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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA CARPE DIEM: RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON PETRÔNIO E FELLINI São Paulo 2009

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA

CARPE DIEM:

RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON – PETRÔNIO E FELLINI

São Paulo 2009

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NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA

CARPE DIEM:

RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON – PETRÔNIO E FELLINI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura.

Orientador: Profº Dr. Martin Cezar Feijó

São Paulo

2009

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S586c Silva, Neemias Oliveira da.

Carpe Diem: Rituais Cotidianos no Satyricon – Petrônio e Fellini

/ Neemias Oliveira da Silva – 2009. 271 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.

Orientadora: Profº Dr. Martin Cezar Feijó

Bibliografia: f. 138 - 150.

1. Satyricon. 2. Frederico Fellini. 3. Cinema. 4. História.

5. Literatura. I. Título.

CDD 791.4

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NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA

CARPE DIEM:

RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON – PETRÔNIO E FELLINI

Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura.

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

Profº Dr. Martin Cezar Feijó- Orientador

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª Drª. Márcia Angelita Tiburi

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profº. Dr. Ronaldo Entler

Universidade Estadual de Campinas

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Aos meus pais, Nadir Alves da Silva e Valdomiro

Oliveira da Silva.

Ao meu orientador, o Prof. Dr. Martin Cezar Feijó.

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AGRADECIMENTOS

A primeira palavra de gratidão vai para aqueles que se mantiveram firmes e

presentes em momentos que ora sucumbi. Aos meus pais Valdomiro Oliveira da

Silva e Nadir Alves da Silva pelo apoio e amor incondicional.

Ao meu orientador, o Prof. Dr. Martin Cezar Feijó, sempre presente e atuante

ao me conduzir pelo caminho da pesquisa. Sem seu olhar, por vezes crítico, seria

difícil o caminhar. Sou grato pelo seu cuidado, apoio, atenção e respeito pela minha

forma de pensar.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Educação, Arte e História da Cultura pela formação Interdisciplinar singular. São

eles: Prof. Drª Jane de Almeida, Prof. Dr. Martin Cezar Feijó, Prof. Dr. Marcos

Masetto, Prof. Dr. Paulo Monteiro, Prof. Drª Petra Sanchez Sanchez, Prof. Dr. Wilton

Luiz Azevedo, Prof. Dr. Sérgio Bairon, Prof. Dr. Norberto Stori, Prof. Dr. Marcos

Rizolli e o Prof. Dr. Arnaldo Daraya Contier.

Aos membros da banca de qualificação e defesa pública pelas considerações

no presente estudo. As observações e os apontamentos foram essenciais para o

desenvolvimento deste estudo. Sou grato a Prof. Drª Sandra de Cássia Araújo

Pelegrini (Universidade Estadual de Maringá – UEM) pelo carinho e apoio, a Prof.

Drª Maria Aparecida de Aquino e o meu orientador, o Prof. Dr. Martin Cezar Feijó e

ao Prof. Dr. Ronaldo Entler e a Prof. Drª Márcia Tiburi.

Ao Prof. Dr. Michel Marie (Universidade de Paris III – Sorbonne) e ao Prof. Dr.

Fernão Ramos (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP) por terem me

aceitado como aluno especial no Programa de Pós-Graduação em Multimeios.

Ao Prof. Dr. Ronaldo Marin e ao Prof. Dr. Ernesto Giovanni Boccara pelo

apoio e participação no Programa de Pós-Graduação em Multimeios – UNICAMP.

À Prof. Drª Renata Senna Garrafoni da Universidade Federal do Paraná

(UFPR) pelo envio de artigos e periódicos inéditos, que muito contribuíram para o

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enriquecimento desta pesquisa. Seus estudos acadêmicos serviram de inspiração

para o desenvolvimento desta pesquisa.

À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e a CENP (Coordenadoria

de Estudos e Normas Pedagógicas), que possibilitou o financiamento desta

pesquisa. Em especial a comissão responsável pelo Programa de Bolsa Mestrado

da Diretoria de Ensino Campinas Oeste, representada pela Corinta, Neusa Fassani e

Silvana (in memorian), que acompanharam e auxiliaram no desenvolvimento desta

pesquisa.

Ao MACKPESQUISA que financiou os estudos na Fundação Federico Fellini

em Rimini – Itália.

Ao Guiseppe Ricci, arquivista da Fundação Federico Fellini pela recepção

calorosa em Rimini.

Aos amigos de Portugal, Espanha, Bolívia, Peru, República Dominicana e

Argentina que compartilharam comigo momentos inesquecíveis em Roma – Itália.

À “República Chinatown”, minha família em Campinas, agradeço aos amigos

e físicos, o Prof. Ms. Pedro Alves da Silva Autreto (UNICAMP), pelas sugestões e

incentivos nesta pesquisa, o Prof. Ms. Éder Arnedo Perassa (UNICAMP), pela

leitura, o incentivo e a revisão, ao amigo e economista, Bráulio Amais Bracero

(UNICAMP), pelo apoio, leitura e revisão, e ao jornalista Júnior Milério (PUC -

Campinas), pela leitura e crítica. A todos vocês sou muito grato pela paciência e

consideração nestes três anos de convivência.

Aos Profissionais de Educação que fizeram e fazem parte da minha vida na

Escola Estadual Padre Antônio Móbile (Campinas), são eles: Hélio Rocha, Ignês

Capellari, Leandro, Maria do Carmo, Nair, Marilza, Sônia, Telma Regina, Valéria,

Maria Tomázia, Valdir Paranhos, Antônia (Toninha), Alexandra, Flôr, Lucas Lemos,

Lara Molina Pampulini, Silvana Ferreira, Lúcia Rodrigues Faria, Lúcia Helena, Marta

Maria, Marta, Jane, Sofia, Andréia, Carlos Henrique, Gilmar (Gil), Érica Ap.

Tamburus, Bernadete, Felipe, Deuzani, Vitor, Silvia, Fátima, Paulo, Adriano, Márcia,

Dailva, Rosely, Mônica, Luciano Carlo Pereira Neto, Sandra Regina Braga, Vânia

Rocha, Aparecida (Cidinha), Leonice Silva, Carlito F. da Silva, Sandra e a amiga

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Aldemara Pagani. A todos estes sou muito grato pelo apoio, bem como aqueles da

qual não citei, provável injustiça de minha parte, a estes peço desculpas. Assim, os

nomes citados representam colegas, companheiros e funcionários que tive o

privilégio de conviver nestes quatro anos de funcionalismo público na carreira como

docente.

A todos os meus alunos, bem como as Professoras Maria Isabel Baptistão e

Renata Basso, pelo carinho, atenção e o constante apoio na jornada acadêmica.

Aos amigos eternos que me acompanharam desde a graduação, o Prof. Ms.

Leandro Brunelo (Universidade Estadual de Maringá – UEM) e a Prof. Ms. Cláudia

Maria Gusson (Universidade de São Paulo – USP), bem como a Prof. e amiga

Josineide Alves da Silva e ao amigo Gilberto Robson Santana. A vocês sou muito

grato por tudo o que fizeram por mim, sem vocês a vida acadêmica seria bem mais

difícil de ser trilhada.

A todos os amigos do curso de mestrado, turma do primeiro semestre de

2007, em especial a Design Júlia Stateri e ao Pedagogo Thiago Carvalho Barbosa,

que sempre estiveram presentes e atuantes nesta etapa de minha vida.

Aos membros do grupo de pesquisa Moderno/Contemporâneo: Culturas e

Educação da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM.

Às amigas, Carol Boari, Carolina Franco e Zane pelas dicas e orientações no

decorrer do curso.

A todos os amigos do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo

(APEOESP), em especial, Suely Fátima (diretora Estadual), Nely (Nelinha), Luciana

(Lú), Daniela Caetano e a historiadora Kátia.

Aos professores do Departamento de História da Universidade Estadual de

Maringá – UEM, que contribuíram para minha formação acadêmica.

À amiga e advogada Drª Damaris Moura Kuo.

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Aos Professores João Carlos de Oliveira e Luzia Brígida de Oliveira D‟Avila

pelo constante apoio em cursar o mestrado. Agradeço também a todos os meus

amigos de Alto Piquiri (PR), Maringá (PR), Campinas (SP) e São Paulo (SP).

Aos meus tios Irassi Sossai e José de Oliveira pelo constante apoio em seguir

a carreira acadêmica.

Ao Prof. Igor Alexandre Capelatto, pelas aulas de Cinema.

À Profª. Ms. Daniella Basso pelos apontamentos, correção e revisão.

A todos os professores, amigos e familiares. E a você leitor desta dissertação,

muito obrigado!

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Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibifinem di dederint, Leuconoe, nec Babyloniostemptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati. Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam, quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare

Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit invidaaetas: carpe diem quam minimum credula postero.

(HORÁCIO, Odes – I, 11.8, 65 – 8 a.C)

Não pergunte, saber é proibido, o fim que os deuses darão a mim ou a você, Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia não brinque. É melhor apenas lidar com o que cruza o seu caminho. Se muitos invernos Jupiter te dará ou se este é o último, que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar Tirreno: seja sábio, beba seu vinho e para o curto prazo reescale suas esperanças. Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está fugindo de nós. Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.

(HORÁCIO, Odes – I, 11.8, 65 – 8 a.C)Trad: Prof. Dr. Paulo Martins – FFLCH/DLCV/USP

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RESUMO

Este estudo tem por objetivo traçar uma discussão sobre os rituais cotidianos

inseridos na obra fílmica o Satyricon de Federico Fellini. Este trabalho compreende o

ritual, no latim ritualis, como um conjunto de práticas do homem, repleta de valores

simbólicos aos quais foram recriadas e incorporadas pela indústria cinematográfica.

Portanto, a análise da obra fílmica será baseada na obra literária Satyricon de

Petronius escrita no século I d.C. A ponte para compreender dois mundos, do

Clássico ao contemporâneo, é o foco no diretor e produtor do filme: Federico Fellini.

As festas populares, a dança, o misticismo, a religião são expressões humanas que

servem de mediação das tradições culturais de um determinado grupo social e que

passou a se integrar na linguagem cinematográfica. Nessa perspectiva, nós

buscamos mapear os rituais cotidianos e as representações dos indivíduos inseridos

em seu próprio tempo e espaço. Desta forma, a metodologia usada para analisar o

filme e a obra literária será baseada na leitura do material bibliográfico. Através da

análise da obra fílmica Satyricon de Federico Fellini, nós analisaremos o quanto da

Filosofia de Epicuro do Carpe Diem está inserida nos rituais cotidianos e como a

indústria cinematográfica usa a linguagem ritualística.

Palavras-Chave: Satyricon, Federico Fellini, Cinema, História, Literatura, Ritual,

Símbolo.

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ABSTRACT

This study aims to map out a discussion about the daily ritual inserted on the filmic

work Satyricon of Federico Felini. This work includes the ritual, in latin "ritualis", as a

set of practices of man, replete of symbolic values which have been recreated and

incorporated by the film industry. Therefore the analysis of filmic work will be based

on Satyricon of Petronius literary work which was written in the first century AD. The

bridge to understand two separate worlds, the contemporary and the classic, is the

focus on director and producer of movie: Federico Fellini. The popular festivals, the

dance, the mysticism, the religion are human expressions that are used for mediation

in cultural traditions of a particular social group and that began to integrate itself in

the film language. From this perspective, we try to map the daily rituals and

representations of individuals which are include on own time and space. In this way,

the methodology used to analyse the movie and literary work will be based in the

reading of the bibliographic material. Through of the analysis of the filmic work

Satyricon of Federico Fellini, we will examine how far the Epicuru's philosophy of

Carpe Diem is inserted in daily rituals and how the film industry uses the ceremonial

language.

Key Words: Satyricon, Federico Fellini, Movies, History, Literature, Ritual, Simbol.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Cena do Satyricon – despedida............................................................ 115

Figura 2 Cena do Satyricon – despedida (2)....................................................... 115

Figura 3 Cena do Satyricon – despedida (3)....................................................... 116

Figura 4 Cena do Satyricon – despedida (4)....................................................... 118

Figura 5 A morte de dois patrícius....................................................................... 122

Figura 6 Veias abertas........................................................................................ 123

Figura 7 Rito de preparação para a morte.......................................................... 124

Figura 8 No Templo, guardiões de Hermafrodite................................................ 125

Figura 9 Torre de Babel – Insulae....................................................................... 129

Figura 10 Jardim dos prazeres.............................................................................. 130

Figura 11 O Banquete de Trimalquião.................................................................. 133

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SUMÁRIO

PRÓLOGO............................................................................................

13

INTRODUÇÃO......................................................................................

20

1 AS FONTES: PETRÔNIO E FELLINI..................................................

49

1.1 O SATYRICON DE PETRÔNIO...........................................................

49

1.2 O SATYRICON DE FEDERICO FELLINI.............................................

69

1.3 APONTAMENTOS SOBRE A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA...........

91

1.4 CARPE DIEM E O HEDONISMO EM EPICURO.................................

102

2 UM OLHAR SOBRE OS RITUAIS DO SATYRICON..........................

108

2.1 UMA DEFINIÇÃO DE RITUAL.............................................................

108

2.2 AS CENAS...........................................................................................

111

2.2.1 Rituais do Sagrado.............................................................................

112

2.2.2 Encontrando os rituais......................................................................

115

2.2.3 Rituais do Profano.............................................................................

127

2.2.4 Rituais Festivos..................................................................................

131

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................

135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................

138

ANEXOS...............................................................................................

151

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PRÓLOGO

Vós que entrais no inferno das imagens perdei toda a esperança.

(Abel Grance)

Ao dar início a este estudo fui tomado por muitos questionamentos. Questões

estas que se apresentavam frente aos diversos estudos já realizados pela

historiografia sobre o conjunto da obra literária de Petrônio1, ou seja, o Satyricon.

Qual a importância desta obra para os nossos dias? O que ela representa? E qual

seria a contribuição em humanidades em relação ao estudo da obra literária?

Cabe ressaltar que o interesse em desvendar o mundo romano nasceu na

graduação, no curso de História, concluído pela Universidade Estadual de Maringá -

UEM, na qual tive a oportunidade de realizar uma pesquisa intitulada “O Clientelismo

nas Sátiras de Décimo Júnio Juvenal”, estudo este que ocorreu sobre o plano da

Iniciação Científica (2001-2003).

Ao desvelar o mundo Antigo através do estudo das Dezesseis Sátiras de

Décimo Júnio Juvenal defrontei-me com Petrônio, ambos eram literatos, satíricos

circunscritos ao Alto Império Romano sobre a égide do principado, no século I d. C.

Nesse viés, inspirado tanto pelos escritos de Juvenal quanto pela curiosidade

em saber um pouco mais sobre Petrônio fui conduzido ao encontro do cineasta

Federico Fellini.

Dessa forma, a obra fílmica o Satyricon de Fellini passou a compor meu

objeto de estudo. Os rituais cotidianos no Satyricon de Petrônio e Fellini é um

convite a conhecer as práticas do Homem Romano, tais como os laços sociais, as

relações de gênero e poder por intermédio do olhar do homem moderno. Esse

percurso entre um mundo e outro se torna possível graças ao cineasta e ao meio na

qual o mesmo se encontra, ou seja, o mundo do cinema.

1 Conhecido também como Gaius Petronius Arbiter ou Titus Petronius – 27-66 d.C

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Com este espírito é que propomos interpretar o Satyricon de Petrônio e

Fellini, despindo-nos dos preconceitos e dos anacronismos vigentes, para com isso

nos situarmos como expectadores e atores do mundo em que nos encontramos.

Com isso, o mundo do espetáculo, da imagem, das relações de poder, da

sexualidade, da carnavalização se revela na intersecção entre o moderno e o antigo.

As páginas que ora traçamos são, portanto, uma tentativa de desvendar o

imaginário humano. A simbologia de Petrônio e de Fellini é múltipla, pois ambos

pertencem a uma sociedade plural. Os alicerces desse estudo se entrelaçam na

relação interdisciplinar entre a História, Literatura e Cinema, inserido na linha de

pesquisa: “História das Culturas e das Artes nas Sociedades Contemporâneas” do

Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura - UPM.

O cenário apresentado compreende um esboço do que ora pretendemos com

este trabalho. Assim, abrimos o leque de investigação para que juntos possamos

compreender os rituais cotidianos presentes na obra de Petrônio e Fellini.

A dissertação de mestrado que se segue é o resultado de um projeto de vida,

da busca pessoal pela qualificação profissional e a superação de novos desafios.

Desafios estes que se fizeram presentes em cada palavra, frase e capítulo

deste trabalho. Por vezes o desânimo e o cansaço em dividir o tempo de pesquisa

com as aulas de História no Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública do

Estado de São Paulo me tomaram conta, mas movido pelo dever em concluir o

mestrado, bem como pelo interesse em buscar respostas para muitas questões

deste estudo me levaram para a concretização de um sonho, que ora torna-se

realidade em minhas mãos.

Neste momento, ao invés de obter respostas para minhas inquietações,

ampliei ainda mais o campo de indagações. Com isso, não posso considerar este

trabalho como um fim em si mesmo, mas uma possibilidade de discorrer sobre

novas temáticas ao qual por ventura possa interessar tanto os admiradores do

assunto, quanto aos historiadores e especialistas.

No que diz respeito aos desafios desta pesquisa, ressalto a problemática que

encontrei ao dialogar com as fontes. Ao construir o quebra-cabeça do pensamento

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felliniano deparei-me com referências teóricas divergentes e outras que apontavam

diferentes caminhos para se compor o perfil do diretor e cineasta.

Muitos estudiosos da filmografia de Fellini afirmam que suas obras revelam

uma produção autobiográfica, no entanto existe uma linha de teóricos que defendem

que a produção dele era autônoma e ligada às questões políticas, em especial ao

regime totalitário da Itália fascista.

Entretanto, segundo o próprio cineasta, este não gostava de falar sobre

política, nem mesmo dos filmes que produzia. Embora como caricaturista satirizasse

a sua produção e a política italiana da década 60 e 70. Aqui levanto a seguinte

questão: teria Federico Fellini usado sua imagem e influência de diretor e cineasta

para construir um tipo personagem?

A leitura que devemos fazer de Federico Fellini deve ser uma leitura criteriosa,

pois ele mesmo se autodenominava como sendo um mentiroso nato. Outra

observação é quanto ao discurso do diretor. Assim, em que medida o discurso

felliniano seria um marketing pessoal?

Com isso, recorri à leitura do historiador Carlo Ginzburg em “Sinais: raízes de

um paradigma indiciário”2 para desnudar a fala de Fellini e as contradições de muitos

pensamentos teóricos. Na obra de Ginzburg, o historiador faz um paralelo entre o

papel do paradigma indiciário no interior das Ciências Humanas com relação à

semiologia médica. O autor procura mostrar que tal como o médico que produz seus

diagnósticos por intermédio da investigação dos sintomas e da observação do corpo

humano, do mesmo modo muitos outros saberes indiciários também podem ser

produzidos através de um conhecimento interpretativo, dos sinais, das pistas e dos

indícios.

De todo modo, Carlo Ginzburg propõe a análise do indivíduo com base no

paradigma indiciário, a leitura de Fellini deve ser feita pelas entrelinhas e pelas

2 GINZBURG, C. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais:

morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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pistas que o próprio Fellini nos fornece sobre sua postura ideológica3 e

cinematográfica.

A metodologia para se compreender a produção de Federico Fellini se

constrói por meio de uma relação interdisciplinar. A narrativa historiográfica absorve

conceitos e práticas de outros campos da pesquisa científica, tais como a

psicanálise, a sociologia e antropologia. Dentro deste contexto, Federico Fellini

recorre à memória, quando constrói lembranças imaginadas, faz uso de caracteres

lingüísticos e antropológicos ao centrar suas discussões em torno da natureza do

homem. O cineasta inova o cinema italiano quando penetra no inconsciente do

espectador utilizando de recursos da psicanálise, definindo assim novos parâmetros

para se pensar a produção do cinema contemporâneo.4

3 A palavra “ideologia” apareceu por volta do fim do século XVIII, para designar a ciência das idéias;

todavia, seu sentido foi profundamente modificado pela ideologia marxista, que a definiu, geralmente, como um conjunto das idéias e das crenças próprias a uma formação social. Além disso, o marxismo situa a ideologia nas “superestruturas” sociais (ou seja, a esfera das idéias, do trabalho intelectual e também do aparelho jurídico – político), que ele considera determinadas pela infra-estrutura econômica. Como prática significante, o cinema participa das superestruturas ideológicas, em vários níveis: a produção – além da ideologia econômica, na qual se inspira o sistema de produção dos filmes, este repousa, em grande parte também, em uma ideologia da criação, via noção de autor; os conteúdos – a ideologia encarna-se nos modelos tais como os gêneros ou os esquemas narrativos; as formas – descritas como intrinsecamente não ideológicas na tradição realista que defende a vocação do cinema à transparência, mas também em certas abordagens marxistas que as consideram “linguagem” neutra, suscetível de veicular qualquer conteúdo, elas são, ao contrário, consideradas intrinsecamente ideológicas em uma tradição marxista e vanguardista; a técnica – a câmera, e a imagem cinematográfica, como termo da história da pintura e de seus códigos representativos desde a Renascença, seria, pela própria construção, considerada ideologia que atravessa essa história de representação, a “ideologia burguesa”. Assim, os conceitos abordados neste trabalho podem ser encontrados em AUMONT, J; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003. 4 Sobre o papel da interdisciplinaridade, o Prof. Dr. Marcos Masseto – UPM ressalta que “[...] Na

interdisciplinaridade os olhares se integram permitindo que um novo conhecimento que não se encontrava nem em uma e nem em outras disciplinas isoladamente, mas que surge pelo embate e integração de aspectos de ciências diversas. A Interdisciplinaridade coloca as disciplinas em diálogo entre si de modo que permite uma nova visão da realidade e dos fenômenos.” Cf: MASSETO, M. “Um paradigma Interdisciplinar para a formação do cirurgião dentista.” In: CARVALHO, A.C. P; KRIGER, L. (org). Educação Odontológica. São Paulo: Artes Médicas, 2006, v.1, p: 31-50. Para o historiador Pedro Paulo Abreu Funari: “A Interdisciplinaridade não se resume à junção de fontes de natureza diversas, mas consiste na articulação das diversas abordagens em um discurso único coerente.” Cf: FUNARI, P.P.A. Antiguidade Clássica: a História e a Cultura a partir de documentos. Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p: 33. Com relação a “memória” utilizada por Federico Fellini em seus filmes, a historiadora Déa Ribeiro Fenelon ressalta que esta é uma “das formas mais poderosas e sutis de dominação e de legitimação”. Cf: FENELON, D. R; MACIEL, L.A; ALMEIDA, P.R; KHOURY, Y (orgs). Muitas memórias, outras Histórias. São Paulo: Editora Olho d‟água, 2004, p: 6. Para a autora “[...] como qualquer experiência humana, a memória é também um campo minado pelas lutas sociais. Um campo de luta política, de verdades que se batem, no qual esforços de ocultação e de classificação estão presentes na disputa entre sujeitos históricos diversos, produtores de diferentes versões, interpretações, valores e práticas culturais. Cf: FENELON, D. R. et al (orgs), op cit., p. 06.

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Ao propor o estudo acerca do Satyricon de Fellini com base em Petrônio,

busquei também no historiador Marc Bloch em “Apologia da História”5 o sentido da

criticidade e da análise do documento quanto fonte histórica e não apenas como

narrativa. Para o historiador francês Marc Bloch a produção historiográfica era antes

de tudo compreensão, reconstituição e duração.

Em comentário a obra de Marc Bloch o historiador medievalista francês

Jaques Le Goff ressalta que a tarefa do historiador é de investigar, de ir além da

própria ciência, de buscar entender a sensibilidade do espírito humano.

Com base nestes escritos retomamos Fellini e a sua relação com a sua obra.

Para ele a vida não era vista de forma linear, mas caracterizada pelo momento, da

duração do acontecimento sem a idéia do retorno, era o ideal epicurista do Carpe

Diem.6

Tendo em vista o texto inicial, este trabalho divide-se em dois momentos.

Sendo assim, o primeiro momento é composto pela Introdução que traz como título

“História e Cinema: a leitura do Clássico a partir da obra fílmica”. Nesta parte,

apresentamos o objeto de estudo, bem como a metodologia a ser usada com base

na relação interdisciplinar entre História, Literatura e Cinema.

5 BLOCH, M. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

6 Termo empregado no latim como sinônimo colha o dia ou aproveite o momento. A escola filosófica

epicurista foi fundada por Epicuro (341 – 270 d.C), na qual defendia que o próprio homem era quem traçava seu destino e o do seu conhecimento. Este deveria buscar o prazer da vida, mas sem se esquecer do exercício de uma vida virtuosa. Para Epicuro, o prazer estava ligado ao bem, enquanto a dor representava o mal. Nesse sentido, o supremo prazer pertencia à natureza intelectual e o seu domínio passava pela superação das paixões humanas. Cf: BRUN, J. O Epicurismo. Lisboa: Edições 70, 1987. Tanto o epicurismo quanto o Estoicismo buscavam soluções para os problemas existenciais do ser humano, para que o homem pudesse alcançar a felidade individual, como bem nos observa o filósofo Pierre Léveque: “A filosofia se apresenta agora como uma proteção contra a destruição do homem que não encontra mais razões para viver na sua função de cidadão. Ela pretende primeiramente encontrar uma solução para o problema da felicidade e, nos dois casos (epicurismo e estoicismo), apesar de diferenças evidentes, a resposta é a mesma: a felicidade está no domínio sobre si própria de uma alma que se escapa do mundo, que se liberta do contingente, que consegue atingir um estado de indiferença (ataraxia para uns, apatia para os outros) onde nada mais a poderá atingir.” Cf: LÉVÊQUE, P. O Mundo Helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 115

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O diálogo da História com o mundo das artes nos conduzirá ao Capítulo I,

intitulado “As fontes: Petrônio e Fellini”. Com isso, a discussão exposta nesta parte

nos dará o alicerce para seguirmos rumo ao segundo momento deste trabalho, isto

é, a análise do objeto fílmico, o Satyricon de Federico Fellini com base na obra

literária de Petrônio. Para isso, optamos pela escolha de determinadas cenas do

Satyricon para melhor compreendermos os rituais cotidianos do mundo Clássico ao

contemporâneo.

Portanto, este trabalho tem o anseio de buscar compreender o homem pelo

homem no percurso entre o Clássico e o Contemporâneo. Este percurso histórico é

o encontro com o significado daquilo que somos e do que representamos em vida.

Nesse aspecto, a relação do homem com o meio em que vive ocorre por meio das

variadas construções simbólicas, da constante busca da se expressar e marcar sua

presença no mundo. Espero que a leitura do texto que se segue represente mais do

que um estudo sobre a poética fílmica, mas que signifique um reencontro com o

próprio “eu” e que cada indivíduo possa construir a sua própria narrativa, assim

como me possibilitou de construir a minha.7

7 A Historiadora e Prof. Drª. Déa Ribeiro Fenelon, na explicação de Khoury, cita que as narrativas são

expressões da consciência de cada um sobre a realidade vivida, assim: [...] Ao narrar, as pessoas estão sempre fazendo referências com a consciência de si mesmas, ou daquilo que elas próprias aspiram ser na realidade social. Associando e organizando os fatos no espaço e no tempo, dentro dos padrões de sua própria cultura e historicidade, cada pessoa vai dando sentido à experiência vivida e a si mesma nela. Apud (Cf: KHORY, Y. A. Muitas memórias, outras histórias: cultura e sujeito na história. In: FENELON, D. R. et al. Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‟água, 2004, p. 116-138.

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O tempo do romance é construído com palavras. No cinema, ele é construído com fatos. O romance suscita um mundo, enquanto o filme nos coloca diante de um mundo que ele organiza de acordo com uma certa continuidade. O romance é uma narrativa que se organiza em mundo, enquanto o filme é um mundo que se organiza em narrativa. (Jean Mitry – Esthétique et psychologie di cinema)

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INTRODUÇÃO

Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida sem amor, reservar a outra à satisfação das necessidades profundas – algo de abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história – e é por isso que estou feliz por vos falar, hoje, daquilo que amo.

(Lucien Febvre - Combate pela História) Todas as manhãs para ganhar meu pão vou ao mercado onde se vendem mentiras. E, cheio de esperança, me misturo entre os vendedores.

(Bertolt Brecht)

A obra fílmica Satyricon de Federico Fellini chegou ao conhecimento do

público no ano de 1969. Confesso que quando tive contato com o filme pela primeira

vez, o mesmo me causou certo estranhamento. O contato com o Satyricon de Fellini

ocorreu ainda na graduação nas aulas de História Antiga e passados alguns anos

acabei retomando a produção de Fellini na tentativa de entendê-lo um pouco mais e

me reconciliar com o diretor e produtor da obra.

Este “estranhamento” é algo peculiar que provavelmente ocorre com qualquer

pessoa que tenha visto o Satyricon de Fellini, as cenas se apresentam ao público

por meio de um espetáculo visual, com direção, fotografia, câmara e guarda-roupa

impecáveis. Entretanto, a visão do conjunto da produção do Satyricon do cineasta é

semelhante ou próximo a visão do inferno. Os personagens se expressam pelos

excessos, são pedófilos, assassinos, sádicos, personagens míticos, tais como o

Minotauro e um semideus hermafrodita.

Todo este arcabouço de personagens é oriundo do Satyricon de Petrônio, um

clássico do século I d.C. Assim, o filme traz cenas satíricas, permeadas de humor

negro. Por traçar aspectos satíricos característicos do mundo de Petrônio, mesclado

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com os delírios contemporâneos do mundo de Fellini, não é de se estranhar que o

filme possa realmente causar um “estranhamento”. Ainda mais, quando em certos

momentos do filme, temos a sensação de não saber o que realmente se passa entre

uma cena e outra.

A escolha do tema deste trabalho “Carpe Diem: rituais cotidianos no Satyricon

- Petrônio e Fellini” fazem parte da construção da simbologia do Satyricon, tanto da

obra fílmica quanto da literária. Estudar assuntos relacionados aos rituais e à

mitologia é algo que tem despertado o interesse de muitos estudiosos e

pesquisadores de inúmeras áreas. A curiosidade, o medo, a crença, o

desconhecido, o sagrado e o profano são características que desde o surgimento da

humanidade, o homem se vê na tentativa de decifrar os mistérios que o cercam. O

filósofo Ernst Cassirer já afirmava que a busca do conhecimento, de saber sobre o

inusitado ocorria em meio a uma constante carga simbólica. Nessa perspectiva,

Cassirer8 defende que todo o conhecimento e relacionamento do homem com o

mundo ocorrem nas diferentes formas simbólicas. Vejamos:

[...] por “forma simbólica” há de entender-se aqui toda a energia do espírito em cuja virtude um conteúdo espiritual de significado é vinculado a um signo sensível concreto e lhe é atribuído interiormente. Nesse sentido, a linguagem, o mundo mítico-religioso e a arte se nos apresentam como outras tantas formas simbólicas particulares.

Sob este ponto de vista, podemos afirmar que todas as civilizações

produziram símbolos ou signos9 destinados a representar, de modo mais ou menos

8 CASIRER, E. Esencia y efecto del concepto de símbolo. México: Fondo de Cultura Económica, 1975, p. 165. 9 No sentido corrente “signo” designa uma percepção que determina uma informação que concerne a alguma coisa que não é diretamente percebida ou perceptível; por exemplo, a sirene pode ser signo de incêndio. O signo é também o gesto ou a atitude que comunica um desejo ou uma ordem (fazer sinal de vir), ou, de modo mais geral, um estado afetivo (um sinal amigável). Enfim, em lingüística e em semiologia, o signo é a ligação entre uma significação e um elemento fônico ou gráfico (ou visual, ou audiovisual para o cinema) de comunicação. A imagem é um signo do objeto designado. Muitas distinções foram propostas entre categorias de signos, opondo, notadamente, signos naturais, em que a relação com a coisa significada depende unicamente das leis da natureza (a fumaça como um signo do fogo), e signos convencionais (a sirene como signo de um incêndio). No cinema, todos os

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arbitrário, uma realidade abstrata. Os simbolismos mais antigos são, geralmente,

associados a valores religiosos (na cultura cristã, a cruz, símbolo da Redenção, o

triângulo, símbolo da Trindade etc.), mas existem símbolos de toda natureza. Nesse

primeiro sentido, o cinema, como qualquer outra forma de significação cultural e

social, reproduz e veiculam símbolos fílmicos, mais do que os produz realmente (o

que por vezes descrito como símbolos fílmicos diz respeito, antes, à metáfora). Os

símbolos sexuais (em Luis Bruñel ou Federico Fellini), os símbolos religiosos (em

Carl Dreyer ou Roberto Rossellini), as alegorias filosóficas (em Jean-Luc Godard)

existiam, no mais das vezes, antes de estarem nos filmes.10

Como já assinalamos muitas das produções audiovisuais têm sido

influenciadas pela literatura. Nesse aspecto, centramos nossa atenção na produção

fílmica de Fellini. Deste modo, o Satyricon é uma produção audiovisual, que sofreu

influências do campo literário, situamos a “construção simbólica” do filme por

intermédio da referência do crítico Northrop Frye11. Para ele, “Símbolo” significa:

[...] qualquer estrutura literária que possa ser isolada para apreciação crítica. Uma palavra, uma frase ou uma imagem usada com algum tipo de referência especial (é esse o significado habitual de símbolo), todas são símbolos quando constituem elementos discerníveis na análise crítica.

Neste contexto, todo ritual traz consigo valores simbólicos, constituídos por

um conjunto de gestos, palavras e formalidades. A partir deste pensamento, os

rituais são tributários de diversas características, tais como os ritos de passagem

oriundos de diversas culturas, como na cultura indígena, na qual se realiza o ritual

de comemoração de iniciação na puberdade. O casamento, bem como a coroação

ou a posse presidencial também são formas distintas de rituais. Várias ações

signos são motivados por uma relação de analogia, de semelhança, já que uma imagem ou um som gravado se parecem com o que eles designam. Tentou-se com freqüência analisar o funcionamento das imagens de filmes, tendo em vista que remetem a um significado. Tratava-se de saber que a categoria de signos elas podiam pertencer. Tentou-se igualmente definir o “signo minimal” da linguagem cinematográfica, para se chegar à conclusão que o cinema era uma “espécie de linguagem sem signos”. Cf: AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p: 269 e 270. 10 AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p. 272. 11

FRYE, N. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1957, p. 75.

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comuns como um aperto de mão ou um “oi” são ações ritualísticas do cotidiano por

natureza.12

À primeira vista, para compreendermos os rituais cotidianos no Satyricon,

recorremos ao hedonismo13 de Epicuro para entender o Satyricon de Fellini. Neste

processo, Epicuro (341 – 270) foi um filósofo grego nascido em Samos, que

defendeu a doutrina do atomismo, desenvolvida originalmente por Leucipo14 e

Demócrito.15 Pertencente a uma ex-família nobre, não sofreu muita influência dos

filósofos, pois não tinha muita disposição em estudá-los. No ano de 325 a.C seguiu

para Atenas, na qual estabeleceu um jardim e fundou sua escola. Tanto homens

como mulheres compunham o quadro de alunos da escola epicurista.

