que nela, cabem, em pé de igualdade, a unidade da língua e as suas diversas variantes,

nacionais e regionais” (CRISTÓVÃO, 2008. p.15).

Nessa mesma perspectiva, Brito e Bastos (2006, p.75) acrescentam que:

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A lusofonia e a comunidade lusófona só farão sentido quando de lado a lado

se respeitarem (e para se respeitar é preciso conhecer) as experiências, os

valores particulares, a especificidade cultural, o modo próprio de experienciar a realidade e a visão de mundo que cada comunidade vem

fixando na sua norma do português – é essa a perspectiva a adotar para o

entendimento da construção de uma possível identidade lusófona.

Dessa forma, na conjuntura pós-colonial, há necessidade de reconfigurar o sentido de

Lusofonia. A carga semântica desta palavra não é e não pode constituir nem a ideia de

regresso à colonização nem intencionar um caminho ao neocolonialismo. O conceito de

Lusofonia atual contesta e rejeita qualquer ideia de dominação.

A língua é um denominador comum entre os países da chamada Comunidade

Lusófona, mas não é o único fator, até mesmo porque “o panorama linguístico dos três países

africanos continentais e Timor-Leste é de diversidade linguística” (Rosário, 2007). Existe

também um vínculo histórico e um patrimônio resultante de uma colonização multissecular

que provocou dor, mas também gerou laços culturais (e, muitas vezes, consanguíneos). Nessa

linha, Brito e Bastos (2006, p.72) chamam a atenção para o fato de que:

[...] para os povos que foram colonizados não pode ser simples dissociar o passado histórico colonial do sentido que ensinam os dicionários: o termo

lusófono aplica-se aos indivíduos que têm em comum a Língua Portuguesa e

que partilham elementos culturais e históricos. (grifo das autoras).

Nessa mesma direção, o pesquisador moçambicano Namburete (2006, p. 64) defende

que:

Lusofonia é um termo que pretende representar a congregação de um grupo

de países e comunidades que têm um passado comum e características

linguísticas culturais similares. Entretanto, a Lusofonia ainda constitui um pólo de divergência, pois o seu entendimento ainda não é compartilhado por

todos aqueles que deveriam nela se sentir representados. Lusofonia pode

significar nós, mas um nós que é apenas consensual sob o ponto de vista

político, dos governos e Estados. O nós da Lusofonia ainda é controverso entre os acadêmicos e estudiosos, visto que ainda desperta posições muito

degladiantes e, muitas vezes, fantasmas do passado.

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Vemos aqui reforçada a ideia de que construir a definição de Lusofonia é uma tarefa

difícil, árdua e, acima de tudo, delicada, uma vez que não se podem desconsiderar os conflitos

históricos existentes entre o país colonizador e os países colonizados. É importante que esse

sentimento de indefinição – ou melhor de não definição – do que seja Lusofonia é

evidenciado pela palavra “pretende” no trecho acima, diferentemente do que fazem os

estudiosos brasileiros e portugueses, o moçambicano não conceitua o termo.

Brito e Martins (2004, p.10) ainda destacam que:

[...] tendo em vista a amplitude do que, na realidade, é a lusofonia, não cabe

a ninguém a posição de senhor da língua portuguesa. Em Portugal, como em

Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe ou Timor-Leste, a língua portuguesa conhece e constrói a sua

própria história – e, por isso, está muito longe de poder ser tratado como

idioma uniforme.

Sobre isso, Lourenço (2001, p. 165) assegura que “[...] dessa língua, os portugueses

são os atuantes primeiros na ordem da cronologia, mas isso só não lhes dá nenhum privilégio

de ‘senhores da língua’ [...]”. Por isso, não se pode confundir Lusofonia com Lusitanismo,

“colonialismo linguístico”, não se pode remeter o termo em questão à problemática imperial

colonialista.

Além disso, para a existência de um “nós lusófonos” é preciso considerar as

similitudes e as dessemelhanças entre os povos dos países de língua portuguesa, tornando a

Lusofonia um espaço da pluralidade e da diferença. Outro ponto, é o fato de que parece ser

(ou tem sido) apenas papel da academia – universidade – discutir as ações e as relações

lusófonas. É no âmbito da universidade que encontramos pesquisas, publicações, etc. acerca

da Lusofonia e dos oito países de língua oficial portuguesa. Sabemos que ainda não há, pelas

instituições oficiais, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e o IILP (Instituto

Internacional de Língua Portuguesa), ações políticas, econômicas e sociais que promovam, de

fato, a divulgação e a cultura dos países falantes de português.

No Brasil, abordar questões do âmbito lusófono tem sido assunto que se vê fomentado

na área de Letras, tanto linguístico quanto literário, especialmente na primeira década deste

segundo milênio. Exemplo disso foi a criação do Núcleo de Estudos Lusófonos (NEL) da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2003, pelas professoras Regina Brito e Neusa

Bastos. Além de incentivar pesquisas e reflexões no âmbito desta universidade, tem se

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destacado por associações com centros de investigação similares em outros espaços da

Lusofonia. Citemos, também, o Congresso Internacional de Lusofonia, o qual é realizado

bienalmente pelo IP-PUC/SP – Instituto de Pesquisas linguísticas “Sedes Sapientiae” para

Estudos de Português da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Nessa empreitada acadêmica, Fiorin (2006, p.46) explica que:

Para que a lusofonia seja um espaço simbólico significativo para seus

habitantes, é preciso que seja um espaço em que todas as variantes linguísticas sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade. É

necessário que não haja a autoridade “paterna” dos padrões lusitanos.

Evidentemente, a lusofonia tem origem em Portugal e isso é preciso reconhecer. No entanto, o que se espera na construção do espaço enunciativo

lusófono é a comunidade dos iguais, que têm a mesma origem.

Nessa complexa situação, podemos compreender a língua como copropriedade dos

países falantes de língua portuguesa e como tal, cada um acrescenta à sua propriedade seu

próprio tom. De acordo com Cunha, na década de 60, (apud CRISTÓVÃO, 2008. p. 35),

“essa república do português não tem uma capital demarcada. Não está em Lisboa nem em

Coimbra, não está em Brasília nem no Rio de janeiro. A capital da língua portuguesa está

onde estiver o meridiano da cultura”.

Acerca disso, é importante acrescentarmos as colocações de Lourenço (2001, p.177),

as quais procuram esclarecer que:

[...] nem aqui, nem em parte alguma, devemos fazer de conta, nós,

portugueses, que o conteúdo e, sobretudo, o eco desse conceito de aparência

tão inocente arrastem consigo as mesmas imagens, o mesmo cortejo de fantasmas, os mesmos subentendidos ou mal-entendidos, nos diversos

espaços que atribuímos, sem uma onça de perplexidade, à ideal e idealizada

esfera lusófona. (grifo nosso)

Nesta linha, Brito (2002, p.115) assinala que:

Nas relações entre os países lusófonos não devem ser escamoteados os

traumas historicamente provocados pelas relações coloniais [...]. O

conhecimento do passado e o reconhecimento dos seus efeitos traumáticos devem ser assumidos como condição de um novo e saudável relacionamento.

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Desse modo, constatamos que não há como omitir que as raízes da Lusofonia

mergulham numa tradição mítica de um “Quinto Império”. Por isso, é necessário que esteja

muito claro que quando falamos em Lusofonia não falamos em imperialismo, pois não se trata

de impor um imperialismo linguístico-colonial, como afirma Lourenço. Entretanto,

observamos que para isso acontecer, Portugal precisa deixar de enxergar-se como metrópole e

perceber-se como parte integrante de uma comunidade global diversificada.

Ao contrário, fala-se em diálogo numa língua comum. Por isso, segundo Martins

(2006, p.52), “as figuras de lusofonia e de comunidade lusófona não podem, pois, remeter

para um imaginário único, e sim, obrigatoriamente, para múltiplos imaginários lusófonos

[...]”. A comunidade lusófona é, nesse sentido, múltipla, plural, diversa tanto no aspecto

linguístico quanto cultural. Ainda que esta comunidade apresente uma língua única e comum,

o português assume características dos falantes locais e adquire aspectos próprios de cada

povo e de cada cultura, o que permite a sua adjetivação em português brasileiro, português

moçambicano, português angolano e assim por diante.

Não há como negar, portanto, que o termo Lusofonia arrasta consigo conotações e

traumas históricos que geram dúvidas se esta não seria uma forma de reinvenção do

imperialismo português. Essa incerteza, por exemplo, está presente, como poderemos

observar próximos capítulos, em Moçambique, país que ascendeu à independência na década

de 70 do século XX, mais precisamente em 25 de junho de 1975.

Namburete (2006, p.64) chama a atenção para o fato de que:

Grande parte dos escritos sobre a lusofonia coloca maior ênfase na língua

portuguesa, englobando apenas os que falam português e excluindo,

naturalmente, aqueles que, mesmo vivendo em países ou comunidades que

decretaram o português como a sua língua oficial, não falam, não lêem e muito menos escrevem a língua de Camões. (p.64)

Sob essa perspectiva, entendemos que Lusofonia é assunto polêmico porque o seu

significado não é compartilhado por todos aqueles que nela deveriam, ou por ela poderiam, se

sentir representados: os povos dos países que são de expressão oficial de língua portuguesa,

mas também de expressão em tantas outras línguas que não são, ainda, instituídas como

oficiais. Moçambique, por exemplo, país em que apenas 49% da população é falante de

português e 51% são falantes de línguas bantu. É dentro deste mosaico linguístico-cultural

que percebemos que “o espaço cultural da lusofonia é um espaço necessariamente

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fragmentado. E a comunidade e a confraternidade de sentido e de partilha comuns só podem

realizar-se pela assunção dessa pluralidade e dessa diferença e pelo conhecimento

aprofundado de uns e de outros.” (MARTINS, 2006. p.81).

Para Gonçalves (2012),

Uma das razões que torna mais discutível o uso do termo “lusófono” para designar os países africanos de língua oficial portuguesa é que ele faz tábua

rasa da sua realidade linguística. Ao usar este termo “homogeneizante”

(Faraco 2011), apagam-se do mapa linguístico as outras línguas faladas por vastas comunidades de todos estes países, deixando entender que o

português é a língua materna maioritária das suas populações e, por

conseguinte, é também a língua de cultura e de identidade a nível nacional.

[...] “fazer da chamada lusofonia a nossa principal apelação – em detrimento da nossa definição nacional ou da nossa pertença à África – é obliterar ou

pelo menos diferir a afirmação da nossa multiculturalidade”.

Dessa forma, para compreender o que recorrentemente temos apontado neste capítulo,

ilustramos no quadro Afinal o que é Lusofonia? (p.56), a seguir, os conceitos atribuídos ao

termo Lusofonia por três estudiosos, respectivamente português, brasileiro e moçambicano, a

fim de demonstrar o sentimento lusófono nesses três espaços.

Porém, antes, é importante abrirmos aqui um parêntese para esclarecer que o quadro a

ser apresentado restringiu-se a autores português, brasileiro e moçambicano em razão da

temática desta tese. No entanto, identificamos a possibilidade de expandi-lo com percepções

vindas de toda a comunidade lusófona, acrescentando estudiosos de outras nacionalidades, o

que seria nova vertente de pesquisa, fugindo ao objetivo central deste trabalho.

Consideramos importante destacar que as discussões em torno do conceito de

Lusofonia se estendem a língua. Sabemos que a língua portuguesa como língua oficial

desempenha funções que as línguas locais ainda não conseguem exercer. Daí a compreensão

de que o conceito de Lusofonia não pode restringir-se apenas e tão somente ao aspecto

linguístico. Cumpre, ainda, mencionarmos que adotar o português como língua de

comunicação não significa excluir o uso ou o estudo das línguas nativas bem como das

culturas diversas que as circunscrevem.

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PAÍS AUTOR CONCEITO

BR

AS

IL

BRITO E OUTROS

Falar de lusofonia evoca, igualmente, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996 e definida como

“foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, para a concentração político-diplomática e da

cooperação entre os seus membros”, com o intuito de reunir os países de língua oficial portuguesa a fim de uniformizar e difundir a língua e aumentar o intercâmbio cultural entre eles. (BRITO; BASTOS 2011, p.2)

Encontrar significados e direções comuns, no âmbito da lusofonia, também significa reconhecer e respeitar múltiplas e distintas

vozes. A pluralidade de sensações e sentimentos que a mera evocação da palavra faz aflorar, necessita do conhecimento e do

(auto) reconhecimento da imagem histórico-cultural de cada um dos espaços da chamada “comunidade lusófona”. (BRITO; BASTOS; HANNA. 2010, p.159)

A pluralidade de sensações e sentimentos que a evocação da palavra Lusofonia sugere, necessita do (re)conhecimento da imagem

histórico-cultural de cada um dos espaços da chamada “comunidade lusófona”. Nessa direção, num contexto geograficamente disperso, multi e pluricultural, de vários sistemas linguísticos e de diferentes normas do português, somente é possível conceber

uma comunidade lusófona legitima quando a aceitamos como múltipla e quando nela distintas vozes são distinguidas e

respeitadas (HANNA e BRITO, 2010). Assim, encontrar significados e caminhos comuns, no âmbito da lusofonia, também

significa partilhar e respeitar múltiplas e distintas vozes. (BRITO; HANNA. 2012, p.1)

PO

RT

UG

AL

MARTINS

[...] a lusofonia só poderá entender-se como espaço de cultura. E, como espaço de cultura, a lusofonia não pode deixar de nos

remeter para aquilo que podemos chamar o indicador fundamental da realidade antropológica, ou seja, para o indicador de

humanização, que é o território imaginário de paisagens, tradições e língua, que da lusofonia se reclama, e que é enfim o território dos arquétipos culturais, um inconsciente colectivo lusófono, um fundo mítico de que alimentam sonhos. Vou, pois,

tomar a lusofonia no sentido de cultura lusófona. (2006, p.50)

[...] o espaço cultural da lusofonia é um espaço necessariamente fragmentado. E a comunidade e a confraternidade de sentido e

de partilha comuns só podem realizar-se pela assunção dessa pluralidade e dessa diferença e pelo conhecimento aprofundado de uns e de outros. (2006, p.52)

As figuras de lusofonia e de comunidade lusófona não podem, pois, remeter para um imaginário único, e sim, obrigatoriamente,

para múltiplos imaginários lusófonos. (2006, p. 52)

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MO

ÇA

MB

IQU

E

NAMBURETE

A insistência na construção da Lusofonia baseada na língua portuguesa é, em nosso entender, o foco da grande desconfiança que

o assunto desperta em muitos.(2006, p.67)

Pudemos constatar que Moçambique, assim como os outros países africanos que foram colonizados por Portugal, não constituem, pelo menos sob o ponto de vista linguístico, um espaço lusófono. Moçambique, no caso particular, pertence sim ao espaço

“bantófono”, onde as línguas moçambicanas convivem com a língua portuguesa, nem sempre de forma pacífica, uma vez que as

nativas sempre ocuparam uma posição subalterna enquanto que a portuguesa foi sendo protegida e promovida ao estatuto

superior de língua oficial e de unidade nacional, não só através do seu uso exclusivo no ensino e nas transações oficiais, como também foi instituída legalmente a sua obrigatoriedade na burocracia do Estado. Olhando para a situação linguística de

Moçambique podemos concluir que os únicos países que pertencem efetivamente à comunidade lusófona, nos moldes em que

tem sido abordada, são o Brasil e Portugal, onde a noção se um país = uma língua se efectivou, embora no caso brasileiro ainda se possa questionar se os índios não tivessem sido dizimados seria ou não uma nação de língua portuguesa. (2006, p.72)

[...] o maior conflicto reside na própria definição do termo lusofonia, que coloca maior ênfase na língua portuguesa, procurando

deste modo criar um paralelismo com a francofonia ou outras fonias. Esta caracterização empobrece um conceito que devia ser

mais abrangente, englobando aí as inter-relações histórica, culturais, econômicas, emocionais, mentais, linguísticas, políticas, e outros factores que são comuns aos países e comunidades cujo passado tem marcas portuguesas. Pois, de outra maneira, a

lusofonia excluiria logo à partida todos os países africanos que adotaram o português como sua língua oficial, pois nestes a língua

de Camões ainda é falada com regularidade por uma minoria concentrada majoritariamente nas zonas urbanas. (2006, p.65)

Figura 20: Afinal, o que é Lusofonia?

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Percebemos que para se chegar a um consenso sobre Afinal, o que é Lusofonia?é

necessário que os povos, principalmente aqueles aos que o português foi escolhido como

língua oficial, se sintam pertencentes a esse universo lusófono, ou seja, percebam-se como

parte integrante, atuante e formadora desse novo mundo. Entretanto, para que isso aconteça, é

importante que o antigo colonizador também tenha essa percepção e não ressuscite o fantasma

imperialista, especialmente nos países africanos, e reconheça a diversidade linguística e o

multiculturalismo dos países africanos. Para Lourenço (2001, p. 123),

A miragem imperial dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo só

a língua do velho recanto galaico-português ficou como o elo essencial entre

nós, como povo e como cultura, e as novas nações que do Brasil a Moçambique se falam e mutuamente se compreendem entre as demais. Uma

língua não tem outro sujeito senão aqueles que a falam, nela se falando.

Ninguém é seu proprietário, pois ela não é objeto, mas cada falante é seu

guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.

Perceber Lusofonia como um conjunto de comunicação linguístico-cultural é entendê-

la como algo que pressupõe não somente uma razão política de ser – manter as relações

políticas internas e externas de um país – mas também uma motivação cultural e linguística. A

escolha de uma língua como oficial não ocorre tão somente por ser politicamente importante,

mas também por ser culturalmente aceita e falada pelo povo. Nas palavras de Brito (2002,

p.7):

Entendida como um sistema de comunicação linguístico-cultural no âmbito

da língua portuguesa e nas suas variantes linguísticas, diatópicas e diastráticas, a lusofonia compreende os países que a adotam como língua

materna (Portugal e Brasil); língua oficial (PALOP19

e Timor-Leste); língua

de uso (Macau, Goa, Damão, Málaca); além das numerosas comunidades constituintes da chamada “diáspora lusófona”. Esta síntese do mundo

lusófono – que se procura reunir no conceito de lusofonia – pretende

conciliar diversidades linguísticas e culturais com a unidade estruturante do

nosso sistema linguístico.

Nesse sentido, compreender a Lusofonia como veículo de divulgação da língua

portuguesa no mundo é atribuir à Lusofonia a missão de tornar o idioma de origens lusa,

19 Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

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enriquecido por outras culturas, conhecidas e valorizadas no mundo, de tal forma que outros

povos sintam o desejo de aprendê-la. Depreendemos assim que, atualmente, a Lusofonia não

implica o conceito de pátria, muito menos de nacionalidade, mas reflete, por meio de um traço

comum (o português), povos de diferentes países e possibilita entre eles um diálogo.

Acerca dos falantes de língua portuguesa, Cristóvão (2008, p.13) complementa que:

A todos esses povos chamamos lusófonos. Porque “português” é

simbolizado mitologicamente pelo deus Luso, em sinonímia várias vezes repetida em ‘Os Lusíadas’, para designar os que falam ou usam a ‘Língua do

luso’ (= fala do português). Daí dar-se o nome de lusófonos aos que falam

português, e à comunidade formada por eles – a Lusofonia.

Entender o significado de Lusofonia como a condição de lusófono, faz-nos questionar

sobre o que é ser lusófono, isto é, o que caracteriza um país como lusófono e o que caracteriza

um indivíduo como lusófono. É importante que essas características estejam bem claras e

definidas; se lusófonos são os usuários da língua portuguesa, o espaço próprio da língua

portuguesa será aquele em que esses usuários se encontram. Por isso, o próximo item deste

capítulo dedicar-se-á à construção do termo espaço lusófono.

3.2 LUSOFONIA: CONTINENTE IMAGINÁRIO

Sabemos que os processos colonialistas recriaram o mundo ao conferir a este uma

nova formação. A formação do universo lusófono teve início com o desbravamento português

mundo afora com as grandes navegações lusitanas, pois,

[...] quis o acaso que um dia navegadores portugueses tocassem as costas

africanas, descobrindo aquilo que entre outros territórios são hoje os cinco

países africanos de língua portuguesa. Que de tentativa da descoberta do caminho marítimo para a índia resultasse a descoberta de outro vasto

território no Continente Americano, dando origem ao grande País que é hoje

o Brasil. (MOCO, 2002. p. 21).

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Desses grandes feitos do “acaso”, podemos destacar personagens como Vasco da

Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão Mendes Pinto, entre outros. Contudo, ao contrário do

que contam os historiadores, os principais protagonistas dos grandes feitos portugueses,

segundo Cristóvão (2008, p.48-9), foram, e ainda são, “[...] três outros viajantes,

‘clandestinos’, que os ultrapassaram em longevidade, importância e eficácia: a língua, a

cultura, a religião, sendo destes três o mais importante a língua, até porque serviu de

intérprete e companheira permanente aos outros dois.”

Essa afirmação de Cristóvão é evidenciada no momento em que voltamos nossos

olhares para os países que vivenciaram o imperialismo português e notamos que as influências

da cultura e da religião portuguesa estão presentes nos costumes dos povos colonizados,

apesar da complexidade e da singularidade de cada uma dessas nações.

Compreendemos, assim, que uma das concepções atribuídas ao universo da Lusofonia

é a união de países e regiões explorados e colonizados pelos portugueses. Juntas, essas pátrias

compõem aquilo que se denomina atualmente de mundo lusófono. Logo, sabemos que são os

fatos históricos, linguísticos e culturais ocorridos ao longo do período colonial e, também,

pós-colonial que nos permitem construir simbolicamente o universo denominado lusófono.

É nesse contexto paradoxal, que juntos Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,

Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe

e Timor-Leste formam o continente

imaginário da Lusofonia. Ao congregar esses

oito países de língua oficial portuguesa

constituem-se os países lusófonos e,

consequentemente, estabelece-se a geografia

descontínua do continente lusófono.

Acerca disso, Rosário (2007) aponta-

nos uma divergência em relação à

constituição do espaço lusófono:

Normalmente, quando se utiliza a

expressão “Países Lusófonos” a referência

imediata são os países africanos que têm o português como língua oficial e que por

circunstâncias históricas foram colônias de Portugal, tendo ascendido à independência na

Figura 21: Mapa dos PALOP

Fonte: http://www.legis-palop.org/bd/ (2012)

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década de 70 no século XX. E por extensão, já mais tarde, Timor-Leste. Normalmente é senso

comum que o Brasil e os brasileiros não são incluídos neste conjunto, muito menos Portugal.

Nessa direção, a comunidade lusófona seria composta somente pelos Países Africanos

(Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) de Língua Oficial

Portuguesa (PALOP), e pelo país asiático (Timor-Leste) que adotaram a língua portuguesa

como língua oficial, respectivamente no final do século XX e no início do século XXI.

Notamos, nesse caso, que a divergência na concepção do espaço lusófono, a exemplo da

Lusofonia, convergir-se-á no aspecto linguístico.

A comunidade lusófona pode ser compreendida sob duas perspectivas. A primeira é a

instituída pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), espaços em que o

português é idioma oficial; a segunda, proposta por alguns teóricos e estudiosos da Lusofonia,

como por exemplo, Brito e Martins, é os espaços onde (também) se fala o português. Ambas

concebidas como um espaço geográfico descontínuo.

Em outra perspectiva, mas com certa proximidade, Elia (1989, pp. 16-17), apresenta o

espaço lusófono dividido em cinco partes e, ainda, sob uma visão colonialista:

A Lusitânia Antiga compreende Portugal, Madeira e Açores. A Lusitânia

Nova é o Brasil. A Lusitânia Novíssima abrange as nações africanas

constituídas em consequência do processo dito de “descolonização”, e que adoptaram o português como língua oficial: Angola, Moçambique, Guiné-

Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. Lusitânia Perdida são as regiões

da Ásia ou da Oceania onde já não há esperança de sobrevivência para a língua portuguesa. Finalmente, Lusitânia Dispersa são as comunidades de

fala portuguesa espalhadas pelo mundo não lusófono, em consequência do

afluxo de correntes migratórias. (grifo do autor)

Os estudos de Elia antecedem os acontecimentos históricos ocorridos em Timor-Leste,

os quais levaram à escolha da língua portuguesa como língua oficial, em 2002.

Para o Estatuto da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), instituída em

junho 1995, em Lisboa, Portugal, pelos sete presidentes dos países de expressão oficial

portuguesa, aos quais anos mais tarde foi acrescentado Timor-Leste, especificamente no

artigo 6º, o qual define quem são seus participantes, o universo lusófono geograficamente

constitui-se de países de expressão oficial portuguesa, uma vez que o texto do estatuto afirma

que: “[...] qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial, poderá tornar-se

membro da CPLP [...]”. Dessa forma, segundo a CPLP, a visão oficial do universo lusófono

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restringe-se aos países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal,

São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste.

Figura 22: Logomarca da CPLP

Fonte: http://opinioessobreisso.blogspot.com.br/2009/10/cplp.html

Observamos, desse modo, que é a participação comum numa certa língua, a língua

portuguesa, e não noutra que define o universo lusófono. Acrescenta-se a isso o vínculo

histórico de um colonizador comum. Assim, a Lusofonia constitui-se concomitantemente de

forma linguística – pelos países de língua oficial portuguesa, geográfica – pelos espaços em

que estão os países em que o português é idioma oficial, e pelos países que foram colonizados

por portugueses. Em síntese, para a CPLP, o mundo lusófono constitui-se pelo espaço

geográfico em que o português é o idioma oficial.

Nessa perspectiva, o universo lusófono, bem como a Lusofonia, constitui-se

geograficamente assim:

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Figura 23: Mapa Estados-membros da CPLP Fonte: http://www.cplp.org/id-22.aspx (2012)

Nesse sentido, sob a perspectiva da CPLP, compreendemos o universo da Lusofonia

como espaços geograficamente descontínuos, unidos por uma língua – herança de um

colonizador comum e institucionalizada como oficial – que realça, por meio de suas

modalidades, a pluralidade étnica, linguística e cultural de seus povos. Dessa maneira, o

universo lusófono pode ser compreendido como uma identidade linguística partilhada por oito

países unidos por um passado em comum e por uma língua que mesmo enriquecida pela

diversidade desses países, ainda se reconhece como una.

Na linha do proposto pela CPLP, para Lourenço (2001, p.164):

A esfera da lusofonia é, idealmente, a dessa língua, herdada de outras, aparentada com outras, por sua vez aberta [...] a todas as outras com que

entrou em contato enquanto língua de colonização, sem programa

pedagógico de expansão em sentido moderno. (grifo do autor)

Essa língua una deve ser instrumento de união, de entrelaçamento, de ajuda, de

cooperação e de amizade. Não haverá Lusofonia possível sem que haja harmonia entre os

povos falantes de língua portuguesa: “[...] a afirmação de nossa comunidade só se pode fazer-

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se no respeito pelas identidades culturais, às vezes regionais, que há em cada um de nossos

países. (D’LAKHAMA, 2000. p.85)

Acerca disso, é importante ressaltar, como lembra Rosário (2007), que “a base para a

constituição de uma comunidade constituída por esses Países também não adoptou o nome de

Comunidade Lusófona, mas sim Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP.”

Vemos, portanto, que na esfera oficial o termo Lusofonia não é adotado como denominador

de espaço, cultura ou identidade.

Isto observado, constatamos que a palavra Lusofonia e os termos dela derivados não

fazem parte da cadeia semântica dos discursos oficiais. Ousamos dizer aqui que ao não fazer

referência ao termo Lusofonia, a instituição da CPLP distancia-se da polêmica que o cerca e,

assim, estrategicamente assegura uma comunidade global restrita às relações político-

diplomáticas, de cooperação e de promoção da língua portuguesa.

Moco (2002, p.21) assinala que:

O mundo de hoje cada vez mais globalizado ensina-nos que a conjugação de iniciativas tem sempre melhores resultados quando é feita através de uma

união, isto é, através de uma forma de organização concebida e consentido

(sic) pelos respectivos povos e não imposta a estes, que permita congregar os

mais supremos valores que o identificam para que juntos possam fazer face aos novos desafios impostos pela globalização tendentes a encontrar

soluções capazes de resolver situações que cada vez mais requeiram a

colaboração para a concretizarão (sic) de objetivos específicos comum.

Dada a não definição do conceito de Lusofonia e, consequentemente, dos termos dela

derivados, bem como da polêmica histórica que o circunscreve, a utilização do termo

Lusofonia nos discursos ou no nome da instituição certamente não permitiria congregar estes

oito países em uma comunidade.

Numa acepção geográfica mais ampla de Lusofonia, é curioso observarmos que a sigla

CPLP não significa Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, no lugar de Comunidade

dos Países de Língua Portuguesa. Se assim fosse, a sua abrangência geográfica não se

limitaria apenas aos países de língua oficial portuguesa, constituindo, assim, um universo

lusófono, ainda que descontínuo, mais amplo, já que, além dos países membros da CPLP,

estariam os povos de outras comunidades que utilizam o idioma português como meio de

comunicação e expressão, como por exemplo, os goeses e os macaenses. Somam-se ainda

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outras comunidades de falantes de língua portuguesa espalhados pelo mundo: Canadá, Japão,

Índia, França, Austrália, entre outros.

É, pois, assim, o universo lusófono constituído por toda e qualquer região geográfica

onde se fala o português, e não somente pelo espaço geográfico em que a língua oficial é o

português. A partir desse fato linguístico-geográfico, somados a tantos outros, como políticos

e culturais, é que se tem procurado elaborar uma teoria acerca do universo lusófono. Dessa

forma, geograficamente, teríamos:

Figura 24: Mapa do Espaço Lusófono

Fonte:<http://www.febab.org.br/forum/Img/mapa-2.jpg>

Em síntese, o Universo da Lusofonia pode ser percebido como espaços

geograficamente descontínuos, unidos por uma língua em comum, a língua portuguesa,

respeitando-se as suas nuances locais. Esse universo constituir-se-á de um continente

imaterial, já que não se pode pertencer, nem mesmo ocupar vários continentes terrestres ao

mesmo tempo; logo, o universo lusófono só se consolidará como continente imaginário.

Diante do exposto, observamos que o universo lusófono também apresenta

convergências e divergências e, a exemplo de Lusofonia, terá o seu ponto de convergência

também, e principalmente, na língua.

Graficamente:

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Figura 25: Intersecção geográfica do universo lusófono

Todavia, a ideia de universo lusófono não pode estar associada única e exclusivamente

a um espaço de língua e a um espaço geográfico. Esses não são os únicos fatores que, juntos,

dão uma significação para o termo aqui em questão.

Extrapolada, portanto, a definição geográfica, apresentamos algumas concepções

teóricas acerca do espaço lusófono que tem sido defendida por alguns estudiosos. Para

Baptista (2006),

Do ponto de vista da língua, é forçoso reconhecer não só a extrema

diversidade da língua portuguesa no espaço lusófono, o que é um fenómeno

legítimo e natural no contexto da apropriação vivida que cada comunidade faz da língua que chama sua, como ainda, e sobretudo, o facto de a língua

‘lusa’ ter uma presença e importância muito diversas nos países de língua

oficial portuguesa, podendo ir desde a situação do Brasil, que a tem como

língua materna, até à posição extrema de língua absolutamente estranha e estrangeira como o é, por exemplo, para largas faixas da população

moçambicana, angolana e timorense.

Assim, uma das características do espaço lusófono é a diversidade linguística de

línguas nativas que se que se materializam também na e pela língua portuguesa, revelando

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fatores históricos, ideológicos, políticos e culturais que podem melhor significar Lusofonia e

o universo lusófono. A esse respeito, Brito e Martins (apud MARTINS, 2006, p.84) lembram-

nos que “o fato de um conjunto de povos falar uma mesma língua, não dispensa nunca a

consideração de realidades nacionais multiculturais em distintas regiões do globo, como a

língua portuguesa a ter de relacionar com outras línguas locais e a ter que entrar em muitos

casos em competição com elas”.

Nessa concepção do espaço lusófono, é perceptível também um ranço imperialista, já

que segundo Lourenço (2001), “para nós portugueses, a lusofonia preenche um espaço

imaginário de nostalgia imperial, para que nos sintamos menos sós e sejamos visíveis nas sete

partidas do mundo”. Entretanto, se assim pensarem os portugueses, Portugal é o único dos

países que não terá ainda descoberto o verdadeiro conceito de Lusofonia, o qual embora ainda

não esteja definido, sabemos que não traz em sua concepção, ainda que em construção, o

conceito de imperialismo.

