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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS DE LINGUAGEM REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO Niterói 2017

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

    PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

    REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL

    TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO

    Niterói 2017

  • TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO

    REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de concentração: Linguística.

    Orientadora: Profª. Drª. Norimar Pasini Mesquita Júdice (UFF)

    Niterói 2017

  • F478 Filardo, Teresa Palazzo Schmitt.

    Representações do estrangeiro em textos de livros didáticos de

    português para estrangeiros publicados no Brasil / Teresa Palazzo

    Schmitt Filardo. – 2017.

    161f. ; il.

    Orientadora: Norimar Pasini Mesquita Júdice.

    Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade

    Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2017.

    Bibliografia: f. 137-140.

    1. Ensino da língua portuguesa. 2. Estrangeiro. 3. Material didático.

    4. Representações sociais. I. Júdice, Norimar Pasini Mesquita.

    II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título

  • TERESA PALAZZO SCHMITT FILARDO

    REPRESENTAÇÕES DO ESTRANGEIRO EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS PUBLICADOS NO BRASIL

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de concentração: Linguística.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Norimar Pasini Mesquita Júdice (Orientadora)

    Universidade Federal Fluminense – UFF

    ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Patrícia Maria Campos de Almeida

    Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

    ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lygia Maria Gonçalves Trouche Universidade Federal Fluminense - UFF

  • Dedico este estudo à memória do meu pai, Nicola Filardo -

    o estrangeiro mais importante da minha vida.

  • Sou grata ao Universo, que não poderia ter me provido melhor com tanta saúde

    e possibilidades nesta vida.

    Sou grata à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Norimar Júdice, por seu

    profissionalismo, paciência, disposição e sabedoria com que me conduziu.

    Sou grata à Prof.ª Dr.ª Lygia Trouche e à Prof.ª Patrícia Almeida pelo carinho

    com que acolheram meu projeto de pesquisa.

    Sou grata à equipe da Secretaria da Pós-graduação do Instituto de Letras da

    UFF pela incansável disposição para atender minhas solicitações.

    Sou grata ao Arquivo Nacional por me conceder o tempo necessário para

    concluir meu curso de mestrado.

    Sou grata ao atual Coordenador-geral de Acesso e Difusão Documental do

    Arquivo Nacional, Diego Barbosa da Silva, por seu empenho em viabilizar meu

    afastamento, para que eu pudesse finalizar este estudo.

    Sou grata à minha ex-chefe Helena Miranda por sua generosidade e

    compreensão.

    Sou grata aos meus pais, Sylvia e Nicola, por me trazerem a este mundo e tão

    carinhosamente cuidarem de mim, sempre acreditando e investindo nas minhas

    virtudes. Sem eles, eu não teria chegado até aqui.

    Sou grata aos meus irmãos, Daniela e Paulo, e aos meus sobrinhos, Ricardo e

    Enzo, por terem compreendido minhas ausências.

    Sou grata às minhas amigas Luciana da Hora e Blanca Velasco por acreditarem

    em mim sempre.

    Sou grata ao meu amigo Cláudio Braga por me ajudar, com suas palavras de

    incentivo, a vencer mais esse desafio na vida.

    Por fim, sou muito grata ao meu Príncipe, José Luiz Portela Gómez, amor e

    companheiro de todas as horas. Sou grata por seu empenho em me dar o melhor

    nesta jornada de estudos e sempre. Sou grata por compreender minhas ausências,

    minha montanha de livros e minha tagarelice sem fim, e por me mostrar os benefícios

    do agir.

    Sou grata, muito grata.

  • Seu cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é

    italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu

    feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras,

    latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro.

    Cartaz nas ruas de Berlim (1994). Extraído de Identidade, de Z. Bauman

    (Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 33)

  • RESUMO

    Este estudo enfoca as representações do estrangeiro em textos de oito livros didáticos de Português para Estrangeiros editados no Brasil nos anos 40,50, 60, 70, 80, 90, 2000 e 2010. Considerando o contexto político e social dessas décadas e recorrendo à Teoria das Representações Sociais, com base em Moscovici e Jodelet, pesquisamos, em textos verbais e não verbais elaborados ou selecionados pelos autores dos materiais em foco, a existência de representações do estrangeiro e a maneira como este é configurado pela palavra e pela imagem. Buscando as representações do estrangeiro, constatamos sua presença em todas as obras examinadas, sendo representado de várias formas e associado a vários contextos de origem. Verificamos que a representação do estrangeiro como imigrante foi a que ocorreu com mais frequência, sendo encontrada em todos os didáticos desde a década de 1960. Também apuramos uma incidência crescente da presença dos estrangeiros nos textos dos materiais didáticos ao longo do tempo, com uma ampliação do número de representações e dos contextos de origem associados a eles. Este estudo mostrou que os didáticos refletiram a posição do estrangeiro na dinâmica das relações sociais de cada época e deixou evidente a impossibilidade de se descolar a produção desses materiais da conjuntura histórica de seu tempo.

    Palavras-chave: Português para Estrangeiros; Materiais Didáticos de Português para Estrangeiros; Representações do Estrangeiro.

  • ABSTRACT

    This study focuses on representations of foreign individuals in texts comprised in eight textbooks of Portuguese for Foreigners published in Brazil in the years 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1990, 2000 and 2010. Taking into account the political and social context related to each decade and applying the Social Representation Theory based on Moscovici and Jodelet, we searched for the representations of foreigners in the verbal and nonverbal texts selected or produced by the authors of the textbooks chosen for this research. We examined the way the foreign individuals were portrayed by word or image. As a result of our investigation, we found out that there were such representations in all the textbooks studied, being the foreigner represented in many ways and associated to various origins. We verified that the foreign individual was mostly represented by the figure of the immigrant, which was detected in all the referred textbooks from 1960 on. We also perceived that the presence of foreign individuals increased in the investigated textbooks over time, with an increment in the number of representations and origins associated to the foreigners. This study showed that the textbooks reflected the position of the foreign individual in the dynamics of the social relations of each decade. It also made evident the impossibility of detaching the production of such textbooks from its historical context. Keywords: Portuguese for Foreigners; Textbooks of Portuguese for Foreigners; Representations of Foreigners.

  • LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 – Representações em A língua portuguesa para estrangeiros............121

    QUADRO 2 – Representações em Português para estrangeiros – 1º livro.............122

    QUADRO 3 – Representações em Mil palavras em português para estrangeiros..123

    QUADRO 4 – Representações em Português do Brasil para estrangeiros I:

    conversação, cultura e criatividade..........................................................................124

    QUADRO 5 – Representações em Falando...lendo...escrevendo: português: um

    curso para estrangeiros............................................................................................125

    QUADRO 6 – Representações em Interagindo em português: textos e visões do

    Brasil – vol. I.............................................................................................................126

    QUADRO 7 – Representações em Terra Brasil: curso de língua e cultura..............128

    QUADRO 8 – Representações em Viva!: língua portuguesa para estrangeiros......129

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO........................................................................................................11

    2 REFERENCIAL TEÓRICO......................................................................................17

    2.1 As representações sociais....................................................................................17

    2.2 Materiais didáticos para ensino de línguas estrangeiras.....................................22

    2.3 Os livros didáticos e os gêneros textuais.............................................................27

    2.4 O estrangeiro .......................................................................................................30

    2.4.1 Identidade, diferença e cultura..........................................................................30

    2.4.2 A condição de estrangeiro ................................................................................37

    2.4.2.1 O exilado........................................................................................................39

    2.4.2.2 O imigrante ....................................................................................................40

    2.4.2.3 O expatriado ..................................................................................................42

    2.4.3 O estrangeiro imigrante no Brasil .....................................................................43

    3 METODOLOGIA.....................................................................................................49

    4 ANÁLISE DO CORPUS.........................................................................................56

    4.1 Década de 1940...................................................................................................56

    4.1.1 Contexto histórico..............................................................................................56

    4.1.2 Representações do estrangeiro na obra A língua portuguesa para estrangeiros................................................................................................................60

    4.2 Década de 1950...................................................................................................63

    4.2.1 Contexto histórico..............................................................................................63

    4.2.2 Representações do estrangeiro na obra Português para estrangeiros – 1º livro.............................................................................................................................66

    4.3 Década de 1960...................................................................................................70

    4.3.1 Contexto histórico..............................................................................................70

    4.3.2 Representações do estrangeiro na obra Mil palavras em português para estrangeiros................................................................................................................72

    4.4 Década de 1970...................................................................................................79

    4.4.1 Contexto histórico..............................................................................................79

    4.4.2 Representações do estrangeiro na obra Português do Brasil para estrangeiros 1: conversação, cultura e criatividade........................................................................82

    4.5 Década de 1980...................................................................................................86

    4.5.1 Contexto histórico..............................................................................................86

    4.5.2 Representações do estrangeiro na obra Falando...lendo...escrevendo: português: um curso para estrangeiros......................................................................88

  • 4.6 Década de 1990...................................................................................................93

    4.6.1 Contexto histórico..............................................................................................93

    4.6.2 Representações do estrangeiro na obra Interagindo em português: textos e visões do Brasil – volume I..........................................................................................96