Epicuro possuía muitos discípulos e amigos, os epicuristas tinham como base

o prazer, o que acarretava diversas acusações sobre o excesso do vinho e dos

festins. Apesar de uma vasta produção, com mais de trezentos tratados, restaram

apenas três cartas que tratam da “natureza”, dos “meteoros” e da “moral”. As cartas

e os fragmentos foram reunidos pelo professor Hermann Usener com o título de

Epicurea em 1887.

12

Cf: GENNEP, A. V. Les rites de passage: étude systématique dês rites. Paris: Picard, 1994. Assim, os índios têm formas de demonstrar carinho bem diferente daquelas dos civilizados e seu casamento também se realiza de forma diversa. Cada tribo segue rituais e comportamentos ditados pelos heróis míticos há milhares de anos, e às vezes o relacionamento homem-mulher pode tomar características de uma verdadeira guerra, Cf: PERET, J. A. Amazonas: História, gente e costumes. Brasília: Gráfica do senado, 1983 13

Teoria ou doutrina filosófica que defende o prazer individual e imediato, estando ligada também a idéia de prazer como felicidade. 14

Leucipo (cerca de 475 - ?), natural de Mileto, colônia cretense no mediterrâneo. Foi um filósofo grego, criador do atomismo ou da teoria atomista. Considerado discípulo de Parmênides ou de Zenão de Eléia, pouco se sabe sobre sua vida. No único fragmento que nos restou, declara: “Nada deriva do acaso, mas tudo de uma razão sob a necessidade”. Cf: CHÂTELET, F. História da Filosofia – A Filosofia Pagã. Rio de Janeiro: Zahar Editoras, 1981; CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia, vol I. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998; JAEGER, W. Paideia. São Paulo: Ed. Herder, s/d; REALE, G. História da Filosofia Antiga, vol I. São Paulo: Edições Loyola, 1993. 15

Demócrito (cerca de 460 – 370 a.C), natural de Abdera, colônia jônica da Trácia. Foi discípulo e sucessor de Leucipo na direção da escola de Abdera. Contemporâneo do sofista Protágoras, suas preocupações se voltaram para o campo da ética e das técnicas. Deixou cerca de noventa obras, entre elas restaram-nos os fragmentos da Pequena Ordem do Mundo, Da Forma, Do Entendimento, Do Bom Ânimo. É considerado atomista e, também, o primeiro pensador materialista. Seu atomismo se resume a dizer que: a) as qualidades sensíveis (sabor, odor, quente, frio, cor etc) são aparências; b) esses corpúsculos, que são os átomos, não possuem nenhuma qualidade sensível, pois só têm propriedades geométricas (grandeza e forma), c) o movimento é função da existência do vazio. A novidade física e lógica do atomismo é a concepção mecanicista da necessidade: “nada nasce do nada, nada retorna ao nada”, “tudo o que existe nasce do acaso e da necessidade”. Os átomos constituem a explicação última do mundo. Cf: Ibid.

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A filosofia epicurista é a hedonista, na qual toda dor tem que ser eliminada

para se atingir a ataraxia (estado da alma em que nada consegue perturbá-la) é

necessário suprir os desejos naturais e ignorar os desejos supérfluos. O sábio é

aquele que se contenta com o necessário, o prazer estável é o que garante a

felicidade. O desejo incômodo se dissolve no amor a filosofia. O essencial é a

felicidade, por isso os desejos precisam ser controlados, para que a serenidade nos

ajude a suportar a dor.

O raciocínio sábio torna a vida mais agradável; o prazer para Epicuro não era

simplesmente o prazer pelo prazer, da satisfação imediata, pois este prazer pode

estar muitas vezes ligado a uma dor futura. Por isso, Epicuro submete à razão a

busca da felicidade.16

No que se segue esse estudo abre caminho para se verificar como Literatura,

História e o Cinema se relacionam na construção do homem romano de Petrônio

frente ao mundo contemporâneo de Federico Fellini. Ao adaptar uma obra literária

para o campo cinematográfico temos que ter em mente a concepção de que são

“signos” 17 diferentes e que tanto a literatura como o cinema devem ser analisados

segundo estratégias próprias de linguagens.

A adaptação de uma obra literária para o campo cinematográfico deve possuir

características de quem está realizando essa adaptação. Assim, o produtor da obra

audiovisual deve ter liberdade ao produzir a obra fílmica por meio da obra literária,

pois vai ter que responder por ela. Nesse sentido, o cineasta torna-se singular, ou

seja, não ocorre uma tradução uniforme da linguagem, mas uma transmutação.

A cada nova leitura do texto original surgem possíveis interpretações. Com

isso, o Satyricon de Fellini apresenta muito de seu próprio contexto cultural e

temporal. Ao analisarmos uma obra fílmica com base numa obra literária é

16

Do que nos restam dos escritos de Epicuro, destacamos três: sobre Física: três cartas, Quarenta Máximas, o Testamento e a Carta a Heródoto, sobre os Fenômenos Celestes: Carta a Pitocles e sobre Ética: Carta a Meneceu. Para Epicuro o prazer e a felicidade são os condutores dos seres humanos. Com esta doutrina filosófica, Epicuro nos orienta sobre a forma de administrar nossas necessidades. 17

Para Herman Northrop Frye, crítico literário canadense, o signo está colocado em consonância com o símbolo. Assim, para ele: “Os símbolos assim compreendidos podem ser aqui chamados signos, unidades verbais que, convencional e arbitrariamente, querem dizer coisas, às quais conduzem, fora do lugar onde ocorrem.” FRYE, N., op cit., p. 77

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necessário saber que tanto o filme quanto a literatura possuem particularidades

específicas aos seus contextos. O crítico literário Northorp Frye (1957, p. 87)

completa dizendo que: [...] As ficções históricas não se destinam a levar

compreensão a um período da História, mas são exemplares; ilustram a ação, e são

ideais no sentido de que manifestam a forma universal da ação humana.

As representações simbólicas presentes no Satyricon de Fellini estão

inseridas na relação do autor, público e obra,18 particularmente na relação do

espectador com a obra fílmica, originando diferentes interpretações e significações

simbólicas.

Dessa forma, a construção dos símbolos no Satyricon ocorre de formas

distintas. O produtor da obra fílmica, Federico Fellini, afasta-se de seu objeto para

permitir que o público construa sua própria representação19, mas isso não significa

18

A relação autor, público e obra nos permitem conhecer o vínculo que o autor tem com o meio social que o envolve. Como já destacou o poeta e crítico literário Antônio Cândido, existe um jogo permanente entre eles: “[...] O escritor vê apenas ele próprio e as palavras, mas não vê o leitor; que o leitor vê as palavras e ele próprio, mas não vê o escritor; e um terceiro pode ver apenas a escrita, como parte de um objeto físico, sem ter consciência do leitor nem do escritor. Isso pode fazer com que o escritor suponha irrefletidamente, que as únicas partes do processo sejam a primeira e a segunda; e o leitor suponha que o processo consiste na segunda e terceira; e um crítico irrefletido, que a segunda parte é tudo [...]. Mas a verdade básica é que o ato completo da linguagem depende da interação das três partes, cada uma das quais, afinal, só é inteligível [...] no contexto normal do conjunto.” Cf: CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1985, p: 38 e 39. Não podemos esquecer que toda produção literária está vinculada ao mundo onde foi criada e conhecida. Sendo assim, a trilogia autor, público e obra nunca devem estar desvinculados, o texto e o contexto interagem entre si, e a condição social do autor é um fator preponderante. E sobre o conceito de representação, o historiador Roger Chartier nos diz que a representação é como um “instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de reconstituí-lo em memória e de figurá-lo como ele é”. Cf: CHARTIER, R. A História Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 20. 19

Utilizada em numerosos e variados contextos, a palavra designa sempre uma operação pela qual se substitui alguma coisa (em geral ausente) por outra, que faz às vezes dela. Esse substituto pode ser de natureza variável: uma imagem (representação pictória, fotográfica, cinematográfica), uma performance em um palco (representação teatral) etc. No que concerne à representação por imagens, a questão principal foi, no mais das vezes, a de decidir se ela punha em jogo atitudes humana inatas e universais, ou, ao contrário atitudes culturais, adquiridas e particulares. No cinema, a representação implica dois momentos, inextricavelmente ligados: a passagem de um texto, escrito ou não, à sua materialização por ações em lugares agenciados em cenografia (tempo de encenação) e a passagem dessa representação, análoga à do teatro, a uma imagem em movimento, pela escolha de enquadramentos e pela construção de uma seqüência de imagens (montagem). Essa duplicação do processo representativo estimulou comparações do cinema com o teatro e também com a pintura (na qual o segundo tempo é o único acessível). Cf: AUMONT, J; MARIE, M, op cit., p. 255 e 256.

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que o cineasta não possa ter sua própria simbologia e que o mesmo passe

despercebido frente ao espectador. Para o pesquisador francês Fracis Vanoye20:

[...] é possível postular que qualquer arte da representação (o cinema é uma arte da representação) gera produções simbólicas que exprimem mais ou menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos conscientemente, um (ou vários) ponto(s) de vista sobre o mundo real.

Nessa perspectiva, os signos da obra cinematográfica produzem novas

marcas que vão além da obra escrita. A construção da simbologia de Petrônio a

Fellini objetiva compor a significação dos mistérios do homem histórico, presentes na

religião, no mito, na sexualidade, no cotidiano da vida pública e privada.21 Formando

com isto, os rituais cotidianos da natureza do homem.

A linguagem cinematográfica, que traz elementos próprios do mundo

imagético modifica o texto primário, mas sem comprometer a obra original como um

todo. Federico Fellini reconstrói o Satyricon tornando-o fruto de seu subconsciente.

O percurso escolhido pelo cineasta permitiu trazer o Satyricon de Petrônio para as

telas do Cinema, fazendo de sua composição fílmica um Clássico do Cinema

Contemporâneo. Estas considerações nos levam há desvendar um pouco mais

sobre o cineasta italiano.

Nessa linha de pensamento, circunscrevemos Federico Fellini. Assim,

Federico Fellini nasceu em Rimini, na Itália, em 20 de Janeiro em 1920, uma

pequena cidade litorânea, na qual viveu até os seus 17 anos, cidade esta que lhe

serviu de inspiração para muitos de seus filmes, tais como: “Os Boas-Vidas” e

“Amarcord”.

20

VANOYE, F. et al. Ensaio sobre análise fílmica. São Paulo: Papirus, 2002, p: 61 Apud (RIBEIRO, E. S. O Senhor dos Anéis: a tradução da simbologia do Anel do Livro para o Cinema. Santa Catarina: UFSC, 2005, cadernos de tradução nº 16, p. 183 - 200.) 21

O historiador Carlo Ginzburg ressalta que “o que aproxima mitos e pinturas (obras de arte em geral) é, por um lado, o fato de terem nascido e serem transmitidos em contextos culturais e sociais específicos; e, por outro, a sua dimensão formal.” GINZBURG, op. cit., p. 12

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Fellini foi considerado um gênio dentro do mundo cinematográfico, em

decorrência da sua criatividade ilimitada, que tornava seus pensamentos e delírios

como algo próprio da nossa imaginação. Essa característica acabou virando

adjetivo, conhecida também como “felliniana”, que designava mulheres de seios

fartos, rostos grotescos e imagens circenses.

No ano de 1937 o cineasta dirigiu-se para Florença na tentativa de publicar

suas charges na revista satírica “420”, sendo que no ano seguinte acabou indo para

Roma estudar Direito, como conseqüência acabou tornando-se colaborador e

desenhista de história em quadrinhos. Ele escreveu sketches22 para rádio, canções

para teatro de revista e monólogos para cômicos famosos.

A oportunidade apareceu mesmo quando teve contato com Aldo Fabrizi, ator

de cinema e teatro italiano, que o levou para o teatro de revista, e lhe concedeu a

chance de colaborar como roteirista no primeiro filme, eram comédias humorísticas

de Macário. Destaque para comédias como: Lo Vedi Come Sei? Il Pirata Sono Io e

Imputador Alzaveti; mas foi com a colaboração de Piero Tellini, que realizou outros

trabalhos, tais como: Avanti c’è Posto, Campo di Fiori, L’ultima Carrozzella, Chi l’ha

Visto, Quarta Pagina, Documento Zeta 3, Ventornato Signor Gai, Sette Poveri in

Automobile, I Predoni Del Sahara. Fellini e Giulietta deixaram na cinematografia

filmes memoráveis, como a obra: La Strada, Noites de Cabíria, na qual ganhou o

Oscar e Ginger e Fred.

No ano de 1944, ao conhecer o diretor de cinema Roberto Rossellini, este o

convidou para escrever o roteiro de “Roma, Cidade Aberta”. E ainda com Rossellini,

colaborou também com Paisà (1945), e em seguida, com Alberto Lattuada,

contribuiu em Il Delitto di Giovanni Episcopo; Senza Pietà (estréia de Giulietta),

Duilio Coletti (Il Passatore), o episódio Il Miracolo, do filme L’amore (de Rossellini).

Sobre a influência de Rossellini na obra de Federico Fellini23, sublinhamos:

22 Têrmo normalmente usado para designar pequenas peças ou cenas dramáticas, também usadas no cinema e na televisão. 23 FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 66.

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[...] Compreendi, graças a Rossellini, que se podia fazer cinema no meio de milhares

de pessoas, de máquinas, de gruas, com a mesma tranqüilidade com que, na minha

infância, eu fazia um pequeno desenho.

O cineasta também teve participação em outros importantes roteiros, como

“Em nome da Lei”, de Pietro Germi, “O Moinho do pó”, de Lattuada, “Francesco

Giuliare di Dio”, de Rossellini, “O Caminho da Esperança”, de Germi, “Persiani

Chiuse”, de Comencini, “Il Brigante de Tacca di Lupo”, de Germi, “Europa 51”, de

Rossellini e “A Cidade se defende”, de Germi. Como ressaltamos, o estilo de Fellini

era único, não pertencia a um movimento específico, assim como muitos críticos o

identificaram.

[...] Nunca tive a preocupação de me afastar do neo-realismo com o qual jamais me identifiquei, mesmo quando trabalhei ao lado de Rossellini. Essa foi uma grande experiência de vida, como tantas outras coisas, mas eu jamais a considerei dependente de uma estética.

24

Com Lattuada, Masina e Carla Del Poggio, acabou formando uma cooperativa

chamada Capitolium, que produziu o filme “Mulheres e Luzes”, inspirado nas

aventuras da companhia de teatro de revista de Aldo Fabrizi, em 1939.

A consagração internacional ocorreu com a obra “La Strada”, quando ganhou

o Leão de Ouro em Veneza e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Fellini, também

fez “La Dolce Vita”, um retrato de Roma em seu auge: Via Veneto, estrelas de

cinema, pobres decadentes. Muito polêmico, o filme foi atacado pelos moralistas, a

quem o cineasta satirizou em um episódio de Boccaccio 70, com o qual ganhou a

Palma de Ouro em Cannes. Em “8 ½ (Oito e Meio)”, um filme considerado pelos

críticos como sendo autobiográfico, Federico Fellini retratou a história de um

cineasta em crise artística e pessoal; por este trabalho também ganhou o Oscar de

melhor direção e o grande prêmio de cinema de Moscou. Com relação ao embate

24 Ibid, p. 139.

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dos críticos frente à produção autobiográfica felliniana, o historiador Luiz Renato

Martins25 cita que:

No quadro dessa carreira geralmente aclamada, mas de curso analogamente denegado e sujeito à incompreensão, observa-se que, a cada novo trabalho, a mídia repisa, pelo seu lado, o slogan corrente de que Fellini seria um autor autobiográfico, um obcecado por si mesmo e pelo cinema. De outro lado, tem-se o realizador, em suas irônicas aparições aos jornalistas, enfatizando seguidamente o caráter artificial e inventado dos estilemas pessoais e autobiográficos, utilizados em suas obras. Se tal impasse parece ainda muito longe de se solver, a obra, entretanto teria evoluído, radicalizando a desconstrução analítica seja do processo cinematográfico, seja das subjetividades envolvidas tanto na realização como na recepção do cinema.

Assim sendo, a dicotomia entre o movimento neo-realista e a indústria

cinematográfica hollywoodiana colocava Federico Fellini como “sujeito” entre um e

outro, pois o cineasta não pertencia a uma categoria propriamente definida.

[...] Passa a simbolizar o novo estágio de relações entre autor e indústria, em que o papel de diretor, promovido a protagonista do processo cinematográfico, deixa a situação artesanal e o ponto de vista da escassez e se integra ao núcleo de um mercado de luxo. Sinalizando o valor de referência central, assumido por Fellini na nova conjuntura, o qualificativo “felliniano” (para designar certos traços ou situações) passa a ser adotado pela mídia de vários países.

26

A relação de Fellini com o mundo do espetáculo circense era intensa. Atribuía

ao cinema certa relação com o circo, a mistura de técnicas, de precisão e

improvisação. A montagem do espetáculo para Fellini relacionava-se com a

montagem cinematográfica, da construção do “imaginário” por meio de certa

ordenação de “fantasias” e da forma de contá-las.

25 MARTINS, L.R. Conflito e Interpretação em Fellini: construção da perspectiva do público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – Instituto Italiano de Cultura, 1994, p. 21. 26

Ibid, p. 21

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O cinema parece-se muito com o circo. É provável que se o cinema não tivesse existido, se eu não tivesse encontrado Rossellini e se o circo fosse ainda um gênero de espetáculo de uma certa atualidade, eu gostaria muito de ser diretor de um grande circo, pois o circo é axatamente uma mistura de técnica, de precisão e de improvisação. Ao mesmo tempo em que se desenrola o espetáculo preparado e repetido, arrisca-se realmente algo, isto é, vive-se ao mesmo tempo. Há, evidentemente, coisas que nada têm a ver com a criação de fantasia: há as girafas, os tigres, os animais. E este modo de criar e de viver ao mesmo tempo, sem as medidas fixas que um homem de letras ou um pintor deve ter, mas estar mergulhado na ação. Eis o que é o espetáculo do circo. Ele tem esta força, esta coragem [...] e parece-me que o cinema é exatamente a mesma coisa. Efetivamente, o que é fazer um filme? É, bem entendido, tentar pôr ordem em certas fantasias e contá-las com uma certa precisão. Contudo, no momento em que se faz o filme, a vida do elenco, os encontros que se fazem, as cidades novas que temos que visitar para contar histórias, toda vida cinematográfica nos encoraja, nos emociona, nos enriquece, enquanto se trabalha. Trata-se, em um determinado momento, de saber se quem quer contar a realidade aos outros tem a possibilidade de ser seu intérprete, porque, se não for intérprete, será inútil começar.

27

Casado com a atriz Giulietta Masina desde 1943, esta tinha sido estrela de

sete de seus filmes. Esposa e companheira, Giulietta acabou morrendo de câncer

em 23 de Março de 1994. Federico Fellini, abatido pela doença da mulher, faleceu

no dia 31 de Outubro de 1993.28

Federico Fellini morreu no dia 31 de Outubro de 1993. Foi velado durante dias no estúdio Cinecittà – fábrica de seus delírios – e teve uma missa solene numa das maiores igrejas de Roma – sua eterna amada amante – antes de seguir para repousar para sempre na terra de Rimini – seu berço de nascimento e morte. Presentes nos diversos atos de seus funerais artistas, políticos, diretores e técnicos de cinema, rádio, televisão, jornalistas, religiosos, gente de todas as camadas e de toda espécie e a multidão, num misto de reverência e saudade antecipada. Talvez espanto: então Fellini era mortal?

29

27

Apud (STRICH, C; KEEL, A. Fellini por Fellini. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda, 1986, p. 84). 28

Com relação à atriz e companheira Fellini afirmava: “Giulietta Masina representava para mim a projeção da inocência ferida, mas enfim triunfante.” Cf: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 169. 29

MACHADO, L. R., “A Vitória da Mentira”. In: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

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O Estúdio Cinecittà era a fábrica dos sonhos de Fellini. Sua construção iniciou

com o lançamento da pedra fundamental em 27 de Janeiro de 1936. No complexo

de teatros era possível encontrar além do diretor e cineasta Federico Fellini, os

astros Marcello Mastroianni e Sophia Loren; o cineasta Pier Pasolini, Michelangelo

Antonioni e Rossellini. Sobre a relação de Fellini com o Cinecittà, o mesmo cita que:

Adoro a Cinecittà. Aqui passo meus melhores momentos. É uma fábrica, é onde trabalho e é um bom instrumento de trabalho. Estou também ligado por laços afetivos. Cheguei aqui pela primeira vez, há muito tempo. Era jornalista, na época, e fazia entrevistas com as vedetes, os diretores [...]

30

As produções que ocorreram no Cinecittà se mesclavam com a trajetória da

história política romana. O Estúdio foi fruto do regime fascista e apresentava o

arquétipo de uma ideologia pautada pela estética fincada em valores morais e

sociais, características predominantemente do regime totalitário. A exposição dos

problemas sociais e a busca de soluções e de um “cinema-verdade” inspiraram os

cineastas para uma nova forma de se “pensar” o cinema italiano.

[...] Mussolini inaugurou Cinecittà na tarde de 27 de abril de 1937, com hierarcas, bandeiras, fanfarras, crianças uniformizadas, operários perfilados militarmente, generais e deputados. O quotidiano romano (da época) Giornale d‟Italia descreve: „O Duce, galgando entre altíssimas aclamações, a grande praça, que, da Cidade cinematográfica forma a vasta luminosa entrada, presenciou o início do filme Elevazione, argumento de Vittorio Mussolini, e do filme Aviazione, que se desenvolverá sob a superdireção [sic] do próprio Vittorio Mussolini [...] O Duce presenciou depois à sincronização do filme Scipione l‟africano. [...] No período fascista, o cinema fascina os filhos de Mussolini: Vittorio Mussolini é também roteirista. A irmã da amante de Mussolini é, por sua vez, uma diva, intérprete também de filmes distribuídos por Vittorio Mussolini. Muitas divas são amantes de hierarquias fascistas, e freqüentemente iniciam suas carreiras no cinema, graças a tal proteção.

31

30

Apud (STRICH, C; KEEL, A., op cit., p. 94). 31

Cf: PENAZZO, D. “Redação das didascálias das fotos.” In: FELLINI, F. Um Regista a Cinecittà. Verona: Mondadori, 1988, p: 8, 11 e 20 Apud (MARTINS, L. R., op cit.,p. 68-69)

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Com isso, Fellini encontraria nos cartuns seu escape para os assuntos

políticos, bem como a inspiração para seus futuros filmes. Mesmo o Satyricon de

Fellini tendo sido produzido na década de 60, momento em que o cinema estava

passando por uma transformação, principalmente no campo do documentário, como

um movimento de expressão do cinema direto, que se desenvolvera na América do

Norte, no Canadá, na França e em Quebec, trazendo consigo novas técnicas de

filmagem e de captação direta do som. Federico Fellini procura deixar claro que sua

produção não fazia parte deste “novo” movimento de expressão. No entanto, o que

percebemos é que mesmo o “Cinema – Verdade” tendo como proposta captar a

“realidade tal como ela é”, não podemos deixar de notar que toda produção fílmica

se passa pelo crivo de quem a produz. O diretor, suas escolhas e sua matriz de

pensamentos frente ao objeto fílmico revelam que o “Cinema – Verdade” é na

verdade uma construção, feita a partir da edição das imagens e sons captados.

Se considerarmos a construção do cinema dito “Verdade” como algo próximo

da ficção, a produção cinematográfica de Fellini aproxima-se do cinema direto, uma

vez que a mesma não é feita pela reprodução Ipsis litteris da obra literária, mas

produzida pelo cineasta no preenchimento das lacunas historiográficas baseadas na

obra literária. Sobre o “Cinema – Verdade”, vejamos o que o Prof. Dr. Fernão Ramos

do Programa de Pós – Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de

Campinas, nos fala32:

O Cinema Verdade/Direto constitui o primeiro momento de ruptura ideológica com o universo documentarista griersoniano. Surge como estilo, nos anos de 1960 e domina o horizonte ideológico de nossa época, nesta virada de milênio. Vivemos, ainda hoje, dentro das crenças que nortearam seu surgimento. A crítica ética à encenação e a progressiva elegia da refletividade (no caminho que vai do “direto” a “verdade”) são dois momentos-chaves para a definição do campo da não-ficção, dentro do universo ideológico do Cinema Verdade. Nessa visão, o documentário de “jogar limpo” e sempre revelar o caminho percorrido na composição dos procedimentos enunciativos do discurso cinematográfico. O Cinema Verdade/Direto revoluciona a forma documentária, através de procedimentos estilísticos proporcionados por câmeras leves, ágeis e, principalmente, o aparecimento do gravador Nagra. Planos longos e imagem tremida com câmera na mão constituem o núcleo de seu estilo. O aparecimento do som direto conquista um aspecto do mundo (o som

32

Cf: RAMOS, F. Cinema Verdade no Brasil. In: Teixeira, F. E. (org.). Documentário no Brasil - Tradição e Transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004, p. 81 e 82.

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sincrônico ao movimento) que os limites tecnológicos havia, até então, negado ao documentário. Através do som do mundo e do som da fala, o Cinema Verdade inaugura a entrevista e o depoimento como elementos estilísticos.

A primeira projeção da “realidade” aconteceu no dia 28 de Dezembro de

1895, no subsolo do Grand Café de Paris, os irmãos Louis e Auguste Lumière

projetaram os primeiros registros de chegada de um trem à estação La Ciotat, bem

como a saída dos operários das usinas Lumière. Após quatro anos, o francês

George Meliès lança, “Viagem á Lua”, um filme de ficção científica, colocando em

xeque a fantasia e a “realidade”. Assim, ao longo da história o cinema passaria a ser

uma ferramenta de propagação de ideologias culturais e políticas.33

Neste universo entre a realidade e a fantasia, o desenho, mais propriamente a

caricatura permeava o mundo de Fellini, servindo de inspiração para a construção de

seus filmes.34 Sobre a inspiração que Fellini tinha para com seus filmes, o mesmo

nos relata em uma entrevista realizada para Giovanni Grazzini que:

No início de cada filme passo a maior parte do tempo na escrivaninha, e não faço mais do que rabiscar desenhos de nádegas e seios. É a minha maneira de perseguir o filme, de começar a decifrá-lo através desses rabiscos. Uma espécie de fio de Ariadne para sair do labirinto.

35

33

Sobre a construção do visível e do invisível, cabe a leitura da obra do Professor de cinema Bill Nichols da Universidade de São Francisco, na Califórnia. Para ele: “Certas tecnologias e estilos nos estimulam a acreditar numa correspondência estreita, senão exata, entre imagem e realidade, mas efeitos de lentes, foco, contraste, profundidade de campo, cor, meios de alta resolução (filmes de grão muito fino, monitores de vídeo com muitos pixels) parecem garantir a autenticidade do que vemos. No entanto, tudo isso pode ser usado para dar impressão de autenticidade ao que, na verdade, foi fabricado ou construído. [...]. E essa é uma impressão forte.” Cf: NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. 34

“[...] a força da imagem nos filmes de Fellini, tão difícil de definir porque não se enquadra nos códigos de nenhuma cultura figurativa, tem as suas raízes na agressividade redundante e desarmoniosa da gráfica jornalística. Aquela agressividade capaz de impor em todo o mundo cartoons e „quadrinhos‟.” Cf: CALVINO, I. “Autobiografia di uno Spettatore.” In: Federico Fellini, Quatro Film. Torino: Einaudi, 1975, p: 19-22 Apud (MARTINS, L. R., op cit., p: 68). 35

FELLINI, F. Entrevista sobre o cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986, p. 5.

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Ao retratar assuntos “Clássicos”, como fez com Roma Antiga, utilizou-se de

certo tom de liberdade. Na obra o Satyricon, desenhou uma Roma que existia

somente em sua imaginação. Para Fellini, tanto a literatura do Satyricon de Petrônio,

como o cinema devem ser compreendidos inseridos em seu próprio tempo e espaço,

o que nos revela que o cineasta pertencia ao mundo onde foi concebido, ou seja, o

mundo do cinema, da “imagem em movimento”.

Uma obra de arte nasce sob uma expressão única; eu acho essas transposições ridículas, aberrantes, monstruosas. As minhas preferências vão em geral a sugestões originais escritas para o cinema. Creio que o cinema não tem necessidade de literatura, precisa somente de autores cinematográficos, isto é, de gente que se expresse através do ritmo, da cadência, que são particulares ao cinema. O cinema é uma arte autônoma que não tem necessidade de transposições sobre um plano que, no melhor dos casos, será sempre ilustrativo. Cada obra de arte vive na dimensão na qual foi concebida e na qual é expressa. Que coisa se observa num livro? Situações. Mas as situações, sozinhas, não têm significado. É o sentimento com o qual elas vêm, são expressas, que conta, a atmosfera, a luz: em suma, a interpretação dos fatos. Mas a interpretação literária daqueles fatos não tem nada a ver com a interpretação cinematográfica dos mesmos. São duas maneiras de se exprimir inteiramente diferentes.

36

A biografia de Federico Fellini é permeada de contradições, entretanto a

certeza que temos é quanto à aproximação de Fellini com o imaginário37, recurso

este que vai buscar em fontes literárias. A relação de Fellini com a Literatura e o

Cinema pode ser verificada em sua leitura do Satyricon de Petrônio.

Com isso, o cineasta releu o Satyricon de Petrônio, enquanto se recuperava

de uma pleurisia em Manzania. Instigado pela leitura do Clássico, Federico Fellini

passou a compor sua visão frente à obra do mundo antigo. A produção do filme

ocorreu sobre a atmosfera das drogas alucinógenas e da ficção científica da década

de 60. A utilização da ficção científica no filme de Fellini se mostra por meio da

36

FELLINI, F., op cit., p. 20. 37

No sentido corrente, o imaginário é o campo (e o produto) da imaginação, entendida como faculdade criativa. A palavra, praticamente, é então empregada como sinônimo de “fictício”, “inventado” e oposta a real. Nesse sentido, a diegese de uma obra de ficção é um mundo imaginário. O cinema é constituído de significantes imaginários, “ele suprime em massa a percepção, mas para jogá-la logo depois em sua própria ausência, que é, entretanto, o único significante presente.” Cf: METZ, C. “Le significante presente” e “Le film de fiction et son spectateur”. In: Communications, 1975, nº 25 Apud (AUMONT, J; MARIE, M, op cit., p. 164 e 165).

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inserção da banda desenhada das histórias de Alexander Raymond através do

personagem Flasch Gordon que serviu de inspiração para criar filtros de várias cores

com diferentes tipos de película.

Satyricon foi filmado entre Novembro de 1968 e Maio de 1969, em um

ambiente de experimentação, polissexualidade e de autodescoberta. O movimento

hippie, convencionalmente denominado de movimento de contracultura da década

de 60, representava a ideologia do filme, caracterizado pelo espírito de liberação e

da abstração das conseqüências dos atos. No Satyricon de Fellini tudo era válido.

O filme se entrelaça por meio de dois jovens romanos, Encolpio (Matin Potter)

e Ascilto (Hiram Keller), que acabam sendo raptados por um pirata e escravizados

em um navio. Ao serem libertados, realizam variadas conquistas sexuais. Nesta

aventura sexual Encolpio acaba sendo capturado e forçado a lutar com um

Minotauro. Este fato torna Encolpio impotente, fato que percebe no momento em

que se envolve com Ariadne. Para resolver o problema de sua impotência, Encolpio

faz uma visita ao Jardim dos Prazeres e depois a Oenothea, que lhe devolve sua

potência sexual. O filme termina com a morte de Ascilto e com a decisão de Encolpio

embarcar para a África. As cenas finais mostram os preparativos da viagem.

As cenas do filme de Fellini se constituem como uma crítica a sociedade

romana contemporânea. Para o diretor, os romanos do período do principado tais

como os romanos da Via Veneto de seu período tinham uma vida vazia e sem

sentido. Nesta teia das relações humanas, tanto no filme de Fellini quanto na obra

de Petrônio, o desfecho se cruza através das falas dos personagens. Ambos

terminam em meio a uma frase. Encolpio e outros personagens são transformados

em um afresco. Satyricon de Fellini é um filme de formato cíclico, abrindo e fechando

as cenas com imagens semelhantes, tal como Fellini já tinha feito em “O Conto do

Vigário” e “A Estrada”.

No ano de lançamento do filme Satyricon, os críticos afirmaram que não era

uma obra que chamava muito a atenção, apesar das cenas de orgias, dos

banquetes e da violência. O filme causava certo tédio ao espectador. Ao contrário de

A “Doce Vida”, todo o filme foi filmado para que o público não se identificasse com

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os personagens principais, fato caracterizado pela música em estilo diegético.38

Mesmo Fellini tendo a pretensão de fazer do Satyricon um documentário do mundo

romano Antigo, o mesmo passava longe das características históricas, aproximando

mais do mundo de fantasias do cineasta.

Este filme em particular foi o mais caro de Fellini, na qual foram utilizados 90

cenários, construídos todos no Cinecittà. Cerca de 250 atores compunham o

mosaico do mundo romano do período Imperial montado por Fellini nos estúdios. A

estréia da obra fílmica ocorreu nos Estados Unidos, depois de um espetáculo de

Rock no Madison Square Garden. O filme foi apresentado para um público de

aproximadamente dez mil hippies drogados e enrolados uns aos outros. Segundo

especialista em cinematografia, o filme de Fellini tinha atingido o seu público alvo,

sendo um filme para adolescentes, como classificou o United Artists. Todavia,

mesmo perante todas as críticas, Satyricon foi indicado ao Oscar pela originalidade e

pela realização, sendo aplaudido em todo o mundo pela criatividade no conjunto da

obra. Vejamos:

38

Palavra de origem grega (diègesis: narrativa) oposta, de modo, aliás, diferentemente, por Platão e Arsitóteles, a mimesis (imitação); caída em desuso. Depois ressuscitada por Étienne Souriau; retomada em seguida, mas também em dois sentidos diferentes, por Gérard Genette e por Chistian Metz, um em narratologia literária, o outro em filmologia. Cf: SOURIAU, E. “La structure de l‟universe filmique”. In: Revue Internationale de Filmologie, 1951, p: 7-8 e MERTZ, C. Essais sur La signification au cinema. Paris: Klincksieck, 1968. Para Souriau, os “fatos diegéticos” são aqueles relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeção diante dos espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta. Tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira. Souriau dá o exemplo de dois cenários de estúdio que podem ser contíguos e ser diegeticamente (na lógica suposta da história que o filme conta) distantes em várias dezenas de quilômetros. Mertz e seus discípulos (Percheron, Vernet, entre outros) retomam a definição de Souriau: a diegese é concebida como o significado longínquo do filme considerado em bloco (o que ele conta e tudo o que isso supõe); a instância diegética é o significado da narrativa. A diegese é a “instância representada do filme, ou seja, o conjunto da detonação fílmica: a própria narrativa, e com isso as personagens, a paisagem, os acontecimentos e outros elementos narrativos, porquanto sejam considerados em seu estado detonado. O interesse dessa acepção filmológica é acrescentar à noção de história contada e de universo ficcional a idéia de representação e de lógica suposta por esse universo representado. O próprio do cinema é, com efeito, que o espectador constrói um pseudo-mundo do qual ele participa e com o qual se identifica, o da diegese. Apud (AUMONT, J; MARIE, M, op. cit., p: 77 e 78). Sobre a diegese, vêr também: COSTA, F. C. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995, p: 7.