Percebemos, então, conforme bem nos aponta Lourenço (2001, p. 112),

o imaginário lusófono tornou-se definitivamente, o da pluralidade e o da

diferença, e é através desta evidência que nos cabe, ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a um espaço cultural

fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido de partilha em comum, só

pode existir pelo conhecimento mais sério e profundo, assumido como tal,

dessa pluralidade e dessa diferença. Se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na medida do possível, como inextrincavelmente

portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ou são-

tomense.

Reconhecer o continente imaginário lusófono sob a percepção da pluralidade e da

diferença é por fim a história de um Portugal dominante e imperialista e abrir espaço para a

que cada um dos países constituintes desse espaço imaginário se (re)apresentem por meio de

sua própria cultura, língua(s), memória e história.

Assim, para constituir o espaço lusófono é necessário respeitar a diversidade cultural,

étnica, geográfica de cada um dos povos pertencentes ou não aos países de expressão em

português como língua oficial. Aceitar essa condição, sem tentar, em qualquer circunstância,

superar uns aos outros, é ser lusófono e pertencer à comunidade lusófona.

Para Martins (2006, p.50),

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[...] como espaço de cultura, a lusofonia não pode deixar de nos remeter para

aquilo que podemos chamar o indicador fundamental da realidade

antropológica, ou seja, para o indicador de humanização, que é o território imaginário de paisagens, tradições e língua, que da lusofonia se reclama, e

que é enfim o território dos arquétipos culturais, um inconsciente colectivo

lusófono, um fundo mítico de que se alimentam sonhos.

Nesse sentido, terá a condição de lusófono aquele indivíduo falante do português

presente em um dos contextos sócio, histórico, linguístico e cultural em que a língua

portuguesa é instrumento de comunicação. É por isso, que entendemos, inicialmente, por

lusofonia o conjunto dos falantes de português como língua materna ou não, sendo, portanto,

um sistema de comunicação linguístico–cultural no âmbito da língua portuguesa em todas as

suas variedades.

Assim, a Lusofonia deve ser compreendida como um espaço de intercambio de

culturas diversas entre povos que apresentam linguística e oficialmente um idioma comum;

entendida como imaginário plural, agregador das identidades de diversos países que partilham

um patrimônio comum.

3.3 IDENTIDADE: CONCEITO EM CONSTRUÇÃO

O conceito de identidade tem sido, ao longo do tempo, um dos grandes

questionamentos das Ciências Humanas e Sociais. De imediato, podemos compreender

identidade como um conjunto de elementos diferenciadores entre seres, ou seja, tudo aquilo

que difere um individuo do outro. Os fatores que diferenciam um ser de outro, ainda sob uma

ótica elementar, são vários: família, lugar de origem, classe social, crença, entre outros. A

família na qual uma pessoa nasce lhe atribui uma identidade ao fornecer um nome e um

sobrenome; o país, o local de origem, uma nacionalidade; as condições sociais, uma

identidade social; as crenças, uma identidade cultural.

Nesse sentido, observamos que uma identidade pode ser construída a partir da

biologia, da geografia, da sociologia, da história do tempo e do espaço em que o indivíduo se

encontra. Dessa forma, compreendemos que identidade pode ser conceituada pelas mais

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diversas áreas do conhecimento. Apesar dessa interdisciplinaridade conceitual,para Albrow

(1999, p. 31) é importante “explicar que ‘identidade’ refere-se à qualidade que identifica uma

entidade ou à qualidade de ser idêntico a si mesmo, ou seja, constituindo uma entidade

identificável”.

De acordo com Santos (2005, p. 135),

[...] as identificações, além de plurais, são dominadas pela obsessão da

diferença e pela hierarquia das distinções. Quem pergunta pela sua identidade questiona as referências hegemónicas mas, ao fazê-lo, coloca-se

na posição de outro e, simultaneamente, numa situação de carência e por isso

subordinação. [...]. É, pois, crucial conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem, com que propósitos e com que resultados.

Sendo assim, a principal questão, então, deixa de ser o que é identidade, para passar a

ser como e a partir do quê, por quem e para que identidade(s) é/são construída(s)

(CASTELLS, 1999). Nessa perspectiva, a identidade se constitui pela exterioridade do sujeito,

por meio de uma relação entre um indivíduo e o outro.

Para Hall (2006), a construção do conceito de identidade baseia-se em três

concepções. A primeira é uma concepção individualista, a qual define identidade como um

conjunto de características que um indivíduo adquire ao nascer e com elas permanecem até o

fim da vida. A segunda é uma concepção sociológica, pela qual se acredita que as crenças

interiores de um indivíduo se constituem a partir da convivência com o outro – familiares,

amigos, vizinhos, colegas de trabalho etc. A terceira é uma concepção pós-moderna, na qual a

identidade de um indivíduo é somatória e a evolução dos conceitos anteriores, o indivíduo não

possui uma única identidade, mas diversas identidades ligadas entre si, de maneira que a

identidade individualista, a sociológica e outras, se houver, encontram-se todas costuradas

umas nas outras, como uma espécie de retalho.

Nesse sentido, Hall (2006, p.12-13) afirma que:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e

estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de

várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. [...] O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas

identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não

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tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se

uma “celebração móvel”; formada e transformada continuamente [...].

É nesse sentido que Santos (2005, p.135) afirma que:

Identidades culturais não são rígidas nem, muito menos imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação.

Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher,

homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em

constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela

sucessão de configurações hemernêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso.

Hall (2006, p.13) destaca ainda que “se sentirmos que temos uma identidade unificada

desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós

mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’” e lembra que:

[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade

tardia, as identidades são cada vez mais fragmentadas e fraturadas; elas não

são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades

estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em

processo de mudança e transformação. (2000, p.108).

Dessa forma, percebemos que a identidade, apesar de ser abstrata, é um elemento de

referência para a constituição de um indivíduo e de uma nação.

Discussões acerca desse assunto aumentaram com o processo de globalização

mundial. Para Giddens (apud HALL, 2006. p.72), “à medida que áreas diferentes do globo são

postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem

virtualmente toda a superfície da terra”.

É nesse sentido que a globalização exigiu do mundo uma nova configuração e,

consequentemente, uma adaptação do homem ao novo modelo de desenvolvimento político e

cultural das sociedades contemporâneas. Anthony McGrew (apud Hall, 2006. p.67) lembra

que:

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[...] a ‘globalização’ se refere àqueles processos, atuantes numa escala

global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando

comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado. A

globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica

clássica da ‘sociedade’ como um sistema bem delimitado e sua substituição

por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço.

Esse movimento ao mesmo tempo em que parece desenvolver uma identidade externa

global, também (re)configura ou reafirmar a identidade interna de um país. Externamente,

notamos a formação ao redor do mundo de comunidades continentais como, por exemplo,

União Europeia e Mercosul. Linguisticamente, podemos tomar como exemplo a francofonia

e, talvez, a Lusofonia. Internamente, notamos a (re)construção de identidades geográficas, a

exemplo da Catalunha; e identidades linguístico-sócio-culturais, como é o caso de países

africanos independentes no final do século XX, como Moçambique.

Nesse processo contemporâneo de reconfiguração mundial, a identidade, tanto coletiva

quanto individual, passou a ser o elemento básico para ajustar o homem ao novo mundo.

3.3.1 Identidade nacional e identidade linguística

A definição primeira que nos ocorre quando pensamos em identidade nacional, na

maioria das vezes, restringe-se ao território geográfico de nascimento de um indivíduo, onde

se desenvolve, na maioria das vezes, uma relação afetiva com o solo que, por vezes, faz o

indivíduo sentir-se parte integrante da terra onde nasceu, gerando laços com a língua e a

cultura local deste espaço territorial, pois, segundo Albrow (1999, p.29), “a nacionalidade é

atribuída [...] por associação com pessoas (indivíduos ou coletividades); por associação com

território; por associação com a cultura”. Esse autor acrescenta ainda que:

“Identidade nacional” então pode significar tanto um traço nacional que uma pessoa possa ter quanto a identidade da nação como entidade. Usada de

forma ambígua, “identidade nacional” pode referir-se simultaneamente ao

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indivíduo e à coletividade. Assim, a “nação” é então constituída por aqueles

que têm a mesma “identidade nacional” (1999, p. 31-2).

Para Canclini (2008, p. 190), “ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um

país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos

que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável.”

Nessa visão, Brito e Martins (2004, p. 72) lembram que:

[...] a constituição de uma nação presume a convivência de diferentes grupos

étnicos e a existência de diferentes camadas sociais; ademais, há a inclusão

de elementos culturais variados, misturas de raças, religiões, línguas, mitos, crenças e tradições, responsáveis por constituírem uma identidade cultural e,

consequentemente, nacional.

Segundo Fiorin (2010, p.16), “a identidade nacional, em todo o mundo, é uma criação

moderna. Tem início no século XVII e desenvolve-se plenamente no século XIX. Antes dessa

época não se pode falar em nações propriamente ditas, nem na Europa, nem em outras partes

do mundo”. Essa criação identitária serviu para diferenciar o povo de uma nação de outra,

atribuindo significados para si e para o mundo ao marcar e ressaltar as igualdades e as

diferenças culturais, linguísticas, sociais e políticas de cada grupo.

Para Mattoso (1998),

a consciência de pertença a um determinado país exprime-se por meio de

uma ideia que se poderia traduzir na frase “nós somos portugueses; os outros são estrangeiros”. Ou seja, eu pertenço a uma categoria de indivíduos que se

caracterizam especificamente pela comum condição de portugueses e que se

distinguem de todos os outros homens por estes não o serem ou, o que é o mesmo, por serem estrangeiros.

Nesse sentido, aquilo que define a identidade nacional de um ser humano é seu

sentimento de pertença, de integração a uma sociedade ou nação, construído por meio de uma

consciência de unidade identitária e/ou consciência de alteridade, isto é, respectivamente a

maneira individual e coletiva como o indivíduo se apresenta ao mundo e/ou a maneira

individual e coletiva como se diferencia do mundo. De acordo com o artigo 15 da Declaração

de Direitos Humanos: “1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será

arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”.

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Hall (2006, p.49) argumenta que “as identidades nacionais não são coisas com as quais

os sujeitos nascem, mas são formadas e transformadas no interior da representação.” A esse

respeito, Bauman (2005, p. 28) acrescenta que:

A identidade nacional [...] nunca foi como as outras identidades.

Diferentemente delas, que não exigiam adesão inequívoca e fidelidade

exclusiva, a identidade nacional não reconhecia competidores, muito menos opositores. Cuidadosamente construída pelo Estado e suas forças [...], a

identidade nacional objetivava o direito monopolista de traçar a fronteira

entre “nós” e “eles”.

Diante dessa perspectiva, compreendemos que as identidades nacionais são imagens

construídas pelo governo de uma nação; dessa forma, cada país elabora sua identidade,

pautando-se na sua própria história, nos seus próprios hábitos e costumes. Nessa mesma

perspectiva, Firmino (2002, p. 31) afirma que:

O nacionalismo constrói-se através de uma consciência popular de nação,

isto é, a consciência de um povo que se sente como uma comunidade ligada por laços históricos, culturais e de uma ancestralidade comum. As nações

podem apresentar características “subjectivas”, consistindo na consciência

nas pessoas da sua nacionalidade e a afeição por ela, a tal ponto que a

aceitam como causa pela qual possam morrer.

Mattoso (1998) lembra que a identidade nacional é praticamente inconcebível:

1. Sem alguma forma de expressão política, isto é, sem que em algum

momento da história se manifeste através da apropriação de um poder dotado

de certo grau de autonomia (ou seja através de alguma formas de Estado); 2. Se um polo espacial e um território determinados, mesmo que esse

polo se transfira para outro ponto e que as fronteiras do território variem ao

longo dos tempos; 3. Sem que a autonomia política e o seu âmbito territorial permaneçam

de forma continua durante um período temporal considerável. [...] a duração

da autonomia política e a continuidade do território são factores importantes

para a solidez e o aprofundamento da identidade nacional.

Entendemos, dessa maneira, que o nacionalismo é uma invenção política do Estado

que ocorre em algum espaço geográfico durante um determinado tempo. A identidade

nacional é formada ao longo do tempo por meio de processos históricos. Não se pode

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acreditar que se trata de algo inato ao ser humano, isto é, pré-existente na consciência do

indivíduo no momento de seu nascimento.

Sabemos que tempo e espaço são elementos móveis nesse processo de nacionalização,

podem, portanto ser alterados a qualquer momento. Dessa forma, apesar de a identidade

nacional permanecer em constante processo de formação, é a invariabilidade desses elementos

por um longo período que pode assegurar a consistência de uma nação. Isto é, se inalterados

durante muito tempo, constituir-se-á uma identidade nacional em relação ao território em

questão. A consciência da identidade nacional, nessa perspectiva, tem valor exclusivamente

territorial de fronteiras, é a fronteira territorial que nos diferencia um do outro.

Por isso, Bauman (2005, p.17) aponta para a necessidade de nos tornarmos conscientes

de que:

[...] o “pertencimento” e a “identidade” não tem a solidez de uma rocha, não

são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de

que as decisões que o próprio individuo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a terminação de se manter firme a tudo isso – são

fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.

Assim, o que nos distingue um do outro, isto é, o que diferencia um indivíduo de uma

determinada localidade de um ser de outra parte do mundo é aquilo que marca a sua

nacionalidade e o seu sentimento de pertença. São as diferenças, neste caso, que ao mesmo

tempo nos constituem e ao mesmo tempo nos difere. Sob essa percepção, a identidade

nacional não pode ser entendida como um fato da vida, nem herança genética, nem herança

territorial. As pessoas não são apenas sujeitos sociais legais de uma nação; elas participam da

ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Nesta perspectiva, a

consciência de identidade nacional só se faz a partir da participação da população na vida

pública de seu país, isto é, pelo exercício da cidadania. Sobre isso, vale a reflexão de Paulo

Freire (1979, p.43):

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele

dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a.

Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é fazedor. Vai

temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. [...] E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também

criando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.

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Logo, sabemos que a identidade nacional de um indivíduo não se restringir apenas a

territorialidade de seu nascimento, mas da sua participação já que, por diversas vezes,

tomamos conhecimento de países, que por razões políticas, privam cidadãos do exercício de

sua cidadania, os quais se veem obrigados a buscar abrigo em outro território, o qual se torna,

muitas vezes, a sua nova nação. Deste modo, verificamos que o sujeito de uma nação é um

importante instrumento para a construção da identidade nacional porque ao ser inserido e

integrado no mundo não só produz cultura, como também configura a história da sua época.

Além disso, Mattoso (1998) aponta para o fato de que o processo de conscientização

nacional pode ocorrer:

[...] pelo uso constante de emblemas e sinais concretos, como escudo de

armas do rei, a bandeira nacional e a moeda. Tornaram-se, de facto, sinais identificadores. A sua categoria simbólica dotava-se de um poder emocional

que contribui para fazer esquecer o seu sentido primitivo de emblemas de

dominação.

Os elementos simbólicos da pátria parecem despertar no indivíduo um poder

emocional que resulta na atribuição de valor positivo ao espaço nacional, que passa a ser visto

como um todo, sem qualquer distinção entre as regiões da nação e, com isso,

progressivamente os indivíduos passam a se conscientizar da identidade nacional numa

percepção coletiva. Nesse sentido, afirmamos que um indivíduo só reconhece, por exemplo, o

seu “eu” nacional, a partir de sua consciência nacional coletiva.

Sob esse aspecto, Mattoso (1998) afirma que:

O processo [de identidade nacional] tem um ponto de partida meramente político: a apropriação do poder por um chefe com uma autoridade própria

sobre um conjunto de homens; tem um ponto de chegada que já não se pode

classificar como meramente político, mas que se situa no domínio dos

fenômenos da sociologia ou da psicologia social. O processo que conduz de um ao outro consiste, em primeiro lugar, no alargamento progressivo do

conjunto de homens que considera um valor a pertença a esse colectivo e que

é capaz de compreender o seu interesse em lhe pertencer; e em segundo lugar na conotação da ideia de colectivo nacional de forma a poder formulá-

la através de representações mentais simultaneamente adaptadas à

compreensão simples e a uma averiguação complexa de sua natureza.

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Apesar das palavras de Mattoso revelar que a ampliação da identidade nacional do

individual para o coletivo ocorre por meio de questões sociais, certamente o fator político é o

fator mais determinante da constituição de uma identidade nacional. Basta olharmos para a

África para reconhecermos que os países existentes hoje neste continente não tiveram origem

a partir de uma questão social, mas de uma questão de política, principalmente aqueles que se

tornaram independentes depois da segunda metade do século XX.

O poder político ignorou as questões étnico-linguísticas dos povos africanos, ou seja,

as questões culturais, constituindo, assim, nações que são um mosaico étnico-linguístico de

povos, na qual nenhum grupo étnico-linguístico emerge como o mais importante e

permanecem unidos por meio da língua daqueles que foram seus colonizadores. Nesse

sentido, além do sujeito, segundo Hall (2006, p.11), “o mais importante símbolo nacional é

sem dúvida a língua. As dúvidas acerca da língua oficial envolvem também importantes

questões acerca da identidade nacional”.

Mattoso (1998) ainda ressalta que

a identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico

que passou por diversas fases até atingir a expressão que actualmente conhecemos. [...]. Nalguns casos os fenómenos culturais terão, porventura,

maior peso na formação da identidade nacional, noutros serão os

acontecimentos políticos os mais decisivos, noutros, ainda, os factores

econômicos ou sociais.

Esse pensamento pode ser complementado pela afirmação de Bauman (2005, p.22): “a

fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas”.

Acerca disso, Hall (2006, p.108) lembra que:

As identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade

tardia, as identidades são cada vez mais fragmentadas e fraturadas; elas não

são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos,

práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em

processo de mudança e transformação.

Logo, entendemos que a identidade nacional constitui-se predominantemente de fatos

históricos, pois entendemos que a história se faz de fatores culturais, sociais, econômicos e

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políticos. Se considerarmos que esses elementos são variáveis e influenciáveis entre si,

compreenderemos que a história é um processo contínuo e em permanente construção e que,

portanto, a identidade nacional de um povo é móvel tanto no seu espaço quanto no seu tempo,

uma vez que podem existir pessoas que depois de certo tempo de convívio em um

determinado local sintam-se pertencentes ao lugar em que vivem e não ao lugar onde

nasceram; bem como pode haver uma reconfiguração geográfica.

No que se refere à reconfiguração geográfica, podemos tomar como exemplo deste

século, as lutas dos separatistas catalães que desejam que a Catalunha seja independente da

Espanha. Se retornarmos um pouco na história mundial, no final do século XIX, nos

deparamos com a Conferência de Berlim que repaginou o continente africano inteiro de

acordo com os interesses econômicos e políticos da França, Alemanha, Portugal, Grã-

Bretanha e entre outros, atribuindo de maneira impositiva uma nova identidade nacional ao

povo africano.

A partir dessa reconfiguração territorial e dos fatores políticos que a sucederam, mais

tarde, já no final do século XX, com as independências dos países africanos, novas

identidades nacionais são (re)formatadas sob a ordem de fenômenos culturais e, também,

políticos. De acordo com Hall (2006 p. 7), “as velhas identidades, que por tanto tempo

estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e

fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”.

Essa reorganização da identidade nacional dos países africanos é na, maioria das

vezes, determinada pelos fenômenos políticos, como é o caso da escolha da língua oficial de

muitos deles. Exemplo disso é o país moçambicano, ao qual dedicaremos o próximo capítulo

desta tese.

Nesse aspecto, para conceber a identidade nacional de um povo, bem como diferenciá-

lo de outros e compreender o seu valor, é necessário reconhecer a sua expressão cultural e sua

política num espaço territorial determinado, pois,

a base da autonomia nacional é a existência de um poder constituído num

território determinado, ao passo que a base da comunidade cultural resulta da adoção das mesmas categorias de interpretação do mundo, do mesmo

sistema de valores e das mesmas práticas culturais. (MATTOSO).

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Nessa perspectiva, a adoção da língua do colonizador como língua oficial, já no

período da independência, vincula-se muito mais a um fator político do que a um fator

cultural. Isso explica, por exemplo, o fato de a língua portuguesa, oficial em Moçambique,

não ser utilizada pela maioria da população.

Por isso, Mattoso (1998) nos adverte que:

[...] as manifestações de consciência de identidade nacional podem ser

diferentes e até contraditórias, conforme grupos humanos que envolvem e as épocas em que se situam. Assim, não é licito atribuir simultaneamente a

todos os habitantes de um país as operações de diferenciação, de significação

e de valorização quando envolvem apenas um determinado grupo.

A luz dessas concepções, a identidade nacional passa a ser compreendida como uma

somatória de valores políticos, culturais, linguísticos, entre outros resultantes de uma

convivência de pessoas que de alguma forma apresentam ao menos um traço em comum, seja

territorial, linguístico, cultural, social ou histórico.

Isso pode ser percebido a partir do processo de globalização mundial. A globalização

modificou o mundo moderno e contemporâneo, transformando fronteiras fixas em fronteiras

difusas. Para Bauman (2005, p. 33):

A sabedoria popular foi rápida em perceber os novos requisitos e prontamente ridicularizou a sabedoria aceita [...]. Em 1994, um cartaz

espalhado pelas ruas de Berlim ridicularizava a lealdade a estruturas que não

eram mais capazes de conter as realidades do mundo: “Seu cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café,

brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Sua letras, latinas.

Só o seu vizinho é estrangeiro”.

Essa transformação desencadeou uma discussão acerca da preservação das identidades

nacionais, passando a unir o mundo não só mais em comunidades continentais geográficas,

mas também em espaços virtuais e imaginários.

Essas considerações remetem a Anderson (apud FIRMINO, 2002, p. 38) que afirma

que:

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“[...] a nação moderna é uma “comunidade imaginada” cujos membros não

sabem muito sobre os seus co-membros, embora exista, em cada mente, um

sentido de comunhão que os une. A nação é imaginada na mente dos seus membros como limitada, já que ela só compreende parte da humanidade e é

distinta das outras nações; como soberana, porque é independente no tocante

à sua legislação interna; e, acima de tudo, como uma comunidade fraternal

na qual existe um profundo espírito de camaradagem horizontal, não obstante as desigualdades e a exploração que os seus membros podem

sofrer”.

Diante do exposto, a concepção de identidade nacional não pode ser compreendida

apenas na sua concretude, isto é, fronteiras fixas, ao espaço de nascimento de um indivíduo; a

identidade nacional de um sujeito deve ser percebida como algo abstrato, isto é, fronteiras

difusas e imaginárias, ao sentimento de pertença, pelo qual se partilha e compartilha línguas e

culturas.

Sabemos que “o povo tem uma identidade, que resulta dos traços manifestados em sua

cultura, a qual, por sua vez, se forja e se expressa pela mediação das linguagens, sobretudo da

linguagem verbal” (ANTUNES, 2007. p.93). De acordo com Firmino (2002, p.19), “a escolha

de uma língua, bem como o uso a que se destina é fundamental para a auto-afirmação dos

povos em relação ao seu meio natural e social, na verdade, em relação ao universo inteiro

[...]”. Por isso, na busca por uma unidade nacional, a língua é um dos fatores que contribui

para a construção identitária tanto de um indivíduo quanto de uma nação, ou seja, colabora

para a constituição identitária tanto da individualidade quanto da coletividade linguística.

Sabemos que a utilização de uma língua varia de acordo com a comunidade de seus

falantes, logo, existem variações linguísticas entre a fala dos habitantes de uma mesma nação,

ou seja, há distinções no uso da língua entre os indivíduos sem comprometer a sua unidade

nacional. De acordo com Bakhtin (2000, p.279), “não é de surpreender que o caráter e os

modos de utilização da língua sejam tão variados como as próprias esferas da atividade

humana, o que não contradiz a unidade nacional da língua”.

Nesse sentido, indivíduos de uma mesma nação, falantes de uma mesma língua,

apresentam características linguísticas que os identificam não só como pertencentes aquele

país, numa determinada época, como também os distinguem dentre as comunidades regionais

daquele espaço nacional num determinado tempo. As distinções linguísticas são, portanto,

também móveis.

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Se a identidade nacional é, na maioria das vezes, atribuída ao individuo no seu

nascimento, a identidade linguística é atribuída a esse indivíduo ao longo do seu

desenvolvimento, por meio da sua interação, primeiramente, com seus pais e familiares que o

cercam e, posteriormente, com a própria sociedade. Considerando-se que ao longo da vida

interagimos com diferentes grupos sociais, entendemos que a nossa identidade linguística

sofre mudanças constantes. Nesse sentido, a identidade linguística, assim como a identidade

nacional, também não é fixa.

Para Mattoso (1998), “a superioridade política deu um suporte decisivo à expansão da

língua dominante à inferiorização das línguas minoritárias, levando ao seu atrofiamento [...].

Nestes casos não são os factores culturais que afectam os fenómenos políticos, mas o

contrário”. Ainda acerca desse pensamento, é possível questionarmos se a aparente

coincidência do português com o território nacional é um factor de identidade ou uma

consequência do factor político (MATTOSO, 1998).

A língua é parte fundamental na cultura de um povo, é por meio dela que nos

comunicamos, nos expressamos e nos constituímos como sujeito. É por meio da língua que

exprimimos nossos pensamentos e também por meio dela que nos apresentamos à sociedade e

ao mundo, é por meio dela que nos identificamos, que contamos quem somos e de onde

somos.

Considerando-se essa questão do ponto de vista linguístico, tão bem lembrado por

Hall, no que se refere à identidade nacional, a África merece destaque não somente pelo seu

contexto histórico, mas também, e, principalmente, pelo seu contexto linguístico-cultural,

tendo em vista a diversidade de línguas faladas neste continente. Desse espaço africano,

restringir-se-á neste trabalho, conforme já mencionado na introdução, à Moçambique, antiga

colônia portuguesa, independente desde 1975, quando se constituiu como Nação e passou a

buscar a (re)construção da sua identidade nacional e linguística.

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4 MOCAMBIQUE É MANINGUE NICE

Está a pegar um bom exemplo: Moçambique, veja lá, Moçambique é

uma palavra portuguesa, derivada do árabe, sabe, Moçalbique. Sabe

que vem do árabe, do século VII? E é português. Maningue é

xichangana, que é uma língua bantu. Nice é... é do inglês. Tá a ver?

Está aqui o caldeirão e este é o moçambicano. É um bocado a man

and woman of the Word.É isto que é. (Armando Jorge Lopes)20

Com base nos pressupostos teóricos acerca de Lusofonia e identidade e do contexto

histórico apresentados nas seções anteriores desta tese, pretendemos desenvolver, analisando

as entrevistas de campo, uma reflexão acerca das características lusófonas, linguísticas e

identitárias do povo moçambicano.

Por isso, passaremos a analisar as entrevistas realizadas na Faculdade de Letras e

Ciências Sociais (FLCS) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), localizada na cidade de

Maputo, Moçambique. As entrevistas apontam algumas facetas identitárias de um pequeno

grupo de intelectuais moçambicanos, por meio das quais podemos abstrair elementos para

uma possível construção do termo Lusofonia, sob a perspectiva moçambicana, ao identificar

se os moçambicanos se sentem parte constituinte dessa comunidade globalizada, “lusófona”.

Pretendemos verificar se, além de moçambicanos, os indivíduos sentem-se também lusófonos,

partícipes de um espaço geográfico descontínuo e imaginário no qual se pretende partilhar

culturas diversas de povos falantes de língua portuguesa.

20 Armando Jorge Lopes, linguista moçambicano, é Professor Catedrático no Departamento de Linguística e

Literatura da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Maputo,

Moçambique, da qual foi também Director (2007-2012). As palavras que aqui são descritas foram gentilmente

dirigidas a mim num rápido bate-papo que tivemos sobre Moçambique, na tarde de 20 de outubro de 2011 .É

importante ressaltar que foram dessaspalavras que surgiu o título desta tese de doutorado.

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4.1 PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO

Como instrumento de pesquisa, utilizamos um roteiro de entrevista semi-estruturada

(apêndice), contendo 30 questões previamente elaboradas, com perguntas abertas e fechadas,

dívidas em quatro partes. A primeira parte, Perfil, caracteriza e apresenta os sujeitos de

pesquisa, isto é, o público escolhido para ser entrevistado, professores moçambicanos

universitários; a segunda, Formação Educacional, descreve a formação acadêmica desses

docentes; a terceira traz a Atuação Profissional revela a prática docente dos entrevistados; e, a

quarta parte, Entrevista, que apresenta a opinião desses professores moçambicanos acerca de

língua(s), Lusofonia e identidade.

Desenvolvida a pesquisa bibliográfica e estruturado o roteiro de entrevistas, estava

lançado o desafio: contatar Moçambique a fim de solicitar auxílio para o desenvolvimento da

pesquisa in loco. Contatamos o Professor Catedrático Armando Jorge Lopes da Faculdade de

Letras e Ciências Sociais (FLCS), Diretor da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da

Universidade Eduardo Mondlane (UEM), que autorizou o desenvolvimento desta pesquisa de

campo na renomada universidade moçambicana.

A UEM é a instituição de ensino superior mais antiga do país, apesar de ser ainda

muito jovem, tendo completado 50 anos, em 2012. Localizada na região central de Maputo,

capital moçambicana, na Praça 25 de Junho, a UEM é uma universidade pública constituída

por 16 centros universitários, dentre os quais destacamos a Faculdade de Letras e Ciências

Sociais (FLCS), com sete departamentos acadêmicos, dois centros de línguas e um centro de

análise de políticas, 250 professores e cerca de sete mil alunos.

Na época do desenvolvimento desta pesquisa de campo, a FLCS, sob a direção do

Professor Catedrático Armando Jorge Lopes, linguista moçambicano, oferecia cerca de dez

cursos de licenciatura, dentre os quais nos chamam a atenção os cursos de licenciatura em

Ensino de Línguas, em Tradução, em Linguística e em Literatura Moçambicana.

É importante destacarmos que o sucesso com as entrevistas só foi possível porque

contamos com o auxílio do Professor Doutor Eliseu Mabasso, assessor do Diretor da FLCS,

que nos apresentou aos professores entrevistados. Foram, no total, agendadas 15 entrevistas.

Dessas, apenas três não puderam ocorrer, por motivos vários, relacionados à comemoração do

dia dos professores – 12 de outubro – e às atividades políticas, referentes à Semana do

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Aniversário de 25 anos da morte de Samora Machel21

– 19 de outubro. Das 12 entrevistas,

desconsideramos uma delas por se tratar de um docente de Agronomia, com formação em

Ciências Agrárias; dessa forma, para análise e validação da nossa pesquisa, analisaremos 11

das 12 entrevistas realizadas.

A razão para escolhermos como sujeitos de pesquisa professores moçambicanos da

área de humanas, preferencialmente área de Letras, deve-se ao fato de ser a Lusofonia um

tema que tem sido constantemente discutido em especial pelas humanidades. Outro aspecto

relevante é o fato de que as questões linguísticas e identitárias do povo moçambicano são

abordadas, prioritariamente, por estudiosos dessa área.

As entrevistas ocorreram entre os dias 10 e 20 de outubro de 2011. Neste período,

houve dois feriados já aqui mencionados, Dia do Professor e 25 anos da Morte de Samora

Machel. Apesar do curto tempo, foi possível reunir informações detalhadas sobre a situação

linguística e identitária moçambicana, bem como reconhecer nos moçambicanos, no contato

cotidiano de Maputo, o Moçambique contado nos livros de história e, também, aquele não

revelado.

4.2 PERFIL DOS ENTREVISTADOS

Para caracterizarmos os sujeitos da pesquisa, a primeira parte do questionário de foi

composto por 12 questões: oito relacionadas à faixa etária, estado civil, nacionalidade,

naturalidade, profissão e religião e quatro relacionadas à língua, permitindo identificar o

número de línguas autóctones e estrangeiras faladas por cada um dos entrevistados.

Para preservação da identidade, os nomes dos informantes serão substituídos pelas

referências: Professor A, Professor B, Professor C, Professor D, Professor E, Professor F,

21 Samora Machel foi um militar moçambicano, combatente da FRELIMO, que liderou a Guerra da

Independência de Moçambique e se tornou o primeiro presidente moçambicano. Governou de 1975 a 1986.

Faleceu num acidente de avião no ano de 1986.