    4.7 Década de 2000..................................................................................................101

    4.7.1 Contexto histórico............................................................................................101

    4.7.2 Representações do estrangeiro na obra Terra Brasil: curso de língua e cultura.......................................................................................................................103

    4.8 Década de 2010..................................................................................................108

    4.8.1 Contexto histórico............................................................................................108

    4.8.2 Representações do estrangeiro na obra Viva!: língua portuguesa para estrangeiros – volumes 1, 2 e 3.................................................................................112

    5 RESULTADOS......................................................................................................121

    6 CONCLUSÕES.....................................................................................................134

    REFERÊNCIAS........................................................................................................137

    ANEXOS..................................................................................................................141

  • 1 INTRODUÇÃO

    Meu interesse pela presente pesquisa surgiu, inicialmente, a partir de minha

    curiosidade acerca da relação entre identidade, língua e cultura. Por passar um tempo

    imersa em estudos sobre a política externa brasileira, inquietei-me com as mudanças

    na trajetória das posições diplomáticas do Brasil ao longo de sua vida como nação

    politicamente independente. Comecei a questionar os conceitos, as visões, os valores,

    as razões escolhidas por uma nação para traçar sua existência, seu rumo social,

    político, econômico e cultural. Vinha-me sempre à mente a vontade de comparar a

    unidade - um indivíduo com o todo - um país, por exemplo. Se um ser humano constrói

    sua história de tantas maneiras, seria possível conceber uma nação como um ser que

    se forja, se molda, muda, renasce? Considerando isso possível, como seria feito? No

    discurso? Seria a tão falada ‘identidade nacional’? Essa identidade seria fixa ou

    flutuante? Seria imutável com o passar dos anos?

    Adicionalmente, uma angústia resultante da complexa tarefa de ensinar línguas

    estrangeiras aguçou em mim um interesse maior por minha língua materna. Ao longo

    de meus vinte e um anos de experiência como professora de língua inglesa e de meus

    quatro anos como professora de língua espanhola, demorei a perceber que, no ensino

    de uma língua estrangeira, sendo professor e alunos falantes da mesma língua

    materna, estão todos no mesmo ponto de partida em relação à língua ensinada: esta

    é estrangeira para todos. Nessa estrutura de ensino de língua estrangeira, em que

    professor e alunos são patrícios, as representações do estrangeiro muito

    provavelmente são compartilhadas entre professor e aprendizes, ocupando o

    professor uma posição estratégica no sistema de ensino, pois é ele, conforme nos

    ensina Zarate (1995, p.11), que constrói o espaço de interseção entre as semelhanças

    e as diferenças, entre o interior e o exterior, o longe e o perto. Ao me dar conta disso,

    questionei-me sobre a possibilidade de inverter meu caminho no ensino de língua:

    como professora de língua estrangeira para brasileiros, estava partilhando o mesmo

    ponto de partida com os aprendizes; como seria, então, ensinar minha língua materna

    como língua estrangeira? Como seria apresentar minha língua mãe e a cultura na qual

    eu estava inserida para quem não partilhava comigo o mesmo ponto de partida? Como

    seria ser estrangeira de mim mesma?

  • 12

    Somado à minha curiosidade e angústia, está o fato de ter convivido, desde

    que nasci, com a figura de um não patrício, meu pai. Meu genitor nasceu na Itália e

    veio para o Brasil aos 20 anos de idade, em 1958. Transferiu-se para esta terra para

    “fazer a América”. Nos nossos 36 anos de convivência, sempre tive presente a sua

    essência de estrangeiro, tendo em vista que, embora tenha vivido no Brasil por 52

    anos, meu pai nunca conseguiu se afastar de seu sotaque de falante não nativo da

    língua portuguesa falada no Brasil. No entanto, aos meus olhos, meu pai não era um

    “de fora”. Era um diferente que estava dentro. A presença marcante desse

    “estrangeiro” em minha vida facilitou minha compreensão e aceitação da diversidade,

    do outro, e estimulou meu interesse pela vida daquele que sai do colo de sua mãe –

    corpo, terra, língua – para nascer de novo em outro lugar. Como seria ser estrangeiro?

    Meus questionamentos sobre como ser um professor que ensina sua língua

    materna para estrangeiros não são os primeiros no meio acadêmico. Esse tema já foi

    razoavelmente explorado. Tampouco o tema/objeto “estrangeiro” é novidade em

    muitas pesquisas. No entanto, no âmbito de português brasileiro para estrangeiros,

    ainda há muitas lacunas a serem preenchidas. Com a crescente participação

    internacional do Brasil em diversos campos nos últimos quinze anos, o interesse pela

    cultura e língua brasileiras vem se ampliando, sendo evidenciado pelo aumento do

    número de estudantes estrangeiros nas universidades do país. Consequentemente,

    também vem se alargando a necessidade de que materiais didáticos para o ensino do

    português do Brasil sejam disponibilizados, analisados, reanalisados e gradualmente

    aperfeiçoados.

    Em alguns trabalhos acadêmicos existentes na seara do português do Brasil

    para estrangeiros, estudam-se as representações do Brasil nos materiais didáticos

    que se destinam ao ensino da língua e da cultura do Brasil. Nesses estudos, o objetivo

    maior é se debruçar sobre textos, verbais e/ou não verbais, que traduzam o Brasil e

    os brasileiros de alguma forma. Embora as representações do brasileiro e do Brasil

    em textos de materiais didáticos de português para estrangeiros já venham sendo

    estudadas em pesquisas de pós-doutoramento1 e doutoramento2 desenvolvidas no

    1 Júdice, N. Representações do Brasil e dos brasileiros em material didático de português para estrangeiros dos anos 40. Pós-doutorado. São Paulo: PUC, 2007. 2 Lima, R. Representações do Brasil em textos do exame Celpe-Bras. Tese (Doutorado). Niterói: UFF, 2008. / Sanson, C. Representações do Brasil em materiais didáticos de PLE editados na França. Tese (Doutorado). Niterói: UFF, 2011. / Carvalho, A.M.M.G.L.de. Representações do trabalho em textos de materiais didáticos de português para estrangeiros publicados no Brasil do século XX. Tese (Doutorado). Niterói: UFF, 2015.

  • 13

    país, e divulgadas em publicações, as representações do estrangeiro, em obras dessa

    natureza, ainda estão merecendo estudo. Tendo isso em conta, as seguintes dúvidas

    podem ser levantadas: esses materiais didáticos apenas configuram personagens

    brasileiros e representações do Brasil? A figura do estrangeiro está presente de algum

    modo nesses materiais? Se essa figura aparece, como é representada? Essas

    representações permanecem as mesmas ao longo do tempo?

    O desconhecido, não familiar, de extra ‘fora’, o extraneus sempre causou, ao

    longo da História, um desconforto nos diversos papeis que desempenhou nas

    sociedades. Em muitos momentos, o estranho caracterizou-se como um incômodo,

    gerando desconfiança, disputas e guerras, mas também foi o ponto de partida para

    que homens e mulheres percebessem seu estatuto de igualdade como seres

    humanos e sua capacidade de adaptação. Em determinadas épocas da história da

    humanidade, o estrangeiro serviu para atender a demandas nacionais,

    desempenhando o papel de solução para a falta de mão de obra ou para atender a

    propostas baseadas em ideias eugenistas, como foi o caso do Brasil quando, por meio

    de ações governamentais oficiais, buscou implementar uma política de

    branqueamento da população. A presença do estrangeiro em uma sociedade implicou

    - e continua a implicar nos dias atuais - a necessidade de se desenvolver a aceitação

    das diferenças em múltiplos aspectos, o apaziguamento com a própria identidade e,

    em última instância, a benquerença para com o outro.

    Pelas motivações expostas e pela escassez de estudos acerca do estrangeiro

    nos materiais didáticos para ensino do português e da cultura brasileiros para

    estrangeiros publicados no Brasil, posicionamos, nesta pesquisa, o estrangeiro como

    objeto central de nossa observação. Neste estudo, portanto, o objetivo geral é

    pesquisar as representações do estrangeiro nos textos verbais e não verbais3 contidos

    em materiais didáticos de Português do Brasil para Estrangeiros publicados no Brasil

    entre a década de 1940 e a década atual. Mais especificamente, tencionamos verificar

    a presença ou a ausência dessas representações nos didáticos selecionados; quando

    encontradas, analisar o modo como são representados os estrangeiros; identificar que

    contextos de origem dos estrangeiros estão associados à sua representação, e, por

    3 Para fazer referência a textos cuja organização pode ser composta apenas por imagem (ex.: cartum, desenho ilustrativo, foto etc.) ou por imagem associada a texto verbal e/ou a outros símbolos gráficos, em qualquer forma de articulação (ex.: cartum, charge, história em quadrinhos etc.), usamos a expressão “texto não verbal”.

  • 14

    fim, fornecer um quadro comparativo entre as representações, levando em conta cada

    década estudada e sua respectiva conjuntura sócio-histórica.