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A projeção foi entusiasmante. A cada fotograma os rapazes aplaudiam; muitos dormiam, outros faziam amor. No caos total, o filme seguia adiante implacavelmente, sobre uma tela gigantesca que parecia refletir o que acontecia na sala de projeção. Imprevisivelmente, misteriosamente, naquele ambiente entre os mais improváveis, Satíricon parecia ter encontrado o seu lugar natural. Nem mesmo parecia meu, na revelação imprevista de uma integração tão secreta, de ligações tão sutis e nunca interrompidas entre a antiga Roma da memória e aquele público fantástico do futuro.

39

A literatura é composta por um conjunto de textos escritos que nos levam a

imaginação. Toda obra literária traz significações do mundo onde foi produzida, tais

como características culturais ligadas à língua, aos costumes e a temporalidade de

sua produção. Os textos literários devem ser compreendidos variantes a outros

textos, pois exercem um papel social e emocional no público receptor. O historiador

Lynn Hunt enfatiza que com a abertura da produção historiográfica através do uso

de novas metodologias, bem como o diálogo com a crítica literária, tem possibilitado

interpretar, analisar e compreender melhor o passado histórico.

De fato, o único traço verdadeiramente distintivo da nova abordagem cultural da história é a abrangente influência da crítica literária recente, que tem ensinado os historiadores a reconhecer o papel ativo da linguagem dos textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade histórica.

40

Em vista do que foi apresentado, temos verificado que a Antiguidade Clássica

tem sido tema de muitos estudos e produções fílmicas na contemporaneidade,

principalmente sobre o período romano, tais como: Spartacus (Spartacus – 1960) do

diretor Stanley Kubrick, A queda do Império Romano (The Fall of the Roman Empire

– 1964) do diretor Anthony Mann, Satyricon (The Degenerates/Fellini

Satyricon/Satyricon – 1969) do diretor Federico Fellini e mais recentemente, o

Gladiador (Gladiator – 2000) do diretor Ridley Scott e a minissérie Roma (Rome –

2005/2007), produzida pela HBO (Home Box Office) em vinte e quatro capítulos.

39 FELLINI, F. Entrevista sobre o cinema. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1986, p: 119. 40 HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p: 133.

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Ao abordar o estudo Clássico a partir do cinema, podemos afirmar que o

mundo das Artes, em especial da sétima arte, é o mundo do “possível”, pois além da

visão do diretor, da construção do herói e do bandido, do trágico e do cômico, dos

romances eternos, o filme também pode ser utilizado como um documento de cunho

historiográfico.41 Cabe ao historiador buscar definir as fronteiras do imaginário, a

partir de uma metodologia própria.

Assim, a História Nova42 incorpora o cinema como um documento plausível

de ser estudado e analisado. Um dos precursores desta característica é o historiador

francês Marc Ferro43. Para ele o cinema revela muito do seu tempo, ou seja, do

momento em que foi feito.

[...] „o cinema‟ destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus „lapsus‟. É mais do que preciso para que, após a hora do desprezo venha a da desconfiança, a do temor [...] A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens [...] constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma outra análise da sociedade.

41

Para o historiador Jean-Claude Bernadet, o cinema trouxe a ilusão, algo que parece verdadeiro, embora saibamos que é mentira. Para ele, o filme é “um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só sabe depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema.” Cf: BERNARDET, J.C. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2000, p: 12. Nesse parâmetro, a ilusão esteve presente desde o surgimento da cinematografia, como em Meliès na França, até a organização da linguagem cinematográfica através da criação do roteiro, da utilização dos cenários e dos movimentos de câmera. 42

A partir dos Annales (1929), movimento que revolucionou a abordagem historiográfica por meio do uso de novas fontes, novos objetos e novos métodos, as idéias e os costumes ganharam um campo maior de atenção, nascia assim, a Nova História. Sobre a mudança no campo das técnicas e dos métodos, o historiador José Carlo Reis relata que “os documentos se referem à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças, às suas diversas formas de vida social.” Cf: REIS, J.C. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus Editora, 1994, p: 126. Nesse aspecto, com a História Nova os documentos são arqueológicos, pictográficos, icnográficos, fotográficos, cinematográficos, numéricos, orais, enfim, de todos os tipos. Com relação à História dos Annales Cf: BURKE, P. A escola dos Annales, 1929-1989: a revolução francesa na historiografia. São Paulo: UNESP, 1991; DOSSE, F. A história em migalhas: dos “Annales” à nova história. São Paulo: Ensaio, 1992; FEVRE, L. Combates pela história, v. I. Lisboa: Presença, 1977. 43

FERRO, M. “O Filme: uma contra-análise da sociedade?” In: LE GOFF, J; NORA, P. (orgs). História e Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 202-203.

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Mesmo a imagem sendo uma “construção”, uma “representação”, o cinema

reflete o contrapoder da sociedade por revelar as ideologias e por apresentar um

olhar diferenciado sobre a sociedade. Um filme, mesmo nas relações com o discurso

histórico revela suas próprias tensões.

Nesse sentido, a utilização do cinema como um documento histórico leva-nos

a uma melhor compreensão de períodos que outrora se apresentavam de maneira

obscura em documentos ditos oficiais. Entretanto, todo documento se renova a partir

da visão do historiador. Assim, o imaginário, os ritos, os signos e mitos passaram a

fazer parte da construção das sociedades e de seus respectivos contextos

históricos. Marc Ferro (1976, p. 203) ressalta que: [...] aquilo que não se realizou, as

crenças, as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a História.

A partir desta concepção apresentada por Marc Ferro, o historiador deve

tomar cuidado ao fazer a leitura de seu documento fílmico. Um documentário que se

baseia em fatos reais pode ser uma construção44, assim como um filme de ficção,

que também pode apresentar cenas reais. A relação histórica e historiográfica da

leitura fílmica se expressa pela construção da narrativa do objeto estudado, que por

44

Construção do gesto, construção da interpretação (mise em geste, mise em jeu). Termos forjados por Serguei M. Eisenstein, em seus cursos na VGIK, a escola de cinema de Moscou, por analogia com mise-em-scène, e para designar a técnica da interpretação de autor. A construção do gesto (mise em geste) recobre uma decomposição mental das atitudes das partes do corpo. A construção da interpretação (mise em jeu) retoma a idéia de um repertório de posições expressivas. Construção do quadro (mise em cadre). Termo utilizado pelo realizador de cinema Serguei M. Eisesntein em suas aulas na escola de cinema de Moscou (VGIK) na década de 1930, por analogia com a expressão mise-em-scène, para designar a preocupação de composição (gráfica, plástica) dos planos. A direção (mise-em-scène) é a localização (mise em place) dos atores no cenário e a determinação de seus movimentos; a construção do quadro (mise em cadre) é a determinação dos enquadramentos sucessivos correspondentes: ela não é, portanto, exatamente o enquadramento: este é imaginado como decupagem móvel de uma realidade persistente, a construção do quadro (mise em cadre) é correlativa de uma modificação da realidade com fins de seu enquadramento. Construção em abismo (mise em abîme/ em abyme) – Termo de retórica, proposto por André Gide e universalmente adotado em seguida, significando a incrustação de uma narrativa em outra, por analogia com o termo brasão que designa uma figura colocada no centro do escudo, e que figura outro escudo. O sentido narratológico conservou-se tal e qual no cinema (a narrativa “em construção” é uma narrativa dentro da narrativa, sobre modos variáveis, como em literatura, a mais corrente sendo ligada ao flashback). Além disso, designou-se com isso, às vezes, de maneira mais aproximativa, a existência de uma segunda estrutura na figuração ou na representação (por exemplo, o fato de mostrar em um filme a filmagem de um filme imaginário é com freqüência assimilada, erroneamente, a uma construção em abismo). Cf: AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p. 59 e 60.

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sua vez ocorre através da conjunção de sentidos que os filmes atribuem ao tempo

que constroem.45

Dessa forma, o cinema é a expressão do homem. É na projeção da tela que

os diferentes tipos de gêneros se cruzam, e que as inúmeras estórias, mitos e

fábulas adquirem consistência. Todo este aparato faz regir um complexo comércio

que alimenta o desenvolvimento do mercado cinematográfico. A publicidade que

aparece nos filmes e nas salas de projeção, bem como as distribuidoras que enviam

filmes para estas salas e os espectadores que pagam pela bilheteria, constituem o

mercado cinematográfico.

A narrativa cinematográfica é um conjunto de sons, imagens e discursos

verbais direcionados a compreensão do espectador. No campo literário, ao ser

adaptado para um roteiro, o discurso fílmico passa a ser outro texto mantendo as

características do discurso lingüístico.46

Ao ser projetado temos que ter consciência que o filme passou por diversas

etapas até chegar às salas de cinema, tais como a preparação do roteiro, das

filmagens e da edição do produto.47 A natureza fílmica é heterogênea e sua estrutura

é uma composição de técnicas que levam o espectador a construir um mundo de

ilusões perceptíveis ao seu modo.48 Por meio desta observação, a “análise

estrutural” servirá de parâmetro para interpretar o Satyricon de Fellini com base na

obra de Petrônio. Ao seguir por este percurso, é possível descortinar o foco

45 No entanto, os argumentos de Ferro vêm sendo criticados pela nova historiografia principalmente com relação à manipulação da linguagem cinematográfica. Vejamos: “[...] Além disso, apontam para certas lacunas na maneira como Ferro pensa a relação entre história e cinema: como a linguagem intrínseca ao filme, seja ele documentário ou ficção, interfere no registro de um evento, de um processo ou de um personagem de valor “histórico”? Como o filme com tema histórico, documental ou ficcional traduz o presente ao representar o passado? Quais são as tensões internas do filme, pensadas a partir da sua estrutura narrativa, na tentativa de registrar ou representar fatos históricos?” Cf: NAPOLITANO, M. “A História depois do papel”. In: PINSKY, C.B (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p: 243 e 244. 46

Para o historiador Marcos Napolitano: “O roteiro é o guia básico para o diretor, que pode fazer algumas alterações ao longo da filmagem. Eventualmente, a mesma pessoa pode acumular as funções de argumentista, roteirista e diretor, mas é mais comum o roteiro ser feito por profissional especializado. Cf: NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2005, p: 57. 47 Cf. LEONE, E; MOURÃO, M.D. Cinema e montagem. São Paulo: Ática, 1987. 48 Cf. CAMPOS JR, L de C. Cinema e Possibilidades de Diálogo. (trabalho apresentado ao GT História da Mídia Audiovisual do V Congresso nacional de História e Mídia). São Paulo: Facasper e Cill, 2007.

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narrativo, a construção dos personagens, bem como a composição das cenas, a

relação personagens-espaço, figurino, etc.

Dando continuidade ao processo de investigação da obra de Fellini, a “análise

estrutural” somente é viável se levarmos em conta os indícios de recepção. Recurso

este presente na tríade relação entre autor, público e obra, que são muito utilizadas

no discurso literário.

A luz deste quadro, entre o discurso cinematográfico e literário o

posicionamento do diretor (presentes em depoimentos, entrevistas ou artigos

publicados em jornais e revistas) e a historicidade da produção da película devem

ser analisados em consonância com a análise estrutural do objeto fílmico. No

entanto, o papel do pesquisador somente chega à plenitude através do contato com

o público. Assim, a recepção do objeto fílmico pelo público receptor é o resultado do

momento em que a obra foi produzida.

Com isso, o pesquisador da obra fílmica tem que transcender a própria obra e

buscar compreender como que a película foi recebida pelo público e como este

reagiu frente à produção cinematográfica. O crítico Jean Mitry relata que o público

atribui significado a imagem seqüencial dentro da edificação e elaboração das idéias

do cineasta. Significação que está associada à narrativa, pois a imagem em si não

traz significados, pois a mesma passa a ter significado após entrar em contato com o

público. A busca de algum significado na imagem fílmica, já é por si um exercício

interpretativo.49

Dentro da perspectiva psicológica, o teórico Ernst Hans Grombrich enfatiza

que inserido na interação imagem cinematográfica e espectador existem dois planos:

o do reconhecimento e o da rememoração. Nesse viés, o reconhecimento acha-se

ligado a memória, ao intelecto, e a segunda encontra-se ligado na apreensão

daquilo que é visível, principalmente nas funções sensoriais. Para Grombrich o

espectador tem o papel perceptível e psíquico, que ao estar em contato com a

imagem busca compreendê-la e fazê-la existir, ou seja, o espectador de forma ativa

constrói a sua própria imagem. Desse modo, a percepção visual do público receptor

revela a sua base de conhecimento visual do mundo, capaz de elaborar seu próprio

49 Cf: Apud (ANDRE W, J. D. As principais teorias do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p: 194-196).

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campo imagético. O conhecimento prévio deste permite o preenchimento das

lacunas da representação.50

Neste ponto, o cinema se firma como um meio de comunicação que depende

do espectador para dar significado à narrativa fílmica. A recepção da obra fílmica

está na própria obra que é interpretada segundo características que o espectador

confere a mesma por meio do seu mundo imagético.51

É preciso enfatizar que a imagem cinematográfica é uma construção,

realizada pela junção de recursos e equipamentos próprios ao mundo do cinema,

tais como o som, a iluminação, a fotografia, o roteiro e as câmeras. Nesse contexto,

a produção cinematográfica é uma construção de uma determinada visão da

realidade. Ao produzir uma obra fílmica, as escolhas do diretor influenciam a

execução da mesma, pois é ele quem indica os atores, elabora o roteiro, escolhe os

cenários e aponta a temática que será abordada.52

As características expostas até aqui indicam que o historiador e os estudiosos

dos recursos audiovisuais, ao se ocuparem dos estudos de fontes fílmicas, tornam-

se necessário ainda estabelecer um diálogo com outras formas de expressão, tais

como a imagem, o movimento e o som. Assim, um objeto fílmico permite variadas

leituras, suscetíveis a temporalidades e ângulos de análise distintos.

O olhar metodológico do historiador sobre o objeto fílmico é diferente da visão

do cineasta, do crítico ou do diretor, pois além do significado da produção

cinematográfica, leva-se em conta a sua relevância quanto objeto de cunho

historiográfico. O historiador Marcos Napolitano completa dizendo que:

50 Apud (AUMONT, J. A Imagem. São Paulo: Papirus, 1993, p: 81-90). 51 Para Francis Vanoye e Anne Goliot-Leté, ambos frisam que descrever um filme, ou seja, contá-lo, já é interpretá-lo, pois isso, de certo modo é um processo de reconstrução. Cf: VANOYE, F; GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. São Paulo: Papirus, 1994, p: 52. 52 Pierre Sorlin, professor da Universidade de Paris III, nos diz que um filme não é uma história, nem uma duplicação do real fixado sobre o celulóide, é um mise em scène social; o que ele transmite é uma certa visão da realidade social que abre novas perspectivas de estudos sobre a humanidade. Cf: SORLIN, P. Sociologie du cinema. Paris: Aubier Montaige, 1977, p: 200.

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[...] é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aos diálogos, à caracterização física dos personagens ou a reprodução de costumes e vestimentas de um determinado século. O mais importante é entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme. Obviamente, é sempre louvável quando um filme consegue ser “fiel” ao passado representado, mas esse aspecto não pode ser tomado como absoluto na análise histórica de um filme.

53

Um documento fílmico apresenta as mesmas armadilhas de um documento

escrito. O espectador cinematográfico estabelece uma relação com a produção em

consonância com o seu mundo. O historiador deve observar que a imagem fílmica

não determina por completo o mundo do espectador, sendo antes uma ilusão.

Todavia, nesse conjunto o espectador também exerce um papel ativo frente à

produção cinematográfica, pois ao assimilar e interpretar a imagem fílmica faz por

meio de suas vivências e aspirações. A partir dessa característica, a relação da

História com o cinema pode ser estabelecida da seguinte forma:

[...] O cinema na História; a história no cinema e a História do cinema. Cada uma das três abordagens implica uma delimitação específica. O cinema na história é o cinema visto como fonte primária para a investigação historiográfica; a história no cinema é o cinema abordado como produtor de “discurso histórico” e como “intérprete do passado”; e, finalmente, a História do cinema enfatiza o estudo dos “avanços técnicos”, da linguagem cinematográfica e condições sociais de produção e recepção de filmes.

54

A história do cinema é uma disciplina específica, que possui objetos e

métodos próprios. Inserido nesta disciplina, está à história das técnicas, a história da

Indústria, que trata da produção, da investigação, administração, marketing etc. E a

história das formas que circunscrevem elementos ligados as artes em geral, música

e literatura.

53 NAPOLITANO, M. “A História depois do papel”. In: PINSKY, C.B. (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p: 237. 54 NAPOLITANO, M., op cit., p: 240 e 241. Apud (DUTRA, R. A. “Da historicidade da imagem à historicidade do cinema”. In: Projeto História nº 21, São Paulo, EDUC, nov. 2000, p: 126).

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O cinema na História tem como objetivo verificar como que a história é vista

ou tratada no cinema. O que os historiadores têm verificado é que o filme tem sido

utilizado como um poderoso veículo de dominação e poder.55 As produções

cinematográficas também têm sido usadas como propaganda, mesmo sem a

interferência direta do Estado, os filmes revelam muito da cultura que o produziu,

sempre carregados de ideologia.

Mas, o que dizer sobre a grande maioria dos filmes de ficção e documentários produzidos pela milionária indústria cinematográfica sem a interferência do Estado? Neste caso, narrando histórias, o filme espelha a mentalidade do público ou pelo menos de parcela dele. Porém, merece ser sempre lembrado, que a indústria cinematográfica é nacional – quando se trata de cinema, é impossível deixar de pensar na poderosa indústria americana, o que significa que o surgimento de um filme se dá dentro de um determinado quadro cultural, que sua produção está sujeita a condicionamentos históricos e a história narrada por ele foi emoldurada por determinado quadro ideológico.

56

Um filme não é uma produção neutra, ele traz consigo uma carga de valores e

idéias, sendo testemunha de seu tempo e das mudanças sociais.57 Assim, o filme é

um documento histórico contemporâneo, que variante ao gênero que pertença,

somente alcançara o seu objeto de interpretação e de análise se estiver associado

aos outros documentos de cunho historiográfico. Sobre as particularidades do objeto

fílmico como fonte histórica o professor e pesquisador Antônio Penalves Rocha

(1993, p. 77) ressalta que:

55

O historiador Marc Ferro cita que: “desde os fins do século XIX, já há câmeras filmando pessoas e acontecimentos, notadamente as famílias reinantes. ”Procedimento este que passou a ser muito freqüente após a Primeira Guerra Mundial.” Cf: FERRO, M. Cinéma et histoire. Paris: Denoel Gonthier, 1977, p. 83. 56

Cf: ROCHA, A. P. “O filme: um recurso didático no ensino da história?”. In: FALCÃO, A. R; BRUZZO, C. Coletânia lições com cinema. São Paulo: FDE, 1993, p: 75. 57

Para o crítico Martin A. Jackson, “o cinema deve ser considerado como um dos depositários do pensamento do século XX, na medida em que reflete amplamente a mentalidade dos homens e mulheres que fazem filmes. Do mesmo modo que a pintura, a literatura e as artes plásticas, o cinema ajuda a compreender o espírito de nosso tempo.” Cf: JACKSON, M. A. “El historiador y El cine.” In: ROMAGUERRA, J; RIAMBAU, E. (ed). La historia y el cine. Barcelona: Fontamara, 1983, p: 14. Apud (ROCHA, A. P., op cit., p. 76)

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O historiador nunca deverá contar com algo que o cinema jamais poderá proporcionar-lhe o caráter de documento único para pesquisa, ou seja, o filme é tão somente uma das fontes do trabalho historiográfico; este só atingirá seu objetivo de analisar uma sociedade, ou mesmo um dos seus aspectos, se complementar as informações contidas no cinema com as de outros documentos. O principal motivo desta “limitação” como fonte histórica reside na sua própria riqueza: por se tratar de uma arte, o cinema não tem compromisso com a realidade, apesar de nos múltiplos aspectos de qualquer filme estarem presentes as inscrições históricas do mundo em que ele nasceu.

A História tem sido muito utilizada pela indústria cinematográfica. Nesse

processo, a representação audiovisual da história refere-se à expressão do passado

através da linguagem fílmica. Com isso, o estudioso do mundo das imagens fílmicas

não pode exigir uma fidelidade da produção do objeto fílmico em relação as suas

fontes de informação.58 Neste sentido, na relação da história com o cinema,

destacamos que a indústria cinematográfica auxiliou na interpretação do passado

histórico, tornando-a mais próximo da população em geral. Sobre a representação

cinematográfica da história, Antônio Penalves Rocha (1993, p. 79) nos exemplica

ainda dizendo que:

[...] Tomemos, em primeiro lugar, o filme de ficção com uma determinada ambientação histórica, seja ele drama (inclusive político), aventura, seja comédia. A trama elaborada para a realização de um filme deste gênero será mergulhada na linguagem cinematográfica, para que a sua narrativa passe ao espectador a “impressão de realidade”; assim, a reconstituição histórica forjará o cenário dentro do quais atores desempenharão os papéis requeridos para o desenvolvimento da trama de uma história que será filmada. É verdade que, na maior parte das vezes, o filme histórico conta com a assessoria do historiador para a reconstituição de aspectos da vida de uma época: arquitetura, figurinos, vida política etc.

58

Por isso mesmo, o crítico Angelo Moscariello, ao se perguntar se o filme, recorrendo aos meios que lhe são particulares, pode contribuir para a explicação histórica, responde categoricamente que não – porque sendo uma “arte concreta e ligada ao presente o cinema não pode em caso algum realizar a obra de conhecimento histórico”. Isto se deve ao fato de que a “representação” do passado pelo filme só permite a visualização do seu “aspecto fenomênico e não também do segredo inerente às relações entre os fatos singulares.” Cf: MOSCARIELLO, A. Como ver um filme. Lisboa: Presença, 1985, p: 82 e 83. Apud (ROCHA, A. P., op cit., p. 82)

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A imagem fílmica é um ponto de referência cultural e não uma referência da

realidade. Ao analisarmos uma produção audiovisual fazemos por meio das funções

construtivas da atividade mental.59 Estas questões são fundamentais para

compreendermos a natureza das relações entre história e cinema e como que a

história tem realizado a leitura dos rituais cotidianos do mundo clássico ao

contemporâneo. A construção dos rituais cotidianos na sociedade pode ser

determinada através do diálogo entre Petrônio e Fellini. A representação simbólica

dos rituais cotidianos no Satyricon constitui o objeto central de análise deste

trabalho.

Joseph Campbell, um estudioso de mitologia e religião, afirma que “a

mitologia nos ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre nossa

própria vida”.60 Com este pensamento, os rituais e suas representações devem ser

compreendidos dentro de seu próprio contexto social e cultural. Assim, os ritos e

suas práticas se constituem como um caminho para se alcançar o mito, o historiador

e romancista Mircea Eliade61 na relação entre o mito e o rito cita que: [...]

conhecemos os mitos como “documentos” literários e artísticos e não como fontes,

ou expressões, de uma experiência religiosa vinculada a um rito.

59

FRANCASTEL, P. “Objeto fílmico e objeto plástico.” In: Imagem, visão, imaginação. São Paulo: Martins fontes, 1990, p: 177. Ressalto ainda que Jean Mitry conceba a imagem fílmica como o resultado de um processo de “autoconcentração” do mundo representado. A marca do realizador reduzir-se-ia então a uma espécie de analogon, essencialmente de significação provisória e de sentido imanente. Cf: MITRY, J. Esthétique et Pscychologie di Cinéma. Paris: Editions Universitaires, 1963, p: 121-124. O pesquisador Antoine Ayfre escreve, por sua vez, reafirmando o sentido da construção subjetiva, que “a imagem seria então o testemunho de uma presença encarnada do real e que o realizador faria surgir através de um trabalho de seleção e de ordenação”. Cf: AYFRE, A. Conversion aux images? Paris: Denoel, 1979, p: 29-34 Apud (SALIBA, E.T. “A produção do conhecimento Histórico e suas relações com a narrativa fílmica.” In: FALCÃO, A. R; BRUZZO, C. Coletânea Lições com cinema. São Paulo: FDE, 1993, p. 95. 60

CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Ed. Palas Athena, 1990, p: 12. A palavra mito é conferida por (AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p: 190-191.), como sendo uma fábula, uma narrativa imaginária pertencente à mitologia, porém, desde o fim do século XIX, a palavra designa também uma representação idealizada (da idéia, de um ser, de um acontecimento), ou uma “imagem simplificada, no mais das vezes ilusória.” Nesses sentidos modernos ampliados, ela não está longe do que designa, em sua acepção pejorativa, a palavra “ideologia”: a idéia simplista, enganosa, que determinado grupo ou determinada sociedade se faz de um fenômeno de civilização. Mircea Eliade cita que “todas as grandes religiões mediterrâneas e asiáticas possuem mitologias. Contudo, é preferível não iniciar o estudo do mito tomando como ponto de partida a mitologia grega, egípcia ou indiana [...] sendo preferível começar por estudar o mito nas sociedades arcaicas e tradicionais reservando para uma análise ulterior as mitologias dos povos que desempenharam um papel importante na história.” Cf: ELIADE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991, p: 10. Apud (BISSON, M. P. Mito: o sagrado no cinema contemporâneo: o caso “Drácula” de Coppola. Dissertação de Mestrado – Multimeios/Instituto de Artes. Campinas: UNICAMP, 1997, p: 19). 61

ELIADE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991, p. 138.

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Dessa maneira, se aceitarmos que o rito é o “cumprimento” de um mito,

somos levados a crer que a participação em um ritual nos tornam seres participantes

do próprio mito. Ao estudar “os rituais cotidianos no Satyricon de Petrônio e Fellini”

detectaremos como que muitos estudiosos narram às antigas celebrações dos rituais

observando o seu predomínio na sociedade contemporânea, manifestadas através

da diversidade cultural.

A partir deste prisma, os capítulos que se seguem concentram a atenção na

relação entre a construção do significado da obra de “Petrônio e Fellini” sob a luz da

interpretação teórica do campo imagético. Ao delinear o perfil de ambos os “sátiros”,

chegamos à consolidação da proposta desse estudo que se dará a partir da análise

do objeto fílmico, o Satyricon de Fellini, sem perder de vista a contribuição literária

de Petrônio. A postura interdisciplinar que norteia as fronteiras metodológicas deste

trabalho se pauta na análise bibliográfica e estrutural da narrativa fílmica e literária.

O capítulo que se segue é a ponta do novelo de Ariadne rumo à saída do

labirinto, na tentativa de decifrar o homem pelo homem em seu universo

historicizante.

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O cinema não deveria entrar no museu nem integrar instalações. O museu, como o teatro, é a sociedade burguesa. O cinema é uma arte popular, ele exige a sala escura, na qual podemos nos esconder num canto, onde estamos protegidos pela escuridão, onde não há entreato, nem coquetel, nem casacos de péle, nem olhares – salvo áqueles que circulam entre a tela e os espectadores. E quando o filme termina, e as luzes ainda não estão acesas, nós nos levantamos e vamos embora. (Eugenio Renzi - crítico de cinema italiano em comentário ao longa biográfico de Agnès Varda – Les Plages d’Agnès)

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1 AS FONTES: PETRÔNIO E FELLINI

Onde o ouro é todo-poderoso, de que servem as leis? / Se não tem dinheiro, o pobre perde seus direitos / O cínico, que é tão frugal e severo em público, / secretamente negocia com a verdade. / Até mesmo, Têmis se vende e, em seu tribunal, / a balança pende conforme o vil metal.

(Petrônio, Satíricon - ano 63)

1.1 O SATYRICON DE PETRÔNIO

Romano do século I d.C., Petrônio (Caius Petronius Arbiter) viveu sobre a

égide do governo de Nero. Assim, Paul Harvey62 situa Petrônio como sendo um

cônsul e governador da Bitínia, ocupando posteriormente a convite do próprio Nero o

cargo de árbitro de elegância (elegantiae arbiter), fazendo parte do restrito círculo de

amigos do Imperador.

Tácito, historiador latino descreve Petrônio como um homem refinado e

apreciador do luxo. Na vida privada gostava de praticar o ócio, que o preparava para

a prática da vida pública, retratando a perversão e a depravação. As informações

que nos chegam sobre sua vida pública, mostram que Petrônio era um exímio

administrador, característica atribuída a ele em decorrência da sua capacidade de

atuar e a influência que tinha no meio Imperial. Sobre o relato de Tácito, ver Anais,

XVI, 18:63

62

Cf. HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. 63

Tradução do latim é de Paulo Leminski, Cf: LEMINSKI, P. Satyricon. São Paulo: Brasiliense, 1987, p: 181 Apud. (GARRAFONI, R.S. Bandidos e Salteadores: concepções da elite romana sobre a transgressão social. Dissertação de Mestrado apresentado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/IFCH. Campinas: Unicamp, 1999) e FAVERSANI, F. A Pobreza no Satyricon de Petrônio. Dissertação apresentada ao curso de mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, S.P., 1995, p. 17.

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De C. Petrônio não há muito que dizer. Dormia o dia inteiro e dedicava à noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos ficavam famosos por seus empenhos (indústria). Ele era famoso por sua preguiça (ignavia). Não era considerado um homem que corre atrás do proveito, mas dos prazeres sutis (erudito luxo). Tudo que dizia e fazia era descontraído e sem esforço, e sua simplicidade cativava como uma gentileza. Mas soube ser energético quando no serviço público, primeiro como pro cônsul na Ásia, depois como cônsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vícios favoritos e, como tal, foi aceito no círculo mais íntimo do Imperador Nero, onde reinou como um verdadeiro árbitro da elegância (elegantiae arbiter). Nero nada fazia sem antes consultar seu sofisticado cortesão. Isso suscitou a inveja de Tigelino, outro cortesão, que contra Petrônio arma uma intriga, envolvendo seu nome com conspiradores.

Nesse âmbito, por pertencer à elite romana, a leitura de seus escritos devem

ser feitas de forma cuidadosa, pois retratam o olhar por vezes oficial da corte do

Imperador. Sua obra, Satyricon, é escrita em prosa intercalada com versos que

narram às aventuras de três personagens trapaceiros, sendo eles, Encólpio, Ascilto

e Gíton.64 Assim, no Satyricon, Petrônio vai retratar a vida privada do Imperador, dos

prazeres, da vida cotidiana, do vinho, dos banquetes, dos jogos, das orgias, do

bacanal, dos banhos públicos, os abusos das termas, nas quais se discutiam

política, ostentavam-se fortunas e maquinavam-se assassinatos. O sociólogo

Fernando de Azevedo65 destaca que:

A Roma dos Césares, tão decaída de sua ancianidade gloriosa, não é senão esta cidade retratada por Petrônio, pintor de costumes, e de que, conhecendo-a, como ninguém, dotado de poder de dissecção moral, deu, em dois rasgos de mestre, o quadro verdadeiro, de cujos horrores não se assustavam o seu espírito penetrante e céptico há um tempo. A tela traz por baixo o título de Crotona, mas é de Roma a pintura fiel. Quando esse escritor singular, o „arbitro da elegância‟, no tempo de Nero, aguçou os bicos de pena ou afiou o estilo para esfarrapar o manto de púrpura, sob que se velavam as chagas de uma sociedade corrupta, o que tinha diante dos olhos era, de fato, a cidade arquejante sob a maré de prazeres, que, avolumando-se das cidades da Campânia, sempre inclinadas aos excessos da lascívia, rompera todos os diques das leis moralizantes e já entestava as sete colinas.

64

Nesta dissertação, optou-se pela tradução para o português de todos os nomes apresentados na obra literária. 65

Cf: AZEVEDO, F. de. No tempo de Petrônio. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1962, p. 23.

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A cidade romana, no período do principado, já se mostrava influenciada pelos

costumes estrangeiros, pois com o desenvolvimento do processo de conquista

imperial a cidade de Roma tornou-se um centro de atração. A tradição, os costumes

romanos praticados pelos ancestrais, bem como a religião romana, dividiam seu

espaço com os diversos tipos de culturas e crenças. Sobre os personagens e o

comportamento do homem romano podemos citar as dezesseis Sátiras de Décimo

Júnior Juvenal, satirista e literato do século I d.C, que ao enfatizar sobre os motivos

que o levaram a escrever suas Sátiras, destaca o descaso com àqueles que

detinham o saber, do pouco que se pagava para obtê-lo e dos subterfúgios de uma

Roma que se encontrava envolta da criminalidade, da oposição entre os contrastes

do dia e da noite; de uma Roma multifacetada. Dessa forma, Juvenal se perguntava

“esta cidade criminosa vendo, que férreo coração silêncio guarda!”. (JUVENAL,

Sátira I, p. 38 e 39) 66

A Roma do poeta Décimo Júnio Juvenal era marcada por estes contrastes,

durante o dia, nas ruas se presenciava uma agitação intensa, pessoas andando por

todos os lados, se acotovelando, um barulho infernal se fazia presente. As tabernas,

os barbeiros, os donos de botequim, todos disputavam fregueses, boa parte no grito.

Nas esquinas era fácil avistar cambistas, curiosos encantados com apresentações

artísticas, encantadores de serpentes, mendigos, suplicando por esmolas, enfim,

uma população que se esquadrinhava em meio à agitação e o corre-corre do dia-a-

dia. Durante a noite todo este barulho era substituído por outro, muitas algazarras

causadas em sua grande parte por jovens romanos, que depredavam, e praticavam

violência contra os bens e as pessoas, movimentos de carros de toda a espécie,

boêmios, malandros e vagabundos que andarilhavam pelas ruas. Prostitutas e

“garotos de programa” ficavam a espreita de novos clientes. E eram em meio a este

cotidiano, que o literato buscava desvendar os segredos que a cidade romana

guardava.67

66

Cf: JUVENAL, D. J. Sátiras. São Paulo: Edições Cultura, 1943. 67

Cf: CARCOPINO, J. Roma no Apogeu do Império. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p: 69-70; Cf. também: SALLES, C. Nos submundos da Antigüidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p: 190-200 e SILVA, N. O. O Clientelismo nas Sátiras de Décimo Júnio Juvenal. Iniciação Científica. Maringá: UEM, 2003.

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A “cidade de tijolos” reconstruída por Caio Júlio César Otaviano e

transformada na “cidade de mármore” revelava uma sociedade parasitária, entregue

aos prazeres e a extrema volúpia.68 Os prostíbulos, os desregramentos da família

Imperial, a devassidão do povo romano e a concupiscência das festas,

representadas pela ostentação do luxo e das esplêndidas mesas, eram retratadas

nas pinturas e nos mosaicos eróticos das paredes romanas. Com efeito, a obra de

Petrônio traz muitos elementos do mundo sagrado e do profano, como os rituais

míticos e as orgias.

A história tem muitos elementos de uma extravagância Hollywoodiana: Nero, orgias, salas de mármore, o poder do Palácio e do Fórum Romano, rituais, banquetes, dançarinas nuas, excessos sexuais, em suma, tudo levemente mencionado nos mistérios do Apocalipse de João e referido como a raiz de todo mal pelos televangelistas americanos.