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Professor G, Professor H, Professor I, Professor J e Professor K. Todos os informantes

nasceram em Moçambique e, da amostragem selecionada para análise, cinco são do gênero

feminino (entre 30 e 60 anos); seis do gênero masculino (entre 30 e 65 anos).

A faixa etária do grupo de entrevistados revela um grupo de professores concentrado

entre 31 e 47 anos (55%). O restante está distribuído igualmente na faixa dos 50 e 65.

No que se refere à idade dos entrevistados, é pertinente mencionarmos que neste conjunto

de professores, encontramos quatro docentes que nasceram no período colonial, dois na época

dos movimentos de libertação e quatro no país independente.

Figura 26: Contexto Histórico versus Nascimento

As respostas à questão Quantas línguas você fala? revelam o multilinguismo existente na

nação moçambicana, demonstrando claramente a diversidade linguística já mencionada.

Aspectos apontados pela literatura especializada, no que se refere ao emaranhado linguístico

moçambicano, puderam ser constatados por meio das declarações coletadas. Para melhor

compreensão, observemos, a partir do quadro abaixo, as situações linguísticas dos

informantes:

Professor

entrevistado

Idade

dos

professores

Línguas

moçambicanas

Língua

Portuguesa

Inglês Francês Outras

Professor A 36 5 X X - -

Professor B 36 1 X X - -

Professor C 56 0 X X X X

Professor D 37 1 X X - -

Professor E 47 1 X - X -

PERÍODO HISTÓRICO NASCIDOS

Período Colonial(≤ 1960) 5

Período Movimento de Libertação (≥1961 ≤1974) 2

Período Pós-Colonial (≤1975) 4

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Professor F 60 0 X X X -

Professor G 31 1 X - - -

31 0 X - - -

Professor I 65 1 X X X X

Professor J 51 1 X X - -

Professor K 56 0 X - - -

Figura 27: Línguas faladas pelos professores entrevistados

Por meio da Figura 17, podemos verificar que quatro dos informantes têm a língua

portuguesa como língua materna e não falam nenhuma língua nativa. Ressaltamos ainda que,

para os professores C, F, H e K, a língua oficial é o único idioma falado por eles.

Diferentemente dos demais professores que, além de falarem o português e ao menos uma

língua moçambicana, falam ainda o inglês e até mesmo o francês.

Configura-se, diante disso, o mencionado no capítulo 2, a presença forte do inglês e,

muitas vezes, do francês no contexto moçambicano, o que nos permite verificar como o

aspecto linguístico revela, de fato, questões histórico-sociais moçambicanas.

Nesse sentido, é curioso observar (Figura 18), ainda que a amostragem seja pequena, que

o período colonial, quando a maior parte dos professores nasceu, foi época de restrição do uso

das línguas nacionais e, por isso, esses falantes não as dominam.

Figura 28: Período Histórico versus línguas moçambicanas

Por outro lado, três dos quatro entrevistados nascidos após o período colonial falam

pelo menos uma língua nacional.

PERÍODO HISTÓRICO NASCIDOS

NÃO UTILIZAM

LÍNGUAS

MOÇAMBICANAS

Período Colonial (≤ 1960) 5 2

Período Movimento de Libertação (≥1961 ≤1974) 2 0

Período Pós-Colonial (≤1975) 4 1

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No que se refere aos perfis de formação educacional e atuação profissional, temos a

seguinte situação:

ENTREVISTADO FORMAÇÃO

EDUCACIONAL

ATUAÇÃO PROFISSIONAL

Professor A Mestrado Professor de Graduação

Professor B Mestrado Professor de Graduação

Professor C Doutorado Mestrado/Doutorado

Professor D Doutorado Professor de Graduação

/Assessoria educacional

Professor E Licenciado Professor de Graduação

Professor F Doutorado Mestrado/Doutorado

Professor G Graduado Professor de Graduação

Mestrado Professor de Graduação

Professor I Doutorado Professor de Graduação

/Jornalista

Professor J Mestrado Professor de Graduação

Professor K Doutorado Professor de Graduação

/Pesquisador

Figura 29: Formação e atuação profissional dos entrevistados

Os informantes dedicam-se integralmente ao exercício da docência e apenas um dos

professores entrevistados, além da docência, atua como jornalista.

4.3 A LÍNGUA PORTUGUESA É NOSSA, É MOÇAMBICANA

A pergunta que justifica este tópico é Como você vê o papel da Língua Portuguesa

como Língua Oficial de Moçambique? Para uma compreensão melhor dessa relação do

moçambicano com a língua portuguesa, temos outras questões, tais como Em que

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circunstâncias/situações você usa a língua portuguesa?, Em que circunstâncias você usa as

línguas autóctones?, Na sua opinião, como você avalia a heterogeneidade linguística

moçambicana? e A língua portuguesa e as línguas autóctones convivem bem?.

Para o professor A, “o português não funciona tão bem assim”. Para este informante, a

língua portuguesa ainda é uma língua de elite e de difícil acesso para o povo. Já que “não há

nem um milhão de tiragem de jornal num país em que a população é cerca de 20 milhões”.

Por isso, ele usa a língua portuguesa somente “em sessões formais, como esta [entrevista]”,

por exemplo.

Para o professor B, a língua portuguesa ainda não representa bem toda a população

moçambicana, exceto a que vive em Maputo. Segundo ele, se nos deslocarmos para Gaza, a

província mais próxima de Maputo, é possível notar uma diminuição significativa no número

de falantes de Língua Portuguesa, por isso, ele defende algo similar ao que é proposto por

Armando Jorge Lopes:

E sou defensor de que as línguas moçambicanas devem andar lado a lado, com o português. Por uma questão de princípio, porque nós temos línguas.

Por que é que vamos importar uma outra língua com a qual nos devemos

identificar de facto, quando nós temos as nossas? A língua portuguesa é língua de unidade nacional, muito bem. É preciso que seja dominada pelos

moçambicanos, é preciso que os moçambicanos saibam falar a língua muito

bem, certo. Mas, isso não deixa de fora esta questão, que não defendemos o

que é nosso.

Nessa mesma perspectiva, o Professor C afirma que:

O português é a língua oficial, infelizmente é a única língua oficial. [...]. Embora, a maioria seja nos centros urbanos, nas cidades, não é? Já há uma

camada jovem já muito grande, que fala português como língua materna. E

eu sinto que esta apropriação do português é muito boa porque é uma das línguas, não é, nós não dizemos que temos esta, esta, esta e o português.

Portanto, português é mais uma língua moçambicana. Nós não sentimos

que seja uma língua estrangeira no nosso país, é uma língua moçambicana. E sentimos que aquela língua que nós falamos não é igual à

língua que falam os outros.

Apesar da consciência da necessidade de um país com idiomas locais bilíngues, o

Professor D ressalta que:

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O português, contrariamente àquilo que muitas pessoas costumam veicular por aí, veio para ficar. É uma língua que nós herdamos, por via

colonial. A história assim o ditou e ela veio para ficar. E eu penso que o

papel da língua portuguesa como língua franca vai continuar. Porque para nos cimentarmos. É, materializarmos de forma consistente este

Moçambique, que do ponto de vista linguístico é diverso, tem essa

diversidade toda. E termos, portanto, sucesso, sermos bem-sucedidos, o

papel da língua portuguesa tem que estar lá. É a língua franca, é a língua coma qual os moçambicanos falantes das diferentes línguas bantu podem

usar para se comunicar.

Apesar disso, o Professor G, reconhece que a língua portuguesa é “é imprescindível,

tem que ser, tem que ser, é a nossa língua oficial”.

Diante do exposto, observamos que a língua portuguesa não é um “problema” para os

moçambicanos. A ausência das línguas nacionais como línguas oficiais é que tem sido um

problema, já que 51% da população moçambicana ainda não tem conhecimento do português.

Logo, há um bom convívio entre as línguas autóctones e a língua portuguesa. Do mesmo

modo em que é possível perceber como positiva essa heterogeneidade das línguas

moçambicanas.

Enquanto as línguas autóctones não são elevadas ao estatuto de língua oficial, são

usadas como língua de afeto, como podemos perceber na fala do informante E:

Para dizer a verdade, gosto mais de changana. Porque eu me sinto mais à

vontade. Consigo chorar em changana, não é, seja por assuntos bons, seja

por assuntos maus. Choro nessa língua com mais, digamos, liberdade. Agora, português é uma língua com outro lugar em mim. Não me permite

transmitir as emoções na sua profundidade. [...] Posso dizer que naquele

momento em que queremos ser mais originais, queremos ser emocionais, até

metemos uma palavra em changana, no meio da língua portuguesa. É fascinante isso. [...] changana eu uso numa situação mais doméstica, não é.

Estou em casa, ocorre-me que tenho que me expressar em changana,

expresso-me, sem reservas. [...]

Entre os professores entrevistados a maioria utiliza a língua materna no convívio com

os amigos e a família. Por exemplo, o Professor J que, afirma que usa as línguas nacionais

para “falar com algum parente ou alguém que não se comunica devidamente na língua

portuguesa”. Por outro lado temos, como exemplo, a professora H que faz a seguinte reflexão:

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[Vejo a língua portuguesa] como língua nacional também. Deve,

porque eu, se não, se me disserem que não é língua nacional, então

estão a chamar-me a mim de não moçambicana. Estão a dizer a mim,

particularmente, que nasci a saber falar: “-Mamã, papa, bom dia,

boa tarde.” Não em língua dos meus pais, que eu não tenho

identidade moçambicana. Eu só me identifico com a língua

portuguesa. Não estou a desprezar as outras línguas, estou a dizer

aquilo que é a minha realidade. Se disserem que a língua

moçambicana, a língua portuguesa não é moçambicana, então estão a

excluir a minha identidade e de muitos outros que eu sei que também

têm a mesma situação que a minha.

Dessa forma, percebemos que já há moçambicanos que falam somente a língua

portuguesa e que, por isso, o português já não pode mais ser um questionamento. O português

já é de fato uma língua moçambicana, visto que parte dos moçambicanos já aprenderam a

falar somente em língua portuguesa.

4.4 MOÇAMBIQUE LUSÓFONO: SER OU NÃO SER? EIS A QUESTÃO

Duas são as questões do roteiro de entrevistas que norteiam a análise proposta neste

tópico: Em que medida fazer parte dos PALOP e da CPLP é importante para o

desenvolvimento de Moçambique? e O que você entende por lusofonia?

As respostas apresentadas não só revelam a postura crítica como também questionam a

importância das instituições e do termo Lusofonia para os entrevistados. A partir dessa

constatação, buscamos ouvi-los a fim de compreender o olhar do moçambicano para a CPLP

(Comunidade de Países de Língua Portuguesa), PALOP (Países Africanos de Língua Oficial

Portuguesa) e Lusofonia.

Em relação à primeira questão, Em que medida fazer parte dos PALOP e da CPLP é

importante para o desenvolvimento de Moçambique?, observados os comentários dos

professores entrevistados, notamos que a maioria desacredita, veementemente, do trabalho e

das ações dessas instituição; de modo geral, há descrédito e insatisfação no que se refere à

CPLP e aos PALOP.

Essas considerações são evidenciadas, por exemplo, na fala do Professor B:

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Fala-se muito dessas organizações, PALOP, CPLP. Mas, essencialmente, para o cidadão comum isso não faz sentido. Porque não há, digamos assim,

resultados vistos. Está a perceber? E mesmo na área acadêmica há

indivíduos que questionam muito essas designações de CPLP, PALOP. Até porque PALOP está a sair um bocadinho da moda.

Realçadas pelo Professor C, ao se recordar de um episódio vivenciado por ela no

aeroporto de Portelas em Lisboa:

[...] até agora não se viu nada, não é? Até agora estamos a nível das

intenções, são muito boas, muito bonitas. Mas vou lhe dizer uma coisa, eu

fui a Cabo Verde há duas semanas [...], passei por Lisboa e como eram dez horas de trânsito, eu saí para ir ao guichê. Havia lá um guichê que dizia:

“CPLP”. Eu vou para esse guichê, dizem: “ - Tá fechado. Vai para fila

normal, vai, vai”. [...] A pessoa vai para lá, nem tem ninguém e nem estão lá para atender. Então, quer dizer, eu não vejo grandes vantagens.

Esses aspectos de descrença são também apontados pelo Professor E, para quem, “a

ideia em si que talvez esteja por detrás da criação das organizações não me parece má. Mas,

as agendas ou nascem já com fragilidades ou então não saem do papel”. O Professor A

confirma essa opinião ao mencionar “eu não vejo nada que mude nessas todas convenções”.

O Professor K não sabe precisar se estas instituições são importantes para

Moçambique,mas reconhece que “historicamente há ligações e quando há essas ligações

históricas e que muitas vezes se traduzem também em ligações econômicas e etc, é

importante.”

Além da descrença, é importante assinalarmos a desconfiança existente acerca dessas

instituições. Para o Professor F, “como a CPLP funciona, ela de facto não traz vantagem.

CPLP é Brasil e Portugal. Para os países do continente africano não tem expressão nenhuma

nem nenhuma vantagem. [...]. Por outro lado, falar dos PALOP também é uma terminologia,

uma associação que é discutível.” Entretanto, este informante faz uma pontuação importante:

[...] não considero que seja correto os países africanos deixarem a responsabilidade da solução dos problemas para Portugal e para o Brasil,

não é. Passamos a vida inteira a dizer que isso é um problema de Portugal e

do Brasil. E que fazemos nós, não é? Se estamos dentro de uma realidade, então, temos que ver que solução.

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Percebemos que apesar de a CPLP e de os PALOP não apresentarem expressividade

em Moçambique, o país também não contribui para que isso aconteça, já que não parece

cobrar a participação e exigir o dialogo efetivo dessas comunidades no desenvolvimento do

país.

Acerca deste assunto, convém destacar trecho da entrevista do Professor F que pode

ser uma justificativa pelo desinteresse do moçambicano sobre essas instituições:

Mas, de facto, em Moçambique, se nós fomos buscar a identidade pela

língua e [...] corremos muitos riscos. Porque, por exemplo, em Moçambique

mais da metade da população não tem como primeira língua o português ou não fala o português em casa. Então, é um caminho muito longo até que a

CPLP seja realmente representativa dos interesses de todos estes países,

não é. E dos PALOP, acho que pior ainda.

Notamos que a desconfiança, o descrédito e o desinteresse ocorrem possivelmente

porque essas instituições parecem girar em torno da língua portuguesa, esquecendo-se que a

situação linguística em África é singular, completamente diferente da dos demais continentes.

Diferentemente desses professores, o docente H reconhece que há importância nessas

instituições, principalmente porque estas podem vir a contribuir para o desenvolvimento do

país no momento que o coloca em contato com seus iguais, outros países africanos falantes de

língua portuguesa, que são ao mesmo tempo também seus diferentes:

Só há desenvolvimento quando nós temos contactos além de fronteiras. E se existe países, em nível de África, que fala língua portuguesa, por que não

estabelecer contatos livres? A diferença é que faz o desenvolvimento. É

preciso que Moçambique tenha contato com Angola, Cabo Verde, por aí em

diante, porque só assim que a gente pode ter experiências outras e desenvolver nossa situação. É por isso que eu acho que há uma importância.

É, eu não sei como explicar, mas não é possível que um povo viva sozinho,

não é possível, e ao mesmo tempo desenvolver. É preciso que haja

contactos com outros que tenham algo em comum pra o seu

desenvolvimento. Por isso é que eu acho importante. (grifo nosso).

Observamos que, para o Professor H, um país só pode desenvolver-se se houver troca

com aqueles que têm algo em comum. Para ele, não é possível existir desenvolvimento entre

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os iguais, pois o desenvolvimento de um país ocorre pelo contato com a diferença, com o

diferente.

Nessa mesma linha, o Professor G acrescenta que a troca de experiência é importante

nesse processo de interação com os PALOP: “aprender com essa integração dessas

organizações, a troca de experiência sobretudo é benéfica nesse sentido”.

Nessa direção, o Professor J afirma que “é importante se se implementam os

objectivos para a qual foi criada: aumenta a cooperação e o intercâmbio cultural e uniformizar

e difundir a língua portuguesa. Sob esta perspectiva, o preconizado tem-se efectivado.”

Notamos, aqui, o uso da expressão “uniformizar”. Entretanto, diante do que foi

exposto e daquilo que tem sido transcrito das entrevistadas, ousamos dizer que o termo talvez

tenha sido usado de maneira inadequada, pois não se pretende uniformizar a língua, mas sim

marcar as suas diferenças. Evidenciar que temos uma só língua, que se manifesta por

diferentes modalidades.

Para o Professor D, a importância dessas instituições parece estar no fato de falarmos

um mesmo idioma e termos sidos colonizados por Portugal, já que “nós temos um passado

que duma forma ou de outra acaba sendo comum. [...]. Eu acho que é importante porque

compartilhamos a mesma língua. Nesse sentido, vemos que, para este professor, o valor

dessas instituições está intrinsecamente vinculado à questão linguística. Elas existem apenas

em razão de uma língua em comum. Se considerarmos que, ao tratarmos de língua, diversos

outros fatores estão implicados, como política, cultura entre outros, compreendemos que,

apesar, de parecer simples e contundente, as colocações do Professor D são pertinentes à

história de Moçambique.

Dentre os discursos apresentados, ressaltemos o do Professor I, que tem uma visão

ainda em construção acerca da CPLP:

Penso que embora muitos de nós pensamos, até agora então pensamos, que

a Comunidade dos Povos de Língua Purgues, CPLP, era mais uma unidade

do ponto de vista histórico e cultural, não é verdade. Para somar aqueles

que foram ex-colônias portuguesas. Neste momento estamos a verificar, e com muito agrado, que começa a haver também relações muito maiores,

muito mais culturais. Mas existem também relações econômicas, começam a

haver uma ligação, uma harmonização do ponto de vista jurídico.

Além disso, ressalta que:

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Isto não significa que nós [moçambicanos] não tenhamos alianças económicas e outro tipo no caso onde nós estamos inseridos. O Brasil está a

pertencer ao cone Sul, não é verdade? Tem sua aliança com a Argentina e

como os povos interamericanos. Aqui nós estamos na África Austral [...] vão ter alianças com povos de língua inglesa aqui na zona, nãotem

problema nenhum. [...]. Portugal vai ter com a União Europeia.

Essas observações são pertinentes porque ressaltam que o pertencimento a uma

determinada comunidade global, não impede o estabelecimento de relações com outros países

e até mesmo com outras comunidades globais.

Observado o exposto, a partir da questão Em que medida os PALOP e a CPLP são

importantes para o desenvolvimento de Moçambique? constatamos que essas instituições são

desacreditadas pela maioria dos entrevistados. As intenções dessas instituições parecem

obscuras, uma vez que existe ainda um distanciamento entre o dito e o feito. Os

moçambicanos não identificam, na prática, nenhuma ação dessas instituições que tenha

contribuído para o desenvolvimento efetivo do país. Além disso, questionam a reciprocidade

das relações estabelecidas a partir dessas comunidades internacionais; existe, por exemplo, a

dúvida se há relação de fato entre todos os países ou se as relações são apenas entre Brasil e

Portugal.

A partir dos apontamentos moçambicanos, concluímos que, em geral, o moçambicano

não aprecia as designações de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa ou Comunidade

de Países de Língua Portuguesa. Deduzimos que o motivo dessa rejeição está no fato de

muitos acreditarem, para o futuro, numa política linguística dos países africanos e, em

especial o deles, Moçambique, que passe a congregar mais de uma língua como idioma

oficial.

Entendemos que esse posicionamento é antes um questionamento identitário, pois as

comunidades internacionais ao restringirem seus nomes à língua portuguesa parecem não

congregar ou agregar os países africanos de língua oficial portuguesa, pois parecem

desconsiderar o emaranhado linguístico ali existente.

Nesse sentido, talvez seja necessário a essas instituições repensarem o seu papel

enquanto comunidades de falantes de língua portuguesa, as suas atividades práticas,

principalmente, no que se refere às questões relacionadas à diversidade linguística de países

multilíngues, como é o caso não só de Moçambique, mas também dos demais países

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africanos, a fim de deixar clara a razão da sua existência para os falantes de língua

portuguesa.

Na medida em que há certa rejeição dessas instituições oficiais, para o termo

Lusofonia, a polêmica é ainda maior. Alguns dos entrevistados chegavam a alterar o tom de

voz e se posicionar claramente contra a utilização deste termo, evidenciando, assim, muito do

que Gonçalves e Lourenço apontaram em seus estudos acerca da Lusofonia sob a perspectiva

moçambicana.

O Professor J é bastante sucinto na sua declaração acerca do que se entende por

Lusofonia, para ele simplesmente “trata-se de um termo que caracteriza as identidades

culturais dos países falantes de língua portuguesa”. Essa postura do Professor J pode ser

observada também na questão anterior sobre os PALOPs e a CPLP. Acreditamos que essa

objetividade pode ser um cuidado para não entrar na parte polêmica dessa questão e, por isso,

respeitamos a sua posição e seguimos com a entrevista sem interferir, por exemplo, com

outros questionamentos que pudessem levá-lo a falar mais sobre o assunto.

Para o Professor D, a palavra lusofonia parece não ser um problema, já que ele a

observa do ponto de vista da globalização:

Eu penso que [...] de uma forma muito abstrata, a lusofonia seria este entendimento de trazer todos os países que falam português ao mesmo

patamar [...] E vejo isso como se fosse um fragmento da globalização. Mas

globalização apenas para os países que falam a língua portuguesa, que têm a língua portuguesa como língua oficial. Eu entendo mais ou menos como

isto [...].

Nesse sentido, a globalização é o processo pelo qual determinados países ganham

unidade porque encontram entre si algo em comum. Neste caso, a língua portuguesa,

configurando assim, um espaço imaginário e global, a Lusofonia.

Com percepção semelhante, o Professor G diz interpretar o conceito de lusofonia

como “um espaço em que todos nós nos identificamos sendo falantes de uma mesma língua.

Eu interpreto assim. Então, prefiro pôr de lado essas outras interpretações [...]”.

É curioso observar que, para esses professores, o conceito de Lusofonia vincula-se

única e exclusivamente à língua portuguesa, mais precisamente aos falantes de língua

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portuguesa, contrariando, assim, os teóricos dos estudos lusófonos que afirmam que o

conceito de Lusofonia não pode se restringir à questão da língua.

Sob a ótica do Professor E, Lusofonia é algo que pretende congregar ideias, as quais

podem ser por razões históricas ou lógicas, mas é algo que ainda exige cuidados, como

podemos constatar na sua fala:

Entendo que é uma criação que talvez tenha surgido para acomodar certos

pensamentos, não é. Podem ter uma explicação histórica, podem ter uma explicação até de lógica. É, considero lusofonia, quer dizer, uma prática, eu

não quero admitir que seja uma prática, não é. Uma intenção que merecia

um tratamento um pouco mais atento.

Esse tratamento “mais cuidadoso e atento” proposto reside em precisar o que

exatamente se pretende com o uso deste termo, pois a seu ver, a Lusofonia pode ser:

uma espécie de perpetuação daquilo que era a relação dos países africanos,

não é, de expressão portuguesa, antes das próprias independências. Ora, estamos a usar um novo nome para um fenômeno que já é antigo e que em

muitos desses países, é, foi ultrapassado com recurso da força das armas.

Quer dizer aparecer hoje a defender-se uma terminologia como a lusofonia,

é como se, é, se procurasse cegar as pessoas daquilo que está na vista.

Percebemos neste trecho do Professor E que o conceito de Lusofonia aproxima-se da

lusitanidade, do lusitanismo.

Para o Professor F, se o termo de Lusofonia se circunscrever somente à língua não

agregará os países africanos que falam língua portuguesa, pois a maior parte da população

ainda não fala o português. Nesse ponto, ele assume que tem certas dificuldades em discutir o

conceito de Lusofonia:

[...] o meu principal problema é: quando nós falamos de lusofonia, estamos

a falar só se língua. E se falamos só de língua, aí começa o primeiro

problema, não é. Porque o primeiro problema é que a maior parte dos países, por exemplo, do continente africano [...] a maior parte da sua

população não fala português. Então, partir da língua significa, não é, que

nós temos uma série de limitações. É, eu tenho dificuldades em dizer que sou lusófona, não é. Acho que o termo lusofonia é um termo de caráter

ideológico e politicizado, mais do que um termo que corresponda à

realidade. [...] Então, a questão de lusofonia merece ainda uma discussão

sobre o seu significado para além da língua, não é?

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O docente K já é mais rígido nas suas colocações e questiona o termo Lusofonia:

Não gosto nada desse conceito. E acho que ele não diz nada, sinceramente.

Porque falar de países lusófonos? O que que é isso? [...] Então, o que que é

isso de lusofonia? É porque se fala português? Mas, o que é esse português? Que quando chega ao Brasil tem que ter legendas, porque dizem que não

entendem.

Esse questionamento parece ser um reflexo da sensação de não se sentir representado

pelo termo Lusofonia. Isso fica evidente no seguinte trecho dos comentários do Professor K:

[...] nós levantamos essa questão quando surgiu o Congresso Luso-afro-brasileiro. E o problema é que nós não encontramos outra forma. Eu acho

que até agora se falou nisso também: o que significa luso-afro? Luso:

Portugal, Afro -porque afro é um continente todo. Ou seja, Portugal e Brasil estão lá representados. Afro, o continente africano, é o afro. E, no entanto, a

gente está a pensar mais nos países que falam português. Não é?

Reconhecemos, assim, que o termo Lusofonia, aos olhos dos informantes, parece não

congregar países para uma comunidade globalizada. Entretanto, compreendemos com base

nos estudos acerca do contexto histórico, Lusofonia e identidade, que tratar todos os países

africanos como um bloco único foi durante muito tempo, e ainda é para alguns, um vício do

mundo, que não se restringe, portanto, a Portugal e Brasil. É comum ouvirmos a pessoas

dizerem “eu vou à África”, quando na verdade dirigem-se somente a um dos países deste

continente. É importante que o mundo reconheça que antes de serem africanos, os

moçambicanos são moçambicanos, os angolanos são angolanos e assim por diante. A

diferença entre os povos africanos é marcada pela língua, pela economia, pela história. Se

olharmos os conjuntos de continentes do universo, é, certamente, o continente africano o de

maior diversidade.

O Professor A parece ter essa mesma sensação:

É um termo também político, não serve de nada. Serve para alguns que têm

acesso à informação, têm acesso às normas e tudo mais. O conceito pra mim

seria isso. Porque não sei como vai falar de lusofonia num país em que contando os que têm o português como a língua primeira e aqueles que

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falam português mal, não chega 15% da população total. Estou falando dum

universo de 20 milhões, de moçambicanos. São vinte milhões. Que segundo

os dados estatísticos juntando esses que falam português, todos eles, incluindo-me, não chegamos a 15%. Vamos lá, arriscar mais 30%, que não

tenho o número bem na cabeça. Quando falamos de lusofonia estamos a

falar de quê? Estamos a falar desses poucos, não é verdade? E os outros

muitos [...]

Para esse informante, o termo Lusofonia parece ignorar a população que, embora

presente num país em que o idioma oficial é o português, não fala esta língua, mas se

comunica por meio de outro(s) idioma(s) local(is).

Essa percepção aparece reforçada pela fala do Professor C:

[...] É um conceito que eu não uso, aqui em Moçambique usa-se muito pouco. Porque, na verdade, quando se começou a usar o conceito foi no

sentido de que nós somos todos de expressão portuguesa. Nós não somos de

expressão portuguesa, nós falamos o português como língua oficial, mas nós

temos origens bantu, não é? E aí, eu tinha um colega que diz: “-Nós somos bantófilos. Não somos lusófilos, somos bantófilos.”

Notamos que há, por parte dos entrevistados, certa resistência em aceitar o termo

Lusofonia, porque acreditam estar implícito nele ou a questão do quinto império, ou a

desconsideração do multilinguismo local. Entretanto, para dois deles, o termo, apesar de

conflitante, apresenta significado importante e agrega não só a língua, mas também a cultura

dos países africanos e, consequentemente, de Moçambique.

Para H, nascido em Maputo após a independência, que aprendeu a falar somente o

português, o termo Lusofonia é muito conflitante, porque envolve uma questão de identidade,

que no caso dela existe, como nos revela:

É um termo tão polêmico. Que já foi discutido tanto. Porque lá está a

questão de identidade. Quando está a falar da lusofonia, está a falar

daquele povo ou daquela comunidade que fala a língua lusa. Qual é ela? É

a língua portuguesa. Há aqueles que falam por vários interesses, por vários interesses. Eu, particularmente uso-a, porque não é só por questão de

interesse, também pode ser uma questão de identificação. Uso porque é a

língua com que eu penso. Eu penso com a língua portuguesa, não penso com outra. A lusofonia acaba entrando em mim [...] Eu sou uma, se me

identificar, eu sou... Eu sou uma lusa. Não lusa em Portugal, mas lusa em

Moçambique.

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As reflexões do Professor H acerca da Lusofonia deixam transparecer que o fato de ser

luso na concepção dele não é ser português, é possível ser luso em Moçambique. Entretanto, é

importante mencionarmos aqui que a opinião deste informante destaca-se das demais, pois se

declara como lusófona.

A razão de ela ser o único entre os informantes pode ser encontrada na exposição do

Professor I, ao afirmar que:

[...] há muita contradição na utilização desse lexema. [...]. Dá impressão de

que lusofonia é uma imposição de que todos nós somos falantes de língua

portuguesa, não é verdade. Quando aqui em África [...], não é verdade. Ora bem, isso, por exemplo, as pessoas contestam o fato, diz então: “-Eu sou

bantófono, não sou lusófono.” Eu, aqui em Moçambique, sou bantófono.

Ora bem, se nós nos libertamos desse preconceito e vermos a palavra numa dimensão de outro tipo, uma dimensão, por exemplo, cultural, aí já

aceitamos que de fato, ser de país de língua oficial portuguesa, esse termo

vai corresponder àquilo que é um espaço onde também se fala português. Não se fala exclusivamente o português, mas um espaço onde se fala

português. Portanto, aí lusofonia tem uma terminologia muito própria, ou

seja representa um espaço onde se fala o português.

O que percebemos é que a própria palavra luso já apresenta problemas para os

moçambicanos, por reativar imediatamente um passado ainda muito recente, o da colonização

portuguesa que perdurou por séculos e terminou aproximadamente há 40 anos.

Ao refletir sobre exposto, acreditamos que o conceito de Lusofonia ainda está em

construção, principalmente, porque, apesar da maioria dos professores entrevistados ter

restrições ao termo, vemos em alguns momentos que as ideias de ampliação da utilização do

termo e a exigência de olhar o termo além do aspecto linguístico foi largamente acentuada.

No entanto, a legitimação deste termo somente poder ser conferida pela comunidade africana

de língua oficial portuguesa e enquanto essa comunidade não se sentir parte respeitada e

pertencente a essa comunidade, as discussões e polêmicas acerca do termo persistirão.

No cenário lusófono, em termos de países, não de falantes, Brasil e Portugal, são

minorias. A maioria é composta pelos países africanos juntamente com o Timor-Leste. É esse

conjunto de países que definirá a existência (ou não) da comunidade lusófona, dos indivíduos

lusófonos, enfim da Lusofonia propriamente dita. E isso parece estar longe de acontecer,

porque a preocupação maior desta população moçambicana, não é ser ou pertencer a uma

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comunidade lusófona, mas ser e pertencer a si próprios, pertencer a Moçambique e ser

moçambicano, a fim de construir e consolidar a língua portuguesa bantófona, isto é, o

português moçambicano.

4.5 SER MOÇAMBICANO

A identidade moçambicana já está constituída, uma vez que a primeira coisa que deve

existir num indivíduo de uma dada sociedade e/ou nação é o sentimento de pertença. Nas

palavras do professor H:

Ser moçambicano é ser um cidadão que consegue, dentro do seu país, ter

áreas de intervenção em todas as áreas. Sentir-se moçambicano pra mim é isso, é eu poder estar no meu país e poder sentir-me que posso atuar.

Embora isto não é assim como estou a dizer. Estou a falar aqui de uma

forma literal. Na realidade há coisas que não são, não tem um... Como eu

posso dizer? Não é... Não é capacidade, mas não tem um, não sei se é autorização também. Sinto-me com limites para poder fazer. Porque o

próprio estado não permite que eu faça. Mas, a partir da altura que eu me

sinto realizada em alguns aspectos onde tenho área de manobra, eu posso dizer que me sinto feliz por ser moçambicana. O que não posso fazer em

qualquer outro país. Eu me sinto, eu posso, consigo sair, estar na minha

casa, poder sair, convidar pessoas. Em Portugal eu tive uma grande dificuldade. A vida em Portugal é muito fechada. Principalmente a falar de

Portugal, Lisboa.