    Para a realização deste estudo, tivemos como base teórica os pensamentos e

    reflexões que envolvem o entendimento de representações sociais desenvolvidos por

    Denise Jodelet e Serge Moscovici. O domínio das representações sociais favorece a

    abordagem dos aspectos socioculturais existentes nos textos examinados, pois tem

    presente os aspectos que envolvem a interpretação do mundo e a relação desta com

    o(s) sujeito(s) de linguagem. Ademais, a Teoria das Representações Sociais auxiliou

    nossa análise porque não se afasta da ciência de que o ser humano sente

    necessidade de buscar sentido em sua realidade, de organizar seu entorno de forma

    a transformá-lo em um lugar conhecido e confortável.

    Em se tratando de materiais didáticos, para o desenvolvimento desta pesquisa

    não pudemos prescindir de algumas das questões que envolvem a produção desse

    tipo de material para ensino de línguas. De acordo com a ideia do universo consensual

    salientado na Teoria das Representações Sociais, não se pode afirmar que um

    material didático escapa ao tempo e ao entorno sociocultural de seu autor e dos

    demais envolvidos em sua produção. Assim, buscamos orientação nos estudos de

    Geneviève Zarate para nos ajudar na análise das representações do estrangeiro nos

    materiais eleitos, principalmente no que se refere ao que subjaz na construção de

    manuais para ensinar línguas estrangeiras.

    Tampouco pudemos abrir mão de um aparato que nos orientasse no sentido

    de ampliar nossa compreensão no que se refere à complexidade que envolve a ideia

    de “estrangeiro”. A multiplicidade de fatores implicados na composição do “estranho”,

    do de fora, do não nacional, em suas mais variadas nuances, gerou a necessidade de

    um entendimento mínimo e indispensável sobre conceitos como diferença, identidade

    e cultura. Essa imposição intelectual levou-nos a buscar apoio nas ideias e discussões

    desenvolvidas por estudiosos que têm tratado dessas questões nos últimos anos.

    Ainda, como uma complementação a essa apreensão da figura do estrangeiro,

    preocupamo-nos em verificar, de maneira não aprofundada, a condição jurídica do

    estrangeiro no Brasil, entendendo que esse exame nos ajudaria a interpretar melhor

    as representações do estrangeiro presentes nos materiais didáticos.

    Para esta pesquisa, também consideramos relevante nos ampararmos nas

    ideias desenvolvidas acerca do assunto “gêneros textuais”, tendo em vista que as

    representações identificadas se localizam dentro de um suporte para variados

  • 15

    gêneros textuais – o livro didático para ensino de língua estrangeira. Os manuais para

    ensino de línguas representam um amplo repositório/suporte para se trabalhar os mais

    variados aspectos existentes em uma comunidade linguística e cultural. Por essa

    razão, os livros didáticos podem fazer uso de variados gêneros para conduzir o

    aprendiz a um alcance maior de ação e interação na língua-alvo. À vista disso, a nossa

    preocupação em trazer a noção de gêneros textuais para este trabalho está no fato

    de que, ao buscarmos representações do estrangeiro em materiais didáticos para

    ensino de língua estrangeira, no caso a língua falada no Brasil, estamos examinando

    representações circunscritas em gêneros textuais, que, por sua vez, estão inseridos

    em manuais de ensino, cuja função é fornecer subsídios para ensinar/aprender um ou

    mais traços de uma língua e/ou uma cultura. De forma bem ampla, é esse caráter

    acolhedor de gêneros, e sua consequente natureza funcional específica, que nos

    autoriza relacionar os materiais didáticos e as representações a gêneros textuais.

    Assim sendo, para nosso amparo teórico relacionado a gêneros textuais, contamos

    com os estudos de Luiz Antonio Marcuschi.

    O corpus selecionado para esta pesquisa é composto por livros didáticos

    publicados no Brasil que contemplam, em uma ou mais de suas unidades, textos

    verbais e/ou não verbais que apresentam qualquer alusão ao estrangeiro. O recorte

    temporal abrange o período que se inicia na década de 1940 e termina na década de

    2010, perfazendo, assim, onze livros didáticos analisados (a obra de 2010 apresenta

    três volumes). Para cada década do recorte temporal, foi escolhido um livro didático

    representativo, com ampla circulação e mais de uma edição.

    A primeira parte deste estudo é esta introdução, onde expomos nossas

    considerações preliminares e as características gerais do estudo.

    A segunda parte abrange o referencial teórico que nos serviu de suporte para

    traçarmos as análises dos textos. Nesse capítulo estão em tela as noções de

    representações sociais e gêneros textuais, além das questões sobre materiais

    didáticos para ensino de língua estrangeira e das ideias sobre identidade, diferença e

    cultura relacionadas ao estrangeiro.

    Como terceira seção, temos a metodologia empregada no desenvolvimento

    desta obra, onde são explicitados os conceitos básicos, as diretrizes, as etapas e os

    procedimentos gerais e específicos que nortearam a seleção e a análise dos materiais

    didáticos destacados para este estudo.

  • 16

    Na quarta parte, está a análise dos textos verbais e não verbais dos livros

    didáticos que compõem o corpus. Para analisar cada livro, partimos de uma breve

    descrição do momento sócio-histórico da década em que foi publicado o material. Em

    seguida, procedemos a uma caracterização geral da obra, observando a

    Apresentação e o Sumário. Por fim, chegamos ao exame detalhado de cada unidade

    em busca de representações do estrangeiro.

    A quinta parte contém a recapitulação dos resultados obtidos em nossa análise.

    Nessa seção, estabelecemos uma análise comparativa entre os achados na

    investigação de cada livro, traçando um quadro tanto com os traços comuns

    encontrados nas análises quanto com as dessemelhanças.

    Na sexta parte, referente às conclusões, procuramos responder às questões

    levantadas inicialmente em referência à presença/representação do estrangeiro nos

    materiais didáticos de Português para Estrangeiros publicados no Brasil.

  • 2 REFERENCIAL TEÓRICO

    Neste capítulo, vamos abordar os pressupostos teóricos que deram suporte às

    nossas análises: as ideias relacionadas à Teoria das Representações Sociais, as

    considerações que envolvem a geração de materiais didáticos para ensino de línguas

    estrangeiras, as implicações dos gêneros textuais nos livros didáticos e as reflexões

    acerca do conceito de ‘estrangeiro’.

    2.1 As representações sociais

    Conforme nos ensina Pinto (2002), as práticas sociais servem como elementos

    essenciais na criação, manutenção e mudança das representações, identidades e

    relações sociais. As interações sociais que ocorrem dentro de um determinado grupo

    de indivíduos, desde os episódios mais simples do dia a dia até as realizações mais

    complexas, estão inseridas, inevitavelmente, nesse conjunto de sistemas simbólicos

    e acabam por gerar um conjunto de concepções, crenças e ideias que nos possibilitam

    a rememoração de eventos, pessoas, objetos etc. Além disso, como nos explica

    Moscovici, “[...] existe uma necessidade contínua de re-constituir o ‘senso comum’ ou

    a forma de compreensão que cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual

    nenhuma coletividade pode operar” (2011, p.48).

    A Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici ganha destaque em

    1961 com a publicação da obra A Psicanálise, sua imagem e seu público. Sua teoria

    se distingue por sugerir a existência de um pensamento social resultante das

    experiências, das crenças e das trocas de informações presentes na vida cotidiana.

    Sua análise se desenvolveu a partir da confiança em que a sociedade necessitaria de

    outro conceito, menos genérico que as representações coletivas oriundas do

    pensamento do sociólogo Durkheim (final do século XIX), para acompanhar, explicar

    e compreender como ocorre a formação do pensamento e do conhecimento social.

    Enquanto a sociologia de Durkheim se esforça em dar enfoque àquilo que

    mantém as sociedades coesas, às forças e estruturas que as conservam contra

    qualquer fragmentação ou desintegração, a psicologia social de Moscovici orienta-se

    para questões sobre como as coisas mudam na sociedade. Ao contrário do caráter

  • 18

    estático das formulações de representações coletivas de Durkheim, Moscovici se

    interessa pela dinamicidade das ideias coletivas nas sociedades modernas.

    A dinâmica das ideias coletivas sobre as quais Moscovici se debruça está

    relacionada aos pontos de tensão que existem em qualquer cultura e donde resultam

    novas ideias coletivas. É a esse processo de ressignificação, de familiarizar o não

    familiar, que as representações sociais se referem. Moscovici defende que os

    indivíduos ou grupos não são receptores passivos, mas participantes importantes de

    uma sociedade pensante, que elabora um pensamento social e (re)avalia

    constantemente seus problemas e suas soluções.

    Segundo Moscovici (2011, p.31), “[...] nossas reações aos acontecimentos,

    nossas respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada definição, comum

    a todos os membros de uma comunidade à qual nós pertencemos”. Como “[...] o

    mundo em que vivemos é totalmente social” (MOSCOVICI, 2011, p.33), não há como

    desvincular nossos sistemas perceptivos das representações sociais. Nas palavras de

    Moscovici (2011, p.35), “nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos

    anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura”. As

    representações são partilhadas por nós, penetram e exercem influência sobre cada

    um de nós. Elas são, enfim, um sistema de valores, ideias e práticas com a dupla

    função de prescrever e convencionalizar o mundo.