69

As discussões tecidas levam-nos a afirmar que, em meio à sociedade

romana, os cidadãos estavam entregues aos prazeres da vida, todos tinham seu

respectivo valor, ou seja, „assem habeas, assem valeas’ (valia cada um quanto

tinha). Com isso, a sociedade estava dividida entre os ricos e aqueles que não

68

O surgimento de Otaviano no cenário político é marcado por intensos conflitos pessoais direcionados a Marco Antonio, principalmente após o assassinato de Julio César. Quando Roma entrou em guerra com o Egito, Otaviano obteve uma vitória decisiva. Marco Antonio, que considerava Cleópatra como sua rainha, tinha como objetivo transformar o Império Romano em uma monarquia helenística, com capital no Egito. Esse objetivo não foi alcançado o que levou Marco Antonio e Cleópatra, por volta do ano 30 a.C. a cometer suicídio. Pela primeira vez, um único homem mantinha sua supremacia no mundo romano, era Otaviano. O senado proclamou-o Imperador, chegando ao fim o sistema republicano, dando lugar ao Império Romano. O senado passaria a chamar Otavaino de Augusto, que significa “o venerado”. O governo de Caio Julio César Otaviano (27 a.C. – 14 d.C) foi lembrado como uma Idade de Ouro. Cf: FEIJÓ, M.C. Roma Antiga. São Paulo: Editora Ática, 1996; GRIMAL, P. O Império Romano. Lisboa: Edições 70, 1999; ALFÖLDY, G. A História Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989; DE MARTINO, F. Storia Economica di Roma Antica. Firenze: Nuova Italia, 1979; GARNSEY, P & SALLER, R. The Roman Empire: economy, society and culture. London: Duckworth, 1987. 69

Cf. “The story has many elements of a Hollywood extravaganza: Nero, orgies, marble halls of power on the palatine and in the Forum, riotous banquets, nude dancing, girls, sexual excesses, in short everthing hinted at in the mysteries of the Revelation of John and referred to as the root of all evil by American televangelists.” Cf: SCHEMELING, G. “The Satyrica of Petronius.” In: The novel in the Ancient World. New York: E. J Brill, 1996, p: 457. As traduções presentes nesse estudo são do próprio autor (tp – tradução própria)

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tiravam os olhares da fortuna alheia.70 O sociólogo Fernando de Azevedo (1962, p.

24) completa dizendo que:

A devassidão que, desde a manhã, rompia, a céu aberto, no Coliseu, nos espetáculos do Circo Máximo, e no teatro de Marcelo, esgueirava-se, nos ardores da sesta, pelas salas de banhos das termas, para, ao cair da tarde, desenfrear-se, na crueza íntima das cenas lúbricas, a que se armava toda a magnificência asiática dos festins, em que os convivas, refartos dos prazeres da mesa, adormeciam, até noite velha, em coxins de plumas de cisne, nos braços de senhoras de alta estirpe, confundidas, nos extremos da crápula, com as mais belas escravas arrebanhadas de remotas províncias.

A historiografia moderna ressalta que somente uma pequena parte dessa

obra latina chegou ao nosso conhecimento, o episódio mais destacado e estudado

no Satyricon refere-se ao Banquete de Trimálquio, cujo manuscrito foi descoberto no

século XVII. Nesse episódio, Petrônio descreve Trimálquio como sendo um “novo

rico” vulgar, que aceita receber os “aventureiros” para um banquete. Ao falar sobre o

acontecimento, descreve o ambiente, as iguarias oferecidas aos convidados, os

incidentes grotescos que ocorrem durante o jantar, as conversas cômicas, e a

embriaguez de Trimálquio. Petrônio relata ainda as histórias contadas por ele,

sempre fazendo uso do recurso satírico. Assim, o autor do Satyricon acabou sendo

condenado ao suicídio em 66 d.C por Tigelino,71 que acusou Petrônio de

conspiração contra o Imperador.

Todavia, o Satyricon é uma obra polêmica, o que tem despertado o interesse

de muitos estudiosos sobre o assunto, principalmente no que concerne a sua

datação, título e autoria. A historiadora e Prof. Drª. Renata Senna Garrafoni em seu

estudo intitulado “Bandido e Salteadores: Concepções da Elite Romana sobre a

transgressão social”, a partir da análise do Satyricon e das Metamorfoses de Apuleio

ressalta sobre a particularidade do estudo de ambas, destacando as suas

características literárias e seus conflitos sociais. Vejamos o que Garrafoni (1999, p:

38) nos observa sobre Petrônio e o Satyricon:

70

Cf. JUVENAL., Sátira I, 112-115 71

Ofônio Tigelino foi um político romano de origem grega, que exerceu o cargo de prefeito do pretório (62 d.C) sendo um influente conselheiro do imperador Nero.

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Há uma grande discussão entre os pesquisadores modernos para determinar com maior precisão quem seria seu autor, o período em que foi escrita e seu título original. [...] A biografia de Petrônio é bastante imprecisa e desde o período do Renascimento há uma grande dificuldade para se determinar quem foi este homem. A maioria dos pesquisadores concorda que o autor do Satyricon é o Petrônio descrito por Tácito em sua obra Anais (XVI: 18-19) e mencionado, mais brevemente, em algumas passagens de Plínio, o Velho e Plutarco. É bem verdade que, nos outros dois, mencionou-se Tito. Apesar desta diferença, ao que tudo indica, os três falavam da mesma pessoa e, segundo Walsh

72, é bem provável que Tácito tenha se

equivocado. Diante desta situação, considera-se que o nome completo do autor seria Tito Petrônio Níger, cônsul romano durante o ano de 62 d.C., e conhecido como arbiter elegantiae (árbitro da elegância), já que estabelecia padrões de elegância na corte de Nero.

Sobre as incertezas que pairam sobre a produção do Satyricon, cabe

ressaltar o estudo do historiador Fábio Faversani73, que completa a citação acima

afirmando que:

Se há alguma característica que podemos atribuir ao Satyricon com absoluta certeza é a de obra polêmica. É quase impossível encontrar um consenso significativo sobre ela. Sua datação, sua autoria, seu título, os locais em que se ambientam os episódios, a influência do autor e do ambiente literário, sua trajetória de preservação, seu valor literário, a fidedignidade do texto hoje estabelecido em relação ao original, o peso das possíveis interpolações, o tipo de linguagem empregada e, mais do que tudo, o estilo, seu potencial enquanto fonte historiográfica e as intenções do autor foram objeto de franca e aberta polêmica no passado. Mesmo agora, nenhum destes pontos obteve um consenso, ainda que esta ou aquela perspectiva de análise em relação a alguns tópicos tenha atingido hoje uma forte hegemonia.

Ao enfatizarmos estas questões, percebemos o quanto Petrônio era moderno

para o seu tempo, apesar de muitos estudiosos tendo levantado dúvidas quanto à

datação da sua obra. Seus relatos refletem os anos de 63-65 d.C, por expor

características econômicas e apresentar personagens diversos, próprios do seu

tempo, tais como, os gladiadores, os novos ricos, os tocadores de liras com suas

72

Cf: WALSH, P.G. The Roman Novel. Grã-Bretanha: Cambridge University Press, 1995, p: 244 Apud (GARRAFONI, R.S., op cit., p. 38) 73

Cf: FAVERSANI, F. A pobreza no Satyricon de Petrônio. Dissertação de Mestrado apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: USP, 1995, p. 14.

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paródias e sátiras, o que leva-nos a considerá-lo um contemporâneo de seus

escritos.74 Fernando de Azevedo (1962, p. 34) cita que:

Nas páginas do Satyricon, para as quais a pena de Petrônio esparrinhou salpicos de lama da Roma dos Césares, encontram-se, não engranzados ou concatenados entre si, mas esparsos, pensamentos de um lúcido vigor e conceitos imprevistos pela sua delicadeza requintada, que fazem de Petrônio „um contemporâneo do futuro‟. Tem sua filosofia própria, que, espírito refratário à sistematização, não reduziu a corpo a doutrina. Não era um moralista. Ao contrário, céptico, não tinha temperamento para apostolizar convicções ou fulminar, à maneira de Catão, dogmas rígidos de ética e sabedoria. Era antes um semeador de idéias, que tanto sabia pintar ao vivo quadros de corrupção de seu tempo, como da sua pena deixava cair, com certo descupido elegante, as pérolas de fino quilate de sentenças rivais de Sêneca e Públio Siro.

O escritor latino revelava em seus versos as máximas das questões que

permeavam o pensamento romano. A brevidade da vida levou-o a se aproximar da

filosofia epicurista. Assim sendo, o poeta aconselhava a cada um procurar ocupar-se

do que lhe fosse mais agradável fazer, pois não existia sequer algo que pudesse

agradar a todos de forma homogênea. O tédio era o mal da filosofia estóica.75

74

Este período é datado pela historiografia como referente ao governo do Imperador Nero (54-68 d.C). Sucessor do imperador Cláudio, o governo de Nero revelou uma época marcada pela depravação e a crueldade. Durante a sua administração, Roma fora incendiada. Muitos historiadores contemporâneos atribuíram este episódio a sua própria loucura. Ainda em seu governo, realizou constantes perseguições aos cristãos, o que acarretou a crucificação de São Pedro no muro central do Circo de Nero e a decapitação de São Paulo na Via Ostiense. A luz desse quadro, Nero foi o último governador da dinastia Júlio-Claudiana, filho de Agripina (sobrinha e segunda esposa do Imperador Cláudio) com Domício Aenobardo. Sua conduta degenerada, os constantes assassinatos, entre eles, o da própria mãe, forçou o filósofo Sêneca, seu preceptor, a cometer o suicídio. Os atributos de Nero fizeram com seu governo degringolasse. A entrada de cultos orientais e o confisco de bens dos ricos e nobres levaram o Estado à beira da ruína, em grande medida pelo abuso da luxúria e dos caprichos pessoais. Cf: Cf. REQUEJO, J. M. “Introducción general & Introducción”. In: TÁCITO, C. Diálogo sobre los oradores. Madrid: Editorial Gredos, 1999. p: 8; SUETÔNIO. A vida dos doze Césares. São Paulo: Athena, 1950; VANDENBERG, P. Nero: Imperador e deus, artista e bufão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986. 75

O estoicismo é uma escola filosófica fundada por Zanão (336-264 a. C), que defendia a austeridade física e moral, fundada na resistência do homem perante os sofrimentos e as adversidades da vida. O estoicismo opõe-se ao epicurismo, como vimos, pois para os estóicos, o único bem do homem não é o prazer, ou a felicidade, mas sim a virtude. O sábio estóico deve buscar o aniquilamento da paixão, até a apatia, pois esta é a causa do desejo, do vício e da dor. Cf: BRUN, J. O estoicismo. Lisboa: edições 70, 1986. Vêr também as teorias do filósofo Claude Adrien Helvétius, no qual postulava que o comportamento do homem era fundamentado no interesse, visto como um impulso para a obtenção do prazer e a eliminação da dor. Cf: MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001, p. 1314 e 1315.

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Petrônio levou uma vida boêmia, alternando entre os prazeres e os encargos, as

virtudes e os vícios, a indolência e o trabalho.

Toda essa característica mostra-se na construção dos personagens do

Satyricon em relação às aventuras vividas pelos epicuristas na obra de Petrônio, em

grande parte pela busca do prazer e do gozo proporcionados pela vida.

Neste paralelo, o filósofo da linguagem Mikhail Bakhatin considera o Satyricon

como um “Romance de aventuras e de costumes”, 76 sendo convenientemente

empregada essa terminologia por muitos estudiosos da obra. Visualizamos abaixo o

que o próprio Bakhatin77 nos revela ao falar sobre o Satyricon em comparação com

O “Asno de Ouro” de Apuleio:

Passemos ao segundo tipo de romance antigo que convencionamos chamar de „romance de aventuras e de costumes‟. Relacionam-se com esse tipo, em sentido restrito, apenas duas obras: Satyricon de Petrônio (que chegou até nós em fragmentos relativamente pequenos) e O Asno de Ouro de Apuleio (que chegou inteiro), apesar de que elementos essenciais desse tipo tenham sido representados por outros gêneros, principalmente as sátiras e também a diatribe helenística.

Mesmo tendo chegado ao nosso conhecimento apenas os fragmentos, como

bem nos confere o poeta e escritor francês Raymond Queneau na apresentação do

Satyricon78, é possível ter uma visão geral da obra, por meio de uma coerência

76

Esse termo também foi empregado por outros autores, tais como: GRIMAL, P. “Une intention possible de Pétrone dans le Satyricon”.In: Bulletin de L‟Association Guillaume Budé. 3, oct., 1972, p: 297-310; VEYNE, P. “Le „je‟ dans le Satyricon”. In: Revue des Études Latines, 1964, v. 42, p: 301-324; CALLEBAT, L. “Strutures narratives et modes de representation dans le Satyricon de Pétrone.” In: Revue des Études Latines, v. 52, 1974, p: 281-303. Nesse aspecto, estudos sobre o gênero de SILVA, G.J. da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. Campinas: Unicamp, 2001, p: 97 e (GARRAFONI, R.S., op cit., p. 35). 77

BAKHATIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed. UNESP, Hucitec, 1988, p. 234. 78

Neste trabalho optou-se por utilizar como fonte a obra literária PETRÔNIO. Satyricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Sobre Raymond Queneau, vejamos: “Sem chegar a pensar (como Bürger e Bloch, além de mim mesmo, aliás) que só nos resta a trigésima quinta parte, os mais otimistas calculam que nos faltem pelo menos dois terços do Sayricon.” Cf: PETRÔNIO. Satyricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 09.

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narrativa, a maior dificuldade que se apresenta no que tange aos próprios

historiadores, é mapear o que seria “falsificação” e “interpolações”. A partir dessa

visão, o historiador Faversani (1995, p. 30) ressalta os “códices” da obra, pois alguns

tradutores trazem à tona uma parte extensa dos seus escritos. Entretanto, muitos

outros textos de Petrônio nos são apresentados somente por meio de pequenos

pedaços. A construção do enredo como conhecemos na atualidade, deve-se a

contribuição dos eruditos, que buscaram ordenar a narrativa ao mais próximo do

contexto original. Como podemos observar na citação que se segue:

Do mesmo modo, não há nenhum códice que traga o Satyricon sem lacunas ou interpolações e são relativamente raras as sobreposições possíveis de mesmas passagens existentes em códices diversos. Nota-se ainda que, além dos códices do próprio Satyricon, há também breves citações feitas por outros autores e pequenos fragmentos constantes de alguns códices cuja autoria é atribuída a Petrônio. Estes elementos são, em geral, tão parcelares, que é muitas vezes impossível alocá-los com a mínima segurança, daí eles comporem uma documentação à parte, que não nos propusemos a analisar por seu caráter extremamente fragmentário e pelas incertezas que se poderiam levantar quanto a real autoria e datação destes.

Com esse pensamento, o termo Satyricon levantou hipóteses sobre o seu real

significado. Assim, Satyrikos, Satura, Satirae ou Saturae, são formas latinas híbridas

greco-romanas, que representavam aqueles que viviam do prazer sexual, a forma

latina caracterizava-se como um meio de exegese da sociedade romana, de poder

interpretá-la e compreender os indivíduos oriundos de seu próprio contexto social.79

79

Cf. DIHLE, A. Greek and Latin Literature of the Roman Empire. Londres: Routledge, 1994, p: 126-131. Apud (GARRAFONI, R.S. op cit., p: 39). Ainda sobre as principais características do Satyricon, vêr: (C. Marcheri, E. Paratore, G. Devoto, E. V. Marmorale, E. Auerbach etc); PETRONIO. Satyricon. A cura de Luca Canali. Texto latino a fronte. Milão: Tascabili Bompiani, 1991. p: XXIII-XXX; PETRONIO. Satyricon. Introduzione, traduzione e note di Andréa Aragosti. Texto latino a fronte. Milão: Biblioteca Universidade Rizzoli, 1995, p: 79-90. Apud (SILVA, G. J. da. Aspectos da cultura e gênero na Arte de Amar de Ovídio e no Satyricon de Petrônio: representações e relações. Campinas: Unicamp, 2001, p: 101). Cf. GONÇALVES, C. dos R. A cultura dos libertos no Satyricon: uma leitura. Dissertação de mestrado. História. UNESP-FCL/Assis, 1996. Para Walsh, a obra petroniana não deveria ser encarada como a descrição das características físicas de um determinado percurso. Será antes um roteiro burlesco e autobiográfico do herói e dos seus amigos através do “mundo da sátira romana”. Cf; WALSCH, P. G. “The Roman novel.” In: The „Satyricon‟ of Petronius na the „metamorphoses‟ of Apuleius. Cambridge, 1995, p: 10. Apud (FERREIRA, P. S. Os elementos Paródicos no Satyricon de Petrônio e o seu significado. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Edições Colibri, 2000, p. 33).

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Nesse sentido, ressaltamos ainda que, no final do terceiro século a.C., os

escritores romanos desenvolveram um estilo literário próprio, sendo elas a poesia

instrutiva, a História e a Sátira. Universalizada, popularizada e perpetuada, a sátira

seria o instrumento de manejo mais plausível e acessível diante dos “instruídos

políticos”.

A sátira induz ao interesse genérico e literário, despertando a curiosidade

para estudos relacionados aos usos e costumes, festas, características físicas,

assuntos políticos e morais.

Dessa forma, a sátira passou a adquirir uma fisionomia de “caricatura

literária”, ou seja, não se distinguindo muito da caricatura como conhecemos nos

dias atuais, pautada pela „deformação‟ dos fenômenos de ordem física (gênero de

desenho deformado, mas não obrigatoriamente cômico, mas que consistia em

reproduzir, geralmente em termos gráficos, a aparência de uma pessoa, animal ou

coisa; uma cena ou episódio, exagerando-se certos traços com intenção satírica,

burlesca ou crítica), como um nariz grande, barriga avantajada e calvície, existindo

também sátiras que se ocupavam de assuntos relacionados ao campo espiritual,

outras ainda com críticas voltadas ao relacionamento social e afetivo.

Todas as formas satíricas possuíam a intenção de elevar os “pormenores

humanos”, ampliando as dimensões do lado cômico. Assim, no campo literário, a

sátira faz uso do recurso da comicidade com base em caracteres da representação

daquilo que poderia ser o “grotesco”. Este “grotesco” seria conseqüência direta do

emprego de figuras de linguagens, tais como a hipérbole.

Petrônio nos conduz às manifestações sociais e ao panorama cotidiano dos

romanos, construindo um roteiro que vai além do literário, expondo profundas

reflexões sobre a filosofia da história, da crítica sociológica e dos diversos conceitos

satíricos. A arte literária que visa “censurar ou ridicularizar” traz na língua latina seus

instrumentos de comicidade, fazendo parte os trocadilhos, os paradoxos, o estilo

arguto e a ironia.

Particularmente, o lúgubre panorama que Petrônio traça de Roma é

demonstrado pelo seu estilo natural, direto e agudo. Revelando-se uma pessoa

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crítica da sociedade romana, do meio em que se encontrava e de sua própria

condição de poeta.

Levando em consideração o subjetivismo e a experiência social de Petrônio,

passamos a questionar o que os seus escritos nos informam. Assim sendo,

utilizamos o discurso Satírico para extrair temas que denunciam o comportamento

do homem romano buscando compreender as relações políticas no interior desta

sociedade.

No estudo do texto satírico e com base em sua relação com o público, o que a

sátira provoca no leitor? O riso sarcástico ou o riso ingênuo? Na maioria das vezes,

o ato de rir vem acompanhado por algo ou alguma coisa que lhe tenha provocado.

Portanto, o riso não é algo abstrato. Segundo o estruturalista russo Vladimir Propp, o

riso pode ser80:

[...] alegre ou triste, bom e indignado, inteligente e tolo, soberbo e cordial, indulgente e insinuante, depreciativo e tímido, amigável e hostil, irônico e sincero, sarcástico e ingênuo, terno e grosseiro, significativo e gratuito, triunfante e justificativo, despudorado e embaraçado. Pode-se, ainda, aumentar esta lista: divertido, melancólico, nervoso, histérico, gozador, fisiológico, animalesco. Pode ser até um riso tétrico!

O riso encontra-se ligado a certos aspectos e atos do homem que levam à

construção e a encenação de uma comédia, mas o rir natural de algo que seja

engraçado torna-se diferente quando este ato é aplicado à arte literária. Este riso

literário é o “riso da zombaria”, facilmente identificado dentro de uma reunião de

amigos, por meio de piadas e ironias. O “riso de zombaria” aproxima-se muito da

comicidade, e tanto a comicidade quanto o riso da ridicularização são focalizados

dentro da esfera do satírico. Com isso, por que e do quê as pessoas riem? O que

pode ser cômico? O que provoca o riso? Vladimir Propp (1992, p. 29) dá-nos a

resposta, dizendo que:

80

PROPP, V. Comicidade e Riso. São Paulo: Ética, 1992, p: 27-28.

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Aqui vemos que é possível rir do homem em quase todas as suas manifestações. Exceção feita ao domínio dos sofrimentos, coisa que Aristóteles já havia notado. Pode ser ridículo o aspecto da pessoa, seu rosto, sua silhueta, seus movimentos. Podem ser cômicos os raciocínios em que a pessoa aparente pouco senso comum; um campo especial de escárnio é constituído pelo caráter do homem, pelo âmbito de sua vida moral, de suas aspirações, de seus desejos e de seus objetivos. Pode ser ridículo o que o homem diz, como manifestação daquelas características que não eram notadas enquanto ele permanecia calado. Em poucas palavras, tanto a vida física quanto a vida moral e intelectual do homem podem tornar-se objeto de riso.

Portanto, identificar o cômico depende tanto do gênero de quem olha quanto

da própria pessoa que se olha. O sujeito como indivíduo pode revelar

involuntariamente seu lado humorístico ou então, revelar quando outro o identifica

ao zombá-lo. Dentro desta lógica, suscitar o riso no cotidiano é o mesmo que

suscitá-lo na arte. O riso da grande maioria das obras literárias é exatamente o meu

e o seu riso, ou seja, o riso do dia-a-dia.

Com efeito, a comicidade consiste num agrupamento da ação de dados

objetivos do homem, como já visto, o riso acontece quando algo cômico ocorre, mas

nem sempre o cômico provoca o riso, este depende ainda de condições de ordem

histórica, social e pessoal: “É evidente que no âmbito de cada cultura nacional,

diferentes camadas sociais possuirão um sentido de humor e diferentes meios para

expressá-lo”.81

Neste sentido, o Satyricon revela sua importância para o estudo do mundo

romano. A linguagem empregada por Petrônio chama a atenção sobre sua própria

existência material composta por uma narrativa própria, de interação entre texto e

contexto. Suas palavras podem ser usadas como expressão de pensamentos,

objetos e sentimentos que foram representativos de seu tempo, isto é, século I d.C.

Sublinhamos ainda que, imersos a essa visão teórica, a obra literária

Satyricon não é um romance realista, pois se apresenta como um discurso satírico,

com caracteres lingüísticos específicos, tais como o emprego de paródias, com

81 PROPP, V., op cit., p: 32.

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discursos cômicos e irônicos. O filólogo alemão e crítico de literatura Erich

Auerbach82 nos completa dizendo que:

Na sátira conservou-se certamente bastante coisa que segue o mesmo sentido, mas a representação não é tão amplamente disposta, mas antes moralista; tende mais à crítica de alguma característica viciosa ou ridícula. O romance, finalmente, fábula milesiaca, gênero ao qual pertence, no fim das contas, a obra de Petrônio, está, em outros fragmentos ou obras que conservamos tão fortemente carregado de elementos mágicos, aventurosos, mitológicos e, sobretudo, eróticos, que de maneira alguma pode ser considerado uma imitação da vida quotidiana de então – sem falar da estilização irreal e retórica da linguagem.

Com base nessas afirmações, a obra mostra-se como um “retrato” teatral da

vida romana na época de Nero. Ao expor os diálogos do banquete de Trimálquio,

Petrônio nos oferece subsídios para compreender o modo em que viviam as

camadas mais baixas da corte do Imperador, principalmente ao expor as expressões

e as gírias latinas do período Imperial. O romance é narrado em primeira pessoa,

pelo personagem Encólpio, que juntamente com Gíton viajam pela Itália sem um

destino definido, perseguidos pela ira do deus Príapo, que o torna impotente pela

difamação ao culto do “deus menor”. O Professor e pesquisador de Literatura

Clássica Cláudio Aquati nos diz que83:

Nos trechos remanescentes, o Satíricon conta as aventuras e desventuras de dois rapazes que perambulam pelo sul da Itália, nas imediações de Pompéia e Nápoles. Mas é possível que, nas partes perdidas, eles tenham começado sua viagem bem mais ao norte, na cidade de Massília (hoje, Marselha). Um deles é Encólpio, o narrador e personagem principal. Jovem bissexual, ciumento, covarde e violento, é um estudante que aparentemente conhece as letras, a retórica em particular. Acompanha-o Gitão, adolescente que tem por volta de dezesseis anos, um homossexual efeminado, volúvel e dissimulado. [...] Assim, presume-se que, partindo de Massília, em determinado momento Encólpio tenha profanado o culto de Príapo, deus da permanente ereção, e, por isso teria incorrido em sua ira. Logo após essa ofensa, o rapaz teria conhecido Gitão, por quem se apaixonou. Depois disso, é sempre o ciúme que parece mover Encólpio. Esse sentimento, como tudo indica, fora lhe instilado como parte da própria vingança de Príapo. Além desse ciúme doentio, Príapo castigara Encólpio com uma

82

Cf: AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1987, p: 26. 83

AQUATI, C. “Pósfácio”. In: Petrônio. Satyricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p: 224 e 225.

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impotência sexual intermitente. Dirigindo-se para o sul da Itália, provavelmente num movimento de fuga, como só ia acontecer em todo o Satíricon, os moços ter-se-iam encontrado com os lascivos Trifena e Licas – que aparecerão novamente na parte conhecida - , personagens que eles teriam de alguma forma lesado, roubando-os e traindo sua confiança. Já na Itália meridional, na região da Campânia, aceitariam a companhia de Ascilto, com quem formariam um tumultuado triângulo amoroso. Nessa altura, teriam tomado contato com um certo Licurgo, que acabaria morto e assassinado pelo ciumento Encólpio.

Dessa forma, nas andanças de aventura, contracenam com vários

personagens, tais como Ascilto, que passa a interferir na relação de Gíton com

Encólpio; pelos caminhos encontram ainda: “Agamêmnon, Eumolpo, Licas, bruxas,

as sacerdotisas do deus Príapo84, libertos, ricos e pobres”. A narrativa é permeada

de histórias de naufrágios, roubos, bruxarias, prazeres gastronômicos e orgias.

Sobre o que foi dito, justificamos com as observações do sociólogo Fernando de

Azevedo (1962, p. 42):

Petrônio foi um dos precursores do romance popular, é criar tipos capazes de viverem, daí por diante, a vida intensa da arte, personificando um caráter, um temperamento, um vício ou um feito de espírito. Todos os que o lêem, sofrem o encanto de uma sensibilidade flexível e viva, que vai até o fundo dos caracteres e de uma intuição psicológica com que parece envolver e prolongar as suas personagens. Ele é sempre fremente e humano. As figuras que põe em cena, homens e mulheres, pensam e sentem, falam e agem de acordo com o seu meio social, de que ele registra as mais ligeiras palpitações de vida, com uma arte de abreviações, em que as coisas se tomam objetivamente e bastam alguns toques essenciais para evocar uma fisionomia, fixar um tipo ou apanhar em flagrante um aspecto da sociedade de seu tempo. O Satyricon, com a sua mistura de simbólico e burlesco, com o seu realismo cortante aliado a um gosto delicado das coisas transparentes, e com suas notações pitorescas, constitui o estudo dos costumes e das idéias, da vida intelectual e social, e de algum modo a história interna e moral de Roma, no tempo de Petrônio.

84

Na mitologia grega era o deus da fertilidade. Assim, Príapo apresentava como característica o falo ou o membro genital enorme. O culto provavelmente surgiu no século IV na Ásia Menor, na cidade de Lâmpsaco. Hoja chamada Lampsaki, situa-se às margens do Helesponto, estreito que fica no Quersoneso, região da Trácia, que corresponde ao atual estreito de Dardanelos, na Turquia. A figura de Príapo originou-se das imagens fálicas diante das quais se realizavam as orgias dionísíacas. Nas festividades de Dionísio, ocorria a falofória, procissão em que um enorme falo era transportado pelo falófaro, sacerdote “que porta o falo”. O culto sacro e profano de que Príapo foi objeto em Roma abrangeu todas as ordens sociais e foi preponderantemente privado. Entretanto, considerado como uma “divindade humilde” foi religiosamente muito cultuada entre as ordens sociais mais baixas. Cf. OLIVA NETO, J. A. Falo no Jardim: priapéia Grega, priapéia latina. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 15-32

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O Satyricon constitui um importante documento histórico para se

compreender as minúcias da vida do povo romano, da expressão da alma popular

latina por intermédio dos contos populares, dos mitos e símbolos, das lendas, das

canções, do folclore. Com relação à divisão dos episódios no romance, adotamos as

ações descritas por Fábio Faversani. À luz desse quadro, destacamos:

Primeira parte – Puteoli ou outra cidade da Campânia (?), próxima a Nápoles. Aqui ocorrem as primeiras aventuras de Encolpius – que narram em primeira pessoa – e dois companheiros: Acyltos e Giton. Aparecem, de forma destacada, dois episódios: o do combate retórico no pórtico (cc. 1-25, e o da sacerdotisa Quartilla. Outras cenas se desenrolam em prostíbulos, albergues, pequenos mercados e outros cenários urbanos (cc. 1 a 25) Segunda parte – Cena Trimalchionis. Constitui praticamente a única parte explorada pela historiografia. Introduz o leitor na casa de Trimalchio, um liberto milionário, que oferece um lauto banquete no transcorrer do qual, além de explicar a origem de sua fortuna, expõe suas idéias, hábitos e cultura. Nesse trecho, falam escravos, libertos ricos e pobres, além de personagens de origem livre (cc. 25 a 78) Terceira parte – Na praia com Eumolpus. Ascyltos deixa de compor o trio de Protagonistas e aparece Eumolpus, um velho poeta, que o integrará. Esta cena se dá em um lugar próximo ao mar (talvez o Golfo de Nápoles). Dois episódios se destacam: no primeiro, passam por uma pinacoteca e examinam a arte clássica e, no segundo, se envolvem em um conflito dentro de uma hospedaria (cc. 89 a 115). Quarta parte – Caminho de Crotona. Os protagonistas embarcam em um navio que pertence a Lichas, do qual fugiam Encolpius e Gíton. A embarcação naufraga. Eumolpos escreve um extenso poema, o da Guerra Civil (c. 125 a 141). Quinta parte – Crotona. O trio consegue enriquecer através de uma farsa que ilude toda a cidade. São descobertos e Eumolpos é morto ritualmente pela população. Encolpius e Giton escapam. Final (c. 125 a 141)

85

O Satyricon é tributário da “Odisséia”, pois se estima que a obra completa

seja maior que os “dezesseis livros” conhecidos, podendo chegar a vinte livros, com

um volume aproximado de mil páginas.86 O Professor de Estudos Clássicos Gareth

85

Cf: FAVERSANI, F., op. cit., p: 15-16 e Apud (GARRAFONI, R.S., op cit., p: 41) 86 Sobre a influência da Odisséia no Satyricon, cabe ressaltar que como na obra de Homero, o herói do Satyricon empreende-se a uma longa jornada. E tal qual como na Odisséia, o protagonista do Satyricon de Petrônio se vê perseguido por um deus. No que diz respeito a certos episódios, a

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Schmeling cita que essa idéia de que a obra original de Petrônio estaria dividida

entre vinte livros, podendo chegar também a vinte e quatro livros é especulativa, pois

as informações sobre sua produção original são fragmentárias. Sobre esse parecer,

e apesar das especulações Schemeling confere a divisão da obra em vinte e quatro

livros. Observemos a citação com a divisão da obra no original traduzido do latim

para o inglês proposta por ele:

A noção de que o Satyricon é constituído de 24 livros é altamente especulativo. Não sabemos se Petrônio tinha concluído o Satyricon no momento de sua morte em 66 d.C, ou mesmo se ele teve uma idéia de uma sistemática da obra. Dentre os elementos de prova que podemos especular, o Satyricon no original poderia ter algo parecido com isto:

87

Porém, mesmo o Satyricon sendo uma obra fragmentária, serve como um

importante referencial para compreendermos a cultura da sociedade romana,

principalmente para o estudo dos “excluídos”. Petrônio inova a literatura latina ao

dirigir seus olhares para os mais diversos extratos da sociedade do período do

principado romano, por meio do referencial da fonética latina, isto é, do “latim

vulgar”.

A arte, quase pictural, com que, em quadros cheios de colorido e movimento, recria a atmosfera e sacode de vida o ambiente e as figuras, alia-se a uma observação psicológica, rica de malícias sutis e profundas, de que o autor do Satyricon guarda o segredo, entre os latinos. Sentindo-se bem na perfídia, e movendo-se entre os vícios com uma destreza tranqüila que nunca outrem atingiu, na antiguidade, é implacável na condenação do ridículo, que sabe surpreender, com olhar vigilante, ainda nos seus aspectos fugitivos. O que, no entanto, empresta ao Satyricon um caráter de fino humorismo e de ironia penetrante, é a impagável ingenuidade, com que Petrônio narra às coisas mais torpes e ridículas.

88

referência para com a Odisséia é irrefutável, como a cena em que a mulher com quem Encólpio tem uma frustante experiência amorosa chama-se Circe, mesmo nome da deusa em Odisséia que transforma os marinheiros de Ulisses em porcos. Após vinte anos de sua partida, Ulisses é reconhecido na sua volta a Ítaca por uma velha ama, que o reconhece por meio de sua cicatriz adquirida ainda na juventude. No Satyricon, dentro da barca de Licas, este reconhece Encólpio pela genitália. 87

Cf. “The notion that the completed Satyrica consists of 24 books is highly speculative. We do not know if Petronius had completed the Satyrica at the time of his death in A.D 66, or if he had even an idea of a systematic Satyrica. From the evidence we can speculate that the Satyrica in the original might have looked something like this:” (SCHMELING, op cit, p. 460) (tp) Vêr: Apêndice I. 88

AZEVEDO, F de.,op cit., p. 66.

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Cabe ressaltar que Petrônio ao fazer uso do “exagero”, do recurso cômico, da

justaposição de elementos incompatíveis, constrói um tipo de realidade, mais voltado

à reflexão do que propriamente a “realidade do momento”. Assim, mediante os

diferentes olhares sobre os diferentes ângulos da obra, construímos a nossa própria

realidade sobre o olhar de Petrônio, sempre atento às fronteiras do anacronismo e

das incoerências da formação do texto histórico. O uso de uma metodologia

apropriada, específica é que permite o inovar da obra literária do Satyricon que

sobrevive há mais de dois mil anos, sempre propondo a cada estudo uma nova

forma de compreender não somente a Roma de Petrônio, mas os alicerces da

sociedade moderna ocidental. Para isso, consultamos as reflexões de Aquati (2008,

p. 235) e do pesquisador René Martin89 respectivamente:

Em relação a tradições literárias mais cristalizadas, o Satyricon inova ao promover mudanças nas ações e emoções do herói, que perde todo o senso sociopolítico e permanece com os valores pessoais individualizantes, isto é, sem se importar com qualquer significado para a coletividade. Ao assumir outra perspectiva ideológica, Petrônio constrói uma obra que explora justamente as perturbações das relações humanas O que ele pinta é a realidade de seu tempo; mas ele a via, como todo criador, através do prisma de sua própria sensibilidade; ele procede, o mais freqüentemente, à maneira de um caricaturista, aumentando os traços e acentuando as características. [...] Eu escuto e você diz, mas certamente, como Flaubert dizia: „Madame Bovary sou eu.