Nessa fala, podemos observar que o moçambicano, embora tenha vivido em outros

lugares, identifica-se com a sua própria história e com a história do seu país. Esse sentimento

de pertença a Moçambique, ainda que alguns sintam falta de outro idioma, já está

consolidado. Como podemos observar na fala do Professor K:

[...] eu acho que ser moçambicana é como ser qualquer outra

nacionalidade, não é. É estar ligada a um território, estar ligada a um

grupo de pessoas, mas ao mesmo tempo também ter quer dizer, ter esse sentimento de pertença a um país, mas também ter uma pertença maior.

Porque eu penso, eu sempre pensei que eu não estou apenas ligada a este

país. Eu vejo-me, com o cheiro do meu país, com as cores deste meu país,

mas penso este meu país em função também dos outros países, porque eu não tenho essa noção estreita de nacionalidade, etc, não é, de cidadania. Eu

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vejo-me como uma cidadã do mundo. Mas que tem os pés aqui assim. [em

Moçambique].

Dentre os entrevistados, são essas duas as respostas acerca do que é ser moçambicano

que nos chamam a atenção, pois apontam respectivamente a importância de se identificar

internamente com seu país, mas também estar disposto a dialogar com outras culturas a fim de

contribuir para a sua própria construção identitária, como bem lembra o Professor D: “O que

eu posso fazer é olhar para eles [outros povos] e ver o que eu consigo buscar deles para

aplicar dentro da moçambicanidade”.

Para o entrevistado E,

O moçambicano me surpreende [...]. Não sei se existiriam características,

por assim dizer, são inquestionáveis. O que caracteriza o moçambicano é a surpresa. Ele não é, quer dizer, elevai mostrando coisas que nos fazem

admirar. Há vezes que a gente tem que perguntar: “Aquele é moçambicano

mesmo?” Porque tem, digamos, traços novos, não é?[...] o moçambicano é um indivíduo que facilmente se adapta a novas coisas.

Diante do exposto nos trechos assinalados, podemos afirmar que a língua portuguesa e

a identidade moçambicana não são mais questionamentos. As preocupações de Moçambique

agora são outras, como por exemplo, o ensino bilíngue e a sistematização de línguas bantu

para que possam atingir também o estatuto de língua oficial.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identidade, língua, marcas culturais: são três fantasmas partilhando a

mesma cama. E quando se entra no quarto, acreditando surpreendê-los em flagrante delito eis que descobrimos que não há cama, nem quarto, nem

amantes.

Mia Couto

22

O presente estudo, intitulado Moçambique é maningue nice: reflexões sobre lusofonia

e identidade, teve como propósito responder a duas questões que nortearam esta investigação.

A primeira questão buscava saber se Moçambique, país de língua oficial portuguesa, poderia

ser considerado (ou não) um país lusófono. A segunda pretendia identificar se a língua

portuguesa, ainda que herança do colonizador, poderia ser compreendida como elemento

coesivo e identitário do povo moçambicano.

Para isso, foram traçados como objetivos de pesquisa discutir os conceitos atribuídos

ao termo Lusofonia, buscando identificar e relacionar o mais adequado à proposta desta

pesquisa; abordar o conceito de identidade e de identidade linguística; verificar se há

características que delineiam uma identidade lusófona; contextualizar histórica e

linguisticamente Moçambique; e averiguar se há identificação dos moçambicanos com a

língua portuguesa e se por ela se sentem representados.

Para atingir os objetivos e responder às questões, compilamos informações acerca do

contexto histórico-linguístico de Moçambique e partimos de reflexões sobre Lusofonia e

identidade para analisarmos as entrevistas realizadas in loco, com 11 professores

moçambicanos, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Eduardo

Mondlane, localizada na cidade de Maputo, capital do país.

A partir do desdobramento teórico, podemos compreender Moçambique como um país

lusófono, como partícipe desse continente imaginário, a Lusofonia, desde que

compreendamos o conceito de Lusofonia na contemporaneidade, na perspectiva da

22Nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955, e é um dos principais escritores africanos, comparado a Gabriel Garcia Márquez, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio

União Latina de Literaturas Românicas.

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globalização, de comunidades imaginárias. Entretanto, se, com olhar retrógrado, entendermos

a Lusofonia sob a ótica do passado, é fato que nos depararemos com a dominação imperialista

portuguesa, o que pode nos levar a duvidar da intenção dessa congregação de povos falantes

de língua portuguesa. Quando restringimos nosso olhar ao período colonialista, é difícil

acreditarmos que possam existir relações recíprocas e aproximações identitárias no espaço da

Lusofonia, dada à supremacia portuguesa que permeia esse contexto. Nesse sentido, a

Lusofonia seria um disfarce para a implantação de um imperialismo (neocolonialismo)

linguístico, no qual a imperatriz seria a língua portuguesa, a mesma que, por período

multissecular, impôs-se culturalmente sobre os povos colonizados. Contudo, sabemos que o

olhar restrito ao passado não revela o presente e, por isso, torna-se um olhar simplista e

descontextualizado, desconsiderando as condições de produção do momento histórico

presente, no qual se insere a construção ou reconfiguração da palavra Lusofonia.

Na era da globalização, discorrer sobre Lusofonia não é desconsiderá-la sob a ótica do

passado, da colonização, mas é, também, associá-la ao presente, ao período pós-colonial,

quando se procura congregar e agregar diversas culturas e várias línguas numa determinada

comunidade, em que a relação cultural entre os diversos povos, se dá por meio de uma língua

que é concomitantemente una, mas não é singular; é plural. Una porque consegue congregar

os povos de oito países em torno de única língua e plural porque consegue agregar a essa

mesma língua características de línguas locais desses diferentes povos, a fim de demonstrar a

pluralidade cultural, étnica e linguística existente em cada uma das regiões de uso da língua

portuguesa. É nesse sentido que afirmamos que Moçambique é um país lusófono.

Ainda que mais tarde este país venha a ter outra(s) língua(s) autóctones elevadas ao

estatuto de língua oficial, permanecerá como lusófono. É importante ressaltar que, na

contemporaneidade, as identidades são diversas, nenhuma identidade fecha-se em si mesma.

Vivemos a era de identidades múltiplas; logo, Moçambique pode ser lusófono, mas pode

também ser paralelamente “bantófono”.

Essa multiplicidade de culturas existentes em Moçambique já há muito tempo

evidencia-se no seu próprio contexto linguísitico, a exemplo do título deste trabalho,

Moçambique é maningue nice, em que “Moçambique” é um nome derivado do árabe, “é” é o

verbo ser, conjugado no presente do indicativo em língua portuguesa, “maningue” é um

advérbio de intensidade de uma língua nacional moçambicana e “nice” é um adjetivo do

inglês. Assim, na Lusofonia, Moçambique destaca-se como um dos países multilíngue e

multicultural.

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Ainda sob o ponto de vista teórico, no que se refere à segunda questão, podemos

entender a língua portuguesa como elemento coesivo e identitário do povo moçambicano,

uma vez que identificamos a constituição do português moçambicano – posto que é por meio

da língua portuguesa que moçambicanos têm (com)partilhado valores culturais, que os

identificam e os diferenciam e, também, estabelecido acordos de cooperação para divulgação

e promoção de suas culturas neste mundo globalizado, bem como apresentado ao mundo a

necessidade de sistematização de suas línguas nacionais, seja para o ensino bilíngue ou para a

adoção da(s) língua(s) nacional(is) como língua oficial.

O desdobramento analítico das 11 entrevistas, embora seja um corpus reduzido e, por

isso, que não nos permite generalizações, aponta para uma recusa da caracterização de

Moçambique como um país lusófono. A maioria dos entrevistados ainda não reconhece

Moçambique como integrante da comunidade lusófona, embora reconheça a importância da

língua portuguesa como oficial. Possivelmente, o fato de a maioria dos entrevistados não

reconhecer Moçambique como um país lusófono esbarra ainda em questões de um passado

histórico ainda recente, em que o termo luso associa-se ao colonizador português. Além disso,

questões históricas apontam que Moçambique, ocupa-se, e preocupa-se, atualmente, com a

sua identidade cultural e linguística, como por exemplo, com a necessidade de elevar uma ou

mais línguas moçambicanas ao estatuto de língua oficial ou como língua de ensino.

Moçambique tem, portanto, questões internas que se sobrepõem a essa comunidade, global e

imaginada, a comunidade lusófona.

Para a maior parte dos entrevistados, integrar a Comunidade de Países de Língua

Portuguesa, da CPLP, não significa pertencer, necessariamente, à comunidade lusófona. A

CPLP é uma instituição oficial, e Moçambique é constitucionalmente um país de língua

portuguesa. Identificar-se como membro dessa comunidade imaginada para os entrevistados

envolvem muitas questões que ultrapassam a oficialidade da língua.

Diferentemente disso, no que se refere à língua portuguesa como elemento coesivo e

identitário de Moçambique, notamos que há unanimidade, principalmente pelo fato de que

grande parte dos entrevistados falam somente o português e, também, porque eles veem o

português como a língua de comunicação entre os moçambicanos de língua nacional diversa

um do outro. É na língua portuguesa que os moçambicanos de línguas maternas diversas se

encontram para compartilhar suas culturas.

No entanto, atingidos os objetivos de pesquisa e respondias as questões propostas,

reconhecemos Moçambique como um país pertencente à comunidade lusófona, não só pela

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oficialidade da língua, mas por vermos essa língua assumindo contornos moçambicanos,

configurando-se, portanto, como a variedade do português moçambicano. Sabemos que a

língua oficial de Moçambique é portuguesa, mas é também moçambicana; uma língua

transformada e enriquecida pelos aspectos linguísticos e sócio-histórico-culturais desse país,

os quais já se refletem na estrutura e no léxico da língua europeia. Se por meio da língua que

partilhamos cultura, é esse português moçambicano que partilha, na própria língua, a sua

cultura e a sua história, e faz, consequentemente, esta nação pertencer à comunidade lusófona.

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105

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APÊNDICE

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Parte I. PERFIL

1. Idade:

2. Estado civil:

3. Zona/Região:

4. Nacionalidade:

5. Naturalidade:

6. Profissão:

7. Religião:

8. Quando você pensa em Língua, qual a primeira resposta que lhe vem à mente?

9. Quantas línguas você fala? E quais são?

10. Qual a língua da sua mãe?

11. Qual a língua do seu pai?

12. Qual língua você mais gosta?

Parte II. FORMAÇÃO EDUCACIONAL

13. Grau de Instrução:

14. Ano de formação:

15. Local de formação:

16. Você estudou em Moçambique? Se sim, até que nível? Se não, onde estudou? Por quê?

(Diversidade de formação)

Parte III. ATUAÇÃO PROFISSIONAL

17. Área de atuação:

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18. Disciplinas ministradas:

19. Em qual universidade você atua?

20. Você se considera um intelectual de base ( ) africana, ( ) europeia ou ( ) americana.

Parte IV. ENTREVISTA

21. Em que medida fazer parte dos PALOP e da CPLP é importante para o desenvolvimento

de Moçambique?

22. O que você entende por lusofonia?

23.Em que circunstâncias/situações você usa a língua portuguesa?

24. Em que circunstâncias você usa a língua X, Y, Z (questão 9- Parte I)

25. Na sua opinião, como você avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

26. Como você vê o papel da LP como língua oficial de Moçambique?

27. A língua portuguesa e as línguas autóctones convivem bem?

29. Você conhece palavras/expressões originárias de uma das LNacionais de uso corrente no

português moçambicano?

30. O que é e como é ser moçambicano?

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ANEXOS

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ANEXO A – PROFESSOR A

Idade?

Tenho 36 anos de idade.

Estado civil?

Vou me casar em dezembro. Sou solteiro. Mas sou casado.

Zona e região?

De nascimento ou de habitação. Eu nasci na Manhiça, em 1976, vivi lá até 1984. Por causa da Guerra

Civil tive que inteirar os estudos em uma outra província. Província de Gaza. Lá fiquei até 1995, altura

onde ingressei na universidade [palavra inaudível]. Mas, em termos línguistícos, a língua falada é mais ou menos a mesma, o changana. Tendo algumas variações fonéticas e fonológicas, mas é basicamente

a mesma língua.

Nacionalidade moçambicana? (Sim, moçambicana.) E naturalidade fiocu..

Ficou de Manhiça. Sou natural de lá.

Profissão? Professor?

Sou, sou professor.

Exerce alguma outra atividade ou não?

A minha atividade são basicamente a docência e investigação.

Religião?

Fui batizado na Igreja Católica.Sou católico.

Quando você pensa em língua qual é a primeira coisa que lhe vem à mente, a primeira resposta?

Ou seja, com o que eu penso, que organizo no mundo, acho que o changana.

Quantas línguas você fala e quais?

Eu falo bem changana, ronga, citshwa. Falo mais ou menos, percebo, não sou muito... Muito... Não sou fluente chope[?]. O chope é dos meus avós. E aqui na escola aprendi um pouco macua comunico-

me razoavelmente bem. E em termos de trabalho, eu trabalho atualmente com 16 línguas. Bem

estruturadas em análise linguística. Mas, falar são, as moçambicanas. As estrangeiras, falo bem o português, falo bem o inglês.

Qual a língua da sua mãe?

Changana.

Seu pai?

Chope.

E qual língua você mais gosta?

Eu gosto mais do changana porque é a língua que mais domino. [palavra inaudível] domino melhor que todas outras, o português, o inglês e tantas outras, domino muito bem. Porque cresci nessa zona

durante, vamos lá, 18, 19 anos, só ouvia isso. E era, realmente, falava português, porque se fala

português na escola. E comecei a falar português mais ou menos com alguma regularidade já quando estava a me preparar pra fazer nível médio. Portanto, que a minha escolarização toda é feita em

changana. Agora, em termos identitários, identifico-me com o chope, porque aqui no Sul de

Moçambique, ali que o meu apelido, a etnia de identidade é que vieram dos meus pais, dos pais. Por

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isso fiz questão, agora sou crescido, não conhecia qual [trecho inaudível]. Daí [palavra inaudível] os

meus avôs, meus bisavôs, conheço-os muito bem.

E conheço algumas coisas também do chope, por exemplo, música. Por exemplo, música chope é ritmo diferente. E acho que é isso.

Ano de formação do mestrado?

O mestrado fiz em 2008.

Local foi aqui mesmo [Moçambique]?

Foi aqui mesmo.

Você estudou então, o tempo todo aqui em Moçambique? Chegou a sair fora do país ou não?

Bom, eu saí regularmente dois anos para a conferência da Larso[?]. Sou membro da sessão de ministro da África Austral e onde faço as minhas publicações periódicas. Normalmente em língua inglesa. Já

para, já fui a, digamos, estágios em instituições que a universidade tem uma parceria lá. [...]

Então, você é um intelectual de base africana?

Digamos que sim, digamos que sim. Mas, é, se quando, é, referimos ao lugar sim. Mas, é, [...] pessoas, porque os meus professores, todos eles quase têm formação estrangeira. Por exemplo, o professor

[nome inaudível] doutorou-se na Califórnia, outo professor em Ohio. O professor Catupa foi na Grã-

Bretanha, não sei em que universidade, esqueci.

Se você tivesse que dizer sua... Que a sua base, você diria que a sua base é africana, europeia,

americana? O que você diria?

Bom, na academia de base é sempre complicado. E por que utilizamos modelos teóricos quanto conceituais, que são universais. Há dias estou com uma professora espanhola. Ela quis ler muitos

textos que eu escrevi, ela leu alguns: “-E você escreveu [trecho inaudível].” Escrevemos lá, quer

dizer, a linguagem é a mesma, a [palavra inaudível] é a mesma, a metodologia é a mesma.

Então, eu não sei se mesmo, como se fala, de discutir ciência social, se é pra algum país. Por isso que você olha a forma desse cara, as diferenças, se a tendência é base portuguesa, mais francesa, mais

inglesa. Mas, o básico é isso. Agora, em termo formação, a minha formação eu posso dizer que foi

feita quase 99% aqui no Eduardo Mondlane.

É, em que medida você acha que fazer parte dos PALOPS e da CPLP é importante para o

desenvolvimento de Moçambique?

Perguntando umas questões difíceis, né. (É.) Porque, na prática, CPLP e Palope é uma coisa percebida meramente no campo teórico, político, não é nada. (Certo.) Ãh, sabia que Moçambique foi através da

comunidade árabe?

É dos Palops. Somos, há algumas formas, sei lá, temos muitas coisas para afirmamentos políticos, em

que pouco até, na prática, o país se beneficia com isso. Isso é a minha opinião super pessoal, porque não vejo.

[...]

O que o senhor entende por lusofonia?

É um termo também político, não serve de nada. Serve para alguns que têm acesso à informação, têm

acesso às normas e tudo mais. O conceito pra mim seria isso. Porque não sei . Como vai falar de

lusofonia num país em que contando os que têm o português como a língua primeira e aqueles que

falam português mal, não chega 15% da população total. Estou falando dum universo de 20 milhões, né, de moçambicanos. São vinte milhões. Que segundo os dados estatísticos, juntando esses que falam

português, todos eles, incluindo-me, não chegamos a 15%. Vamos lá, arriscar mais trinta por cento,

que não tenho o número bem na cabeça. Quando falamos de lusofonia estamos a falar de quê? Estamos a falar desses poucos, não é verdade? E os outros muitos, é verdade também que as línguas

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deles, faladas, uma percentagem muito grande entre eles. Mas, que muitas são deles, não entram nesse

esquema.

Aliás, a própria nossa Constituição. No Artigo nono, a Constituição diz que a língua oficial é o português. O artigo décimo diz que promove as línguas moçambicanas. Ou seja, se promove é pra ser

museu, né. Quer dizer, que não quero que a minha mulher ponha, mexe ou que se pinta, mas eu não

gosto de mulher que se pinta. Isso não funciona, não funciona. Eu até ia perguntar: “-Não, mas O

ensino bilíngue da forma como foi concebida, assim da forma como está, está feita. Depois [trecho inaudível] depois?” Se não pode fazer nem sequer um requerimento pra falar, pra pedir um terreno pra

ele ficar na terra dele?

Em que circunstâncias e situações você usa a língua portuguesa?

Em sessões formais, como esta, em sessão e em que as pessoas que estão no contexto que não falem,

é. Não falem o português. Em casa tenho dois registros, porque naturalmente, posto que é cidade, né.

Nós temos as crianças, [palavra inaudível] uma instituição pra cuidar e lá usam o conhecimento em

português. Então, a linguagem do dia a dia com as minhas crianças é em português. Mas, também falam algumas palavras em changana.

Então, em que circunstâncias você usa essas línguas que você me falou?

Ok. Fora desses convívios, por exemplo, perto dos meus amigos, né, aqueles amigos em geral, parceiro, de infância. Também falam bem português, mas quando estamos entre nós, usam mais

changana, por exemplo. Em ambientes não formais todo mundo falava coisas nessas línguas.

Gostamos, não sei, gostamos, pois também ficamos mais à vontade, né, gostamos. Quando vou ter com os meus avós, em Gaza, tento balbuciar o chope, falo chope, porque não falam outra língua. E

não falam em outra língua, então tenho que comunicar em chope. Não falei pra você que não falam

outra língua. Não falam outra língua, pronto, está claro. Eu trabalho muito nas províncias. Aí eu vou

dar aos professores que trabalham no ensino bilíngue, material. [...]

Na sua opinião, como você avalia essa heterogeneidade linguística moçambicana?

Para mim é útil. Acho que é uma coisa, ser heterogêneo, né, é ser diferente. Outra coisa é ser negro,

né. Porque agora eu participei de noções de língua bantu para o curso de desenvolvi... Educação de infância.Então, os alunos nos perguntava: “-Mas, professor como é que você pensa que... Que vamos

ensinar língua bantu a essas crianças tal, tal, tal? Quando sabe que a língua bantu não serve pra

nada, no fundo.” De fato, oficiais não serve para nada, serve para ser museu apenas. Isto está sendo enganado. Eu dei um exemplo muito simples, inclusive aconteceu de uma vez, tem a ver com o

sistema do serviço [palavra inaudível] obrigatório. Conhece? Aqui em Moçambique, até os 18 anos, a

pessoa, aos 18 anos tem que se inscrever obrigatório.

E a língua portuguesa e as línguas autóctones, nesse contexto, convivem bem?

O problema não é linguístico, é das pessoas. Convivem perfeitamente. Embora a língua portuguesa

seja uma língua a demandar uma classe das outras, é verdade. Ao posto que algum dia tem que, por

essa via, ter uma conversa pela sociedade. Eu concordo [trecho inaudível]. Agora, não estou contra que ela exista, que faça o papel que tenha, eu também uso a língua portuguesa, tudo bem. Mas, as

outras também têm [trecho inaudível]. Tão muito desequilibradas.

E você conhece palavras ou expressões que sejam das línguas nacionais, que sejam de uso

corrente no português? (Expressões idiomáticas?) É. Expressões ou palavras que sejam de uso

corrente no português?

Uma expressão que seja usada dentro da duas línguas? Hum, falado não. Não, porque são popular é

sempre ligado a uma língua. [...]

E o que é ser e como é ser moçambicano?

Na minha forma de ver, ser moçambicano... Primeiro: ser moçambicano, aliás, ser moçambicano é

reconhecer as diferenças que nós temos. Nós somos tão diferentes na forma de falar, na forma de vestir, na forma de comer, somos tão diferentes. Ser moçambicano, pra mim, é reconhecer essas

diferenças. E o que é típico de Moçambique é dentro dessas diferenças conhecer o típico delas. A

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forma como as pessoas estão organizadas, como cresceram, como socializaram, tem tudo a ver. Se

pegar [palavra inaudível], compreendendo melhor as nossas diferenças, podemos [trecho inaudível].

[palavra inaudível], que agora não, já entendemos. Mas, há muitos termos típicos que te podem ser normais, para nós changanas, chopes, ronga, mas que são anormais, por exemplo, entre macuas. Hum.

Vou te dar um exemplo muito simples e meramente cultural. Ãh, há pessoas, normalmente em macua.

Então, o que caracteriza o moçambicano?

Nós temos tantas coisas que nos caracterizam, uma... Tantas. Vou começar da... Da que você já viu muitas vezes: convívio. Moçambicanos convivem [palavra inaudível]. É, até alguém disse que [trecho

inaudível] juntar três pessoas já é festa.

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ANEXO B – PROFESSOR B

Idade?

Idade? Trinta e seis.

Estado civil?

Casado.

Zona ou região que pertence?

É... É, onde nasci? Aqui em Maputo. É, a cidade de Maputo.

Nacionalidade Moçambicana?

Moçambicana.

Naturalidade?

Aqui, nasci aqui na cidade de Maputo.

Profissão?

Eu sou docente.

Religião?

Ah, católica.

Professor, quando o senhor pensa em língua qual a primeira resposta que lhe vem à cabeça? (Língua?) É.

Meio de comunicação. É, de identidade também. É um meio de inclusão. Sim, numa sociedade. São as

primeiras coisas que me me vem à cabeça, né. Embora seja também de exclusão, porque aquelas que

não falam a nossa língua depois se sentem um bocadinho excluídas.

Professor, quantas línguas o senhor fala?

Eu falo bem o português, a minha língua ronga. O inglês, falo aquele inglês, pronto, para me

relacionar com as pessoas e um bocadinho do inglês acadêmico. Não no sentido de me comunicar ao mais alto nível, não é. Eu posso perceber, mas depois para ter algumas dificuldades para dizer certas

coisas. E entendo por que, por que é? Porque nunca vivi num ambiente, é, de falantes de inglês, apenas

aprendi aqui.

O senhor disse que fala algumas línguas moçambicanas, além do ronga, que foi a primeira que o

senhor falou.

Sim, essa é minha língua materna, digamos assim. E depois é o changana, que é muito parecida com o

ronga. Changana é muito parecida com o ronga, por isso que eu acabei falando, né. Porque há pesso. Há muitos changanas aqui e relacionamos com eles e falamos. Percebo chope, percebo ritonga, sei

algumas palavras. Falo, se quando falam, entendo não é. Mas, não, não saber dizer tudo.

Qual a língua da sua mãe?

É ronga.

Do seu pai?

Também.

Tem alguma que você mais gosta? Dentre essas línguas todas que você fala: ronga, português,

algumas outras moçambicanas?

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Sinceramente, eu gosto de ronga. Mas, , eu gosto também de português. Não é. Há [palavra inaudível],

que é de trabalho na língua, em língua portuguesa, não é. Gosto bastante disso. É afetiva, é língua

cultural. Há muitos valores autóctones, não é intrínsecos, digamos assim, culturais, que só o ronga é que detém, né. Ãh, enfim, essa... Aquela história dos registros, né. Ãh, os registros próprios de uma

língua que dificilmente são captados por outras línguas. Portanto, por aí o ronga é...

Grau de instrução?

Ãh, até agora fiz o mestrado.

Ano de formação?

A licenciatura em linguística e mestrado em... Em português língua, segunda língua estrangeira.

Exatamente, ãh, na especialização é metodologia de ensino de português. (Certo.)

O local de formação foi aqui em Moçambique mesmo?

Linguística, a licenciatura aqui em Moçambique, depois fui à Lisboa pra fazer o mestrado.

Que universidade de Lisboa?

Universidade de Lisboa.

O fato do senhor ter saído pra estudar em... Em Portugal, o senhor acha que, se considera um

intelectual de base africana ou de base europeia?

Essa é uma questão muito complicada. Mas, eu acho que sou essencialmente de base africana, porque há valores africanos que eu defendo e acho que tem que ser. É, percebe? De tal modo que apesar de eu

trabalhar na área de língua portuguesa, eu ter feito uma formação, especialização em língua

portuguesa, eu estou muito ligado à língua bantu, certo. E recentemente, por essa via, é, estava num projeto de elaboração de relatório, é, do quarto seminário. Quarto? Terceiro. Terceiro seminário sobre

as línguas moçambicanas. Que é o relatório que diz quantas línguas são as moçambicanas, ok. Se bem

que isso é difícil de dizer, quantas línguas moçambicanas são. Porque algumas, algumas, é, que ainda

estão por fora, algumas pessoas, é, reivindicam o fato de aquelas línguas, vai lá, serem línguas de fato e não dialetos de outras línguas.

Nós, para nós, os linguistas, porque somos especialistas, olhamos para as características e achamos

que isto é dialeto.

O senhor ministra outras disciplinas, além da metodologia?

Sim, há uma cadeira, específica para a didática da escrita. Mas, quer dizer, é português, mas temos o

português um, português dois, português três, quatro. Então, português três e quatro é exatamente para a didática da escrita. E depois há outras: É comunicação oral, escrita, ok. Tem uma cadeira do

primeiro ano, nível, digamos assim, principiante, não é. Já lecionei outras: método de estudo.

O senhor já atuou(a) em alguma outra universidade?

Não.

Em que área?

Na área de secretariado. Na área de secretariado.

Muito bem. Em que medida fazer parte dos Palopes e da CPLP é importante pro

desenvolvimento de Moçambique?

Fala-se muito dessas organizações. PALOPs, CPLP. Mas, essencialmente, é, para o cidadão comum

isso não faz sentido. Porque não há, digamos assim, resultados vistosos. Está a perceber? E mesmo na

área acadêmica há indivíduos que questionam muito essas designações de CPLP, PALOPs,. Até porque PALOPs, está a sair um bocadinho da moda. Ficou essa CPLP. E CPLP nos entende que é o

conjunto de países, não é, é, de cultura, lusófona. Não sei o que é isso de cultura lusófona, porque é

complicado, não é. Mas, países que falam português, não é. E, pronto, devem trazer as suas culturas também para além da língua portuguesa. Isso écomplicado falar de CPLP. Mas, entendo que os países

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da CPLP deviam fazer mais. Deviam fazer mais, no sentido de que, para além da língua, devem

também incluir a cultura.

Não a cultura portuguesa ou a brasileira, porque essas são as duas potências, mas também as culturas africanas. Não é. Porque somos países falantes de português e, bom, fazemos parte das esferas que

estão interessadas em que nós façamos parte. De fato então, têm que reconhecer também as nossas

culturas. E no âmbito econômico não há nada, não é. Acho que pressões econômicas que estejam

sobre a alçada da CPLP, né. Há outros tipo de cooperações, não é, entre países como o Brasil, Portugal, Moçambique. Mas, é no domínio político, não é, estratégico, econômico, político e

estratégico. Não porque a CPLP tem uma intervenção forte.

[...]

Professor, o que que você entende por lusofonia? (A lusofonia?) Há aí indivíduos brincalhões que

costumam dizer que isso é um bicho de sete cabeças, ninguém entende o que que é isso. Mas,

lusofonia, pelo que tenho sido dado a entender é que congrega, aquele conjunto de países, é, falantes,

não é, da língua portuguesa, essencialmente. E para além da necessidade de incluir as suas culturas. Está a perceber? Ok. Portanto, é língua e cultura. É, portanto, quer, pretende-se que isso seja alargado

para outros domínios pra além da língua. Então, a grande luta é essa. É o alargamento para outras

áreas, que não a língua e a cultura e esse intercâmbio, não é. Mas, a grande batalha que [palavra inaudível], ok, acaba ficando entre Brasil, Portugal, porque são os países que têm mais recursos. E

que, não sei até que ponto o Brasil defende isso, mas ouve-se mais lusofonia lá para, é, Portugal, né.

Cá entre nós, não nos diz muito, né, essa coisa de lusofonia. Justamente porque nós queremos ver as coisas acontecerem, não teoricamente. Teoricamente nós pertencemos a uma comunidade, mas na

prática nós não vemos. Já, que vantagens é isso nos traz? De tal modo que Moçambique, por exemplo,

pertence a Commonwhelth e parece que tem mais vantagens em pertencer a Commonwhelth. Pertence

a uma comunidade árabe. Não sei como é que se chama, mas ligada aos árabes, não é, e que Moçambique pertence. Parece que tem mais vantagens em pertencer a essa comunidade.

Do que à CPLP?

Do que à lusofonia. Todavia, porque o português é nossa língua. E nós, é, desde 1975, que juramos que era nossa língua, língua de unidade nacional, temos que nos identificar com a questão da

lusofonia.

[...]

Entendi. Em que circunstâncias você usa o ronga então? Porque a língua portuguesa, pelo que

você tem me dito, é a língua de trabalho, é a língua de comunicação. (Mais ampla, sim.) Mais

ampla. Então, você usa em várias situações ou na maioria delas?

Em foi em quase todas situações. Mesmo em casa uso o português. Uso o ronga em domínios um bocadinho mais restritos, não é, com indivíduos muito próximos, que eu tenho a certeza que falam a

minha língua, ok. Porque, como sabe, estamos na capital, é possível encontrar alguém, que não é

daqui, que fala uma língua de Norte, não vai saber falar uma língua igual a nós. Então, se te puseres a falar ronga, pode ficar mal na fotografia, não é. Então, nos domínios, é, públicos, é aconselhável falar-

se o português. Mas, se as pessoas do domínio público forem pessoas conhecidas e eu tiver a certeza

que falam ronga, eu falo ronga numa boa.

Sim, mesmo aqui na faculdade, entre os professores falamos ronga. Sim, falamos ronga. Em casa é fundamental, não é, quando falo com o meu pai, minha mãe, não é, falo ronga. Mas, com as minhas

irmãs já há um bocadinho de, vai lá, de limitação em ronga. Então, falamos em português.

Português. Na sua opinião, como você avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

Eu acho que a heterogeneidade é uma coisa muito boa, não é. Porque como se costuma dizer, as

línguas desempenham os seus papéis. A língua portuguesa desempenha um papel extremamente

importante, como disse, para a comunicação mais ampla e para a comunicação com o mundo não é. Mas, as línguas nacionais, aquelas autóctones, desempenham o seu papel aqui, a nível da esfera local,

não é, porque há muitas pessoas, mas muitas mesmos, que não sabem falar o português aqui no nosso

país. Se sairmos para o Norte. Percebe? Há uma imagem interessante na geografia linguística de

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Moçambique, concretamente na área de língua portuguesa. É que se tu estás na capital há mais gente a

falar português, à medida que tu fores saindo a percentagem diminui. Mesmo no domínio de falantes

do português como língua materna, não é. Apesar de se discutir: “-Mas, que língua materna é esta? Como é que aprenderam esses indivíduos?” Aprenderam de pessoas também que aprenderam língua

portuguesa como língua segunda. Então, é uma língua materna um bocadinho, né, já [palavra

inaudível], sei lá, já subvertida. Mesmo aí neste domínio, falantes de língua materna das capitais estão

em maior número em relação a falantes de língua materna dos distritos. Está a perceber? Então, o cenário é esse.