    As representações sociais servem para nos deixar confortáveis diante do

    mundo. Frente aos mais diversos acontecimentos, objetos, pessoas, ideias e

    elementos com os quais deparamos em nossas vidas, sentimos a necessidade de

    dominar o significado de toda essa gama de estímulos. Cotidianamente, somos

    expostos a oportunidades de nomear e interpretar os fatos, os atos, os

    comportamentos. É por essa razão que Jodelet (2001, p.21) afirma que “as

    representações sociais são fenômenos complexos sempre ativados e em ação na vida

    social”.

    A representação social também é considerada como um saber prático, pois é

    uma forma de conhecimento que nos ajuda a agir sobre o mundo e o outro (JODELET,

    2001, p.27-28), fazendo com que a engrenagem social continue em movimento. Tanto

    é assim que seu papel é fundamental para a criação de um universo consensual. A

    importância das representações sociais decorre do fato de que

  • 19

    [...] pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e da cooperação. [...] Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações morrem (MOSCOVICI, 2011, p. 41).

    Ainda que qualificadas como um saber prático, designado para agir e se

    relacionar com o mundo, as representações configuram-se como manifestações

    profundas e multifacetadas, como modos de conhecer provindos das sociedades

    modernas, que têm a necessidade de processar em pouco tempo uma grande

    quantidade de informações. É por meio das representações que diversos grupos

    sociais se expressam de forma também diversa ante o mesmo objeto. Essa variedade

    de expressões, nas quais podemos reconhecer elementos informativos, cognitivos,

    ideológicos, valores, opiniões, crenças etc., permeia a vida social e se constitui como

    um conhecimento do senso comum. Assim, as representações são resultado da

    percepção dos indivíduos em seu esforço para entender e agir em uma realidade em

    incessante transformação.

    Tendo em vista que a representação social é uma forma de conhecimento,

    necessariamente o sujeito que investiga e o objeto investigado relacionam-se no

    processo de representar. Todavia, esse fenômeno cognitivo caracteriza-se por não

    desprender o sujeito de seu atributo de agente social e cultural, já que, sendo um

    conhecimento prático, a representação é voltada para fabricar efeitos sociais. Ao

    mesmo tempo, a representação é produto e processo de uma construção mental. Na

    qualidade de produto, estrutura-se como um discurso da realidade, enquanto que

    como processo reflete a dinâmica empreendida pelo sujeito para apreender um objeto

    novo, desconhecido, não familiar, que se situa fora de seu arcabouço conceitual.

    Como nos ensina Moscovici (2011), o processamento que se dá para tornar

    aquilo que é desconhecido e estranho em algo familiar desenvolve-se por intermédio

    de um duplo mecanismo, de natureza psicológica e social: objetivação e ancoragem.

    Esse mecanismo tem por fim realçar uma figura, dotá-la de um sentido e inscrevê-la

    no universo.

    Conforme nos orienta Moscovici,

    nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através de uma linguagem, nós organizamos nossos pensamentos de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. (2011, p. 35)

  • 20

    Desse modo, a objetivação caracteriza-se por transformar o abstrato em

    concreto, cristalizando as ideias e tornando-as objetivas, ao que Moscovici chama de

    “face figurativa”. Tal processo possibilita transportar aquilo que até então inexiste para

    o universo do conhecido. O mecanismo de objetivação ocorre em três fases: a)

    seleção e contextualização: os indivíduos se apropriam do conhecimento por conta de

    critérios culturais; a partir de experiências e conhecimentos que esse grupo de

    indivíduos já dispõe ocorre uma construção seletiva da realidade; b) formação de um

    núcleo figurativo: o indivíduo recorre a informações de dados que já possui para

    compreender aquilo que é novo; c) naturalização dos elementos do núcleo figurativo:

    nesse momento o abstrato torna-se concreto. É na objetivação que o conceito se

    cristaliza e passa a ser considerado como elemento da própria realidade.

    Também nos explica Moscovici que é

    pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo. De fato, representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de categorias e nomes. (2011, p. 62)

    A ancoragem, então, refere-se ao processo pelo qual a ideia é trazida para o

    contexto do familiar, traduzindo-se na categoria de “imagem comum”. Sua função é

    realizar a integração cognitiva do objeto representado em um sistema de pensamento

    preexistente. Por meio da ancoragem, os novos elementos de conhecimento são

    colocados numa rede de categorias mais familiares. É na ancoragem que se dá a

    assimilação das imagens dadas pela objetivação, com a sedimentação de um registro

    simbólico.

    É importante ressaltar que a objetivação e a ancoragem não transcorrem em

    momentos distintos. Os dois mecanismos desenvolvem-se concomitantemente,

    relacionando-se para criar sentido. Mais uma vez, nas palavras do mestre Moscovici,

    ancoragem e objetivação são, pois, maneiras de lidar com a memória. A primeira mantém a memória em movimento e a memória é dirigida para dentro; está sempre colocando e tirando objetos, pessoas e acontecimentos que ela classifica de acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo mais ou menos direcionada para fora (para os outros), tira daí conceitos e imagens para juntá-los no mundo exterior, para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido. (2011, p. 78)

    Em resumo, a Teoria das Representações Sociais nos instrumentaliza para

    trabalhar com o pensamento social em sua dinâmica e em sua diversidade. Ela

  • 21

    respalda-se no princípio de que existem diferentes formas de conhecer e de se

    comunicar, norteadas por finalidades diferentes. Adicionalmente, essa teoria pauta-se

    na ideia de que as interações sociais vão criando “universos consensuais”, no âmbito

    dos quais as novas representações vão sendo produzidas e comunicadas, tornando-

    se parte do universo não mais como opiniões, mas como verdadeiras “teorias” do

    senso comum, construções esquemáticas que têm por objetivo dar conta da

    complexidade do objeto, facilitar a comunicação e orientar condutas. Essas “teorias”

    ajudam a construir a identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo

    ao grupo.

    Fazendo uma analogia entre as dicotomias “essência/aparência” e

    “realidade/imaginário”, aparenta ser razoável associar ‘essência’ e ‘realidade’, e

    ‘aparência’ e ‘imaginário’. Com efeito, a partir do momento em que as primeiras são

    tomadas como ‘o que é’, ‘aparência’ e ‘imaginário’ tornam-se o que ‘parece ser’. Há

    que se lembrar, no entanto, que aquilo que é ou parece ser o é não para um sujeito

    que está isolado no universo, mas, sim, para um homem “dominado por um mundo

    que se impõe a ele [...] e pelos sistemas de representações [...] que o próprio homem

    constrói e que dependem ao mesmo tempo de sua vivência” (CHARAUDEAU, 2006a,

    p. 190-191).

    O que de fato existe entre o real e o potencial de percepção que um indivíduo

    tem dele é um processo de interpretação por meio do qual esse indivíduo constrói a

    realidade. Esse processo se dá em função da posição desse indivíduo e das

    condições de produção que emanam do contexto social em que ele se encontra. Nas

    palavras de Charaudeau (2006a, p. 203-204),

    o imaginário é efetivamente uma imagem da realidade, mas imagem que interpreta a realidade, que a faz entrar em um universo de significações. Ao descrever o mecanismo das representações sociais, aventamos com outros a hipótese de que a realidade não pode ser aprendida enquanto tal, por ela própria: a realidade nela mesma existe, mas não significa. A significação da realidade procede de uma dupla relação: a relação que o homem mantém com a realidade por meio de sua experiência, e a que estabelece com os outros para alcançar o consenso de significação. A realidade tem, portanto, necessidade de ser percebida pelo homem para significar, e é essa atividade de percepção que produz os imaginários, os quais em contrapartida dão sentido à realidade.

  • 22

    2.2 Materiais didáticos para ensino de línguas estrangeiras

    De acordo com o que nos ensina Almeida Filho (2013, p. 16), os materiais

    didáticos são “uma forma de codificação de ação futura nas salas ou em outros lugares

    de aprender nas extensões”. Eles oferecem atividades que poderão se configurar em

    experiências de ensino-aprendizagem vivenciadas por aprendiz e professor em algum

    momento. Essas atividades compõem-se de conteúdos, procedimentos, instruções

    que carregam propósitos didático-pedagógicos, mas que estão prenhes de inúmeros

    aspectos socioculturais em seu substrato.

    Como a questão central desta pesquisa não é analisar os livros didáticos

    escolhidos em relação a conteúdos linguísticos, abordagens e metodologia e, sim, as

    possíveis representações do estrangeiro contidas em seus textos, não podemos

    perder de vista a ideia de que os manuais didáticos fazem brotar experiências

    linguísticas e culturais a partir da perspectiva de seus autores e editores. Nesse

    sentido, é nosso dever levar em conta alguns dos aspectos que envolvem a produção

    dos didáticos.