90

Assim, a obra de Petrônio representou um confronto às idéias tradicionais,

principalmente no que se refere à história da literatura antiga. Sua herança literária

pode ser verificada nos escritos do literato francês Gustave Flaubert em Madame

Bovary, do escritor francês Jacques Anatole François Thibault, do romancista Joris-

Karl Huysmans, do poeta irlandês William Butler Yeats e do escritor Oscar Wilde;

bem como do escritor francês Eugène Marcel Proust, do poeta e músico Ezra

Pound, da escritora James Joyce, do poeta modernista e crítico literário Thomas

Stearns Eliot, do escritor norte americano Henry Miller, do escritor Louis-Ferdinand 89

Cf: MARTIN, R. “La „Cena Trimalchionis‟: lês trois niveaux d‟um festin.” In: Bulletin de l‟association Guillaume Budé, vol. 3, 1988, p: 239 Cf: MARTIN, R. Le Satyricon Pétrone. Foundateurs Textes. Paris: Ellipses, 1999, p. 232-234. 90 FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew: Rios de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 127.

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Céline, Aldous Husley, também do escritor estadunidense Francis Scott Fitzgerald e

do romancista Gore Vidal.

O Satyricon também pode ser conferido no campo cinematográfico por

Federico Fellini, que ao fazer uma releitura do passado, usa de uma liberdade única,

deliberada pela crítica cinematográfica italiana como felliniana, pois mesmo usando

de um esboço da realidade de seu tempo, Fellini mantém aspectos originais da obra

de Petrônio. A produção data de 1969 e apresenta um convite a recompor o

passado clássico por meio do mundo moderno, o da cinematografia.

E assim, o mito de Petrônio começa. Sua morte é traduzida nos arquétipos nobres da literatura popular romana, tornando-se um importante referencial ainda em obras como Jeremy Taylor‟s em The Rule and Exercise of Holy Dying (1978), Henryk Sienkiewicz‟ Quo Vadis (1896), Nicholas Blake‟s mystery the Worn of Death (1961), e Federico Fellini com o filme Satyricon (1969).

91

Ao analisarmos uma produção cinematográfica em consonância com a obra

literária, salientamos a necessidade de se pensar nas particularidades do texto

verbal e de um não-verbal. Para compreendermos os rituais do Satyricon como uma

forma de Linguagem Simbólica, propomos o estudo da teoria dos símbolos por meio

da relação autor, público e obra.

[...] Relacionar texto e contexto: buscar os nexos entre idéias contidas nos discursos, as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de determinações extra textuais que presidem a produção, a circulação e o consumo dos discursos. Em uma palavra, o historiador deve sempre, sem negligenciar a forma do discurso, relacioná-los ao social. A História é sempre texto, ou mais amplamente, discurso, seja ele escrito, icnográfico, gestual etc., de sorte que somente através desta descrição dos discursos que exprimem ou contêm a História poderá o historiador realizar o seu trabalho.

92

91

Cf: “And so the myth of Petronius begins. His death is translated into the archetypal death of noble Romans popular in literature an becomes an important part in such works as Jeremy Taylor‟s The Rule and Exercise of Holy Dying (1978), Henryk Sienkiewicz‟ Quo Vadis (1896), Nicholas Blake‟s mystery the Worn of Death (1961), and Federico Fellini‟s movie Fellini-Satyricon (1969).” (SCHMELING, op cit., p. 459) (tp) 92 Cf: CARDOSO, C.F; VAINFAS, R. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 378.

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Com esta visão, passamos a tecer o Satyricon de Fellini, como um mediador

do mundo Clássico ao Contemporâneo, da busca pela intertextualidade, da leitura

da obra clássica por meio da produção fílmica, evidenciando novas abordagens de

leitura do passado romano e da singularidade do mundo moderno; o foco para

transitarmos entre um período e outro passa a ser o cineasta: Federico Fellini.

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[...] a ficção não seria o avesso do real, mas uma outra forma de captá-la, onde os limites da criação e fantasia são mais amplos do que aqueles permitidos ao historiador [...]. Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta [...] o que nela se resgata é a reapresentação do mundo que comporta a forma narrativa. (Sandra J. Pesavento. Relação entre História e Literatura e Representação das Identidades Urbanas no Brasil - século XIX e XX). [...] para a história, tanto a estrutura da narrativa como seus detalhes são representações da realidade passada. E mais: fundamentalmente pretende que a narrativa seja uma representação verdadeira [...], a ficção não tem essa pretensão. (Helena Bomeny. Encontro suspeito: História e Ficção).

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1.2 O SATYRICON DE FEDERICO FELLINI

Aceita-me tal como eu sou. Só então poderemos descobrir-nos um ao outro.

(Federico Fellini) Cinema-verdade? Prefiro o cinema mentira. A mentira é sempre mais interessante do que a verdade.

(Federico Fellini)

Federico Fellini ao compor o filme Satyricon realiza um esboço satírico da

revolução sexual dos jovens de seu período. O cineasta nos informa que ao reler

Petrônio, o enredo tinha lhe causado admiração, certo fascínio com a construção da

história, principalmente pelos fragmentos e as partes que estavam faltando da

mesma.

Com esse pensamento tomou a iniciativa de reconstruí-la, mas não de forma

positivista, documental, mas levando em consideração as influências do seu meio,

baseado em seu olhar cinematográfico sobre um período distante e que lhe

perseguia em seus sonhos.

A relação de Fellini com o mundo dos sonhos estava ligada pela necessidade

que tinha de buscar decifrar-se, não somente a si próprio, mas também àqueles que

o cercavam. No conjunto das relações entre a realidade e a fantasia Fellini (1995, p.

113) nos relata:

[...] No entanto a linguagem dos sonhos é a mesma de um filme e o filme é um sonho. Podemos dilatar o espaço, dar saltos no tempo, fazer aparecer e desaparecer as pessoas sem razão aparente. Assim que nos lembrarmos de um sonho, pensamos nas perspectivas e nos personagens estranhos, mas, sobretudo na luz indefinível, aquela que se associa a uma consciência livre. Ainda mais quando essa luz revela e esconde nossas mais profundas emoções; eu tento reproduzi-la no estúdio, na esperança de tornar meus filmes „sonháveis‟.

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A necessidade de nos conhecermos como seres transformadores do meio em

que estamos imersos, bem como as relações com o “outro” caracterizava a lógica de

Fellini de anularmos os limites entre a concepção de realidade e fantasia.

Para o cineasta é por intermédio dos sonhos que nos expressamos, somos o

que somos na expressão do “eu”, na psique do pensamento. Vejamos o que Fellini

(1986, p. 119) ainda nos fala dos motivos que o levaram a trazer o Satyricon do

universo literário para o mundo das telas:

Juntamente com Casanova, com o Decameron e o Orlando furioso. Satíricon fazia parte, desde os tempos de Os Boas-vidas, dos filmes que prometia aos produtores como uma satisfação, em troca pela Estrada e tudo o mais que me interessava. Mas nunca tinha pensado em manter verdadeiramente essa promessa. Durante a convalescença da pleurite alérgica, reli Petrônio e fiquei fascinado por um particular que anteriormente nem havia notado: as partes que faltavam, isto é, o escuro, entre um episódio e outro. [...] Convalescendo em Manzina, na pequena biblioteca de uma pensão, caiu em minhas mãos Petrônio, tornando a me provocar uma grande emoção. Me faz pensar nas colunas, nas cabeças, nos olhos que faltavam, nos narizes quebrados, em toda a cenografia sepulcral da Ápia Antiga, ou em geral, aos museus arqueológicos. Fragmentos esparsos, pequenas armas que reapareciam daquilo que ainda podia ser considerado um sonho, em grande parte remoto e esquecido. Não uma época histórica, filologicamente reconstruída sobre documentos, positivistamente acertada, mas uma grande galáxia onírica, afundada no escuro, entre o brilho de gelos flutuantes, boiando em nossa direção. Creio que fui seduzido pela ocasião de reconstruir esse sonho, a sua transparência enigmática, a sua clareza indecifrável. [...] O mundo antigo, disse a mim mesmo, não existe mais, mas não há dúvidas de que sonhamos com ele. O esforço seria no sentido de anular os limites entre sonho e fantasia, de inventar tudo e depois objetivar essa operação fantástica para poder explorá-la como qualquer coisa ao mesmo tempo intacta e irreconhecível.

Tendo em vista o que já foi dito sobre o Satyricon, enfatizamos que a obra

fílmica é composta por cores que tem como referencial a pintura do mural de

Herculano e Pompéia.93 Assim, a transposição do espaço pictural para o espaço

93

Pompéia (Pompéii) era uma antiga cidade da Campânia, ao sul da Itália. Fundada pelos Oscos foi dominada pelos gregos no século VIII a.C e ocupada pelos etruscos no século VII. Sofreu invasão dos Samnitas no final do século V a.C, aliando-se a Roma no século III. Ao participar da Guerra Civil do século I a.C, tornou-se uma colônia romana. Em 79 a.C Pompéia foi destruída pela erupção do vulcão Vesúvio. Herculano (Herculaneum) cidade menor que Pompéia também acabou sendo arrasada pela erupção do vulcão Vesúvio. As escavações arqueológicas permitiram reconstruir o cotidiano dos romanos na Antiguidade. O Satyricon de Petrônio faz referência aos usos e costumes dos “novos-ricos” que moravam em Pompéia, anos antes da erupção do vulcão. A epigrafia tem-se

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fílmico leva o espectador para o mundo romano proposto por Fellini. A função

estética elaborada pelo cineasta é resultado da mistura dos sons e das formas. A

filósofa e crítica da literatura, a Prof. Dr. Gilda de Mello e Souza nos esclarece

dizendo que94:

[...] Desde o início, quando a figura de Encólpio, em pé, ao lado dos fragmentos do afresco, desliza graciosa, paralela ao muro, sentimos que penetramos no espaço da pintura romana – restrito, emparedado, sem escolamento de planos, onde lemos as formas linearmente, como um friso. Logo as equivalências se sucedem felicíssimas, e o filme abandona qualquer intenção arqueológica, para conservar, na obsessão ininterrupta do fogo, o vermelho incandescente dos afrescos da Vila dos Mistérios; no céu e no mar, os azuis intensos. A utilização da cor passa de abstrata a violentamente emocional, mas a composição das cenas continua repetindo com fidelidade o espaço retalhado dos interiores romanos, a desolação da paisagem, na proximidade seca das rochas. Nesta perspectiva, a névoa e o vento, recurso muito fácil, de que Fellini abusa, perdem o sentido de conotação mecânica de mistérios e horror, para assumir a função estética de esmaecer os sons e as formas: o equivalente de transparência azulada da têmpera, na pintura da casa de Lívia, por exemplo.

Em seus filmes, Fellini não apenas priorizava a imagem em si, mas dava

uma singular importância também à sonorização. A expressão por meio da

dublagem era o que dava significado às suas “figuras”. Na relação da imagem com o

som, Fellini (1986, p. 72) diz que:

Provavelmente no início experimentei muito o condicionamento narrativo da história, fazia um cinema mais paraliterário do que plástico. Seguindo adiante, confiei mais na imagem, e cada vez mais tento prescidir das palavras enquanto filmo. É durante a dublagem que volto a dar grande importância aos diálogos. Nisto, sou diferente de Antonioni, que talvez, para exprimir tudo mediante a imagem, insiste ostensivamente, com monótona severidade, no objeto. Eu sinto necessidade de dar ao que é sonoro a mesma expressividade da imagem, de criar uma espécie de polifonia. É por causa disso que sou contrário, tão freqüentemente, a usar o mesmo ator, o rosto e a voz. O importante é que o personagem tenha uma voz que o torne

ocupado em estudar os grafitos presentes nas paredes de Pompéia. Muitos dos grafitos tratam de questões ligadas a propaganda eleitoral, aos anúncios de espetáculos, versos de poetas, sátiras aos ricos avarentos, proprietários de tabernas que misturavam água ao vinho; alfabetos rabiscados por crianças e grafitos que envolviam a sexualidade do homem na antiguidade. Sobre o cotidiano romano em Pompéia Cf. CORNELL, T e MATTHEWS, J. “A vida urbana em Pompéia. In: Roma: legado de um Império. Rio de Janeiro: Edições del Prado, 1996. v.1 p: 86 e 87. 94

Cf: SOUSA, G. de M. “Fellini e a Decadência”. In: Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 139-140.

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ainda mais expressivo. Para mim, a dublagem é indispensável, é uma operação musical com a qual reforço o significado das figuras. De nada me serve a gravação direta. Muitos ruídos no som direto são inúteis. Nos meus filmes, por exemplo, não se ouvem quase os passos. Estes são ruídos que o espectador percebe apenas mentalmente, e portanto não há a necessidade de sublinhá-los: assim, se eles são ouvidos realmente, perturbam. Eis porque a trilha sonora é um trabalho para ser feito à parte, depois de todo o resto, juntamente com a música.

Nesse sentido, a relação da imagem com o som para Fellini tinha muito a ver

com a construção da memória, do pensamento, da busca pela “identidade”. E a

memória estabelecia um jogo dialético com as lembranças, de conferir um som às

imagens que nos recordamos. Assim, por intermédio das lembranças ou através da

memória, ou das lembranças que “construímos” com a memória é o que nos destaca

como seres únicos e históricos.

[...] A lembrança pode ser real ou inventada, como é o caso da maioria das minhas lembranças. A memória, ao contrário, é completamente diferente: nós entramos numa dimensão entre o paranormal, o espiritual e alguma coisa que vivemos desde sempre. A memória nem tem necessidade de se exprimir através das lembranças. É um composto misterioso, quase indefinível, mas que nos liga a alguma coisa que, às vezes nós mesmos nos lembramos de tê-las vivido: os acontecimentos, as sensações que não sabemos definir, mas que confusamente sabemos que existiram. Assim, um artista – perdoe-me esta definição um pouco orgulhosa e desproporcionada -, um criador tem um conhecimento verdadeiro da memória, que pode lhe fazer lembrar que nunca apareceram de fato no contexto de sua vida.

95

A teórica política alemã Hannah Arendt em seu texto “O conceito de História –

antigo e moderno” 96 relata a sua aproximação com o conceito “Histórico”, quanto se

trata da relação entre História e Memória. Com isto, tanto Hannah Arendt como o

filósofo e sociólogo Walter Benjamin97 consideram que os vestígios passados

95

Cf: FELLINI, F., op cit., p. 24. 96

Cf: ARENDT, H. “O Conceito de História – antigo e moderno”. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 43-126. 97

Cf: ARENDT, H. “Walter Benjamin”. In: ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p: 133-176. Sobre o conceito de “História”. Cf também: BENJAMIN, W. “Sobre o conceito de História”. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222 e segs.

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servem para elucidar os acontecimentos futuros. Nessa postura “Clássica” da

História comparam determinadas experiências históricas como pérolas que estão no

fundo do mar esperando um pescador trazê-las à superfície. O historiador seria este

pescador que vai até a profundidade da experiência humana e não para trás, como

no tempo cronológico.98

Para Arendt em diálogo com Benjamin, o tempo histórico, da memória

histórica é constituído por fragmentos, por rupturas e não formado por causalidades.

Com este pensamento, a concepção de memória e História para os gregos exercia a

função de salvar os feitos do homem do esquecimento, para que com isso possa ser

lembrado na posteridade.99 A professora Jacy Seixas100 da Universidade Federal de

Uberlândia (UFU), nos diz que a memória e a história nos estabelecem uma relação

conflituosa. Com isso, visualizamos:

Ao debruçar sobre a memória, a historiografia contemporânea pouco tem recorrido às reflexões da filosofia ou da literatura, mas tem estabelecido com a sociologia seu diálogo preferencial. De fato, é a sociologia da memória de Maurice Halbwachs que se constitui na base teórica fundamental à maioria dos trabalhos historiográficos. Neste sentido, é importante assinalar a influência de Halbwachs – que elabora, em 1925, uma sociologia da memória coletiva – sobre Pierre Nora, que no terreno historiográfico elaborará a divisão e oposição entre memória e História. Escreve Nora, em 1984, de forma provocativa: Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que tudo os opõe. Nora retoma e se apropria das idéias básicas de Halbwachs – a oposição que estabelece entre memória coletiva e história. À memória coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história que constitui um processo interessado, político, e, portanto manipulador.

98

Apud (MAGALHÃES, M. B. Memória e História: Hannah Arendt em Estudos Ibero-Americanos. PUCRS: Edição especial, n. 2, 2006, p. 49-60.) 99

Cf: BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 70. 100

Cf: SEIXAS, J. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”. In: BRESCIANI, S; NAXARA, M. Memória e ressentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p: 40 Apud (MAGALHÃES, M. B., op cit., p. 58)

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Diante desta citação, para Arendt o historiador ou pesquisador ao construir a

narrativa histórica, tendo de enfrentar a relação entre história e memória, se impõe

em julgamentos dos fatos narrados, o que por sua vez realiza no momento da

narrativa, julgamento este distinto do moral e do jurídico, o que permite ao

historiador escapar dos dilemas entre objetivismo e relativismo cultural. A

historiografia segundo a historiadora Marionilde Brepohl de Magalhães da

Universidade Federal do Paraná cita que:

[...] tal entendimento, trata-se de depor como uma testemunha e não de ditar sentenças, como um juiz. O historiador prestaria com seu trabalho, um testemunho sobre aquilo que ele ouviu e viu, não a partir de uma expressão vivida, mas através dos documentos que incitam sua imaginação e que o leva a perguntar, como uma criança de sete anos na idade dos porquês – aquilo que efetivamente aconteceu, porque foi assim e não de outra maneira para distinguir, enfim, o certo do errado, o belo do feio.

101

Para Fellini era comum inventar recordações com a ajuda de uma memória

que nunca existiu, ou seja, de uma memória que se fazia nascer a qualquer

momento. Fellini se reconhecia apenas por intermédio de seu trabalho, que adquiria

a função de espelho d’alma.102

101

Apud (MAGALHÃES, M. B., op cit., p. 59). 102

A idéia do “espelho d‟ alma” aqui proposto acha ligado ao artista francês Marcel Dunchamp, que na década de 60 tornou-se um referencial no campo artístico. Ao deixar a pintura, buscou na arte conceitual a superação da arte como “gosto” e como “cultura da estética na arte” e não intelectual. Dessa forma, Duchamp “quis que a arte voltasse a ser uma expressão do intelecto não no sentido lingüístico – discursivo, nem lógico – matemático, mas no genuíno – artístico. A Arte conceitual baseia-se na polêmica, denunciando que a „idéia pura‟ idealizada pela filosofia não existe, pois sempre carrega consigo uma imagem, assim, como a „imagem pura‟ não existe na arte: a natureza morta serve de exemplo.” [...] Deste modo, “Ver, não significa enterrar o olho no objeto, mas perceber, interrogar a outra parte que ele nos transmite. Trate-se, portanto de surpreender uma transmissão chegada de um lugar inacessível – a frase do filósofo e matemático francês Daniel Sibony encontra a idéia básica da natureza morta com Espelhos.” Cf: SCHMIDT, C. “Natureza morta com Espelhos ou a natureza no seu próprio reflexo”. In: Cadernos da Pós-Graduação. Unicamp/IA. Campinas, p: 75-83, s/d.

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O cinema-verdade? Prefiro o cinema-mentira. A mentira é sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma do espetáculo e eu gosto do espetáculo. A ficção pode ir em direção de uma verdade mais aguda do que a realidade cotidiana e aparente. Não é necessário que as coisas que mostramos sejam autênticas. Em geral, é preferível que elas não o sejam. O que deve ser autêntica é a emoção que sentimos ao mostrar e ao exprimir.

103

Essa característica deve-se ao fato de que seu trabalho era uma fuga do

mundo autobiográfico, apesar de muitos críticos e estudiosos enquadrarem sua

produção no campo autobiográfico. Por este motivo, em uma referência ao Satyricon

Fellini (1995, p. 30-31) nos esclarece que:

Porque o que constitui seu passado, constitui invariavelmente uma parte íntima de você mesmo. [...] De fato, quando Satíricon passou pela primeira vez numerosa foram os que o assistiram como um comentário sobre maio de 1968. Penso que os filmes como Casanova e E La nave va podem ser interpretados como sendo o reflexo de uma certa realidade, exatamente como é o caso de Ginger e Fred.

Fellini busca em Delacroix a reflexão sobre a construção da “memória”: “As

coisas que são mais reais para mim são as ilusões que criei para minha pintura.

Todo o resto não passa de areia movediça.” 104 Nesse processo, a Rimini de Fellini

era o lugar onde tinha passado boa parte de sua infância, mas a “verdadeira” Rimini

tinha se afastado dele, existindo apenas uma imagem que figurava em seus filmes.

O “fazer” cinema para Fellini (1995, p. 38-40) consistia numa forma de existência e

não apenas de expressão.

103

Cf: Apud (STRICH, C ; KEEL, A., op cit., p. 86). 104

Cf: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 34.

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[...] Viver fazendo filmes é, para mim, a forma mais próxima de identidade na qual posso me encontrar. É no centro de minha história que me sinto no centro de minha existência. [...] O estilo é o que une seja a memória, sejam as lembranças, ou uma certa ideologia, um certo sentimento, a nostalgia, o pressentimento e a maneira com que se exprime tudo isso.

O foco narrativo do filme é caracterizado pela primeira pessoa, marcado pela

constante presença de Encólpio em cena. A forma felliniana aproxima-se de Petrônio

por ser desconexa e fragmentada. A construção do filme foi feita por episódios tal

qual como a obra literária de Petrônio. O período registrado pelo poeta romano vai

ao encontro de Fellini através de um processo de identificação. A Prof. Drª. Gilda de

Melo e Souza (1980, p. 140) afirma:

Também o tema de Satyricon não é novo no universo felliniano. A decadência é o tema central de La Dolce Vita, e se bem que na época seja então a contemporânea, em vários momentos do filme o diretor alude ao passado, para mostrar a dessacralização atual dos valores [...] Em La Dolce Vita a comparação entre o presente e o passado visava o contraste; em Satyricon, vale como identificação.

A identificação de Fellini acha-se muito próxima da relação entre História,

memória e da construção da “identidade”, uma identidade felliniana, sua filmografia

nos revela um cineasta que se encontrava por meio da produção de seus filmes. A

Doce Vida (1960), Os Clows (1970) e A Cidade das Mulheres são alguns dos

exemplos da filmografia de Fellini na qual o mesmo se realiza quanto diretor e

“personagem” cinematográfico.

Para compreendermos um pouco da construção da identidade felliniana

recorremos à produção do sociólogo espanhol Manuel Castells, que em sua obra “O

poder da identidade” traça um panorama dos movimentos sociais e da política, como

resultado da interação entre globalização e tecnologia na sociedade moderna. O

autor ainda trabalha com assuntos ligados as questões da formação dos diferentes

tipos de identidades e como estas se relacionam com o Estado, na sua concepção

de “Instituição”. A trajetória de Castells ocorre a partir das observações e das

práticas dos movimentos sociais em contexto culturais diversos. Por este motivo, a

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idéia de identidade para Castells105 pode ser verificada por meio do significado e da

experiência de um determinado povo. Vejamos:

Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida [...] O autoconhecimento – invariavelmente uma construção, não importa o quanto possa parecer uma descoberta – nunca está totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos específicos, pelos outros.

Assim, para Castells identidade é o processo de construção de significado de

uma determinada cultura. Nesta interpretação, tanto para uma sociedade quanto

para o indivíduo existem identidades múltiplas. A identidade torna-se significante ao

homem na medida em que o mesmo a constrói em seu processo de individualização.

Com isso, a identidade é oriunda do processo de construção de significados,

resultante do meio em que se encontra o indivíduo, nas relações institucionais,

produtivas, religiosas e nas relações de poder.

Ao tecer estas considerações sobre a questão da identidade, podemos dizer

que Federico Fellini aproxima-se mais da “Identidade de projeto” proposto por

Castells, uma vez que o autor elenca três possíveis formas de origem da construção

da identidade, sendo elas, a identidade legitimadora, que tem como objetivo

expandir e racionalizar o poder das Instituições dominantes no meio social, ligado as

questões do autoritarismo e do nacionalismo; a identidade de resistência, que luta

contra o processo de dominação das identidades dominantes e por sua vez a

“Identidade de projeto” que como Manuel Castells cita, é um instrumento na qual o

indivíduo se utiliza para redefinir sua posição em seu meio social. Sobre esta

questão, Castells (1999, p: 24) afirma:

[...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social.

105

Apud (CASTELLS, M. O poder da identidade, Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 22.)

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Dessa forma, Federico Fellini em sua trajetória cinematográfica constrói uma

“identidade de cineasta” utilizando de um processo significante imerso na sua

relação entre o mundo do espetáculo fílmico e o da “Indústria Cultural” do cinema.

Seu papel na “Identidade de projeto” é com base na sua identidade reprimida, é em

seus filmes que Fellini torna-se “felliniano”, a marca do exagero.

A transformação social é o resultado de sua produção artística, da

receptividade do público, da construção do significado da obra fílmica de Fellini para

o coletivo. Com isso, cada espectador passa a ser atuante no processo da

construção da identidade, individualizada e coletiva.106

Os “desejos” são ao mesmo tempo coletivos e individuais. A identidade de

Fellini é o resultante de seu próprio processo criativo, da formação de um

personagem, da utilização de uma metodologia constituída por ele próprio e diluída

em seus discursos. Ao nos identificarmos com a produção fílmica de Fellini, por meio

de nossos desejos e anseios, passamos também a nos identificar com o

personagem felliniano, solidificado em seu mundo individualizado.

Esta postura da formação da identidade de Fellini, somente torna-se possível

graças à montagem fílmica107, da estruturação orgânica dos elementos do filme, isto

106

Individualizada no sentido da construção da própria identidade frente à obra fílmica e coletiva referente ao significado cultural da obra sobre o meio social. 107

A definição técnica da montagem é simples. Trata-se de colar um após os outros, em uma ordem determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo comprimento foi igualmente determinado de antemão. Essa operação é efetuada por especialista, o montador, sob a responsabilidade do diretor (ou do produtor, conforme o caso). Cf: AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p: 195-196. Assim sendo, “[...] somos informados de todos os estágios da produção cinematográfica: a elaboração do roteiro, a escolha do elenco, os ensaios, os copiões e assim por diante. O filme desmitifica o cinema, ao escancarar todos os truques e efeitos utilizados na sua realização [...] Tomamos, assim, conhecimento da importância do espaço fora-da-tela; tomamos enfim, conhecimento de que o cinema pode criar ilusão ao retirar os objetos de seus contextos. Para desmitificar o cinema e, de maneira indireta, o épico, existe forma melhor do que mostrar o próprio herói épico, não dentro do quadro, isolado em sua glória, mas envolto e dependente de uma equipe de técnicos com suas gruas, refletores, claquetes, câmeras e equipamentos de som?” Cf: SATAM, R. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p: 31 e 32. Vêr também: AUMONT, J. et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995 e LEONE, E; MOURÃO, M. D. Cinema e montagem. São Paulo: Editora Ática, 1987.

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é, do conjunto dos significados ordenados através do filme, tais como as imagens e

os sons.108

Ao adotarmos este ponto de vista, no processo de construção da identidade,

o indivíduo é levado a pensar sobre a formação da “memória” no aspecto coletivo e

individual. Nesse viés, a “memória individual” é caracterizada pelas recordações, das

lembranças de cunho privado, próprias da personalidade de cada um, e que

selecionamos a partir de nosso subjetivo.

A “memória coletiva” é caracterizada pelas lembranças impessoais, que

podem ser compartilhadas com o grupo conforme os interesses coletivos. Nesse

sentido, o sociólogo francês Maurice Halbwaches ressalta que:

A memória coletiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal.

Com esta perspectiva, o cineasta apega-se as suas lembranças, nas

recordações de sua juventude vivida em Rimini para compor seu “personagem”.

Assim, no aspecto individual é limitado há um tempo e espaço. Halbwachs ainda

completa dizendo que: [...] minhas lembranças pessoais são inteiramente minhas,

pois estão inteiramente em mim. [...] é da própria lembrança em si mesma, é em

torno dela, que vemos brilhar de alguma forma sua significação histórica. 109

Este perfil de interpretação proposto por Maurice Halbwachs divide a memória

em dois momentos. Sendo uma interior e a outra exterior, ou então uma pessoal e a

outra social. Com isso:

108

Cf: LEBEL, J. P. Cinema e Ideologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1975, p. 80. 109

Cf: HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 55 e 63.

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A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso. [...] Os grupos dos quais faço parte nas diversas épocas não são mais os mesmos. Ora, é do ponto de vista deles que considero o passado. É preciso, então, que na medida em que estou mais engajado nesses grupos e que participo mais estreitamente em sua memória, minhas lembranças se removem e se completem.

110

A identidade é o resultado do processo histórico, formados em situações e

momentos distintos, para Stuart Hall em “A Identidade Cultural na pós-modernidade”,

afirma que a identidade linear unificada é uma “fantasia” ou a aceitação de uma

“cômoda estória sobre nós mesmos”. Para Hall111:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

Estas considerações nos fazem refletir sobre a “natureza da obra de arte” 112,

se a mesma encontra-se ligada diretamente ao seu criador ou torna-se singular a

110

HALBWACHS, M., op cit., p: 55; 74 e 75. A relevância da produção de Federico Fellini para a contemporaneidade com relação à história e memória cinematográfica se encerra na sua própria produção. Assim: “Quando a memória de uma seqüência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as conseqüências, que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores, quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades para as quais esses fatos não interessam mais porque lhes são decididamente exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças, é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida, uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem. Cf: HALBWACHS, M., op cit., p. 80-81. 111

Cf: HALL, S. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 13. 112

Conceituar o que é “arte” é um desafio, pois são muitos os critérios que concedem a uma “obra” um valor artístico, no entanto, existe um consenso que valoriza e qualificam uma obra ou um artista, valores estes que mudam segundo a relação espaço-tempo. Para tais características Cf: MORAIS, F. Arte é o que eu e você chamamos Arte: 801 definições sobre arte e o sistema da Arte. Rio de Janeiro: Record, 1998. Assim, “a arte é um produto da criatividade humana que, mediante conhecimentos, técnicas e um estilo todo pessoal, transmite uma experiência de vida ou uma visão de mundo, expressando verdades humanas e despertando emoções em quem a usufrui.” Cf: FEIST, H. Pequena viagem pelo mundo da arte. São Paulo: Moderna, 2003, ver também: CUMMING, R. Para entender a arte. São Paulo. Ed. Ática, 1996.

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sua produção, ou seja, na medida em que uma obra de arte é “criada”, ela passa a

ser autônoma do seu criador ou é apenas um reflexo do mesmo?

Tal questionamento nos conduz pelos caminhos da subjetivação expressa

pelo mundo artístico, mas também nos confere o elemento significante da obra

artística, do condensamento da construção do pensamento sobre a mesma. Uma

obra artística, nesse caso, literária ou cinematográfica, torna–se Clássica por

apresentar caracteres atemporais, que perpassam a idéia linear do tempo histórico.

Muitos dos conceitos com relação à “arte” foram trabalhados pelo Prof. Dr.

Norberto Stori da Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM. Assim, para ele a

arte é sempre contemporânea ao seu próprio tempo, nesse viés, deparei-me com

alguns teóricos que buscaram uma definição para este termo tão complexo, tais

como o historiador da arte Ernst Hans Josef Gombrich, que cita:

Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas. [...] desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como um bicho-papão, como um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode ser excelente ao seu modo, só que não é “Arte”. E podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela tanto aprecia não é Arte, mas uma coisa muito diferente.

113

Jorge Coli, professor de História da Arte e Cultura da Universidade Estadual

de Campinas - UNICAMP, afirma que dizer o que seja arte é coisa difícil, já que

inúmeros tratados sobre estética são contraditórios. O termo “arte” ou “obra de arte”

pode ser usado no sentido classificatório ou valorativo. No sentido classificatório,

não está em jogo se uma determinada obra de arte é boa ou não, mas pretende-se

apenas firmar se um determinado objeto ou produção se classifica como obra de

arte. O sentido valorativo tenta expressar o valor positivo ou negativo, bem ou ruim

113

Cf: GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LCT – Livros Técnicos e Científicos, 1999, p. 3.

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de uma obra de arte114. Para o Prof. Dr. de Literatura Brasileira da Universidade de

São Paulo - USP, Alfredo Bosi, nos diz ainda que:

Se perguntarmos hoje a um homem de cultura mediana o que ele entende por arte, é provável que na sua resposta apareçam imagens de grandes clássicos da Renascença, um Leonardo da Vinci, um Rafael, um Michelangelo: arte lembra-lhe objetos consagrados pelo tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários e, entre estes, um, difícil de precisar: o sentimento do belo. [...] Constatar, porém o uso social da pintura e da música, ou a função de mercadoria, não deve impedir-nos de ver antropologicamente a questão maior da natureza e das funções da arte. É preciso refletir sobre este dado incontornável: a arte tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações.

115

As múltiplas visões sobre o elemento artístico é o que confere à obra o seu

“papel” artístico, a racionalização da mesma pelo “criador” é a perda da sua “aura”. A

desconstrução da análise e a priori de seu caráter artístico limita o processo de

subjetivação do expectador da obra de arte. O artista pode sugerir uma

interpretação, mas não conferir sua interpretação como única e legítima, pois corre o

risco de levar sua “criação” ao reducionismo. Segundo Federico Fellini (1995, p.

103):

[...] O único critério que eu aprovaria para julgar uma obra de arte não é dizer „é bonito‟ ou „é feio‟, segundo certos parâmetros, segundo variáveis estéticas estabelecidas, mas saber se ela é vital. É a definição que me é mais próxima e que me permite entrar em contato com a expressão artística. Se uma obra é vital existe nela uma vida misteriosa, uma vida própria.

114

Cf: COLI, J. O que é arte. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 7. 115

Cf: BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ed. Ática, 2000, p. 7-8.

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As novas técnicas de reprodutibilidade da obra de arte se aperfeiçoaram no

decorrer dos anos, fazendo com que o conceito de arte fosse alterado. Para

Benjamin:

Com o século XX, as técnicas de reprodução atingiram um tal nível que estão agora em condições não só de se aplicar a todas as obras de arte do passado e de modificar profundamente seus modos como também de que elas mesmas se impunham como formas originais de arte.

116

Mesmo que a reprodução da obra de arte seja próxima da obra original,

perde-se o caráter de originalidade. Sua identidade, o testemunho histórico do

momento da produção da obra pelo artista se descaracteriza por meio da

reprodução técnica.