Entendi. Então, aqui em Maputo se fala muito português?

Ah, fala-se mais português. Vai a Gaza, que é a província mais próxima, vai diminuir o número de falantes maternos e também o número de [palavra inaudível] de falantes como língua segunda. Vai

diminuindo.

[...]

Como você vê o papel da língua portuguesa como língua oficial de Moçambique?

A língua portuguesa aqui em Moçambique é língua de unidade nacional. Unidade nacional no sentido

em que falando português, de Rovuma ao Maputo, eu vou ser entendido, ok, e vou me entender, não é,

com as pessoas. É, falando português eu posso ter emprego em qualquer parte, não é, de Moçambique. Certo? Mas há setores, não é, que reclamam o fato de a língua portuguesa ser também língua de

exclusão, justamente porque a esmagadora maioria de moçambicanos não falam a língua, ok. E veem

os seus direitos, digamos, limitados porque...

A cidadania, de fato. Há, por exemplo, no parlamento moçambicano, muita gente que está lá e porque

não domina a língua portuguesa, não contribui de fato. Está a perceber? Mas, tem ideias, tem ideias. E

quando essa gente vai lá para o distrito que representa, fala com aquela gente naquela língua e recolhe,

entre aspas, preocupações naquela língua. E vem para aqui, não consegue transmitir.

É verdade. Mas, mesmo assim, diante disso, o senhor acha que as línguas autóctones e a língua

portuguesa convivem bem?

Convivem. Olha, eu recordo-me, porque nos contam sempre, em tempos houve tentativa de eliminar as línguasmoçambicanas, não é. Diziam que era a língua do cão, língua do macaco, essas coisas todas.

Mas, mesmo assim, as línguas resistiram até hoje, estão lado a lado com o português. Repare que, lá

pelos anos trinta e tal, quando os portugueses sentiram que esses indivíduos estavam a conquistar o território, também aprenderam o ronga, aprenderam as línguas nacionais. Estáá a perceber?

Começaram a querer perceber o que que era isso de cultura dos moçambicanos. Então, acho que essa

convivência é uma convivência a ferro e fogo, não é, porque as línguas bantu vão se impondo também.

Conquistam o seu território. Ou seja, o português não consegue conquistar o território do ronga ou do changana, de outras línguas, né, e afastá-las de uma vez.

Há palavras ou expressões originárias de uma determinada língua nacional que é uso corrente

no português?

Vão entrando sim. Vão entrando. Por quê? Porque para determinadas realidades, é... Não há uma

palavra em português, não é. Como há realidades em português que não existem nas línguas, nas

nossas línguas. Então, há esse empréstimo. Vão se emprestando.

Tem alguma que o senhor se recorda?

Hum... Por exemplo, assim, de repente, há palavras que são adaptadas e que são comuns. Por exemplo,

aquelas carrinhas de mão, não é, duas rodas, é, o indivíduo empurra. Nós chamamos de carrinha de

mão aquilo, é chova. Por quê? Porque empurrar, em ronga, é chova, empurrar. Então, isso foi, quer dizer, esse verbo chovar, não é, depois ficou o nome daquela carrinha, é chova. Esse de chova em, vai

lá, é, interfere no trânsito, por exemplo, porque eles andam na estrada. E nós nos zangamos com eles:

“-Mas, esses chovas.” Está a perceber?

Professor, então pra fechar, o que é e como é ser moçambicano?

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O que é ser? O que é como é? Não sei. Se pegar alguém que tenha que nos caracterizar. Agora, de

repente, eu caracterizar o que é... É complicado, não é. Eu sei que o nosso dia a dia, vou falar como

geral, o nosso dia a dia é complicadíssimo, não é. Temos que correr tanto, quer para ganhar a vida, quer para pôr o país a andar, não é. Com os recursos, digamos assim, escassos que temos. E é uma

vida de sacrifícios, mas que, pronto, dá para andar porque há... Há condições para tal. Aos poucos o

país vai se construindo. Ãh, e a estar... Estão a aparecer bons horizontes, boas expectativas. E parece

que os que governam o país atualmente estão, a saber...

Tão a par, não é, saber governar bem, é, dentro do possível, não é. E ser moçambicano, eu acho que

somos alegres, não é, apesar de sermos pobres, somos alegres. Quando há oportunidade de mostrar

que somos alegres, nós mostramos. Tristeza existe, porque queríamos mais, mas não há. Mas, esse domínio da alegria, o sermos um povo aberto, um povo também acolhedor. O saber apreciar o que é

do outro, não é. E achar que aquilo que é do outro também pode funcionar aqui, isso faz-nos bem, faz-

nos bem. É por isso que dizem que copiamos muito. Mas, eu não acho isso mau, não é, desde cruzar,

né, com o nosso. Nós copiamos, somos um bocadinho brasileiros, um bocadinho americanos, um bocadinho portugueses, ok. Um bocadinho as outras coisas que nós vamos vendo, não é.

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ANEXO C – PROFESSOR C

Idade?

Cinquenta e seis.

Estado civil?

Casada.

Zona ou região?

Maputo.

Nacionalidade?

Moçambicana.

Naturalidade?

Maputo.

Profissão?

Docente.

Religião?

Não tenho.

Quando a senhora pensa em língua, é, qual é a primeira resposta que lhe vem à mente? (Quando pensa em língua?) Quando pensa em língua, língua ou quando penso em língua? Quando penso em

língua? Nada. Não me vem nada à cabeça, nada.

Quantas línguas a senhora fala e quais são?

Deixa-me ver: português, francês, inglês, espanhol. É, essas.

Certo. Ah, os seus pais também eram de Maputo?

Não, os meus pais são de Inhambane.

Inhambane. E falavam outra língua ou não?

Os meus pais falam línguas diferentes cada um deles.

É? Quais?

O meu pai fala Citshwa. Bom, os dois falam Citshwa, mas são de regiões diferentes.

Dessas línguas que a senhora fala, tem alguma que a senhora gosta mais?

Hum, gosto mais de falar português, porque é a primeira língua que eu usei.

Certo. Grau de instrução?

Doutorado.

Ano de formação?

Dois mil.

Dois mil. O doutorado da senhora é aqui em Moçambique?

Não, não. Aqui o... O ano passado foi, não, o ano passado não, já houve uma doutorada em mil,

novecentos e oitenta e qualquer coisa ou noventa, por aí. Foi o primeiro doutoramento da

Universidade Mondlane. As pessoas às vezes esquecem-se, porque foi há muito tempo. Mas foi a

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professora Inês Monteiro da Costa, que trabalha agora na Universidade Pedagógica e na Universidade

Politécnica, ela é vice-reitora lá, ela tem lá uma função.

A senhora estudou em Moçambique até que nível?

Eu estudei aqui até o bacharelado e depois fiz a licenciatura em Coimbra, fiz mestrado em Lisboa e

depois fiz doutoramento em Gana.

A senhora se sente uma intelectual de base africana ou europeia?

De base africana. De base africana, sem dúvida. Estudei fora, aliás, eu estive muitos anos fora, eu estive 15 anos fora. Estive quatro anos no Gana, estive oito anos nos Estados Unidos, mas nunca perdi

as minhas raízes.

[...]

Hoje a senhora atua em qual área?

Linguística. Eu sou do Centro Linguistíco.

Ministra quais disciplinas?

Eu dou várias. Eu sou regente de linguística geral. Portanto, eu acho que linguística geral deve ser dada por pessoas com mais... Pessoas mais antigas e com mais experiência de ensino. Dou lexicologia,

em nível das licenciaturas. E depois tenho mestrado, dou morfologia, no mestrado. E tenho um

doutoramento, também tá na área da morfologia, o doutoramento.

Morfologia, então, a senhora atua nas três frentes, na graduação, no mestrado e no doutorado?

Exatamente. É por isso que estou por aqui.

A senhora só atua aqui no Mondlane, não é possível atuar em outras?

Eu não faço mais nada. Eu não faço mais nada, só dou aulas. É. Eu dou aulas, sou coordenadora dos

cursos de pós-graduação e chega. É muita coisa.

Professora, em que medida a senhora a... Acredita que fazer parte dos palopes e da CPLP é

importante pro desenvolvimento de Moçambique? A senhora vê alguma contribuição nisso?

Francamente, não vejo.

É. Por quê?

Porque até agora não se viu nada, não é? Até agora estamos a nível das intenções, são muito boas, são muito bonitas. Mas vou lhe dizer uma coisa, eu fui a Cabo Verde há duas semanas, fui numa reunião

sobre vocabulário ortográfico, passei por Lisboa e como eram dez horas de trânsito, eu saí e para ir ao

guichê... Havia lá um guichê, que dizia: “-CPLP.” No aeroporto. Eu vou para esse guichê, dizem: “-Tá fechado. Vai pra fila normal, vai, vai.” Eu disse: “-Mas por que que vocês têm um guichê que diz

CPLP, quando finalmente nós...” Os da União Europeia tem um guichê para a União Europeia e iam

todos pra a União Europeia, não é. E vi lá, que era muito grande: “-CPLP.” A pessoa vai pra lá, nem

tem ninguém e nem estão lá pra atender. Então, quer dizer, eu não vejo grandes vantagens. Agora, pelo menos ao nível da língua começa-se a fazer alguma coisa agora. E eu dizia que fui a Cabo Verde. Foi

uma reunião para estabelecermos o vocabulário em comum. E, aí, pode haver muitas vantagens, não é,

em termos todos o mesmo vocabulário ortográfico pelo menos. É, em termos todos não, em termos recursos para criarmos um vocabulário em comum e cada um de nós terá o seu vocabulário particular.

Mas, podemos usar as mesmas ferramentas e... E podemos trocar ideias e podemos fazer muitas coisas

se tivermos juntos, não é. ntão, eu, na verdade, não me apercebi, pode ser que haja, eu não me

apercebi.

Certo. O que a senhora entende por lusofonia?

Eu não entendo nada, como eu lhe disse há um bocado. É um conceito que eu não uso, aqui em

Moçambique usa-se muito pouco. Porque, na verdade, quando se começou a usar o conceito foi no sentido de que nós somos todos de expressão portuguesa. Nós não somos de expressão portuguesa, nós

falamos o português como língua oficial, mas nós temos origens bantu, não é? E aí, eu tinha um colega

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que diz: “-Nós somos bantófilos. Não somos lusófilos, somos bantófilos.” E na verdade é isso, é,

gostamos do português, nós estamos a apropriarmos do português, o português é uma língua muito

importante para nós. Mas, entretanto, nós não nos expressamos como se expressa o angolano, como se expressa o português, como se expressa o brasileiro. Nós temos a nossa expressão própria.

Uma coisa é a língua que a pessoa usa, não é, por razões várias das quais: comunicação internacional,

comunicação nacional e etc, outra coisa é a expressão é muito mais forte do que só o uso da língua,

não é. Então, esse conceito de lusofonia aqui em Moçambique não é muito usado.

Na sua opinião, como a senhora avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

Bom, nós temos várias línguas, o número não é exato ainda, porque não há estudos que possam dizer exatamente quantas línguas temos, mas andamos a volta de uns trinta, no geral, né. E distribuídas por

todo o país. Ãh, intercompreensivas quando as regiões são contíguas, quando são mais longínquas as

línguas não são intercompreensivas. Por exemplo, norte e sul as línguas são absolutamente incom...

Incompreensivas uma com a outra. E... E temos o português, que é a língua oficial, que é a única língua da administração, que é a única língua do ensino, que é a única língua, portanto, de acesso ao

poder.

[...]

É, como que a senhora vê então, dessa perspectiva, o papel da língua portuguesa como língua

oficial de Moçambique?

Eu, como dizia, o português é a língua oficial, infelizmente é a única língua oficial. O português hoje é

falado por quase 50% dos que falam português, 50% falam como língua materna. Embora, a maioria

seja nos centros urbanos, nas cidades, não é? Já há uma camada jovem já muito grande, que fala

português como língua materna. E eu sinto que esta apropriação do português é muito boa porque é uma das línguas, não é, nós não dizemos que temos esta, esta, esta, esta, esta e português. Portanto,

português é mais uma língua moçambicana. Nós não sentimos que seja uma língua estrangeira no

nosso país, é uma língua moçambicana. E sentimos que aquela língua que nós falamos não é igual à língua que falam os outros. Sim. Exatamente.

Não é o português que o português fala, que o patriquiano fala. E nós podemos reconhecer se estamos,

sei lá, numa conferência em algum sítio e alguém fala: “-Este és moçambicano.”

Isso é formidável, porque é atribuir a língua à identidade de vocês?

Exatamente. Exatamente. A todos os níveis, não só ao nível melódico e descendo etc., como nível de

vocabulário, nível sintático. Portanto, nós achamos que a língua está a tomar características próprias

moçambicanas.

Temos um PM em construção?

Exatamente.

Se temos um PM em construção, qual é a relação que a senhora acha que tem a língua

portuguesa e as línguas autóctones, elas convivem bem?

Convivem perfeitamente, convivem muito bem. Os trabalhos que estão a ser feitos aqui no

departamento, a nível de língua portuguesa, por exemplo, mostram perfeitamente esta relação entre as

línguas bantu e a língua portuguesa. As pessoas falam em português, em língua bantu. Digamos que há uma interpenetração muito grande, há um [palavra inaudível] que as pessoas nem se apercebem muitas

vezes de que estão a mudar.

Chegam a transformar alguma palavra em verbo, inclusive?

Exatamente não é?. Então, há muitas palavras que vêm das línguas bantu para o português. Algumas

vêm e mantêm, ãh, a sua forma. Outras vêm e são adaptadas foneticamente, fonologicamente,

morfologicamente, são adaptadas ao português. A maior parte destas, ao português. A maior parte

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destas são verbos. Nós temos muitos verbos que vêm de línguas, nacionais, todos terminados em ar. E

sentimos que não há qualquer fricção entre as duas línguas, por contrário. Há um enriquecimento

mútuo, porque também há muitas palavras que saem do português e que entram paras línguas locais.

Essa seria inclusive a próxima pergunta: a senhora conhece algumas palavras ou expressões

originárias de uma das línguas nacionais e que são uso corrente hoje no português

moçambicano?

Várias. Tem um estudante que tá a fazer um trabalho sobre os empréstimos. Assim de cor eu não posso dizer. Mas ela tem um levantamento que está aí de umas trinta palavras que são usadas

perfeitamente por toda a gente. Por toda a gente eu não diria, porque esta. O fato de termos várias

línguas bantu, e termos línguas bantu diferentes por todo país, é, algumas regiões há expressões que são típicas daquela região, que provém da língua daquela região. Então, por exemplo, dumbamengue.

Aqui há um fenômeno que aconteceu depois da independência, que era, portanto, as pessoas, para

sobreviverem, não é, começavam a fazer vendas e etc, e faziam vendas na rua. E, de repente, a polícia

vinha para tirá-los do local e as pessoas tinham que correr. Então, a expressão aqui, em ronga, usada pra: “-Confia nas tuas pernas.” Portanto, foge, não é, é dumbamengue. Mas, como este fenômeno foi

generalizado por todo país, na zona centro, por exemplo, a expressão usada não é dumbamengue, mas

é uma expressão que provém da língua local, que é chungamoio.

Depois há fenômenos também interessantes, que é uma palavra que entra para o português por via

duma língua e acaba sendo uma palavra que é usada nos finalmente. Por exemplo, chima, que é

farinha. Originalmente é farinha de... É uma massa feita com farinha de mandioca, não é. Acabou se generalizando. E é de origem é até uma língua do norte. Acabou se generalizando e todo país usa a

palavra chima. Embora, noutros casos seja farinha de outra coisa qualquer, mas, portanto, a palavra,

pela via do português, acaba circulando por todo país.

Que bárbaro! Isso é interessante. Professora, e o que é e como é ser moçambicana?

É ótimo.[risos] Eu adoro o meu país. Eu gosto de ser moçambicana, tenho orgulho de ser

moçambicana. Ãh, o que... O que eu tenho pena é que muitas vezes, bom, é... É normal. Portanto,

quando se fala de Moçambique, falam sempre dos problemas. Temos muitos problemas, mas temos tantas coisas boas. Eu vivi fora muito tempo. É. Eu vivi fora muito tempo e quando chego, digo: “-

Como que eu pude perder tudo isto, não é?” É diferente, é. E vivi em sítios muito diferentes, não é, de

Europa, América, África. E eu sinto que é diferente, Moçambique é diferente.

A senhora viveu em três continentes diferentes, não é... Não é nem país. (É continente.)

Continente. (Exatamente.) Porque, às vezes, a gente fala: “-Ah, eu morei em tal país.” Mas, ali,

mesmo continente, ali do lado. (Exatamente.) Há certa semelhança ainda. Mas a senhora passou

por três continentes.

Três continentes diferentes. E... E depois de tudo isso, eu te digo: “-Moçambique é que é.”

(Moçambique é que é?) Exatamente. Gosto, eu gosto de estar aqui. E muitas pessoas me perguntam: “-Não tás arrependida de ter voltado?” Eu disse: “-Nem um bocadinho.” Temos muitas dificuldades,

é verdade, mas a pessoa sente-se útil aqui, não é.

Se sente em casa. É isso. Temos as nossas raízes, temos... Vivemos, vibramos, sobretudo a pessoa

sente-se útil, não é? Não é uma... É verdade eu dava aulas também em Nova Iorque, mas eu sentia como se não fosse eu. Outra pessoa podia estar a dar. Não quer dizer que aqui eu seja imprescindível,

mas eu vejo que a minha contribuição aqui é muito maior do que...

[...]

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ANEXO D – PROFESSOR D

Idade?

Trinta e sete anos.

Estado civil?

Casado.

Estado civil?

Casado.

Zona ou região a que pertence? (Zona, desculpa?) Zona ou região?

Onde... Zona que eu pertenço? Ah, eu nasci na... Na província a seguir, ao norte de Moçambique,

portanto, que chama-se Gaza. É Xai-xai, distrito de Xai-xai.

Nacionalidade, portanto?

Moçambicana.

Naturalidade?

Eu nasci no Xai-xai.

Profissão?

Eu sou docente e neste momento também assumi funções de assessor, ãh, do diretor da Faculdade de

Letras e Ciências Sociais, com a área pedagógica.

Religião?

Ah, eu sou cristão. Respeito todas as outras religiões, mas sou cristão.

Quando você pensa em língua qual a primeira resposta que lhe vem à cabeça?

Cultura. A cultura, a identidade, não é. Não é por acaso que as pessoas quando se expressam na sua língua materna sempre se sentem mais, é, felizes, mais... Sentem que são elas mesmo, não é. É.

E qual é a sua língua materna?

Bom, eu diria que tive duas línguas maternas, que é uma língua bantu, que é o changana e o português.

Porque acho que adquiri-as ao mesmo tempo, não é. Com o... Os meus pais. A minha mãe era sempre, é, changana. Mas, , com os irmãos, na escola já eram. Falávamos o português, né. Sim.

Quantas línguas você fala e quais são?

Essa questão da língua, de que línguas fala, é muito complicado, é sempre discutível, não é. Mas eu penso que, changana é minha língua materna, o português também. Ãh, pode ser que o português seja

a língua paterna, no contexto de língua segunda, não é. Ãh, porque ele não... Não se compara àquilo

que é o português na Europa, por exemplo, ou no Brasil. Ãh, eu falo inglês e por acaso sou professor de inglês também. E falo francês e já fui professor de francês.

O senhor disse que a língua da sua mãe é changana. E a do seu pai?

Também. Coincidentemente as duas são changana.

Dessas línguas que o senhor fala qual que o senhor gosta mais?

É interessante esta questão é interessante, porque, numa primeira fase eu sempre gostei da língua...

Minha língua materna, né. Que é a língua com a qual eu sempre me comuniquei com... Com a minha

mãe, sobretudo com a minha mãe. Tive uma paixão, tenho uma paixão muito grande pelo inglês, pelo francês. Mas, diria que estou muito bem dividido entre a minha língua materna, changana, e o inglês.

São as línguas que mais me fascinam. Sim.

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Grau de instrução?

Doutorado, não é.

Ano de formação?

Dois mil e dez.

Você estudou em Moçambique sempre ou chegou a estudar fora? (Sim.) Até que nível?

Bom, eu fiz a, toda a minha formação primária, secundária, ensino médio e a licenciatura em

Moçambique. Mas, depois tive uma bolsa, fui fazer o mestrado na Austrália, na Universidade de Sidney. E no regresso, passaram um ou dois anos, a Faculdade de Letras e Ciências Sociais abriu o

primeiro curso de doutoramento em Moçambique. Doutoramento, inteiramente moçambicano. Eu sou

parte dessa turma, da primeira turma. E sou parte, somos duas pessoas, os primeiros doutorandos em Moçambique, duma universidade moçambicana.

Certo. E diante disso, você se considera um intelectual de base africana, portanto, moçambicana,

europeia ou americana?

Eu gosto muito do meu país, gosto. Tenho muita, alguma influência, ãh, eu diria, da tradição anglo-saxônica, das... Justamente por causa deste... Deste... Desta paixão que tenho pela língua inglesa, que

também tem um pouco a ver com o meu passado, não é. Eu tive uns seis, se... Sete anos a viver muito

próximo duma família britânica. Então, praticamente dividia o meu modo de viver entre, ãh, cultura britânica e mesmo cultura bantu, não é. Aliás, se... Se justifica o fato deu gostar de inglês e de bantu.

Sim. Mas, eu sou... Eu sou moçambicano. Eu... Eu adoro este país, né.

Tá. Área de atuação?

Eu, a minha área de formação, isso é interessante. Quando eu comecei, quando entrei pra licenciatura,

tinha uma grande paixão pela tradução. Justamente por causa deste gosto que eu tenho com as línguas,

não é. Exatamente. Mas, depois, quando eu fui À Austrália, que até ia pra estudar tradução, ãh, e vejo

ali nas outras cadeiras oferecidas pro curso de linguística, que havia uma cadeira que se chamava Linguagem Lei. E eu achei que era uma coisa interessante porque eu... Eu nunca tinha ouvido falar

disso, né. Que é uma das áreas da... Da linguística aplicada. E, pronto, fiz esta mudança da área da

tradução, larguei a tradução e fui fazer nesta área, que é linguística forense. Que aliás, continuei nela até hoje.

E quais disciplinas o senhor ministra? (Aqui?) Bom, aqui na universidade Eduardo Mondlane a

minha disciplina é linguística aplicada. Bom, porque por enquanto é isso, não é, eu prefiro ficar com o meu espaço e outros têm os espaços que têm, né. Naturalmente que eu podia ser adaptado a outras

coisas, não é, porque tenho também essa experiência de ensino da língua inglesa, sou... Sou docente

de... De língua inglesa, mas na Escola Superior de Jornalismo, ãh, onde também já estive a lecionar

francês. E... E, prontos, aqui, a nível da Faculdade de Letras e Ciências Sociais, é linguística aplicada.

O senhor atua em outra universidade além daqui?

Sim. Então, tenho oPolitécnica e a Escola Superior de Jornalismo, que não é bem universidade, mas é

nível superior.

Em que medida fazer parte dos PALOPs e da CPLP o senhor considera que é importante pra

Moça... para desenvolvimento de Moçambique? (Em que medida que os PALOPs são... São

importantes?) Os Palopes e a CPLP.

Sim, quer dizer, da... Justamente por causa desta... Desta, desta componente língua, que nos une, né. Nós temos um passado que duma forma ou de outra acaba sendo comum. E como a língua tem um

pouco a ver com essa questão da cultura e depois um pouco daquilo que é a nossa identidade, quando

nós conversamos, sentamos a uma mesa para discutir assuntos, é, de natureza política, econômica, com países, é, que comungam do mesmo, da mesma língua, as coisas terão outra forma de tratamento,

né. Eu acho que que é importante, é importante, porque compartilhamos a mesma língua. É... É um

dado bastante forte esse, a língua é forte.

E o que é lusofonia, professor? O que o senhor entende por lusofonia?

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Bom, eu penso que, é, de uma forma muito, abstrata, a lusofonia seria, este entendimento de trazer

todos os países que falam português, ao mesmo patamar, não é. E vejo isso como se fosse um

fragmento da globalização. Mas, globalização apenas para os países que falam a língua portuguesa, que têm a língua portuguesa como língua oficial. Eu entendo mais ou menos como isto, não é.

Certo. Em que circunstâncias e situações você usa a língua portuguesa?

bom, neste momento, eu diria que é, quando estou em ambientes informais, eu faço aquilo que é... É...

Na linguística aplicada, nós chamamos, de sociolinguística, chamamos cold sweet. Eu, quando estou em ambientes informais posso falar, é, português, mas, até na altura, eu vou mudar para bantu. Quer

dizer, quando há uma piada que eu acho que cairia bem em bantu, é eu vou preferir mandar em bantu.

Quando é para dizer algo que eu acho que fica mais forte em bantu. E até nas aulas, nas aulas de língua, a língua estrangeira. Eu, quando sinto que os estudantes estão um pouco mais afastados de

compreender o conteúdo, prever português, eu entro em bantu. E eu vejo que os... A atenção é outra.

Que... Que estamos num contexto em que a língua materna mesmo, para os moçambicanos, é uma

língua bantu. Então, se a gente mete o bantu, que é mais ou menos falado por quase um bom número aqui embaixo, aqui na Zona Sul.

[...]

Na sua opinião, como você avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

Eu acho isso uma riqueza, é uma riqueza. Algumas pessoas ficam inquietas com isto. E vale sempre

lembrar que, o nosso saudoso primeiro presidente da Frelimo Eduardo Mondlane de poder, que afinal

é a pessoa a quem se deu o nome a esta universidade, Eduardo Mondlane, ele já dizia isto na altura da luta armada. Que: “-Olha, a nossa diversidade linguística não é um problema, não é. Isso tem que ser

visto como uma riqueza.” Ele dizia que: “-Olha, as nossas línguas, nossas danças, as nossas formas

de... De expressarmos vão florir no pós-independência.” Ele dizia mais, que nós, no antagonismo

entre a diversidade cultural e a questão da unicidade do estado. Porque, , um pouco, não sei, da havia o sentimento de que era preciso cortarmos espaço para essas línguas, porque elas iam parar em casa,

unidade nacional.

Então, ele já dizia nessa altura. Só que infelizmente, quando chegou a independência, continuou este pensamento que tem muito a ver com a forma como também, é, o próprio sistema colonial se

implantou em Moçambique, né: dividir para reinar, não é. Até esse sistema todo de assimilação, é,

onde eles diziam que os que, não falam português não poderiam ir ao cinema, eram pessoal mal civilizadas, por aí fora. Então, esses valores todos, todos, foram transportados para outro acordo

depois da independência. E continuam, infelizmente, na cabeça de muitas pessoas. Mas, eu... Eu penso

que...

E como o senhor vê o papel da língua portuguesa como língua oficial de Moçambique?

O português, contrariamente àquilo que muitas pessoas costumam veicular por aí, veio para ficar. É

uma língua que nós herdamos, por via colonial. A história assim o ditou e ela veio para ficar. E eu

penso que o papel da língua portuguesa como língua franca, né, vai continuar. Porque para nós cimentarmos, nós, digamos, é, materializarmos de forma consistente este Moçambique, que do ponto

de vista linguístico é diverso, tem essa diversidade toda. E termos, portanto, sucesso, sermos bem-

sucedidos, o papel da língua portuguesa tem que estar lá. É a língua franca, é a língua com a qual os

moçambicanos falantes das diferentes línguas bantu podem usar para se comunicar.

A língua portuguesa e as línguas autóctones convivem bem? (Em Moçambique?) É. Na sua

percepção...

Eu diria sim e não. Sim e não.

Sim, por quê? E não, por quê?

Bom, eu diria que sim porque, por exemplo, a língua portuguesa é uma língua aceita por quase todos

os moçambicanos, todos sabem que é. É, pronto, é língua herdada pelo colonialismo, é a língua que toda gente gostava de falar, é a língua de acesso ao emprego, é a língua que dá acesso a algum status

social, por aí afora. Mas, também tem uns segmentos da população que acham que as línguas

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autóctones, as línguas bantu, neste caso, de certa forma perturbam, sobretudo na educação, perturbam

a boa. A boa aprendizagem da línguada portuguesa. Que eu acho que é um argumento falso, não é, ao

meu ver, né. É por isso que eu digo sim e não. Sim, porque todos aceitam. Não, porque há pessoas que acham que as línguas bantu têm... Têm que estar de fora. Sim. Quer dizer, que é mais fácil encontrar

pessoas a defender a manutenção do português do que das línguas bantu. É um grupo, é uma força

muito ínfima [palavra inaudível] essa operação.

Entendi. E você conhece palavras ou expressões originárias de uma das línguas nacionais que

seja de uso corrente no português moçambicano?

São muitas, são muitas. Quer dizer, temos essas que... Vamos lá, temos aquelas que saem do bantu,

entram para o português tais como elas são, não sofrem nenhuma transformação. Vou dar-lhe um exemplo: chova chitaduma[?], que literalmente significa: empurra que vai pegar. É um nome que em

bantu se dá a uma carrinha de mão, que é usada para transportar, outros produtos não muito pesados

também, não é. Temos o dumbamengue, que literalmente significa: “-Confia pé. Hum, confia o pé.”

Por quê? O dumbamengues, inicialmente eram mercados informais, informais, daquelas que por lei eram interditos de funcionar. E que quando a polícia camarária, municipal, assim como nós

chamamos, chegasse ao tal dumbamengue, as pessoas não podiam fazer nada, senão fugir. E para fugir

confiavam no pé. Então, ficou assim até hoje.

Os dumbamengues são mercados... São mercados já formalizados, não é, pagam o imposto e for aí

afora, não é. Mas, temos também aquelas que entram e acomodam-se, é, dentro daquilo que é a

estratégia da língua portuguesa,, formar palavras. Como, por exemplo, o maningue, que em bantu é manhingue, quer dizer: “-Muito.” Então, entrou pra o português e ficou maningue. Assim, maningue

ficou tudo ali. Houve uma transformação a nível fonético e para poder acomodar, né. Ficou maningue,

né. Mas, temos muitas tantas outras, quer dizer. São muitas. Esse é um exemplo. Temos navelar, por

exemplo, que é cobiçar algo, não é. É, porque em bantu é conavela, conavela. Cobiça, ter cobiça, cobiçar algo que seja de outrem, né. Quando entra para português já não é conavela, né, é navelar.

Professor, o que é ser e como é ser moçambicano? (Desculpa.) O que é ser e como é ser

moçambicano?

Para mim ou aquilo que devia ser? Não, para mim eu digo o seguinte, também tive um pouco desta

crise identitária um bocadinho, quando tinha esses meus amigos ingleses. Eu via muitos aspectos

positivos que eles têm, a forma de encarar a vida, o amor à vida, amor ao próximo. Quer dizer, eu próprio, que acabei sendo tratado como um filho e eles nem conheciam os meus pais. E, de facto, fui

levado a pensar que se melhor sítio para viver, era fora de Moçambique. Mas, depois, ao longo dos

anos fui vendo que não. O que eu posso fazer é olhar para eles e ver o que eu consigo buscar deles,

para aplicar dentro da moçambicanidade. Porque é uma questão mesmo da nossa mentalidade, não é. Agora, eu acho que ser moçambicano é, passa sobretudo que temos autoestima, nós temos que ter

orgulho de ser moçambicanos, né. É preciso que a pessoa tenha orgulho de ser moçambicano. E

orgulho de ser moçambicano pode ser visto a vários níveis, não é.

Um dos níveis é este: não desvalorizar a língua portuguesa, mas também não desvalorizar as nossas

línguas, por exemplo, né. Essa é uma forma de mostrar o ser moçambicano, ao meu ver, né. Agora,

tem os outros que não pensam assim, né, acham que tudo está errado. Então, é melhor sair para os

outros países. Se não somos nós a operar as transformações, né, quem o fará?

[...]

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ANEXO E - PROFESSOR E

[...]

Idade?

Eu tenho agora 47 anos.

Estado civil?

Casado.

Zona ou região a qual pertence?