    Como afirma Almeida Filho (2013, p.13), “produzir um material de ensino

    equivale metaforicamente a escrever uma partitura para ser interpretada em

    execuções na materialidade da aula e suas extensões”. Na elaboração dessa

    partitura, estão presentes irremediavelmente as marcas do tempo em que foi

    produzida: crenças, valores, opiniões e percepções próprias do autor do material que,

    como qualquer indivíduo, não escapa da contextualização histórica, social e cultural

    de sua época. Igualmente, se a partitura será interpretada, aquele que a recebe

    também está imbuído de crenças, valores, opiniões e percepções próprias que

    desempenharão o papel de filtro na recepção do que está registrado nos materiais de

    ensino. Assim, existe um espaço para a negociação entre o que já se tem como

    representação (do estrangeiro, como é o caso desta pesquisa) e o que está

    representado nos livros didáticos.

    Se não há possibilidade de descolamento entre o material produzido e a

    composição social, histórica e cultural de seu autor, tampouco é recomendável que se

    pretenda aproximar de um material didático para ensino de língua estrangeira, com a

    intenção de verificar, em seu interior, qualquer aspecto que seja, sem atentar para os

    elementos geopolíticos que envolvem sua produção. Além de sua circunscrição aos

  • 23

    contextos inerentes ao local/nação de produção, os materiais didáticos para ensino

    de língua estrangeira, como nos esclarece Zarate (1995, p.25), também são sensíveis

    às flutuações das relações geopolíticas. Os didáticos atuam como verdadeiros objetos

    da história, pois refletem as condições de socialização de uma geração em

    determinado país e o estado das relações entre as partes do mundo.

    Consequentemente, esses materiais refletem as relações de poder do tabuleiro

    internacional.

    Não obstante o relevante papel do autor - professores, linguistas - na

    elaboração dos manuais para ensino de línguas estrangeiras, Zarate (1995, p. 45) nos

    alerta para as responsabilidades da composição dos livros didáticos. Os autores dos

    manuais não são totalmente responsáveis pelo produto final. Além dos vestígios

    deixados nos materiais didáticos pela inescapável condição de ser social de seus

    autores, os manuais tampouco conseguem se esquivar dos interesses comerciais que

    permeiam sua produção, pois estratégias de difusão e de venda também fazem parte

    do jogo da concepção dos materiais. No processo de fabricação dos didáticos, muitos

    atores entram em cena: editores, designers gráficos, artistas de layout, pesquisadores

    de iconografia. O autor não tem a coordenação de todas as intervenções concebidas

    para figurar no trabalho. Em consequência, o autor não deve ser considerado o único

    responsável pelo conteúdo dos materiais didáticos.

    Não se pode, ainda, deixar de apontar alguns outros aspectos importantes a

    serem considerados acerca dos materiais didáticos: suas funções econômica e

    político-pedagógica, sua incontestável inserção na política educacional e seu papel

    nas políticas editorial e pública. Ademais, os livros didáticos carregam consigo uma

    legitimidade no meio educacional, uma vez que sempre sustentaram a atribuição de

    intermediadores entre os saberes e os alunos. Considerando a força da escrita nas

    sociedades ocidentais, essa legitimidade confere um grande poder de formação e

    informação aos didáticos, tendo em vista que transmitem e partilham “verdades

    sacramentadas”. No contexto filosófico, os didáticos desempenham uma função

    importante de legitimação do saber, pois constituem uma fonte autorizada de

    propagação dos saberes acumulados na sociedade. Na prática, reproduzem as

    relações de poder.

    Com relação aos manuais de Português Língua Estrangeira (PLE), informa-nos

    Pacheco (2006, p. 69) que, no início de sua produção, os próprios imigrantes,

    principalmente os alemães, elaboravam e publicavam seus livros didáticos, com o

  • 24

    objetivo de tornar possível o estudo da língua portuguesa. Também segundo Pacheco

    (2006), grande parte desses materiais se perdeu em razão da pressão proibitiva

    imposta pela legislação brasileira e em função da própria dispersão constitutiva do

    processo de geração dos materiais didáticos, os quais eram concebidos por

    professores em escolas geograficamente distantes que não tinham entre si qualquer

    tipo de troca.

    Entretanto, Almeida e Júdice (2016, p. 270) revelam que referências desses

    materiais podem ser encontradas em estudo realizado por Almeida (2011), no qual

    buscou reescrever a cronologia dos materiais didáticos para ensino de Português do

    Brasil para Estrangeiros (PBE) publicados no Brasil. As obras referenciadas no estudo

    de Almeida (2011) foram publicadas no período de 1883 a 1922 e apresentaram-se

    escritas majoritariamente em alemão, revelando a intenção de se direcionarem,

    evidentemente, aos aprendizes falantes de alemão.

    Para esclarecer a questão da produção de materiais didáticos para ensino de

    português do Brasil para estrangeiros, Almeida e Júdice (2016) propõem uma divisão

    acerca desse ensino, que confirma a influência da configuração histórica da respectiva

    época sobre a geração dos didáticos. Segundo as autoras, a elaboração desses

    manuais está diretamente ligada a três períodos do ensino de PBE: o ensino para

    adaptação, relativo ao lapso de tempo em que o Brasil recebeu milhões de imigrantes;

    o ensino como imposição, quando a política de nacionalização instituída na Era

    Vargas provocou mudanças no sistema educacional e no ensino brasileiros, e,

    consequentemente, implicações na elaboração, edição e publicação de materiais; e o

    ensino de PBE como adição, referente ao período em que houve um novo fluxo de

    estrangeiros para o Brasil.

    No que diz respeito ao ensino para adaptação, cabe lembrar que os variados

    grupos de imigrantes que chegaram ao Brasil não poupavam esforços para prover

    qualidade na educação de seus filhos, estimulando a produção de material didático e

    viabilizando uma estrutura de apoio para o processo escolar. Com a obrigatoriedade

    de escolaridade mínima de cinco anos a partir de 1920, organizaram-se associações

    e cursos para professores, e um amplo incentivo foi dado para a produção de materiais

    didáticos. Mas cada grupo de imigrantes – alemães, poloneses, italianos, japoneses

    – administrava suas ‘escolas’ de acordo com o legado acadêmico que portava de sua

    origem. Os alemães, como vimos anteriormente, ganharam destaque ao produzir e

    publicar obras no Brasil entre os decênios finais do século XIX e as primeiras décadas

  • 25

    do século XX (Cf. ALMEIDA, 2011). Essas obras não estavam submetidas à política

    de nacionalização, que se instaurou em momento posterior.

    O ensino como imposição se verifica a partir da década de 1930, quando o

    Estado passou a exigir, por meio de decreto, que o português para os estrangeiros

    fosse tratado como língua nacional, devendo ser ensinado com estratégias de língua

    materna. A institucionalização do ensino de português ganhava mais força com a

    nacionalização compulsória do ensino primário e do ensino privado, conforme o

    Decreto 58 de 28 de janeiro de 1931, expedido pelo Interventor Federal no Estado de

    Santa Catarina. Além dessa imposição governamental, escolas públicas foram

    abertas nas proximidades das escolas de imigrantes, o que inviabilizou, na prática, o

    funcionamento dessas últimas, tendo em conta o apelo à gratuidade das públicas e

    seu “superior” ensino de português, língua social com que os estrangeiros e seus

    descendentes tinham de se comunicar.

    O Decreto 58 de 1931 e, posteriormente, o Decreto-lei nº 406 de 1938, no qual

    se tratou com mais detalhes a entrada de estrangeiros no território nacional, causaram

    grande impacto no sistema de ensino em terras brasileiras. Gráficas pertencentes aos

    imigrantes foram fechadas; menores de 14 anos passaram a estar proibidos de

    aprender qualquer língua estrangeira; os diretores das escolas e o corpo docente das

    escolas tinham a obrigação de dominar a língua portuguesa; as disciplinas História e

    Geografia do Brasil tornaram-se obrigatórias nos currículos escolares; livros, textos,

    jornais ou revistas em língua estrangeira tiveram sua circulação desautorizada.

    Até a década de 1950, o ensino da língua portuguesa falada no Brasil para

    estrangeiros encontrou muitos obstáculos. O maior deles estava exatamente na

    disponibilidade de materiais didáticos, tendo em vista que a quase totalidade dos

    pouquíssimos cursos de português do Brasil para estrangeiros oferecidos no país

    dependiam de textos escritos no exterior. Foi a partir dos anos 1950 que as discussões

    sobre a criação de materiais didáticos para ensino de PLE começaram a se engendrar

    no meio acadêmico brasileiro.

    De acordo com Pacheco (2006), foi somente na década de 1960 que a

    Linguística Aplicada ao Ensino de Português como Língua Estrangeira começou a

    ganhar força. Uma equipe binacional (norte-americana e brasileira) formou-se para

    preparar um manuscrito para uma edição experimental de Modern Portuguese, um

    projeto financiado pela Modern Language Association of America. Algumas questões

    fundamentais foram levantadas por esse grupo de trabalho: “que estruturas frasais

  • 26

    selecionar e por quê? Que amostra do léxico do português oral informal incluir e por

    quê? Que usos do português descrever? Com base em que descrições? Na ausência

    destas, como proceder?”.