Na reprodutibilidade técnica perde-se também o “caráter” da tradição, o que

era único torna-se um produto da massa, assim, a perda da “aura” da arte e

conseqüentemente da sua herança cultural se dá pelo uso de novas técnicas de

reprodução da mesma; no cinema Walter Benjamin sublinha que a produção fílmica

restringe o papel da “aura” quando reduz à personalidade do autor as necessidades

da indústria cinematográfica. Sobre a questão da perca da aura no campo da obra

fílmica, Benjamin nos reafirma que este fato somente ocorre quando se:

[...] constrói artificialmente, fora do estúdio, à personalidade do autor: oculto da estrela, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos, protege essa magia da personalidade que há muito já esta reduzida ao encanto pobre de seu valor mercantil.

117

De acordo com esta visão, o valor da obra de arte não está mais centrado no

original, no objeto em si, e sim na visibilidade que possa a vir adquirir. O público que

consome a arte produzida por meio do processo de reprodutibilidade, da técnica

116

Cf: BENJAMIN, W., op cit., p. 224 117

BENJAMIN, W., op cit., p. 239

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industrial, passa a formar uma “cultura de massa”, não muito preocupada com a

qualidade.

Os críticos da cultura afirmam que o filme apontado como “representante

máximo da reprodutibilidade técnica da indústria cultural”, visto como objeto, não

possui um valor artístico. Entretanto, o que confere a “aura” a uma determinada

produção fílmica são os “nomes”, isto é, os atores e diretores envolvidos na

produção fílmica. Todavia a produção de um filme pode durar meses, o que por sua

vez não ocorre um contato direto com o público.

Para Walter Benjamin, a aura não pode ser encontrada na produção fílmica,

uma vez que entre o ator e o público existe uma aparelhagem para compor os

cenários, as tomadas e as edições; o que não ocorre com o teatro, na qual o público

acha-se cara a cara com o ator. Neste sentido, o cinema para Benjamin é uma forma

de expressão artística própria e direcionada para as massas.118

Assim, o público do cinema é um examinador da obra de arte fílmica, porém

um examinador que se distraí. No conjunto do texto podemos dizer que o cinema é

uma forma artística composta por diversas técnicas, próprias da sua constituição

enquanto objeto fílmico.

Sua produção se dá não apenas por uma única pessoa, mas por um conjunto

de pessoas. Neste viés, sua reprodução não destrói a sua aura (sua pureza

artística), pois exerce a função de divulgação do trabalho de profissionais envolvidos

no processo de produção cinematográfica.

O processo de reprodutibilidade em voga no mundo moderno faz com que a

obra de arte acabe emancipando-se de seu campo ritualístico. Neste aspecto o

processo ritualístico refere-se ao valor do ritual de culto do objeto de arte. Assim

sendo, o que confere a aura a obra de arte são suas características que são

118

Walter Benjamin ao analisar a relação da obra de arte com a sociedade capitalista. O status da arte é abalado em decorrência das técnicas da reprodução. A obra torna-se valiosa não pela significação, mas pelo valor de mercado. O público espectador passa a exercer o papel de consumidor quando as massas passam a consumir o objeto artístico, o autor torna-se um produtor tal como um operário. A questão situa-se na reprodução, mais especificadamente na modalidade da reprodução em série, na qual o original e a cópia se confundem. O sentido de autêntico e de singularidade se dessacraliza. A indústria cultural tem como objetivo vender “cultura”, mas para vendê-la é necessário atrair e agradar o público consumidor e não fazer o espectador refletir sobre o “produto criado”, pois sua máxima é a distração.

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singulares a própria obra, composta por elementos espaciais e temporais, o que a

torna única. O artista está na gênese da obra criada, mas o mundo em que ela se

instaura é variante ao próprio artista.119 Cabe ressaltar ainda que:

[...] A arte é uma necessidade: uma interpretação da vida, que abandonada à própria sorte, nos aparecerá, provavelmente, desprovida de sentido, monstruosa. A arte é o contrário disso, é alguma coisa que nos reconforta nos tranqüiliza, nos fala da vida com termos extremamente protetores. Ela nos faz refletir sobre a vida que por si só seria apenas um coração que bate, um estômago que digere, pulmões que respiram, olhos que se enchem de imagens desprovidas de sentido. Acredito que a arte é a melhor tentativa de induzir no homem a necessidade de ter um sentimento religioso que a arte, não importa qual arte exprime.

120

Da mesma forma, Fellini tece uma crítica as muitas adaptações literárias que

são realizadas para a tela do cinema, pois cada obra, tanto a literária quanto a

cinematográfica possuem linguagens distintas, que devem ser analisadas dentro de

seu contexto. Com isso, ao adaptar uma obra literária para o campo imagético, esta

não precisa ser necessariamente uma cópia do trabalho primário, sendo que o

universo literário, de característica verbal, pertence a “signos” distintos do não-verbal

que exigem leituras peculiares.

A adaptação fílmica passa para o viés da “tradução” diante de uma expressão

única, não ocorrendo transposição, mas recriando personagens com perfis

subjetivos ao do diretor e da obra cinematográfica.

119

Sobre a “lógica” que permeia o campo das humanidades, em especial na historiografia, observamos o que Thompson nos fala ao defrontarmos com temporalidades e fontes diversas: “Cada idade, ou cada praticante, pode fazer novas perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz novos níveis de evidência. Nesse sentido, a „história‟ (quando examinada como produto da investigação histórica) se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada geração, ou, pode acontecer de cada sexo, cada nação, cada classe social. Mas isso não significa absolutamente que os próprios acontecimentos passados se modifiquem a cada investigador, ou que a evidência seja indeterminada. As discordâncias entre os historiadores podem ser de muitos tipos, mas continuarão sendo meros intercâmbios de atitudes, ou exercícios de ideologia, se não se admitir que seja conduzida dentro de uma disciplina comum, que visa ao conhecimento objetivo”. Cf: THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 51.

120

Cf: FELLINI, F., op cit., p. 109-112

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O que Fellini traz de novo para o campo cinematográfico é a contribuição

quanto à “forma” em que o filme foi produzido e pensado. Seu enredo, a construção

dos personagens, o preenchimento de lacunas, que ocorre dada a sua interferência

no meio social e cultural, abre um leque de leituras possíveis sobre o filme e a obra

original.121

Nenhum diretor de cinema me influenciou. Em todo caso, nem mais nem menos que os demais. O cinema em seu conjunto influenciou-me, mas igualmente influenciaram-me minha família, minha religião, minha educação, meu casamento, meus amigos e assim por diante: tudo que pertence à minha época, tudo que me tornou o que sou.

122

O filme foi construído dentro do “mundo de Fellini”.123 E com isso transposto

para diferentes realidades, com distintos olhares sobre um determinado ângulo. Esta

visão de Fellini refletiu também sobre a produção do filme “Satyricon”.

121 Federico Fellini era singular dentro do campo cinematográfico, justamente porque não existia uma técnica específica para cada filme, a metodologia utilizada por ele, a “forma” do filme era construída com o próprio filme que estava sendo rodado. O trabalho de Federico Fellini era “aberto”, e não já posto anterior ao próprio filme, isto é, o trabalho de Fellini não era algo que se adaptava a uma determinada técnica, mas ele mesmo construía a técnica do filme. Tendo em vista essa característica Fellini dizia que: “Não admito, para mim, nenhum método rígido de trabalho. Mesmo que tivesse que explicar como se divide meu trabalho, diria que a princípio sempre há um roteiro que coincide em grande parte com a estrutura do filme, tal como está planejado.” Cf: STRICH, C; KEEL, A., op cit., p: 87. Mesmo Fellini afirmando sua elasticidade quanto ao uso do método, fica claro que ele possuía sim um método para produzir e dirigir seus filmes, pois faz uso de recurso próprios do campo cinematográfico, tais como o uso de técnicas sonoras, dublagem, som, iluminação, montagem do estúdio, enredo, métodos específicos de filmagem e construção das personagens. O que o torna referência como diretor, é a construção de seu próprio método frente ao roteiro, como sublinhado. Assim, o uso da técnica é visível na construção do objeto fílmico. 122

Cf: STRICH, C; KEEL, A., op cit., p. 85. 123 Para Federico Fellini “não existia qualquer divisão entre a imaginação e a realidade.” (Cf: FELLINI, F., op cit., p: 130). Esse movimento “felliniano” dentro dos mundos dos sonhos e da construção de signos para explicar o mundo cinematográfico teve influência do psicanalista Cal Jung. Com relação à leitura dos escritos de Jung, Fellini ressalta que: “Eu li algumas linhas de Jung*, mas não posso discuti-lo com tal desenvoltura. Devo dizer também que jamais fui psicanalisado. Jung foi um companheiro de viagem, um desses encontros providenciais que me alimentaram me cultivou. E lendo os trechos que podem ser considerados os mais acessíveis, penso ter descoberto alguém que me ajudou a compreender melhor os aspectos da criatividade, a relação com a realidade e com as mulheres.” Cf: FELLINI, F., op cit. p: 133-134. * Carl Gustav Jung (1875 – 1961). Psiquiatra suíço foi o fundador da Escola de Psicologia. Ampliou os estudos de Freud ao interpretar os distúrbios mentais e emocionais. Na terapia Junguiana, explorou os sonhos e as fantasias por meio de um diálogo entre a mente consciente e os conteúdos do inconsciente.

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Ao observarmos estas características, podemos perceber que a obra fílmica

torna-se “Clássica” por assumir um caráter de autônoma frente à obra literária e

frente ao próprio diretor. Nesse jogo de relações, torna-se artística por exprimir sua

autenticidade entre uma e outra, entre a obra literária e a fílmica.

[...] Um sonho fica sempre fascinante se preservar seu lado misterioso. Quando se explica um sonho, destrói-se sua razão de ser e ele se torna banal. Levando em conta a importância das imagens na minha obra, elas devem ser capazes de comunicar as emoções e as significações necessárias, mesmo se elas são, às vezes, contraditórias. E é por isso que estou feliz por não termos falado diretamente de meus filmes – longe disso! Essa é uma coisa que eu detesto fazer.

124

No entanto, a semelhança entre uma obra e outra, dentro dos arquétipos, dos

protótipos, das versões que se entrelaçam é que nos conferem a intensidade da

obra produzida. É dentro desse espaço que identificamos os “rituais cotidianos do

Satyricon”, pois é no conjunto da obra de Petrônio e de Fellini que se exprimem o

conceito de unidade.125

[...] Falei antes da dificuldade para um criador em distinguir com clareza o passado, o presente, o futuro, em traçar uma linha precisa entre a nostalgia, o remorso e o pressentimento, porque as coisas se apresentam no seu conjunto.

126

O cineasta reconhecia a contribuição significativa do cinema americano, pois

era o cinema dos Estados Unidos que tinha inventado um tipo de “cultura” que

passaria a pertencer a todos. Um retrato desenhado por testemunhas de seu próprio

tempo.

124

Cf: FELLINI, F., op cit., p. 192. 125

Cf: BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996. 126

FELLINI, F., op cit., p. 58 e 59.

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O cinema Italiano para Fellini era um cinema “culpado” porque além das

histórias contadas sobre Roma, de Nápoles e da Máfia da Sicília pouco se sabe da

cultura italiana como um todo, ou seja, do seu cotidiano, dos testemunhos, dos mitos

e folclores, bem como das particulares de cada região. Sobre estas características

peculiares, torna-se necessário redescobrir o “imaginário popular” romano que se

encontra presente na contemporaneidade e expô-las nas telas do cinema moderno.

[...] Durante os anos 30 e 40, os Estados Unidos contaram, de maneira extraordinária, contos de fadas para adultos e crianças, que nos ajudaram a ultrapassar a paralisia sufocante, neurótica, o pesadelo da vida sob a ditadura fascista. Então, se escolhi fazer cinema, foi verdadeiramente graças aos Estados Unidos. [...] Falo dos desenhos animados da época, como Popeye e Les Katzenjammer Kids. Tentei até, bem mais tarde, em Satiricon (Fellini-Satyricon) e Os Palhaços (I clows), encontrar as cores típicas dos desenhos animados de minha juventude. Faço referência a um país que se expressava pelo sorriso, de maneira humorística, enquanto em nós tudo era sério, tudo era sacrifício, tudo era mortificação da carne e exaltação totalmente delirante da romanidade. Os Estados Unidos foram fábula providencial que nos permitiu sobreviver, não nos enfiarmos na tristeza de uma vida completamente artificial, traída, camuflada por duas ideologias católica, que considerava a vida como uma passagem e a carne como alguma coisa imunda, e a ideologia fascista, segundo a qual era preciso morrer pela pátria. Por sorte, havia Fred Astaire, May West, os irmãos Marx, e Mickey! Então, minha simpatia total vai para a América. [...] Nosso cinema é um cinema culpado porque, verdadeiramente, nada contou da Itália. Da mesma maneira, a Itália é um país completamente desconhecido por culpa de sua literatura. Roma foi um pouco contada. Nápoles também, mas de maneira folclórica. A Sicília é sempre vista através das histórias truculentas da Máfia. Quanto ao resto da Itália, onde, a cada 50 quilômetros há testemunhas de uma outra cultura, de outros mitos, de outros ritos, ninguém fala. Verdadeiramente, é um país extraordinário.

127

Nessa trajetória apresentada sobre a carreira Felliniana, bem como os

caracteres que fazem parte da produção e direção do filme Satyricon, observamos o

quanto o diretor encontrava-se ligado ao seu pensamento. No Satyricon, Fellini se

destacava pela maneira em que apresentava os personagens e no tratamento em

que dava ao sentimentalismo.

127

Cf: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 152-155.

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Assim, o filme aproximava-se de certa transfiguração da obra literária, por

intermédio dos personagens que adquiriam características disformes, próxima da

característica caricatural.

O amor em Petrônio era algo sínico. O amor homossexual era considerado

uma conduta da natureza, enquanto que o heterossexual era visto como um desvio.

Para Fellini, o amor era visto como algo confuso, um paradoxo entre o ideal feminino

e o apelo a questão sexual.

É na atmosfera geral, na maneira de apresentar os personagens e no tratamento que dá ao amor, que Fellini se afasta radicalmente da novela e começa a perseguir os seus próprios fantasmas. O livro de Petrônio nos dá uma visão satírica, mas jamais trágica dos acontecimentos. [...] No filme tudo se transfigura. À crítica se substitui o pesadelo, à comicidade o grotesco, à festa, a visão apolítica, às personagens o paroxismo das máscaras. – Existirão mesmo personagens, no filme? A maioria, ou melhor, a totalidade dos figurantes é tratada de maneira caricatural, disforme, monstruosa – são máscaras apenas. [...] E serão personagens os dois amigos, Encólpio e Ascylto, ou significam o desdobramento do herói, a personagem e o seu duplo? E Gyton? Não será apenas o ideal amoroso, um “eterno feminino” a seu modo?

128 (SOUSA, 1980, p. 141)

Em última instância, percorrendo o perfil de Fellini fomos construindo o

Satyricon. A metodologia escolhida nos revelou o substrato da psique humana,

numa tentativa de desvendar os estratos mais profundos do inconsciente. O mundo

antigo de seus “sonhos” é original e confunde-se com os arquétipos relacionados à

imoralidade, ao grotesco, ao uso de máscaras. As cenas dantescas mostram a

lascívia do inconsciente reprimido do paganismo romano. O uso do método

semântico (estudo dos significados) através de uma perspectiva macrossemântica

(visão do conjunto) possibilita analisar o objeto fílmico por meio de três elementos,

tais como, o temático, o figurativo e o axiológico (estudo de alguma espécie de valor,

com destaque para os valores morais). A Prof. Drª Sandra de Cássia Araújo

Pelegrini ressalta que:

128

SOUSA, G de M., op cit., p. 141.

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[...] Por envolver um amplo sistema de valores éticos, estéticos, políticos e religiosos, o estudo semântico axiológico pode oferecer expressiva contribuição ao trabalho do historiador, especialmente, porque evidencia a euforização de determinados temas e conceitos, enquanto desnuda a desforização de outros, de acordo com os interesses dos produtores e dos diretores e os valores da época em que o filme foi elaborado.

129

Com isso, podemos identificar elementos carnavalescos e a natureza do

instinto espetacular. Fellini sentiu-se atraído pela obra de Petrônio porque a

decadência moral do período romano era muito semelhante ao do seu próprio

período. A narrativa do filme se completa por meio de um mosaico, composto por

fragmentos, mas que segue uma linha quase que “virtual” compondo as peças.

Assim sendo, Fellini foi atraído pela obra de Petrônio por sua natureza

fragmentária. Além de ser um filme que reflete muito do cineasta, também é um

filme com um viés histórico. As dificuldades em se realizar um filme que tem como

referencial uma obra literária condiz com a própria reconstrução de seu período, que

para Fellini era algo impossível. Satyricon não seria um filme propriamente histórico,

apesar de se referir a um determinado período do mundo Clássico, mas um filme de

ficção sobre o passado histórico, delimitado pelo Alto Império Romano. A obra de

Fellini não mostra uma Roma como ela era de fato, mas uma Roma pagã imaginada

pelo artista.

O trabalho cinematográfico busca pelo viés do imaginário resgatar o homem

romano que tinha se perdido no tempo. Fellini faz esse jogo, de ser contemporâneo

e buscar na arqueologia o homem antigo por meio do homem moderno. A distância

que nos separa do mundo antigo é amenizada com recursos da fantasia.

Assim, as discussões que se seguem nos elucidam sobre alguns aspectos da

imagem cinematográfica e dos pressupostos metodológicos deste trabalho com base

no pensamento de Karl Marx.

129

Cf: PELEGRINI, S. de C. A; ZANIRATO, S. H. (orgs). As dimensões da imagem: abordagens teóricas e metodológicas. Maringá: Eduem, 2005, p: 132 Apud (CARDOSO, C. F; VAINFAS, R. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 132)

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1.3 APONTAMENTOS SOBRE A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA

“Ernst Bernhard, o psicanalista jungiano, fez me compreender que a vida dos nossos sonhos não é mais importante do que a nossa vida acordada, especialmente para o artista”.

(Federico Fellini)

“Chamo de imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos que vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as representações do gênero”.

(Platão – République)

A produção de um filme parte de um projeto artístico, cultural e de mercado.

Sendo antes uma construção da visão de diferentes diretores, possuindo uma

linguagem específica, que difere da linguagem verbal. A construção da narrativa

fílmica ocorre por meio do processo de filmagem, do uso da tecnologia e de técnicas

próprias do mundo cinematográfico. Assim, o cinema é um produto industrial, na

qual trabalham diferentes pessoas que desconhece o todo da produção. O professor

e pesquisador Milton José de Almeida130 cita que:

[...] Mas o cinema não é um produto de um autor coletivo, social. É um produto industrial, de fábrica, no qual trabalham pessoas que fazem determinadas partes e não outras, num determinado momento da produção, e não conhecem o todo do produto que está sendo fabricado [...] Ver filmes, analisá-los, é a vontade de entender a nossa sociedade massificada, praticamente analfabeta e que não tem uma memória de escrita.

130

Cf: ALMEIDA, M. J. de. Imagens e Sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994, p. 12.

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O cinema integra uma grande indústria que possui divisão de trabalho,

hierarquização, poder e interesses de mercado. O consumidor está distante da

produção fílmica, pois este não pode devolver o produto fílmico, pois “comprou

imagens projetadas durante certo tempo”.131

A imagem cinematográfica é um tipo de expressão que faz parte da

comunicação visual. O cineasta tem como propósito transportar o espectador de seu

mundo para o mundo criado pelo filme. Sobre a “linguagem do cinema”, vejamos o

que Milton José de Almeida ainda nos fala:

Uma tentativa de ver no cinema um sistema simbólico de produção, reprodução de significações acerca do mundo, em que ambos os termos de comparação vêem-se reduzidos. Mas pode-se tentar. O filme, como um texto falado/escrito, é visto/ lido como num texto/fala que à primeira letra/som sucedem-se outros, formando palavras que se sucedem em frases, parágrafos, períodos, até lermos/ouvimos a última letra/som e termos o texto/fala completo, o primeiro quadro, os seguintes, as cenas, as seqüências, o filme completo. O significado de um texto/filme é o todo, amálgama desse conjunto de pequenas partes, em que cada uma não é suficiente para explicá-lo, porém todas são necessárias e cada uma só tem significação plena em relação a todas as outras.

132

A partir desta visão sobre a “linguagem cinematográfica”, o espectador não vê

o cinema, mas o filme, que faz parte do tempo presente, o tempo da projeção.

O cinema existe antes e depois da projeção do filme. A indústria, o mercado de filmes, o roteiro, argumento, locações, atores, produção e tantas outras coisas fazem parte do cinema. E também as interpretações, as conversas depois do filme são coisas do cinema. Os que o produzem e os que o consomem encontram-se na sua projeção. [...] Só então discutimos e falamos sobre ele, como cinema, não mais como filme, longe dele, como memória, inextricavelmente ligado á nossa história, à história do mundo em que vivemos, à história do cinema.

133

131

Cf: ALMEIDA, M. J., op cit., p. 25. 132

Ibid., p. 28 e 29. 133

Ibid., p. 40 e 41.

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Ao estudar o material visual não podemos tratar as imagens apenas como

ilustrações. Estas se encontram inseridas em contextos históricos e carecem de

debates apropriados.

A professora e pesquisadora Martine Joly em sua obra “Introdução à análise

da Imagem” remete-nos ao campo da análise das significações visuais, pertencentes

ao mundo das imagens e das suas problemáticas. É Joly quem nos diz que:

[...] a imagem é um meio de expressão e de comunicação que nos vincula às tradições mais antigas e ricas de nossa cultura. Mesmo sua leitura mais ingênua e cotidiana mantém em nós uma memória que só exige ser um pouco reativada para se tornar mais uma ferramenta de autonomia do que de passividade. [...] sua compreensão necessita levar em conta alguns contextos de comunicação, da historicidade de sua interpretação e de suas especificidades culturais.

134

A partir da leitura de Martine Joly, percebemos que as imagens em geral são

sinônimos culturais e que relatam experiências históricas, sociais, psicológicas e até

fisiológicas. Assim, quando adentramos no universo icnográfico, a única certeza que

temos é que são inúmeros os pontos de vistas das quais se podem analisar e

interpretar uma produção imagética.

No caso da imagem cinematográfica, para compreendermos um pouco da sua

estruturação, torna-se viável decompor os elementos visíveis e constitutivos da

imagem. A pesquisadora Martine Joly ao estudar os conceitos que englobam as

estruturas da percepção imagética justifica o estudo da mesma ao afirmar que: “[...]

interessar-se pela imagem é também interessar-se por toda a nossa história, tanto

pelas nossas mitologias quanto pelos nossos diversos tipos de representações”.135

Assim sendo, a imagem em seu sentido primário (Bild, em alemão) está

ligada a representação, isto é, a uma reprodução de algo, de um objeto, de alguma

coisa que a visão, ou o olhar óptico captou. A imagem em seu aspecto sensível, no

134

Cf: JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996, p. 135. 135

Ibid., p. 136.

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conjunto com a atividade da mente humana é vista como uma expressão de uma

determinada idéia. Neste aspecto, encontram-se aqui as atividades relacionadas

com a memória e a imaginação. Pensando nessa discussão e sobre a importância

de se estudar a Imagem fílmica como um objeto de cunho historiográfico, que traz

aspectos e práticas representativas de uma determinada cultura, a historiadora e

Prof. Dr. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini nos relata que:

[...] faz-se necessário reconhecer que o estudo embasado na fonte imagética, mais precisamente no documento fílmico, não pode supor que a mesma constitua uma verdade incontestável, nem configure um „reflexo‟ direto ou indireto da realidade a que se refere. Ela deve ser interpretada como mais uma forma de manifestação das percepções humanas, inserida no âmbito de práticas e representações culturais, políticas e ideológicas de seu tempo.

136

Segundo Jacques Aumont em sua obra “A Imagem” existem leis que

determinam os elementos do visível. Assim, as informações que chegam até nós por

meio da luz passam por etapas subseqüentes, que são processadas e codificadas.

A codificação nos permite interpretar os fenômenos característicos da luz, como sua

intensidade, seu comprimento de onda e sua distribuição no espaço. A percepção da

luz é caracterizada através da visualização da luminosidade, estabelecida entre as

relações do sistema visual com o objeto luminoso.

A percepção da cor encontra-se ligado as reações do comprimento da onda

emitidas e refletidas pelos objetos. Algumas superfícies absorvem determinados

comprimentos de onda e refletem somente outros, o que nos confere a impressão de

cor. Assim, os elementos de percepção nunca estão separados, mas encontram-se

vinculados um ao outro.

Nesse viés, a percepção da imagem cinematográfica abarca conceitos

relacionados à visualidade, como o “espaço representado”, que é diferente do

espaço cotidiano. Sendo antes, um espaço da superfície da imagem, num aspecto

tridimensional e ilusório. Depois de delimitado o espaço da ação fílmica, tem a

136

PELEGRINI, S. de C. A e ZANIRATO, S. H (orgs). “As dimensões da Imagem: abordagens teóricas e metodológicas”. In: História e Imagem: a ficção teatral e a Linguagem cinematográfica. Maringá: Eduem, 2005, p. 125

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questão da câmera, que realiza o recorte do espaço fílmico, por meio do uso de

mecanismos técnicos da estruturação da visibilidade da imagem cinematográfica.137

Após a estruturação da natureza da imagem cinematográfica, ocorre “a

atuação dos níveis estruturais”, que é a apreensão da visualidade fílmica em sua

forma final, neste componente está os elementos disruptivos, como a montagem, o

som e a direção de arte.138

Assim, na direção de arte encontra-se o roteiro, que é o indicador da

elaboração de idéias potencialmente visíveis. É a partir do roteiro que se define o

espaço fílmico e a temporalidade da obra produzida. Sobre a importância do roteiro

a pesquisadora Débora Lúcia Vieira Butruce nos diz que:

A partir da primeira leitura do roteiro, o diretor de arte procura se situar no contexto geral do filme proposto, buscando encontrar sua potencialidade visual e a intenção pretendida. Estas indicações iniciais o auxiliam nas primeiras anotações concernentes à época, lugar, espaço, cor e textura, já vislumbrando algumas diretrizes visuais existentes nestas indicações que possibilitem que a ambientação da obra seja definida. Normalmente é feita uma listagem de todos os locais e objetos contidos no roteiro e cada seqüência, o que é denominado análise técnica mais detalhada será realizada posteriormente quando todos os elementos já estiverem definidos pelo diretor de arte.

139

137

Sobre a câmera, esta “não pode responder. Não pode fazer perguntas estúpidas. Não pode fazer perguntas penetrantes que fazem você perceber que esteve errado o tempo todo. Ei, ela é uma câmera! Mas, pode compensar um desempenho deficiente, pode melhorar um bom desempenho, pode criar clima, pode criar feiúra, pode criar beleza, pode provocar emoção, pode captar a essência do momento, pode parar o tempo, pode mudar o espaço, pode definir um personagem, pode proporcionar explicação, pode fazer uma piada, pode fazer um milagre, pode contar uma história! Se meu filme tem dois astros, sempre sei que realmente tem três. O terceiro astro é a câmera.” Cf: LUMET, S. Fazendo Filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 75. 138

Grande parte da direção de arte e da concepção do figurino influi sobre o desempenho dos intérpretes. Cf: LUMET, S., op cit., p. 100. 139

Cf: BUTRUCE, D. L. V. A Direção de arte e a imagem cinematográfica: sua inserção no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990. (Dissertação de Mestrado apresentado ao curso de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense). Niterói: UFF, 2005. Para o cineasta estadunidense Sidney Lumet: “O roteiro ainda deve manter-nos desequilibrados, surpresos, entretidos, envolvidos e, no entanto, quando é atingido o desfecho, dar-nos ainda a sensação de que a história tinha de terminar daquela maneira”. Cf: LUMET, S. Fazendo Filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Sobre a análise do roteiro Cf ainda: SOARES, S. J. P. Cães de Aluguel: análise de um roteiro de Quentin Tarantino. Campinas: Unicamp, 2001. (Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em Multimeios) e CAMPOS, F. de. Roteiro de cinema e televisão: A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

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De acordo com esta citação, no processo de criação cinematográfica, o

roteiro constitui-se como um dos primeiros elementos concretos da produção fílmica.

Ainda dentro da direção de arte, encontra-se a pesquisa, que juntamente com o

diretor de fotografia realizam-se investigações na busca de informações para a

escolha de elementos para se compor o “visual” do filme; além da pesquisa, acha-se

ainda o processo de pré-produção, que é a fase efetiva de criação, com a

elaboração de projetos para a direção de arte e as etapas de realização. Outro

aspecto para a criação da imagem fílmica é a escolha das locações ou dos cenários

em estúdio. Após todas estas etapas checam-se todos os elementos em seus

pormenores, entre estes, a cor, as formas, as texturas dos objetos, disposições de

cenários etc, chegando ao limiar da pré-produção cinematográfica.140

[...] Cenários, roupas, conceito de câmera, roteiro, elenco, ensaios, cronograma, financiamento, fluxo de caixa, exames do seguro, locações, cover sets (interiores que filmamos se o tempo estiver ruim para uma externa), cabelo, maquilagem, testes, compositor, montador, sonoplasta, tudo já foi decidido. Agora estamos rodando o filme, afinal.

141

Constatamos ainda que um filme seja constituído por seqüências, que são

unidades menores dentro do próprio filme. Cada seqüência é constituída por cenas.

O processo de decomposição do filme é chamado de decupagem142, que ocorre com

seqüências e as cenas em “planos”. O plano corresponde a cada tomada de cena,

sendo um segmento contínuo da imagem. Nesta mesma linha, o plano ainda

corresponde a certos pontos de vista concernentes ao que se está sendo filmado.

140

Para informações detalhadas das etapas de produção fílmica Cf: BUTRUCE, D. L. V., op cit., p. 21-55. 141

Cf: LUMET, S., op cit., p. 101. 142

A decupagem é antes de tudo um instrumento de trabalho. O termo surgiu no curso da década de 1910 com a padronização da realização dos filmes e designa a “decupagem” em cenas do roteiro, primeiro estágio, portanto, da preparação do filme; ela serve de referência para a equipe técnica. [...] Ela designa, então, de modo mais metafórico, a estrutura do filme como seguimento de planos e de sequências, tal como o espectador atento pode perceber. É nesse sentido que André Bazin utiliza a noção de “decupagem clássica” para opô-la ao cinema fundado na montagem; encontraremos a mesma oposição em Jean-Luc Godard. Cf: AUMONT, J e MARIE, M. op cit., p: 71. Para Gilles Deleuze, “a decupagem é a determinação do plano, e o plano a determinação do movimento que se estabelece no sistema fechado, entre elementos ou partes do conjunto. DELEUZE, G. Cinema, a Imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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Assim, o teórico de cinema Ismail Xavier arrola uma escala de “planos” 143. Vejamos

no quadro que se segue:

Plano Geral

Em cenas localizadas em exteriores ou

interiores amplos, a câmera toma uma

posição de modo a mostrar todo o espaço da

ação.

Plano Médio ou Conjunto

Uso aqui para situações em que,

principalmente em interiores (uma sala, por

exemplo), a câmera mostra o conjunto de

elementos envolvidos na ação (figuras

humanas e cenário). A distinção entre plano

de conjunto e plano geral é aqui

evidentemente arbitrária e corresponde ao

fato de que o último abrange um campo maior

de visão.

Plano Americano

Corresponde ao ponto de vista em que as

figuras humanas são mostradas até a cintura

aproximadamente, em função da maior

proximidade da câmera em relação a ela.

Primeiro Plano (Close-up)

A câmera, próxima da figura humana,

apresenta apenas um rosto ou outro detalhe

qualquer que ocupa a quase totalidade da tela

(há uma variante chamada primeiríssimo

plano, que se refere a um maior detalhamento

– um olho ou uma boca ocupando toda a tela)

143

Cf: XAVIER, I. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p: 27-28. Cf também: AUMONT, J e MARIE, M., op cit., p: 230-231 e PELEGRINI, S. de C. A; ZANIRATO, S. H (Orgs). op cit., p. 123-132.

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Para Edgar Morin, o filme é a junção de dois psiquismos: aquele que está

incorporado na película e o do próprio espectador. Assim, o ritual do filme seria o da

complementação, o ponto de cinética do imaginário numa pulsação de 24 imagens

por segundo.144

Com isso, a imagem cinematográfica é resultado da singularidade do fazer

cinema, do exercício do cineasta como obra criada. Como sujeito imerso na

sociedade de produção, o cineasta acha circunscrito ao seu período, aos seus

valores estéticos e recursos técnicos da qual pode dispor.145 Para Sidney Lumet:

Finalmente os filmes são uma arte. Acredito que nenhuma combinação dos filmes de maior bilheteria atrairia a atenção que os filmes conseguem sem o trabalho de Marcel Carné, King Vidor, Federico Fellini, Luz Bruñel, Fred Zinnemann, Billy Wilder, Carl Dreyer, Jean-Luc Godard, Robert Altman, David Lean, George Aikor, Willian Wellman, Preston Sturges, Yasujiro Ozu, Carol Reed, John Huston, Satajit Ray, Orson Welles, Jean Renoir, Roberto Rossellini, John Ford, Willian Wyler, Vittorio De Sica, Martin Scorsece, Ingmar Bergman, Akira Kurosawa, Francis Ford Coppola, Elia Kazan, Michelangelo Antonioni, Jean Vigo, Frank Capra, Bernardo Bertolucci, Ernst Lubitsch, Buster Keaton, Steven Spielberg e tantos outros. Ao mesmo tempo em que Batman, o retorno fatura quarenta milhões de dólares no fim de semana de seu lançamento, Minha vida de cachorro leva quatrocentos e vinte pessoas a rir e chorar em um pequeno cinema. A quantidade de atenção dada ao cinema está diretamente relacionada com os filmes de qualidade. Os filmes que são obras de arte é que criam esse interesse, mesmo que não figurem com muita freqüência na lista das dez maiores bilheterias.

146

Para o escritor Roland Barthes a imagem consiste em um fenômeno

antropológico, a imagem fílmica institui uma temporalidade própria. O “fazer cinema”,

da produção imagética está cada vez mais complexa, pois abarca uma gama de

conceitos, símbolos, percepções, objetivos, estereótipos, seleções de seqüências de

144

MORIN, E. O Cinema e o homem imaginário. Lisboa: Ed. Porto, 1982, p. 241. Apud (D‟ ANGELO BRAZ, C. As representações do imaginário: uma análise crítica a partir de três leituras fílmicas de Orfeu. Campinas: Unicamp, 2003. (Dissertação de mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduaação em Multimeios). 145

Sobre a questão do sujeito histórico, próprio de seu tempo e espaço Cf: BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. 146

Cf: LUMET, S., op cit., p. 202.