Eu agora tenho aqui duas respostas diferentes. Eu nasci na província de Gaza. Aqui em Moçambique

tem essa divisão administrativa. Províncias, distritos. Nasci na província de Gaza, distrito mais de casa até os nove anos. De lá para cá passei a viver aqui.

Em Maputo?

Em Maputo. Então, eu resido em Maputo, num bairro suburbano, não estou exatamente na cidade,

estou assim, na cintura da cidade. Aqui chamamos de subúrbio.

Nacionalidade?

Moçambicana.

Naturalidade?

Gaza, não é. Província de Gaza. É uma província, é, digamos, vizinha desta. Quem parte do sul para o

norte, a primeira.

Profissão?

A profissão é docente, pronto.

Religião?

Eu pertenço à religião católica.

Quando o senhor pensa em língua, qual é a primeira resposta, pensamento que lhe vem à mente?

Isso é uma pergunta difícil. Depende do contexto em que eu pense em uma língua. Se eu pensar numa

língua no contexto acadêmico, posso até complicar, mas vou tentar facilitar, o sinal que se dá em mim

é de pensar, não é. Eu parto sempre que o pensamento exprime-se através duma língua. Então, é o pensar, o sentir, não é, o existir. Para mim se faz através de uma língua não é ?. Talvez eu estarei a

complicar. Mas, enfim, língua é este veículo de expressão de que nós somos prudente. Não é? Penso

que é por isso que eu penso que a língua é o existir da pessoa, é aquilo que pensa, é aquilo que sente, não é, é aquilo que procura. Passa pela língua.

Quantas línguas o senhor fala? Quais são?

Falar com fluência são duas. Changana, que é uma língua que, enfim, acaba roubando um pouco de

ronga. Porque aqui em Maputo a língua originária, por assim dizer, dos nativos de Maputo, é ronga. Mas é um ronga que já sofreu contaminação de outras línguas, nomeadamente de changana com algum

peso. Então, se digo que falo o changana com fluência é porque interfere também o ronga aqui. A

segunda língua é a língua portuguesa. As outras, não quero falar delas, porque são línguas simplesmente para trabalho. Lido com essas línguas com alguma tristeza.

As línguas de trabalho, pergunto só por curiosidade: inglês, francês?

Inglês e o francês, só. As outras, não me aventuro.

Qual a língua da sua mãe?

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A língua da minha mãe? Deixa eu ver. A língua da minha mãe a partir de quando ela passou a viver

com o meu pai, é changana. Mas mesmo antes, lá de onde ela vem, onde nasceu, usa changana.

E o do seu pai?

Idem, changana. (Idem?) É.

Qual língua que o senhor gosta mais?

Dessas duas que eu falo? Para dizer a verdade, gosto mais de changana. Porque eu me sinto mais à

vontade. Consigo chorar em changana, não é, seja por assuntos bons, seja por assuntos maus. Choro nessa língua com mais, digamos, liberdade. Agora, português é uma língua com outro lugar em mim.

Não me permite transmitir as emoções na sua profundidade.

Sua língua materna então é a changana?

Exatamente.

Grau de instrução?

Eu sou licenciado.

Ano de formação?

Anos de formação? Portanto, que levei a obter esse grau? Foram cinco, eu fiz a licenciatura em cinco

anos. Na altura este nível obtinha-se aqui na universidade em cinco anos.

E faz quanto tempo?

Eu licenciei-me em 1998.

A sua formação foi toda em Moçambique, professor?

Foi sim, foi, com certeza. Tanto mais que em termos mais altos foi aqui, na Universidade Eduardo Mondlane. Sempre.

Então, o senhor se considera um intelectual de base africana? Nunca chegou a estudar fora?

Não. Tanto mais que ainda não me considerei um intelectual. Não. A gente tem um compromisso

muito, digamos, grave, porque intelectuais são pessoas que produzem conhecimento, são pessoas que têm interação com outros intelectuais. Eu não diria que não tenho interação. Tenho, mas é muito fraca

essa interação. Eu, até o momento, sou mais docente do que propriamente um pesquisador. Que daria

lugar a um intelectual, eventualmente.

Área de atuação?

A grande área é esta. É a literatura. Mas, de forma específica, literatura moçambicana, não é? Há

outras áreas, é, à espreita, que enfim, inerência da profissão acabam sendo áreas de atuação, como a literatura comparada, não é? É, e eu fui, continuo a ser, não é, docente da literatura comparada. E atuo

nessa área também, atuo inclusivamente na área de retórica e poética.

Então, o senhor ministra, como disciplinas, literaturas moçambicanas? (Sim.) Literatura

comparada?

Comparada. Aqui diz-se literatura geral e comparada. A retórica e poética é outra área. Há uma

disciplina de natureza teórica, que é a introdução ao estudo literário. Portanto, não considero essa uma

área de atuação, portanto, ela está presente nas outras tantas áreas.

E o senhor leciona em alguma outra universidade além de aqui?

Eu de facto sim, eu leciono, tô a lecionar na Politécnica.

Professor, em que medida, fazer parte dos Palopes e da CPLP é importante pro desenvolvimento

de Moçambique?

Ah, isto são tudo complexo. Palopes – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, CPLP –

Comunidade dos Países de Expressão Portuguesa, por aí. Então, a pergunta é em que medida isso

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contribui para o desenvolvimento? Bem, se fosse fútil, penso que já não existiria nem uma nem outra

coisa. Tenho observado com algum ceticismo o funcionamento dessas organizações, porque sinto que,

é, há mais intervenção do domínio da política em detrimento de outros domínios mais sociais, mais culturais, que haverão de colocar a língua no seu devido lugar. Mas, o que não, embora à distância,

porque não tenho me concentrado sobre isso, o que noto é que há um grande protagonismo político e

que de alguma forma pode contribuir para a inibição de iniciativas de natureza cultural, não é, de

natureza, por assim dizer, científica, não é, que essas comunidades poderiam muito bem, é, de abordá-las. Portanto, falar de iniciativas.

Enfim, a ideia em si que talvez esteja por detrás da criação dessas organizações, é, não me parece má.

Mas, as agendas ou nascem já com fragilidades ou então, não saem do papel. No entanto, há uma e outra coisa que são visíveis, não é, em relação, por exemplo, a questão da comunicação social. Isso,

hoje temos, por exemplo, canais de Brasil. Embora os interesses sejam diferentes, canais de Portugal.

Embora os interesses também não estejam bem claros ou não comunguem perfeitamente com aquilo

que são as perspectivas dessas organizações. Isto acaba, é, se justificando mais por estes, como é que se diz isto, é, essas organizações para mim não são mais do que grupos sociais. Não é, são grupos

sociais. Enfim, fortalecem de alguma forma este intercâmbio.

E eu é que não estou suficientemente informado sobre a dinâmica dessas organizações. Por que não estou? Porque fora de movimentação política não tenho acompanhado a expressão dessas

organizações. Todo um conhecimento da dinâmica delas, sei que existe, quando há um certo Estado

que se desloca no âmbito da reunião de CPLP, no âmbito dos Palopes. Mas, há sempre aqui um protagonismo político, mas que não sinto mal, mas, assim, penso que ofusca o espaço de iniciativas,

por assim, de fora da esfera política. Acho que poderá ser realmente uma alavanca no futuro breve ou

mais distante. Eu acredito, claro, com algumas reservas, porque, enfim, essas comunidades são

comunidades e, ao mesmo tempo, quando digo que são comunidades, é uma só, CPLP, né. Palopes só são países, não é, africanos expressando em língua portuguesa. Falando dos Palopes, quer dizer,

propriamente ditos, são, digamos, é, uma organização às vezes frágil, mesmo do ponto de vista de

financeiro.

Então, fica um pouco difícil. Eu não sei o que se faz, por exemplo, entre Moçambique e Angola, não é.

Há leis de Palopes entre Moçambique e São Tomé, por exemplo. Não tenho visto estudante de São

Tomé aqui com algum significado, a partilhar as coisas que nós temos, não é. Não tenho conhecimento de estudantes ou de docentes que se deslocam a São Tomé pra trocar experiências, nem que seja do

ponto de vista linguístico. Não sei, né, talvez eu não esteja suficientemente informado. É por aí.

Agora, a comunidade me parece já um pouco mais sólida. A CPLP intervém já, países como Portugal,

também Brasil, de alguma forma há essa circulação pelo menos de intelectuais. Aliás, por isso está aqui, não é. É por aí.

O que o senhor entende por lusofonia?

O que eu entendo por lusofonia? Entendo que é uma criação que talvez tenha surgido para acomodar, certos pensamentos, não é. Podem ter uma explicação histórica, podem ter uma explicação até de

lógica. É, considero lusofonia, quer dizer, uma prática, eu não quero admitir que seja uma prática, não

é. Uma intenção que merecia um tratamento um pouco mais atento.

[...]

Na minha opinião limitada, a lusofonia é uma espécie de perpetuação daquilo que era a relação dos

países africanos, não é, de expressão portuguesa, antes das próprias independências. Ora, estamos a

usar um novo nome para um fenômeno que já é antigo e que em muitos desses países, é, foi ultrapassado com recurso da força das armas. Quer dizer aparecer hoje a defender-se uma terminologia

como a lusofonia, é como se, é, se procurasse cegar as pessoas daquilo que está na vista.

O senhor disse que fala changana. (Sim.) Em que situações e em que circunstâncias o senhor usa

a língua portuguesa e usa a changana?

Talvez dizer, responder em que situações eu uso changana. Porque a língua portuguesa, no fundo ela,

é, uso-a em qualquer situação. Agora, changana eu uso numa situação mais doméstica, não é. Estou

em casa, ocorre-me que tenho que me expressar em changana, expresso-me, sem reservas.

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Em casa o senhor fala a maior parte do tempo changana?

Não, não. É, grande parte do tempo eu uso a língua portuguesa, uso a língua portuguesa. Não sei

quando isto partiu, porque antes mesmo de ter as minhas filhas a minha comunicação com a minha esposa, é, foi dominantemente em língua portuguesa. Não posso explicar porquê.

Já não sabe mais em que momento isso se deu?

Sim, sim. Eu penso que porque a conquistei em português. Portanto, é verdade. Então, dizer, a nossa

relação passou a ser intermediada pela língua portuguesa. Mas, é, sem roubar o espaço de changana. Tanto mais, que ela também é falante de changana, não é. Posso dizer que naquele momento em que

queremos ser mais originais, queremos ser emomocionais, até metemos uma palavra em changana, no

meio da língua portuguesa. É fascinante isso.

Não, que não é uma preparação: “-Agora, vamos parar com o português para metermos o changana.”

É natural. A palavra em changana entra, não é, sem pedir licença, não é. E só ficamos limitados

quando estamos a falar com as nossas filhas, porque elas, é, não que não percebam, mas já não nos dá

a resposta em changana.

Embora até chegam a entender, mas respondem em português ou nem chegam a entender a

changana?

Entendem. Só não respondem, não porque não consigam também, eu acho que não preferem. Elas falam changana, por quê? Porque nós, como eu disse, estamos em uma zona suburbana em que a

vizinhança, o modo de viver em si, acaba legitimando esta língua changana. Elas entendem sim.

Eu tenho sentido que é uma língua muito de afeto. (Changana?) As línguas maternas. Pelo que eu

tenho conversado, pelas pessoas que eu tenho entrevistado, eu tenho sentido que é uma língua de

afeto. Então, quando o senhor disse para mim: “-Eu choro em... Em changana.” (Sim.) “-É... É a

língua que eu... Que eu me sinto mais à vontade.”

Mais à vontade sim, é verdade. É de afeto. Penso que não está errada ao ter esse sentimento, pelo menos em relação à minha pessoa sim, está certa. Mesmo a dar aulas, se eu tivesse a certeza de que

estou-me a dirigir a estudantes falantes de changana, em alguns momentos eu podia introduzir um

termo ou uma frase em changana. Mas, o que me proíbe e inibe ao mesmo tempo é que temos estudantes, digamos, que são um mosaico linguístico. Então, aí evito.

Ah, então, diante disso, a língua portuguesa e as línguas autóctones convivem bem?

Ah, convivem bem. É o que podemos dizer, para não sermos pessimistas. Mas, é, há conflito também. Há muitos conflitos em relação a essas línguas, é, que se circunscrevem naquilo que eu costumo

chamar de contaminação, não é. Há segmentos das línguas autóctones que acabam aparecendo na

língua portuguesa não como são usados, mas afetam a estrutura da língua portuguesa, não é. Porque

tratando de línguas maternas ou de língua materna, para mim, de alguma forma, em algum momento, não é, é, aquela estrutura da língua bantu ameaça a estrutura da língua portuguesa. E isto resulta em

hesitações, resultam às vezes, não é, em erros mesmo, não é, no uso da língua portuguesa. Mas, da

minha parte isso não é motivo para me sentir acanhado, pra me sentir, ou algo assim, é, reduzido. Não. Não é isso, isso não. Não cria problemas graves.

O senhor conhece alguma palavra ou expressão originária da sua língua que é, ou de outra, que

é recorrente no uso do português moçambicano.

Hum, do changana? Talvez não. O contrário é que acontece. Por exemplo, é, a conjunção adversativa mas. Essa já faz parte do changana. Sim. O mas é usado em changana, tal como eu usaria em

português.

Na sua opinião, como o senhor avalia essa heterogeneidade linguística moçambicana?

Bom, é um fenômeno ainda difícil. Por quê? Porque essas línguas bantu, que são, a maioria das

línguas maternas aqui, ainda não são assumidas como línguas plenas. São vistas como línguas, é,

digamos, de incapazes, línguas diabolizadas. Se quiser entender assim. Quem fala a língua bantu é o indivíduo que não teve acesso à escola, é o indivíduo com, ãh, na sequência disso, com limitações em

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termos de pensamento, não sei o que. Exprime-se em bantu, então não é civilizado. Também ainda

existem esses resquícios do modo de viver durante o tempo colonial. De tal forma que as pessoas nem

querem que se saibam que conhecem essas línguas, muito menos aceitar que são as suas línguas maternas, não é. Até dizem que o changana é dialeto, não é língua. Isto é uma herança daquilo que

foram.

Como o senhor vê o papel da língua portuguesa como língua oficial, dentro desse contexto?

Ah, é central, é um papel inquestionável, de fato. Eu não vejo este país sem uma língua como o português como língua oficial. Seria de fato um caos. Se não fosse o português, qual seria? O inglês

era desejável, tendo em conta a localização do país. É uma ilha no meio de outros países de expressão

inglesa. Mas, não. Não se pode pensar numa outra língua que não seja o português. Porque com todas dificuldades e defeitos é uma língua já cristalizada aqui no país. Enfim, não. Não se trata aqui de

concorrência alguma com qualquer que seja das línguas bantu, né. A... A língua portuguesa é a nossa

porta de saída para aqui dentro e para fora. Então, é um papel fundamental, que eu até julgo que

devíamos, apostar muito na performance, seja linguística, seja comunicativa. Mas, é a língua portuguesa, porque não adianta querermos ter outros sonhos, não é. Acho que não adianta.

Podemos é, conquistar o domínio de outras línguas, o inglês. Mas, o fundamental é termos um

domínio inquestionável da língua portuguesa. Que faz parte até da nossa identidade. Não é o português de Portugal, que está em caso, estamos a falar português de Moçambique. Nem é o português do

Brasil.

De Moçambique. É o português moçambicano, não é o do Brasil.

Não é. Sim, temos registros com estas, como é que se diz, eu tenho um vocabulário feio. É, eu digo

contaminação, mas não é bem contaminação. É temos registros de português com...

A construção já do português Moçambicano?

Do português de Portugal, temos isso. Mas, e é agora, digamos que, entre aspas, é ameaçado pelo registro de português do Brasil, não é. Pelo volume de oferta linguística que o Brasil, é, tem, tem

trazido, através da televisão, através dos livros. Muitos livros que nós recebemos aqui têm a tradução

vossa, dos brasileiros. Então, a construção frásica acaba de forma, de alguma forma a modelar, é, a nossa forma de ser e de estar a língua portuguesa, mas sem superar, não é. Temos já o nosso registro,

digamos, que é despontado.

Professor, e o que é e como é ser moçambicano? (O quê?) O que é e como é ser moçambicano?

Ah, esta é uma pergunta difícil. Eu vou me socorrer, do que tenho dito nas minhas aulas de literatura

moçambicana. Quando estamos nos primeiros dias. Coloco uma pergunta assim, de provocação, que

nem é minha a pergunta, praticamente, é, roubei-a dum artigo da professora Fátima Mendonça. Pois é,

a professora fez um artigo intitulado assim: Literatura Moçambicana: O Que É? Então, eu pego nesse título só e lanço aos estudantes. Do gênero: “-Vocês estão aqui pra aprender a disciplina de literatura

moçambicana. Tudo bem. Mas, então, literatura moçambicana o que é?” Começa aqui um debate:

literatura moçambicana é aquela que é feita por moçambicanos, é aquela que fala de Moçambique e assim por diante. Então e, para animar a discussão, eu pergunto: “-E Moçambique o que é?”

Moçambique é um país, [palavra inaudível] Maputo, são as fronteiras, não é, do [trecho inaudível],

tem essas coisas... Essas coisas todas. São fronteiras. E eu digo: “-Para, não é. Moçambique como um

país, administrativamente é isso. Mas, vocês não... Não se deixem enganar, o país que é Moçambique hoje é resultado, não é, de... De um conjunto.”

E assim, converso com eles [palavra inaudível]. “-Um conjunto de uns tipos atrevidos que um dia se

sentaram e disseram: Moçambique tem que começar aqui e terminar aqui, começar aqui e terminar ali.” Não quiseram saber quem são as pessoas que estavam cá. Quem é moçambicano e quem não é?

Quantas línguas nós temos? E não só, e quantas outras pessoas vindas de fora de África, são aqui já

moçambicanas? Então, ser moçambicano é já uma complexidade em si, não é. É uma construção, não é. Eu até posso não ser moçambicano, tanto mais que não há referências de moçambicanidade que

sejam até sociedades de identidades cristalizadas, como Portugal hoje, já são questionadas, questões de

portugalidade. Tanta gente que está ali em Portugal. Quer dizer, para se dizer que a pessoa é

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portuguesa mesmo, com todo o afinco é um pouco duvidoso, não é. É uma palavra de conforto,

moçambicanidade e tal. É um pouco de tudo isto, essa mistura. Ser um moçambicano é ser um...

Vocês usam o termo mulato?

Mulato? Usamos.

Hum, hum. Isto, iá, o moçambicano é um mulato. E nós somos mulatos não só, não tanto em termos

de cor, porque há muita gente preta de verdade, não é. Mas, somos mulatos do ponto de vista de

mentalidade, sistema de valores. Nós, digamos, roubamos um pouco de tudo, não é. Somos mistos.

O que caracteriza o povo moçambicano então?

Pois é, é uma pergunta [palavra inaudível] social e tal, tem de estudar os grupos sociais para saber

isso. Eu não sei, o moçambicano me surpreende, não sei se, como eu acabei de dizer, somos mistos. E agora, não sei se existiriam características, por assim dizer, é, inquestionáveis. O que caracteriza o

moçambicano é a surpresa. Ele não é, quer dizer, ele vai nos mostrando coisas que nos fazem admirar.

Há vezes que a gente tem que perguntar: “-Aquele é moçambicano mesmo?” Porque tem, digamos,

traços novos, não é. Alguns com traços mais sul-africanos, mas são moçambicanos. Agora aparecem moçambicanos com traços mais brasileiros, mas são moçambicanos.

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ANEXO F – PROFESSOR F

Idade?

Sessenta.

Estado civil?

Casada.

Zona ou região a que pertence?

Sou do Sul de Moçambique, de Gaza.

Nacionalidade?

Moçambicana.

Naturalidade?

Moçambicana.

Profissão?

Professora universitária.

Religião?

Não tenho. Fui é..Aliás, o meu nome é muito católico, me chamo Tereza Maria da Cruz. Eu fui

educada na Igreja Católica, mas neste momento não tenho uma religião.

Quando a senhora pensa em língua, qual a primeira resposta ou ideia que vem à sua cabeça, à

mente?

Minha língua-mãe. Então, a minha língua-mãe, não é, é a língua portuguesa, apesar de eu ser

originária de várias misturas, não é, ãh, a minha língua-mãe é a língua portuguesa. Então, eu falo, é onde eu me sinto mais à vontade, onde eu transmito os meus sentimentos e onde eu sou capaz de

transmitir as coisas todas que eu sinto, não é, seja do ponto de vista científico ou pessoal.

Certo. A senhora então, a sua língua materna é mesmo a língua portuguesa?

Português.

E a senhora fala alguma outra língua?

Eu falo francês, falo inglês, melhor o inglês do que o francês

Então, e entendo, mas falo mal, uma língua local, da região de Erechi [?], que é Changana.

Changana. A senhora nasceu em que região?

Eu nasci em Gaza. (Em Gaza.) Na capital, que acho que se chama, um cidade que se chama Xai-Xai.

Lá fala-se changana, que é uma língua que tem uma raiz comum, que se fala, ãh, em duas províncias do Sul de Moçambique e na África do Sul.

E curioso, a sua mãe e o seu pai então já lhe educaram desde o início em língua portuguesa?

Meu pai e minha mãe tinham como primeira língua a língua portuguesa. A minha avó materna não. Da

família do meu pai, há várias gerações, que a primeira língua era a língua portuguesa.

E qual língua que a senhora mais gosta, dessas que fala?

Eu gosto mais de falar português. Porque me sinto mais à vontade, não é.

Claro. Grau de instrução?

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Ãh, como é que eu digo? Doutoramento é suficiente? É?

Ano de formação?

Do minha última formação? noventa e seis.

A senhora sempre estudou em Moçambique?

Então, eu estudei em Moçambique até fazer o meu doutoramento. por quê? Eu pertenço a uma geração

em que nós começamos a dar aulas na universidade mesmo antes de fazermos o doutoramento. Porque

veio a independência, os portugueses foram embora, então nós continuamos a estudar e a dar aulas aos primeiros anos, não é. E só, portanto, eu fiz a minha formação primária e uma parte da secundária

onde eu nasci. E depois fiz a secundária e a universitária, uma parte, não é, a primeira. A primeira

graduação na Universidade Colonial. Depois da independência eu fiz o resto aqui, nesta universidade. E só fiz uma pós-graduação aqui também, nesta universidade. E só depois é que fui estudar para Grã-

bretanha, para fazer o meu doutoramento.

O fato da senhora ter saído daqui pra Grã-bretanha, a senhora se sente uma intelectual de base

europeia? (De modo nenhum.) Africana, ameri...

De modo nenhum. E a razão é muito simples, é como eu disse, as pessoas da minha geração, nós

tivemos várias interrupções nos nossos estudos. Então, quando eu fui estudar, eu já ensinava e eu era

uma pessoa adulta e madura. Portanto não, de maneira nenhuma eu tenho qualquer relação com a Europa, não é? E me sinto bastante africana. Não tenho nenhuma relação com a Europa nem com os

Estados Unidos, não.

Certo. Sua área de atuação?

História social.

Disciplinas que ministra?

História social de Moçambique, da África austral e metodologias de pesquisa e ciências sociais.

A senhora atua em alguma outra universidade além daqui?

Eu estou nesta universidade o tempo inteiro.

Dedicação exclusiva?

Sim, dedicação exclusiva, como vocês dizem. E depois posso, sou convidada às vezes para trabalhar noutras universidades, como professora visitante. Eu sou associada de algumas universidades. Mas, a

minha base é... É a universidade Eduardo Mondlane.

Certo. Em que medida a senhora considera que fazer parte dos palopes e da CPLP é importante

pro desenvolvimento de Moçambique?

Olha, neste momento acho que como a... Como a CPLP funciona, ela de facto não traz nenhuma

vantagem. CPLP é Brasil e Portugal. Pros países do continente africano não tem expressão nenhuma

nem nenhuma vantagem. E, portanto, é uma relação que se estabelece quase entre Brasil e Portugal, mais do que com os países africanos. Por outro lado, falar de palopes também é... É um... Uma

terminologia, uma associação que é discutível. Muitas vezes eu encontro nos trabalhos que tratam da

questão da lusofonia, tratam de Portugal, Brasil e os africanos são os outros, não é? E, de facto, ãh, o que é que nós temos de comum com... Com Portugal, por exemplo, não é, a... Além de falarmos a

língua portuguesa, não é? Acho que nós zelamos muito mais pela fala da língua portuguesa do que os

portugueses.

Por exemplo, eu vou às vezes à conferências em Portugal e pergunto: “-Por que que vocês falam inglês em vez de falarem português, né?” Então, os PALOPs só têm em comum o o facto de serem

africanos, não é, de terem um colonizador que é comum. Mas cada um desses PALOPs tem uma

história específica, que tem a ver com o contexto em que os países se desenvolveram. Moçambique está aqui no Oceano Índico, onde foi influenciado por todas as migrações e pelo comércio do Índico,

Angola está lá no Atlântico, não é? Então, nós não podemos deixar de tomar em consideração que

cada um desses países, embora tenha pontos específicos que o identificam com Portugal, também tem

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entre si, não é? Também têm, a sua própria história, que é resultado dos contextos em que eles

nasceram e cresceram.

Portanto, hoje falar das vantagens, eu acho que é um pouco cedo. Porque além do ponto de vista do comércio, eu acho que a CPLP neste momento está preparada para resolver esses problemas. É um

caminho muito longo pra andar. E, portanto, as vantagens precisam ainda dum trabalho muito grande

dos países todos. Também não considero que seja correto os países africanos deixarem a

responsabilidade da solução dos problemas pra Portugal e para o Brasil, não é. Passamos a vida inteira a dizer que isso é um problema de Portugal e do Brasil. E o que fazemos nós, não é, se estamos dentro

de uma realidade? Então, temos que ver que solução. Mas, de facto, em Moçambique, ãh, se nós

fomos a buscar a identidade pela língua, ãh, em... Em outros países do continente africano, corremos muitos riscos. Porque, por exemplo, em Moçambique mais da metade da população não tem como

primeira língua o português ou não fala o português em casa. Então, é um caminho muito longo até

que a CPLP seja realmente representativa dos interesses de todos estes países, não é. E dos palopes,

acho que pior ainda.

O que que a senhora entende por lusofonia?

Olha, eu tenho algumas dificuldades em, em discutir o que é lusofonia. Aliás, vou lhe dar um artigo

que eu escrevi para uma conferência em Macau, que era sobre lusofonia. (Ah, muito obrigada.) Vou lhe mandar por e-mail, porque eu não tenho aqui. E o meu principal problema é: quando nós falamos

de lusofonia, tamos a falar só de língua. E se falamos só de língua, aí começa o primeiro problema,

não é. Porque o primeiro problema é que a maior parte dos países, por exemplo, do continente africano não [...] A maior parte da sua população não fala português. Então, partir da língua significa, não é,

que nós temos uma... Uma série de limitações. É, eu tenho dificuldades em dizer que sou lusófona, não

é. Acho que o termo lusofonia é um termo de caráter ideológico e politicizado, mais do que um termo

que corresponda à realidade.

E eu sempre me lembro das coisas que Mia Couto dizia, que há muitos de nós que falam e amam a

língua portuguesa. Mas que nós não nos podemos esquecer que as pessoas, a maior parte das pessoas

dos países africanos, por exemplo, não falam a língua portuguesa ou não tem a língua portuguesa como língua materna. Então, a questão de lusofonia merece ainda uma discussão sobre o seu

significado pra além da língua, não é. Porque a língua comum acaba por ser limitante, se

considerarmos que no continente africano, estou a falar como africana, ela não tem um significado tão grande como terá em Portugal ou no Brasil. Se entendermos que as pessoas falam outras línguas, não

é, ãh, que fazem parte da sua própria cultura. Então, o termo lusofonia é pra mim uma coisa que

precisa ser muito trabalhada ainda pra as pessoas sentirem como uma coisa que seja sua, não é.

Mas, mais uma vez, ãh, não podemos esquecer que nós estamos a falar em língua portuguesa, não é, uma vez que a língua não é o único aspecto, mas é aquilo que deu origem a... A esse... A esse conceito

de lusofonia não é? . Mas não podemos esquecer que os países africanos que falam a língua

portuguesa, ãh, a diplomacia se faz através dessa língua, a... As políticas públicas se fazem através da língua portuguesa, o ensino se faz através da língua portuguesa. Embora agora se esteja a estudar a

possibilidade, principalmente em algumas zonas rurais já se introduziram experiências de ensino

bilíngue, pra não prejudicar as crianças.

[...]

Então, a senhora usa a língua portuguesa em todas as circunstâncias? A senhora fala alguma

língua local?

Como eu lhe disse ainda há um bocado, eu tenho conhecimento de uma língua local, em que eu percebo tudo que as pessoas falam. Não sei escrever, não é, não sei a escrita da língua, porque aprendi

de ouvir. Mas, eu fico constrangida a falar e eu explico porque. As pessoas urbanas, a não ser aquelas

que tenham... Que tenham... Ãh, que falem a língua em casa, que há muitas pessoas que falam a língua em casa, não é. Mas como ela não é a minha língua materna, nem era a dos meus pais, nem é dos meus

filhos, não é, ãh, então eu uso essa... Essa língua quando eu tra... Faço trabalho de campo nas regiões

onde se fala a língua. E confesso que me sinto constrangida, porque eu falo com uma pronúncia de

língua portuguesa. Então, quando eu falo, os homens não dizem nada, as mulheres riem muito de mim.

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Então, eu fico um pouco constrangida, não é. E não tenho, como eu não falo essa língua todos os dias,

ãh, eu vou perdendo o meu vocabulário.

[...]

Na sua opinião, como a senhora avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

Eu acho que ela é uma riqueza acima de tudo, não é. Longe de mim pensar que ela faz parte de uma

divisão, dentro dos moçambicanos, mas que ela é uma riqueza. E que é o resultado deste país, como

outros países africanos, ter sido traçado num escritório, isso eu posso dizer assim, com régua e esquadro, não é. Portanto, se as fronteiras , é normal que haja tantas línguas. Não me pergunte quantas,

porque eu própria já não sei qual é a previsão dos linguistas, se são 17 ou se são 18.

Como a senhora vê o papel da língua portuguesa como língua oficial de Moçambique dentro

desse contexto?

Como eu lhe disse, a língua portuguesa é a língua da diplomacia, é a língua, que se usa para maior

parte do ensino. É a língua da transmissão do conhecimento, é a língua da ciência e da partilha etc e

etc. Mas o que eu acho é que é preciso tomar em consideração que se menos da metade da população fala português, então significa que ela ainda é a língua das minorias. Então, as políticas do governo

têm que tomar isso em consideração. Ou para as pessoas que têm que ter uma formação, em língua

bilíngue ou para criar uma possibilidade de mais pessoas falarem a língua portuguesa, não é? Porque tenho as minhas dúvidas que qualquer uma das outras línguas, pela abrangência que tem não é? , possa

ser considerada como uma língua oficial. Ou a tentativa que seja de transformar o suaíli numa língua

franca.

Suaíli é uma segunda língua, se não for a primeira, por exemplo, em alguns países como a Tanzânia.

Mas, em Moçambique só as populações costeiras do Norte é que falam suaíli. É. Então, encontrar uma

língua franca é, acho que é um pouco mais difícil. Mas isso aí já são os linguistas que podem dizer

mais do que eu. Portanto, a língua portuguesa continua a ser uma língua muito importante, não é, e que deve ser melhor difundida, deve haver mais livros, mais dicionários, melhor ensino. O problema da

crise da educação neste país reflete-se também na aprendizagem do português, não é. Não se tomou

em consideração uma série de coisas e a qualidade do ensino no primário e no secundário reflete-se no universitário, por exemplo. Onde, eu às vezes estou. Como estou agora a ler, a corrigir um trabalho

dum estudante, tô a tentar perceber o que o estudante quer dizer com isso, não é.

Porque uma coisa é a linguagem coloquial, outra coisa é a linguagem escrita. E eu sempre digo aos estudantes: “-Olha, o português é a língua de ensino. Portanto, vocês têm que escrever corretamente

português.” E o professor não deve deixar passar uma série de coisas. Portanto, há uma reprodução da

crise da educação, que começa no primário até ao universitário e que se reflete até quando uma pessoa

lê os jornais. Onde, neste momento, os jornais que são publicados têm aquilo que se chama, não sei se os brasileiros chamam, erro de palmatória. Vocês usam essa expressão?

Do ponto de vista da senhora, as línguas autóctones convivem bem com a língua portuguesa?