    Nessa mesma época de 1960, a educação bilíngue e o ensino de PLE sofreram

    uma guinada modificadora: em decorrência da abertura da economia nacional ao

    mercado externo e da explosão da nossa indústria automobilística, o Brasil passou a

    figurar na comunidade internacional como nação com desenvolvimento em potencial.

    Consequentemente, muitos executivos passaram a vir do exterior para assumir cargos

    nas empresas multinacionais que aqui começaram a se instalar. Além disso, alguns

    grandes projetos da época, como a construção da usina de Angra dos Reis, no estado

    do Rio de Janeiro, dentro do contexto de convênios firmados com outros países,

    ocasionaram a vinda de técnicos especializados estrangeiros, que imigravam com

    suas famílias e matriculavam seus filhos em escolas internacionais. A demanda pelo

    ensino do português brasileiro nas escolas em terras brasileiras sofreu grande

    aumento, o que gerou a necessidade de se providenciar material para o ensino do

    português brasileiro.

    O ensino de PBE como adição inicia-se nos anos 1990, quando a estabilidade

    econômica do Brasil possibilitou uma maior visibilidade do país no cenário

    internacional. Em decorrência dessa nova posição no quadro mundial que o país vem

    experimentando e com a expansão da Internet e das tecnologias digitais, foram-se

    criando novos contornos em relação à língua e cultura brasileiras. Dessa forma, o

    ensino de PBE vem encontrando um ambiente propício para expansão, com novos

    estudos e produções.

    Além disso, não obstante a piora da situação econômica do Brasil nos últimos

    dois anos, há outros elementos que têm contribuído para favorecer o interesse pelo

    país: a crise econômica da Europa e os conflitos armados que têm sucedido em

    algumas partes do mundo. Esses elementos têm favorecido um novo fluxo de

    imigração para o Brasil. Conforme Almeida e Júdice (2016) nos ensinam, essa

    movimentação de pessoas em direção ao Brasil não pode ser desprezada no que diz

    respeito à área de Português Língua Estrangeira, pois a presença, temporária ou

    permanente, de não falantes da língua portuguesa no país acaba acarretando uma

    ampliação da demanda por cursos de português, por materiais didáticos e por

    professores qualificados.

  • 27

    Nesse contexto de valorização da língua e da cultura do Brasil experimentado

    nos últimos quinze anos, o ensino de PLE vem se recolocando em outros patamares.

    Várias frentes de trabalho têm sido abertas e alguns centros de referência em

    universidades do país têm atuado nas pesquisas relacionadas ao ensino de português

    do Brasil para estrangeiros. Além disso, a iniciativa do governo federal brasileiro de

    criar a Comissão Nacional para a Elaboração do Exame de Português para

    Estrangeiros – o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros

    (CELPEBras), que é aplicado desde 1998 – é uma clara demonstração da escalada

    da necessidade de maior aprofundamento nos estudos, na elaboração e na

    disponibilização de materiais didáticos para o ensino de português do Brasil para

    estrangeiros.

    2.3 Os livros didáticos e os gêneros textuais

    A justificativa para se registrar nesta pesquisa considerações teóricas sobre os

    gêneros textuais reside no fato de estarmos buscando identificar representações do

    estrangeiro em textos de materiais didáticos para ensino de língua estrangeira, que

    se configuram em diversificados gêneros para alcançar seus objetivos de

    ensino/aprendizagem. A existência das representações no conteúdo dos gêneros

    textuais apresentados nos livros didáticos não nos deixa afastar, portanto, da ideia de

    que as representações estão entre os elementos que contribuem para que os

    materiais didáticos para ensino de língua estrangeira exerçam sua função na

    sociedade, qual seja a de oferecer informações e meios para ensinar/aprender um ou

    mais aspectos de uma língua e/ou uma cultura – no caso a língua e a cultura

    brasileiras.

    Cumpre-nos esclarecer, entretanto, que nosso objetivo não é estudar a

    particularidade dos gêneros onde porventura se localizam as representações.

    Tampouco está no escopo deste trabalho analisar os gêneros textuais com os quais

    os autores dos materiais decidiram trabalhar. O aspecto relacionado a gêneros

    textuais que nos interessa neste trabalho é expressamente este: considerar o livro

    didático em sua totalidade como suporte de gêneros e sua funcionalidade exercida

    por meio dos gêneros textuais que apresenta. Desse modo, é necessário

    entendermos o funcionamento dos gêneros textuais nos materiais didáticos.

  • 28

    Segundo Marcuschi (2008, p.155),

    os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração das forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. [...] são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas.

    Além disso, os gêneros textuais possuem ações de ordem comunicativa e

    estratégias convencionais para atingir determinados objetivos. Todos os gêneros têm

    uma forma e uma função, bem como um estilo e um conteúdo, mas sua determinação

    se dá principalmente pela função e não pela forma. Hoje, muitos estudiosos

    consideram os gêneros textuais como formas de ação, como maneira de agir sobre o

    mundo na relação com o outro dentro de uma cultura e uma sociedade. Sendo assim,

    os gêneros tornam-se subsídios de compreensão de como interagimos pela

    linguagem, construindo relações sociais, de como (re)construímos nossa identidade e

    de como buscamos alcançar nossos objetivos sociais.

    Marcuschi (2010, p. 20) afirma que os gêneros textuais “são de difícil definição

    formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos

    sociopragmáticos caracterizados como práticas sociodiscursivas”. Está claro,

    portanto, que, em se tratando de gêneros textuais, estamos lidando com ações

    materializadas em textos escritos ou orais em nossa vida diária. Embora Marcuschi

    declare que definir os gêneros textuais é uma tarefa difícil, ele assume que “é

    impossível não se comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossível

    não se comunicar verbalmente por algum texto. Isso porque toda manifestação verbal

    se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero” (2008, p. 154).

    O professor nos alerta, contudo, para não confundir gênero textual com tipo

    textual. Este é descrito como “[...] uma espécie de sequência teoricamente definida

    pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos

    verbais, relações lógicas) ” (MARCUSCHI, 2010, p.23), enquanto os gêneros textuais

    são textos que “[...] apresentam características sociocomunicativas definidas por

    conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica”

    (MARCUSCHI, 2010, p. 23). Os tipos textuais possuem número limitado de exemplos

    (comumente conhecidos como: narração, argumentação, exposição, descrição e

    injunção), ao passo que os gêneros são inúmeros em diversidade de formas e podem

  • 29

    desaparecer, tendo em vista seu caráter social e histórico. Alguns exemplos de

    gêneros seriam: carta pessoal, carta comercial, bilhete, reportagem jornalística,

    receita culinária, receita médica, conferência, telefonema, piada, reunião de

    condomínio, bula de remédio, horóscopo, sermão, resenha, outdoor etc.

    Na contemporaneidade, estudos sobre letramento e práticas socioculturais de

    linguagem, tanto em língua materna quanto em língua estrangeira, têm enfatizado a

    importância da exploração dos gêneros textuais e sua funcionalidade em salas de aula

    e em livros didáticos. Cientes de que o livro didático ocupa, muitas vezes, uma posição

    de protagonista dentro do contexto de aprendizagem formal, entendemos que o

    ensino de uma língua estrangeira, principalmente dentro de propostas que visam

    desenvolver competências comunicativas, faz-se mais significativo quando explora

    categorias textuais distintas.

    Por meio das atividades de linguagem, o ser humano se constitui sujeito e é

    também através dessas atividades que o homem reflete sobre si mesmo, fala de si

    mesmo e do mundo que o rodeia. Sendo um gênero parte de um repertório de formas

    disponíveis no movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade, é muito

    importante que ele seja explorado nos materiais didáticos utilizados para o

    ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Os gêneros textuais estão

    intrinsecamente ligados ao cotidiano e às interações sociais, e sua presença nos livros

    didáticos – que são uma das principais fontes de acesso ao saber institucionalizado –

    pode proporcionar uma visão das formas de ação de uma sociedade concretizadas

    em linguagem.

    As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos

    discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão formas ao texto.

    Em se tratando de ensino de línguas, o contato com diferentes gêneros textuais e a

    apreensão destes ajudam o aluno a ocupar, com maior consciência, os diferentes

    lugares a partir dos quais existe a possibilidade de se comunicar, falando ou

    escrevendo, levando-o a agir com a linguagem de forma mais eficaz. É por meio do

    conhecimento dos gêneros que as práticas de linguagem se incorporam nas

    atividades comunicativas dos alunos.

    Conforme nos ensina Nunes (2002, p.68),

    os textos não são determinados simplesmente por seus elementos imanentes. Vão além e atingem fatores contextuais que, na verdade, os condicionam, os determinam e lhes conferem propriedade e relevância. Ou seja, é preciso chegar ao nível das práticas sociais e ao nível das práticas

  • 30

    discursivas, onde, de fato, se definem as convenções do uso adequado e relevante da língua.

    Aprender uma língua estrangeira, portanto, não é somente um exercício

    intelectual; é, também, uma oportunidade de experimentar outra possibilidade de vida.