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cenas e linguagens específicas. O pesquisador Camilo D‟Angelo Braz diz em seu

estudo sobre a representação do imaginário na produção cinematográfica que:

O filme, como um tipo de documento, permite um recenseamento e uma classificação daquilo que costumamos chamar “imaginário”, a partir de um conjunto de imagens sujeitas ao tempo, cujos procedimentos da sua produção e seu resultado final, enquanto obra autônoma ou vinculada a um determinado estilo ou gênero, sofrerá diferentes contingências de aceitação ou rejeição. Com essa possibilidade, inúmeros estudos envolvendo a produção fílmica, em sintaxe e morfologia, os procedimentos metodológicos de análise, estudos sobre as formas de representação (a imagem perceptiva, imagem lembrança, a fac-símile de quadros históricos) ou icônica (as figurações pintadas, desenhadas, esculpidas, fotografadas) surgem para “decifrar” esse meio que, cada vez mais, agrega mais disciplinas.

147

Com base no que foi dito acerca da imagem cinematográfica, na produção do

filme Satyricon, o cineasta Federico Fellini se expõe, direta e abertamente, porém

com certo requinte de elegância. Como bem nos informa o poeta e escritor Guido

Bilharinho em “O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock”:

Satyricon, com suas cenas iniciais teatralizadas, contudo, não é simples resultado de refazimento ou reação intelecto-criativo. É mais. Nesse mais encontra-se o elemento perturbador. Quebrando as amarras de patente pudicícia no tratamento das manifestações sentimentais e sexuais do ser humano, Fellini as expõe, nesse filme, direta e abertamente, porém, com requinte e elegância.

148

147

Cf: D‟ANGELO BRAZ, C., op cit., p: 34 e 35. O autor ainda nos exemplifica, dizendo: “Há, por exemplo, o fascinante estudo icnográfico de Mikhail Rostovtzeff a respeito dos mosaicos antigos do Império Romano. Também, alguns estudos de sociologia da arte, ou dela decorrentes, como os de G. PLEKHANOV, G. LUKÁCS, E. FISCHER, Walter Benjamin, entre outros, envolvendo a relação arte e vida social. Mais recentemente, os de Erwin Panofsky de iconologia, que visa a atingir o sentido imanente da obra de arte, com visível influência do estudo das formas simbólicas de Ernst Cassirer, que propõe que o espaço de representação da obra de arte seja uma totalidade das formas simbólicas de uma sociedade. Entre os semióticos, começando por F. Saussure e Charles Sanders Pierce, que influíram decisivamente no enfoque semiótico da imagem por meio da noção de signo icônico. Foram seguidos por Charles W. Morris na década de 1960 e, finalmente, Umberto Eco, que após críticas contundentes ao iconismo, suavizou aceitado que certos signos são culturalmente codificados, sem serem totalmente arbitrários”, p. 35. 148

Cf: BILHARINHO, G. O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock. Uberaba: Instituto Triangulino de Cultura, 1999, p. 94 e 95.

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O filme é “liberador e ampliativo do enfoque do cineasta”. As imagens

escolhidas por Fellini ressaltam uma amostragem de figuras hediondas, com

deformações físicas, inérticas diante da câmera. É a “repugnância do homem” que

se revela por meio das cenas.

Ao sair desse circo de horrores fisionômico-corporais, a câmera segue

fazendo uma abertura focal, captando os panoramas, espaços e paisagens

decorados do ambiente, é o encontro de Fellini com Petrônio, é o espaço do Mito,

dos Rituais cotidianos, da ironia, da Sátira, do moderno e contemporâneo que se

revela com a imagem cinematográfica. Vejamos:

A partir daí arrefece e chega a desaparecer a apresentação das extravagâncias citadas, mas, pendularmente, extrapola a narrativa os limites da focalização do relacionamento entre o protagonista e seu parceiro para, dilatando consideravelmente sua abrangência, adentrar no vasto campo do mito e da história em peripécias e ocorrências várias em que se envolvem o protagonista e seu irmão nas quais até mesmo um poeta e um poetastro têm destacado papel, em que são relevantes a ironia, a modicidade e o agudo senso crítico de Petrônio (e de Fellini).

149

A imagem cinematográfica do suicídio de um intelectual que corta seus pulsos

refere-se à reconstituição da morte de Petrônio, que foi condenado ao suicídio por

ter sido acusado de conspiração contra o Imperador Nero. As cenas e as tomadas

das imagens destacam-se pelo aspecto cromático e pictório, e “excepcionalmente

concebido e elaborado”. Assim, Guido Bilharino conclui dizendo que:

Apresenta o filme, em sua complexa tessitura de intenções, pelo menos três linhas paralelas de realização: a estória dos dois irmãos e seu companheiro, o quadro inicial de abjeções e as alusões ou inserção dos protagonistas nas encruzilhadas onde se encontram, e às vezes se amalgamam, história e mito, sobressaindo sobre seu conjunto à extrema beleza da imagem na captação de décois e circunstâncias insólitas, muitas delas de evidente fundo crítico.

150

149

Ibid., p. 94 e 95. 150

BILHARINHO, G., op cit., p. 95.

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Por fim, Satyricon de Fellini é uma mescla de beleza e criatividade do

cineasta, ao som do compositor italiano Nino Rotta o filme vai construindo o

panorama imagético dos planos, das cenas e do roteiro. Neste viés, as imagens

presentes no Satyricon podem ser comparadas a citação do sociólogo e filósofo

francês Jean Baudrillard, na qual ele declara: “É precisamente quando ela parece

mais verídica, mais fiel e mais em conformidade com a realidade, é que a imagem é

mais diabólica”.151

151

Cf: BAUDRILLARD, J. The evil demon of images. Saint Louis, E.U. A: Left. Bank Books, 1984. Apud (XAVIER, I. O Cinema no século. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996, p. 38.)

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1.4 CARPE DIEM E O HEDONISMO EM EPICURO

“Mais vale aceitar o mito dos deuses do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos ao passo que o destino é uma necessidade inexorável”.

(EPICURO – “Carta sobre a Felicidade”)

O ponto de partida para se conceber o Hedonismo em Epicuro é o movimento

de formação do pensamento de Karl Marx. Com base em Epicuro, sua tese de

doutorado intitulada “A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e

Epicuro”, expõe a teoria Marxista sobre o “materialismo epicuriano” tendo como

cerne as relações do mundo cinematográfico, da produção do objeto fílmico com o

processo de produção e direção de Federico Fellini visto dentro da conjuntura do

materialismo histórico.

Assim, a tese sobre “Epicuro” dará origem a teoria do Materialismo de Marx.

Com isso, escritos de Demócrito e Epicuro encontram-se ligados a filosofia

helenística. Cabe ressaltar que, este contato com o universo da cultura grega vai

estar presente por toda a via de Karl Marx.152

Com isto, tanto Epicuro como Demócrito afirmavam que toda realidade da

física era formada a partir da agregação de partículas mínimas, invisíveis e

indivisíveis, os átomos, que eram combinadas de formas específicas. Entretanto,

opondo-se ao filósofo Abdera (filósofo, historiador e cientista atomista grego, 460-

152

Sobre o período helenístico que influenciou os escritos marxistas, ressaltamos que “em finais do século IV a.C., as cidades gregas ao perderem sua independência para os reis de Pérgamo (Antiga cidade grega da Mísia, próxima ao mar Egeu, que ficou muito conhecida no período helenístico por tornar-se a sede da dinastia Atálida. Foi nesta região que surgiu o pergaminho) Os Filósofos passaram a valorizar o conhecimento sensível e a desenvolver a concepção materialista da realidade. Assim, a filosofia centra suas discussões em volta do indivíduo e da obtenção da felicidade e do bem estar. Os deuses são reduzidos a dimensão humana e as religiões adquirem uma natureza sincrética. Destaque para as correntes filosóficas do estoicismo, epicurismo e ceticismo (atitude filosófica na qual as pessoas escolhem examinar de forma crítica se o conhecimento e a percepção que possuem são realmente verdadeiros). Para se aprofundar nestas questões e contrapor a leitura da teoria de Karl Marx sobre Epicuro, recomenda-se a leitura do filósofo Olavo de Carvalho Cf: CARVALHO, O de. O Jardim das Aflições. São Paulo: Realizações, 2000.

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370 a.C), Epicuro não admitia que as agregações dos átomos fossem realizadas sob

uma determinação qualquer, externa ao próprio átomo, mas que no momento inicial,

os átomos apresentavam um movimento vertical no vazio levando-os a caírem. Se

os átomos mantivessem este movimento inicial, os átomos seguiriam infinitamente

em quedas paralelas sem jamais se agregarem em si, isto é, sem jamais

constituírem qualquer elemento da matéria perceptível aos sentidos.

No entanto, Epicuro afirmava que, os átomos possuíam uma potencialidade

imanente, variante a alguma atividade mecânica que poderia alterar o movimento

infinito de queda. Ao realizar este movimento chocavam-se e agregavam a outros

átomos, formando assim, um “mundo sensível”. O próprio Karl Marx em sua tese nos

confere que:

Todo o corpo concreto é em geral um complexo, e em Epicuro será mais precisamente um complexo de átomos.

153

Mas enquanto Demócrito reduz o mundo sensível à aparência subjetiva, Epicuro faz dele um fenômeno objectivo. Epicuro fá-lo conscientemente, pois afirma partilhar os mesmos princípios, mas não fazer das qualidades sensíveis simples objectos da opinião.

154

A importância da tese de Karl Marx não está no materialismo do atomismo

epicuriano, mas na forma como esta teoria do atomismo se presta para análise das

formas da consciência. Em suma, na capacidade dos átomos em desviar-se da

trajetória mecânica e com isso criar “universos distintos”. Para Denis Collin,

professor do Lycée Aristide Briand d‟Evreaux:

[...] o lugar do átomo na filosofia epicuriana é completamente diferente do que se verifica em Demócrito, o átomo é uma espécie de coisa em si, um noumène que designaria o ser como tal, já em Epicuro, o átomo é um princípio de representação. [...] Assim, Epicuro objetivou no átomo a contradição entre a existência, enquanto Demócrito não faz senão “conservar o aspecto material e propor hipóteses com fins empíricos”.

153

Cf: MARX, K. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Lisboa: Editorial Presença, 1972, p. 25. 154

Cf: Ibid, p. 146.

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[...] Marx, sem haver ainda rompido formalmente com o helenismo, faz do materialismo epicuriano um momento decisivo da história da filosofia, tomada como a história da consciência.

155

Ao realizarmos a leitura da teoria marxista tendo como concepção a teoria do

pensamento epicuriano, salientamos que o cineasta Federico Fellini não segue a

trajetória comum imposta pelo mercado audiovisual, da produção de um filme sobre

os moldes do sistema hollywoodiano, Fellini restringe seu público ao propor um filme

diegético, com particularidades de seu próprio “mundo cinematográfico”. Ao desviar-

se da trajetória “comum” da produção fílmica, permite que ele próprio possa

constituir uma narrativa, utilizando uma linguagem técnica específica própria do seu

universo fílmico.

Entretanto, todo discurso cinematográfico traz certa carga de ideologias,

próprias de quem o produziu. Mesmo Fellini não tendo realizado um filme

propriamente voltado para o grande público consumidor, o mesmo acha-se inserido

no modo de produção capitalista, pois depende deste modelo para “sustentar-se”

como “personagem felliniano” do cenário audiovisual. Estabelece aqui a dialética

marxista, entre o cineasta e sua obra enquanto “arte” e “objeto” vendável. A

representação do Fellini hedonista é característica de sua obra, o filme “Satyricon” é

uma festa para os olhos, principalmente pela fotografia de Guiseppe Rotunno, da

direção de arte e figurinos de Danilo Donati e da trilha sonora de Nino Rota.

Neste sentido, na leitura de Epicuro e do poeta e filósofo latino Lucrécio, a

filosofia Epicurista adverte que os homens devem amar a vida e aproveitar as

oportunidades de prazer que ela oferece, deixando de envenená-la com ódios,

paixões e os dissabores, sobretudo, não se amargurando inutilmente com o medo

da morte. “Devemos lançar longe de nós esse medo do Aqueronte, que

profundamente perturba a vida humana em seu próprio âmago, e, cobrindo tudo com

o negror da morte, não nos deixa nenhum prazer tranqüilo e puro”.156

155

Cf: COLLIN, D. “Epicuro e a formação do pensamento de Karl Marx”. In: POLITEIA: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 6, n. 1, p. 21 e 23. 156

“Et metus ille foras praeceps Acherontis agendus. Funditus humanam qui vitam turbat ab imo, Omnia suffundens mortis nigrore; neque ullam. Esse voluptatem liquidam puramque reliquit.” Cf: De

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A teoria atomista de Epicuro difere muito da teoria moderna. O homem é livre

porque existe a “declinação atômica”. Assim, ao ter posse dessa liberdade, o homem

pode decidir o seu destino, pode libertar-se de suas ambições, das preocupações do

dia-a-dia, para isto, o indivíduo não deve visar cargos políticos, nem invejar aqueles

que os detêm, nem preocupar-se com as riquezas. O filósofo Agostinho da Silva

completa dizendo que157:

No fundo, o epicurismo é uma ascese, que pretende deixar o espírito o mais livre, o mais despojado, o mais puro possível para a apreensão dos prazeres que são os únicos que vale a pena buscar: o prazer da leitura, da contemplação da ordem do mundo ou da conversa entre amigos esclarecidos, o sentimento da fraternidade que une os homens livres; quando a morte vier, recebê-la-emos serenamente, primeiro porque tivemos cada hora presente como um tesouro precioso, sem nunca chorarmos o passado ou sonharmos o futuro, depois porque sabemos que a morte é o grande sono sem sonhos de quem já falava Sócrates.

O filme Satyricon de Federico Fellini apresenta-se na forma de teatro,

permeado por rituais, que por vezes a narrativa do filme mescla-se com diálogos

teatrais. Um dos aspectos mais marcantes do filme diz respeito a sua descrição e

não propriamente a sua narrativa, fato verificado por meio da decoração e do

desprezo pela luz natural. A fotografia sugere ao público um ambiente exótico, da

busca pelo prazer e de uma filosofia epicurista. Sobre a filosofia Epicura, vejamos:

A própria alma, diz-se, tem os prazeres. Pois bem, que os tenha. Que seja a sede de delícias e prazeres! Que se encha de tudo o que em geral encanta os sentidos! Já que é capaz de rever o seu passado e se lembra dos prazeres de outra com transporte, que se debruce sobre aqueles que hão de vir, regule sobre isso as suas esperanças e, enquanto o seu corpo se abandona à boa vida, incida os seus pensamentos nos prazeres futuros! Tudo isso me parece tanto mais miserável, quanto é uma loucura tomar os males por bens. Sem a saúde de espírito ninguém é feliz, e não é são aquele que procura como sendo o melhor aquilo que lhe causa prejuízo. Por isso é feliz o homem que tem um julgamento recto; é feliz aquele que se contenta com o presente, seja ele qual for, e que ama aquilo que tem; é feliz

Rerum Natura, III, VS. 37 a 40 In: EPICURO E LUCRÉCIO. O Epicurismo e “Da Natureza”. São Paulo: Editora Tecnoprint S.A, s/d. 157

Cf: SILVA, A da. “Prefácio”. In: EPICURO E LUCRÉCIO. O Epicurismo e “Da Natureza”. São Paulo: Editora Tecnoprint S.A, s/d.

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aquele que confia à razão a organização dos seus assuntos. Aqueles que fazem do prazer o soberano bem, sabem muito bem o lugar vergonhoso em que o colocaram. Dizem também que o prazer não pode ser separado da virtude e afirmam que ninguém pode viver honestamente sem viver agradavelmente, nem viver agradavelmente sem viver honestamente. Não vejo como estes elementos podem caber no mesmo saco. Qual é, pois, pergunto-vos, a razão pela qual o prazer não poderia ser separado da virtude? Aparentemente o princípio de todo o bem está na virtude.

158

No conjunto da tese de Marx, o filósofo apóia-se em Demócrito no aspecto da

racionalidade e em Epicuro no âmbito da subjetividade159. A idéia de liberdade para

Marx vai estar associada à teoria filosófica de Epicuro, que por sua vez vão delinear

o pensamento felliniano para uma “psicologia do cinema” (emoção e sensação) 160.

Federico Fellini envolve o espectador na trama, trabalha mais com o

subjetivo, com a emoção. Com isso, o público é conduzido pelo filme, na própria

maneira de filmar. É a partir deste enfoque que passaremos a discutir os rituais

cotidianos no Satyricon, sua natureza e práticas. Nesta perspectiva, o próprio

conceito de ritual no Satyricon será construído por meio da leitura da obra fílmica e

literária.

158

Cf: EPICURO; SÉNECA. Carta sobre a Felicidade e Da vida Feliz. Lisboa: Sophia, 1994, p. 47 e 48. 159

“Os homens agem em condições determinadas, condições que eles não escolhem, mas nas quais eles agem livremente. É esta liberdade essencial que Marx estima em Epicuro e é por causa dela que seu atomismo é um atomismo não determinista, ou, mais exatamente, é por causa dela que é possível delimitar um domínio do determinismo e um domínio da liberdade. Se o primeiro ponto não nos afasta das posições tradicionalmente defendidas por numerosos marxistas; o segundo passa despercebida pela maior parte deles, obcecados pela idéia de um marxismo científico no qual os indivíduos desempenham tão-somente o papel determinado pelas infraestruturas. A nonchalance epicuriana não tem lugar nesse sistema fechado da “ciência marxista”. Cf: COLLIN, D., op cit., p. 25. 160

Lado Direito do Cérebro: é o lado da emoção. No corpo este lado se manifesta na sua oposição – lado esquerdo. Assim, na tela, tudo que vemos do lado esquerdo do enquadramento é captado pelo nosso inconsciente, pela emoção. Lado Esquerdo do Cérebro: é o lado da razão. No corpo este lado se manifesta na sua oposição: lado direito. Assim, na tela, tudo que vemos do lado direito do enquadramento é captado pelo nosso consciente, pela razão. Sobre esta questão o roteirista, dramaturgo, ator e escritor Jean-Claude Carrière cita que: “Aqueles que estudaram o cérebro [...] dizem que o centro da linguagem está situado no lado esquerdo, onde se encontram a razão, a lógica, a memória e a associação inteligente de idéias e percepções. A faculdade da visão, por sua vez, situa-se no lado direito, junto com a imaginação, a intuição e a música. A atividade normal do cérebro pressupõe que os dois hemisférios funcionem em harmonia através de incontáveis, minúsculas e velozes conexões. Se isso é verdade, então nenhum cérebro trabalha com maior amplitude e com mais intensidade do que aquele de um grande cineasta, solicitando constantemente a fundir o verbal e o visual.” Cf: CARRIÈRE, J.C. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 25.

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EUMOLPO: É o amor ao dinheiro que causou essa transformação. Nos tempos antigos, quando se sabia apreciar a virtude por si mesma, as artes liberais e a ciência floresciam, e uma nobre emulação levava aos homens a darem o melhor de si na busca de descobertas que beneficiariam os séculos vindouros. Foi assim que Demócrito extraiu o suco de todas as ervas e folhas, e consumiu a vida em experimentos visando revelar as propriedades das plantas e minerais. [...] E nós, entretanto, mergulhados no vinho e na perdição, não temos sequer a determinação de estudar as artes que nos foram legadas, e como detratores da Antigüidade trilharmos um currículo de decadência. Onde foi parar a dialética? E a astronomia? Onde a estrada do saber? Quem hoje em dia vai a um templo e faz uma oferenda a um deus para conquistar a eloqüência ou por um golpe na fonte da filosofia? Nem mesmo mente sã em corpo são é o que pedem, mas, assim que adentrarem o templo promete oferendas em troca do prazer de sepultar um parente rico, desenterrar um tesouro ou amealhar sem esforço trezentos mil sestércios. O próprio Senado, antigo guardião das virtudes, faz votos de mil libras de ouro a Júpiter no Capitólio, ornando o deus com seus ouros e assim sansionando a ganância dos mortais. Não admira, portanto, que a arte da pintura tenha morrido, já que deuses e homens encontram agora mais beleza em barras de ouro do que nas obras-primas de Apeles e Fídias.

(Petrônio - século I d.C)

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2 UM OLHAR SOBRE OS RITUAIS DO SATYRICON

"Rituals are performative: they are acts done; and performances are ritualized: they are codified, repeatable actions. The functions of theatre identified by Aristotle and Horace - entertainment, celebration, enhancement of social solidarity, education (including political education), and healing - are also functions of ritual. Rituals emphasize efficacy (...) Theatre emphasize entertainment. (...) But these list of differences (not oppositions) does not support the tendency in Western scholarship to suppose that ritual performance precedes or is at the origin of theatre. Theatre and ritual are as night and day, chicken and egg - neither has priority over the other." (Richard Schechner – Companion Encyclopedia

of Anthopology, p.613-614)

2.1 UMA DEFINIÇÃO DE RITUAL

Nosso cotidiano encontra-se marcado por diferentes rituais, que por vezes

passam despercebidos aos nossos olhares. Estudá-los é uma maneira de enfatizar

sua importância para a vida social, bem como resgatar sua relevância para a

formação individual, não relacionando “rituais” apenas a fenômenos de ordem

tradicional, formais ou arcaicos.

Este capítulo tem como propósito fazer uma “leitura” de três cenas ritualísticas

da obra fílmica Satyricon de Fellini, recorrendo à obra literária de Petrônio como

base teórica. Assim, o conceito de ritual do Satyricon se dará com o próprio estudo

das obras.

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Para dialogar com a produção fílmica de Federico Fellini optei em seguir as

orientações da Prof. Drª. Mariza Peirano do Departamento de Antropologia da

Universidade de Brasília (UnB) com a obra “Rituais: Ontem e Hoje”.161

Ao adotar este percurso, a própria autora enfatiza que o conceito de ritual

deve ser etnográfico, isto é, deve-se levar em consideração a perspectiva do “outro”,

o que determinados grupos apreendem como sendo eventos ritualísticos.

Outro aspecto observado pela pesquisadora diz respeito à natureza dos

eventos ritualísticos, eles podem ser profanos, religiosos, festivos, formais, informais,

simples ou elaborados. Neste contexto, optei por fazer uma análise de três formas

de rituais do Satyricon de Fellini: o profano, o religioso e o festivo.

A escolha desses três elementos como forma de estudo deve-se ao próprio

hedonismo de Fellini e de sua característica “felliniana” de cineasta. Assim, o

profano, o religioso e o festivo nos apontam para as representações e valores de

uma sociedade. A Prof. Drª Mariza Peirano ressalta que ao observar tais

características, os rituais elucidam o que já é comum a um determinado grupo, pois

o que se encontra no ritual acha-se presente no dia-a-dia e vice-versa. Para a

antropóloga: “Rituais são bons para transmitir valores e conhecimentos e também

próprios para resolver conflitos e reproduzir as relações sociais”.162

De acordo com esta citação, podemos afirmar que os rituais cotidianos não

são definitivos ou imutáveis, sendo sua prática comum para várias finalidades.

Dessa forma, o conceito de “ritual” não pode ser fossilizado como algo formal ou

161

Cf: PEIRANO, M. Rituais: ontem e Hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 162

Cf: PEIRANO, M., op cit., p: 10. A professora e antropóloga Esther Jean Langdon da Universidade Federal de Santa Catarina nos diz ainda que: “O cotidiano é marcado por momentos rituais, tais como os cumprimentos (“Tudo bem”, “Tudo bom”) e as despedidas (“Foi um prazer”, “Igualmente”) que são gestos externos convencionados e obrigatórios, comunicando pouco além de marcar as vindas e saídas de nossos encontros. [...] Dentro do contexto atual, a importância da análise de ação ritual como constitutiva dos processos sociais tem aumentado. Alguns autores introduziram a noção de “performance cultural” ou “performance” para expressar a multiplicidade de formas rituais que estruturam e permeiam a vida, estas incluem os ritos sagrados (cultos religiosos, formaturas, cerimônias cívicas), as formas de entretenimento (teatros, circos, festivais, festas, espetáculos, jogos e esportes) e os processos políticos (atos jurídicos e estaduais, manifestações étnicas, greves e até os tumultos). Outros preferem continuar utilizando o conceito do rito. [...] O rito, ou performance cultural, é um evento cívico, que é marcado por uma ruptura no fluxo da ação social, por um limite temporal, e os atores sociais que estão, de alguma maneira, manifestando sobre seu mundo. Cf: LANGDON, E. J. Rito como conceito chave para a compreensão de processos sociais. In: Antropologia em primeira mão/Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Florianópolis: UFSC, 2007, p. 1-14.

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desprovido de sentido. Mariza Peirano completa suas observações ao adotar um

conceito estudado por um antropólogo, Staley Tambiah, na qual para ele os rituais

são fenômenos culturais de comunicação. Leiamos suas palavras:

O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas seqüências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como “performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato convencional (como quando se diz “sim” à pergunta do padre em um casamento); 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação (um exemplo seria o nosso carnaval) e 3), finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance,por exemplo, quando identificamos como “Brasil” o time de futebol campeão do mundo.

163

A partir destes indícios, observamos que os rituais podem ocorrer

individualmente ou coletivamente, mediando tradições culturais ou práticas

cotidianas. Dessa forma, considerando cada um dos fatores citados sobre as

representações e as percepções das práticas dos rituais, damos início à análise da

obra fílmica de Fellini.

163

Apud (PEIRANO, M., 2003, p. 11)

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2.2 AS CENAS

Cabe ressaltar que as cenas escolhidas para o estudo dos rituais no Satyricon

levam em consideração o posicionamento do diretor, isto é, a expressão de Federico

Fellini enquanto cineasta e sua visão ideológica de sociedade.

Ao propor o estudo do profano, do religioso e do festivo visamos partir daquilo

que as próprias cenas nos mostram, buscando desvendar as zonas não visíveis do

imagético.

Assim, a própria narrativa fílmica, as organizações dos seus elementos nos

permitirão elucidar o “enquadramento” do diretor em relação aos personagens. O

fato de escolher determinadas cenas em função de outras, justifica-se pelas próprias

influências do cineasta, principalmente no que diz respeito ao contexto de produção

e a apropriação do texto fílmico.

Tendo em vista tais características, salienta-se o próprio discurso fílmico

adotado por Fellini. Quais os propósitos dos supostos erros de leitura do passado

entre a obra fílmica e literária? Haja vista que todo discurso é uma construção de

quem o realiza, e que os “erros de leitura do passado histórico são propositais.” O

escritor italiano Italo Calvino completa dizendo que:

[...] O excepcional encontro entre o expectador e um filme sempre pode acontecer, por mérito da arte ou do acaso. No cinema italiano, pode-se esperar muito do gênio pessoal dos diretores, mas pouquíssimo do acaso. Esta deve ser uma das razões pelas quais algumas vezes admirei, muitas vezes apreciei, mas nunca amei o cinema italiano. Sinto que ele tirou mais do que deu prazer de ir ao cinema. Porque este prazer deve ser avaliado não só com relação aos “filmes de autor”, com os quais tenho um relacionamento crítico do tipo “literário”, mas também com relação às produções médias e pequenas, com os quais tento estabelecer uma relação de simples expectador.

164

164

Cf: FELLINI, F. Fazer um filme. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 20.

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A partir deste relato, o cinema apresenta-se como uma fonte imprescindível

para compreender aspectos de difusão de idéias e comportamentos, sendo capaz

de formar e deformar opiniões, levando a uma manipulação da realidade, por

representar aspectos do cotidiano, tais como a política, a guerra e em última

instância, a história.165

2.2.1 Rituais do Sagrado

“Devemos dar um fim, de uma vez por todas, a fabula acerca do caráter sagrado da vida humana”

(Leon Trotsky)

Os rituais dentro da esfera do sagrado encontram-se ligados as questões

religiosas ou aos sistemas religiosos. O aspecto formal do sagrado concede a

coletividade uma noção de controle ou de ordem que alcançam todos os indivíduos

da sociedade. Este controle social ocorre por meio dos valores morais e das visões

de mundo que o religioso coloca como a forma de legitimar seu poder e influência

nas questões da contemporaneidade.

A formalidade do ambiente religioso é caracterizada pela repetição, fato que

agrega diferentes formas de rituais no espaço sagrado, pois tudo que se repete no

sentido de ritual fornece aos indivíduos uma sensação de segurança.

Tomando como referencial teórico o livro de Mariza Peirano, deve-se levar em

consideração que para se analisar os rituais, neste caso, os rituais do sagrado, não

podemos considerar nossos valores racionais ou sociais, já que cada civilização

possui um tipo de cultura que é peculiar há seu próprio tempo e espaço.

165

Cf: LEITE, S. F. O cinema manipula a realidade? São Paulo: Paulus, 2003.

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Os ritos166 de passagem que são marcados por rituais e que são muito

comuns em quase todas as culturas, como por exemplo, o nascimento, a entrada na

vida adulta, o casamento e a morte são acontecimentos culturalmente representados

e fundamentais para nossa vida. A antropóloga Adriane Luisa Rodolpho apresenta

em seus estudos uma visão sobre estes quatros ritos de passagem e que também

compõem o cenário do mundo sagrado. Para a pesquisadora:

Com relação ao nascimento, temos rituais tão variados quanto o da “couvade” entre alguns grupos indígenas (após o parto é o homem que fica de resguardo, enquanto a mãe logo já está se ocupando de seus afazeres cotidianos), quanto o da circuncisão de meninos ou a excisão das meninas. A atribuição do nome da criança é outro tema fundamental entre os rituais do nascimento, significando na maior parte das vezes o ingresso ou inclusão desta no grupo. Do mesmo modo, a morte não se relaciona simplesmente com um cadáver, com o fim de uma vida, mas trata-se igualmente de uma nova condição, uma nova iniciação à vida eterna, ao reino dos mortos (dependendo das crenças de cada grupo sobre o destino dos homens). Os rituais de sepultamento igualmente simbolizam a separação do mundo dos vivos; estes devem zelar pelo bom encaminhamento dos ritos segundo os costumes do grupo. O não cumprimento destas prescrições pode ocasionar outros riscos para o mundo dos vivos.

167

Com isso, a antropóloga Adriana Luisa Rodolpho salienta ainda que ao

passar pelos “ritos de passagem”, o indivíduo deixa de ser o que era, contudo ainda

não é o que poderia ser como, por exemplo, um cadáver, que não está propriamente

morto, pois não passou pelos ritos de sepultamento. Este fator faz com que o

indivíduo passe a encontrar-se num estado de indeterminação. Este período, do pré

e pós ritual devem ser analisados como fases invariantes e que mudam de acordo

166

Para a etnóloga francesa Martine Segalen: “[...] o rito é caracterizado por uma configuração espaço-temporal específico, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de linguagens e de comportamentos específicos e por signos emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos seus bens comuns de um grupo [...] Enquanto conjuntos fortemente institucionalizados ou efervescentes, os rituais podem ser considerados sempre como um conjunto de condutas individuais ou coletivas relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual e de postura), caráter repetitivo e forte carga simbólica para atores e testemunhas. Cf: SEGALEN, M. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 31-32. 167

Cf: RODOLPHO, A, L. Rituais, ritos de passagem e de iniciação: uma revisão da bibliografia antropológica. In: Estudos Teológicos, v. 44, nº 2, 2004, p: 142 Apud (HELLERN, V; NOTAKER, H; GAARDER, J. O Livro das religiões. São Paulo: Cia das Letras, 2000).

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com os ritos culturais. Ao fazer referência a Gennep, pioneiro dos estudos sobre

rituais, o pesquisador e antropólogo Roberto da Matta completa dizendo que168:

A grande descoberta de Van Gennep é que os ritos, como o teatro, têm fases invariantes, que mudam de acordo com o tipo de transição que o grupo pretende realizar. Se o rito é um funeral, a tendência das seqüências formais será na direção de marcar ou simbolizar separações. Mas se o sujeito está mudando de grupo (ou de clã, família ou aldeia) pelo casamento, então as seqüências tenderiam a dramatizar a agregação dele no novo grupo. Finalmente, se as pessoas ou grupos passam por períodos marginais (gravidez, noivados, iniciação, etc), a seqüência ritual investe nas margens ou na liminaridade do objeto em estado de ritualização.

Para o cientista social Émile Durkheim (1858 – 1917)169, a religião é a

expressão dos valores e da moral da sociedade via os atos rituais. Os significados

simbólicos das crenças organizam a sociedade, assim como o antropólogo Roberto

da Matta enfatizou ao citar Gennep. Cada cultura se organiza frente aos objetos em

estado de ritualização. Na discussão acerca da religião Durkheim expõe uma divisão

entre o sagrado e o profano, sendo antes, uma divisão fundamentada pelo próprio

homem. Com isso, o aspecto do sagrado conduziria os indivíduos para a formação

de uma moralidade social, coletiva e impessoal.

Com este parâmetro, é por meio do sagrado que os ritos, as crenças e os

símbolos se prevaleceriam no meio social, reforçando as expressões da sociedade.

Dessa forma, como positivista Durkheim defendia uma religião laica, desvinculada

do sagrado e voltada para o racionalismo. Os indivíduos seguiriam uma religião não

por temor das conseqüências que poderiam advir sobre o pecador, mas pelas regras

morais, baseadas na boa conduta do convívio em sociedade.170

168

Cf: GENNEP, A.V. Os ritos de passagem (apresentação de Roberto da Matta). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 18. 169

Cf: DURKHEIM, E. As formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulus, 1989. 170

A certeza de Durkheim de que a religião era o centro da sociedade era tão grande que ele não podia imaginar uma sociedade totalmente profana e secularizada. Onde estiver à sociedade ali estarão os deuses e as experiências sagradas. E chegou mesmo a afirmar que existe algo de eterno na religião que está destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se envolveu. Cf: ALVES, R. O que é Religião? São Paulo: Loyola, 1999, p: 66.

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2.2.2 Encontrando os rituais

A Morte

Figura 1 Cena do Satyricon – despedida – (Enquadramento: Plano Conjunto).

Figura 2 Cena do Satyricon – despedida (2) – (Enquadramento: Close/Front View: foco no personagem

de frente) – Câmera movimenta-se da direita para esquerda, imagem que remete a emoção)

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Figura 3 Cena do Satyricon – despedida (3) – (Enquadramento: Close-Up)

A religião romana no período do principado romano, isto é século I d.C, era

formada por meio de uma relação “contratual” entre os cidadãos romanos e os

deuses, enquanto os romanos prestassem cultos e homenagens aos deuses, a

ordem e a paz estariam asseguradas. O sagrado para os romanos (sacer) não era

propriamente a presença de qualidades divinas em um objeto ou ser, mas este

objeto ou ser passava a ser propriedade do divino por meio da qualidade jurídica a

ele atribuída. Assim, como toda a propriedade pública é inviolável, a violação da

propriedade divina também possuía uma definição, o sacrilégio.171

Para John Scheid, estudioso da História Religiosa Romana (École des

haustes études em Scienses Sociales – EHESS), os deveres religiosos eram

impostos aos indivíduos pelo nascimento, pela obtenção da cidadania romana, em

caso de estrangeiro, ou pela profissão, sendo algo de cunho social e não individual,

existindo assim, tantas religiões quanto grupos sociais, tais como: a cidade, a legião,

os colégios de artesãos, os bairros, as famílias, etc.172

171

Cf: SCHEID, J. La Religion des Romains. Paris: Armand Colin, 1998, p: 2 Apud: (BARNABÉ, L. E. Religião Romana: Revisões de conceitos e abordagens. In: Anais Eletrônicos da XII Semana de História – “O Golpe de 1964 e os dilemas do Brasil Conteporâneo.” UNESP/Assis. Assis, 19 a 22 de Outubro de 2004, p. 1) 172

Cf: SCHEID, J. La Religion des Romains. Paris: Armand Colin, 1998, p. 1.