Depende, não é, não sou linguista, não é? Mas, da mesma maneira que vocês no Brasil, se uma pessoa

é da Bahia ou se é de São Paulo, vocês notam a maneira como falam, não é? Também aqui, se nota a

influência da língua materna no aprendizado do português. E tem uma influência muito grande, quer

as pessoas sejam rurais, quer sejam urbanas, ãh, tem uma influência muito grande, não é. Porque a estrutura da língua materna é muito importante. Da mesma maneira que eu, quando falo inglês, às

vezes tenho dificuldades. Como eu costumo dizer: “-Os ingleses falam ao contrário, né.”

A senhora conhece alguma palavra ou expressão originária das línguas nacionais que são de uso

corrente no português?

Ah, muitas. Mas eu teria algumas dificuldades porque, por exemplo, nas áreas urbanas, as pessoas que

têm uma formação no ensino básico, é, elas falam no dia a dia uma. Misturam o português com palavras da sua língua não é?. E o que eu verifico é que, muitas vezes, os empréstimos linguísticos das

pessoas que vivem nas cidades são de tal ordem, que as pessoas, mesmo quando falam a sua língua

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materna, introduzem palavras do português. Não porque não haja uma palavra correspondente, não é,

no empréstimo linguístico. Mas, é por causa da influência da urbanização. Então, há muitas. É verdade

que há aquelas que já fazem parte da linguagem corrente, como eu digo maningue, não é, maningue ou como há também é, aqui no sul, principalmente, a influência da língua inglesa é muito grande, não é.

E professora, o que é e como é ser moçambicana?

É, as pessoas sempre me perguntam, os brasileiros: “-Se você não vivesse em Moçambique, viveria no

Brasil ou viveria em Portugal?” E eu digo: “-Se eu não vivesse em Moçambique, viveria em Moçambique.” Este é um país que tem problemas que não têm fim, é um país que tá cheio de... De

corrupção, pobreza, uma série de coisas, mas é o meu país. Então, apesar dos problemas todos que

tem, é o meu país, não é? E eu gosto de ser moçambicana. Embora reconheça que o país tem problemas incríveis e que muitos deles dificilmente serão ultrapassados, não é, porque é um problema

de governação. Não vamos culpar só a crise global, não é? Mas temos que ver como é que nós

resolvemos os nossos problemas a partir de dentro também, não é? Mas eu gosto de ser moçambicana,

tenho muito orgulho de ser moçambicana. Mesmo que não tenha orgulho dos corruptos e dos... Dessas coisas todas, mas...

[...]

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140

ANEXO G – PROFESSOR G

Idade?

Trinta e um anos.

Estado civil?

Casado.

Zona ou região?

Quando falamos de zona, fala de que especificamente? Eu sou daqui da cidade de Maputo. É,

Maputo cidade mesmo, centro. E concretamente, é, distrito de Bangu Número 5. Antigamente

era distrito de Bangu Número 5, agora chama de [palavra inaudível], com a nova... Com a

reforma, né, que o município introduziu.

Então, a nacionalidade é moçambicana?

Sim, moçambicana.

E naturalidade também?

Naturalidade, eu sou daqui de... De Maputo, sim.

Profissão?

Professor. Sim.

Religião?

Católica.

Qual é a primeira coisa que vem à sua mente?

É, qual é a língua ou o quê... O quê? Que coisa?

Quando você pensa em língua, qual primeira resposta que lhe vem na cabeça?

Ah, o que é língua? Ok, tá bom. Agora dá para saber. É um meio de expressão, não é, é o

meio pelo qual interagimos, né, é o meio pelo qual nos conhecemos, nos identificamos, por aí

afora.

Quantas línguas você fala e quais?

Primeiro a língua portuguesa, né.

É sua língua materna ou...?

Como é que é? Eu não sei dizer ao certo qual é... Qual seria a língua materna. Porque segundo

o conceito, né, língua materna é a primeira língua que o indivíduo... Aprende. É, mas eu tenho

uma situação de coexistência de duas línguas. Porque eu aprendi simultaneamente o português

e uma língua bantu, não é, que é o pitonga e chama guitonga, né. Os meus pais, ambos eram

pitonga. Então, em contexto, quando estudávamos por diante da minha mãe, era mais o

guitonga, mas quando o meu pai lá estivesse, era o português. E na tradição até lá dos

guitongas fala-se muito até o português. Então, acabei desenvolvendo...

As duas paralelamente?

As duas línguas, sim, paralelamente.

E qual língua você gosta mais?

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É difícil dizer. É. dependendo do meio, eu sinto-me confortável com... Com uma das duas.

Depende do meio em que eu estou inserido.

Mas não tem uma que você tenha preferência?

Bom, preferência, me atrevo a dizer língua portuguesa. Porque em algum momento até que...

Nesses últimos tempos, porque perdi os meus pais, né, já não temos aquela... Aquele uso

fluente da língua. Então, fui perdendo alguma prática. Só em alguns contextos mais,

familiares, que uma vez ou outra, né, troco. A língua portuguesa.

Certo. Grau de instrução?

Graduado.

Ano de formação?

Dois mil e seis.

Local de formação?

Aqui. Sim, sou filho da casa.

Então, você sempre estudou em Moçambique?

Sim, sempre estudei em Moçambique, sim. Sempre aqui em Moçambique.

Certo. Área de atuação?

Área da língua portuguesa. E gora concretamente estou mais ligado à área da didática da

língua.

Certo. Disciplinas ministradas?

Nós aqui não temos várias. Mas a que mais trabalho com elas é uma cadeira chamada de

estágio. Que está ligada à didática. É. E tem também a cadeira com a língua portuguesa.

Você atua em alguma outra universidade além daqui?

Não, não, só aqui.

Em que medida fazer parte dos PALOPS e da CPLP é importante para o

desenvolvimento de Moçambique?

PALOPS e CPLP? É, eu acho que, pAra qualquer situação da vida, né há uma necessidade de

interagirmos, não é, de trocarmos experiências. E nessa ordem de ideia, eu acho que é sempre

bem-vindo esta agremiação como tal. Portanto que ela troca de experiência que de algumas

coisas que nós não temos prática, né, que podemos aprender com essa integração desses.

Dessas organizações, não é. A troca de experiências sobretudo. É benéfico nesse sentido.

E o que você entende por lusofonia?

Hum, lusofonia? Um bocadinho assim, porque a gente tem participado de alguns encontros.

Há quem defende que o termo lusofonia tem o que, tem o sentido não sei o quê. Mas, pra

mim, em particular, eu acho que lusofonia é um espaço em que todos nós nos identificamos

sendo falantes de uma mesma língua. Eu interpreto assim. Então, prefiro pôr de lado essas

outras interpretações que podem aparecer, né. É, mas para mim, entendo como um espaço,

certo, que não é físico, mas espaço, em que imaginário. E que todos nós nos identificamos

sendo tendo um denominador comum, que é a língua luso, Lusa, né? De certo, com as suas

variedades, né, típico da língua que é dinâmica. Mas, algo temos algum denominador comum,

nesse caso aqui seria a língua.

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Certo. Em circunstâncias ou situações você usa a língua portuguesa? Você já me disse

que tem usado mais do que...?

Sim., bom, aqui é imprescindível, tem que ser, tem que ser, é a nossa língua oficial. Em casa,

geralmente quando estou com a minha filha, há essa tendência de usar a língua portuguesa.

Mas quando estou com os meus tios, pessoas mais velhas, nós usamos mais a língua local.

Sim, que é a língua bantu nesse caso.

E você fala outra além do Pitonga?

O inglês um pouquinho, dá para enganar. Agora, tem, para além do pitonga, tem uma língua

cá, do Sul de Moçambique. Só que nem sei dizer, porque temos duas línguas inteligíveis entre

elas, que é o ronga e o changana. Então, eu fico sem saber o que falo, na verdade.

Principalmente aqui em Maputo. Então, eu fico sem saber se falo ronga ou changana. Mas,

quando estou diante dos ronga, consigo perceber. Quando estou diante dos Changanas,

também consigo perceber. E para além dessas, também entendo um bocadinho de uma língua

chamada [palavra inaudível], que é falada numa parte da província de Inhambane, Sul de

Inhambane. E temos o tsua, chama xitsua, que também é inteligível com o changana. Eu

consigo também perceber e comunicar-me com uma facilidade enorme.

Bastante línguas. É, na sua opinião, como você avalia essa heterogeneidade linguística

moçambicana?

É, avaliar em... Em que sentido?

Como você vê o papel da língua portuguesa como língua oficial de Moçambique?

Ai, ai! Aí aparece um grande problema. Porque a língua é a língua oficial sim, mas nós temos

grandes problemas, não é? Porque boa parte da população moçambicana não é instruída. Não

tem o domínio da língua. E, em algumas circunstâncias, até pode ser motivo de discriminação.

Porque o não saber a língua limita a pessoa a ter acesso a vários serviços.

E a língua portuguesa e as línguas autóctones convivem bem, de uma...?

Se convivem bem? Bom, há mais, há mais protagonismo para língua portuguesa. Sim. Mas,

eu acho que há uma boa convivência. Até que a nova filosofia leva-nos a crer que possamos,

ãh, revitalizar essas... Essas línguas. E... Exemplo prático é o fato de termos introduzido aqui

na universidade, não é, ãh, as línguas bantu.

Você conhece palavras ou expressões originárias de uma das línguas nacionais que seja

de uso corrente em português?

Sobretudo, como é, conheço algumas, porque eu sei que quase todas elas enquadram-se mais

na área da culinária, né. Que nós temos vários pratos locais que até então pode-se considerar

que não eram conhecidos, também pelos europeus, pode-se dizer. Por quê? Porque pelo que

eu saiba, né? Ah, as palavras surgem na intenção da pessoa nomear as coisas. Uma vez que

eles não conhecem essa realidade, introduziu-se diretamente da língua local para...

Como é ser moçambicano?

Ser ser moçambicano, o que é? Eu acho que ser moçambicano, antes de mais, é serum

indivíduo calmo, que saiba respeitar o outro. E que também saiba estar, não é, dentro das

nossas dificuldades, saber estar. Temos muitas diferenças cá entre nós, mas sempre

conseguimos dar a volta por cima com. Com o diálogo. E é certo que sempre onde há... Há

pessoas a conviver, tem algumas que criam, procuram criar estabilidade. Mas, de uma forma

sábia, conseguimos dar a volta com uma personalidade digna de louvar, né. Um povo calmo,

respeitoso, hospitaleiro. [...]

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ANEXO H – PROFESSOR H

Idade?

Tenho 31 anos de idade.

Estado civil?

Sou casada.

Zona ou região a que pertence?

Sou da zona centro de Moçambique e especificamente natural de Zambézia. Isso, Zambézia.

Embora, olhe só, é Zambézia, mas os meus pais só. Quer dizer, eu fui nascida lá. Os meus

pais são de Tete. Então, por questões de trabalho, na altura, os meus pais deslocaram-se de

Tete para Zambézia, onde lá fui nascida, eu e os dois, os meus irmãos. E depois viemos viver

pra cá.

Em Maputo?

Para Maputo. Então, estou cá há mais de 25 anos.

A língua-mãe?

A minha língua materna é português. Comecei assim. A minha mãe é, começou a comunicar-

se conosco em língua portuguesa. Embora ela seja, até a altura não tinha uma escolaridade

muito avançada. Mas, o meu pai já era um assimilado. Razão pela qual era até proibido falar a

língua local dos meus pais em casa. Os meus pais não queriam falar a língua local. Minha

mãe, sobretudo, porque era ela quem educava os filhos. Então era obrigada a falar em língua

portuguesa. Naquela língua dela, mal, mas nós fomos aprendendo, até entrar pra escola e

aprendendo.

E qual é a língua da sua mãe, a materna dela?

Eles falam sena.

Sena? (Sim, sim.) Ela e o seu pai?

Ela e o meu pai, os dois são sena. (Que é de Tete?) Exatamente. Então são sena. Então, a

nossa língua materna, todos nós, é português, todos nós irmãos.

É. E vocês chegaram, mesmo assim, ainda a aprender alguma outra, não?

Olhe, para lhe falar a verdade, a língua sena, os meus pais comunicam sempre entre eles. Eles

dois, quando querem falar alguma coisa lá, falam.

O que os filhos não podem saber?

Sim, mas eu fui aprendendo. Eu consigo aperceber, eu sei uma e outra palavra, mas não sou

fluente na língua. Isso, não sou fluente na língua. A minha irmã mais velha já consegue ser

mais fluente na língua. Mas eu não, eu não. Consigo fazer ali um rabisco, quando tento falar

com a minha avó, mas não sou fluente na língua. Entendo, entendo a língua.

Grau de instrução?

Tenho mestre, mestrado em língua da cultura portuguesa. Especialidade em metodologia de

ensino de língua portuguesas, como língua segunda língua e língua estrangeira.

Certo. Ano de formação?

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Tenho, como docente, 2005 para hoje são seis anos... Sei anos

E o mestrado fez aqui em Maputo?

Não, fiz em Portugal. Sim. São de dois anos, no estado em que fiz lá.

Dois anos. Morou lá então, por dois anos?

Sim, sim, tive que viver lá. Porque aquilo é um sistema muito puxado com Bolonha lá. Então,

tem que completar os créditos todos. É, aquilo é, por aí, um ano e meio só de seminários,

seminários, seminários. Depois é que é o trabalho propriamente dito. E o trabalho eu vim

fazer, recolher o trabalho cá. Sim, porque os meus dados...

[...]

Que bom. E a senhora atua só na universidade Mondlane ou mais em alguma outra?

(Não percebi.) A senhora atua como professora aqui na Eduardo Mondlane?

Sim, sim, só. Eu sou daqui da... Da... Na... Na universidade Eduardo Mondlane, só.

E quais disciplinas a senhora ministra?

Eu dou, português. Temos português deste... O português está feito uma espécie de módulos,

tem português um, dois, três, quatro, cinco, até oito, dependendo... (Do curso?) Dos curso.

Ok. Eu já fui em todos eles, todos os cursos. E estou mais abalizada em quatro módulos do

português, que é o português um, dois, três e quatro. São estas cadeiras que eu dou da língua

portuguesa. Sim.

Então, a sua área de atuação é o português efetivamente?

É o português, é o português. Mas, esse, mais virado para didática. Isso. Aplicação de... Isto é,

verificar um problema e tentar criar, estimular ou simular uma espécie de oficinas para poder

melhorar a situação que aquele aluno se encontra ou que alguns professores. Tentar movime...

Ou como é que é? Organizar uma triagem que possa superar a dificuldade em língua

portuguesa. Uma vez que essa língua aqui é uma língua segunda, não é, sempre.

Então, a senhora atua no curso de letras, efetivamente?

Só letras. Nós aqui temos uma faculdade enorme, não éom o sistema departamento de línguas.

Então, o departamento de línguas são quantos? Temos português, temos ensinos de língua

bantu, temos francês, temos inglês. Então, são todas as línguas onde eu trabalho. Eu dou

português tanto no ensino bantu, dou português tanto no francês, no inglês, no próprio ensino

de português. Isso. Atuo em todas elas.

Bastante?

É, muito. Nós tamos aqui sufocados. Temos números reduzidos de docentes para ter que

responder a isto tudo.

[...]

Em que medida fazer parte dos PALOPES e da CPLP é importante pro

desenvolvimento de Moçambique?

Olhe, eu acho que só há desenvolvimento quando nós temos contactos além de fronteiras. E se

existe países, a nível de África, que fala língua portuguesa, por que não estabelecer contatos

livres? A diferença é que faz o desenvolvimento. É preciso que Moçambique tenha contato

com Angola, Cabo Verde, por aí em diante, porque só assim que a gente pode ter experiências

outras e desenvolver a nossa situação. É por isso que eu acho que há importância... Eu não sei

como explicar, mas não é possível que um povo viva sozinho, não é possível, e ao mesmo

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tempo desenvolver. É preciso que haja contactos com os outros que tenham algo em comum

pra o seu desenvolvimento. Por isso é que eu acho que é importante, não pode viver só. Aliás,

é um país independente mesmo em quase todos os aspectos.

Não quero falar da questão econômica profissional. Se falar a questão da língua, dependemos

sim senhora. A literatura, nós não conseguimos produzir tanto aqui, precisamos de outras

literaturas. Então, é preciso que a gente tenha contato com outro povo. (Que fala esta língua,

sobretudo, as que fazem parte do PALOPS.

Certo. Nesse sentido então, o que que é a lusofonia? O que representa a lusofonia?

Bom, esse termo já é um termo é um termo tão polêmico. Que já foi discutido tanto. Porque lá

está a questão de identidade. Quando está a falar da lusofonia, está a falar daquele povo ou

daquela comunidade que fala a língua lusa. Qual é ela? É a língua portuguesa. Há aqueles que

falam por vários interesses, por vários interesses. Eu, particularmente uso-a, porque não é só

por questão de interesse, também pode ser uma questão de identificação. Uso porque é a

língua com que eu penso. Eu penso com a língua portuguesa, não penso com outra. A

lusofonia acaba entrando em mim, senão querer fazer uma [palavra inaudível]. Alguns dizem

que este termo é um pouco polissêmico, porque parece que estamos a fazer a colonização

mais uma vez. Estamos sendo colonizados mais uma vez.

E, na verdade, o português não é falado. Olhe, eu falo por mim, eu falo português, porque esta

é a língua que eu falo, que sempre falei, desde pequena até hoje. É a língua com a qual eu me

identifico, porque é a língua que eu me comunico com o meu pai, com a minha mãe, até com

a minha avó. Já não é a língua... Não é a minha avó que me ensina a mim, sou eu que tento

ensinar o português a ela. Então, é a língua que eu me identifico. Parece, posso ser colonizada,

mas identifico-me com ela. Por isso é que eu acho que a lusofonia acaba entrando pra mim.

Eu sou uma, se me identificar, eu sou... Eu sou uma lusa. Não lusa em Portugal, mas lusa em

Moçambique.

Mas, você fala outras línguas além do português?

Que fui aprendendo, não é. O inglês tento falar. O francês, olhe, fico para trás. O próprio sena,

que é língua dos meus pais. Eu acho que talvez consiga rabiscar melhor em inglês do que

sena. Sério, sinceramente. Eu acho que este o sena acaba sendo uma língua tipicamente

estrangeira. A língua segunda talvez é o inglês. O changana não sei nada, só sei [palavra

inaudível] e companhia limitada. Sei cumprimentar e sei pedir. Isso não é falar, isso não é

funcionamento de língua não. Não é. Não, eu não falo mesmo, não vale a pena. Não falo, não

falo.

Na sua opinião, como você avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

Hum, eu não sei se entendi bem a pergunta. É avaliar no sentido positivo ou negativo?

A sua vontade. Você que vai me dizer se a avaliação é positiva. (É positiva ou negativa?)

Se é negativa. Quais as razões, se tá no meio a meio.

Não, eu acho que eu acho que já tinha feito referência quando falei da lusofonia ou quando

falei a questão do PALOPS. Porque quando falamos de questão de língua é preciso ver...

Vamos lá pra Moçambique, por exemplo. É um país africano sim senhora. Qual é exatamente

a essência deste Moçambique? Qual é a essência da língua, questão linguística deste

Moçambique? Não é o português. Porque o português vem do outro. Antes de... Da entrada

dos portugueses, existia aqui uma comunidade que era falante de alguma língua. É a tal língua

chamada línguas bantu, que são N em Moçambique. E esta heteroge... Já nesta altura existia,

eu acredito, algum desenvolvimento, comunicamos na sua forma e havia um

desenvolvimento.

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Eu não vou concordar com as pessoas que dizem que... É que o português trouxe esse. Não

acreditoa heteregeneidade, [palavra inaudível] antes falo da questão do que é visto em

Moçambique, [palavra inaudível] de três línguas nacionais, de três por aí. E o português

também está lá dentro. Acaba sendo, embora alguns excluam. Porque eu, no meu caso, aonde

é que... Que me vão colocar? Com alguma língua nacional, que dizem línguas bantu, e não

português?

[...]

Perfeito. Então, nesse contexto, você vê a língua portuguesa pra Moçambique como a...

Como língua nacional também. (Como língua nacional.) Deve, porque eu, se não, se me

disserem que não é língua nacional, então estão a chamar-me a mim de não moçambicana.

Estão a dizer a mim, particularmente, que nasci a saber falar: “-Mamã, papa, bom dia, boa

tarde.” Não em língua dos meus pais, que eu não tenho identidade moçambicana. Eu só me

identifico com a língua portuguesa. Não estou a desprezar as outras línguas, estou a dizer

aquilo que é a minha realidade. Se disserem que a língua moçambicana, a língua portuguesa

não é moçambicana, então estão a excluir a minha identidade e de muitos outros que eu sei

que também têm a mesma situação que a minha.

Que você. Você conhece palavras ou expressões originárias das línguas nacionais que são

uso corrente hoje no português?

Sim. Por exemplo, aqui no Sul, ãh, a palavra chová[?]. (Chová.) É duma expre... É... É uma

palavra que eu acredito, ãh, veio da língua do Sul daqui, uma língua local e que por causa do

momento em que se vivia havia uma se... Uma espé... Como se chama aquilo também? Eram

umas carinhas que se ajudava para transportar coisas ou deslocar coisas e chama-se... Chama-

se chova[?], a tal carinha é chova[?]. Chova, do tipo, em português significa empurrar. Essa

palavra acabou entrando pra uma... Um... Uma linguagem corrente: “-Chova lá isso.” Do

tipo: “-Empurre isso.” E não está a usar o instrumento chová[?]. Percebe? Tem o chová[?],

tem, hum... São vários.

[...]

O que é e como é ser moçambicana?

O que é ser moçambicano? Ser moçambicano é ser um cidadão que consegue, dentro do seu

país, ãh, ter áreas de intervenção em todas as áreas. Sentir-se moçambicano pra mim é isso, é

eu poder estar no meu país e poder sentir-me que posso atuar. Embora isto não é assim como

estou a dizer. Estou a falar aqui de uma forma literal né? . Na realidade há coisas que não são,

não tem um... Como eu posso dizer? Não é... Não é capacidade, mas não tem um, não sei se é

autorização também. Sinto-me com limites pra poder fazer. Porque o próprio estado não

permite que eu faça. Mas, a partir da altura que eu me sinto realizada em alguns aspectos onde

tenho área de manobra, eu posso dizer que me sinto feliz por ser moçambicana. O que não

posso fazer em qualquer outro país.

Eu me sinto, eu posso, consigo sair, estar na minha casa, poder sair, convidar pessoas. Em

Portugal eu tive uma grande dificuldade. A vida em Portugal é muito fechada. Principalmente

a falar de Portugal, Lisboa. [...]

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ANEXO I – PROFESSOR I

Como você vê o portuguesa em Moçambique?

Língua portuguesa. O que é a língua portuguesa em Moçambique? O que que ela é? Como é que ela

surge aqui? Surge através da colonização portuguesa, evidentemente, não é. Mas essa colonização portuguesa, como vocês sabem, não foi nem só homogênea e foi muito diferenciada ao longo dos

últimos cinco séculos. O Vasco da Gama aporta aqui no Porto, hoje em dia chama cidade de

Inhambane, que é aqui perto, é aqui, a [palavra inaudível] quilômetros aqui de Maputo, não é, em

1498. Não é verdade? Em 1498, a caminho da Índia, não é verdade. E foi um piloto da Ilha de Moçambique, um moçambicano, que levou depois Vasco da Gama até Melingue, uma ilha que é ali

perto de Mambaza. E depois foi o outro piloto, lá do Melingue que levou e indicou qual que era o

caminho pra Índia. Portanto, Moçambique teve sempre um papel preponderante aqui ne... Nesta questão aqui técnica até, não é verdade.

Porque antes dos portugueses cá estarem já havia contactos muito antigos com os persas, com os

hindus e com os árabes, nesta costa oriental, até aquela região de Inhambane. Havia muita influência árabe antes da chegada dos portugueses. Os portugueses iam pro... Por uma missão, que você sabe,

expansão comercial, que eles queriam as especiarias da Índia, roubar o comércio lá de Veneza, que era

por terra, pelo Egito, não é, para começar a levar as especiarias aqui, via marítima, e colocá-las em...

Em Lisboa como mercado. O que foi durante cem anos. Lisboa foi um mercado fundamental das especiarias do Oriente e enriqueceu, criou muita riqueza etc, não é. E então, a costa moçambicana era

uma costa onde os navios atracavam. A Ilha de Moçambique, depois que começou, foi a primeira

capital, digamos, deste país, a Ilha, era um porto fiscal e ao mesmo também de transações e etc, comerciais, não é. Foi conquistada aos árabes, [palavra inaudível] era árabe, de um sultanato lá da

[palavra inaudível], não é.

Ora bem, isso quer dizer que, a língua português vem com os portugueses, ela começa realmente a ser utilizada por esses portugueses que se localizavam nas feitorias em Inhambane, aqui na feitoria onde

era a antiga Lourenço Matos, que era em Maputo.

[...]

O senhor é moçambicano?

Sou, sou. É o primeiro caso na história da diplomacia brasileira em que um moçambicano que tem

esse espírito mais ou menos cosmopolita e internacionalista, foi convidado para ser, convidado não,

num concurso interno, foi escolhido pra ser diretor docente. [...]

[...]

O português moçambicano?

Começa-se a fazer uma variável e nós tivemos o PM. Assim como há o PA, assim como há o PB e

assim como há o PE. Que é o português europeu, português do Brasil, português de Angola, português de Moçambique, português de [palavra inaudível], português da Guiné, que são as variantes que vão

surgindo dentro da... Da grande família da língua portuguesa, não é. Então, começam a aumentar o

número de falantes, não é verdade, através dos pais. Só que nos finais dos anos 1980, como tava a dizer, acaba que muitos ti... Tios e avós começam a ficar preocupados: “-Eita.” Eles já acham que os

netos, os nossos filhos já não falam a nossa língua e começam a espantar. Então, a gente vai ver os

rivais da época, começam a [trecho inaudível] a conquistar isso. Mas, mesmo assim, o português continua a língua, ãh, chamada língua de unidade nacional e a língua oficial de Moçambique.

De qualquer modo, não sei data certa, começam a surgir núcleos de estudos das línguas bantus, na

padronização da ortografia bantu. Como vocês sabem, muitos dos nossos bantus escreviam a sua

língua, por exemplo, o maconga ou o que, com a fonia, com a ortografia portuguesa. Mas, no entanto, como vocês sabem, há um alfabeto inter-racial africano, em que todas as línguas bantus se escrevem

da mesma maneira, não é verdade. Então, começou-se a ser... Ser chamado a fazer a padronização.

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Isso foi muito útil, não é verdade, foi divulgado. Isto aí começa a partir dos finais dos anos 1980

também, anunciado que vai ser estudado. E começam também a preocupar-se, aí já se alimenta de

como... Sobre uma política linguística. Porque a... A nossa política linguística baseava-se neste português de língua oficial, não antagonizava as línguas maternas, não a persegui-las, mas, pronto, é,

não davam o estatuto que elas mereciam, do ponto de vista político.

Então, a certa altura, o que que acontece? Estamos já nos anos 1990. Começa a haver muito insucesso

escolar na periferia das cidades e no interior do país. Por quê? Porque as crianças tinham... Não tinham o português como língua materna, só tinham o português durante aquele período de duas a três horas

na escola. Quando voltavam à casa...

[...]

Da língua portuguesa?

Portuguesa. E não pelas línguas bantu. No entanto, as pessoas têm consciência de que a língua bantu é

a raiz telúrica onde nós vamos inspirar, é a raiz onde muitas vezes vamos buscar algumas... Alguns

lexemas, palavras que não existem no português, que vão enriquecer o próprio português.

Então, já existe palavras e expressões que são originárias das línguas nacionais? (Exato. São das

línguas bantu, que estão incorporadas...)

São de uso corrente inclusive, inclusive. E há o contrário, há palavras portuguesas que já são, tomaram posição nas línguas bantu, que eles não tinham o empréstimo. Isto acontece em todas as línguas do

mundo. Por exemplo, a palavra garrafa aqui no sul, ãh, garrafa, a palavra garrafa, não havia garrafas de

vidro, não havia garrafas de barro, não havia... Então, por exemplo, eles foram buscar uma palavra que é de origem britânica aqui ao lado. Como havia [trecho inaudível] África do Sul. A palavra bottle, não

é. Aqui na região sul bottle quer dizer garrafa: “-Então, [palavra inaudível], [palavra inaudível].”

Foram buscar. Porque a palavra, ãh... Ãh, colher, existe uma colher de pau, a colher de... De ferro, de

coisa, de metal é spoon, do inglês, aqui é spumo. Quer dizer, foram buscar no inglês. E as outras tão em português.

Por exemplo, a palavra, o pires ou a xágara, né, é... É xícara. (Xícara.) Xícara, né, o pires. Aqui o

pires é pirice, ãh... Ãh, xícara é... É... É xicare. Quer dizer, é... Quer dizer, portanto, foram buscar por empréstimos palavras que não existiam, os ins... Esses instrumentos não existiam nas línguas bantu.

Isso acontece em todas as línguas do mundo. (Sim.) Assim como a... A palavra computador.

Então, as línguas convivem bem? (Convivem...) A língua portuguesa e as autóctones convivem

bem?

Não, não... Não há... Não há problema, porque elas são [palavra inaudível]. Há uma troca, [trecho

inaudível] vai... Há de haver cada vez mais influência mútua, não é. Agora, a mim, pessoalmente,

preocupa-me, porque não estou, neste momento, a pensar já que vamos criar e seria, vamos dizer, seria um dado, uma dificuldade acrescida, criar um crioulo aqui. É possível que possa ser criado um

[palavra inaudível] crioulo. Mas, eu penso que se nós mantivermos um governo unitário e nós

tivermos um ensino em português, provavelmente não... Não vai surgir um crioulo [palavra inaudível]. Porque se surgir um crioulo no norte, depois outro no centro, depois outro no sul, pois não nos

entendíamos.

Portanto, eu acho que o português já [palavra inaudível] uma língua veicular enriquecida, a variante do

português de Moçambique pode ser enriquecida com os empréstimos bantus. [palavra inaudível]. E também o bantu vai... Vai sofrer muita influência das línguas... Da língua portuguesa.

Como que o senhor avalia essa heterogeneidade linguística?

Essa heterogeneidade lingui... Agora com o ensino bilíngue vai se manter, pelo menos vai... Vai fazer com que elas não morram, que as línguas bantus não morram.

Certo. Então, é importante...?

Teoricamente, teoricamente, uma porque as línguas nascem, crescem e morrem.Teoricamente elas vão... Vão ficar mais tempo vivas, não é? Mas será que vão ficar vivas todas elas? Será que daqui a um

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ano, daqui a duzentos anos vai estar vivo ou vai ser engolido pelo maconga e pelo macua? Será que o

bitonga, neste momento, vai estar vivo a quinhentos anos ou vai ser engolido pelo... Pelo matsua ou

xitsua, que ali [palavra inaudível] cercando a língua bantu por todos os lados. Por casamento, por isso e por aquilo, as pessoas estão perdendo. Quer dizer, tudo isto também é a dinâmica sociolinguística do

país. Então, em português há essa dinâmica sociolinguística que está acontecendo, não é.

E, professor, em que circunstâncias são utilizadas as línguas bantus?

Não que, é, chamadas circunstâncias do afeto. Por exemplo, eu sou... Eu sou... Eu sou do interior de Gaza, falo changana, eu sou do mato, a minha língua materna foi changana e quando vejo outro

indivíduo [palavra inaudível], naturalmente... Naturalmente falo. Mas é engraçado que ele passa de um

código pra outro, às vezes, em circunstâncias. Eu estou a falar changana.

É natural?

Natural, natural. É natural, não tem problema nenhum. De repente para numa monta: “-Ei, que vestido

tão lindo.” Ué, que coisa. Eu podia dizer a... A co... A coisa: “-Vestido [palavra inaudível].” Mas eles

não dizem. Por exemplo, [palavra inaudível]. Passas muitas vezes de um código para o outro, que já se conhece os dois códigos. Naturalmente. Sem... Sem muita... Sem... Sem muita confusão. Por quê?

Porque o... A língua deixou de ser vista como a língua exógena. Embora há muitas pessoas que

infelizmente, ãh, são os tais fundamentalistas, extremistas, criam-se problemas, ãh, criam às vezes atritos nisto aqui. Quando o... Quando o povo, ele naturalmente não tem. Por exemplo, vou dar um

exemplo muito simples. Se você for aqui pra periferia da cidade, ao contrário do que acontece aqui no

centro da cidade, os nomes das empresas aqui vão buscar nomes de origem inglesa. É [palavra inaudível] house, o raio que o parta, desculpa a expressão, é.