    O conhecimento de uma língua não materna amplia as chances de se agir

    discursivamente no mundo. Por isso a relevância da utilidade de diferentes gêneros

    nos livros didáticos, pois os gêneros trazem para o aprendiz situações concretas que

    viabilizam a instauração de eventos comunicativos na língua-alvo, fazendo-o vivenciar

    essa outra possibilidade de interação com o mundo.

    2.4 O estrangeiro

    Nesta seção, vamos enfocar os conceitos que estão envolvidos na construção

    da ideia de “estrangeiro”. Para complementar o entendimento dessa ideia,

    abordaremos a condição de ser estrangeiro. E, por fim, trataremos do caso específico

    da imigração no Brasil.

    2.4.1 Identidade, diferença e cultura

    Lidar com o assunto “estrangeiro” é deparar com a ideia de sujeito, pois

    estamos aludindo a um ser inevitavelmente inscrito em uma sociedade de tantos

    outros sujeitos. Consequentemente, falar do estrangeiro também requer versar sobre

    identidade, uma vez que, entre tantos outros sujeitos, entre tantos ‘tus’/outros, é

    necessário o processo de identificação do ‘eu’.

    Como numa folha de papel, em que a existência do verso é consequência do

    anverso e vice-versa, não há como falar de um ‘eu’ sem falar do ‘tu’/outro. Se tecer

    considerações sobre o sujeito ‘eu’ importa reconhecer o outro para construir a própria

    identidade, não há como escapar, então, de pensar em diferença. E, numa sequência

    de elos inseparáveis, diferenciar um ser humano de outros resulta em nomeá-los,

    caracterizá-los, interpretá-los de formas diversas por meio da língua e da cultura.

    Identificar um sujeito como estrangeiro se converte, assim, em entendê-lo em

    termos de diferença. Destarte, quais são as implicações envolvidas na conceituação

    de ‘estrangeiro’?

  • 31

    Stuart Hall (2002) sugere três formulações de identidade ligadas a categorias

    de sujeito, relacionando-as a distintas fases da história recente: o sujeito do

    Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

    A concepção do sujeito do Iluminismo apresenta um sujeito racional, pensante

    e consciente, como o “sujeito cartesiano”. Era este o sujeito da modernidade: o sujeito

    da razão, do conhecimento e da prática, que sofria as consequências dessas práticas,

    que estava submetido a elas (HALL, 2002). O cerne fundamental do ‘eu’ era a

    identidade de uma pessoa, no sentido de uma visão muito individualista do sujeito e

    de sua identidade.

    À medida que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas

    passaram a se comportar de uma forma mais coletiva e social. As teorias clássicas

    liberais de governo, baseadas nos direitos e consentimento individuais, foram

    obrigadas a dar conta das estruturas do Estado-nação e das grandes massas de

    composição da democracia moderna. Emergiu, então, uma concepção mais social do

    sujeito, o que possibilitou classificá-lo como um sujeito sociológico. Na noção de

    sujeito sociológico, passa a haver uma consciência de que esse núcleo interior do

    sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas formado na relação com outras

    pessoas, que mediavam os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos

    que ele/ela habitava (Cf. HALL, 2002).

    Já na segunda metade do século XX, o período da modernidade tardia,

    operaram-se grandes avanços na teoria social e nas Ciências Humanas. Uma das

    mudanças mais impactantes desses avanços foi o descentramento final do sujeito

    cartesiano e uma forçosa revisão do sujeito sociológico. Contemporaneamente, os

    processos de globalização se intensificaram de forma acelerada, e as identidades,

    que compunham as paisagens bem mais estanques de outrora, estão entrando em

    colapso. Devido a mudanças estruturais e institucionais, o próprio processo de

    identificação, pelo qual nos projetamos em nossas identidades culturais, sofreu

    considerável ampliação em seu caráter provisório e variável, tornando-se mais

    complexo.

    Com a multiplicação dos conteúdos e sistemas de representação cultural,

    temos sido confrontados por um número exponencialmente crescente de identidades

    possíveis e, ao mesmo tempo, bastante cambiantes, com as quais, ainda que de modo

    temporário, poderíamos nos identificar. É a partir desse contexto que se pode

    conceber o delineamento de um novo sujeito, um sujeito pós-moderno.

  • 32

    Conforme nos orienta Hall (2002, p. 41), tudo que dizemos tem um “antes” e

    um “depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. O significado

    é inerentemente instável: ele procura o fechamento - a identidade, mas ele é

    constantemente perturbado pela diferença. Por essa razão, Hall (2002) propõe que,

    em vez de falar da identidade como algo acabado, deveríamos falar de identificação.

    Se tomamos a ideia de Lévi-Strauss4 (apud CUCHE, 2002, p. 95) de que

    toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos

    [...] e que todos esses sistemas buscam exprimir certos aspectos da realidade

    física e da realidade social, e mais ainda, as relações que estes dois tipos de

    realidade estabelecem entre si e que os próprios sistemas simbólicos

    estabelecem uns com os outros,

    podemos vislumbrar a relação incontestável existente entre língua, cultura e

    identidade. Segundo Strauss5 (apud CUCHE, 2002, p. 94), podemos pensar a língua

    como uma condição da cultura, já que é por meio da língua que o indivíduo adquire a

    cultura de seu grupo. A língua, que também é um sistema simbólico, é um fenômeno

    social que contribui em grande escala para a construção dos sistemas simbólicos que

    compõem a cultura, visto que se elogia, critica-se, instrui-se, informa-se por meio das

    palavras. Como afirma Cuche (2002, p. 94), “língua e cultura estão em uma relação

    estreita de interdependência: a língua tem a função, entre outras, de transmitir a

    cultura, mas é, ela mesma, marcada pela cultura”. Dessa forma, a língua, sendo um

    fenômeno social e de interação, tampouco escapa da abrangência cultural. A língua

    faz parte da cultura e a cultura está presente na língua, pois “[...] a atividade linguística

    é uma atividade simbólica, o que significa que as palavras criam conceitos e esses

    conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo” (FIORIN, 2005, p. 56). Ainda,

    se pensarmos a cultura no contexto de determinada sociedade – e fazer parte de

    determinada sociedade é diferenciar-se culturalmente – estaremos pensando

    novamente em categorização, porque “[...] nenhum ser do mundo pertence a uma

    determinada categoria; os homens é que criam as categorias e põem nelas os seres”

    (FIORIN, 2005, p. 57).

    Nesse contexto de interdependência entre língua e cultura, surge a construção

    da identidade, ou como prefere Hall (2002), o processo de identificação. A língua se

    realiza em um contexto social, a cultura se realiza em um contexto social e não há

    4 Lévi-Strauss, C. Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950. 5 Lévi-Strauss, C. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958.

  • 33

    como ser diferente com a identidade. Além disso, a identidade reveste-se da língua e

    da cultura para ser composta. É no estabelecimento da identificação que verificamos

    a existência essencial da língua e a presença inevitável da cultura. A identidade se

    revela nas nomeações categorizadas (“os brasileiros”, “os espanhóis”, “os africanos”,

    “os nordestinos”, “os cariocas”, eu, tu, ele etc.) por meio da língua e na modalidade de

    categorização através da distinção ‘nós/eles’ baseada na diferença cultural (Cf.

    CUCHE, 2002). As definições “brasileiros”, “espanhóis”, “cariocas”, por exemplo, são

    apenas metafóricas, “[...] pois essas identidades não estão literalmente impressas em

    nossos genes” (HALL, 2002, p. 47); são construções culturais feitas por meio da

    língua. Portanto, construir uma identidade é um trabalho que se desenvolve dentro de

    contextos sociais, os quais definem o posicionamento dos agentes e,

    consequentemente, norteiam suas representações e escolhas.

    “O conceito de identidade é difícil de definir”. Essas são as palavras iniciais do

    verbete ‘identidade’ no Dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e

    Dominique Maingueneau (2006b, p. 266). Com efeito, para explicar ‘identidade’,

    outros conceitos tão ou mais complexos – como o de sujeito e cultura, por exemplo –

    são necessários para dar conta da profundidade de sua significação. Assim,

    estabelecer uma demarcação para o termo torna-se uma tarefa dificultosa,

    considerando a vastidão e a porosidade das ciências humanas e sociais.

    Segundo Charaudeau e Maingueneau, convém acrescentar ao conceito de

    identidade a noção de alteridade, pois essa noção “[...] permite postular que não há

    consciência de si sem consciência da existência do outro, que é na diferença entre ‘si’

    e ‘o outro’ que se constitui o sujeito” (2006b, p. 266). Essa concepção aproxima-se do

    que Hall (2002, p. 11) define como sujeito sociológico, em que “[...] a identidade é

    formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade”. Ainda segundo Hall (2002, p. 11-

    12), nessa concepção sociológica,

    [...] a identidade [...] preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.