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A noção de particularidade associada à religião é algo formado na

contemporaneidade, entretanto nos identificamos como seres sociais através de

rituais coletivos, que são comuns a determinados grupos da qual passamos a fazer

parte, legitimando nossa forma de pensar e agir.

A identificação com algo sobrenatural se deve ao fato da necessidade do ser

humano de apegar-se a algo ou alguma coisa que lhe possa atribuir uma identidade,

a religião passa a exercer esta função cultural de formação social que simboliza todo

o processo de incultamento de valores e princípios morais.

E então, a religião e a morte sempre foram temas que despertaram interesse,

pois sem a morte não haveria religião ou deuses. Nesta tentativa de decifrar a morte,

o homem teria buscado na religião uma maneira de imortalizar-se.

Desta forma, este medo do desconhecido, dos deuses e da morte é que a

filosofia epicurista, do Carpe Diem veio para libertar. Esta doutrina permitia ao povo

romano traçar seu próprio destino, livrando-os do medo dos deuses e da morte. A

filosofia epicura defendia a tranqüilidade da alma, sem a necessidade de prestar

contas a religião tradicional. A felicidade estaria na aproximidade do homem com a

filosofia.

Nas figuras 1, 2 e 3 que retratam cenas do Satyricon, podemos perceber o

uso da emoção, o movimento da câmera do lado direito para o esquerdo, bem como

o uso do plano conjunto para o enquadramento do Close e Close-Up no rosto da

criança. Com isso, o Satyricon de Fellini trabalha com a emoção ao invés da razão

levando o expectador a fazer parte do cenário ou da trama fílmica.

Nesta cena de despedida, alusão a morte, na qual fica mais clara ao

visualizarmos a figura de número 4, filmado no plano conjunto, na qual a fala do

personagem indica a existência de um lugar melhor, avesso ao mundo terreno, que

denominamos de paraíso: lugar para onde vão os mortos em certas religiões; lugar

muito agradável.

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Figura 4

Cena do Satyricon – despedida (4) – (Enquadramento: Plano Conjunto)

Na física epicurista, toda a matéria pode ser decomposta em átomos e é

efêmero, o homem é efêmero, sendo, portanto mortal, pois é composto por átomos.

Entretanto, os átomos são sólidos e indivisíveis, sendo eternos, e ao desintegrar a

matéria, separam-se para fundirem em outros corpos. Assim a morte seria a

desagregação do conjunto atômico, não existindo motivos para temê-la.

A fundamentação da teoria epicurista tem como propósito dissipar a angústia

mental que é causada pelos deuses ou pela religião. A necessidade de uma religião

sede lugar a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade e a liberdade

humana.

É necessário que o homem romano afaste-se da ignorância (dominada pela

religião) para libertar-se do temor dos deuses e da morte. Não é o negar a existência

dos deuses, mas os considerar como representantes das forças da natureza, e esta

como o princípio e o fim de tudo que existe, até mesmo dos próprios deuses.

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No epicurismo, o homem deve ser guiado pelas suas vontades, dedicando ao

estudo da natureza para libertar-se das superstições do mundo religioso, a morte

seria para a religião uma forma de controle social, uma coerção contra a vivência do

prazer que a vida pode oferecer. O homem vive na constante busca de poder, de

ascensão social, como se tudo que tivesse sido conquistado na vida pudesse

também acompanhá-lo na morte, ao temer a morte o homem cultiva a infelicidade.

Na obra de Petrônio e no filme de Fellini, torna-se notável a questão de

interesses em torno daqueles que possuíam dinheiro e poder, ou seja, aqueles na

qual o poder e a riqueza já era algo inerente; os que lhe desejavam a morte estavam

à volta na expectativa de usurparem alguma coisa, principalmente se estes não

tivessem herdeiros legítimos. Todos que gravitavam ao seu redor viviam na

esperança de serem contemplados no testamento. Sobre esta questão, vejamos:

Trimalquião procura controlar esse momento derradeiro através de previsões e ensaios cênicos de quando e como será sua partida para o mundo do Além. E o lugar que não terá no coração dos homens procura garanti-lo na grandeza do seu monumentum fúnebre. Licas tenta fugir a um destino marcado, observando com fervor religioso, presságios e admonições divinas. No entanto, o mesmo vento que impelia as velas das suas embarcações o empurra para o abraço mortal das vagas enfurecidas. Não tem pai, mulher, filho que o chorem no momento da despedida. Mãos inimigas lhe vão erguer a pira que resgate a passagem para outra dimensão. Eumolpo toda a vida foi um aventureiro. A única riqueza com que acenava era o brilho do intelecto, que amargos dissabores lhe causaram e também algumas alegrias. Em Crotona, vai passar os últimos dias da vida como rei que os heredipetae julgavam que ele era. E será, certamente, recordado. Pelos companheiros de aventura, que simbolicamente liberta, à hora da morte (talvez para uma existência menos atribulada); pelos captatores, que nunca hão de ser capazes de digerir o ludíbrio, maior ainda que a pretensa riqueza do velho. Três sendas rasgadas numa terra de engano, de insegurança, de receio e de morte. É a visão panorâmica desse mundo que interessa, por fim conhecer.

173

Fellini em sua obra fílmica, busca dar uma ênfase nas características visuais,

como as cores, o cenário e os personagens. Na relação da morte com o sagrado, o

cineasta explora mais o lado psicológico, o temor que pairava sobre o desconhecido,

o apego nas coisas materiais que levaria ao interesse de muitos, a solidão do

173

Cf: LEÃO, D. F. As ironias da fortuna: Sátira e moralidade no Satyricon de Petrônio. Coimbra: Edições Colibri (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), 1998, p. 116-117.

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momento da morte, da despedida da vida, da falta de pessoas que pudesse

acompanhar o cortejo fúnebre.

Com este pensamento sobre as características apontadas na obra de Fellini,

o Satyricon foi rodado em formato alargado, vulgarmente apelidado de

CinemaScope. Os formatos alargados obtêm-se por meio da utilização de uma lente

anamórfica na câmera, que vai comprimindo a imagem. Outra lente, colocada no

projetor realiza a função inversa.

O CinemaScope como citamos, foi introduzido em 1953 por meio do filme

“The Robe”, na qual os anúncios sobre ele divulgavam como um “milagre moderno

que era possível ver sem óculos” e com “som estereofônico de alta qualidade”. O

som estereofônico demorou a torna-se padrão na época do CinemaScope dada à

generalidade das salas de projeção.

Todos estes recursos cinematográficos eram utilizados por Fellini e aparecem

no Satyricon, às imagens eram projetadas em um quadro amplo e achatadas como

se fosse um antigo afresco retratado numa parede. Assim, o filme criado por Fellini a

partir de seu imaginário, foge a realidade de Petrônio, porém destaca-se pela

articulação daquilo que se considera ficção e do que pode se considerar como real

dentro da perspectiva historiográfica.

O filme apresenta-se de forma desconexa, em um ambiente de caos,

produzidos nos estúdios do Cinecittà. A música foi escolhida pelo próprio cineasta,

utilizando recursos sonoros no estilo metálico e eletrônico. Seguindo o caminho

oposto das produções hollywoodianas, Fellini não mostrou uma Roma nostálgica,

com base no sentimentalismo italiano, mas uma Roma baseada na perca do mos

maiorum: da tradição romana.

Os tradicionais defensores do mos maiorum – anciãos, aristocratas, casta sacerdotal – abandonam essa função para protagonizarem, à sombra da antiga fama, todos os actos que deveriam rejeitar. As mulheres, por sua vez, há muito que se esqueceram o exemplo de Cláudia. Apenas Fortunata continua a ecoar o domum seruauit com razoável eficácia. As demais qualidades só na aparência estão presentes. Curiosamente, o grande exemplo anunciado da leuitas feminina acaba por trazer uma lição adjacente: a do triunfo do amor e da vida sobre a escuridão da morte. Algo

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que Encólpio, quando tudo parecia apontar para a consumação plena, se vê impotente para concretizar. Porque não ama, apenas deseja Circe; porque dedica a atenção a uma pessoa sem identidade e sem caráter, que congrega em si algumas qualidades femininas e todos os defeitos com outro fruto que não seja engano, traição e dor. O amigo tem de sofrer tudo isso e ainda a punição do deus, quando buscava trilhar outra via. Se o desalentado Encólpio se vê sem meios para atingir os objectivos que se tinha proposto alcançar, outras personagens há, no Satyricon, que, real ou fingidamente, detêm um grande poder.

174

O Satyricon de Fellini é considerado pelos críticos cinematográficos como um

filme de “contracultura” por ser uma adaptação livre da obra literária de Petrônio,

muitos dos personagens fellinianos foram associados aos Hippies da década de

1960. Os jovens aventureiros que iam à busca de aventuras sinalizavam para os

críticos contemporâneos como sendo semelhantes aos jovens do período moderno,

desapegados dos valores morais, abertos a sexualidade e contra as crenças

religiosas. Estes, assim como os aventureiros em Petrônio visavam o Carpe Diem

epicurista, da busca pela liberdade e de novos prazeres.175

Para Fellini, o Satyricon era o resgate do misterioso, do obscuro e etéreo

visual clássico do passado “arqueológico” de Petrônio com vistas às questões do

período moderno. Os fragmentos literários da obra de Petrônio permitiram ao

cineasta trazer aos olhos dos espectadores uma verdade inventada, rumo a Roma

Felliniana.176

174

Cf: LEÃO, D. F. As ironias da fortuna: Sátira e moralidade no Satyricon de Petrônio. Coimbra: Edições Colibri (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), 1998, p. 96 e 97. 175

Essas características fizeram com que muitos estudiosos do Satyricon de Fellini e Petrônio associassem também a obra Felliniana ao espetáculo “HAIR”, de grande sucesso na Broadway, que conta a história de um grupo de jovens que vivem em Manhattan, New York, e praticam o amor livre, além de abordarem temas relacionados à homossexualidade e as drogas. Cf: WYKE, M. Projecting the past: ancient Rome, cinema, and history. New York: Routledge, 1997, p. 191. 176

Cf: Ibid., p. 189-192.

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Figura 5

A morte de dois Patrícius, indireta homenagem a Petrônio que morreu conversando com seus amigos – (Enquadramento: Close-Up)

177

177

Cf: FELLINI, F. Fellini Satyricon. Bologna: Cappelli Editore, 1969. Sobre a morte de Petrônio, o historiador Claudiomar R. Gonçalves cita que: “Tácito constrói um jogo íntimo caracterizado por três fases: uma elevação dramática; uma peripécia (atitude não passiva de Petrônio frente a morte) que prepara o leitor para o grande final: a morte do personagem marcado pela contradição: Dia/Noite; Luxo/Simplicidade; Ambição/Desprendimento; Morte Militar/Morte Filosófica; Morte Trágica/Morte Normal, ou seja, criando uma espécie de anti-morte que demonstraria que sua ars vivendi estava de acordo com sua ars moriendi.” Cf: GONÇALVES, C. R. A morte de Petrônio na narrativa Tacitiana. In: Gérion. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2001, nº 19, p: 520. (texto apresentado no XVI Simpósio Nacional de Estudios Clássicos “La muerte em el Mundo Grecolatino”. Buenos Aires: Argentina, 26 a 29 de Setembro de 2000).

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Figura 6 Veias abertas, referência a morte de Petrônio – (Enquadramento: Primeiro Plano)

As figuras 5 e 6 representam no personagem em foco a referência ao

momento da morte de Petrônio, que suicidou-se esvaindo-se em sangue pelas veias,

enquanto dialogava com seus amigos, sem se preocupar com questões ligadas a

imortalidade da alma ou a filosofia, o satirista entregou-se ao “sono” para que a

morte lhe parecesse algo natural. Assim sendo, a filosofia Epicurista era materialista,

buscava o prazer e não era religiosa. Foi à primeira filosofia a ser completamente

desenvolvida a nível intelectual. Epícuro afirmava que: “A morte não é nada para

nós, pois, quando existimos, não existe morte, e quando existe a morte, não

existimos mais”.

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Os deuses

Figura 7 Rito de preparação para a morte, evocação dos deuses. O ambiente remete a serenidade -

(Enquadramento: Plano Conjunto)

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Figura 8 No Templo, guardiões de Hermafrodita. (Enquadramento: Plano Conjunto)

178

178

A princípio havia três gêneros entre os homens, e não dois como hoje, o masculino e o feminino: um terceiro era composto dos outros dois: o seu nome subsistiu, mas a coisa desapareceu: então, o real andrógino, espécie e nome, reuniam num único ser o princípio macho e o princípio fêmea: agora já não é assim e só o nome ficou, como uma injúria. […] Se havia três gêneros, e tais como eu disse, era porque o primeiro, o macho, era originalmente filho do Sol, o segundo, fêmea, extraído da Terra, e o terceiro, participante dos dois, da Lua, porque a Lua tem esta dupla participação. […] Zeus cortou os homens em dois, […] uma vez realizada esta divisão da natureza primitiva, eis que cada metade, desejando a outra, a procurava. […] De facto, é desde então que o amor mútuo é inato aos homens, que recompõe a sua natureza primitiva, procura restitui a um a partir dos dois e curar essa natureza humana ferida. Cf: Platão. O Banquete. Publicações Europa-América: Mem Martins, 1977, pp.47-50. O mito do andrógino de Platão também é conhecido como a teoria dos três gêmeos, é a busca das metades que faltam, estas ao se encontrarem ocorre uma fusão de corpos e desejos. A fusão pode ser entre um homem e uma mulher, entre duas mulheres ou entre dois homens.

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A religião romana na época de Petrônio sofreu influência de outros povos da

antiguidade, como os gregos e os povos do oriente. Em decorrência do processo de

conquista, muitos dos romanos passaram a acumular deuses e crenças religiosas

dos povos conquistados, até mesmo com o advento do cristianismo no século I d.C,

foi observado pelos romanos como sendo mais uma entre as muitas crenças já

existentes.

Ao fazer um estudo das Sátiras de Juvenal no Plano da Iniciação Científica

pude verificar que até mesmo o literato deferia uma crítica aos imperadores que

haviam deixado suas crenças em favor de outras advindas da expansão romana.

Assim, a religião era sinônimo das relações sociais e não podemos negar a sua importância, Juvenal aproveitava deste importante instrumento social para execrar aqueles que se serviam dela para alcançar objetivos poucos elogiáveis, como os impostores e os indolentes. Apesar de se referir a vários deuses, sua incredulidade é notável principalmente quando se refere a estes para os acusá-los de inoperantes. Juvenal chama a atenção do povo romano, que envolvidos com a inserção de religiões estrangeiras e exóticas relegam para segundo plano a fé em seus próprios deuses. O cosmopolismo apoiado pelos imperadores fez com que muitos dos romanos se inclinassem ainda mais aos apegos nas superstições, a apatia e a indiferença da elite, sem nada fazer em prol dos deuses legitimamente romanos.

179

Por meio destes apontamentos acerca das crenças ou do desapego das

tradições culturais, Fellini no Satyricon levanta questões contemporâneas referentes

à própria percepção cultural do momento da produção do filme, da política fascista

vigente, de uma indústria cultural que produzia arte distante da realidade e mais

próxima da propaganda política. Os personagens usados pelo cineasta não

representavam grandes personalidades romanas, como gladiadores ou imperadores,

mas eram pessoas comuns envoltas pela decadência da Roma Imperial, do

sentimento de frustração e do sarcasmo. Assim como a tradição ao culto dos deuses

romanos dava lugar aos deuses estrangeiros, a propaganda política tomava conta

do cenário artístico da indústria cultural italiana no período felliniano.

179

SILVA, N. O da. O Clientelismo nas Sátiras de Décimo Júnio Juvenal. Maringá: UEM, 2003. (Iniciação Científica – orientador (a): Prof. Drª. Renata Lopes Biazotto Venturini), p. 40.

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2.2.3 Rituais do Profano

“Construo um sentimento sagrado Mas em busca de um ser profano Que se entregue sem engano Que transpire enquanto eu amo Que liberte o doce encanto De encontrar o sagrado no profano.”

(Helena Kluiser) “O religioso e o profano juntos. A mulher da vida também está num Altar religioso. Um santo pode aparecer de repente numa Orgia felliniana.”

(João da Mata Costa)

Podemos definir o Profano como sendo tudo aquilo que não é sagrado, da

necessidade do ser humano de aproximar-se dos prazeres da vida, no seu aspecto

artístico e cultural são espaços representados pelo teatro, o circo, o cinema e o

carnaval. Assim, o termo profano originou-se do latim profanu, contrario as coisas

sagradas, estando ligado a algo secular ou leigo, pro fani – fora do templo.180

O Profano também é uma necessidade do ser humano. Na verdade o ser humano precisa do momento da recreação pra cobrir o stress que a vida moderna coloca. Então o profano acaba sendo o paralelo, é o lazer, só que como ele não tem a conotação de identificação com o sobrenatural, ele chega pra gente na condição de um complemento da vida. Enquanto você tem a necessidade do sagrado pra poder continuar vivendo para fazer parte da sociedade, para estar inserido na cultura. Enfim para viver em comunidade.

181

180

Cf: DEL PONTE, R. Dei e miti italici. Genova: ECIG, 1988. 181

Cf: SERRANO, R. Informação verbal, 2006 Apud (PROCÓPIO, A; MALHEIROS, A. P. de O. O Sagrado e o Profano em dois monumentos. São João da Boa Vista: Centro Universitário da Boa Vista – UNIFAE, 2006, p. 12.)

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Os ritos auxiliam a construir uma temporalidade oposta ao tempo da rotina

social que estamos habituados. As festas carnavalescas, por exemplo, deslocam os

indivíduos de sua rotina social. Muitos dos elementos do carnaval podem ser

identificados em rituais ou festividades do mundo antigo. No Satyricon de Fellini é

característico o uso de recursos que se aproximam dos ritos tidos como “profanos”.

A variedade de cores, a utilização de máscaras e a sensualidade são características

libertadoras do indivíduo que o leva a extroversão.

A fartura da comida, a permissividade, a bebedeira, a música, a dança e a

liberação sexual são heranças dos festejos e cultos profanos próprios dos gregos e

romanos. Na Grécia era comum a celebração dos Bacanais, que eram realizados em

homenagem ao deus Baco (deus do vinho, filho de Júpiter e de Semele). Dessa

forma, a tradição grega relata que a rotina social sofreria uma alteração com

Dionísio, que era o deus da embriaguez, dos prazeres e perturbador da ordem

estabelecida.

O Carnaval, ou “carnelevamen” (prazer da carne) seria a herança destas

manifestações, da transformação da rotina diária em momentos de festa e alegria. O

recurso da fantasia, de um mundo inventado, de sonhos manifesta-se no Satyricon

como a inversão de valores, da reprodução das aventuras dos deuses e da

necessidade de realizar suas vontades. Assim sendo, o Satyricon é sinônimo do

Carnaval, do escárnio, do piadístico, dos valores reprimidos na vida diária, dos ritos

cotidianos.182 Vejamos: “Os rituais representam aspectos das relações da sociedade.

Uma técnica para mudanças de posição moral da pessoa, do sagrado para o

profano, do profano ao sagrado, tendo como base o cotidiano”.183

A figura de nº 9 nos revela uma cena na qual o cineasta remete a uma

representação da “Torre de Babel” (narrativa bíblica encontrada no Gênesis, sobre

uma torre construída com o objetivo de chegar ao céu). Federico Fellini inspirou-se

na obra pictória de Pieter Brueghel o velho, (“Torre de Babel”, ano de 1563, óleo

182

O Carnaval originou-se dos antigos rituais romanos, tendo sua origem nas Saturnália, celebrações em homenagem a Saturno praticado, pelos menos, desde o século V a.C, o Tempio de Saturno em Roma data de 497 a.C. Cf: BIZARRI, M. L‟aurea Aestas di Saturno i Saturnalia. Roma: Sydaco, 1988, p. 3. 183

Cf: DA MATTA, R. Carnavais, malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997.

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sobre painel 114x155 cm – museu Kunsthistorisches – Viena e “A Torre de Babel”,

de 1563, óleo sobre painel, 60 x 74.5 cm, museu Boymans – van Beuningen –

Roterdã), a referência a esta obra no Satyricon diz respeito ao problema da

incomunicabilidade humana na sociedade contemporânea. Observemos:

Figura 9 Torre de Babel – Insulae (Enquadramento: Plano Conjunto)

A crítica de Fellini sobre a incomunicabilidade humana mostra-se no Satyricon

por meio do crescimento da Urbs romana no mundo antigo. A perda dos valores, da

tradição e da superpopulação, gerava uma crise social. As insulae (prédios de vários

andares construídos de modo precário e que concentrava um alto índice de

moradores, na sua maioria miseráveis) eram construídas de modo precário,

favorecendo os desmoronamentos e incêndios. A população se aglutinava nos

andares, e as paredes dessas insalae eram tão finas que uma tempestade era

capaz de derrubá-las. As famílias que viviam na miséria incentivavam suas filhas a

prostituição.184

184

Cf: SALLES, C. Nos submundos da Antigüidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 157.

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A prostituição e os prazeres da carne podem ser verificados na cena abaixo,

na representação do Jardim das Delícias, a erotização do ser humano acha-se

presente nas pinturas e mosaicos, Fellini busca inspiração no expressionismo de

Botticelli para retratar a cena.

Figura 70 Jardim dos prazeres – figuras eróticas do Oriente (Enquadramento: Plano Conjunto).

Assim, o filme de Fellini traz personagens que agem de acordo com sua

natureza, o filme lida com o excesso visual, mostrando um mundo de amoralidade,

crueldade, auto-aversão, sexualidade e paixão.

Na obra literária, Petrônio foi buscar na linguagem das ruas o que necessitava

para criticar seus pares. Sendo um literato da elite, utilizou-se da tragicomédia e do

grotesco teatro popular para descrever o ambiente romano dos novos-ricos, lascivos

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e corruptos. Entretanto Fellini não teve a preocupação de dar uma lição moralizante

sobre o mundo pagão, tão pouco de esboçar uma representação do passado, visou

antes, dar vozes a personagens não ditos de uma sociedade em um dado momento

histórico, revelando com isso, os interditos das relações entre democracia e

totalitarismo.

2.2.4 Rituais festivos

“Assim que cumprirmos nossos deveres rituais, retornamos à vida profana com mais energia, mas também porque nossas forças se revigoram, ao viver, por alguns momentos, uma vida menos tensa, mais agradável e mais livre.”

(Émile Durkheim)

A idéia de “festa” ou de “rituais festivos” nos remete a noção de prazer, de

realização e satisfação. Assim, o conceito de festa encontra-se ligado a rupturas de

nossas rotinas, da vivência entre o tempo do trabalho e do momento lúdico do

festivo. Para o professor José Clerton de Oliveira Martins:

Um tempo se transforma em outro através de uma festa. As festas representam a transição, expressando as mudanças da sociedade da qual é reflexo. Quando a sociedade promove algum tipo de mudança, aí existe uma festa.

185

Neste sentido, a festa é uma ruptura dos ritos cotidianos, uma expressão

coletiva, por meio das festas que o indivíduo se renova para retornar ao tempo do

185

Cf: MARTINS, J. C de O. Festa e ritual, conceitos esquecidos nas organizações. In: Revista mal-estar e subjetividade. Fortaleza, v.II, nº 1, março, 2002, p: 118-128 Apud (VELASCO, H. M. Tiempo de Fiesta. Madrid: Ed. Tres-Catorze-Diecisiete, 1992.)

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trabalho. O professor José Clerton de Oliveira Martins completa ainda dizendo que:

“[...] os rituais festivo-lúdicos contribuem para o desenvolvimento do trabalho e a

existência da atividade efetiva da organização”.186

Nesse viés, o estudo das festividades dentro do campo da historiografia não é

algo imutável, pois novos elementos podem ser incorporados ou até mesmo

conceitos antigos podem ser revistos e analisados. Cabe ao pesquisador estar

atento as rupturas, as descontinuidades e as temporalidades dentro das análises

das festividades. O historiador francês Michel Vovelle cita que:

[...] assim como não há uma História imóvel, também não há uma festa imóvel. A festa na longa duração, assim como a podemos analisar através dos séculos, não é uma estrutura fixa, mas um continuum de mutações, de transformações, de inclusão com uma das mãos e afastamentos com a outra.

187

O arqueólogo e professor de História Antiga da Universidade de São Paulo

(USP), Norberto Luiz Guarinello, ao realizar um estudo sobre “Festas”, nos diz que a

festa é um ato coletivo e que implica em uma determinada estrutura social de

produção. Dessa forma, ela deve ser:

[...] preparada, custeada, planejada e montada segundo regras elaboradas no interior da vida cotidiana; envolve a participação coletiva na sociedade em seu conjunto ou em grupos nos quais os participantes ocupam lugares distintos e específicos; aparece como uma interrupção do tempo social, suspensão temporária das atividades diárias; articula-se em torno de um objeto focal: um entre real ou imaginário, um acontecimento, um anseio ou uma satisfação coletiva; e, por fim, pode gerar produtos materiais ou significativos, principalmente a produção de identidade.

188

186

Cf: MARTINS, J. C de O., op cit., p. 126. 187

Cf: VOVELLE, M. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 251. 188

Cf: GUERINELLO, N. L. Festa, trabalho e cotidiano. In: JANCSO, I; KANTOR, I (Orgs). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec; Edusp; FAPESP; Imprensa Oficial, vol. 2, 2001, p: 969-975 APUD (COUTO, E. S. Devoções, festas e Ritos: algumas considerações. In: Revista Brasileira de História das Religiões, ano I, nª I – Dossiê Identidades Religiosas e História, s/d, p. 3)

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O estudo dos rituais festivos justifica-se na medida em que o homem busca

por meio deste aliviar suas tensões e encontrar um espaço de quietude frente aos

conflitos sociais, e com isto, tornar os rituais cotidianos mais significativos. A figura

de número 11 traça um panorama do banquete realizado por Trimalquião (Cena

Trimalchionis)189. Vejamos:

Figura 11 O Banquete de Trimalquião (Enquadramento: Plano Conjunto)

189

Segundo os relatos históricos, o personagem de Trimalquião é visto como sendo um novo-rico, ex-escravo que se vangloriava de seus bens sem ostentar, contudo, uma equivalente riqueza cultural. Esse trecho corresponde à maior parte do livro XV, é o mais bem estudado de todo o Satyricon, e denomina-se “Cena Trimalchionis”, ou “O Banquete de Trimalquião”. Cf: AQUATI, C. “Posfácio”. In: PETRÔNIO. Satíricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 225.

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A Cena Trimalchionis trata-se de um banquete realizado na casa do liberto

Trimalquião, que tinha se enriquecido por meio da prática do comércio. Apesar de

ser um fragmento da obra literária de Petrônio, é o que mais nos chegou

conservado. Os convidados, mesmo alforriados, mantêm seus traços de origem

popular.

Esta “Cena” é muito estudada pela historiografia, uma vez que a mesma traz

registros de fatos do latim corrente, revelando a mentalidade da plebe romana de

seu tempo. Fellini ao trazer para as telas do cinema esta parte da obra literária,

retrata a megalomania do novo-rico, Trimalquião, que tal como o próprio nome

sugere, significa: “três vezes rei”.

O Cineasta enfatiza a personalidade tirânica de Trimalquião, que impedia os

convivas de qualquer meditação sobre o prazer. O ato ritualizado de partilhar a

comida e a bebida revela-se muito importante para firmar laços de amizade e vencer

barreiras de natureza social, além de ser uma ótima oportunidade de propaganda

política. Os banquetes mostravam-se como ambientes propícios as relações de

Clientelismo e Patronato que eram muito comuns no período romano.

Federico Fellini ao tratar sobre estes assuntos refere-se ao jogo político de

interesses que estavam envoltos ao seu próprio tempo e das relações de poder e

amizade nos estúdios do Cineccità, que tinha sido inaugurado pelo fascista Benito

Mussolini para a gravação das propagandas do Fascismo.

Tendo em vista estas características apontadas, vemos que toda

comemoração constitui-se numa forma de comunicação, na qual se articulam

relações de poder, propaganda e memória. Os rituais festivos comungam

características que permeiam o mundo sagrado e o profano, na qual divulgam

mensagens de símbolos e mitos.

Portanto, as festas são signos e fazem parte de um ritual: não há sociedade

sem ritual e não há ritual sem festas, pois elas ajudam a legitimar o regime.190

190

Cf: CAPELATO, M. H. R. Multidões em Cena. Campinas: Papirus, 1998, p. 19-59.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciar a pesquisa sobre o cineasta Federico Fellini no ano de 2007, tendo

em mente a sua relação com a obra literária de Petrônio, muitas foram às questões

que se levantaram. Muitas destas questões versavam sobre a produção

historiográfica de Fellini e o Satyricon, tanto no que se refere à obra literária datada

do século I. d.C, como a produção fílmica de 1969. Dentre as questões levantadas

podemos citar: quais as fronteiras traçadas entre o cinema, a literatura e a História?

Quem foi Federico Fellini e qual a sua relação com o Satyricon de Petrônio? O que o

Satyricon de Fellini representou para o seu período? Qual a origem do termo

“felliniano”?

Para responder a estas questões, recorremos ao estudo dos rituais cotidianos

inseridos na obra fílmica o Satyricon. Os rituais sagrados, profanos e festivos

representados pela religião, pelos banquetes e pelas festas populares, serviram de

vertente para expressar a estética cinematográfica de Fellini. Com isso, inspirada

nos conceitos criados pelo próprio cineasta adotamos como metodologia a teoria

filosófica epicurista do Carpe Diem, bem como a leitura crítica da indústria cultural.

Com este espírito nos dirigimos aos estudos, diálogos e interpretações de

diferentes estudiosos sobre o Satyricon de Petrônio e Fellini, além de especialistas

sobre os estudos das imagens cinematográficas e suas relações com a História e a

Literatura. Cada estudioso citado neste trabalho serviu para rever conceitos e a partir

destes propor novos. Para compreender dois períodos distintos, tanto de Petrônio

quanto de Fellini tivemos que nos despir dos preconceitos vigentes, principalmente

com relação ao anacronismo.

Assim sendo, este estudo apresentou um caráter interdisciplinar confrontando

personagens distintos com características e preocupações próprias de seu tempo e

espaço. As páginas traçadas revelam um Fellini “sonhador”, e foi no estúdio do

Cinecittà em Roma, que o cineasta pode realizar todos os seus sonhos, fantasias e

delírios fellinianos. O que mais chamou a atenção de Federico Fellini no Satyricon de

Petrônio eram suas lacunas; fragmentos estes que possibilitaram que o mesmo

preenchesse com sua própria imaginação uma “Roma Antiga imaginada”. Sob este

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ponto de vista, fizemos uso da fonte literária do Satyricon lançado pela editora

Cosacnaif (2008), que trouxe no prefácio de Raymond Queneau e no posfácio de

Cláudio Aquati o cotidiano histórico e literário, na qual a obra encontra-se inserida e

codificada, além de trazer uma versão descrita pelo historiador Tácito sobre a vida

do aristocrata Petrônio na época do imperador Nero.

O Satyricon de Petrônio por ser uma obra enigmática e pelo pouco que se

chegou ao nosso conhecimento possibilita aos estudiosos contemporâneos de

renovar-se a cada nova leitura da fonte histórica, pois novas questões são

levantadas, principalmente com relação ao contexto satírico, tais como: os costumes

da época, a narrativa, o discurso de gênero, a paródia, o uso do latim vulgar, a

decadência das instituições, a degradação da religião, da justiça, da retórica e da

moral, ou seja, a perca do mos maiorum, da tradição romana.

É neste romance, pelo fio da ironia e do sarcasmo que Federico Fellini

apresenta uma sociedade plural, uma crítica ao seu tempo, um devaneio sobre a

consciência humana, da perca dos valores, e da usurpação do Estado Totalitário

sobre a forma de pensar e agir do indivíduo. Uma das partes mais estudadas do

Satyricon de Petrônio diz respeito ao banquete de Trimalquião, que mostrava a

megalomania do novo-rico, representando a tirania. A adaptação de Fellini para as

telas do cinema mostra o mercado da indústria cinematográfica, associando

questões relativas à propaganda política e ao corporativismo.

Narrado em primeira pessoa, o Satyricon de Petrônio conta a história de três

personagens, um romance de aventura entre Encólpio, anti-herói que para superar o

castigo da impotência dado pelo deus Príapo, envolve-se com bajuladores e

libertinos, sempre se envolvendo em conflitos juntamente com seu companheiro

Gitão e o rival Ascilto. Um jogo de poder e interesses que caracterizavam toda uma

sociedade, na qual cada um tinha o seu valor.

Ao chegar neste ponto do estudo, percebi que o tema não se esgota em si

mesmo, mas muito há ainda para ser feito e estudado. Ressalto ainda que, tive a

oportunidade, por meio do Mackpesquisa, de visitar a Fundação Federico Fellini em

Rimini – Itália, fazendo o mesmo percurso de Fellini, conhecendo assim, sua cidade

natal e dirigindo a posteriori para Roma, centro da atividade artística e intelectual de

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nosso personagem, uma “Torre de Babel” como ele mesmo havia observado, onde

se confluíam diferentes tipos de culturas.

Rimini é a cidade felliniana, tudo gira ao redor das recordações do cineasta,

ao percorrer pelas ruas de Rimini, pude vivenciar um pouco da memória do cineasta,

de sonhar por um instante o “sonho de Fellini”, do “eterno retorno a sua cidade de

origem”, onde tudo começou, ou seja, a “cidade dos sonhos”. Assim sendo, neste

trajeto entre Rimini e Roma fica a mensagem de Lucius Apuleius: Lector, intende:

laetaberis (As. Aur. 1.6.6): Leitor, presta atenção: vais divertir-te.

Carpe Diem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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François Perier. Gênero: Documentário. Distribuidora: Paris, 2006: 75 MIN

ROME. Criado por: John Milius, William J. MacDonald, Bruno Heller. Produtores:

John Milius, William J. MacDonald, Bruno Heller, Franck Doelger, Anne

Thomopoulos, John Melfi. Elenco: Kevin McKidd, Ray Stevenson, Polly Walker,

Kenneth Cranham, Tobias Menzies, Maz Pirkis, Indira Varma, Kerry Condon,

Lindsay Duncan, James Purefoy, Ciarán Hinds. Gênero: Drama. País de origem:

Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Exibição: HBO, BBC, RAI, RTP2. Quantidade

de temporadas: 2, nº de episódios 22, 2007:55 MIN. (séries)

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Federico Fellini, Brunello Rondi, Bernardino Zapponi. Elenco: Martin Potter, Hiram

Keller, Max Born, Salvo Randone, Mario Romagnoli. França-Itália, 1969:138 MIN

A DOCE VIDA. Direção: Federico Fellini. Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano,

Tullio Pinelli, Brunello Rondi. Elenco: Marcelo Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk

Aimée, Yvonne Furneaux, Magali Noël. França-Itália, 1960:174 MIN (Edição

Comemorativa versátil Home Video 10 anos – 1999-2009, p&b)

MULTIMÍDIAS

FELLINI [CD – ROM]. Paris: EMME Intermediactive, 1994.

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