Lá no subúrbio sabe como que é: Barbearia o Ódio... O Amor que Venceu o Ódio. Ãh, as... As

Tranças da Menininha. Quer dizer, nomes lindíssimos em português. (Lindos mesmo, é.) Então, no

subúrbio, onde a língua bantu é... É.

E que reflete toda a cultura, todo o afeto que vem de vocês?

É, é... Ora... Ora, que já começa a ter relação com a própria língua portuguesa. (É.) Portanto, isto quer

dizer que o... O povo... O povo é muito mais culto e inteligente e é muito mais agarrado à sua realidade do que esses indivíduos da burguesia, que estão aqui bem instalados e são donos das

empresas. Eu tenho um artigo que chama-se: Tenhamos Orgulho da Nossa Identidade Linguística,

onde fala muito sobre isso, a questão da língua no... Nossa, as línguas bantus, o português e... E a língua inglesa. Tem mais esse artigo. Quer dizer, se tivesse aqui tirava-lhe uma cópia pra levar.

[...]

Em que medida, fazer parte dos Palopes e da CPLP é importante para o desenvolvimento de

Moçambique?

De Moçambique e pra todos os povos. Penso que embora muitos de nós pensamos, até agora então

pensamos, que a Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, CPLP, era mais, digamos, uma

unidade do ponto de vista histórico ou cultural, não é verdade. Pra... Para somar aqueles que foram ex-colônias portuguesas. Neste momento estamos a verificar, e com muito agrado, que começa a haver

também relações muito mai... Muito maiores, muito mais [palavra inaudível] que culturais. Mas

existem também relações econômicas, começam a haver uma... Uma ligação, uma harmonização do

ponto de vista jurídico. (Sim.) Ãh, do ponto de vista das leis, do ponto de vista da... Da... Dos próprios estados. E também, certamente, um dia poderemos chegar até a uma chamada dupla cidadania. Ora

bem, isto quer dizer que, ãh, se... Se... Se esse caminho for esse e se nós cumprirmos esse caminho

com... Com inteligência e com regularidade, é um espaço privilegiado pra o desenvolvimento, porque os povos sozinhos não desenvolvem.

Isto não significa que nós não tenhamos alianças, alianças econômicas e outro tipo no caso onde nós

estamos inseridos. O Brasil está a pertencer ao cone Sul, não é verdade, tem a sua aliança com a Argentina e com os povos interamericanos. Aqui nós tamos na África Austral, portanto, na [palavra

inaudível] de Moçambique. Vão ter aliança com os povos de língua inglesa aqui na zona, não tem

problema nenhum. O Timor vai ter com a Indonésia ãh, e... E os outros países, Portugal vai ter com a

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União Europeia. Portanto, mas isto não quer dizer se perde identidade nacional. Isso quer dizer que o

CPLP, neste momento, vai, apesar dessa realidade, vai continuar, se... Se os ca... Se os caminhos que

nós escolhemos for continuado, só vai nos beneficiar a todos nós. E é um mercado [trecho inaudível]. Repara o mercado de cultura. Cultu... Cultura dá dinheiro.

A cultura dá dinheiro. É literatura pra ser vendida, agora com acordo ortográfico em todo lado. Os

editores podem começar a crescer, os artistas que cantam, o teatro, por aí afora, tudo... Tudo começa a

ser, obviamente, uma... [trecho inaudível].

Nesse sentido então, o que o senhor entende por lusofonia?

É o conjunto... É o conjunto de... De... De, ãh... Como que é? É lusofonia no sentido, ah, no sentido...

No sentido político, as pessoas [palavra inaudível] lusofonia por uma imposição dos portugueses. [Ele fala ao telefone.]

Professor, é, qual sua...?

Desculpa, estamos agora na lusofonia. Primeira questão, lusofonia, há muita contradição na utilização

desse lexema. E entre, portanto, de várias maneiras. Dá impressão de que lusofonia é uma imposição de que todos nós somos falantes de língua portuguesa, não é verdade. Quando aqui em África e

mesmo no Brasil, não é verdade. Embora no Brasil haja uma ma... Maioria que fala português, há

muitas línguas de origem in... Indiana, guarani, por aí afora, que ainda são faladas. Mesmo Portugal não é monolíngue, Portugal tem duas línguas tem o mirandês e tem o português, né. Angola, Guiné,

Cabo-Verde tem duas línguas, que é a língua cabo-verdiana, que chamava o antigo crioulo, que é a

língua cabo-verdiana. E Guiné a mesma coisa, várias línguas. Ora bem, isso, por exemplo, as pessoas contestam o fato, diz então: “-Eu sou bantófono, não sou lusófono.” Eu, aqui em Moçambique, sou

bantófono.

Ora bem, se nós nos libertamos desse preconceito e vermos a palavra numa dimensão de outro tipo,

uma dimensão, por exemplo, cultural, aí já aceitamos que de fato, ser de país de língua oficial portuguesa, esse termo vai, ãh... Vai... Vai corresponder àquilo que é um espaço onde também se fala

português. Não se fala exclusivamente o português, mas um espaço onde se fala português. Portanto,

aí lusofonia tem um... Uma terminologia muito própria, ou seja, ãh, representa um espaço onde se fala o português. É o caso, por exemplo, que se utiliza em termos, em... Em relação a francofonia, espaço

em... No mundo inteiro, onde se fala francês. Ãh, anglofonia é o espaço no mundo onde se fala inglês.

Há algumas colônias antigas, britânicas, e tudo mais. Então, nesses aspectos eu não, é... Não... Não vejo nenhum ruído nessa palavra, né. Agora, as pessoas ficavam ainda mais aborrecidas quando

diziam: “-Moçambique é um... Um país de língua de expressão portuguesa.”

As pessoas ficavam ressaltadas: “-Não sou nada. Eu sou de expressão, é, bantu.” Então, ficavam

muito aborrecidas. Mas, se nós também verificarmos a palavra, tal como ela apresenta-se do ponto de vista duma... Dum espaço de ação, [palavra inaudível] qual é o problema? Ele é pacífico. Então, tudo

isto tem a ver com os nossos fundamentalismos mentais.

Não é verdade? Ãh, se... se eu... Se eu... Se eu não for uma pessoa de língua... De língua materna bantu, se for só uma pessoa aqui mesmo em Moçambique, pois eu... Eu não... Eu não sou nada

bantófono, eu sou... Eu sou lusófono. Então, mas isto não tem necessariamente que ser conflituoso,

nem confli... Nem... nem conflitante.

Então, é por essa razão que nós achamos que lusofonia é até um termo interessante, é um termo que pode marcar um espaço, não é verdade, um espaço, é, assim, ãh, onde se fala o português. Não se fala

maioritariamente o português, mas onde um grande número de pessoas falam português e onde o

ensino até também é feito em português, não é verdade. Então, a coisa torna-se pacífica, não é.

[...]

Estado civil?

Casado.

Idade?

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Tenho agora 65.

Zona ou região a que...?

Maputo. Antigamente... Antigamente chamava-se Lourenço Marques, não é.

Nacionalidade?

Moçambicana.

Naturalidade?

Maputo.

Profissão?

Sou jornalista e sou professor.

Religião?

É que fui batizado como católico e hoje sou espírita. Não tenho religião. Eu tenho, eu sou homem

ligado ao movimento espírita, não é. De Kardec, não é.

Quando você pensa em língua portuguesa, qual a primeira resposta que lhe vem à mente?

Nesse, que é o meu caso, que [palavra inaudível] tenho o português como língua materna logo de nascença. Portanto, embora a minha mãe fosse língua bantu, ela ensinou-nos logo quando crianças o

português. Portanto, eu penso língua portuguesa. (Língua portuguesa.)

E a língua do seu pai?

Portuguesa. A língua de minha mãe era língua ronga, bantu. E ela só aprende português depois.

Português é a segunda língua pra ela, não é a primeira.

Quantas línguas o senhor fala e quais são?

Ãh, além do português, o ronga, que é uma língua bantu, [palavra inaudível], o inglês, o francês, ãh, o

alemão já [palavra inaudível], seria uma língua que consigo rudimentar[?] um pouquinho em alemão.

Existe alguma língua que o senhor tem um carinho maior, que gosta mais?

O ronga e o português, evidentemente, não é.

Grau de instrução?

Sou doutorado. Que tenho licenciatura, mestrado, doutorado, principalmente em linguística portuguesa

no campo da lexicologia, ligando o léxico à literatura.

Ano de formação? Ano de formação?

De quê? Anos... Ah, anos... Como posso explicar? O meu curso não será... Não era nessa área, era

direito. Sim. Depois, por causa da... Da, entrei pra jornalismo. Ãh, na... Nessa questão das lutas também políticas e etc, eu deixei o direito de lado. E mais tarde, depois da independência é que eu

fui... Fui acabar um curso superior, que não consegui acompanhar no tempo colonial, por questões

políticas. Por questões políticas. Então, eu preferi a linguística. Então, nos anos 1990 acabaram com

isso.

É. O seu local de formação é aqui em Moçambique?

Não, é aqui, foi aqui em Moçambique uma parte e outra parte foi na Faculdade de Letras da

Universidade de Porto. Fiz mestrado, fiz pós-gradu... Ãh, tenho duas pós-graduações e tenho um doutorado, né. Foi na... Na Universidade do Porto, em Portugal. (Tá.)

É, então o senhor se considera um intelectual de base africana... (Sim, sim, sim.) Base europeia

ou...?

Base africana, propriamente. Aí está, [palavra inaudível], o meu pai morreu eu tinha nove anos de idade. O que ele me deixou do ponto de vista da... Da sua cultura portuguesa? Pouco. [palavra

inaudível] foi da cultura da minha mãe, ela que me educou, ela que nos instruiu, do ponto de... E ela

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era uma pessoa genuinamente de cultura ronga, bantu. Então, esses valores bantus, etc, é que passaram

pra nós. É... É, o português foi uma língua, foi um instrumento para, obviamente, digamos, crescermos

em consciência e de facto transmitirmos e comunicarmos aquilo que havia na nossa alma. Que era uma alma mui... Muito africana. E também não... Não só africana, muito mestiça, porque eu vivia em

várias pro... Em várias províncias do país. Eu também bebi outras culturas étnicas, não foi só o ronga.

Quais disciplinas o senhor ministra?

Eu dou literaturas africanas de língua portuguesa e didática da literatura.

O que é ser moçambicano?

É, primeiro: sentir que fazemos parte de um todo que ainda não é homogêneo. Sentirmos que temos

que caminhar para a construção de uma nação, que não temos, só temos Estado. Sentirmos que só através do estudo e da compreensão profunda e mútua das várias etnias é que eu consigo realmente

sentir moçambicano. Como mestiço que sou, provavelmente estarei muito mais em, é... Em avanço, do

que muitos irmãos étnicos. Primeiro pensam sua etnia, depois é que pensam o país. Eu não, eu

primeiro penso-me como moça... Moçambicano e depois é que vou à minha raiz bantu. Da minha própria etnia, da parte materna. Então, isso quer dizer que ser moçambicano ainda é um... É um... É

uma construção. Apenas no passaporte, no território delimitado e no estado nós podemos considerar.

Porque ser moçambicano pra mim, vai ser quando nós começarmos a ter... A ter pontes de ligação profundas entre todos nós.

Então, aí a palavra moçambicano começa a ganhar realmente uma raiz muito mais consistente. Neste

momento ainda somos sujeitos a adventos de conflitualidade, de etnicismos, inclusive, não é verdade, que po... Que poderão ser motivados não só por assimetrias no desenvolvimento, como até por

questões religiosas. Nós temos um país de várias religiões, fundamentalmente a islâmica e a cristã. A

cristã das suas [palavra inaudível] católicas e protestantes e a islâmica na sua [palavra inaudível],

única, que é sunita. Embora haja um a um, um polo pequeno de xiitas. Mas, pra dizer que ao Norte do Rio Zambeze, onde é o grosso da população, vemos que a maioria é islâmica, com focos cristãos

espalhados. No Sul é mais cristão, com focos islâmicos em expansão.

Isto quer dizer, portanto, que nós temos que ter o cuidado, como moçambicanos, se queremos ser moçambicanos, de sermos uma [palavra inaudível], ser moçambicanos, termos o cuidado de um

respeito profundo pelas crenças dos outros, pela etnia dos outros, pela realidade cultural dos outros.

Para que essa ponte possa sedimentar e estar com pilares bem profundos neste grande rio e neste grande mar que é Moçambique.

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ANEXO J – PROFESSOR J

Idade?

51 anos

Estado civil?

Casada

Zona/Região?

Maputo

Nacionalidade?

Moçambicana

Naturalidade?

Tete

Profissão?

Professora

Religião?

Católica

Quando você pensa em Língua, qual a primeira resposta que lhe vem à mente?

Português

Quantas línguas você fala? E quais são?

Três. Português, inglês, chinhungue

Qual a língua da sua mãe?

Chinhungue

Qual a língua do seu pai?

Português

Qual língua você mais gosta?

Português

Grau de Instrução?

Mestrado

Ano de formação

2006

Local de formação?

Espanha

Você estudou em Moçambique? Se sim, até que nível? Se não, onde estudou? Por quê? (Diversidade de formação)

Sim, estudei em Moçambique até à licenciatura.

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Área de atuação?

Linguística

Disciplinas ministradas?

Português, Técnicas de Expressão e Redacção, Semiótica

Em qual universidade você atua?

Universidade Eduardo Mondlane e Universidade Politécnica

Você se considera um intelectual de base africana, europeia ou americana?

Americana.

Em que medida fazer parte dos PALOP e da CPLP é importante para o desenvolvimento de

Moçambique?

É importante se se implementam os objectivos para a qual foi criada: aumentar a cooperação e o

intercâmbio cultural e uniformizar e difundir a língua portuguesa. Sob esta perspectiva, o preconizado

tem-se efectivado.

O que você entende por lusofonia?

Trata-se de um termo que caracteriza as identidades culturais dos países falantes da língua portuguesa.

Em que circunstâncias/situações você usa a língua portuguesa?

Sempre.

Em que circunstâncias você usa a língua chinhungue?

Quando tenho que falar com algum parente ou alguém que não se comunica devidamente na língua

portuguesa.

Na sua opinião, como você avalia a heterogeneidade linguística moçambicana?

Prefiro falar de diversidade, pois são línguas que provêm do mesmo grupo etno-linguístico e, portanto

apresentam traços comuns.

Como você vê o papel da LP como língua oficial de Moçambique?

A língua portuguesa, sendo a língua oficial e a língua de instrução, apresenta algumas ambiguidades: é

exógena por ser de origem europeia, mas também endógena porque usada como L2 ou L1 por uma

parte da população.

Apesar de ser a língua da colonização, ela mantém um estatuto privilegiado e é admirada por ser a língua da comunicação, a língua da união entre os moçambicanos.

A língua portuguesa e as línguas autóctones convivem bem?

Penso que sim, pois possuem espaços bem demarcados.

Você conhece palavras/expressões originárias de uma das LNacionais de uso corrente no

português moçambicano?

Ocorrem-me, de momento, algumas, embora haja muitas:

cacata agarrado ao dinheiro; pessoa agarrada ao dinheiro, avarento, forreta, sovina

canganhiça aldrabice; batota; trabalho mal feito

canimambo obrigado/a

catanar cortar com catana; agredir com catana

chima papa de farinha e água, usada como acompanhamento

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culimar trabalhar a terra, cultivar; cavar

O que é e como é ser moçambicano?

Simplesmente ser alguém igual a qualquer outro.

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ANEXO K – PROFESSOR K

Idade?

Cinquenta e seis anos.

Estado civil?

Sou casada.

A senhora é de que zona ou região?

Bem, eu nasci aqui, nasci em Moçambique, nasci na Província de Nampula, no distrito de

Ribaue, Aldeia de Apala, que é uma aldeia muito pequenina. Mas, os meus pais ficaram

moçambicanos, mas eles são de origem portuguesa.

A sua nacionalidade então é moçambicana? (Moçambicana.) Naturalidade também?

É. Já lhe disse. Eu, portanto, eu nasci aqui, eu nasci em Moçambique, na Província de

Nampula.

Profissão?

Eu sou professora, sou professora e pesquisadora.

Religião?

Não tenho. Não tenho religião.

Quando a senhora pensa em língua, qual é a primeira resposta que vem à mente?

Pensa em língua, é comunicação. Diálogo.

Perfeito. E a senhora fala alguma língua nativa?

Não, não falo. Eu, quando estava em Nampula, entendia o Macua, porque é a língua que se

fala em Nampula. E é a língua mais falada em Moçambique, porque é falada por um terço da

população. Mas já saí de lá há algum tempo. Então, eu, de facto, nunca falei. Sou capaz de

entender se voltar pra lá, como voltei pra fazer a pesquisa para o doutorado. Mas, não,

infelizmente não falo nenhuma língua nacional. Penso que isso é uma grande perda.

Seus pais também não falavam?

O meu pai era médico, então ele tinha que entender e fez um esforço grande para falar

algumas palavras de macua. Porque, muitas vezes, vinham pessoas que não falavam

português. Então, ele fez, porque ele era uma pessoa muito disciplinada nesse aspecto. E

aprendeu. Mas, não vou dizer também que tivesse o domínio. Não, não tinha, não tinha!

Grau de instrução?

Ãh, eu já tenho o doutorado, que fiz em 2008.

O local de formação foi aqui em Moçambique mesmo ou fora?

Eu fiz a minha formação toda, até a licenciatura, em Moçambique. Mas na altura em que eu

terminei a licenciatura, que foi em 1986, nós não tínhamos condições. Só de uns cinco, seis

anos pra cá é que nós temos. Então, quando eu pensei no mestrado e no doutorado, eu tive...

Tinha que fazer pra fora. E, por acaso, na altura nós tivemos a visita do professor Boaventura

de Souza Santos. Eu já estava a pensar o que que eu ia fazer. Eu não queria ir fazer pra um

país de língua inglesa.

[...]

O fato de a senhora ter estudado fora, a senhora se considera uma intelectual de base

africana ou europeia?

Ah, de base africana, claro. Eu nasci aqui, eu fiz toda a minha formação aqui. É claro que o

grande problema que nós temos é que mesmo que a gente diga que é de base africana, nós

temos muitos instrumentos teóricos que vêm de fora. Ainda que a gente tenha muitos

intelectuais africanos, que nós não conhecemos, infelizmente. Mas, eu sinto-me privilegiada

nesse aspecto, por quê? Porque eu faço parte de uma geração do Centro de Estudos Africanos,

que tudo desafiou, em termos de instrumentos teóricos, em termos de teorias. A gente tentou

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desafiar esses instrumentos e a gente tentou construir alguma coisa. Não foi escangalhar tudo

aquilo que vem de fora. Não, foi tentar entender, ver aquilo que nos serve e aquilo que não

nos serve.

Então, eu penso que isto foi extremamente importante para nós, porque a gente fez essa

reflexão sobre o que que nós temos até agora? O que que nos pode servir? O que é que não

nos pode servir? E o que é que nós temos que construir? Porque é um processo permanente de

construção.

Então, eu penso que isso foi... Isso, isso ajudou-nos bastante. Que, nós, aqui no centro,

tentamos criar desde o primeiro momento, desde de 1975, quando o centro foi criado, mas eu

nem sequer estava aqui, não é. Foi formar intelectuais que pudessem pensar em Moçambique,

a partir de Moçambique, a partir da experiência de Moçambique. Por isso que eu lhe digo, eu

sinto-me privilegiada. Porque em 1980 eu vim para aqui e eu ainda consegui apanhar a Rute,

que era a diretora de pesquisa, que depois foi assassinada com uma bomba, em 1982. E o

diretor do centro, aqui de Bragança, que morreu depois, em 1986. Faz agora 25 anos, né.

Então, eu penso que essa experiência foi uma experiência fundamental para o grupo que...

Que foi formado aqui. E ainda bem que há pessoas que ainda recordam isso.

Nós tivemos uma aula pública de sociologia, na quinta-feira. Quinta não, foi quarta, não é, foi

quarta-feira, com o professor Luiz de Brito. E uma das coisas que ele falou foi nisso, na

grande experiência que foi a pesquisa feita pelo Centro de Estudos Africanos. Uma pesquisa

interdisciplinar, que é algo que toda gente fala, mas que é muito difícil. Mas que é uma

pesquisa que até hoje é um exemplo. Não é modelo, ele diz que não é modelo, mas é um

exemplo de como é que é possível a gente desafiar aquilo que são os modelos. Tradicionais da

pesquisa e construir os nossos. Os nossos próprios. Então, eu penso que é aí que eu considero

que eu sou.

Área de atuação?

É... Eu não sei o que quer dizer com área de atuação, né. (A área que a senhora atua como

pesquisadora, como professora.) Ah, ok. Bem, eu estudei história e depois estudei

sociologia. Numa primeira fase eu trabalhei, dei aulas e trabalhei na área de Moçambique,

história da África, história de Moçambique. Mas, a partir do momento em que eu fiz a minha

tese de licenciatura sobre a participação da mulher na luta armada, eu comecei a trabalhar

sobre mulheres, sobre questões de gênero, sobre direitos humanos das mulheres e sobre

feminismo. Então, eu posso dizer que hoje a minha atuação é mais nessa área dos direitos

humanos das mulheres, movimentos feministas, movimentos sociais. É sobre isso que eu

trabalho mais.

Quais disciplinas que a senhora ministra?

Ufa, tá aqui uma jovem estudante. Eu, antes, numa fase inicial eu dei aulas de história do

mundo, história da África, história de Moçambique. Quando nós começamos a discutir as

questões de gênero e dos direitos humanos das mulheres, nós começamos a introduzir essas

questões nas diversas disciplinas e cursos. Então, nos anos 1990 nós começamos nos cursos

de história, nos cursos de antropologia, que foi o que nós fomos tendo, nós fomos

introduzindo. Por exemplo, a antropologia e gênero nos cursos de história que havia. E eu dei

módulos sobre questões da antropologia e gênero.

A partir de 2000, quando começou o mestrado de educação, eu comecei a dar módulos sobre

cultura, valores e gênero, cultura, educação e perspectivas feministas. É uma cadeira que se

chama aspectos sociológicos, antropológicos e históricos da educação em Moçambique. É a

única cadeira naquele mestrado em educação, que é dada por módulos. Há dois colegas meus

que dão os módulos sobre a educação no geral e a educação em Moçambique. E eu dou sobre

a questão dos gêneros. Isso é desde 2000.

No curso de letras há alguma coisa relacionada à questão do gênero como disciplina?

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Há. Porque quando nós começamos foi precisamente na faculdade de letras. Por quê? Era lá

que nós tínhamos algumas das feministas e das pessoas que começaram a trabalhar sobre as

questões de gênero. Então, no curso de história e no curso de geografia, porque a Cilene

Andrade é professora de geografia, nós começamos a introduzir. Ela dá geografia de

desenvolvimento e não sei o quê. Então, já há muito tempo, praticamente desde 1992, 1993

que nós começamos a incluir. Depois começou a ser incluído na educação, economia, não sei.

Mas, a partir daí, quase todos os cursos de ciências sociais começaram a incluir.

[...]

Em que medida, fazer parte dos PALOPS ou da CPLP, é importante para o

desenvolvimento de Moçambique?

Quer dizer, eu não sei se é importante para o desenvolvimento de Moçambique, né. Porque

existe essa ligação por razões históricas, de razões de colonização e também por razões de

língua. A gente fala, quer dizer, a gente fala uma língua de tronco comum. Não é? Porque

depois ela acaba sendo muito diferente dentro dos próprios países e entre os países. Então, é

óbvio que historicamente há ligações. E quando há essas ligações históricas e que muitas

vezes se traduzem também em ligações econômicas e etc, é importante. Mas, o resto eu não

sei, não é.

O que que a senhora entende por lusofonia, que tem sido tão falado?

(Eu não gosto.) Não gosto nada desse conceito. E acho que ele não diz nada, sinceramente.

Porque falar de países lusófonos, o que que é isso? Mesmo nós levantamos essa questão

quando surgiu o Congresso Luso-afro-brasileiro. E o problema é que nós não encontramos

outra, outra forma. Eu acho que até agora se falou nisso também: o que significa luso-afro?

Luso: Portugal, afro... Porque afro é um continente todo. Ou seja, Portugal e Brasil estão lá

representados. Afro, o continente africano, é... É o afro. E, no entanto, a gente está a pensar

mais nos países que falam português. Não é? Então, o que que é isso de lusofonia? É porque

se fala português? Mas, o que é esse português? Que quando chega ao Brasil tem... Tem que

ter legendas, porque dizem que não entendem. E de tal ordem que criam esse acordo

ortográfico, que eu sou absolutamente contra, absolutamente contra.

Eu acho que a língua é feita pelas pessoas. Pronto, é preciso depois criar as gramáticas e os

dicionários, mas porque é que a gente tem que ter uma mesma grafia? Não concordo. Porque

isso a gente está a cortar a liberdade das pessoas falarem. Se é preciso criar legendas, que se

crie legendas, que haja legenda. Porque em português não nos entendemos, de facto. Então, o

que é que significa a lusofonia? [palavra inaudível], se a gente for à Nampula e ele pode saber

disso, se bem que ele é um... Um descontextualizado, porque nem fala, também não fala a

língua...

Não fala a língua nativa, não?

Não fala. Mas isso é por outras razões de história. Mas, se eu for à Nampula, o sotaque de

Nampula é completamente diferente do sotaque de Tete, do sotaque de Inhambane e não sei o

quê. É graças a todas as deusas. Porque as línguas nacionais influenciam, não apenas no

sotaque, mas na construção das frases e nas palavras. Por exemplo, eu aqui posso dizer: “-

Estou com timbilo.” Porque timbilo vem duma... É uma língua, não é uma língua, é uma

palavra, é uma palavra inventada, com base em algo que é do changana. O timbilo é porque

quando você está a comer alguma coisa e eu estou com vontade de comer o que você está a

comer, eu... Eu invento esta, que estou com timbilo. Mas eu não vou utilizar esta expressão se

eu estiver em Nampula ou se eu estiver em Tete. Agora, se eu quero uniformizar, isso vai

desaparecer e vai perder a riqueza. Das demais, não é? A gente já vai... Já vai perder as

línguas nacionais, porque há um imperativo das pessoas falarem em português. Porque é a

língua dos documentos, é a língua oficial etc. E muito vai se perdendo das línguas nacionais.

Então é a língua do ensino. Mesmo que se diga que a gente vai ensinar nas línguas nacionais.

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Aquilo que está a acontecer é que muitas pessoas dizem: “-Se você chegou onde chegou é

porque fala português.” Porque que eu não quero os meus filhos a...

Há uma relação política muito forte?

Econômica e tudo. Está ver. Se eu quero chegar a algum lado é falando português e depois

falando inglês. Porque se eu não falar inglês, eu não entro no mundo dos contactos

internacionais, nacionais, regionais e etc. Então, muitas pessoas dizem: “-Você está aonde

está, é porque fala uma língua que lhe permita.” Agora, se eu vou falar macua, vou chegar

aonde? Fico nos limites da língua macua. Portanto, isto tu sabes que tem implicações muito

grandes. Eu já falei da lusofonia para outros lados. Eu não gosto dessa expressão, sou

absolutamente contra essa expressão, até porque lusa tem uma certa origem. Por que que a

gente não fala dos países que falam... [palavra inaudível], países falantes de português, seja lá

o que for no português. Agora, lusofonia, o que que é isso? Pra mim não diz nada. E eu sou de

origem portuguesa, mas pra mim não diz nada. Eu, quando vou à Portugal, apesar de ser bem

branquinha, toda gente me diz: “-Você não é daqui, donde é que vem?” Também não dizem

que eu seja brasileira, porque eu não tenho... Entendem muito bem aquilo que eu falo, no

Brasil entendem muito bem, o que não acontece com gente portuguesa. Mas, eu, ali, nunca

passo por portuguesa, apesar de ser branca. Por quê? Porque eu tenho um sotaque diferente.

Isso não é bonito, é bonito, pronto, é chato porque eu não passo por portuguesa, às vezes até

pode [risos] ser deu não passar por portuguesa. A Tereza Cruz e Silva passa por portuguesa

porque tem um bom sotaque. O meu marido está lá, ninguém vai dizer que ele não é de lá.

Mas eu tenho um sotaque diferente. Agora, por que que eu tenho que mudar isso? Porque eu

acho que isso, como diz Mia Couto e muitos outros, essa que é a riqueza. Talvez a gente fala

de timbilo, a gente fala de sei lá o quê, não é? Há muitas palavras, né, muitas expressões que

já entraram. Por que que eu vou ter que perder isso? Estados Unidos e Inglaterra não tiveram

que criar nenhum acordo ortográfico.

Será que é porque são países ricos? Não criaram. Você sabe, porque quando você escreve

organize, se é inglês de Inglaterra é com S, se é inglês dos Estados Unidos é com Z. E os

computadores ali já eles vão corrigir... Mas, pronto, ok. E, depois, o que que eu tenho que

fazer mais? Eu sou contra, sabe. E lusofonia não me diz nada.

Ah, como a senhora avalia então a heterogeneidade linguística moçambicana? Eu acho

que isso é algo em construção, não é. E na medida em que a gente se troca cada vez mais,

você vai ver isso. Há de ver aqui. Falando com as pessoas, vai ver que há um português

diferente aqui. O meu português já é diferente. Se falar com a Tereza, que vai falar na

segunda-feira, vai ver que ela fala [palavra inaudível]. Se você fala com alguém de Tete, vai

ver que essa pessoa fala com um sotaque diferente e com algumas expressões diferentes. Se

falar com uma pessoa de Inhambane, vai ver. Uns são mais cantados do que outros.

[...]

A senhora acha que convivem bem as línguas nacionais com a língua portuguesa ou

não?

Convivem, quer dizer, a questão é que você continua a ter muita gente que nem sequer

português fala. Eu, quando vou fazer trabalho de campo noutra região, eu tenho que ter

tradutor. Se eu não falar...

[...]

Professora, e o que é e como é ser moçambicana?

Sabe que por estranho que pareça, parece que a gente tem que periodizar essa história do que

é ser moçambicana, não é. Porque, Pronto, assim, se eu quiser responder hoje, eu acho que ser

moçambicana é como ser qualquer outra nacionalidade, não é. É estar ligada a um território,

estar ligada a um grupo de pessoas, mas ao mesmo tempo também ter quer dizer, ter esse

sentimento de pertença a um país, mas também ter uma pertença maior. Porque eu penso, eu

sempre pensei que eu não estou apenas ligada a este país. Eu vejo-me, com o cheiro do meu

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país, com as cores deste meu país, mas penso este meu país em função também dos outros

países, porque eu não tenho essa noção estreita de nacionalidade, etc, não é, de cidadania. Eu

vejo-me como uma cidadã do mundo. Mas que tem os pés aqui assim. [em Moçambique].

Agora, por que que eu disse, eu falei na periodização, não é? Porque havia aqueles momentos

logo depois da independência, da euforia. E eu tinha 20 anos, não é? Em 1975 eu tinha 20

anos. E aquilo, Moçambique estava no centro do mundo e de alguma maneira esteve no centro

do mundo, não é. Porque ter conseguido a independência em 1975, e é verdade que nós

estávamos no final de um determinado ciclo, não é? Um ciclo econômico, político, etc, a se

espalhar. É por isso que a gente conseguiu a independência. Mas, depois, também bem

sofremos até hoje. Mas, pronto, era o final dum ciclo, determinadas forças estavam fracas e

foi possível conseguir. Porque o colonialismo português também já não tinha mais capacidade

pra continuar.

Mas, eu lembro que naqueles primeiros anos era. Nós éramos os melhores do mundo, a gente

estava a fazer qualquer coisa fantástica. Nós, os nossos sonhos. E de facto foram momentos

de muita euforia, de muita, de muito engajamento. Há bocado estávamos a falar nisso, por

causa da falta de dinheiro para as pesquisas. E a gente dizia: “-Naqueles anos a gente até

pagava para estar engajado em alguma coisa, não é.” Porque era uma euforia muito grande.

Mesmo que a gente tivesse consciência de tantas dificuldades. Porque logo a seguir a África

do Sul começou a atacar, não é. Mas era... E era...

[...]