  • 34

    A propósito, diferença é um conceito caro na compreensão do que é identidade,

    pois, como afirma Woodward (2012, p. 9), “a identidade é relacional”. Ela precisa de

    algo fora dela para existir: de outra identidade, de uma identidade que ela não é, mas

    que lhe dá condições de existência. A identidade é, por conseguinte, constituída pela

    diferença, que, por seu turno, “é estabelecida por uma marcação simbólica

    relativamente a outras identidades (na afirmação das identidades nacionais, por

    exemplo, os sistemas representacionais que marcam a diferença podem incluir um

    uniforme, uma bandeira nacional [...])” (WOODWARD, 2012, p. 13-14). Com efeito, a

    diferença desempenha papel crucial na definição de identidade.

    O próprio Hall (2002) argumenta, contudo, que essa conceituação sociológica

    está mudando. Segundo ele, o sujeito, que antes vivia como tendo uma identidade

    unificada e estável, agora está se transformando em um sujeito fragmentado,

    composto não de uma única, mas de várias identidades, por vezes contraditórias ou

    não resolvidas. E adiciona: “o próprio processo de identificação, através do qual nos

    projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e

    problemático” (2002, p. 12).

    Uma das questões centrais na definição do conceito de identidade é a tensão

    entre o essencialismo e o não essencialismo. Perguntas como ‘será que as

    identidades são fixas e imutáveis?’ ou ‘será que as identidades são fluidas e

    mutantes?’ ilustram essa tensão. Concepções construcionistas, ou não essencialistas,

    defendem a fluidez das identidades, na medida em que levam em conta as práticas

    de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são

    produzidos (Cf. WOODWARD, 2012). Considerando que esses significados se

    submetem constantemente ao dinâmico processo cultural das sociedades, a

    identidade é, portanto, nas concepções construcionistas, cambiante. Hall corrobora

    esse entendimento quando afirma que

    [...] a identidade está profundamente envolvida no processo de representação. Assim, a moldagem e a remoldagem das relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas. [...] Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos (2002, p. 71).

    Contrariamente, as concepções essencialistas, como o próprio nome revela,

    valorizam a essência, no sentido de ‘verdade’. Essa concepção nos leva à retomada

  • 35

    das ideias de Sócrates sobre essência e aparência. Segundo o filósofo grego (Cf.

    CHAUÍ, 2000, p. 139),

    [...] a verdade pode ser conhecida, mas primeiro devemos afastar as ilusões dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento. Os sentidos nos dão as aparências das coisas, e as palavras, meras opiniões sobre elas. Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao conceito, do ponto de vista individual à ideia universal de cada um dos seres [...].

    Ao serem lidas as palavras atribuídas a Sócrates, parece que é possível afirmar

    que os seres carregam atributos essenciais, imutáveis, e que o mais são atributos

    acidentais ou mera aparência. Nesse sentido, não é ilógico pensar que a identidade

    de um ser apresenta características que o acompanharão desde sua formação e que

    características temporárias, ou acidentais, lhe serão atribuídas ao longo de sua

    existência sem necessariamente alterar sua constituição central.

    Celso Lafer, PhD em Ciência Política, ex-Ministro das Relações Exteriores do

    Brasil nos governos Fernando Collor (abril/1992 a outubro/1992) e Fernando Henrique

    Cardoso (2001-2002), e ex-embaixador do Brasil junto à ONU e à Organização

    Mundial do Comércio - OMC (1995-1998), reconhecendo as dificuldades e a

    complexidade acerca do termo ‘identidade’, busca uma aproximação para sua

    definição: “[...] um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos

    quais se responde à pergunta: quem sois?” (2001, p. 15). De fato, “[...] a identidade

    envolve reivindicações essencialistas [...] nas quais a identidade é vista como fixa e

    imutável” (WOODWARD, 2012, p. 13). Por outro lado, ainda de acordo com Woodward

    (2012), a identidade também está vinculada a condições materiais e sociais,

    pertencentes a sistemas classificatórios fluidos que indicam como as relações sociais

    se organizam e se dividem. Sendo assim, “as identidades adquirem sentido por meio

    da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”

    (WOODWARD, 2012, p. 8), que se moldam e remoldam no espaço e no tempo.

    Se as identificações alcançam sentido por meio da linguagem e dos sistemas

    simbólicos pelos quais são representadas, estamos tratando, então, de identificações

    moldadas pela cultura.

    Laraia pontua que a discussão em torno do termo ‘cultura’ nunca terminará,

    “[...] pois uma compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da

    própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana” (1986, p. 63).

  • 36

    Entretanto, para os fins deste estudo, precisamos estreitar essa amplitude do termo,

    tendo em vista que existe uma aproximação intrínseca entre a ideia de ‘estrangeiro’ e

    a ideia de ‘cultura’.

    Nesta seção, tecemos nossas ponderações acerca da diferença e da

    identidade baseados na concepção de cultura proposta por Lévi-Strauss (apud

    CUCHE, 2002), na qual esta pode ser considerada como um conjunto de sistemas

    simbólicos.

    Agora, acrescentamos à ideia de cultura proposta por Strauss as considerações

    de White6 (apud LARAIA, 1986, p. 55), nas quais afirma que

    toda cultura depende de símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o homem seria apenas animal, não um ser humano. [...] O comportamento humano é o comportamento simbólico.

    Dessa forma, ao pensarmos o estrangeiro como “europeu”, “americano”,

    “francês”, “africano”, “italiano”, “muçulmano” ou “árabe”, por exemplo, estamos apenas

    nos voltando para os sistemas de símbolos que os caracterizam, ou melhor,

    categorizam como um grupo cultural.

    Como nos ensina Cuche (2002, p. 200), “toda identificação é ao mesmo tempo

    diferenciação”. E, segundo Barth7 (apud CUCHE, 2002, p. 200), nesse processo de

    identificação, o que mais importa é a vontade de marcar os limites entre “eles” e “nós”,

    e, dessa forma, manter uma “fronteira”, que é, evidentemente, social, simbólica. Para

    Cuche (2002, p. 200),

    o que separa dois grupos etno-culturais não é em princípio a diferença cultural [..]. Uma coletividade pode perfeitamente funcionar admitindo em seu seio uma certa pluralidade cultural. O que cria a separação, a ‘fronteira’, é a vontade de se diferenciar e o uso de certos traços culturais como marcadores de sua identidade específica.

    Assim, ao diferenciarmos os sistemas de símbolos, procuramos localizar o

    posicionamento do Outro, o estrangeiro, em relação a nós. Isso significa que a busca

    pela organização dos sistemas simbólicos – a dicotomia “nós e os outros” - não se

    6 WHITE, L. The symbol: the origin and basis of human behavior. In: MORBEL; LENNINGS; SMITH (Orgs.). Readings of Antropology. New York: McGraw-Hill Book Co. [Ed. Bras. In Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, Homem e sociedade. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 5ª ed., 1970). 7 BARTH, F. Les groupes ethniques et leurs frontières. In: POUTIGNAT, STREIFF-FENART J., Théories de l’ethnicité, PUF, col. Paris: Le sociologue, 1995. p. 203-249.

  • 37

    pauta pelo fator humano, mas sim pela diferença dos contextos de origem e dos

    símbolos associados a estes, que já são o suficiente para marcar a “fronteira”, pois,

    como nos explica Simmel8 (1983, p. 182), a posição do estrangeiro em um grupo “[...]

    é determinada, essencialmente, pelo fato de não ter pertencido a ele desde o começo,

    pelo fato de ter introduzido qualidades que não se originaram nem poderiam se

    originar no próprio grupo”.

    2.4.2 A condição de estrangeiro

    Segundo o estudo da natureza do homem em Immanuel Kant, todo habitante

    da Terra só pode ser pensado como parte de um todo. Para Kant, existe um direito de

    posse da terra que transcende as fronteiras dos Estados, uma vez que todo ser

    humano tem direito a um lugar na Terra (Cf. BELFORT, 2007). Em termos filosóficos,

    Kant está certo. Mas, em termos práticos, a que terra exatamente os habitantes desta

    Terra temos direito de posse?

    A história da humanidade nos mostra que os espaços, terras, solos apenas

    foram livres quando nenhum ser humano os havia descoberto. Uma vez conhecida a

    terra, habitada e dominada, esta não mais gozava de liberdade proprietária. Sendo

    parte do grupo que havia domínio sobre determinado espaço, um ser humano estava

    inserido em uma comunidade e compartilhava com os membros dessa comunidade

    hábitos, crenças, valores, direitos (não na acepção de hoje, mas, ainda assim,

    direitos). Não sendo parte desse grupo, estranho era: estrangeiro.

    Os caminhos tomados pela humanidade levaram à divisão das terras

    disponíveis sobre nosso planeta entre as entidades que foram criadas pelos seres

    humanos – os Estados-nação. Em consequência dessa criação, nacionalidades

    diversas surgiram, trazendo em seu rastro o aparecimento de diferenciações formais

    de línguas, costumes, crenças, direitos, sangues.

    A humanidade, contudo, nunca permaneceu estanque, em espaços imutáveis

    ou inalcançáveis. A migração, essa necessidade constante de se movimentar e

    8 O texto O estrangeiro, de Georg Simmel, está inserido na Coleção Grandes Cientistas Sociais,